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sábado, 31 de dezembro de 2011

A lei do oeste - Faroeste romântico

A LEI DO OESTE
Zane Grey

Um maravilhoso romance rodeado das aventuras do faroeste norte
americano, e para quem gosta de passar o tempo lendo, realmente é muito
bom. Tão bom que estou terminando o livro as 02:00 horas da manhã.
Vale a pena com certeza.

Zane Grey viveu a vida rude e movimentada que tornou famosa
nos seus livros. O sangue dos chefes peles-vermelhas corria-
lhe nas veias. E, além disso, Zane Grey conhecia de perto os
tipos característicos e as "reservas" do sudoeste. As suas
excitantes novelas, recordando e relevando a glória do Oeste,
estão impregnadas das cores locais, de acção e de romance.


CAPíTULo I


Dos muitos problemas que tinham atormentado Mary
Stockwell durante aqueles dois anos de professorado na
localidade escassamente habitada de Tonto Basin, do Arizona,
este último era o mais intricado, aquele que a tocara mais no
íntimo, porque dizia respeito à sua irmã mais nova, Georgiana
May, que ia a caminho do Arizona para se curar, segundo rezava
a carta de sua mãe, de uns ligeiros sintomas de fraqueza de
pulmões e também de uma exagerada tendência para os namoros em
série.
Naquele dia, Mary estava extremamente fatigada. Tinha
palmilhado todo o caminho até à pequena escola, construída em
madeira, em Tonto Creek - seis milhas - e, regressado
novamente a pé ao rancho Thurman, em Green Valley onde estava
hospedada. Os seus dezoito alunos, cujas idades variavam,
desde os seis anos do pequeno Mytir Thurman aos dezasseis de
Richard, tinham estabelecido, nesse dia novos máximos, no
respeitante a insubordinação. Depois, o sol quente daquela
tarde de Setembro e a poeira espessa da longa e seca estrada
através de bosques e matagais tinham-lhe causado extremo
cansaço. Consequentemente não estava nos seus melhores dias
para receber um choque como o originado pela leitura da carta
de sua mãe.
"- Bem, não há remédio, - pensava, amargurada, pegando mais
uma vez na carta. - Georgiana vem a caminho; chega a Globe no,
dia nove. Ora vejamos. Deus meu, é amanhã, terça-feira. A
diligência do correio sai de Globe na quarta.


7


Logo, ela chega a Ryson por volta das cinco horas. E eu não
posso lá ir. Tenho de mandar alguém ao seu encontro. Querida
Georgie de cabelos de oiro!"
Miss Stockwell parecia apoquentada por dois sentimentos
diferentes: o receio daquela súbita e arreliadora
responsabilidade e a lembrança sempre presente e sempre terna
da sua irmã. Que faria com ela? Como, encarariam os Thurman
aquela vinda? Georgiana tinha um aspecto atraente, quase
angelical; isso, porém, devia muito naturalmente ter sido
noutros tempos. Podia estar diferente.
Relendo mais uma vez a carta, a perplexa mestre-escola
atentou principalmente naquela parte que tanto a tinha chocado
a ela e ao seu espírito alquebrado:
". O doutor Smith diz que o pulmão direito de Georgiana está
afectado, mas o doutor Jones, em que o teu pai deposita grande
confiança, afirma que Georgie apenas dança e se diverte
demasiado e que a isso se deve estar tão em baixo. Mas, eu
penso que o doutor Smith é quem tem razão. Nunca vi com bons
olhos esse Jones. Lembras-te, da mulher dele, dos seus ares
empertigados. Em qualquer dos casos, Georgie não está nada
boa, pondo de parte todos os espíritos maus que a possuam.
"Filha, vai para seis anos que saíste de casa, e parte desse
tempo tens vivido na zona de florestas. É certo que estás
melhor que aqui, graças a Deus, mas estás enterrada viva no

que respeita a saber o que vai pelo mundo. Desde que partiste,
tivemos a Grande Guerra e depois o pós-guerra, que foi pior
ainda. Estou certa de que não consigo explicar-te o que
sucedeu, mas, pelo Menos, posso dar-te uma leve ideia acerca
de Georgiana. Tem agora dezassete anos e é bonita. Sabe mais
do que tu, que tens o dobro -da idade; sabe até mais do que
eu. O que quer que haja na rapariga moderna ela tem-no. Tenho
a impressão de que ninguém pode evitar gostar dela. E não se
trata de uma louca vaidade de mãe; é baseado no que vejo


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e oiço. Todos os nossos amigos adoram Georgie. Quanto aos
rapazes - uns homenzinhos - são decididamente doidos por ela e
ela faz os possíveis por os manter assim como são. Tenho pena,
verdadeiro desgosto de o admitir, mas Georgie só arranja
namoros positivamente escandalosos.
"Mas, voltando ao assunto que quero expor, Georgiana teima e
insiste em querer decidir da sua vida por si. Todas as
raparigas modernas são iguais, neste aspecto. Dizem que os
pais estão "fora de moda", que "não as compreendemos". Talvez
tenham razão. O pai pensa que Georgie não teve dúvida em
esquecer tudo quanto lhe ensinámos ou tentámos que aprendesse.
Mas, preocupada, aflita e doente como estou, por causa dela,
não posso mesmo assim crer que ela seja realmente "má".
Admito, claro, que isto pode ser simplesmente a fé, ou a
cegueira, ou a vaidade de uma mãe.
"Georgiana completou o curso do liceu. Queremos agora que se
empregue, mas ela nunca há-de trabalhar em Erie e talvez algum
excesso de fadiga nesta altura - se se desse o milagre de ela
assentir - lhe pudesse prejudicar a saúde.
"Uns amigos nossos, os Wayburns, vão de carro para a
Califórnia, e ofereceram-se para levar Georgie com eles. Podes
ter a certeza de que nos agarrámos desesperada e
esperançadamente à ideia de a deixar ir. Ela ficou encantada.
Não estamos a viver tão bem como antigamente, mas temos feito
sacrifícios e demos a Georgie: tudo quanto ela precisava; cá
disporemos as coisas para lhe pagar a estadia aí
indefinidamente. Talvez o Oeste, de que tu dizes maravilhas, a
cure e seja a sua salvação. Além disso, vai ser também uma
grande experiência para ti. Mas, filha, somos nós que te
pedimos, por amor dela, que aceites e faças tudo o que puderes
em seu favor".


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A segunda leitura daquela carta extraordinária tinha deixado
miss Stockwell triste e pensativa, mas livre da primitiva
indecisão e alarme. A mãe tinha feito quanto estava ao seu
alcance. Se Georgiana se desse bem com o ambiente rude,
áspero, selvagem, de Tonto Basin, não só recuperaria a saúde
como havia de crescer longe da falsidade e hipocrisia que se
tinham seguido à guerra. Embrenhada na sua espécie de exílio,
como miss Stockwell se encontrava, tinha, todavia, seguido com

interesse constante o que ocorria no mundo à sua volta.
Assimilara tudo, quanto os jornais forneciam de informação a
respeito do progresso dos tempos. Muito provavelmente, ela
compreendia melhor aquele tipo novo e precoce de americana - a
rapariga moderna - do que a mãe. Satisfazia-a a chegada da
irmã. Podia ser difícil para ela, mas isso, não importava. Não
podia deixar de ser proveitoso para Georgiana e era o ponto
capital.
Repentinamente, porém, viu-se perante um outro aspecto do
problema: os efeitos que Georgiana iria operar naquelas
redondezas, junto dos Thurman. de toda aquela gente primitiva
mas simples e boa que, forçosamente, teria de estar em
contacto com sua irmã, Ela, pessoalmente, afeiçoara-se
profundamente a Tonto e à sua singeleza selvagem. Tinha
perfeita consciência da sua missão de ajudar as crianças, e,
através delas, os seus respectivos pais. Não haveria uma razão
mais íntima, mais particular, pela qual ela estivesse
satisfeita com a sua vida ali? Um ligeiro rubor coloriu-lhe o
rosto, ao tentar desviar do espírito! essa interrogação. Mas,
com respeito a Georgiana, era natural que esta originasse
grande revolução na tranquilidade de Green Valley. Georgiana
podia insistir audaciosamente na vida frívola que levava em
Erie, mas, em Arizona, não levaria a sua àvante. Miss
Stockwell entrevia, vagamente, essa impossibilidade, embora
não pudesse precisar bem porquê.
Este pensamento, contudo, fê-la apreciar com mais ponderação
a índole dos rapazes, pequenos ou já crescidos, com quem se
tinha relacionado. Os filhos das três famílias Thurman, que
ela conhecia particularmente bem, pois tinha vivido um ano nas
suas casas. Todos eram uns homenzinhos, a maioria, de vinte e
poucos anos de idade, embora Enoch Thurman passasse já dos
trinta e Serge, seu primo, fosse poucos anos mais novo. Todos
eles eram destemidos cavaleiros da região montanhosa de Tonto.
Apenas um deles era casado e namoradas eram tão raras que
havia sempre disputas entre eles quando surgia alguma
candidata. Eram tratadores de gado durante todo o ano,
ajudando-se mutuamente, cortavam madeira, semeavam e faziam as
colheitas dos campos de milho e outros cereais, e caçavam os
ursos e os leões que, uma vez por outra, lhes arrebatavam
cabeças de gado. E o dinheiro que ganhavam, que não era muito,
entregavam-no em casa. Raramente se afastavam mais, nas suas
cavalgadas, do que até Ryson. A tentação da vida citadina não
penetrara ali. Vários de entre eles tinham estado em campos de
treino durante a guerra, e um deles, Boyd Thurman, "o melhor
cavaleiro", lançador, lenhador e caçador do grupo, estivera em
serviço, em França. Havia regressado ileso e, ao que parecia,
não fora afectado pelo meio totalmente diferente em que
vivera. Este facto, mais do que qualquer outro que Miss
Stockwell pudesse citar, demonstrava o individualismo dos
Thurman e as características de Tonto. O velho Henry Thurman
costumava dizer: "O nosso Boyd nunca -foi atingido, nem na
guerra nem na paz!"
Durante os anos de professorado em Tonto, miss Stockwell
nunca vira um Thurman ou alguém da sua família sob a
influência do álcool. Não eram mentirosos. Se faziam uma
promessa, era para ser cumprida. Asseados, garbosos, varonis,

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todos eles lhe pareciam jovens gigantes. Fumavam cigarros de
seu próprio fabrico e eram calmos, pacíficos, descontraídos,
trabalhadores laboriosos e alegres, robustos e experientes na
vida ao ar livre, cheios de um calor latente e de uma reserva
de energias de que raramente se serviam. Adoravam os bons
ditos, as "garotas" e a dança. No meio destes jovens e ousados
montanheses, uma rapariga como Georgiana seria o mesmo que uma
faúlha no mato rasteiro da pradaria.
O ruído peculiar do trote de cavalos no exterior interrompeu
as meditações de Miss Stockwell. Os cavaleiros voltavam da sua
faina. Pensou que seria mais fácil para ela sair imediatamente
e combinar com um dos rapazes para ir no dia seguinte a Ryson
esperar a sua irmã.
"- Sempre gostava de saber o que Georgie pensará deste
rancho" - disse ela para si própria, enquanto saía.
O velho edifício do rancho, quase inteiramente construído
por vigas de madeira, coberto de musgo e batido pelas
intempéries, com pequenos melhoramentos eventuais e protegido
pela sombra do arvoredo, tornara-se, com o decorrer do tempo,
numa pitoresca paisagem que a satisfazia. Mas, a princípio,
tinha-a chocado, como quase tudo daquela vida rude e
primitiva, embora sugestiva, daqueles pioneiros.
Encaminhou-se para as traseiras da casa, através do pátio,
aonde as galinhas, os vitelos e os cães tinham livre acesso,
em direcção às cavalariças.
A cavalariça contígua era vasta e sempre, apesar das suas
dimensões, provocara confusão no espírito de "Miss Stockwell.
Um dos cantos estava atulhado de carroças velhas, carros mais
pequenos, de quatro rodas, instrumentos de lavoura e
automóveis fora de uso, de tal forma empilhados que mais
parecia um depósito de ferro-velho. Um comprido estábulo
serpenteava a todo o comprimento da cavalariça e constituía
como que uma barreira desvelada.


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Tal como o edifício, tinha sido sujeita a diversas
melhorias, de tempos a tempos, e parecia uma confusa mistura
de galerias, tectos, janelas e divisórias, de mistura com
baias semi-arruinadas. A cavalariça estava repleta de cavalos
poeirentos e irrequietos. Talvez fosse este ambiente que
causasse confusão a Miss Stockwell, embora lhe agradasse ver o
remexer nervoso dos animais cobertos de suor.
Miss Stockwell encontrou os cavaleiros, nove deles,
agrupados junto de uma das largas portas da cavalariça. Tinha
a singular impressão de que aqueles jovens do Oeste se tinham,
subitamente, tornado mais importantes e de maior interesse
para ela.
Em grupo, todos eles pareciam estranhamente iguais uns aos
Outros. Era necessário pegar num de parte e estudá-lo
individualmente para se notar em que diferia dos seus
companheiros. Eram todos altos, secos e magros, de membros
robustos e poderosos, estreitos de cintura, pernas

ligeiramente arqueadas devido à sua condição de cavaleiros.
Naquele momento, seria impossível distinguir se uns eram mais
trigueIros do que outros, pois todos estavam enegrecidos pela
poeira do caminho. Usavam chapéus de abas largas, quase todos
fatos, alguns cinzentos, mas todos muito coçados, deformados e
ensebados. Calças azuis de lona fina, colete e fato género de
macaco, pareciam ser o último grito da moda. Alguns, tinham
tirado as protecções de couro grosso para as pernas, e
mostravam as calças enfiadas em botas de cano alto, grande
salto, brilhantes e já gastas, ostentando longas esporas com
enormes rodízios.
Corresponderam ao cumprimento de Miss Stockwell com o falar
arrastado e lento do Texas, que nunca deixara de lhe agradar.
- Rapazes, preciso que um de vocês mo faça um favor especial
- disse ela.


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Enoch Thurman aproximou-se. Era o chefe do grupo, de
estatura elevada, possuidor de uma figura garbosa que sempre a
tinha fascinado.
- Bom, míss Mary, se é para a levar ao baile, ofereço-me
imediatamente - afirmou.
Tinha uns olhos transparentes, de um cinzento-claro
maravilhoso, e a agudeza do olhar era adoçada por um
imperceptível pestanejar. Também um sorriso lhe suavizava a
rigidez do rosto moreno.
Miss Stockwell lembrou-se de que, a partir da chegada de
Georgiana, ela teria de assistir aos bailes. A perspectíva era
alarmante. As poucas ocasiões em que tivera ensejo de ir a
festas sempre a tinham deixado incapaz de leccionar no dia
imediato, pois os rapazes faziam-na andar em constante rodopio
até de madrugada.
- Aceito o seu amável convite, Enoch, mas não é esse o favor
de que necessito - respondeu, sorrindo.
Avançou, então, Boyd Thurman. Entroncado, de ombros largos,
fisionomia dura, parecendo talhada em bronze, os seus olhos
azuis tinham a sinceridade de uma criança. Atirou o chapéu
para a nuca, deixando a descoberto o cabelo cor-de-estopa.
- Professora, de que é que se trata? - indagou.
- Veja bem que estamos todos ansiosos por lhe sermos
prestáveis - atalhou Wess Thurman.
Este era primo de Boyd e de Enoch, tinha vinte e dois anos
de idade, estatura idêntica à dos outros e olhos rasgados.
- É ir a Ryson amanhã, buscar a minha irmã - respondeu Miss
Stockwell.
O teor desta declaração não era mesmo nada trivial. Era até
de uma importância tremenda. Assim, a reacção dos rapazes foi
lenta.


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- Amanhã - falou Enoch, pesaroso - tenho Muita pena, mas não
posso ir, Miss Mary. Fomos hoje a Mescal e eu guiei alguns

potros até aos nossos terrenos. Pertencem ao pessoal de Bar XX
e não quero atritos com eles. Vou levá-los daqui para fora
amanhã.
A julgar pela ansiedade do resto dos rapazes com excepção de
Cal Thurman, todos eles preferiam ir ter com a irmã de Miss
Stockwell a guiar gado. E, durante algum tempo, pareceu que
Enoch não ia ter grande ajuda no dia seguinte. "Mas, não! Não
preciso de todos!" - protestou ela.
- Basta-me um. Para não discutirem, será melhor tirarem à
sorte.
A sugestão, porém, não teve a aprovação da maioria. Trocaram
ideias sobre o caso. Miss Stockwell estava havia muito tempo
acostumada à simplicidade deles, ao seu entusiasmo e
loquacidade, e, quando em contradição, à sua singular teimosia
contra as ideias alheias e persistência na própria.
- Olhe lá, ela sabe dançar? - perguntou, então, Serge
Thurman, irmão de Wess. Era um latagão de cabelo alourado,
queimado pelo sol, com os olhos avermelhados pelo calor,
poeira e vento. Serge era o mais requintado de maneiras, bem
como o melhor em bailes de todos os Thurman. A sua pergunta
originou uma nova corrente de pensamentos, manifestamente de
grande interesse para os rapazes.
Miss Stockwell não se conteve sem rir. Não havia dúvida de
que a chegada de Georgiana ia dar que falar.
- Estou convencida de que sabe - replicou, com ar pensativo.
Começava a brotar no seu cérebro a ideia de que podia agora
vingar-se dos Thurman por algumas partidas inocentes que lhe
tinham pregado.
- Oiça, miss Stockwell, que tal é a sua irmã? - inquiriu Pan
Handle Ames.


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Era um dos vários homens ao serviço de Enoch, do Texas, como
a maioria deles, e cavaleiro no deserto do Texas. Pan Handle,
antes de ir para o Arizona, Tinha um aspecto vulgar e um ar
sério. A sua pergunta provocou renovado interesse, de tal
forma que a resposta se tornava absolutamente vital para a
resolução do assunto.
A professora estudava aqueles jovens, camaradas e risonhos,
imaginando o seu estado de alma e maquinando ela própria os
seus projectos. Como eram simpáticos! Ficariam ali horas
seguidas a conversar sobre o caso, se ela não pusesse ponto
final.
- Eu lhes conto, rapazes, - disse. - Eu tenho uma fotografia
dela. Vou buscá-la e, -assim, já poderão decidir quem é que
quer ir ter com ela.
Isto, pelo menos, foi aceite por unanimidade. Miss Stockwell
foi ao seu quarto e, com crescente consciência da sua
oportunidade, rebuscou nas suas coisas a fotografia de uma tia
solteirona, que era notável pelo seu rosto severo e anguloso.
Sentia um certo remorso pelo uso que se propunha dar ao
retrato da boa tia de que ela tanto gostava, mas não deixou
que o sentimento a fizesse dissuadir do seu propósito. De
fotografia em punho, apressou-se a voltar à cavalariça.
- Aqui está! - exclamou, mostrando-a.

Todos, excepto Cal Thurman, a rodearam, desejosos de ver o
retrato da irmã. Cal parecia divertido com a atitude dos
outros. Era o irmão mais novo de Enoch, tinha dezanove anos e,
aparentemente, era o único do grupo que não se interessava
particularmente por raparigas.
Houve um momento de tensa e silenciosa atenção. Em seguida,
um deles arriscou:
- Miss Mary, ela não se parece nada consigo.


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- Realmente, não - disse Serge, decidido, com uma finalidade
que a professora não deixou escapar.
- Bem, isto é. este retrato é mesmo da sua irmã? -
interrogou Enoch, lentamente, como que tentando recordar-se. -
Tenho a impressão de que já me tinha mostrado uma fotografia
dela.
- Olá! - acrescentou Pan Handle Ames. - É uma senhora bem
simpática.
Este elogio era obviamente forçado, dito com indiferente
frieza!
Depois, simultaneamente, calaram-se, embaraçados,
verificando que a situação tinha mudado subtilmente.
Afastaram-se de junto da rapariga e retomaram as mesmas
posições indolentes, a maioria recorrendo ao inevitável
cigarro como meio de distracção. Enoch observava o seu grupo
com evidente ar de troça jovial. Tinham-se colocado a eles
próprios em situação embaraçosa.
- Bem, já Reparei que vocês estão desejosos de ir guiar o
gado amanhã de manhã - ironizou, com sarcasmo.
Ele conhecia-os bem. Os cavaleiros tinham-se fechado
imperceptivelmente, como por magia, numa serenidade fria que
usualmente os caracterizava. Nos seus gestos e nos seus
olhares não transpareceu vestígio de atrapalhação, ou
interesse, ou consciência da troça mal dissimulada de Enoch.
- Enoch, tu não podes levar aquela manada de potros sem mim
e sem Boyd - afirmou Serge, calmamente.
Boyd teve um gesto de concordância e os seus olhos brilharam
ao ouvir as palavras do outro.
- Repara que o novo capataz de Bar XX também não simpatiza
contigo e, considerando a quantidade de animais que é, vai
ficar irritado, quando souber. Está sempre pronto para
provocar rixa e se não levares o gado daqui para fora, há-de
jurar que lho roubámos.


17


Enoch tomou isto a sério, como se, de facto, fosse
importante.
- Boyd, eu queria apenas fazer um favor a Bloom - replicou.
- Era já escuro quando juntámos aquela manada. E a equipa dele
vai amanhã a Mescal Ridge.
- Certamente, mas o meu conselho é levar-lhe o gado antes
que o dia fique estragado - continuou Boyd. - E pode não ser

fácil encontrá-lo todo.
Então, Enoch, pesando melhor o assunto, voltou-se para a
professora.
- Miss Mary, preciso de Serge e de Boyd amanhã e, por isso,
nenhum de nós pode ir buscar a sua irmã. Mas, com certeza
algum dos meus outros atenciosos e irresistíveis rapazes
poderá dispor do seu dia.
- Obrigada, Enoch, - respondeu ela. Depois, baseada no
consentimento dele, voltou-se novamente para eles e perguntou,
suavemente: - Então, qual de vocês quer fazer-me este favor?
O olhar com que os percorreu a todos encontrou-os mudos,
pensativos, com o espírito muito distante. Quando fixou com
mais insistência Pan Handle Ames, ele disse, com voz
arrastada:
- Miss Mary, já se esqueceu da forma como eu um dia a levei
da escola até casa?
- Claro que não! - exclamou ela, estremecendo. - Guiar
automóveis não é o seu forte.
- Não é, não. Em todo o caso, tê-lo-ia conseguido, se o
carro não se tivesse avariado. - replicou Pan Handle, voltando
ao entretenimento do cigarro.
Sabia que estava já fora da questão. Então, os restantes
sentiram-se na obrigação de encarar a rapariga, prontos para
responder ao apelo do seu olhar cheio de censura, quando este
recaísse sobre qualquer deles.


18


Dick Thurman era o mais novo dos rapazes e estava ainda na
escola.
- A senhora bem sabe, professora, eu iria se não fossem as
lições. Estou muito atrasado, segundo a senhora diz, e o meu
pai faz-me estudar antes e depois de ir para as aulas.
Lock Thurman era escuro de pele, de olhos e cabelos negros,
mais que todos os outros, um rapagão, de soberba compleição e
o mais sossegado e tímido do grupo.
- Lock, por favor, não quer ir? - pediu ela.
Ele abanou a cabeça e deixou-a tombar, escondendo o rosto.
- Admito que tenho medo das mulheres - disse.
- Hum. Porque não dizes antes que tens medo da tua garota,
essa Angie Bowers? - retorquiu o seu irmão wess.
- Não a receio mais do que tu à sua irmã gémea, Aggie -
respondeu Lock.
- Bem, se realmente vocês andam sempre a confundi-las e
nunca sabem qual é Angie e qual é Aggie, é caso para terem
medo. Que farão vocês se um dia chegam a casar-se? perguntou
Serge.
A conversa ia outra vez a degenerar em animada controvérsia,
mas Miss Stockwell atalhou-a, fazendo a Wess. o mesmo pedido.
- Professora, sinto muito dizer-lhe que não posso ir buscar
a sua irmã - respondeu Wess, com sinceridade aparentemente
profunda. -- Tenho imenso que fazer amanhã e vou precisar do
dia livre que Enoch disse que nos dava. Tenho de consertar a
minha sela, as botas precisam de meias solas e o meu pai não
me larga, para eu tratar da pata do cão, pois, brevemente,
vamos fazer uma caçada aos ursos; a minha mãe quer uma porção

de coisas e assim não posso ir a Ryson. Peça alí ao Arizona.


19


Ele é que pode adiar por um dia a ceifa do milho.
Aproveitando a sugestão, Miss Stockwell virou-se para o
rapaz designado por Arizona. Se tinha outro nome, ela nunca o
tinha ouvido. Era o único do grupo que não era alto, tinha
umas cores sadias, pupilas cintilantes e uma reputação de
jocoso que a sua aparência desmentia.
- Creia, Miss Stockwell, que até me sinto doente por não
poder satisfazê-la - declarou, com a voz mais penalizada deste
mundo -, mas o velho Hennery deu-me ordens rigorosas para
acabar a ceifa antes das chuvas.
- Ora! - interrompeu Wess. - Há um mês que não chove gota e
o tempo há-de continuar seco até Outubro.
- Nada disso. Tenho a certeza de que vai chover aí por
depois de amanhã. Olha para aquelas nuvens carregadas que vêm
de Sudoeste. É sinal seguro de tempestade. Pergunte ao Con,
que é pessoa para ir.
Con Casey, o novo indicado da extensa lista, era um
recém-chegado ao rancho Thurman, um irlandês que estava havia
poucos anos na América e muito menos tempo no Oeste. Era o
mais sisudo e simplório de todos aqueles jovens, e o centro de
farta brincadeira por parte dos camaradas. Gostavam dele,
embora o transformassem quase sempre em alvo da sua galhofa.
Quando a professora o interrogou, Con pareceu espantado. O
seu rosto sardento perdeu a cor e os grandes olhos,
azul-pálidos dílataram-se -de assombro. Não se podia pôr em
dúvida a sinceridade do seu susto.
- Meu Deus! - balbuciou, em tom solene. - Miss Stockwell, eu
nunca estive sozinho com uma mulher!
Os rapazes fizeram uma grande algazarra e começaram a
atirar-lhe piadas, mas era evidente que o acreditavam.
A rapariga aparentava uma grande ansiedade que não estava de
modo algum de harmonia com os seus verdadeiros sentimentos.


20


A situação divertia-a imenso e verificava que tudo se ia
passar como ela previa. Que cara fariam eles, quando, no dia
seguinte, Georgiana aparecesse em cena!
Tim Matthews, -outro cavaleiro, deu também uma ridícula
desculpa para se furtar ao encontro! e o último, à excepção de
Cal Thurman, garantiu, descaradamente, que não se sentia bem e
que em breve iria precisar dos préstimos do médico da terra.
Quando ele terminou, Cal ergueu preguiçosamente o seu metro
e oitenta e observou os seus irmãos e companheiros com ar de
mofa.
- Hei-de dizer a toda a gente que vocês são uma data de
idiotas - declarou.
Miss Stockwell estremeceu, ao ouvir isto, e sentiu a
iminência daquilo que tanto desejara. Aquele rapaz de dezanove
anos, filho de Henry Thurman, era na opinião dela, o mais

completo e melhor do grupo. Tinha toda a robustez física,
simplicidade, e qualidades de carácter dos naturais de Tonto,
e era um pouco mais inteligente e educado. Parecia mais
modernizado e era razoavelmente culto. Cal tinha passado o
último ano de escola sob a regência de Miss Stockwell e tinha
sido um bom estudante. O seu avô era texano e fora um dos
rebeldes mais notado pelo seu temperamento ardente e
impetuoso, o qual, segundo dizia a família, Cal havia herdado.
- Professora, terei muito gosto em ir esperar a sua irmã -
ofereceu-se, voltando-se para ela. - Estava só à espera de ver
como é que eles se esquivavam.
- Obrigada, Cal. Tenho a certeza de que não se vai
arrepender - replicou a professora, agradecida.
Estava, de facto, satisfeita, e revolvia o cérebro à procura
da melhor maneira de preparar Cal para o encontro com


-21-


Georgiana. Certamente, até àquele momento não lhe ocorrera
prosseguir no engano até ao fim.
- Ela vem na diligência de Glo-he? - perguntou Cal,
encaminhando-se com a professora para a porta da cavalariça.
- Sim, amanhã.
- Como é que hei-de ir? De automóvel ou de carripana?
A professora ponderou na resposta.
- É uma barulheira infernal aquele montão de ferro
enferrujado - observou ela, lembrando-se das poucas vezes que
viajara no automóvel da família. - Não me parece tão seguro
como a carripana.
- Descanse que eu trago-a viva - replicou Cal, com uma
gargalhada.
Haviam chegado à entrada da cavalariça, cuja cancela ele
abriu. Subitamente, alta gritaria ressoou, vinda dos rapazes
que tinham ficado no estábulo. A rapariga e Cal voltaram-se
para ver o que originava tão grande animação. Alguns estavam
muito juntos e pareciam embebidos em calorosa discussão. O seu
próprio aspecto deixava adivinhar patifaria que se preparavam
para fazer, em segredo.
Cal observou-os, desconfiado, e os seus olhos cintilaram com
mais fulgor. Tinha um rosto macio, quase sem barba, pele
levemente bronzeada, e uma figura menos seca e tosca do que a
que caracterizava os seus irmãos. Era um belíssimo moço, na
opinião muito íntima da professora.
- Está a ver? Estão a preparar alguma partida - resmungou
ele.
E atirou para trás o enorme "sombrero", passando os dedos
vigorosos pelo cabelo castanho.
- Partida? - repetiu ela, vagamente.
- Não seria melhor divulgar já a sua própria mentira?
- Sim, olhe para o Tim. Está a planear qualquer coisa,


22


agora. Mexe sempre a cabeça daquela maneira quando... Oh, eu

sei ler na cara deles!
- O Que vão eles fazer? - perguntou Miss Stockwell, com
curiosidade.
- Hão-de estar em Ryson amanhã, quando eu for ao encontro da
sua irmã - foi a amarga resposta.
- Quê? Estão lá? - exclamou ela, demasiado surpresa.
Cal fitou-a, com ar de dúvida, e voltou a alisar o cabelo.
Ele queria de verdade ser prestável, mas, evidentemente, as
perspectivas do que se preparava não eram das mais agradáveis.
Como um relâmpago, perpassou pelo cérebro de Miss Stockwell a
inspiração de não revelar a verdade e não esclarecer Cal
acerca de Georgiana. Assim, mais maravilhado ele ficaria
quando o desenlace se desse. E Georgiana havia de contribuir
bem para não o deixar ficar mal.
- Deixe-me ver o retrato que mostrou aos rapazes - disse Cal
-, para eu a reconhecer.
Miss Stockwell entregou-lho, sem dizer palavra. Cal
estudou-o, durante algum tempo.
- Não vejo nenhuma semelhança consigo, - informou ele. -
Esta é aceitável mas a senhora é simpática e bonita.
- Obrigada, Cal, - replicou ela, com modéstia um pouco
afectada. - Agradeço o seu elogio, mas não era necessário
dizer isso apenas pelo facto de ter achado minha irmã tão
desprovida de encantos.
- Garanto-lhe que sou sincero! Enoch acha que a senhora é a
mulher mais bonita que ele viu até hoje. E olhe que ele é bom
apreciador.
Miss Stockwell sentiu uma onda de calor nas suas faces que
nãoera causada pelo sol no ocaso. Apreciava a confiança que o
rapaz tinha em Enoch. Havia um entendimento perfeito entre


-23-


aqueles irmãos, o que só era de bom augúrio para o futuro do
rapaz.
- Cal, eu cá levava a carripana em vez daquele automóvel a
desfazer-se - sugeriu miss Stockwell.
Tinha o pensamento posto nos belos cavalos negros que
costumavam puxar a carripana e no prazer que isso poderia
causar a Georgiana, pela novidade.
- Ora! Ela não se deve importar com o aspecto decrépito do
pobre carro. E eu muito menos - disse Cal, rindo. - Repare, a
diligência, às vezes, chega atrasada e, se eu levar o
automóvel, posso voltar mais depressa com a sua irmã, antes do
anoitecer. Daqui a Ryson são quinze milhas e com o carro de
bestas levaria umas poucas de horas a cá chegar. E quero ver
se estou em casa antes do anoitecer.
- Porquê esse desejo, essa pressa? Sempre ouvi dizer que
você não se perde mesmo a guiar de noite.
- Não é isso. Aqueles meninos estão a tramar qualquer coisa
e, aqui para nós, prefiro não ser apanhado na estrada, já de
noite, com aquela velha. quero dizer, com a sua irmã -
retorquiu Cal, bastante constrangido.
- Oh, compreendo! - murmurou a professora, lentamente,
estudando o rosto preocupado do rapaz. - Muito bem, Cal. Faça
como achar melhor; mas, aceite este palpite, como vocês

costumam dizer: não vai ficar aborrecido por desempenhar esta
missão.
- Oli, não, professora, eu não estou contra si - protestou
ele. - É só por causa de Tim e daqueles destravados. Têm agora
ocasião para se desforrarem. A senhora não sabe o que eu lhes
fiz no último baile.
- Bom, não me interessa o que vocês fizeram ou façam uns aos
outros. Haja o que houver, não há-de arrepender-se de ir. Deve
até ficar muito contente.
- Porquê? - perguntou, com certa curiosidade.


24


Fitava-a com ar de confidente, embora mais como um rapaz que
nota qualquer coisa de desconhecido nas mulheres. Não fazia a
menor ideia do que ela queria dizer, ainda que Tivesse ganho
um novo interesse, além do desejo incontestável de ser
obsequíante.
- Talvez ela seja rica e me ofereça uma sela nova ou
qualquer outra coisa - observou, a brincar.
- Talvez. Dá-lhe de certeza "alguma coisa" respondeu a
professora, misteriosamente.
Deixou-o à porta da cavalariça, com um sorriso satisfeito e
vagamente apreensivo no seu rosto, quando se voltou para
observar a conspiração dos seus companheiros.


25

CAPítulo II


Na manhã seguinte, quando Cal se apresentou para tomar o
pequeno almoço, cerca de duas horas mais tarde do que o usual
para os cavaleiros, sentiu um baque no coração ao descobrir
que vários dos seus companheiros não tinham saído para as suas
tarefas.
- Olá! - saudou Pan Handle.
- Bom dia, Cal, - cumprimentou Arizona.
- Cal, não há dúvida de que te meteste em boa ontem à noite
- disse Wess, secamente.
- Hás-de concordar que te faz mal pensar em encontros com
pequenas - acrescentou Tim Matthews, solícito.
- Olá! - resmungou Cal, olhando os seus amigos, com
desconfiança.
Durante o tempo quente, os Thurman tomavam as refeições numa
espécie de alpendre que estabelecia a ligação entre as secções
contíguas do vasto edifício do rancho. Um telhado construido
de madeira, relativamente baixo, servia de protecção e uma
escada dava acesso desde o solo até a uma abertura no vão do
telhado. Era aí que dormiam alguns dos cavaleiros. Cal, que
preferia o exterior, dormia num tosco leito de madeira, que
ele próprio tinha feito, num quarto à parte. Com um sorriso
compenetrado, Cal passou pelos rapazes, ao longo da mesa, e

dirigiu-se para um banco encostado à parede, junto do qual
encontrou uma bacia com água e, vigorosamente, esfregou a cara
e as mãos. Fê-lo de tal modo, sacudiu com tanta violência a
sua cabeleira com o cabelo em desordem que borrifou tudo até à
própria mesa.


29


- Eh, pareces uma baleia a resfolgar! - queixou-se Pan
Handle.
- Nada disso, está a tentar arrefecer as ideias - observou
Tim.
Cal prosseguiu nas suas abluções matinais sem fazer caso dos
seus algozes; e quebrou também o hábito de se barbear só uma
vez por semana. Isto tornou-se de grande interesse para os
rapazes.
- Oh, está a fazer a barba! - gracejou Arizona, como se
aquele simples facto fosse um acto invulgar.
- Ora reparem que ele quer pôr-se bonito - disse -, nunca o
conseguirá por muito que faça para se tornar um janota -
concluiu Pan Handle.
- Pronto para a partida! - exclamou Tim, trocista.
Quando, por fim, Cal foi para a mesa, os restantes já quase
tinham acabado de comer. Cal falou para dentro da cozinha:
- Mãe, Molly ou a mãe não podem trazer-me alguma coisa de
comer? Estes comilões aqui deram conta de tudo, como carneiros
numa pastagem.
- Cal, - replicou sua mãe - devias ter-te levantado mais
cedo.
Depois,, a sua irmã Molly apareceu, transportando vários
pratos fumegantes que colocou em frente dele. Era uma rapariga
de aspecto saudável e louçã, dos seus dezassete anos, que não
desmentia pertencer à família Thurman.
- Cal, posso ir contigo à vila? - perguntou ela, com
interesse em ir.
- Acho -que não - respondeu ele...
-Mas, eu quero comprar umas coisas - protestou ela.
- Eu compro-as.
- Miss Stockwell deixou-me uma lista de coisas de que
precisa.
- Está bem. Ela foi à escola?
- Sim. Foi mais o pai, na carripana. Queria falar contigo
mas ainda estavas deitado. Despediu-se e recomendou que não te
esquecesses de ir buscar Georgiana.
- Olha lá, Molly, então tu não vês que não há perigo de Cal
se esquecer do encontro com Georgiana? - perguntou Wess,
zombeteiro.
Cal atacou a refeição,, em silêncio, dando-se bem conta de
que era alvo da observação dos companheiros, e não gastou
muito tempo a comer. Empunhando o prato vazio, encarou-os.
- Hoje não se trabalha, hem? - perguntou.
- Não. - Respondeu Wess, laconicamente.
- Nem sequer se toca na porção de serviço que há a fazer,
hem?
- Não.
- Vão, talvez, à caça, não?

- Ainda faz muito calor para caçar. Mas de certeza que vou
logo que o tempo arreféça e comece a chover. Há imensos ursos
este Outono e vai haver também muita madeira para cortar.
- Bem, que fazes tu hoje? - perguntou Cal, directamente.
- Hoje faço feriado, já sabes - disse Wess, serenamente.
- Vais a Ryson? - prosseguiu Cal, carrancudo.
- Com certeza. Isto aqui é sempre morto. E tenho uma data de
coisas a comprar, tabaco,, ferraduras, cartuchos.
- Eu faço-te as compras - atalhou Cal.


30 31


- Não confio em ti - disse o outro, brandamente. - Além
disso, quero ir ver Angie.
- Bem sabes que não está em casa - Observou Cal. Depois,
-olhou na direcção de Pan Handle Ames. - Tu também deves ter
importantes negócios a tratar em Ryson, não?
- Cal; é natural que precise de ir. Tenho de...
- Cantigas! - interrompeu Cal, levantando-se enquanto
empurrava o banco para trás.
Não tinha necessidade de escutar mais subterfúgios ou de
interrogar Arizona ou Tim. Estes ostentavam um ar de
desinteresse e de naturalidade demasiado convincente para ser
verdadeiro. Avaliava a hediondez das suas maquinações pela
expressão singularmente abstracta dos seus rostos.
- Vão passear a cavalo? - concluiu Cal, num último rasgo de
esperança.
- Não. Vamos no carro grande - disse Wess. - Compreendes, o
tio Henry quer farinha, sementes e uma série de mantimentos
que lhe estão a fazer muita falta. Descansa que voltamos bem
ajoujados.
- Eu precisava desse carro - retorquiu Cal, com calor. - O
pai não sabia que eu ia buscar uma senhora?
- Creio que sim porque, quando lhe dissemos que precisávamos
do carro grande para trazer as mercadorias, ele respondeu que
tu podias utilizar o Ford - respondeu Wess, com perfeito
domínio de si próprio.
- E o pai levou a carripana! - exclamou Cal, nitidamente
desorientado.
- Sim, foi levar a professora à escola e, depois, vai ver
Hiram Bowes.
- Cal, conhecendo o bom mecânico que és e como sabes
conduzir, parece-nos que tu, no Ford, deves assemelhar-te


32


a tim perú a descer por uma colina abaixo - disse Pan Handle
Ames, em tom de cordial admiração.
Naquele momento, Tim curvou-se e começou a tossir
violentamente. Estavam bem à vista os esforços heróicos que
fazia para conter o riso. Cal fitou aqueles quatro diabos, com
uma ira cada vez maior. E, então,, desabafou.
- Wess, aposto um cavalo contra um pacote de tabaco em como
hás-de levar uma boa sova por causa disto.

- Essa agora! De que é que tu estás a falar? E quem é que me
"chega? Tu não podes, primo Cal.
- Não penses que tenho medo. Mas, se eu não puder, diabos me
levem!, hei-de arranjar quem possa - replicou Cal, com voz
ameaçadora.
E, dizendo isto, voltou-lhes bruscamente as costas e
encaminhou-se para a cavalariça. O profundo silêncio que se
fizera:após a sua saída era a prova final da notável
serenidade que presidia às maquiavélicas congeminações. Por um
lado, afligia-se, por outro, começava a brotar nele o
antagonismo. O encargo, que lhe fora imposto pela boa
professora, começava a tomar uma feição deveras inquietante.
Era facto que ele, com a sua delicadeza, caíra em proporcionar
uma desusada oportunidade aos seus companheiros. Mas, seriam
eles capazes de se portar mal com a irmã de miss Stockwell?
Apesar de excitado, Cal não podia admitir isso. Contudo, a
imaginação deles era prodigiosamente fértil e, no que se
referia a ele, dariam tudo por tudo para o pôr de rastos.
Foi directamente vistoriar o Ford. Este devia ter já
ultrapassado em três ou quatro anos o limite de idade. Porém,
como, por milagres continuava inteiro e não parecia, de facto,
a carcassa ferrugenta que, na realidade era, porque o pai de
Cal o tinha pintado recentemente com uma tinta que não tinha
préstimo para mais nada.


33


Cal Thurman adorava os cavalos e montar, apenas, o seu
famoso irmão Boyd lhe levava a palma. Mattews, odiava os
automóveis porque nunca chegara a perceber como é que andavam,
travavam e se avariavam. Assim como a Matemática tinha sido, a
única disciplina em que Miss Stockwell não obtivera resultado
satisfatório da parte dele, assim também a engrenagem da
debulhadora, do automóvel e da velha máquina a vapor da
serração haviam sido as únicas coisas da vida do rancho que
seu pai não conseguira ensinar-lhe. Tentara aprender a
conduzir o automóvel e, até certo ponto,, já se
desenvencilhava. Porém, era preciso ser-se sábio em mecânica
para lidar com aquele Ford.
Naquela manhã, todavia, -o odioso motor deu dois estoiros e,
com grande espanto de Cal, começou logo a zumbir como uma
abelha gigante. Cal inchou o peito,. Afinal conseguia dominar
o bicho.
A mãe de Cal era uma mulher alta, magra, de cabelo cinzento,
e tinha estampado no rosto o somatório de sacrifícios a que
aquela vida agreste a sujeitara no decorrer do tempo. Os anos
da desenvoltura já lá iam. Deu a Cal dinheiro e instruções e,
quando ele estava prestes a partir, chamou-o.
- Escuta, filho, - disse, em voz baixa. - De certeza que
naquelas cabeças não anda a preparar-se coisa boa. Por isso,
não esqueças as boas maneiras, façam eles o que fizerem.
Ficou-te muito bem teres-te oferecido para irao encontro da
irmã da tua professora. Vai com Deus, Cal. Nos meus tempos, os
Thurman do Texas sabiam ser cavalheiros cortêses com os
convidados. Aqui, neste deserto, isso está quase esquecido,.
Tenho os olhos postos em Molly e em ti, meu filho.

- Sossegue, mãe. Eu porto-me bem - respondeu o rapaz, rindo.


34


E saiu do alpendre, em direcção à cavalariça. Queria evitar
voltar a encontrar-se com a rapaziada no Forte. Quando chegou
junto do carro, ficou surpreendido por o motor estar ainda a
trabalhar, com o seu característico zumbido, eventualmente
cortado pelos ruídos mais esquisitos.
Cal saiu da cavalariça e meteu pela estrada do vale, sem que
ninguém o incomodasse com chamamentos, o que ele tomou como um
bom começo para a sua aventura. Depois, esqueceu-se dos
rapazes, e sumiu-se no manejo do carro e na sensação de guiar
pela estrada, magníficamente sombreada de ambos os lados. Por
qualquer razão desconhecida, o Ford nunca se portara tão bem
com ele como daquela vez. æ medida que seguia por entre os
muros de verdura formados pelos zimbros e carvalhos, esqueceu
gradualmente o seu mal-estar.
Cal percorreu umas quatro ou cinco milhas desde o sopé das
colinas até às terras do vale, cobertas de arbustos, que
conduziam a Ryson. Aqui e acolá, a longos intervalos, via-se o
rancho de algum criador de gado. Todos os velhos rancheiros
naquela região possuíam as suas próprias terras, cedidas pelo
Governo, nas quais tinham edificado os seus lares. Ao rodar
através da região, Cal sentia um grande desejo de também ser
dono de um pedaço de terreno semelhante.
"Hei-de ficar com Bear Flat, se o pai me deixar, neste mesmo
Outono" - pensava ele. "Wess tem Mesa Hill debaixo de olho e
apostava que só está à espera de arranjar dinheiro suficiente
para casar com uma daquelas danadas gémeas, - ou, talvez, até
que descubra e consiga destrinçar qual delas é Angie e qual é
Aggie! Mas, a mim, as raparigas não me preocupam. Nada de
casamento. Governo-me com cavalos, um cão e uma espingarda, e
estou satisfeito".


35


E, assim, o jovem Thurman prosseguiu pela estrada, com a
brisa seca, quente e fragrante a dar-lhe no rosto e os seus
pensamentos a enveredar por sendas vagas e sonhadoras.
Algumas milhas a Este de Ryson, voltou numa curva da estrada
para ver um rapaz alto, e magro, que ia caminhando a muito
custo, curvado sob um fardo, embrulhado numa lona. Quando Cal
se aproximou dele, mais evidente se tornou que ele mal podia
erguer os pés do chão. O Seu vestuário, muito casto, e
encardido, atestava bem que o solo duro lhe havia servido de
cama por diversas vezes.
Cal abrandou a marcha, esperando, naturalmente, que o outro
se voltasse e lhe pedisse uma boleia. Mas não. Então, Cal
parou e gritou-lhe:
- Eh, quer uma boleia?
O rapaz ergueu para ele um rosto cadavericamente pálido que

logo despertou a simpatia de Cal.
- Sempre aceito, obrigado - respondeu o viajante aliviando
os ombros doridos da carga que pôs no chão.
- Ponha isso lá atrás e venha para a frente comigo - sugeriu
Cal, olhando-o com crescente interesse.
Ao vê-lo de perto, aquele indivíduo pareceu a Cal o ser
humano mais estranhamente constituído que vira em toda a sua
vida. Era muito alto, e extremamente magro, e tão desengonçado
que parecia prestes a partir-se. Os braços eram Grotescos de
compridos, semelhantes aos de um gorila, e as mãos eram de um
tamanho prodigioso. Tinha aquilo a que Cal chamava um pescoço
de galinha, cabeça pequena e o rosto mais ingénuo que se
deparara a Cal até então. No conjunto, era uma figura ridícula
e patética.
- Perdi-me - disse o rapaz.
As sardas destacavam-se notàvelmente na sua pele
cor-de-cera. Era tão comprido e mal feito, e os pés de tal
modo descomunais que Cal pensou que não seria capaz de se


-36-


alojar no assento da frente. Mas lá conseguiu ajeitar-se e
acomodou-se, com um suspiro de alívio.
- Perdeu-se? Para onde é que queria ir? - perguntou Cal,
pondo o motor de novo em marcha.
- Venho às boleias desde Phoenix. Dois dias depois de estar
deste lado de Roosevelt Dan, fui parar a um posto de gasolina
junto à estrada, em Chadwick. O homem que lá estava disse-me
que eu poderia arranjar emprego no rancho Bar XX, e ensinou-me
o caminho que lá ia dar. Encontrei o caminho, sim, mas não me
levou a parte alguma. Perdi-me e não consegui regressar a
Chadwick. Já lá vão dez dias e dez noites.
- Eia! Você deve estar esfomeado.
- Não digo que não.
- Bom, não está no caminho indicado. O rancho Bar XX é para
Este. Você viajou para Norte. Eu, por acaso,, conheço Bloom, o
capataz daquela propriedade. Não precisa de gente agora.
- Isto de empregos está mau - redarguiu o rapaz, com um
suspiro. - Convenci-me de que arranjaria alguma coisa em Salt
River Valley. Mas, todos lá iam parar, tal como eu, e creio
que não vêem com muito bons olhos o pessoal das forças
armadas.
- Você era tropa? - perguntou Cal, com simpatia.
- Não. Era fuzileiro - replicou o outro, como única
resposta.
O seu tom distante fez Cal recordar-se de Boyd depois do
regresso de França. Os militares que haviam estado na guerra
eram todos assim lacónicos, estranhos.
- Fuzileiro? Isso é Marinha, - não é? Correu-lhe tudo bem?
- Mais ou menos. Estive em CUteau Thierry e, agora, valha-me
Deus!, não consigo arranjar trabalho no meu próprio país -
retorquiu com amargura.


37


- oiça, se você for competente, pode arranjar Colocação em
Tonto - disse Cal, com certa rudeza.
O seu companheiro não respondeu e a conversa, com um começo
tão interessante, esmoreceu. Cal pensou que o rapaz ficara
melindrado pela sua observação. Entretanto, o automóvel
deslizava pela faixa cinzenta da estrada, no extremo da qual
ficava situada a povoação de Ryson.
Os ranchos davam lugar a moradias muito espaçadas e estas,
por sua vez, à fila de edifícios que constituíam Ryson,
velhos, gastos pelo tempo, com as suas fronteiras muito
direitas, construidos em pedra. A única rua parecia tão larga
como uma praça pública. Ao longo do quarto de milha onde
existia quase todo o comércio, viam-se várias cabeças de gado,
dois cavalos, um burro e alguns cães, mas nenhuma pessoa... Um
par de automóveis quase na carcassa marcavam o local da
garagem que, em tempos, havia sido uma loja de ferreiro. A
povoação parecia envolvida no ar quente, sonolento,
entorpecente do pino do Verão.
Cal parou o seu Ford junto da garagem,, não sem um
sentimento de grata satisfação pela admiração que a sua
chegada iria causar. Da última vez que deixara a garagem com
aquele automóvel, um dos mecânicos tinha observado: "É
"limpinho" que não voltamos a ver este calhambeque!"
- Oiça, quer vir comer comigo? - perguntou Cal ao seu
silencioso companheiro.
- Se quero? Homem, vamos a isso - replicou o ex-fuzileiro -
Você parece bom rapaz.
- Obrigado pela companhia - respondeu Cal. - Mas ainda é
cedo. O hotel é ali, aquela casa cinzenta com o grande
alpendre. Pode esperar lá por mim.


38


- Ficarei lá pegado com grude e oxalá a campainha para a
refeição não demore muito a tocar - disse, colocando o fardo
ao ombro e encaminhando-se na direcção indicada.
O rapaz da garagem bocejou.
- Cal, quem era aquele que estava contigo? - perguntou.
- De onde é que aquilo veio? - quis saber outro empregado.
- Parece um espantalho em cima de duas estacas - comentou um
terceiro.
Cal riu-se e informou:
- Oh, é um pobre diabo que encontrei na estrada.
- Foi ele quem conduziu "isso"? - perguntou o primeiro
empregado, indicando o Ford.
- Não, não foi - retorquiu Cal. - Fiquem sabendo que fui eu
quem guiou o carro.
- Carro? Isso não é um carro. É um feixe de sucata com um
motor doente.
- Pois sim! Trata de te afastar dele com as tuas chaves
inglesas - respondeu Cal.
Deixando ficar o carro, Cal dirigiu-se a um armazém de
grandes dimensões, onde estava também instalada a estação dos
Correios, e meteu mãos à obra difícil e delicada de escolher e
comprar os artigos pedidos pelo pessoal feminino do rancho. O
seu escrúpulo no cumprimento deste dever foi tal que esqueceu

que tinha convidado para comer com ele o esfomeado viajante
até que, por fim, concluiu as suas compras, depois de empregar
toda a sua boa vontade. Depois, transportou os embrulhos para
o carro e pô-los no banco de trás.
"Não há dúvida que ela vai ter um bom trabalho para arrombar
tudo isto - murmurou, subitamente recordado da sua esperada
passageira.
Em seguida, dirigiu-se para o hotel, onde foi encontrar o
companheiro que o esperava com olhos famélicos.


39

- Desculpe a demora mas tinha muito que fazer - disse Cal. -
Vamos lá à paparoca.
Na meia hora seguinte, Cal aprendeu que uma boa acção, mesmo
realizada impensadamente, podia ter um singular efeito, não só
na pessoa favorecida por ela como sobre aquela que a
praticava. Naturalmente, como cavaleiro que era, tinha muitas
vezes sentido uma fome de comer pedras, mas nunca tinha visto,
um homem aparentemente meio morto de fome. Como aquela
refeição devia saber bem ao rapaz! A curiosidade de Cal
seguiu-se à sua simpatia.
- O meu nome é Cal Thurman - disse, quando acabaram. - Qual
é o seu?
- Tuck Merry - respondeu o rapaz.
- Que nome tão engraçado,! Merry! Olhe que não diz nada com
a pessoa, lá isso não (1). E Tuck, nunca tinha ouvido tal!
- É uma alcunha. Já quase me esqueci de que tinha nome. Era
Thaddeus.
- Essa é boa! E como é que lhe chamam Tuck? - indagou Cal,
curioso.
- Eu estava nos fuzileiros. Eram uma data de desordeiros. E,
cada vez que pregava um murro num, punha-o a dormir (2). Por
isso, puseram-me a alcunha de Tuck.
- Com os diabos! - exclamou Cal, com admiração. Nada seria
mais indicado para despertar a sua amizade. - Você deve ser
rijo, hem?
- Sim. É um dom natural - disse Merry, sem afectação. - Olhe
para estas mãos.


*(1) - "Merry": alegre, feliz (N. do T.).
(2) - É este o significado de "tuck" numa das suas diversas
acepções (N. do T.).


40


Fechou as suas mãozorras e mostrou a Cal dois punhos de
tamanho inacreditável.
- Eia! - balbuciou Cal, com os olhos brilhantes. Então, uma
ideia cruzou-lhe o espírito como um relâmpago. Tomou forma e
cresceu, cresceu, até se tornar positivamente emocionante. -
Oiça, Tuck, você disse que queria um emprego?

- Disse, sim - respondeu Merry, com um interesse novo.
- Você está bom? Quero dizer forte - perguntou Cal,
hesitante. - É que parece mesmo que se vai partir em dois.
- Eu engano muito. Agora, é que estou completamente exausto.
Mas era rijo quando parti para Oeste. Um pequeno descanso e
uma mesa como esta, hão-de pôr-me em boa forma depressa,, como
quando eu era adversário de DeMpsey. (3).
- Quê?! - gritou Cal, Sufocado.
- Oiça, amigo. Eu fui criado à borda de água, em Nova
Iorque. CoMpreende? Estive na Marinha durante anos. Por fim,
fui instrutor de boxe. Depois da guerra, andei por vários
sítios a realizar combates. O meu último emprego foi junto de
Dempsey.
- Explêndido! - exclamou Cal, maravilhado. Deu um soco no
tampo da mesa. A sua ideia assumira proporções desnorteantes
e, ao mesmo tempo, divertidas. - Oiça, Tuck, simpatizo com
você.
- E este encontro é a primeira coisa boa que me sucede desde
há muito tempo, - replicou Merry, com convicção.
- Eu arranjo-lhe colocação, dois dólares por dia e pensão,
com comida à vontade - disse Cal, ràpidamente.


*(3) - Jack Dempsey, antigo campeão mundial de boxe (N. do
T.).


41


e em voz baixa. - No rancho do meu pai, É na região de Tonto
e, uma vez lá, você já não há-de querer sair. Pode juntar
dinheiro, tomar conta dos seus cento e sessenta acres, e, um
dia, ser também rancheiro.
- Cal, afinal, não sou tão forte como pensava - replicou
Tuck, com voz fraca. - Não me prometa tanto ao mesmo tempo. Só
quero trabalho e comida.
- O meu pai tem uma serração - continuou Cal. - Precisa
sempre de gente. Todos nós odiamos serrar madeira. É um
emprego que volta e meia lhe há-de deixar umas horas livres
para vir cavalgar e caçar connosco. Eu dou-lhe um cavalo.
Temos lá mais de uma centena... Tuck, o emprego é seu, se me
fizer um pequeno favor.
Tuck Merry estendeu a mão e disse:
- Amigo, não há nada que eu não faça por você.
- Escute - murmurou Cal. - Primeiro, não há-de dizer a
ninguém que esteve nos fuzileiros, nem como é que lhe puseram
a alcunha de Tuck, nem que foi adversário de Dempsey.
- Compreendo, Cal. Serei mudo quanto ao meu passado. Perdi a
memória.
Cal sentia agora como que formigueiros no corpo, com o
júbilo que lhe causavam as vastas possibilidades da sua ideia.
- Tuck, eu sou o mais novo da família Thurman - prosseguiu.
- Tenho dois irmãos e sete primos, e todos acham que fui
estragado com mimos. O pai deu-me mais tempo para estudar e
talvez eu tenha tido Sobre eles algumas ligeiras vantagens. E
todos eles,, por isso, descarregam em mim. Mas, não fique com
a impressão errada de que há qualquer antagonismo entre nós.

Nem por sombras. Dou-me bem deveras com todos os rapazes e,
quanto -a Enoch e Boyd, meus irmãos, adoro-os. Mas, todos me
fazem a vida negra. As raparigas são poucas e, quando há
bailes, o que é frequente, não são suficientes para todos.


42


Se meto o nariz na escola, onde se realizam os bailes, é certo
e sabido que saio esmurrado. Por esta razão, em Tonto, as
brigas andam de braço dado com os bailes. São quase
imprescindíveis. Wess Thurman pregou-me uma boa surra não há
muito tempo. Todos eles já "molharam a sopa" -e, diabos me
levem, ainda não me desforrei de nenhum! São mais velhos e
mais crescidos... Ora, o que eu quero, é que você os desanque
a todos.
- Não será pedir de mais, amigo? - perguntou Merry, sorrindo
pela primeira vez.
- E não é tudo. Oiça, Tuck, não se preocupe porque tudo será
fácil. Eles mesmos procurarão a ocasião. Você só tem de
esperar e, quando algum deles o provocar, dar-lhe em cheio.
- Farei o possível - prometeu Merry. - Que mais? Qual é o
resto, se isso ainda não chega?
- Isto, agora, diz respeito a inimizades - retorquiu Cal,
com mais amargura e ar carrancudo. - Temos, Bloom, o capataz
do rancho Bar XX. As coisas não correm bem entre eles e os
Thurman. Gostava que lhe desse também uma lição valente a ele
e a mais uns dois.
- Cal, ;ouvi dizer que esta região é um pouco selvática. Não
haverá o risco de armas, misturadas no caso?
- Assim seria se você trouxesse consigo alguma. Se não, não
há perigo nenhum. Você engana-os da melhor maneira. Eu sei bem
como, e até posso Imaginar o que sucederá. Todos farão troça
de si, e Bloom e os da sua laia hão-de mesmo insultá-lo. Você
só precisa de dizer: "Oh, cavalheiro, quer ter a bondade de
desmontar?", e ele salta logo do cavalo. Então, você observa:
"Bem vê que não estou armado; por isso, se é um homem sem
medo, tire o seu cinturão". O resto, caro Tuck, será digno de
ser visto.


43


Tem razão. Aperte estes ossos - replicou Tuck, oferecendo a
suamão enorme.
Aceitara com ar de compenetrada gravidade a sugestão de Cal
e fazia estalar os dedos do pobre rapaz. Cal revolveu-se,
debateu-se e, por fim, soltou um lamento.
- Eh, largue-me! - gritou. E, quando conseguiu retirar a
mão, magoado e amachucado, esfregou-a e tentou mexer os dedos.
- Coitadinhos! Quero voltar a servir-me desta mão. - Depois,
riu, com certa maldade. - Tuck, você vai dar-me bons momentos
de alegria. Ora, vejamos,: voltar a Green Valley comigo. Tenho
de ir esperar uma senhora, irmã da nossa professora, e levá-la
a casa. Você deve ter coisas a comprar, a menos que leve aí
alguma roupa no embrulho.

- O meu trajo de cerimónia é o que está vestido - replicou
Tuck, com um sorriso. - E no pacote, só levo dois cobertores,
algumas ninharias e um par de luvas de boxe.
- Olá! Então pode ensinar-me boxe a mim? - inquiriu Cal, com
os olhos brilhantes de desejo.
- Cal, em três meses, posso deixá-lo apto a dispor todos os
seus "simpáticos" parentes em linha e a liquidá-loS um após
outro.
- Isso era formidável! - exclamou Cal. - Mas... é bom de
mais para ser possível. Um por semana já seria magnífico. Tome
lá dinheiro, Tuck, vá comprar o que precisar. E veja lá se
está a horas, quando chegar a "malta" de Green Valley. Eles
querem "festa".
- Caro amigo, lá estarei com foguetes e tudo - respondeu
Tuck.
Cal separou-se do seu novo companheiro e foi fazer um recado
da irmã, do qual se tinha esquecido. O seu olhar aguçado
inspeccionou a estrada nua e poeirenta que se dirigia para
Este, em direcção a Green Valley.


44


Não havia sinal dos rapazes! Ele não lhes desejava qualquer
azar, mas estava esperançado em que houvesse algum
contratempo, e os meios de transporte falhassem. Porém,
intimamente, sabia que nada deste mundo os impediria de
estarem presentes no cumprimento da sua incumbência e, depois,
voltou ao armazém para telefonar. Primeiro, ligou para
Roosevelt e soube que a diligência ia adiantada e tinha
partido duas horas mais cedo. Depois para Packard, estação de
correios e posto de gasolina na estrada de Globe.
Respondeu-lhe Abe Hazelitt, um rapaz que conhecia de muitos
anos atrás.
- Olá, Abe. Fala Cal Thurman. Como vai isso?
- Viva, Cal! - foi a resposta aflautada ;de Abe. - Bem,
ultimamente tenho andado bom, mas, agora, eu seja cão se chego
a saber se estou a dormir ou acordado!
- Que sucedeu, Abe? - perguntou Cal.
- Cal, diabos me levem se eu sei! A diligência chegou agora
mesmo... e aconteceu qualquer coisa.
- A diligência? - repetiu Cal, vivamente, interessado. - Era
isso mesmo que eu queria saber. Vem à tabela, não?
- Muito adiantada. Quase caímos para o lado, com o espanto;
Jake tem vindo a guiar como se tivesse o diabo no corpo, ai
isso é que tem!
- O Jake a conduzir depressa? Essa é para rir. Que bicho lhe
mordeu?
- Talvez o mesmo que a mim, Cal.
- Eh, tu estás doido, Abe, vem alguma senhora na diligência?
Cal ouviu o seu amigo tossir do outro extremo do fio e
hesitou antes de responder.
- Cal, ouve bem o meu assobio... Que tal pensas que seja,
hem?
- Isso é óptimo. É a irmã da nossa professora, Miss
Stockwell. Mandaram-me esperar por ela e levá-la a caSa.


45


Abe, por favor, diz-lhe que Cal Thurman espera por ela em
Ryson.
Um assobio longo e abafado fez-se ouvir através do fio.
- Meu Deus! Que sorte a de certos tipos!
- Sorte? Ouve lá, Abe, algum dos rapazes te telefonou, Wess,
ou Tim, ou Pan Handle? - perguntou Cal, desconfiado.
- Nenhum, Cal. Tem-la toda para ti. E, acredita...
- Não sejas alarve! - quase gritou Cal. - Eu bem percebo o
que tu queres dizer com "sorte". Alguém tinha de ir esperá-la
e aqueles desavergonhados de Green Valley não tiveram pejo de,
se recusar logo que viram o retrato dela.
- Ah, viram? Não percebo nada! Ouve lá, Cal, não estarás a
meter os pés pelas mãos?
- Ou tu, talvez! - exaltou-se Cal. - Falas de um modo muito
estranho. Abe, vou desligar antes que me faças adoecer. Dizes
à senhora, sim?
- Com certeza. E ouve... Espera aí, Cal, não desligues...
Está lá?
- Estou! - respondeu Cal. - Estou mas tenho pressa.
Uma voz muito mais rouca e apagada continuou, como num
sussurro:
- Cal, ela esteve aqui antes de tu ligares. Eu via-a. Usa
meias! E consegui ver-lhe os joelhos... são rosados e... com a
breca!, até parecem pintados! Cal, ela é mesmo...
- Silêncio! - rugiu Cal, subitamente furioso com o que,
pensava ser uma brincadeira do seu amigo. - Estás a "gozar"
comigo,, és um aldrabão, Abe Hazelitt - Os rapazes também te
compraram a ti.
- Não, Cal, - replicou Abe, que parecia prestes a estoirar
de satisfação. - Ninguém me comprou nem estou a enganar-te.
Mas bem vi o que é que te vai aí parar, Cal.


46


Consumido pela irritação, Cal atirou com o auscultador para
o suporte e afastou-se do telefone.
"Joelhos rosados!... Pintados!..." - resmoneava Cal. - "Olha
que idiota! O que eles não sabem, é que comigo vai... E já
conseguiram pôr Abe do lado deles. Com que então, sabe o que
me espera, hem?... Muito bem, meninos, parece-me que nenhum de
vocês sabe quem é Tuck Merry. E isto vai acabar tudo ao soco,
ai isso vai!


47

CAPíTULO III


Cal Thurman não teve muito tempo para magicar nas
misteriosas insinuações resultantes do seu telefonema para Abe

Hazelitt. Mal saira da estação dos Correios, dirigindo-se para
a garagem, quando viu os rapazes de Green Valley. Estes e mais
os mecânicos da garagem estavam todos de volta do seu Ford. Se
alguma coisa faltava para aumentar a cólera de Cal, este facto
era suficiente.
Aproximou-se deles a grandes passadas. Já mais perto,
reparou, muito admirado, que todos eles se tinham barbeado e
envergavam os seus melhores fatos, chapéus domingueiros e
botas reluzentes. Dava gosto ver Arizona, que era sempre o
mais desmazelado no vestir, arranjadinho, como os outros,
absolutamente impecável.
- Olá, Cal! Dou-te os meus parabéns! - disse Wess,
serenamente, indicando o automóvel.
- Amigo Cal, saiu-me um rico motorista! - acrescentou
Arizona.
- Bom dia, Cal. Parece que está pronto para ir a qualquer
lado, não? - perguntou Pan Handle.
- Como estás tu, rapaz? - cumprimentou Tim.
- Eu, vocês parecem extraordinariamente contentes por me
verem - disse Cal, sarcástico, percorrendo todos com olhar
perspicaz.
Estavam impávidos, descontraídos, sorridentes e tranquilos.
Cal conhecia-os. Quanto mais atrevida era a partida que
pregavam maior era a sua calma. A sua própria impassibilidade
não passava de uma máscara a ocultar grandes culpas. Cal
estremeceu. Desejaria tanto que aquele dia findasse! No mesmo
instante, sentiu uma onda de calor, ao pensar em Tuck Merry.


51


Arredou os rapazes do seu carro e começou a andar em volta
dele, a ver se lhe tinham causado algum dano. Mas era
praticamente inútil a inspecção. Examinou o motor, pneus,
rodas e as várias partes necessárias para o andamento do
veículo, mas não podia ter a certeza se teria havido
"sabotagem" ou não. Na verdade, não tinham tido muito tempo
para fazer qualquer coisa. Todavia, com a ajuda dos mecânicos
da garagem, podiam ter provocado avarias. Já faltaria um
parafuso naquele sítio? Impossível recordar-se. Tinha reparado
na brecha que existia no chão do carro, mesmo à frente? Não
tinha também a certeza. O velho Ford era um perfeito enigma.
Cal desconfiava da sua aparência, mas não tinha provas das
suas suspeitas.
- Oiçam, se vocês estiveram a fazer trampolinice no carro...
- exclamou ele,, de sobrolho carregado.
- Cal, não há dúvida que és um perfeito cavalheiro no que
respeita às damas - comentou Wess -, mas só tens ideias
descorteses dos teus amigos e parentes.
- Com certeza não queres insinuar que eu te fiz alguma
partida - disse Pan Handle, em tom de censura.
- Cal, olha que já tens apanhado por causa do teu hábito de
insultar - atalhou Tim Matthews, significativamente.
- Oh! - explodiu o rapaz, sem se poder conter. - Não pensem
que me atiram areia para os olhos. Estão a tramar alguma
moscanibilha e aposto, -pelas vossas caras e falinhas mansas,
que há-de ser sandice grossa. Quanto a ti, Matthews, gostava

de saber se pensas que poderás continuar a bater-me para
sempre.
- Bom, para sempre talvez seja um pouco de exagero.


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- retorquiu Tim, secamente. - Mas, pelo menos, enquanto fores
vivo, hei-de sempre vencer-te.
Cal encarou fixamente o rosto risonho do seu amigo.
- Tim, tu és o melhor jogador de todo o pessoal do rancho
Thurman, não és?
- Bom, é uma distinção que fui forçado a aceitar - respondeu
Tim, com modéstia não isenta de vaidade.
- Muito bem. Conheces o meu cavalo negro, Pitch, que tu tens
tentado comprar, alugar e roubar, não conheces?
- Rejeito a última afirmação, - replicou Tim, de mau humor.
- Pois bem, aposto o meu Pitch contra o teu Baldy que te
hei-de dar uma tareia em menos de um ano a esta data.
Todos ficaram boquiabertos,, incluindo o próprio Tim.
- Olha lá, tu estiveste a beber? - perguntou, Incrédulo.
- Ora! Sabes bem que nunca o faço - retorquiu Cal. - Então,
apostamos ou tens medo?
- Espera aí, Cal, - interveio Wess - isso é uma aposta
idiota! És um doido pelo Pitch e foi uma oferta de Enoch, o
melhor cavalo que até hoje apareceu em Tonto.
- Bem sei, e podes ter a certeza de que eu não o arriscaria
se não estivesse certo de ganhar - disse Cal.
Tim refez-se, finalmente, da sua surpresa e quis aproveitar
aquela ocasião única.
- Rapazes, aceito o jogo dele. Está feita a aposta, o meu
Baldy contra o Pitch. E todos vocês tomem nota de quantos são
hoje. Combinado?... Ouve, Cal, tenho pena de te ficar com o
cavalo, mas o meu orgulho revolta-se com as tuas farroncas.
- Depressa perderás o orgulho, meu amigo Timothy - respondeu
Cal, confiante. - Agora, rapazes, escutem-me todos com
atenção. Eu sei que vocês andam sempre a preparar-me
escorregadelas e que Tim está sempre do vosso lado. Por isso,
quero que estejam todos presentes quando eu o deixar
estendido.


53


Esta saída originou grande risota entre os circunstantes,
excepto Tim. Este parecia desconfiado, atónito.
- Lá -estaremos, descansa - disse Wess.
Sem mais comentários, Cal deu à manivela do carro,
verificando, com íntimo prazer, que o motor voltava a
trabalhar com inesperada rapidez. Depois, sentou-se no,
volante e afastou-se para o lado dos Correios, esperando ouvir
grande surriada à sua partida. Todavia, enganou-se. O carro
tinha qualquer avaria, de certeza. Deslizava muito fácil e
suavemente e dava a Cal a impressão de querer ganhar
velocidade. Imediatamente se apossou dele a convicção absoluta
de que os rapazes lhe tinham andado a mexer, mas de forma

inexperiente. Andou até aos Correios, voltou o carro e parou
junto à porta do alpendre.
Alguns naturais da terra estavam sentados num banco,,
fumando cachimbo e a aparar pausinhos, à espera da única
ocorrência do dia em Ryson, a chegada da diligência. Junto ao
alpendre, sentava-se Tuck Merry, ao lado da sua trouxa de
lona.
Nesse momento, quando Cal estava prestes a sair do carro,
observou três cavaleiros que se aproximavam pela estrada,
vindos de Este. Reconheceu neles Bloom, do rancho Bar XX, e
dois dos seus cavaleiros, um dos quais era Hatfield, pela
certa.
- Maldito azar! - exclamou Cal. - Isto é que é uma sorte a
minha!
Ser vítima das partidas dos seus amigos era já bastante
importuno, mas ter de as suportar na presença do pessoal de
Bar XX, especialmente de Hatfield, era infinitamente pior.
Teriam Wess e os seus camaradas alguma coisa que ver com a
estranha coincidência da chegada de Bloom e Fatfield?


54


"Não, não podiam ser tão maldosos" - murmurou ele, na sua
leal maneira de ser.
A chegada daqueles cavaleiros era apenas uma infeliz
coincidência, a aumentar a confusão no atormentado espírito de
Cal.
Viu-os passar pela garagem, por Wess, e pelos companheiros,
que os cumprimentaram com um aceno casual, e continuaram
estrada fora, até ao varal debaixo do choupo que ficava perto
da estação dos Correios... Desmontaram. Bloom e Hatfield
aproximaram-se, enquanto o terceiro cavaleiro, estranho para
Cal, começou a desatar um saco de correspondência da sela do
seu cavalo. Bloom era um homem pesado para cavaleiro,, de
ombros largos, atarracado e de cintura grossa. As protecções
para as pernas, enormes, como as asas de um morcego,, faziam
lembrar velas de um navio à medida que ele caminhava. Tinha um
rosto duro e, embora aparentasse ter menos de quarenta anos,
ostentava bem a vida árdua que tinha levado. Hatfield era
novo, de figura simpática e elegante, e bamboleava-se com
presunção. O seu pitoresco trajo consistia num chapéu de pele
de castor, lenço vermelho, camisa de flanela azul, coberta de
poeira do caminho e tapa-pernas com franjas, guarnecidos de
prata.
- Olá, Thurman, - saudou Bloom, quando se aproxiMOU. -
Encontrei o teu pai esta manhã e ele disse-me que você tinha
vindo à povoação.
- Olá, Bloom, - respondeu Cal, com pouca vontade.
Hatfield não falou a Cal, embora lhe tenha lançado um olhar
oblíquo com as suas pupilas aceradas. Então, como em vezes
anteriores, Cal admirou-se de que Hatfield fosse tão popular
entre as raparigas de Tonto. Já o mesmo não se passava com os
homens. Muito poucos o superavam, como cavaleiro e laçador e
era dos mais rijos, em questões de luta, como Cal sabia por
experiência própria. Mas, embora estas qualidades o tivessem
guindado a um lugar em que impunha um certo respeito, nunca

tinha sido amigo de qualquer dos Thurman. Além disso, não era
do Texas e pertencia ao pessoal de Bar XX.


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Os dois cavaleiros passaram por Cal e iam a subir a escada
para o alpendre quando viram a figura caricata de Tuck Merry,
encostado a um poste. Bloom olhou para ele e parou a observá-
lo...
- Ah, ah! - gargalhou, recomeçando a andar. - Hat, viste
aquilo? Parece mesmo uma atracção de Circo...e Foi a vez de
Hatfield se voltar para Merry. O olhar que lhe deitou não era
de molde a deixar o rapaz lisonjeado, mas, embora Merry
notasse claramente que estava a ser posto em ridículo, não
acusou o toque. O facto deixou Cal bastante aborrecido, mas em
nervosa expectativa. Depois, Bloom e Hatfield, após terem
falado aos que estavam sentados no banco, entraram no armazém.
Cal ouviu o zumbido provocado pela aproximação da
diligência, bem como os outros homens, que pareceram cobrar
certa animação.
- Diabos me levem se não é a diligência que aí vem - disse
um.
- Aposto que não é Jake quem vem a guiar - acrescentou
outro.
- Se é ele, apanhou algum susto pelo caminho, - observou
terceiro.
Cal encontrou amarga consolação no facto de que qualquer mau
bocado que fosse passar depressa estaria terminado. Viu Wess e
os outros aproximando-se vagarosamente. Depois, cruzou o olhar
com Tuck Merry e acenou-lhe.
- Viu os dois tipos que entraram agora mesmo no armazém? -
perguntou.
- Vi, sim - respondeu Merry.
- Bem, o gordo é Bloom, capataz do rancho Bar XX, e nada
amigo dos Thurman. O outro era Hatfield, um dos seus rapazes.
As coisas estão azedas entre mim e ele. Um dia, hei-de contar
porquê. De todos os... Mas não interessa. Agora, olhe para a
estrada, para aqueles quatro rapazes que lá vêm. Pertencem ao
rancho Thurman. Wess, o mais alto, é meu primo. São os
melhores companheiros do mundo, mas levadinhos da breca. Hoje
pregaram-me partida pela certa. Por isso, você deixe-se andar
por aquí perto até que eu o chame.
- Já percebo, amigo, - retorquiu Merry, com um sorriso,
voltando para o lugar que ocupava antes.
Cal continuou sentado no carro. Wess e os camaradas
acercaram-se com lentidão e pararam junto ao alpendre, com uma
calma sacerdotal. Apareceram na estrada mais uns naturais de
Ryson, que se aproximaram do armazém e estação dos Correios.
Então, a grande diligência motorizada surgiu na estrada
principal, com um ruído de trovão, deixando atrás uma nuvem de
poeira. Parecia esmagada ao peso de sacas e caixas, empilhadas
no topo e amarradas dos lados. O condutor guiava com desusada
rapidez e parou bruscamente junto aos degraus do alpendre.
Quando se apeou, Cal reconheceu o rosto e a figura de Jake,
mas não os seus movimentos. Uma energia notável, sobrenatural
quase, caracterizava os seus movimentos naquele momento.

- Ora cá estamos nós - disse ele, abrindo a portinhola
lateral.
Depois, começou a descarregar numerosos artigos de bagagem
de mão, maletas e sacos de uma qualidade e estilo raramente
vistos em Ryson. Colocou tudo sobre os degraus. Em seguida,
ajudou alguém a descer, falando demasiado baixo para que Cal
conseguisse perceber.
O primeiro passageiro a sair foi uma rapariga, muito nova,


56 57

segundo pareceu a Cal. A sua visão estava obstruida por Jake
que parecia querer armar em galante. Toda a gente junto ao
alpendre observava a cena. A jovem, transportando uma mala de
mão, subiu os degraus. Cal teve um vislumbre de caracóis
dourados e de um rosto níveo, de faces rosadas. Ela entrou no
armazém. Cal, à espera do próximo passageiro, preparou-se para
avançar e cumprir o seu dever. Mas, não apareceu mais ninguém.
Jake descarregou mais alguma bagagem e procedeu a desatar
sacas presas aos rebordos laterais do carro.
Cal olhava atentamente. Subitamente, compreendeu que a
diligência estava vazia. Não havia mais passageiros. A sua
primeira sensação foi a de um inefável alívio. A irmã de miss
Stockwell não tinha vindo. Ou tinha perdido a diligência ou
não tinha ido mesmo. Os rapazes tinham sido logrados. Afastou
o olhar da diligência para o alpendre. Que tinha sucedido ali?
Wess parecia desorientado; Pan Handle estava pasmado; Tim,
voltado de boca aberta, para a larga porta do armazém; e
Arizona dava a impressão de se estar a recompor de qualquer
choque sofrido, lembrando-se dos seus brilhantes atributos
pessoais. Mexia, agitado, nos cabelos, depois no lenço,
passava as luvas de uma mão para a outra, e começou a andar
para a porta do modo mais hesitante.
Mas, não chegou lá. Foi obrigado a estacar pela visão de
juventude e beleza que emergiu da porta. A jovem atravessou a
soleira e avançou até ficar bem à vista. Cal verificou que
todos estavam como ele: incapazes de movimento. Porém, no seu
espírito redemoinhavam os mais diversos pensamentos.
A rapariga que ele julgara uma criança, agora voltada para
ele, era de facto uma mulherzinha já. Os seus grandes olhos de
cor violeta olhavam em volta, inquisitivos. O rosto era muito
branco, excepto nas faces, onde se notavam duas manchas


-58-


cor-de-rosa. Os lábios vermelhos como carmim, Vestia um trajo
acastanhado, de bom corte e invulgarmente curto, pois chegava
apenas à curva dos joelhos. O olhar extasiado de Cal admirou
umas pernas esbeltas, torneadas, de meias pretas, antes de
voltar a fitá-la no rosto.
- Senhor condutor, tinha-me dito que estava alguém à minha
espera - disse ela, com voz suave mas perfeitamente audível.
- Decerto está, a julgar pelas aparências - gracejou Jake,

interrompendo a tarefa de abrir os sacos da correspondência. O
seu rosto bronzeado crispou-se num sorriso. - E, mesmo que não
estivesse, menina, não tinha por que se apoquentar. Espere só
que eu acabe de arrumar isto.
Ela não parecia nada embaraçada ou preocupada, mas sim
curiosa e interessada. Manifestamente, esperava que algum do
grupo se adiantasse e, por isso, olhava-os a todos. Arizona
começou a "derreter" sob o doce calor daquele olhar hesitante,
mas os outros continuavam estáticos.
Então, Hatfield saiu do armazém, de chapéu na mão, com
aspecto desempoeirado e prazenteiro.
- Menina, deve ser a pessoa que eu procuro - disse ele, com
desembaraço, curvando-se em cumprimento.
- Eu sou Georgiana May Stockwell - respondeu ela, com os
olhos reluzentes, mirando-o de alto a baixo.
A tensão em que Cal Thurman estava quebrou-se e deixou-se
cair contra as costas do assento.
"É boa!", - murmurou. - "Agora percebo eu a professora e
porque é que me encarregou desta missão. Aquela... aquela
rapariga é irmã dela... a que eu fui incumbido de levar para
casa.
Desequilibrados os nervos, levado a encarar uma situação
totalmente diferente daquela que receava, começando a tremer,
a latejar devido a um estranho e nascente contentamento,
Cal não conseguiu mais que ficar sentado a ver e a ouvir.


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Evidentemente, miss Georgiana esperava que Hatfield se
apresentasse e o seu aspecto era de satisfação. Agradava-lhe a
aparência daquele homem do Arizona. Hatfield, contudo, não
parecia disposto a revelar o seu nome e os seus modos, embora
desenvoltos, tinham qualquer coisa de artificial. Ou ele não
era suficientemente abalizado para dominar a situação com
êxito ou não julgara a rapariga como devia. E ela pareceu
rápida em captar o que havia de estranho na atitude dele,
embora pudesse ser devido aos modos bruscos do Oeste, e perdeu
um pouco do seu domínio. A sua naturalidade era mais aparente
que natural ou profunda.
- Venha comigo à garagem que eu meto-a num carro - disse
Hatfield.
E, pegando em algumas das malas dela, começou a descer os
degraus.
- Obrigada... Eu espero aqui - replicou a jovem, hesitante.
E ficou a vê-lo afastar-se. Então, Wess Thurman dirigiu-se a
ela.
- Miss Stockwell, - começou ele, com um entusiasmo que
agoirava atrapalhação - olhe que se vai com Bid Hatfield nunca
será bem vista nem recebida no rancho Thurman.
Ela encarou o cavaleiro, demonstrando, agora, que já
verificara que havia qualquer coisa errada em tudo aquilo.
- Afinal, em que é que eu fico? - perguntou, secamente. -
Como é que eu sei quem é Bid Hatfield? Pelo menos parece ser o
único cavalheiro, pois reparou que sou de fora e estou
sozinha. Além disso, ele disse que estava à minha espera.
Pensei que fosse o senhor Cal Thurman.


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-Bom, está enganada, e olhe que Cal não há-de gostar da
comparação - respondeu o rapaz. - Eu sou Wess Thurman e
nós... estes... ou seja, eu... eu vim buscá-la para a levar a
sua irmã.
Georgiana olhou para Wess, desconfiada, e os seus
pensamentos deviam ter sido vários e confusos, até que começou
a compreender qualquer coisa da situação. Provavelmente,
aqueles contratempos não eram novidade para ela; a única.
diferença que havia era o local e os protagonistas.
- Disseram-me na estrada que o senhor Cal Thurman telefonara
a dizer que me esperava - disse ela. - Onde está?
- Bem, menina... bem vê - balbuciou Wess, à espreita da sua
oportunidade. - Cal ainda é muito novo... e quis meter-se em
cavalarias altas. Quem a vai levar ao rancho de Green Valley
sou eu.
- É muito amável - respondeu Georgiana, com suavidade. - Foi
a minha irmã Mary que o mandou ao meu encontro?
- Bem, devo dizer... não foi exactamente... mas nós... os
rapazes... quero dizer, eu disse que a levaria a casa com
segurança - rematou Wess, engolindo em seco com dificuldade.
Miss Georgiana olhou para ele com ar de velhacaria, depois
para Arizona, que estava a seguir para Pan Handle e Tim,
Matthews, agora mostrando alguns indícios de animação.
- Nós temos ali o... carro grande - disse Arizona, mal se
ouvindo.
Isto foi um sinal de encorajamento para os rapazes. Wess,
Pan Handle e Tim rodearam a rapariga. Arizona recusou-se a ser
afastado da sua favorável posição.
- Nós? Então, tenho grande companhia - respondeu Georgiana,
modestamente, fitando todos.


61


- De facto, viemos todos para a escoltar - arriscou Tim,
bastante tímido mas com olhar radiante.
- Olhe que vai com boa gente, menina, - disse Pan Handle.
- Estou em crer que pertencem ao rancho Thurman, onde minha
irmã vive - disse ela, com certo ardor.
- Sim, menina, acertou em cheio - afirmou Wess, com o seu
sorriso atraente. Tinha recuperado a calma. Delicadamente,
apresentou os seus camaradas: - Este aqui é Arizona, que não
tem mais nome nenhum; e este é Pan Handle Ames, e este é Tim
Matthews.
Georgiana apertou a mão a todos, dedicando a cada um o seu
melhor sorriso, o que os deixou ainda mais desmoralizados.
- E o senhor Cal Thurman... onde está ele? - inquiriu.
- Temos de admitir que não esteve para se incomodar, menina,
- disse Tim, brandamente. - Ontem à noite, fartou-se de se
lamentar. Estava aqui quando a diligência chegou, mas deve ter
desistido.
- Oli, compreendo - replicou a jovem. - Sinto muito que a
minha vinda tenha causado arrelias a alguém.

- Bem, o único a aborrecer-se foi Cal, isso garanto eu -
respondeu Tim, com gáudio geral dos companheiros.
Foi tudo quanto Cal pôde ouvir e observar, pois a sua
atenção foi atraída por Hatfield, que voltava da garagem com
um carro alugado. Durante a cena extraordinariamente absurda
levada a efeito por Wess e pelos outros, em evidentes esforços
para solucionar a situação a favor deles, Cal tinha recuperado
o seu autodomínio. Os rapazes tinham tentado bem vingar-se da
partida que a professora lhes pregara e procuravam virar o
feitiço contra o feiticeiro, com prejuízo de Cal, e levar miss
Georgiana para casa. Cal jurou a si mesmo que nunca o
conseguiriam. Respirou fundo e desceu do carro. Sentia-se
senhor da situação e qualquer coisa se agitava no seu íntimo,
mais impetuosa e ardentemente do que a ocasião parecia
justificar.
Quando Hatfield parou junto ao alpendre, Cal,
deliberadamente, olhou para dentro do carro e, vendo as malas
de miss Stockwell, prontamente as retirou. Hatfield saltou do
carro.
- Eh, Thurman, que está você a fazer? - perguntou.
O tom da sua voz fez cessar a conversa e todos se voltaram
para observar.
- Bid, estou a aliviá-lo da bagagem de miss Stockwell -
replicou o rapaz, friamente. - Mandaram-me vir esperá-la e
tenho de a levar a casa.
O corpo musculoso de Hatfield contorceu-se num esboço de
cólera e, por momentos, lançou a Cal um olhar carregado,
enquanto se tornava pálido. Havia-mais do que simples
aborrecimento na sua expressão. Depois, disfarçou os seus
sentimentos.
- Bem, Cal, como você não aparecia e nenhum do seu rancho
mostrou ter boas maneiras, eu ofereci-me para acompanhar miss
Stockwell - disse ele.
- Ora! - exclamou Cal, um pouco abalado pela seca resposta
do cavaleiro.
Entretanto, Hatfield subiu os degraus e, depois de
respeitoso salamaleque, encarou a jovem.
- Miss Stockwell, quer que eu a acompanhe até junto de sua
irmã ou prefere ir com Thurman? - perguntou, cortêsmente.
A rapariga estava impressionada e excitada com o desenrolar
dos acontecimentos. Sal tava à vista que não era alheia ao
aspecto cativante e à personalidade de Hatfield. Depois, o seu
olhar dardejou sobre Cal.
Era o momento culminante para este. Subitamente ao ver-se
alvo do olhar dela, sentiu que toda a sua segurança e noção
dos seus direitos lhe fugiam. Envergava as suas roupas velhas,


62 63


de cavaleiro e nunca haviam parecido tÄo sujas e gastas como
naquele momento. Que figura tão triste ele fazia, em contraste
com o elegante Hatfield e com os rapazes, que tinham vestido
os seus melhores fatos! Cal sentiu o sangue afluir-lhe às
têmporas.
- Senhor Bid Hatfield, se fosse uma questão de escolha,
preferia ir consigo - respondeu ela, docemente. - Porém, como

minha irmã o mandou a ele, eu tenho...
- Desculpe-me - interrompeu Cal, bruscamente. - Tenho até
muito prazer em me livrar do encargo. Mas, aconselho-a, nesse
caso, a ir com o meu primo Wess porque, se for com Hatfield,
não será depois bem acolhida em Green Valley. Digo-lhe isto em
atenção a sua irmã.
E voltou-lhe as costas, deixando a rapariga ofendida e
confusa. Entretanto, alguém gritou do armazém: - Chamam Cal
Thurman ao telefone.
- Quem é? - indagou Cal.
- É miss Stockwell, a professora. Está a falar do rancho.
Cal subiu as escadas e entrou no armazém, sem olhar para os
lados. Ouviu passos atrás dele, mas sentia-se demasiado
infeliz para se importar com quem quer que fosse.
- Está? - perguntou, ao telefone.
- Estou! É você, Cal? - inquiriu a voz, do outro lado.
- Sim, sou eu.
- Fala Mary Stockwell... Cal, a minha irmã foi na
diligência?
- Veio, sim - respondeu Cal, com azedume.
- Oh... Oh... Cal, meu amigo, ela está boa?
- Parece que sim.
- Depressa, Cal, traga-a, depressa! Estou ansiosa por vê-la.
E, Cal, está satisfeito por ter ido, não está? Perdoa-me tê-lo
enganado... acerca do retrato?


64


- Nunca lhe perdoarei, nunca! - ripostou Cal, com voz rouca.
A resposta não foi imediata. Depois, a voz da professora
voltou a ouvir-se, em tom diferente.
- Oh, Cal... você não fala a sério,! Foi tudo a brincar. Têm
feito troça de mim. Por outro lado., pensei que isto iria
agradar-lhe. Fiquei muito contente por você ter sido o único a
oferecer-se para ir esperar o que todos julgavam ser uma
solteirona horrivelmente feia. Foi um belo gesto da sua parte,
Cal... Porque é que está tão ofendido? Porque é que não me
desculpa?
- Porque fiz uma retumbante figura de urso perante todos -
disse Cal. - Wess e os outros vieram para me fazer alguma
patifaria... Bem vê, professora, eu esperava uma... uma pessoa
semelhante à fotografia que me mostrou. E, quando uma... uma
bela amostra de rapariga saltou da diligência, eu... nunca
pensei que pudesse ser a sua irmã. Fui o último a
descobri-lo... Então, alguém que eu não posso ver sequer, foi
ao encontro dela e... quando "acordei" e me apresentei a ela,
e disse que tinha vindo da sua parte, então... então, ela
insultou-me em frente de todos e dele.


65


- Insultou-o?! Oh, Cal, não pode ser! - retorquiu miss
Stockwell, aterrorizada. - Sinto muito, Cal. Na verdade, só
pretendia que fosse você o beneficiado. Oiça, quem é que falou

a Georgiana? Foi Bid Hatfield?
- Foi sim, e ela disse-lhe que preferia ir com ele. Mesmo
diante de Wess e de toda a gente! Esse é que foi o mal.
Professora, a senhora não conhece o Oeste. Nunca poderei
esquecer isto. A única coisa a favor de Hatfield é ter sido o
primeiro a ser gentil para ela. Mas, eu estava a modos que
"arrelampado"... mesmo atrapalhado de todo! Professora, eu
disse-lhe que era melhor ir com Wess, porque a senhora não ia
gostar de que Hatfield a acompanhasse.
- Cal, a minha irmã vem para casa com você - declarou miss
Stockwell, numa voz que o rapaz conhecia bem. - Chame-a, aí ao
telefone.
Assim exortado, Cal regressou, com latente ansiedade, dada a
gravidade da situação e a expressão dos seus sentimentos.
Quase tropeçou com Georgiana que, evidentemente, tinha estado
ali à espera. A petulância tinha desaparecido do rosto dela.
Parecia perturbada e o seu olhar interrogativo procurou o
dele.
- A sua irmã quer falar-lhe - disse Cal, apontando para o
telefone.
Um momento depois, ela regressava.
- Senhor Cal, - começou -, a minha irmã explicou... acerca
do retrato. da minha tia... os seus irmãos e primos
recusaram-se a vir esperar-me, que só o senhor é que foi
prestável e suficientemente bom, para vir. Mais, que os
rapazes arquitectaram alguma partida para lhe pregar... Peço
que me perdoe o que eu disse. Estou envergonhada. Quer
desculpar-me... e levar-me a casa?
Parecia que se tinha aproximado gradualmente, à medida que
falava, até que a sua mão suplicante tocou no braço dele.
Ergueu o rosto que, repentinamente, se tornara
maravilhosamente meigo, aos olhos de Cal. Os seus,
cor-de-violeta, fixaram-no. Tinham escurecido um pouco e
denotavam uma ansiedade, sincera, embora audaciosa. E, perante
eles, instantâneamente, Cal sentiu irremediável a sua primeira
paixão. Depois disto, nada mais era claro.
- Posso ir à frente consigo? - perguntou ela, como se fosse
aquilo que mais desejava no mundo.
Falara com doçura mas de modo a ser ouvida por todos no
alpendre. Aparentemente, desconhecia a existência deles; não
ouviu mesmo o rumor das suas botas quando começaram a
movimentar-se.
- Pois pode - respondeu Cal, tentando acalmar-se. - Eu ponho
as bagagens lá atrás.


66


Nesta altura, apareceu Tuck Merry, transportando a sua
trouxa. A sua cara cadavérica não traía o prévio encontro com
Cal, embora no fundo das suas pupilas, luzisse uma centelha de
troça e satisfação pelo desenlace da situação.
- Amigo, quer dar boleia a um pobre diabo? - perguntou.
- Certamente. Salte lá para trás, - respondeu Cal.
Naquela ocasião,, só lhe apetecia abraçar calorosamente o
seu novo amigo.
Merry, o seu embrulho e as numerosas peças de bagagem da

rapariga encaixaram-se confortavelmente na traseira do carro.
Então, Cal ligou o motor, que começou a trabalhar com estranho
ruído, desconhecido para ele. Seria apenas o seu cérebro
desorientado,? Em qualquer dos casos, trabalhava. Cal
sentou-se ao lado da jovem,, "sentindo" tremendamente a sua
presença, a sua tranquilidade, e o sorriso com que o envolvia.
As mãos tremiam-lhe um pouco. Depois, quando tentou iniciar a
marcha, ficou embatucado,, ao verificar que o carro não mexeu
um só centímetro. O motor parara.


67


, CAPítulo IV


Cal estava sentado ao volante, compreendendo que o que
ele esperava tinha sucedido. Praguejou, intimamente, e, por
momentos, odiou a fila de curiosos que o observavam do
alpendre. Este ódio, todavia, foi de pouca dura. O que quer
que acontecesse, Georgiana May Stockwell estava com ele. Isso,
era bálsamo para muito mais que viesse a sofrer.
- Deixou o carro ir-se abaixo - disse ela, alegremente.
- Ir-se abaixo? Bom, essa é nova para mim - replicou Depois
em voz mais baixa: - A sua irmã disse-lhe que Wess e aquela
súcia me queriam deixar ficar mal, não disse?
- Sim. Éuma das razões por que eu fiquei tão apoquentada.
- Tenho um palpite em como me avariaram o motor quando
deixei o carro na garagem - sussurrou Cal. - Tenho mesmo a
certeza. Assim, custa-me pedir-lhe que permaneça junto de mim;
mas, em todo o caso, sempre lhe peço. As coisas entortaram-se,
mas quer ficar para vencermos juntos?
- Adoro estes contratempos - murmurou ela, com olhar
cintilante de satisfação. - Fico, nem que tenhamos de ir a pé.
Não se incomode comigo. Isto é formidável. Conserve a linha e
dar-lhes-emos uma lição que lhes fica de emenda.
O olhar dela ao fitá-lo, resplandecente de juventude e
ousadia, as palavras ciciadas com rapidez que o nomearam
incondicionalmente seu campeão, compensavam sobejamente Cal da
humilhação que sofrera e afastaram definitivamente o receio
que pairava no seu espírito. Sentiu-se inundado por invulgar


-71-


exaltação, por um não-sei-quê que brotava da sua própria
emoção e o agigantava perante ele mesmo.
- Devo confessar que sou tudo menos mecânico. Não distingo
um motor de um pau de fios - disse ele.
O riso abafado da jovem foi cortado pela intervenção de Wess
Thurman.
- Cal, queres uma parelha de cavalos?
- Cal, vais mesmo guiar? - atacou Arizona, sorridente.
Tim Mattews desceu vagarosamente os degraus, com indolente

confiança.
- Talvez seja falta de gasolina - disse ele, com uma
serenidade que pretendia mascarar a mentira da sugestão.
Wess Thurman encaminhou-se para junto do carro.
- Primo, queres levar miss Stockwell a tempo de ir jantar,
não queres?
- Com certeza. E hei-de conseguir - replicou Cal.
- Talvez, mas não é nesse carro - afirmou Wess. - No nosso,
temos lugar para ela e para as malas.
- E eu? - perguntou Cal, irónico.
- Bem, para ti não - disse Wess abrindo os braços para os
lados. - Já vamos bem apertados... Talvez Tim ou Pan Handle ou
Arizona possam ficar cá e deixar-te ir comigo.
- Tenho de estar de volta hoje - disse Tim.
- Cal, o seu pai só me deu o dia de hoje de folga e eu não
quero perder o emprego - afirmou Pan Handle.
- Amigo, bem sabe que faria tudo por si, mas saí de
propósito para comprar o remédio para o meu cavalo - informou
Arizona.
Eram as réplicas habituais, eivadas de inocência. Cal
reparou que Georgiana os estudava, absorta, como que
fascinada. Parecia ver através deles; mordia os lábios para
não se rir. Então, Cal espantou-se, ao ver Tuck Merry
desenrolar o seu corpo esgalgado do assento de trás do carro.


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Tinha chegado a esquecer o seu outro passageiro.
- Amigo,, deixe-me dar uma vista de olhos a isto - disse. -
Eu dantes trabalhava com uma máquina de cortar queijo, na
Smith Condensed Milk Company.
O seu modo seco e trocista de falar perturbou,
aparentemente, os ouvidos de Wess e dos camaradas. Não sabiam
o que pensar e, calaram-se ao ver aquela personagem estranha e
excessivamente magra. Fitavam-no, com evidente surpresa. Tuck,
lentamente, caminhou para a frente do carro e levantou a
cobertura do motor; estendeu o pescoço e a sua cabeça
desapareceu da vista. Assobiava. Depois, endireitou-se e,
olhou em volta, mexendo em diversas partes do motor. Os do
grupo tomavam-no a sério, mas Cal adivinhava que Tuck tinha
mais alguma coisa no pensamento, além da ideia de pôr o carro
a funcionar. Deu algumas pancadas, remexeu peças, tudo com ar
de mestre em mecânica.
- Oh, oh! - mofou o capataz Bloom, que estava encostado a um
poste do alpendre. - Este espectáculo é divertido.
Merry não lhe prestou atenção nem aos outros que se tinham
rido com a piada, e continuou com o seu vagaroso exame.
- Não sei que vai sair daqui, mas tenho um palpite -
murmurou Cal, para a rapariga.
- Oh, ele tem muita graça! - retorquiu ela. - Senhor Cal,
creio que ele só pretende troçar dos outros.
Finalmente, Merry ergueu-se e, com a mão enorme apoiada no
motor, colocou-se na posição de um orador que vai discursar.
- Amigo, este motor foi avariado por alguém que não "vê"
nada disto - disse, brandamente. - O carburador foi separado
do resto e o sistema de Ignição cortado a meio;


73


a bateria não trabalha e as velas não funcionam. æ parte isto,
está tudo bom.
- Safa! Não haverá mais nada desarranjado! - perguntou Cal,
não cabendo em si de contente pela competência do outro.
Além disso, outra coisa maravilhosa estava acontecendo:
sua mão tinha resvalado sobre o banco e a jovem, com
excitação, apertava-lha..
- É tudo quanto se pode ver de relance - respondeu Tuck -
além de várias peças que faltam. Mas eu ponho o carro a andar,
descanse.
Esta observação fez Wess sair do mutismo em que se
conservara.
- Oiça, forasteiro, está a querer "gozar" comigo? -
perguntou, com voz que denotava ressentimento.
- Estava apenas a falar com o cavalheiro que me ofereceu a
boleia - disse Tuck, apontando para Cal.
- Sim, mas que quer dizer essa piada de alguém ter
"avariado" -o carro?
- Quer dizer isso mesmo. Alguém inexperiente lhe esteve a
mexer.
- Oli! Pois, sempre lhe digo que os forasteiros, nestas
paragens, devem medir bem aquilo que dizem - declarou Wess,
desafiante.
- Porquê? Não estamos num país livre? - perguntou Tuck,
melífluo.
- Estamos, mas nós aqui somos um caso especial - resmungou
Wess. - E não queremos a nossa paródia estragada por qualquer,
espantalho pernalta disfarçado de gente.
- Oh, já compreendo - replicou Merry, ainda mais macio. - Eu
não quis ofender ninguém, foi só para dizer a verdade.
- Mas, afinal, quem é você? - inquiriu Wess, curioso, uma
vez que já tinha intimidado o outro.


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- o meu nome é Merry e ando à cata de emprego.
- Merry, hem? Bom, não há dúvida que está bem posto, porque
é o tipo que me deu mais vontade de rir até hoje. Você era bom
para apanhar maçãs, mas o ano vai mau para as macieiras.
Em seguida, Wess chegou-se de novo, a Cal e retomou o seu ar
superior e trocista.
- Bem, rapaz, eu posso aliviar-te de miss Stockwell e
levá-la a casa a tempo de jantar.
Cal olhou para o primo durante um longo momento. Wess estava
manifestamente satisfeito por poder zombar dele.
- Wess, preferia não te dizer tudo quanto sei - disse Cal,
com misterioso bom humor.
- Essa agora! Porquê? - respondeu o outro, irónicamente.
Não sabia como explicar a mudança de tom de Cal. Depois, o
seu olhar perspicaz reparou nas mãos enlaçadas do primo, e de
Georgiana e começou a fazer-se luz no seu espírito.
- Bom, bem vistas as coisas não és dos mais vagarosos -

disse. - Mas, considerando que Misstockwell tem de ir para
casa, tenho de te pôr em cheque, porque com certeza não a
podes levar neste carro.
Assim falando, encaminhou-se para a garagem. Arizona e Pan
Handle seguiram-no, bem como Tim, embora este se demorasse o
suficiente para perfurar Tuck com um olhar raivoso e dedicar
uma lânguida olhadela a Miss Stockwell.
- Tuck, despache-se com esse conserto - disse Cal. - Temos
de nos pôr a andar daqui para fora.
Merry curvou-se sobre o motor, usando destramente as suas
mãozorras, enquanto os circunstantes o observavam,
interessados, do alpendre. Alguns riam e faziam observações


75

achincalhantes. O incidente, contudo,, não parecia concluído.
Cal viu os olhares de Bloom e de Hatfield incidindo sobre ele
e a rapariga.
- De mãos dadas, hem? - disse Bloom, em tom ordinário, na
sua voz forte, que fez as atenções concentrarem-se em Cal e
Georgiana.
Foi Cal quem corou e retirou a mão que, inconscientemente,
tinha tomado a dela. Até mesmo naquele momento, ele verificou
que a rapariga mostrava surpreendente indiferença pela forma
rude como fora incluída na conversa. Merry endireitou-se, de
repente, da posição, em que estava a trabalhar. Bloom devia
ter notado desdém na flagrante falta de embaraço da jovem.
- Bem, Bid, - disse ele no mesmo tom, voltando-se para
Hatfield. - Aquele frango depenado é, de facto, digno de
ver-se, mas olha que não estás a perder grande coisa. São
engraçadas estas mulheres do Este...
- Sou forasteiro aqui - disse Merry -, sou do Este e não
levo a bem a sua observação. Os homens do Arizona falam dessa
maneira acerca das mulheres do Este?
- Sempre, desde que elas se pintem. e andem com os joelhos
ao léu, como aquela rapariga - declarou Bloom.
- Mas, senhor, no Este, um leve colorido artificial e saias
curtas não são motivo para insultos, - informou Merry,
gravemente. - É moda. Tenho uma irmã mais nova que também
veste assim.
- Pois, você e a sua irmã e mais a vossa raça é melhor
ficarem onde estão. E, já agora, deixe-me fazer-lhe uma
advertência: Tonto Basin é Oeste do mais genuíno.
- Senhor, tenho conhecido muitos homens e, com o maior
respeito pela sua lei do Oeste, devo dizer-lhe que nunca
nenhum, que se prezasse, me falou assim.
- Oiça lá, seu saco de ossos esfomeado! - rugiu Bloom,


76


furiosamente. - Seu tubo de órgão repelente, você sabe,
porventura, com quem está a falar?
- Eu lhe digo, senhor. - prosseguiu Merry, com a sua voz

calma, em marcado contraste com a do outro. - Você não é
verdadeiramente do Oeste. É um pobre diabo, um pedaço de
banha, um fanfarrão insolente. Apostava que é todo gordura até
à moela.
Bloom pareceu perder o uso da razão. Um assombro frenético
agitou-o. O seu rosto tornou-se lívido, e começou a gaguejar.
Qualquer coisa indescritível lhe tinha acontecido. Era como se
estivesse a olhar para uma monstruosidade. Com um gesto lento,
bem medido, recuou o braço.
Então, a mão direita de Merry disparou tão depressa que Cal
não teve tempo de a seguir com a vista. Mas, viu os
resultados. O punho de Merry acertara no nariz de Bloom, não
muito forte, mas cientificamente colocado. A cabeça de Bloom
saltou para trás e o sangue começou a esguichar das narinas,
ao mesmo tempo que ele proferia uma exclamação de dor. A
contracção espasmódica do seu rosto atestava igualmente o
efeito doloroso do golpe. Então, quando recuperou o
equilíbrio, entrou em jogo o punho esquerdo de Merry. Deu-lhe
em certa região da cintura, ressoando como um tambor. Bloom
largou um berro tremendo-. A boca abriu-se-lhe desmedidamente
e toda a cara parecia uma teia de rugas bem vincadas. Levou as
mãos à parte atingida e, começou a descair. Perdera a
respiração. Finalmente, quando o corpo dele vergava, Merry
atirou-lhe um soco ao flanco que acabou de o lançar por terra.
- Onde é que está o bonitote que vinha com este? - perguntou
Merry aos espectadores da cena.
- Não me toque ou puxo da pistola - declarou Hatfield,
ameaçador, entrando para o armazém.


77


- Oiça,, seu peralta das dúzias, você puxa mas é de uma
treta - retorquiu Merry, aproximando-se do alpendre.
Um dos homens barrou-lhe a passagem.
- Forasteiro, deixe-o ir embora. Bid é pessoa para empregar
a pistola. Como vejo que você não traz nenhuma, é mais
aconselhável conter-se. Não procure nunca as rixas aqui em
Tonto. Elas depressa irão ter consigo.
Assim advertido, Merry deu meia volta e dirigiu-se para o
carro.
Então, Wess Thurman aproximou-se dele, seguido de Arizona e
Pan Handle, indubitàvelmente amigáveis. Mas, Wess estava
particularmente interessado naquele exemplar de homem. Olhou
Merry de alto abaixo, atentamente, com admiração. Era evidente
que não estava convencido de certos pormenores.
perguntou, por fim.
- O que é que você lhe atirou?
Merry não lhe prestou atenção e continuou a consertar o
motor, até que este começou a trabalhar.
- Bom - prosseguiu Wess, - não interessa o que você lhe
atirou. Mas, tornou-se amigo do pessoal de Four Ts. Está bem?
Aperte cá estes ossos.
Estendeu a mão e Merry apertou-a, com alguma energia.
- Ai! - gritou Wess, safando a mão dorida. - Homem, eu
pretendi ser amável. Não tencionava meter a mão numa
trituradora.

Fitou Merry, afagando a mão, e depois abanou a cabeça, em ar
de dúvida.
.
- Olha lá, Cal, - disse, voltando-se -, era melhor deixares
a menina vir comigo para casa.
- Oh, obrigada, senhor Thurman. É muito gentil da sua parte
- interveio Georgiana, com modéstia -, mas eu vou com o senhor
Cal.
- Está bem, mas pode ver-se obrigada a ir a pé - acrescentou
Wess, amuado.


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- Isso seria esplêndido. Eu adoro caminhar.
Wess não soube que responder a isto, dando-se por vencido e,
deitando um olhar significativo ao velho Ford, encaminhou-se
para o seu carro, de turismo. Arizona, contudo, tinha ainda um
trunfo para jogar. Inclinou-se para a janela do lado de
Georgiana e, muito sério, declarou:
- Menina, olhe que esta é a pior época para andar a pé.
- Oli, sim? É boa! O tempo parece-me delicioso - respondeu
ela, sorridente.
Cal teve a sensação de que ela não podia evitar ser pródiga
em sorrisos, embora não estivesse muito certo de que pusesse
neles perfeita sinceridade.
- Bem, menina, aqui, em Tonto, o tempo nada tem que ver com
andar a pé - prosseguiu Arizona. - O meu receio é só este: o
carro de Cal está a trabalhar, é certo; mas não tardará muito
que não se vá abaixo. Nessa altura, já deve ter escurecido e:
têm de palmilhar o resto do percurso. E, depois, oiça, já
ouviu falar nas doninhas raivosas?
- Não, por acaso não. Que é isso?? - perguntou Georgiana.
- São doninhas atacadas de hidrofobia - replicou Arizona. -
São desvairadas e não temem ninguém. Correm direitas a si e se
se mexer ou gritar, mordem-na e pegam-lhe a doença. Depois, a
menina adoece e anda por aí a morder as pessoas que apanhar a
jeito. Conheci dois rapazes que foram mordidos no nariz
enquanto estavam a dormir, perto de mim. Tive de afastar os
animais à paulada para os fazer fugir. E ambos os rapazes
tiveram uma morte horrível!
- Senhor Cal, ele estará a querer "entrar" comigo? -
perguntou a jovem, um pouco impressionada com a narração de
Arizona.
- Está, embora haja por aí desses animais em abundância,


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mas nós livrar-nos-emos deles - respondeu Cal, rindo.
- Vê, menina? - disse Arizona, com ar triunfante. - De vez
em quando, Cal mostra-se compreensivo. Por isso, acho melhor
não se arriscar a essa caminhada durante horas e horas, pela
estrada solitária e através de escuros bosques, e vir
connosco. Eu, de certeza, levo-a com segurança para Green
Valley.

- Arrisco-me a ir com o senhor Cal - retorquiu Georgiana,
maliciosamente.
- Oh! - fez Arizona, desapontado.
- Cal, devias ter vergonha de levar esta linda rapariga, com
os seus bonitos vestidos, através dessa poeirada.
- Arizona, demoras muito tempo a compreender seja o que for
- respondeu Cal. - Miss Georgiana Stockwell quer ir comigo
para casa.
- Bom, está bem. Estava só a avisá-la dos perigos.
- Não te incomodes, rapaz, que eu também sei avisá-la -
replicou Cal, com ardor. - Entre, Tuck. Não temos vagar para
mais consertos. Ah, ah!
Merry saltou para dentro do carro e fechou a porta. Cal, com
profundos e secretos pressentimentos, ligou o motor, na
expectativa de que, não trabalhasse. Mas, com agradável
surpresa, começou a roncar, em perfeito funcionamento.
- Cal, - gritou Arizona - nós vamos atrás, para apanhar as
peças que forem caindo.
Passaram por Wess, Pan Handle e Tim, e depois pela garagem,
onde os mecânicos espreitavam, traindo flagrantemente a parte
activa que haviam tomado na falcatrua. Por fim, meteram pela
estrada, afastando-se da povoação. O guiar e o afastar-se de
Ryson aliviaram a tensão, de Cal, deixando-o à mercê de novas,
e estranhas sensações. Muito do que ele receava já tinha
passado, mas de forma bem diferente, e tudo perdera a sua


-80-


feição odiosa. Quanto ao resto, parecia misterioso e
aliciante. Tinha acontecido qualquer coisa.
Durante cerca da primeira milha do trajecto, a rapariga
conservou-se calada. Pelo rabo do olho, Cal reparou que
permanecia quieta e pensativa. Viu também quando ela começou a
interessar-se pelo passeio e por ele. Por várias vezes, olhou
para ele disfarçadamente, causando-lhe estranha emoção.
Em dada altura, ela voltou-se para Merry, que parecia ter
esquecido até ali.
- Senhor Merry, obrigada por... por ter defendido as
raparigas do Este - disse, hesitante. - Aquele palerma era
horrível e mereceu tudo quanto lhe chamou. Nunca vi ninguém
bater como o senhor. Foi um belo espectáculo.
- Não tem de que agradecer - replicou Tuck, galantemente. -
Sei tratar com senhoras. E tenho, também, uma irmã mais nova,
assim como a menina, mas não tão bonita.
- Obrigada. Já vi que é tão bom em madrigais como no boxe -
observou, com ar gaiato. - Senhor Cal, qual é a sua opinião?
- Por favor, não me trate por senhor - respondeu Cal. - Que
é que eu penso de Tuck? É um belo rapaz! Oh, foi estupendo
quando ele se aproximou de Blooni e lhe chamou tudo aquilo,, e
lhe deu no nariz, e na boca do estômago, e no flanco!! Oli,
foi formidável! Que pena Enoch não tenha visto!
- Quem é Enoch? - perguntou a rapariga.
- O meu irmão mais velho. É o melhor de todos os rapazes.
Ele e Bloom não se podem ver. E nós estamos todos a favor de
Enoch! Um Thurman está sempre do lado dos Thurman, com razão
ou sem ela, mas, neste caso,, com razão. Bloom é má rês, e o

outro tipo, Bid Hatfield...
Cal interrompeu o seu impulsivo discurso. A lembrança de
Hatfield era-lhe particularmente amarga naquele doce momento.


77


Do mesmo modo, miss Georgiana pareceu sentir de modo diferente
o efeito provocado pelo nome de Hatfield. A sua melancolia
pareceu despertar no peito de Cal uma nova e angustiosa
sensação: a do fogo do ciúme.
- Gostou dos modos de Hatfield?
- Oh, gostei muito! Faz lembrar um bom artista de cinema -
respondeu, ingenuamente. - Fiquei mesmo muito impressionada.
O estado de êxtase em que Cal se encontrava, sofreu um
súbito choque. Se nunca tivesse tido motivo para odiar
Hatfield, arranjara-o a partir daquele momento. Mais ainda, o
modo de falar de miss Georgiana, às vezes, começava a
causar-lhe perturbações. Tinha ficado profundamente
impressionado com a fragrância da sua presença, com a
tonalidade da sua voz. Era, de facto,, maravilhosa. Mas
começava a estranhar a sua mudança inexplicável.
- Afinal de contas, as raparigas do Este não diferem das do
Oeste, no que respeita a Bid Hatfield - disse Cal, com
cáustica sinceridade. - Porque as de Tonto também ficam todas
"muito impressionadas", como disse.
- É uma espécie de homem fatal - gracejou ela.
Cal não replicou. A sua irritação estendera-se a ela, a ele
próprio e à hora em que nascera aquele acontecimento que se
lhe antolhava tão fascinante. A fim de espairecer o espírito,
carregou no acelerador, ao que o motor respondeu em
inacreditável boa forma.
- Bem a fundo! - gritava ela, alegremente. - A mim não me
assusta. Eu como velocidade todos os dias.
Por única resposta, Cal continuou indiferente, até que Merry
se inclinou para a frente e, batendo-lhe no ombro, disse, um
pouco constrangido:
- Amigo, abrande a marcha ou ficamos todos no caminho,


82


feitos em papas. Olhe que o outro carro, com o seu primo e
respectivo acompanhamento, vem atrás de nós.
Compreendendo a razão do outro, Cal voltou ao primitivo
andamento.
O sol estava prestes a ocultar-se por detrás da cordilheira
de Oeste, escabrosa e como que recamada de poalha dourada, e a
hora mais formosa do dia aproximava-se. Cal conduzia devagar,
ao longo da estrada sinuosa que subia contornando o sopé de
uma colina, e tinha oportunidade de, de vez em quando, lançar
uma olhadela para a paisagem.
Para sul, o terreno espraiava-se num sem número de cristas e
desfiladeiros quase imersos em penumbra, que constituíam Tonto
Basin. Naquele momento de sonho, tudo era banhado por uma luz
estranhamente bela e irreal, entre púrpura e lilás, esquisita

e intangível como a de uma pétala de rosa.
- Gosta muito de tudo isto, não gosta? - disse ela, quando,
Cal terminou a entusiástica descrição da zona que era visível.
- Sim - respondeu ele, aspirando o ar fresco que ressumava
os aromas do pinheiro e do cedro.
- Na verdade, é bonito - continuou ela, recostando-se melhor
- mas demasiado selvagem e áspero para mim. Fui uma vez a Nova
Iorque e, sou eu que lho digo, aí é que é o sítio indicado
para mim.
- Não duvido - respondeu Cal, com rudeza proveniente, do seu
mau-humor. Depois, como que para achar consolação para o seu
mal, voltou-se para Merry, que tinha evidenciado grande
interesse por tudo quanto Cal dissera.
- Tuck, gosta disto aqui?
- Amigo, por aqui é que eu vou ficar - foi a calorosa
resposta. - Tenho corrido o mundo inteiro, mas Tonto encerra
tudo quanto eu possa ambicionar. Quero viver aqui cem anos e
casar quatro vezes.


83


Cal associou-se ao riso de Georgiana, provocado pelo
chiste de Merry. Depois, o buzinar rouco de um automóvel fez
Cal retomar a noção da realidade. Wess estava quase a
alcançá-lo. Cal continuou, agora descendo o tortuoso declive,
para logo iniciar nova subida em direcção à zona densamente
arborizada que se estendia para Este.
- Estou quase... gelada - disse, então, a jovem.
- Isso é mau, porque eu não trouxe nenhum abafo. Não tem um
casaco?
- Sim, tenho um bem bom e uma camisola também, mas não posso
tirá-los agora da mala - respondeu ela.
Estava de facto a tremer. Com o pôr do sol e a subida de
altitude, o ar tinha-se tornado mais frio, com a
característica peculiar das terras desérticas.
Pela primeira vez, deliberadamente, Cal mirou-a dos pés à
cabeça. O vestido, ligeirot que ela levava, descido de gola e
demasiado curto, não era trajo para usar em Tonto, à noite.
Uma rapariga tinha de vestir tecidos de lã.
- Se... se tem frio... porque não se veste de forma
diferente? - perguntou, num tom que pretendia ser casual,
embora não o fosse.
- Não gosta deste vestido? - retorquiu ela rápida.
- Devo dizer-lhe que não - disse ele.
- Que tem ele? - acrescentou ela, vivamente interessada. - É
a nova... linha. Todos os rapazes disseram que era bem catita.
- Rapazes! Que espécie de rapazes?
- Essa agora! Todos os meus amigos.! - redarguiu ela, num
tom perigoso que foi para ele um aviso. Em seguida, como ele
não respondesse, repetiu: - Que tem de mal o meu vestido?
Estou a ver que é o ditador da moda nesta terra "maravilhosa",
não?
- Não percebo nada de modas nem de trapos - disse Cal,
atingido pelo sarcasmo dela.
Mas tenho um pouco de bom senso. Esta região é montanhosa.
Aqui, neste local, estamos uns seis mil pés acima do nível do

mar. E estamos ainda a subir. Metida nessa... nessa coisa, vai
ficar inteiriçada. É muito fino... muito, decotado... e
imensamente curto.
- Como havia eu de saber que vinha para as montanhas onde de
Verão é Inverno? Mas, mesmo que soubesse, continuaria a usar o
mesmo, apenas com o casaco pelos ombros... Senhor Thurman,
talvez lhe interesse saber que no Inverno passado, todas as
senhoras da moda usaram: saias quase pelo joelho, meias de
seda e rendas. e sapatos de salto raso. E agora? Percebeu,
senhor Robin dos Bosques?
- É realmente muito interessante - respondeu Cal, no mesmo
tom azedo. - As mulheres do Este vestem desse modo?... , No
Inverno?
- Sim.
- Quando faz frio?
- Sim, frio de rachar, de partir pedras, abaixo de zero -
replicou ela, triunfante.
- Então, são doidas, doidas varridas, miss Nova Iorque.
- A sua maneira de ser é terrível - disse ela,
calorosamente. - Não percebo como é que a minha irmã simpatiza
tanto consigo... Era preferível eu ter vindo com o senhor Bid
Hatfield.
Cal sentiu o sangue inundar-lhe e queimar-lhe o rosto. Que
arisca que ela era. - Pensou que a odiava.
- Obrigado. Não, é provável que eu esqueça esses dois
discursos seus! - exclamou ele. - Tem de aprender as maneiras
do Oeste, miss Stockwell, e arrependo-me de ter sido
suficientemente tolo para abrir a boca. Não nos entendemos um
ao outro... E, quanto ao que disse de Bíd Hatfield, quero
informá-la de que é um cavalheiro quem a leva a casa neste
momento, apesar de ser um homem rude.


84 85


Se tivesse vindo com Hatfield, teria sabido bem o que é que
ele pensa das suas meias à moda.
Ela tornou-se pálida e permaneceu imóvel, olhando em frente.
Depois, falou em tom diferente.
- Está a falar com verdade ou é apenas arrebatamento? -
inquiriu, calma. - Está a ser justo para o senhor Hatfield?
- Justíssimo. Podia contar-lhe muita coisa mas, para já, só
lhe digo que ele uma vez insultou a minha irmã... Um dia, sou
capaz de o matar.
Isto acabou de a convencer e voltou-se para ele, com a
expressão suavizada.
- Creio que devia pedir-lhe desculpa por... por falar tão
familiarmente de vestidos de senhora - acrescentou Cal,
intencionalmente. - Mas, nunca o teria feito se não tivesse
dito que se sentia enregelar.
Qual teria sido a resposta dela nunca Cal o saberia, pois,
quando se voltou para ele, o motor deu um estoiro, o volante
deixou de actuar na direcção e o carro caiu numa vala, com um
som cavo.
- Amigo, estamos arrumados - exclamou Merry, alegremente.
- Acabou-se a história - acrescentou Georgiana.


86

Capítulo V


- Miss Georgiana, está ferida? - perguntou Cal, notando,
subitamente, que a cabecita da jovem se lhe apoiava com força
contra o ombro.
- Eu... parece-me que... não - respondeu ela, trémula.
- Devo ter... torcido o pescoço.
- Oh, coitadinha! - disse Cal, já sem qualquer sombra de
ressentimento.
O chapéu dela tocava no rosto dele, a face apoiada no seu
ombro, escorregando depois um pouco. As mãos pareciam inertes.
Como era frágil e franzina! De novo o peito do rapaz entrou em
ebulição,, estremecendo convulsivamente. Passou o braço em
torno dela, mais para não a incomodar do que para outra coisa.
Contudo, quando a delgada figurinha pareceu descair um pouco
mais, agora mais perto dele, experimentou uma confortável
sensação de robustez, de força para a amparar. Iria ela
desmaiar? Que havia de fazer?
- Tuck, receio que ela esteja ferida - disse, a medo.
Que havemos de fazer?
- Amigo, ela não pode estar muito mal - respondeu Tuck,
saltando para fora do carro e indo à frente observar
Georgiana. - Parece-me que basta esse tratamento... -
continuou, com intenção subtil. - Vá-a segurando, até ela se
refazer... Já oiço o outro carro; não deve tardar muito.
Ao ouvir isto, a rapariga moveu-se, sentou-se e afastou-se
de Cal, o que fez desaparecer a ansiedade deste.
- Vocês sempre me saíram dois espertalhões! - disse ela, em
voz completamente diferente.


89


Merry soltou uma alegre gargalhada mas Cal limitou-se a
olhar para ela. æ luz fosca do crepúsculo tornava difícil de
distinguir o rosto da rapariga na penumbra da vala. Parecia
pálida, meiga, o que excitava Cal ainda mais. Os seus olhos
eram dois poços profundos e escuros.
- Espertalhões? - repetiu, embaraçado.
Porque é que diz isso?
- Devia dizer mais ainda. Guiou como um motorista
embriagado, e o seu Tuck Merry deixou-me quase morrer de frio,
quando tem com ele um pacote de cobertores ou roupas.
- Muito bem - declarou Tuck, com rapidez. - Não há dúvida
que a esperta é ela.
E, estendendo a mão para o pacote, desatou-o e tirou dele um
cobertor.
- Deixe-me embrulhá-la com isto - disse.
- Obrigada, Tuck - disse ela, encostando-se para trás,
coberta dos pés à cabeça pelo cobertor. - Agora onde vamos?
Cal estava sentado a olhar para ela, silencioso. Finalmente,
desviou o olhar. Preferia que ela ficasse convencida de que o

tinha enganado, quando, na verdade, ele tinha subitamente
adivinhado que ela se tinha encostado a ele e aninhado nos
seus braços por puro capricho ou malícia feminina.
Precisamente naquela altura, o grande automóvel com Wess e
os companheiros subia a parte final da encosta e foi parar do
outro lado do Ford.
- Ora cá estamos, nós - exclamou Wess, com impertinência. -
Deve ter-te dado muito trabalho, pôr o carro aí na vala.
- Cal, conseguiste andar meio caminho, - disse Pan Handle,
com admiração. - Quero pedir-te desculpa de ter dito que não
sabias guiar.


90

- Amigos, apostava que aquele tipo que veio com Cal é o
responsável de nos ter estragado a festa - resmungou Arizona.
- Oiça lá, seu trangalhadanças, - disse Tim Matthews a
Merry, que estava a examinar o motor. - Teve alguma avaria?
- Senhor, refere-se ao carro ou à menina? - perguntou Tuck,
calmamente.
- Ao carro,, seu palerma! - gritou Tim.
- Com que então, foram parar à vala, hem? - acrescentou
Wess, alegremente, enquanto descia do seu carro.
Agora é que foi mesmo, de vez, hem?
Todos se apearam, vagarosamente,, e encaminharam-se para o
Ford. O crepúsculo aprofundara-se, de modo que os rastos: mal
se distinguiam. Entretanto, Cal meditava sobre o Melhor
processo de salvar a situação. Se pudesse voltar as coisas
contra eles! Subitamente, o seu cérebro foi atravessado por
uma ideia ousada. Impulsivamente inclinou-se para a rapariga,
de forma a poder falar-lhe ao ouvido.
- Eles conseguiram troçar de mim. Se você fosse boa pequena
e esquecesse tudo quanto eu disse e estivesse do meu lado, eu
ainda podia derrotá-los...
- Vamos a isso. Estou pronta a cooperar - murmurou ela.
Cal retomou a sua primitiva posição, consciente de um íntimo
tremor. Como o afectava aquela rapariga! O seu doce murmúrio,
cheio de perdão e de lealdade, parecia ainda soar aos seus
ouvidos.
- Oli! - exclamou Cal, por fim. - Vocês já devem estar
satisfeitos. Conseguiram o que queriam: troçar mais uma vez do
bebé da família. Muito bem... Agora, oiçam. As coisas podem
ter sido bem intencionadas, embora eu não acredite em nenhum
de vocês, mas deram mau resultado. Sabem que eu sou um
condutor medíocre e, quando o motor falhou, assustei-me,


91


perdi a direcção, e caímos na vala.
Miss Georgiana feriu-se na queda. Já desmaiou duas vezes.
Receio que esteja mal... muito mal, mesmo.
Seguiu-se um silêncio de morte. Cal sentiu-se entusiasmado;
conhecia bem o coração generoso dos companheiros.

Se ela fizesse também o seu papel! Então, de repente, o
silêncio foi cortado por um pequeno gemido de dor: era
Georgiana, dando-lhe assim a prova de que era uma actriz
consumada e fazia o jogo dele. Teve dificuldade em conter a
sua exultação; ela era formidável!
- Oh, diabo! - gaguejou Wess, com sincero dó.
- Cal, não me digas que ela está gravemente ferida! -
exclamou Arizona.
Os outros dois rapazes estavam longe de apresentar o que
sentiam, especialmente Tim, que tinha sido o grande
organizador de tudo.
- Não fiquem aí a olhar como papalvos! - gritou Cal. -
Desocupem o assento de trás do carro para que a possamos
transportar lá.
- A culpa foi vossa - acusou Wess. - Agora, aviem-se.
Depois, aproximou-se do Ford do lado da rapariga e abriu a
porta. Ela jazia sobre o cobertor escuro, numa figura
singularmente inerte. Cal acercou-se mais de Georgiana e, com
todas as mostras de extrema ternura, meteu os braços por
debaixo dela e levantou-a. Ouviu-se outro leve queixume.
- Que negra sorte a minha! - exclamou Wess, com voz rouca. -
Cal, podes fazer-me o que quiseres, mas olha que não sou o
responsável. Foram Tim e Pan Handle...
Deixa-me ajudar-te... Isso, assim...
- Eu cá me arranjo - respondeu Cal, conseguindo, por fim,
sair do carro. Como ela era leve! Era capaz de a levar nos
braços até Green Valley. Em silêncio, os rapazes seguiram-no,
e ajudaram-no a entrar no outro carro, onde ele se sentou,


92


colocando depois Georgiana a seu lado. Todavia, ela continuava
encostada a ele... A boina tinha-lhe caído. Cal podia observar
a mancha branca do seu rosto e os grandes olhos estranhamente
escurecidos.
- Cal, é melhor amparares-lhe a cabeça - sugeriu Wess,
assumindo a chefia das operações. - Bem sabes que estrada tem
troços maus. Rapazes, metam no carro as bagagens todas... E
você, seu forasteiro magrizela, amanhe-se conforme puder aí
junto ao guarda-lama.
Em poucos momentos, tudo parecia pronto para o reatamento da
jornada. Tim e Pan Handle apertaram-se à frente, junto de
Wess, e Arizona foi para trás, ao lado de Cal.
Nesta altura crítica, Georgiana soltou um gemido que partia
o coração.
- Oh, senhor... Cal... pensar eu que rapazes tão novos...
podiam ser tão cruéis! - soluçou.
Cal, não seria melhor voltarmos para Ryson e ir ao médico? -
inquiriu Wess, de repente.
Cal pensou um momento, durante o qual Georgiana decidiu a
resposta.
- Levem-me... à minha irmã. Quero morrer... nos seus braços.
O meu pescoço está... partido... e não há médico que me
salve... Preciso... de um... padre... para rezar pela... minha
alma, porque eu sou...
uma rapariga muito estouvada. Oh, oh, oh...

A pequena embusteira apertava disfarçadamente a mão livre de
Cal, enquanto se lamentava. Era evidente que folgava imenso
com a maneira como auxiliava Cal a fazer sofrer os outros.
Nunca na vida tinha Wess guiado tão cautelosamente. Tnha
jeito para deslizar sobre a estrada áspera, escabrosa, sem
solavancos, de forma a não molestar a suposta sinistrada que
transportava. Pan Handle parecia profundamente triste,


93


enquanto Tim Matthews, o instigador do plano, passaria bem por
um criminoso a caminho do patíbulo. Não havia palavras que
traduzissem o seu estado. Quanto ao alegre, e despreocupado
Arizona, sempre metido em sarilhos por culpa dos outros,
estava amarfanhado ao lado de Cal, em indizível prostração.
Sempre que Wess abrandava por causa de alguma cova,
cruzamento- ou terreno resvaladiço, Georgiana aproveitava para
gemer dolorosamente,, não havendo a mais ligeira dúvida de que
a consciência de cada um dos culpados era acerbamente
espicaçada.
O carro passou as vedações dos currais, os estábulos,
telheiros, barracões, e parou diante do vasto edifício do
rancho, onde se viam janelas iluminadas.
Wess voltou-se, ansiosamente, para perguntar:
- Como está ela, Cal?
- Creio que não piorou - replicou este, na expectativa do
que iria suceder depois.
- Menina, eu... eu faço ardentes votos por que esteja melhor
- articulou Wess, vacilante.
Manifestamente, estava com receio de que tivesse sucedido o
contrário, e Cal pôde observar como todos ficaram pendentes da
resposta da rapariga.
- Obrigada... Creio... que estou um pouco melhor - disse
ela, languidamente. - Aquela dor grande... passou-me... e
estou mais aliviada. Parece-me que, afinal, não parti o
pescoço. Por favor, desculpem-me.
Wess contorceu-se e amaldiçoou Intimamente a sua desventura.
O mal audível pedido de desculpa que a jovem balbuciara fora a
derradeira estocada.
- Wess, vai lá dentro e conta tudo à professora, mas sem a
assustares - disse Cal.


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Meu Deus! Cal... eu não sou capaz de ir dizer a Miss
Stockwell o que fizemos à sua irmã. Não sou capaz... - disse
Wess, horrorizado, com a perspectiva. Cal sentiu um leve
beliscão no braço.
- Senhor Cal.--- entre, por favor, e vá dizer à minha irmã -
pediu Georgiana. - Minta-lhe. Diga que estou fatigada...
adoentada. Depois, venha ter comigo. Tenho medo de não poder
caminhar.
- Eu levo-a - interrompeu Wess, com veemente solicitude.
- Oh, não, obrigada. O senhor Cal sabe perfeitamente fazê-lo

- respondeu ela, graciosamente. - O senhor pode levar a minha
bagagem.
Cal saiu, levando consigo mais uma prolongada e encorajante
pressão daquela pequenina mão. Entrou em casa a correr. O
vasto "living-room" estava iluminado por dois candeeiros,e
pelas achas incandescentes que ardiam no enorme fogão de
pedra. Henry Thurman ergueu os olhos do seu jornal.
- Ora até que enfim, Cal, - disse, com um sorriso que
adoçava a rede de finas rugas do seu rosto, Maciço.
Era umhomem robusto, de cabelo grisalho, sem barba, a figura
autêntica de um pioneiro. A mãe e a irmã de Cal gritaram ao
mesmo tempo, da cozinha, que o jantar estava pronto.
- Venham cá - pediu Cal. E, quando, elas entraram na sala,
com ar de satisfação, Enoch e Boyd fizeram igualmente a sua
aparição.
- Oiçam, mas não se assustem. Houve um ligeiro acidente.
Tenho de comunicar à professora. Depois, trago a irmã. Esperem
e não se apoquentem.
Quando Cal se afastou, o pai resmungou:
- Que é que sucedeu a este rapaz?
O quarto de miss Stockwell era ao fundo da sala sul. Cal
bateu à porta e chamou:
- Professora, está aí?


95


- Cal, é você? - respondeu ela, alegremente, do lado de
dentro.
Depois abriu a porta. Vestia de branco e o seu rosto
simpático exprimia impaciência, embora ansioso.
- Professora - murmurou Cal, contentíssimo. - Georgiana,e eu
conseguimos ludibriar Wess e os outros.
- Sim? Isso é óptimo: conte-me cá: onde está Georgie? Está
boa?
- Oiça, não posso contar-lhe tudo agora - prosseguiu ele,
ofegante. - Os rapazes avariaram o Ford e este foi-se abaixo,
como eles tinham planeado. Fingimos que Georgiana se tinha
ferido, no acidente,, mas foi mentira. Wess e os outros
ficaram alarmados. Agora, o seu papel é mostrar que está
terrivelmente zangada quando Wess vier. Percebe?
- Sim, Cal, compreendo. Farei isso mesmo,, mas avie-se -
replicou ela.
- Vou mandar entrar Wess e os companheiros. A senhora fica
aqui e supõe-se que pensa que Georgiana está gravemente ferida
por culpa deles. Depois, mando-a entrar a ela. Vai ser lindo!
E com estas palavras afastou-se e, transpondo o alpendre,
deu a volta ao edifício e saiu a cancela, em direcção ao
carro. Todos os rapazes esperavam, cabisbaixos.
- Agarrem toda a bagagem que puderem - disse Cal, secamente.
- E você, Tuck, vá com eles. Eu me encarrego da menina.
Quando os quatro rapazes, pesadamente carregados, tinham
desaparecido, Cal aproximou-se do carro.
- Venha agora. Vamos ter festa. Combinei tudo com a sua
irmã. Está pelos ajustes com tudo.
- Estava com medo de que estragasse o resto do jogo -
replicou Georgiana. - Eu não queria que Mary se assustasse.


96


- Oh, ela sabe, ,não se apoquente. Vai tratar-lhes da saúde
antes de nós entrarmos... Vamos.
- Estou toda amassada - queixou-se a jovem, cambaleando ao
descer do carro. Depois, hesitou, olhando para Cal. O reflexo
das janelas iluminadas fazia brilhar o seu rosto.
- Tenho de fazer de conta que estou aleijada, não é? Tenho
de andar?
- Eu... sim. com certeza. Pode caminhar até à porta. Depois,
eu levo-a.
Embaraçado e sem saber como a transportar, Cal limitava-se a
olhar para ela, que parecia uma verdadeira mulher,
infinitamente senhora de si, para além da compreensão de Cal.
- Cal, você é um actor muito razoável - disse ela, por fim
-, mas, quando se trata de "ser decidido", é muito fraquinho.
- Ser decidido? Que diabo é isso?
- A sua educação foi muito descorada. Se chegar a ficar
aqui, tenho muito que lhe ensinar.
A porta da casa abriu-se, deixou sair um jorro de luz e
voltou a cerrar-se.
- Vamos - disse Cal, novamente tomado do desejo de apreciar
o resultado da sua partida.
Georgiana apanhou o cobertor caído aos seus pés e seguiu o
rapaz para o edifício.
- Oh, escute... - sussurrou ele.
Ela agarrou-lhe o braço, estremecendo.
- ... fizeram à minha irmãzinha? - ecoou a voz sonora de
miss Stockwell, furiosa.
- Professora, o caso foi assim, - respondeu Wess,
humildemente. - Nós avariámos o carro, mas o palerma é que se
deixou cair na vala e a sua irmã ficou ferida. Mas, valha-me
Deus...
- Seus bandidos! - trovejou miss Stockwéll, em ira terrível.


97


- Seus miseráveis! Já não bastava atormentar uma alma nobre
como a de Cal, e ainda por cima provocaram o acidente que
vitimou a pobre pequena! É revoltante! Deviam ser chicoteados!
E, se a minha irmã morrer, mando-os enforcar!
Georgiana comprimiu o braço de Cal.
- Aí, valente! Agora, entramos nós, Cal, tape-me com o
cobertor e leve-me para dentro. Tome um ar solene, de profundo
desespero. Depois de ter representado, a sua parte na
tragédia, ponha-me no chão e deixe o resto comigo.
Cal cobriu o rosto dela com uma ponta do cobertor e tomou-a
nos braços. Ela fez o corpo morto como uma saca vazia, com um
braço pendente e a cabeça tombada para trás.
- Abram a porta - disse ele, com voz cava.
Foi Tuck Merry quem abriu e, ao fazê-lo, ostentava a
expressão mais maravilhosa que Cal lhe tinha visto. Na sua
lealdade, um prolongamento da farsa, fazia esforços
extraordinários para se mostrar triste e pesaroso, enquanto

todo o seu ser queria rebentar em gargalhadas.
Com um olhar em volta, Cal observou os presentes. A mãe e a
irmã, de aventais brancos, fitavam-no e ao seu fardo, numa
perturbação verdadeiramente real. O seu velho pai estava de
cabeça à banda, observando-o com extrema curiosidade. Contudo,
o seu sorriso ligeiro não ocultava alguma ansiedade. Enoch e
Boyd pareciam intrigados. Miss Stockwell estava no meio do
quarto, parecendo mais pálida no seu vestido branco, com os
olhos negros brilhando de maravilhosa excitação, na direcção
de Cal. Em frente dela, alinhados como se estivessem prontos
para uma execução,, estavam Wess, Pan Handle, Arizona e Tim,
todos pálidos, acabrunhados, traindo a sua culpa e honestos no
seu remorso.


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Sem mais delongas, Cal colocou Georgiana de pé e, com um
movimento lesto, arrancou-lhe o cobertor. DevIa ter surgido
para quase todos como uma visão irreal. Sem chapéu, com os
caracóis dourados em desordem, rosto radiante, palpitante de
vida e de alegria, soltou uma exclamação de prazer e
precipitou-se nos braços abertos da irmã.
- Oh, Mary, Mary, como estou contente! - disse, com voz
trémula.
- Georgie, querida! - exclamou a professora, com profunda
emoção, estreitando-a contra si e beijando-a repetidas vezes.
Cal desviou o olhar, para observar os quatro réus.
Saboreava, agora, a sua vingança consumada. Como se mostravam
surpresos e estupefactos. Os seus cérebros trabalhavam
vagarosamente. Olhavam boquiabertos. Ainda não haviam começado
a compreender o significado da cena.
De repente, então, Georgiana voltou-se nos braços de sua
irmã e, com a luz do candeeiro incidindo sobre o seu rosto
aveludado, as pupilas desferindo cintilações e um sorriso que
lhe fazia aparecer duas covinhas no rosto, pareceu a Cal a
criatura mais linda que ele havia visto. O seu grande momento
tinha chegado, mas não iria ser o que ele tinha calculado. A
tremenda opressão no seu peito parecia esperar a leitura de
uma sentença.
- Senhor Cal, conseguimos enganá-los, não é verdade?
- Exclamou ela, alegremente.
Cal só fazia olhar para ela. Naquele momento, o não-sei-quê
que ele odiava nela tinha-se desvanecido e ela mostrava-se
como uma simples rapariga, terna e plena de juventude e
vitalidade, envolta num clarão encantador. E, então, a verdade
surgiu-lhe em cheio: estava apaixonado por Georgiana.
- Oh! - exclamou Wess, respirando profundamente, com
expressão de alívio.
Era um batoteiro enganado com a sua própria trapaça, mas,


99


de qualquer modo, sentia-se quase feliz com a sua derrota.
- Menina... afinal, não está ferida? - gaguejou Arizona,

começando a reagir.
Georgiana olhou os dois com malícia e, seguidamente os dois
principais culpados. Estavam abismados.
- Não me magoei, não - disse, suavemente. - Foi só para lhes
pregar a partida.
Naquela noite, Cal foi comer à segunda mesa com os rapazes e
Tuck Merry e, em seguida, evitou o "living-room", onde o pai e
Enoch continuavam a comentar os acontecimentos. Raramente
tinham tão boas ocasiões para se rirem de Wesse, dos do seu
grupo. Mas, Cal nunca chegou a tirar todo o proveito do
divertimento, que imaginava ter. A experiência ia custar-lhe
cara.
Após a refeição, levou Merry para o seu cubículo e pô-lo à
vontade.
- Tuck, pode ficar aqui comigo até se lhe destinar um lugar
definitivo.
- Está bem - respondeu Tuck. - Amigo, oxalá não me acorde
deste meu sonho. Já viu como me sinto feliz aqui? Ainda há
tipos com sorte. Cal, eu gosto de vocês. O seu pai caiu-me no
goto. Só o modo como ele se ria de Wess! Não há dúvida que
vocês conseguem ter graça.
- -Sim, mas, às vezes, também exageramos - afirmou Cal, com
modéstia.
- Também o creio e isso, por vezes, pode dar mau resultado.
- Ora adeus! Tuck, as rixas são coisa tão vulgar como montar
um cavalo. São... mais uma distracção para nós.
- E eu vou entrar no ambiente dos Thurman, tambem?


100


- De certeza. O pai está satisfeito consigo. E quando ele o
vir a jogar o boxe...
- Amigo, não desfazendo nos seus desejos, gostava de
arranjar primeiro amigos entre os rapazes.
- Tuck nunca há-de ter amigos aqui senão depois de lhes dar
uma boa tareia. Deixe isso comigo. Trate do seu serviço e
porte-se como... no caso de Bloom. Oh, não consigo
esquecer-me! E, quando eu der o sinal, faça o mesmo que lhe
fez a ele.
- Combinado. E, amanhã, começaremos com as lições de boxe.
- Acho bem - respondeu Cal, mas sem o seu primitivo
entusiasmo.
- Amigo, você parece desanimado, - continuou Tuck,
amigavelmente.
- Não há dúvida. Foi um dia tormentoso para mim.
- Mas, ao fim e ao cabo, conseguiu envergonhar aqueles
cabeças de atum. Aquela garota é um mimo, não acha?
- Tuck, eu já não sei o que é que acho - replicou Cal,
baixando a cabeça.
- Amigo, eu sei o efeito que ela produziu em si. A mim,
sucedeu-me o mesmo e a Wess e aos outros e a todos quantos
vestem calças, meu rapaz. Estas garotas modernas têm feitiço.
Tenho uma irmã como Georgiana. Que rapariga! Hei-de contar-lhe
coisas dela, mas não esta noite, Também me sinto fatigado...
Vamos à deita.
Cal, todavia, não foi logo para a cama. Saiu e foi passear

durante um pedaço.
Cinco ou seis horas antes, ele tinha sido Cal Thurman; mas,
agora, estava mudado. Algures nesse intervalo de tempo,
tinha-se enamorado de Georgiana May Stockwell. Ponderando
nessa estranha mas inegável circunstância, concluiu que tinha
sido um amor à primeira vista. Todavia, quando pensava em
Georgiana, na sua forma invulgar de proceder, na sua


-101-


graciosidade e fina elegância, no seu rosto doce e pálido,
caracóis de oiro, nos olhos azuis-escuros, que olhavam como
mais nenhum, quando recordava a estonteante proximidade dela e
a maneira audaciosa como ela se comportara, então todo o seu
raciocínio entrava em eclipse. E o seu coração sofria.
E, assim, Cal ia calcando a erva que semeava o solo, vítima
inocente do tormento, da dor e da angústia de um amor que
despontava num coração sincero.


102


CAPíTULO VI


Miss Stockwell, nas suas reflexões, concluíra que já
temia os domingos, quando, antigamente, representavam para ela
magníficos dias de descanso, das suas actividades escolares. A
causa era Georgiana. Nunca na sua vida um período de três
semanas tinha sido tão repleto de - amor, espanto, ternura e
medo... E naquela tranquila manhã de sábado, enquanto
Georgiana recuperava as horas de sono perdidas, Miss Stockwell
entretinha-se a desenredar o caos da situação.
O facto- mais notável e consolador relacionado com a chegada
de Georgiana era que o amor que dedicava, anos atrás, à sua
irmã não tinha esmorecido e reacendera-se naquelas curtas
semanas de intimidade. Aquele amor e só aquele amor fazia Miss
Stockwell conservar-se fiel à tremenda responsabilidade que
seus pais lhe haviam confiado.
Julgada superficialmente, Georgiana parecia uma rapariguita
bonita e cheia de vida, trazendo consigo os vestidos, hábitos
e artimanhas de retórica do Este, e não tinha sido
compreendida. Os rapazes de Tonto pegavam-se-lhe como abelhas
em torno do mel. Para eles, ela era uma espécie nova,
estranha, provocante, irresistível. Para as raparigas, tinha
sido uma revelação, uma criatura maravilhosa ostentando o
estandarte da liberdade, independência e governo, que pareciam
nascer com todas as mulheres dos tempos modernos. Haviam já
começado a imitá-la no trajar, nas maneiras, no calão, até no
modo de pentear o cabelo. Isto foi o suficiente para inquietar
o ambiente sossegado de Tonto. Para as mais velhas,

105


Georgiana era uma rapariga incompreensível, uma ameaça e uma
intrusa.
Para Miss Stockwell, esta irmãzinha era adorável, apesar de
tudo quanto podia dizer"se contra ela, o que não era nada
pouco. Enquanto Georgiana fosse requestada, adulada, e a
deixassem à vontade, era meiga, agradável, um amor de
rapariga. Mas, bastava contrariá-la um pouco e era logo outra
pessoa. E era impossível deixar de a contrariar, porque
Georgiana estava continuamente a pensar em qualquer coisa
nunca vista antes em Tonto.
Miss Stockwell verificava que tinha agora a seu cargo, na
pessoa da sua irmã de dezassete anos, uma das raparigas
modernas prejudicadas pela guerra e pela renovação de um mundo
efervescente, -do tipo que causava o assombro dos mestres,
padres, educadores, e horrorizava os velhos, e sensatos
americanos.
Georgiana era esperta, embora detestasse o estudo.
Desprezava a lida da casa ainda que sua mãe lhe tivesse
ensinado tudo. Aborrecia-a qualquer espécie de trabalho. Era
esta a sua faceta. artificial, material, mais difícil de
compreender. Miss Stockwell revolvera o cérebro, tentando
perceber Georgiana nesse aspecto., mas em vão. A rapariga
viera de um mundo inteiramente novo para Miss Stockwell, que
estava no Oeste havia apenas seis anos.
Georgiana era namoradeira, travessa, terna, brincalhona e,
aparentemente, inocente de deliberação, mas, todavia, amiga de
namoriscar. Os seus atractivos tornavam essa propensão para os
idílios um assunto vastamente mais sério do que se não tivesse
trazido do Este a modéstia no vestir, a liberdade de palavras,
xxo exagero das acções e a fatal fascinação de conseguir
impor-se. Miss Stockwell verificara que aquele procedimento
não se amoldava aos usos do Oeste. A lei daqueles rapazes
escorreitos, varonis e honestos de Tonto não consentia os
hábitos de Georgiana.


106


Se nenhum deles tomasse a jovem a sério, talvez não houvesse
catástrofe. Mas, Miss Stockwell acreditava que um deles já se
havia prostrado diante do altar dos seus encantos - Cal
Thurman, o melhor de todos. Cal tornara-se estranhamente mais
velho, naqueles dias. Aonde conduziria aquilo, se Georgiana
persistisse no seu hábito de "dar sorte" a todos? Dava a
impressão de que Georgiana tinha chegado a Green Valley como
uma rapariga superficial, egoísta, inconsciente, sem alma,
cujo único fim aparente fosse tornar-se provocante e
irresistível para o sexo oposto e brincar com eles. O Oeste,
com a sua franqueza e naturalidade, a simplicidade da sua
gente e a necessidade de desenvolvimento da força física,
havia de a modificar, a menos que alguma catástrofe
interviesse para a mandar embora para o Este ou aniquilá-la.
Miss Stockwell tomou uma decisão, naquele dia, por ela e por
Georgiana: que o Oeste necessitava de ambas para sempre.

Assim, escreveu uma longa carta à mãe, contando muitas coisas
sobre Georgiana, embora omitindo as que a poderiam entristecer
ou assustar, e concluindo com a menção da importante decisão e
de como ela seria importante para todos. Disse ainda que, um
dia, ela e Georgiana haviam de ir fazer uma visita aos pais.
Os filhos daquelas montanhas precisavam de educação. Era uma
região selvagem, agreste e pouco povoada, onde apenas alguns
meses na Primavera e no Verão as crianças iam à escola. Ela
adorava o seu trabalho e sabia que era uma nobre missão e, se
necessário, podia devotar a ele a sua vida. Mas, tinha poucas
esperanças na realização do seu sonho.
- Mary, estás cá esta manhã? - perguntou a voz lânguida de
Georgiana, do pequeno quarto interior.
Aquele quarto era uma espécie de barraca anexa ao extremo da
casa. Georgiana pedira a Cal que lho enfeitasse com cobertores


-107-


índios nas paredes e péles de veado no chão e, assim, nuns
aposentos acanhados, com a mobília necessária e os seus
pertences, ela era feliz.
- Sim, estou aqui, Georgie. Já me levantei há que tempos e
escrevi uma carta à mãe.
- Por amor de Deus, traz-me uma pinga de água - pediu
Georgiana. - Ainda falam do gosto a papéis de música... Ora
adeus! O ingrediente que estes tipos de Tonto chamam "mula
branca", dá, realmente, um grande coice!
Mary encheu um copo de água na torneira e levou-o à irmã,
sentando-se na cama dela. A rapariga soergueu-se e recostou-se
comodamente nos almofadões. Com os olhos ensonados e o suave
tom rosa-dourado da sua pele, fresca como a própria manhã, os
braços nus e esbeltos sobre a colcha, era, de facto,
lindíssima.
Georgiana bebeu a água toda e não pareceu saciada.
- Georgie, tu bebeste, realmente, daquela bebida que eles
chamam "mula branca"? - perguntou Mary, com ar sério...
- Bebi - respondeu a irmã, dando um soluço. - Mas chegou! Cá
a pequena teve a impressão de levar e não de mula.
- Onde é que estiveste a beber?
- Alguns de nós fomos ao restaurante de Ryson petiscar,
cerca da meia-noite. Aos sábados, a essa hora, acabam os
bailes. Bem, Bid Hatfield estava connosco à mesa e tinha um
frasco. Desafiou as raparigas a beber um golo daquela mistela.
Eu estava com curiosidade, mas não queria beber. Odeio os
ébrios. As outras provaram e, depois, foi a minha vez, só para
experimentar. E foi isto. Acredita que não volto a tocar
naquilo.
- Não? Prometes-me?
- Olha lá, eu não tenho nada que fazer promessas.


108


Detesto promessas. Não voltarei a beber porque fiquei doente.
- Georgie, não simpatizo muito com Bid Hatfield - disse

Mary, pensativa. - Admira-me ter ido contigo, estando tu com
os Thurman.
- Boyd também não gostou... Eu te conto, Mary, não me
interessa Bid Hatfield para nada, excepto para o trazer atrás
de mim como um cãozinho. Tem muitas peneiras porque estas
damas, de Tonto, estragaram-no, acredita.
- Cal estava lá?
- Chegou a cavalo, - replicou Georgiana, com subtil mudança
de tom. - Mas,foi tarde. Eu estava a ensinar um jogo aos
rapazes e raparigas. Cal viu-nos e ficou escandalizado. Que te
parece?
- Não me parece nada, querida Georgie, - disse Mary, com
ardor. - E se nós tivéssemos uma grande conversa, não apenas a
respeito de Cal, mas de todas as coisas?
- Oh, meu Deus! Lá vais tu fazer-me outro sermão -
queixou-se Georgiana.- Mary, já me bastou em casa. A mãe
andava sempre em cima de mim, a descompor-me porque eu não era
como ela nos seus tempos. Não podia compreender. O pai também
não. Nenhuns dos pais das outras raparigas viam que nós somos
diferentes. Os tempos mudaram. Não queremos ser mandadas.
Queremos ser aquilo que quisermos e isso é que os velhotes não
levam à paciência. Ora adeus! É uma das razões por que eu
estava tão desejosa de vir para o Oeste. Mary, tu, a
princípio, eras maravilhosa. Parecias compadecida de mim e,
mesmo quando não concordavas com uma coisa ou outra, não me
ralavas. Mas, Ultimamente, tenho-te tido à perna.
Miss Stockwell ponderou, por momentos, enquanto fitava a sua
rebelde irmãzita. Compreendia,, por fim, que Georgiana nunca
poderia ser subjugada. Uma oposição provocaria desastre.


109


Era preciso arranjar outro processo para a influenciar, se tal
fosse possível.
- Não, querida, não vou fazer-te um sermão, como tu lhe
chamas - disse Mary, suavemente. - Mas, como vamos viver
juntas e tenho de tomar conta de ti até estares boa e forte,
não será justo que conversemos... para estudarmos os pontos de
vista, de cada uma?
- É de facto. Vou tentar. Mas ainda sou nova... estou a
crescer e só serei nova uma vez. Quero divertir-me. Percebes?
- Creio que sim - respondeu Mary, medindo as suas palavras.
- É a juventude... Eu sentia quase o mesmo quando tinha
dezassete anos, o suficiente para te compreender agora. Porém,
a tua atitude é um exagero. desse sentimento, embora tu não
sejas de modo algum uma louca.
- Não, e é precisamente por isso que as teorias velhas não
se dão bem comigo - respondeu a rapariga.
- Por teorias velhas, significas religião, educação, finura
de trato, amor e casamento?
- Não. Quero dizer que, até agora, o mundo tem sido dos
homens - declarou Georgiana, com espírito. - Porque não
havemos de nos pôr ao alto? As tuas censuras vão sempre dar ao
mesmo: como me visto, ando, e actuo junto dos homens! É tudo.
Não há mais nada... Ora bem, nós, as garotas modernas pensámos
em tudo; somos espertas. Vemos como as nossas irmãs, mães e

avós têm sido governadas pelos "senhores" de criação. Pelos
homens! E não podemos tolerar isso, percebes? Vamos fazer tudo
quanto nos der na real gana e, se eles não gostarem de nós,
arredem. Mas, ora adeus! O caso é que ainda gostam mais de nós
assim.
Miss Stockwell esforçou-se por conter a sua consternação e
preparou-se para ouvir tudo quanto iria dizer aquela jovem do
século vinte! Não valia a pena sentir-se chocada.


110


Se se emocionasse, em nada ajudaria a perplexa situação. Se a
inteligência, a lógica, o bom senso persuasivo não atingissem
Georgiana, que havia a fazer? A rapariga era arisca, arisca
para os homens! Era espantoso. No entanto, Maryadmitiaque ela
tinha razão em certas das suas convicções. Havia um abismo
profundo entre a sua filosofia e a de Georgiana. Na sua irmã,
tinha-se desenvolvido uma decidida atitude para a vida, com a
marca vincada do materialismo.
- Georgie, continuaste a ir à igreja depois de que eu saí de
casa? - perguntou Mary, investigando outro ponto.
- Pensas que eu sou quem? - replicou Georgiana. - Deixei de
ir à igreja aos catorze anos e, mesmo assim, ainda fui mais um
ano do que queria. A Igreja é letra morta, Mary. Já ninguém lá
vai.
- Talvez isso justifique muita coisa - murmurou Mary.
O início de uma geração sem Deus!... Talvez não sejas
culpada pela tua falta de interesse pela Igreja.
Mary pousou um olhar grave sobre aquela petulante e
apaixonada rapariga e cogitou por momentos, buscando
inspiração. Mas, nenhuma parecia vir. Estava desorientada.
Porém... não seria o melhor processo de se aproximar da irmã -
falar-lhe com inteira franqueza?
- Muito bem, Georgie, vamos lá pôr tudo em pratos limpos -
disse, alegremente.
- Vamos a isso. - replicou ela, com certa dúvida no olhar.
- Tu gostas de mim?
- Oli, Mary, que pergunta! - exclamou Georgiana,
surpreendida. - Evidentemente que gosto.
- Ficarias no Oeste por tua livre vontade?
- De certeza. Pelo menos por muito, muito tempo... e talvez
para sempre, se conseguisse caçar um rancheiro simpático


111


e rico como Enoch. Mas, tu já lhe lançaste o teu olhar de
lince.
- Georgie! - protestou miss Stockwell, corando intensamente.
- Como te atreves...
- Oh, então, irmãzinha? Não falaste em pôr tudo em pratos
limpos? Apaixonaste-te por Enoch e, se tivesses juízo, ele em
breve iria comer à tua mão. É tímido, lento. Tem medo de ti,
pensa que estás acima dele. Mas, ama-te e, se o queres, não há
mais nada a fazer senão mandar repicar os sinos.

Mary cobriu com as mãos as faces escaldantes e tentou
dominar-se.
- És uma garota terrível, impossível de aturar...
- Dispenso o "garota", a não ser que te refiras ao meu
tamanho, querida irmã, - continuou Georgiana. - E,
acredita-me, Vi Enoch a olhar para ti quando tu não reparavas.
Agora, podes prosseguir o discurso.
- Onde ia eu? Ah, sim, concordaste que gostas de mim e
disseste que ficas no Oeste por tua vontade. Bom, até aqui
muito bem - recomeçou Mary, retomando gradualmente o fio do
seu pensamento. - Isso significa que ficas indefinidamente.
Agora, Georgie, admites que és muito namoradeira?
- Estás a intrometer-te na minha vida íntima e não to
admito! - replicou a rapariga, secamente.
- Não interessa. És, quer o admitas quer não. Voltando à tua
maneira de vestir, de agir, de falar... achas que é segura,
com um homem como Bid Hatfield?
- Segura? Ora adeus! Devo dizer que não - retorquiu
Georgiana, com admirável candura. - Ele é um homem das
cavernas... É por isso que eu gosto de o incitar. Faz olhos de
carneiro mal morto e pensa que é um "dom-joão". Por isso, é
tão fácil de levar.


112


- Acabaste de negar que és namoradeira - observou Mary.
- Certamente Posso saber uma coisa sem ser por experiêncía,
ou não posso?
- Bom, se és tão esperta como dizes e vês que esse tal
Hatfield é real mente um rapaz perigoso para uma rapariga
andar com ele, e se gostas da tua irmã o suficiente para lhe
evitares a vergonha e a infelicidade, como é que te propões
satisfazer as duas coisas?
- É símples como o à-bê-cê, queridinha - respondeu
Georgiana, com um sorriso radioso. - Sou demasiado esperta
para andar com Hatfield sem ser com companhia. Nem que me
pagassem. Por esse lado, não tenho receio do bruto... Vi Tuck
Merry pô-lo de rastos e aposto que eu também era capaz de o
conseguir. Mas por ti, Mary, não me arriscarei.
- Georgie, tu és espantosamente prudente - respondeu Mary,
tentando esconder a sua admiração e animosidade por aquela
incrível criatura.
Ao mesmo tempo, apetecia-lhe rir. A maneira como Georgiana
encarava os riscos! Certamente,, não era nenhuma tola,
quaisquer que fossem as suas fraquezas.
- Há outros homens como Hatfield - prosseguiu Mary.
Esse dá nas vistas porque os Thurman o odeiam, mas há outros
semelhantes. Hás-de encontrá-los.
- Eu sei. Já vi mais uns dois e não me enganaram, acredita -
replicou Georgiana.
- Estes rapazes não te compreendem, Georgie querida. São
tremendamente atraídos. És uma nova espécie de mulher. Estão
ansiosos por te conquistarem. Não conseguem ver a separação
que existe entre um namoro simples e... coisa pior. Nem que
fosses tu própria a fazer-lhes ver isso, o que, com certeza,
serás obrigada a fazer. Eu sei o que eles pensam e prevejo

tempos nublados que hão-de vir quando algum destes rapazes


-113-


incultos de Tonto se apaixonar verdadeiramente por ti. Isso
há-de suceder, se não sucedeu já.
- Já, sim, irmã - replicou a rapariga, rapidamente.
- O teu favorito, Cal Thurman perdeu a cabeça. Pediu-me... há
apenas três dias... que casasse com ele.
- Oh, Georgie, isso é terrível - respondeu Mary,
profundamente apoquentada. - Aí está o que eu receava.
- Ora! Também lhe faz bem - disse Georgiana. Precisa de ser
humilhado... A princípio, era um companheirão. Simpatizei com
ele, até que começou a tomar as coisas demasiado a sério e se
tornou irritável e ciumento. Ora adeus!
- Georgiana, a tua vaidade e estupidez maravilham-me. Esse é
um dos rapazes de quem não podes fazer pouco. Ao pedir-te que
o desposasses, provou as suas altas qualidades de honestidade.
Tenho vergonha de ti.
- Porquê, que diabo? Eu não o amo.
- Mas não te fizeste com ele, tal como com os outros? -
continuou Mary, em tom fulminante. - Sim, porque eu observei a
forma descarada como o fizeste.
Georgiana era incapaz de aguentar o olhar desdenhoso e
indignado da irmã e, por isso, baixou os olhos.
- Mary, não estamos a acertar uma com a outra, - admitiu. -
Garanto-te que gostava bastante dele, gosto, ainda, a falar
verdade, mas enjoou-me.
- Como? - perguntou Mary.
- Por causa dos outros rapazes... dos meus vestidos... e,
principalmente, pelos meus desmandos. Da última vez, zangou-se
porque coloquei o pé num muro e puxei a meia demasiado para
baixo, mesmo diante dele.
- Oh, valha-me Deus, tu és de todo!... E ele que fez?
- Desapareceu pior que uma barata - replicou Georgiana,
entusiasmada com a lembrança do facto. - Desde aí, não se
aproximou mais de mim. Mas, ontem,à noite, estava prestes a


-114-


"pegar" outra vez e só não o fez porque eu fiz aquele
disparate de beber, ele ficou novamente fulo. Dou-lhe um dia.
Depois, há-de cá vir às sopinhas, vais ver.
- Georgiana, esse rapaz é bom, íntegro e leal. É bom de mais
para ti; não alcanças a sua grandeza. Estás demasiado obsecada
pela tua determinação, parva, sentimental e vã de tirar o
melhor partido dos homens. Pensa no que eu te dísse - concluiu
Mary, levantando-se. - Não te importunarei. Gosto muito de ti
e só quero a tua felicidade. Não podes continuar nessa...
nessa provocação, pelo menos, aqui em Tonto. Acabas por
encalhar nos escolhos. Estes rapazes são rudes, primitivos,
amigos da paródia e das brigas e, nesse aspecto, parecem
sumamente interessados por ti. Mas, tu não compreendes a sua
reserva de forças. Digo-te que, no íntimo, são selvagens, têm

uma energia inata, herdaram a ferocidade e a bruteza de muitas
gerações passadas. E, acima de tudo, têm o seu código de honra
que nenhuma mulher pode atrever-se a infringir.
Miss Stockwell tentou lealmente sair de dúvidas quanto ao
proveito da sua conversa franca com Georgiana. Devido a isso,
todavia, sentia-se mais aterrada, pois, no seu entender,
cumprira o seu dever. O único resultado seguro, aparentemente,
era ter tornado aquela rapariga invulgarmente materialista
mais arraigada às suas ideias modernas e ter espevitado as
suas prosápias... Pior para o pobre Cal Thurman! Miss
Stockwell pressentia calamidade.
O domingo era o dia da família para os Thurman; tinham todos
saído para ir visitar parentes, deixando sós a professora e a
sua irmã a contas com o jantar. Em ocasiões anteriores, aquela
tarefa costumava recair sobre Mary. Contudo, naquele dia,


115


Georgiana, num dos seus caprichos, insistíu em Cozinhar ela
própria a refeição. Por isso, pôs um jeitoso avental branco,
enfeitado com rendas e foi para a cozinha.
- Irmãzinha, é sempre bom a gente aperaltar-se numa terra
estranha como esta. - observou. - æs vezes, pega. É o melhor
processo, digo-te eu.
- Georgie, vestiste o avental porque vais trabalhar ou vais
trabalhar para poderes exibir o avental? - perguntou Mary,
suavemente.
- Lá estás tu outra vez de faca afiada - respondeu
Georgiana, de bom humor. - Devias sentir-te lisonjeada pelos
resultados que vais conseguindo.
Meia hora mais tarde, Mary viu-se forçada a admitir que o
curso de ciências domésticas que sua irmã frequentara não
tinha sido totalmente desaproveitado...
- Georgie, afinal, tu podias dar uma razoável esposa -
murmurou Mary.
- Minha cara irmã, ouve bem isto - retorquiu Georgiana. -
Faço de longe uma esposa melhor que essas velhas pegas
antiquadas, com as suas falinhas mansas, as suas rendas e a
sua hipocrisia.
- Ah, então, sempre condescendes em imaginar que poderias
vir a casar-te um dia - riu Mary, sempre divertida com as
novas facetas da irmã.
- Não vejo como é que uma rapariga possa ter uma casa e
filhos sem marido - lamentou-se Georgiana.
Naquele momento, o áspero clip-clop de cascos de cavalo soou
no exterior.
- É Cal - disse Georgiana, rapidamente.
- Gostava de saber o que é que o traz por cá tão cedo.
- Tu, provavelmente - replicou Mary.
- Eu? Não acredito. Estamos de mal. Espera! Se ele entra e
vê a mesa posta, temos de o convidar para comer. irmã,
convida-o tu.
- Evidentemente que sim. Mas... como sabes que é ele? -
perguntou Mary, indo à janela.
- Conheço o trotar do seu cavalo.
Miss Stockwell olhou para a frente da casa e depois para a

estrada, até ao curral. Viu um cavaleiro debruçar-se da
montada para abrir a cancela. Quando ele se endireitou,
reconheceu Cal. Tinha o rosto ensanguentado e o fato azul
coberto de poeira amarela.
- Oh, que desgraça! - exclamou, sobressaltada.
Georgiana deu um salto e correu para a janela, espreitando.
Não podia, contudo, ver o que Mary tinha visto porque o rapaz
estava de costas para ela e a alta cancela obstruía a visão.
- Que aconteceu? - indagou.
- Cal tem a cara coberta de sangue - respondeu a professora,
com voz desmaiada.
- Só isso? - perguntou Georgiana, sem interesse aparente.
E voltando para a mesa, continuou a mexer nas coisas. Porém,
a sua boa disposição e apetite anteriores pareciam ter-se
desvanecido! Uma ligeira ruga vincava a sua fronte aveludada e
o olhar era pensativo. Mary adivinhou que Georgiana estava
mais preocupada do que se atrevia a admitir.
- É capaz de não vir aqui - murmurou, depois.
- Certamente que não - declarou Mary, - Não o conheces
suficientemente para calculares isso?
- Cal Thurman? Conheço-o do direito e do avesso - respondeu
Georgiana, com desdém.
Depois, Miss Stockwell começou a comer, sem comentários,
embora silenciosa, talvez para ouvir melhor. O que ela
esperava, contudo, não se materializou. Então, levantou-se e
foi à porta das traseiras, que estava aberta, e olhou para
fora.


117


- Cal, -- chamou. Nenhuma resposta. - Cal!... Ah, já o vejo.
Que sucedeu?
- Aconteceu-me uma coisa.
- Diga-me! - ordenou ela, impaciente. Depois como ele não
respondesse, ela adiantou-se alguns passos. - Cal, venha cá,
se faz favor.
- Que é que quer? - resmungou ele.
- Se não vem cá, vou lá eu - ameaçou a jovem.
Foi a altura de Mary ir à porta espreitar o rapaz, que se
aproximava. Segurava um lenço manchado de sangue contra a
cara.
- Vem bonito, não resta dúvida - disse Georgiana, quando ele
subia os degraus. - Cal Thurman, você brigou outra vez!
- Era só isso que me queria dizer? - perguntou ele,
sarcástico, com olhar brilhante de desafio e expressão
transtornada.
- Isso e muito mais - respondeu ela, afastando a mão com que
ele segurava o lenço. Destapou-lhe o rosto, deixando a
descoberto um golpe de onde brotava o sangue. - Oli! É
horrível, Cal. Tão perto da vista! Deixe-me lavar a ferida e
fazer um penso.
Voou para o interior da casa, com uma excitação que Mary
nunca lhe tinha visto antes.
- Cal, andou outra vez à bulha? - perguntou Mary,
gravemente.
- Havia de ver como ficou o outro - disse Cal, com um

sorriso triste.
- Quem?
- Não interessa, professora. Só lhe digo que não fiquei a
perder.
Antes que Mary pudesse fazer mais perguntas, Georgiana
voltou com as mãos atafulhadas de coisas, entre as quais se
destacavam uma bacia com água e uma toalha.


118


Cuidadosamente, então,, lavaram a ferida de Cal, que era
dolorosa mas superficial e procuraram ligá-la. Mas, Cal
protestou contra ficar mais cego com a ligadura, de modo que o
penso acabou por ser feito com gaze e adesivo. Depois,
Georgiana afastou-se um pouco e olhou-o com ar de proprietária
dele.
- Cal, venceu-o? - perguntou, com curiosidade.
- Foi meio por meio, desta vez - respondeu ele, com
amargura.
- Quem foi?
- Que lhe importa isso, Georgiana? - perguntou Cal.
- Eu sei. Eu leio no seu pensamento, Cal Thurman. -Bom, se o
consegue, não há dúvida que se mostra surpreendemente alegre e
feliz - disse ele, com ironia.
Esta resposta ou qualquer outra razão desconhecida por Mary
tirou quase toda a vivacidade a Georgiana. Parecia ter falta
de palavras. Então, subitamente, ela teve uma das suas
habituais reviravoltas e tornou-se suplicante.
- Cal, entre e veja a bela refeição que eu preparei, tudo
feito por mim. Chega bem para si, também. Não quer... só para
me ser agradável? Vê como eu posso e sei fazer coisas de
utilidade? Oli, lave essas mãos sujas e cheias de sangue... e
deixe-me escová-lo. Parece que andou a rebolar-se na estrada.
Em seguida, fê-lo entrar e conduziu-o para a mesa, onde Mary
se lhes juntou. Georgiana é que serviu, mas em silêncio. Mary
sentiu necessidade de aliviar a situação e conversou. Cal
perdeu a sua rabujice e o ar de carrancuda satisfação que
tinha antes e, gradualmente, foi tomado pelo encanto que
emanava de Georgiana. Mary imaginava que no espírito do rapaz
devia estar presente o provérbio: "Gato escaldado de água fria
tem medo", e que ele agia em conformidade. E, de facto,
manteve dignidade suficiente para Mary verificar que ele não
era palerma, por muito enamorado que estivesse.


119


Na opinião dela, Georgiana não conseguira a vitória que
apregoava aos quatro ventos e, naquele momento, adivinhava que
a irmã também já dera por isso, e o facto representava para
esta uma amarga e cáustica mortificação. A chegada de alguns
dos Thurman pôs fim àquela situação divertida mas embaraçosa
para Mary.
Mais tarde, Cal, tendo estado manifestamente à espera de
oportunidade, aproximou-se da professora quando ela estava só,

no quintal.
- Venha comigo... durante alguns minutos - pediu.
- Está bem, Cal, mas não ficará Georgie ciumenta?
- Por amor de Deus, não faça troça de mim, agora. É a única
pessoa amiga que tenho, além de Tuck, e a ele não posso contar
tudo. Professora, está do meu lado?
- Quer dizer a respeito de... de Georgie?
- Sim. Nunca falei consigo antes - prosseguiu ele,
respirando a custo. - Eu queria esperar. Pensei que
conseguiria dominar-me... Mas, fiquei pior. E hoje andei à
pancada com um tipo que... que falou mal de Georgie.
- Sim? - disse Miss Stockwell, calmamente, voltando-se para
fitar Cal.
Este estava pálido, sombrio.
- Não... não posso repetir o que ele disse - apressou-se a
objectar. - Isso não importa. Apenas... eu não pude conter-me.
- Cal, você não estará a tomar Georgie demasiado a sério?
- Reconheço que sim, mas não posso evitar. Não sei o que me
aconteceu, mas o facto é que aconteceu... Sempre está a meu
favor, professora?


120


- Certamente, Cal - respondeu ela, com sinceridade,
pondo-lhe uma mão no ombro.
- Obrigado. Isso sempre me ajuda - disse ele.
- Que é que quer de mim?
- Nem sei. Acho que me contento com que me compreenda... de
modo a poder abrir-me consigo. Receio bem que tenha de dizer a
Georgíe que... que o modo como ela se comporta... com os
rapazes... vai causar sarilhos aqui em Tonto. E tenho medo
também de que ela desconfie que estive a falar consigo, porque
é muito esperta.
- Cal, ainda hoje eu lhe falei nisso - retorquiu miss
Stockwell. - E disse-lhe abertamente que não pode continuar a
namoriscar todos.
- Namoriscar... A senhora já em tempos proferiu essa
palavra... E que disse ela?
- Riu-se na minha cara, não ligou importância à censura e
respondeu que não via perigo nenhum nos rapazes daqui.
- Ela chama-nos palermas - acrescentou ele. - Considera-nos
inofensivos.
- Oh, Cal, também não posso remediar nada - lamentou-se a
professora., - Estou em má posição. Tenho de cuidar dela. E
tenho de a aturar. Limito-me a orar e a ter esperança. Ela
é... um pequeno diabinho; mas, é minha irmã e, Cal, adoro-a...
Você, um dia, pode voltar-lhe as costas. E não era eu que o
censurava.
- Acha que posso? Pois, já o fiz, mas não resultou. Foi
ainda pior. Diga-me, professora, ensine-me o verdadeiro
caminho para conquistar Georgie.
- Cal, eu não sei... a menos que volte para ela. É o que
costuma dar resultado com as raparigas.
- Nunca adulei Georgiana May. Além disso, não posso voltar
para ela. Posso fingir, mas ela dá por isso. E é o que me faz
mal... é não poder disfarçar a minha mágoa...


121


Professora, estas três semanas têm sido três anos para mim.
- Cal, já pensou que deve continuar a tentar que Georgiana
goste de si?
- Professora, ela gosta de mim - replicou ele, rápido. -
Isso sei eu. Não consigo perceber é nada disto.
- Bem, então, deve procurar que ela goste mais ainda.
- É o que eu tenho feito.
- Bom, você tomou uma decisão - respondeu a professora. -
Viva para ela e faça quanto lhe for possível. Receio que
Georgie não mereça tanto e que você receba uma amarga
desilusão. Mas, se quer teimar, então, faça-o de corpo e alma.
Você gosta dela a sério, Cal, o que representa muitíssimo. Não
se envergonhe disso. Não se rale com o que eles digam, com as
partidas ou as piadas. Dos fracos não reza a história.
- O meu pensamento inclinava-se um pouco para essa teoria -
disse ele. - Hoje, convenci o meu pai a deixar-me instalar em
Rock Spring Mesa.
- Cal... não me diga uma coisa dessas!
- É verdade. E, amanhã, talvez mesmo esta noite... se esses
idiotas não me estorvarem... hei-de dizer isto a Georgiana.
Sempre quero ver a cara dela.
- Há-de rir-se, com certeza, e fazer pouco de si. Mas, se
fosse a si, eu não me importava.
- Professora, já não há nada que me atormente, depois de
tudo isto, excepto uma coisa.
- Que é? - inquiriu miss Stockwell, repentinamente alarmada.
Ele baixou a cabeça e quebrou um arbusto com um súbito
safanão.
- Se Georgie continua com... com os namoricos... como ela
lhes chama... vai haver sarilho. Nós, aqui, não toleramos
isso. Há raparigas que fazem olhinhos ternos, dão as mãos,


122


beijam, essas coisas, bem sabe. É natural, admito, e muitas
vezes leva a um namoro Sério. Mas, não é o que Georgie faz.
Miss Stockwell não achou resposta. Estava preparada para o
que desse e viesse.
- Professora, procurei no dicionário para ver o que é que
"namoriscar" queria dizer - prosseguiu Cal, calorosamente. -
Diz "brincar com o amor"... o que por si já diz muito e se
aproxima do procedimento de Georgiana. Mas... não é
exactamente o mesmo. Ainda não alcancei o verdadeiro
significado. Mas, uma coisa tenho eu como certa: se ela
continua assim, vai haver sangue derramado.
- Oh, Cal, meu querido rapaz, que está para aí a dizer?
- Implorou Miss Stockwell. Sentia-se mais desgostosa que
admirada. De facto, as palavras dele não a tinham
surpreendido.
- Estou a falar de mais, eu sei - concluiu ele -, e sinto-me
melhor por isso. Se eu tivesse coragem para contar tudo a
Enoch!... Vamos para casa, professora. De qualquer forma,

agradeço-lhe a promessa de estar do meu lado.


123

CAPíTULO VII


Cal tomou as lições de Tuck Merry com docilidade. Verificava
que tinha sido demasiado ambicioso acerca da experiência
adquirida a muito custo com o seu treino diário.
- Amigo, você podia ter desfeito aquele tipo se não tivesse
perdido a calma e não se esquecesse - disse Merry. - Assim que
ele lhe pregou um murro nos queixos e o aleijou, você
desorientou-se. Por isso, tantas deu um como o outro. Mas, eu
não fiquei satisfeito. Você esqueceu-se dos "ganchos" que eu
tenho tentado ensinar-lhe. Não interessa a força com que o
atinjam ou o sítio; você deve limitar-se a apanhar e sorrir.
- Oh, Tuck, é impossível - exclamou Cal. - Como é que se
pode sorrir quando nos magoam? Sim, porque, sempre que você me
acerta no nariz, ou na boca ou no fígado, quase grito de dor e
sou capaz de o matar.
- Amigo, não interessa se dói ou não. O que é preciso é
disfarçar - prosseguiu Tuck. - Quando um tipo vê que não
consegue aleijar-nos de forma alguma, está liquidado. Mas,
você não vai mal e já o considero capaz de competir com
qualquer dos rapazes. Você tem um bom poder de soco, acredite,
e, logo que aprenda a colocá-los onde quer e melhore o jogo de
-pernas, estará pronto a desancar Tim ou Wess.
- Tuck, não quero dizer que não gostasse de lhes pregar uma
sova - disse Cal, com um amargo sorriso. - Mas, na verdade,
quem me interessa é Bid Hatfield.
- Isso calculo eu - retorquiu Tuck, com ar sério.


127


Esse tipo tem mais uns dez quilos que Você, o que é uma
grande vantagem quando se sabe lutar. É mais velho, também.
Hatfield parece-me um osso duro de roer, porque deve ser
desleal. E tenho as minhas dúvidas se você seria capaz de o
aguentar. É melhor deixar-me a mim esmurrar-lhe as ventas.
- Tuck, quero experimentar, assim que você me deixar -
respondeu Cal.
- Estou pronto a fazê-lo, logo que seja altura - disse Tuck.
- Já aqui estou há três semanas e tive milhentas oportunidades
de fazer o gosto ao dedo com estes cavaleiros do Arizona. A
minha boa disposição natural está apta a azedar-se se as
coisas lhe correrem mal.
Tinham estado no esconderijo secreto, no mato, onde
guardavam as luvas de boxe e o saco de areia e onde se reuniam
quase todos os dias para as lições de Cal. Desde o início que
Tuck se mostrara contente com a forma como Cal soca o pesado e
baloiçante saco de areia. Pelo contrário, o seu aluno era
lento em assimilar as fintas e os truques variados do boxe.

Cal queria logo arremeter e bater às cegas e, quando fazia
isso, Tuck imobilizava-o com algum golpe doloroso bem
aplicado.
Separaram-se à porta do pomar; Tuck dirigiu-se, pela
azinhaga que levava à serração, enquanto Cal se encaminhava
para as pastagens, para ir buscar um dos seus cavalos. Todos
os animais, excepto os seus, tinham sido levados para os
currais e, assim, o primeiro que se lhe deparou foi o seu
cavalo malhado, Blazes. ultimamente, começara a gostar mais
daquele animal semi-selvagem, sem dúvida porque Georgiana May
Stockwell tinha preferido Blazes a qualquer outro. Na
realidade, Blazes era demasiado fogoso e perigoso para
qualquer rapariga novata nas montanhas. Este facto, todavia,
fizera que Georgiana teimasse ainda mais em montá-lo.


128


Tentara-o duas vezes. Da primeira, tudo correra tão bem que
ela se sentira orgulhosa mas, da segunda, Blazes atirara com
ela ao chão. Cal jurara que não a deixaria arriscar-se mais e,
caso estranho, não era tanto porque receasse que ela se
ferisse, mas porque se sentia sumamente satisfeito por ela
tentar persuadi-lo por meio da lisonja. Além disso, Blazes
tinha subitamente caído nas graças dos rapazes. Antes da
chegada de Georgiana, nunca conseguiria vender Blazes ou
trocá-lo pela pileca mais miserável do rancho. Porém, agora,
Cal recebia continuamente tentadoras propostas de transacção.
Ao aproximar-se da alta cancela do curral, ficou admirado
Por ver GeorgIana empoleirada no poste mais elevado. Vestia um
trajo de amazona, um velho chapéu de aba larga e um lenço
vermelho ao pescoço. Uma olhadella convenceu-o de que ela
estava ali à espreita dele:. O coração fraquejou-lhe e começou
a bater descompassado. Durante três dias, desde que ele
aparecera em casa com a cara escalavrada e ela o tratara, ela
tinha sido invulgarmente amiga, terna e boa para ele. Este
procedimento despertara nele o desejo de se mostrar
indiferente e abstracto, mas não era honesto nos seus
sentimentos e receava que ela o descobrisse.


129


- Olá, Cal, - saudou. - Parece que adivinhou o meu
pensamento esta manhã.
- Oli, sim? Se asim é, foi SeM pensar - respondeu ele,
parando diante dela.
- Cal, você foi uma jóia em ter aparelhado o Blazes para eu
ir passear - disse, com um sorriso deslumbrante.
- Mas... eu não fiz nada disso - retorquiu ele, carrancudo.
- Não vai a Tonto CanYon? - perguntou ela.
- Quem lhe disse?
- O seu pai. Disse-me que o ia mandar lá, para ver se há
algum gado na proximidade das montanhas, deste lado. Ele sabe
que eu estou ansiosa por ver Tonto e disse que eu podia ir.
- Ele disse? Bom, não me faz diferença - replicou Cal,

olhando-a friamente.
A perspectiva de levar a jovem, naquela longa e difícil
jornada para Tonto era, realmente, sedutora.
- Cal, leve-me, por favor - pediu ela.
- Não levo, não - respondeu o rapaz, deixando de fitar as
pupilas azuis.
- Oh, Cal, porque não?
- É Caminho mau para os seus pés tenros.
- Mas, assim, terei sempre dificuldades se você não me
habituar a pouco e pouco - protestou ela.
Cal não foi surdo à subtileza destas palavras e tinha
consciência de que, fosse ou não verdade, tinham tido o
estranho poder de o convencer.
- Georgiana, não pode ser sincera comigo? - perguntou ele,
em tom lamentoso.
- Mas... eu sou, Cal.
- Você quer é ir no Blazes. Se não fosse isso, pedia a outro
qualquer que a levasse a Tonto... e a ensinasse a ser amazona.
- Cal, eu preferia ir consigo para qualquer lado se... se
você...
- Quê? - perguntou ele, rapidamente, olhando de novo para
ela.
- Bom, para ser sincera, como me pediu, se você fosse apenas
um bom amigo, e pusesse de parte o sentimento.
- Quer dizer... se eu -deixasse de lhe fazer a corte? -
perguntou ele.
Ela assentiu e Cal ficou um pouco chocado com a ansiedade
com que o fez. Contudo, ela era conforme o vento que lhe dava.
- Já me deixei disso, - afirmou ele.


130


- Sim... disso e de tudo. Nem repara que eu existo. Para si,
é tudo ou nada, Cal Thurman.
- Isso,! Agora, é que acertou - suspirou Cal, respirando
profundamente.
- Cal, dê-me ocasião de aprender a gostar de si, sim? -
pediu ela,, com brusca mudança de tom. - Que coisa! Nunca me
vi assim! Você é tremendamente sério... E eu quero também
divertir-me.
Esta era uma das frequentes ocasiões em que Georgiana o
destorneava com o que parecia uma doce e natural ingenuidade.
Era uma rapariga prática e, afinal de contas, não passava de
uma garota.
- Se não gosta de mim agora, nunca chegará a gostar - disse
Cal, com resignação. - E parece-me que é o que acontecerá.
- Mas, eu gosto. E digo "gosto" porque não quero empregar
a... a outra -palavra.
Cal compreendeu que estava perdido; no entanto, pretendeu
aguentar-se mais uns momentos. Sem mais palavras nem olhar
para ela, encaminhou-se com, Blazes para o curral.
- Quer que eu o odeie? - disparou ela, com calor.
- Sim... se não pode ser o contrário - retorquiu ele.
Quando transpôs a entrada do curral ela observava-o e
parecia que o rosto moreno da jovem havia empalidecido
ligeiramente.

- Cal, você sabe que Tim gostaria de me levar.
- Claro que sei.
- Bom,, se não for consigo, vou pedir-lhe a ele. E nunca
pedi nada a ele ou aos outros, excepto a si. Preferia ir
consigGo.
- Georgie! - exclamou ele. - Se eu pudesse acreditar.

131


- Eu provo-o. Vá você no Blazes e dê-me o pior dos cavalos a
mim.
Cal não pôde sustentar-se mais. Este último discurso, aliado
ao facto de que Tim se aproximava, conduzindo um animal
aparelhado, atestava a sua derrota.
- Ganhou, Georgie, e eu cedo-lhe o Blazes - disse,
entregando-lhe o cabresto e dirigindo-se para o barracão, para
ir buscar uma sela.
- Bom dia, Cal. Parece que ganhaste um primeiro prémio- num
torneio - disse Tim, com malícia.
- Olá, Tim, - respondeu Cal, lacónico.
Depois, viu Tim dirigir-se à rapariga.
- Bom dia, miss Georgie. Estou encantado por vir comigo
hoje.
- Enganou-se, Tim, - respondeu Georgiana.
Cal não os podia ouvir, mas, quando chegou à arrumação das
selas, voltou-se e viu Tim junto de Georgiana, evidentemente
admirado POr ter SidO preterido.
Cal apanhou a sua sela mais leve, levou-a para junto de
Blazes, colocou-a em cima dele e apertou-a.
- Bom, estou contente por ir a Tonto esta manhã - dizia Tim.
- Tu vais a Mescal Ridge. - atalhou Cal. - Foi aí que o pai
te mandou. E, se vens para aqui aborrecer-me, eu digo-Lhe.
Tim voltou-se, rapidamente.
- Olha lá, menino, queres que te desmanche o outro lado da
cara? Estás a ser muito agressivo.
- Ora! - exclamou Cal, asperamente.
Tim encolerizou-se e podia ter havido disputa se Georgiana
não interviesse, sorridente.
- Vocês acabam por me fartar. Um dia, por qualquer ninharía,
acabam à pancada.
- Bem, Miss Georgie, se tal acontecer, só haverá dois
choques,: um do soco que eu dou a Cal e outro da queda dele
nochão... Faço votos por que dê um bonito Passeio, mas
palpita-me que Blazes a vai atirar a terra, hoje. Está com má
cara e não gosta de ser escovado.
Dito isto e depois de compor o seu chapéu, Tim afastou-se.
- Cal, estaria TiM a fazer troça de mim?- perguntou ela, com
:ar de dúvida.
- Com certeza. Blazes parece até muito bem disposto. Vá
fazer-lhe umas festas, dê-lhe açúcar e leve-o para terreno
onde haja erva antes de montar. Assim, se ele a derrubar,
sempre cai em terreno mole. Vou buscar o meu cavalo.
Ainda Cal não tinha regressado e já Georgiana cavalgava
Blazes, radiante de contentamento. A montada parecia
involuntariamente dócil e cabriolava nervosamente. Georgiana

ficava muito bem a cavalo e andava a aprender a montar.
- Georgie, domine-o bem - disse Cal. - Depois, galope até ao
fim das pastagens, deixe-o à vontade e volte para trás.
- Oh, Cal! Sério? - alegrou-se ela.
- Sim, mas lembre-se do que eu lhe disse e não desCure as
rédeas.
A rapariga soltou um grito, de satisfação e afastou-se,
enquanto Cal a observava com olhar crítico. Na verdade, ela
estava a progredir. Sentava-se na sela muito bem.
Quando atingiu a vedação, fez meia volta e deixou Blazes à
vontade. Agora, Cal já não a podia ver com olhar crítico;
apenas podia observar, extasiado, a visão esplêndida que ela
lhe proporcionava. Blazes corria bem e, naquele andamento era
fácil de manobrar. Os caracóis dourados, da jovem rebrilhavam
ao sabor do vento. Ao aproximar-se, Cal viu o rosto dela como
nunca antes o vira e sentiu-se possuído por uma sensação de
calor maravilhosa.


132 133


Encontrara um meio de a fazer feliz. Blazes acercava-se em
louca correria e, Cal verificou que foi a vedação, mais que a
rapariga, que pôs termo à sua desenfreada carreira.
- Oh... foi... formidável! - disse Georgiana, ofegante e
despenteada. - Porque é que... nunca me deixou... andar nele
antes?
- Você está a aprender, Georgie, - respondeu ele,
impressionado com a alegria dela. - Tem feito bons progressos
desde a última lição.
- Sim? Oxalá sseja verdade. Tenho-me esforçado, só eu sei.
Mas nenhum dos rapazes tem cavalos como Blazes. Sinto-me mais
à vOntade nele.
- De facto, Blazes tem um andar fácil - disse Cal. - Vai ser
um dia fatigante para si, Georgie e é melhor arranjar um
farnel.
- Eu preparei-o, sim. Já o arranjei... para nós dois.
- Ah, sim? Estava assim tão certa de que ia?
- Eu já Sabia que você me levava. Nunca me recusou nada,
mesmo quando eu era arisca.
- Não confie exageradamente nisso - disse ele, sisudo. -
Bem, você vá andando, até à cancela mais baixa e eu lá irei
ter. Dê de beber a Blazes... Oiça, onde é que pôs o lanche?
- Está pendurado na porta do curral. Não se esqueça dele.
Cal encontrou o saco de caqui que continha o lanche e, ao
levantá-lo, sorriu ao sentir-lhe o peso. Que manhosa era
aquela rapariguita! Ela Sabia, por experiência anterior, como
era agradável comer ao ar livre, com um companheiro agradável.
Montou e passou por Wess e Arizona, saudando-os na passagem.
- Eh! Cheio de sorte, hem? - Gritou Arizona, em cumprimento.


134


- Cal, beija-a por mim - acrescentou Wess, com maliciosa boa
disposição.

Eram as piadas do género desta última que Cal não podia
tolerar. Os seus primos e os outros cavaleiros diziam-nas, sem
má Intenção e qualquer deles seria o primeiro a rebater um
insulto feito a Georgiana. De qualquer modo, criavam em torno
da rapariga um ambiente de tal maneira frívolo e superficial
que se sentia ferido.
Cal mordeu os lábios para conter a resposta a Wess, e
encaminhou o animal para o local onde a rapariga o esperava.
- Vamos - gritou ela, alegremente.
- Confia o lanche à minha guarda? - perguntou ele,
inclinando-se para abrir a cancela.
- Cal, a si, confio-lhe seja o que for.
- Até mesmo você?
- Bom, isso é outra coisa - respondeu ela. - æs vezes, você
é irritável, ciumento, mau... e perigoso também. Não é que eu
tenha medo de si!... Mas creio que, se alguma vez tivesse de
me entregar ao cuidado de alguem, escoLhê-loía a si.
- Ah! Julgo que isso é Mais uma censura do que um elogio.
- Cal Thurman, você não faz ideia do elogio que representa,
dito por mim.
- Comecei a ter juízo, Georgiana... Bem, vamos embora. Este
atalho é mau. Siga-me um pouco afastada e faça o que eu fizer.
Se Blazes escorregar nas rochas, tire os pés dos estribos
depressa e, se cair, atire-se para longe dele.
- Só isso? - perguntou a jovem, com uma gargaLhada de
absoluta despreocupação.


135


Cal estava habituado a ver as raparigas do Oeste descer
aquela ravina escabrosa com profundo cuidado, por causa do mau
piso. Desejava que Georgiana tivesse a mesma boa sorte mas,
todavia, estava preocupado. Numa situação inesperada, a reação
de um cavalo era imprevisível. Também não valia a pena
estragar o prazer da rapariga com a narração de acidentes que
podiam não acontecer. Blazes era um animal seguro, nada
assustadiço nem medroso, e considerando que transportava uma
carga leve e, que o cavaleiro não podia feri-lo com as
esporas, era digno de confiança. Além disso, Cal tinha um
outro argumento, na sua resignação, um sentimento que ele
tentava rejeitar: se Georgiana estivesse destinada a ter um
acidente, o que parecia inevitável, queria que ele se desse
quando ele estivesse próximo.
Voltou-se uma vez para perguntar a Georgiana se não gostava
do sítio, mas a pergunta teria sido supérflua. æ excitação da
jovem, juntara-se uma admiração imensa e sonhadora. Cal
ansiava por que ela gostasse daquela região e, agora, parecia
ter razão para alimentar ilusões. Não quebrou o encanto senão
quando lobrigou um bando de perús selvagens a atravessar uma
crista em frente.
- Que é aquilo? Perús selvagens? Ora, são mansos! - gritou
ela.
- São mansos, são - disse ele, rindo.
- Como o que comemos no outro domingo?

- Sim. E você gostou até bastante.
- Oli, sou doida por perú, Cal... Oli, lá está outro! É
enorme!
- Nem por isso. Espere até que eu lhe mostre alguns dos
exemplares de maior envergadura.
- Cal, vou esperando pacientemente que faça uma porção de
coisas que me prometeu. Hoje, está a portar-se bem, mas quando
é que vamos os dois à caça?


136


- Depois da recolha do gado, no Outono. Até lá, tenho muito
que fazer. Bem vê, a região é dura e dá muito trabalho a
encontrar o gado.
- Promete que me leva? - insistiu ela.
- Sim, se me prometer a mim não caçar com os outros rapazes
- replicou ele, hesitante.
- Cal, não preciso de prometer isso.
Ele meditou nesta resposta. Como muitas das suas frases, era
sujeita a dúvidas, embora ele não pudesse deixar de a levar
para o seu campo pessoal. Georgiana tinha artes para o
convencer de que ele era o excepcional, o que era um doce
bálsamo para os seus sentimentos feridos. Mas, tinha o seu quê
de amargo. Vários outros em Tonto haviam feito referências à
particular afeição de Georgiana por eles. Subitamente, Cal
perguntou:
- Georgie, já alguma vez foi passear para longe com algum
dos rapazes?
- Não. Mary estabeleceu como lei que eu não podia sair com
nenhum, a não ser consigo. Não se sente vaidoso?
- Seria capaz de lhe desobedecer? - perguntou Cal.
- Nisso não. Posso não ser governada, Cal, mas sei medir as
distâncias.
Cal não formulou outra pergunta que o agitava naquele mesmo
momento. Aquela rapariga parecia extraordinariamente
contraditória. Naquele dia, portava-se excepcionalmente bem
para ele. Então, o caminho fez uma apertada curva entre dois
sicómoros tão juntos que qualquer cavaleiro tinha de ser muito
hábil e rápido para furtar os joelhos. Georgiana conseguiu
safar o esquerdo, mas já o mesmo não sucedeu ao direito, que
bateu em cheio. Cal ouviu a pancada.
- Oh! - gritou Georgiana. - Ai, ai! Bati com o joelho!


137


Cal não precisava que lho dissesse, -nem de ver o súbito
vinco no seu rosto, suave, e alegre, ou as lágrimas
incípientes. O som do joelho em contacto com o tronco fora o
suficiente. Como qualquer cavaleiro, teve de rir.
- Georgie, eu avisei-a que tivesse cautela ao passar entre
árvores.
- Está a rir-se! - exclamou ela, surpreendida. - Cal
Thurman, você, por vezes, é um bruto... A rir! Olhe que isto
dói tanto como... como...

- Não havia de doer! - interrompeu Cal. - É por isso que me
ri. Além disso, fiquei agradavelmente impressionado por
verificar que você sempre é um ser humano.
- Obrigada, Cal. Isso há-de valer-me de muito! - disse ela.
A seguir ao pequeno bosque de sicómoros, o caminho
dividia-se: para a direita em descida e para a esquerda
Serpenteando em direcção ao sopé das colinas cobertas de
arbustos, para além das quais culminava o penhascoso
alcantilado.
Cal conhecia aquela senda de gado desde os tempos da
meninice, em que mal conseguia montar a cavalo. Conhecia-o
metro por metro e muitas vezes o tinha trilhado em noites
escuras como breu. Como todos Os caminhos que caracterizavam a
terra onde nascera, era qualquer coisa que, naquele momento,
lhe despertava gratas recordações. Sentia-se excessivamente
preocupado com a ideia de como desejava tão estranha e
ardentemente que aquela rapariga do Este compartilhasse parte
do seu amor por aquele caminho áspero e íngreme.
- Ora adeus! Está à espera de que eu vá trepar isto tudo? -
perguntou ela, aterrada.
- Com certeza. Porquê? Não é muito, Georgie... comparado com
Rim ou Diamond Butte.
- Se vencer desta feita, leva-me um dia a esses sítios?


138


- perguntou ela, mergulhando nos dele os seus olhos
cintilantes.
- Sim - replicou o rapaz, não traduzindo na sua breve
afirmativa a emoção que o percorria.
- Pois, nem que rebente, hei-de conseguir.
Com o eco destas palavras nos ouvidos, Cal tomou a
dianteira. Ela acabaria por gostar de Tonto. Ele sentia o que
não podia analisar. Desde Bench, o caminho obliquava para o
matagal e desaparecia. O cavalo de Cal penetrou no denso
bosque de carvalhos e atravessou-o, enquanto Cal se inclinava
sobre a sela. Olhando para trás, não podia ver Georgiana, mas
ouvia o seu cavalo. Quando, atingiu o ponto onde o caminho
fazia o primeiro ziguezague, viu-a emergir do mato, chapéu
torto, blusa coberta de folhas e pedaços de arbustos e o rosto
rosado, e radiante. Os olhares encontraram-se e ele reparou
que ela vinha inconsciente dela própria. Estava vivendo a sua
nova experiência. Ele continuou a marcha e apreciava a
fragrância seca do bosque que lhe parecia tão suave, ou a
poeira do caminho tão-pouco incomodativa, ou os espinhos das
plantas tão-pouco acerados. A cada curva, parava a sua montada
para a deixar descansar e Georgiana logo surgia perto,
imitando-o. Ela própria estava arquejante. O seu busto arfava
e, quando ela tirou o chapéu para trás, ele viu que tinha a
fronte húmida de transpiração. Então, Cal atingiu uma ladeira
mais abrupta, onde o solo era de granito... Viam-se muitas
marcas brancas deixadas por cascos de cavalos... Cal mandou-a
desmontar, depois de ele o ter feito. Mas, uma vez transposto
aquele troço, a pé, montou novamente, na intenção de terminar
assim o percurso. Havia locais onde ele receava, tanto, por
Georgiana que nem se atrevia a olhar para trás. Não devia

deixá-la subir aquelas encostas traiçoeiras e resvalaffiças,
mas sentia-se possuído por estranha teimosia. Ela nunca
solltou o mais ligeiro grito, embora, por vezes,


139


se sentisse em nítIda dificuldade. Cal reparou que ela era
suficientemente esperta para deixar Blazes escolher o caminho
e ela limitava-se a deixar seguir, o que, em si, não era fácil
tarefa para uma principiante.
Longo como era aquele declive, pareceu, no entanto, muito
curto, a Cal. A última subida era extensa e o cavalo de Cal,
tendo aquecido, galgou-a muito antes que o de Georgiana.
Quando ele se virou na sela para olhar para baixo, vinha ela a
aparecer do meio da vegetação e iniciava a última recta do
caminho. Agitou a sua mão enluvada para ele e o seu chamamento
repercutiu-se no espaço. Ele observava-a, detidamente,
enquanto ela transpunha a distância que faltava. Tinha
consciência de que qualquer coisa desusada se estava a decidir
nele. Era um momento especial, em que no cinzento e verde do
percurso só se destacava a figura esbelta da rapariga.
Por fim, ela alcançou-o.
- Um pouco cansada... mas, cá vou... - disse ela,
alegremente.
Tinha o rosto manchado da poeira e dos ramos, e um arranhão
no queixo. Atirara o chapéu para a nuca e, por debaixo da aba,
viam-se flocos desgrenhados de cabelo dourado. O botão de
cima, da sua blusa, fora arrancado, deixando a descoberto a
cor mate da sua garganta. As mangas apresentavam profundos
rasgões. No conjunto, parecia uma pobre maltrapilha. Depois,
Cal voltou a fitá-la no rosto, intensamente, desta vez. Viu
nele uma luz... ou seria nos seus olhos? Mas, logo afastou o
olhar.
- Sim... portou-se muito bem - disse, -contrafeito, tentando
esconder os seus pensamentos. - Mas, sempre lhe digo que...
isto não é caminho para inexperientes.
- Então, fiquei bem no exame? - perguntou ela.


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- Bom, tanto não, mas subiu mais um degrau... Georgie,
gostou desta dura e longa jornada?
- Cal, você nunca me acredita - replicou ela, impulsiva. -
Garanto-lhe que há muito tempo pensava neste passeio.
Então, com um estranho e profético rebate no Seu coração,
ele convidou-a a olhar para baixo, para o belo rancho de Green
Valley, reluzente sob o sol matinal, para o fumo azulado que
se evolava em espirais, os pomares de macieiras com os seus
frutos avermelhados, a fita branca da estrada que passava
junto à velha serração, para desaparecer junto ao depósito de
madeira. Mostrou-lhe a mancha acastanhada, que era a escola
onde a sua irmã dava aulas, e a fita reluzente da ribeira de
Tonto Creek, e, por último, o arvoredo ondulante que se
estendia -até Rim, erguendo para o sol as suas copas

negro-esverdeadas.
Duas horas de cavalgada, a maior parte por carreiros
semeados de rochas, tinham levado Cal e Georgiana até à linha
de separação das águas. Começavam ali as fiadas de cristas
escalvadas e os desfiladeiros pouco profundos que,
inclinando-se interminavelmente para baixo, se tornavam mais
rugosos e Pedregosos, para irromper subitamente no abismo
negro de Tonto...
- Oh, que árido. e selvagem! - exclamou Georgiana. -
Esperava que fosse tudo verdura, porque você disse que era
região de gado. Não há erva, é tudo aos altos e baixos...
Certamente, não podemos lá chegar, pois não?
- Claro que podemos. É difícil, bem sei, mas o gado vive
naqueles desfiladeiros e é lá que o caçamos, laçamos e
marcamos.
- Não acredito!
- É verdade. OIça, Georgie, na realidade é mais áspero do
que parece, mas também é melhor para o gado do que aparenta.
Há muita água, aquelas manchas acinzentadas são erva.


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Vê aquele touro malhado de branco a fitar-nos lá de baixo? E
mais três novilhos mais adiante, no bosque? Georgie, é para
isso que eu venho aqui, para descobrir onde há gado. Andam
acossados por todos os lados e dá um trabalhão localizá-los.
Depois, quando toca a cercá-los é que é o bom e o bonito.
Georgiana olhava para todos os lados excepto para o sítio
indicado e foi preciso que ele apontasse com a mão. Cal estava
contente por ela se mostrar interessada.
- Você sabe tanto disto! - exclamou ela. - Uns pontos
brancos, focinhos de animais e todo aquele terreno agreste...
É tão diferente do que eu imaginava. Julgava que um rancho de
gado fosse uma linda planície coberta de relva, semeada de
vacas e vitelos... e de outros animais... e água, e arvoredo.
Safa! É difícil ser-se cavaleiro, aqui!
- Sim, se quer referir-se a uma pessoa capaz de suportar
longas horas de dura caminhada, -sem medo das vacas bravas e
dos garraios...
- Vacas bravas? Elas são más?
- Georgie, as vacas velhas, que têm vitelos, são selvagens.
São capazes de riscar um homem do mapa. Tenho visitado muitos
cavalos derrubados e estripados.
A jóvem tornou-se pensativa e percorreu COm O olhar desde a
vertente mais superficial, onde o gado andava a ruminar, até
às longínquas profundezas de Tonto e, para além, a massa negra
de Diamond Butte e as maravilhosas cordilheiras, que se
espraiavam até perder de vista.
- Se fosse homem, havia de adorar esta vida - murmurou
Georgiana.
Esta observação foi tão espontânea que Cal teve de se
esforçar por esconder a nova da sua Intenção de lhe oferecer
Blazes.
- Bem, Georgiana, tenho que fazer - disse Cal, por fim.

142


- Tenho três vales a percorrer a cavalo. Entretanto, pode
descansar, enquanto espera por mim.
- Deixe-me ir consigo a todos esses sítios - pediu ela.
- Não. Há-de ter muito que andar até o dia terminar. Além
disso, há lugares aonde não pode ir comigo. Vamos...
- Oiça, Cal... não se esqueça da merenda que eu preparei -
retorquiu ela.
- Já contava que você mo iria recordar. Mas, ainda é muito
cedo para comermos.
- Cedo? Oiça lá, eu não vivo de paisagens.
- Georgie, quanto mais tarde comermos, melhor nos saberá.
- Suponho que você está convencido que eu consigo viver de
amor.
- Não, Georgiana. Tive sonhos irrealizáveis a seu respeito,
mas nunca tanto como esse, - replicou Cal, fitando-a
fixamente.
- Pois sim! - respondeu ela. - Em todo o caso, se eu
quisesse, meu caro amigo, era capaz de o fazer.
Cal pôs-se a caminho, certo de que o dia estava perdido e,
com ele, algum do seu encanto, se continuasse naquela troca de
palavras com Georgiana. Dizendo-Lhe que o seguisse, começou a
descida. Num ponto mais abaixo, onde a depressão do terreno
formava o que os cavaleiros chamavam uma "sela", voltou para a
esquerda e inspeccionou o solo, até encontrar uma pista de
gado bem definida, que conduzia à crista imediata, próximo de
uma ravina. Viam-se pegadas em várias direcções e, as mais
recentes partiam de junto dele. Aos seus olhos argutos, isto
era uma indicação de que o gado, do desfiladeiro à sua
esquerda, ia banhar-se nas águas do da direita. Era tudo
quanto ele necessitava de saber acerca daquele local.

143


Prosseguiu a marcha, procurando descobrir as reses com a
marca dos Thurman. Eram poucas e muito dispersas. E depois de
trotar uma milha, compreendeu que a escassez de gado era
devida à falta de pastagens naquelas paragens. As ervas
daninhas tinham sido arrancadas, assim como, os rebentos das
árvores mais enfezadas. Quando não encontrava erva, o gado
mordiscava folhinhas e pequenos ramos.
Cavalgando despreocupadamente pela ladeira, gastou todo o
resto das horas da manhã e mais algumas, e frequentes vezes
teve de deixar Georgiana sozinha por mais tempo do que
gostaria. Mas não se esquivou ao trabalho de que estava
encarregado.
- Acredite-me, Cal, você é o primeiro rapaz que me convida
para sair e depois me deixa sozinha - queixou-se a rapariga.
- Georgie, você veIo comigo - protestou ele. - E tenho de
cumprir a minha missão.
- Oh, não faz mal... Eu é que pensava que. você era doido
por mim - Disse ela, com ar indiferente.
Cal não soube que responder nem que fazer. Como dantes, o

seu silêncio foi melhor que quaisquer palavras.
Continuou a conduzir, por uma descida íngreme, juncada de
rochas que dificultavam a marcha dos cavalos, através de
carvalhos e aloés, e manchas de erva ressequida, em direcção a
Tonto.
- Se eu alguma vez tiver de saltar do alto, para a terra de
ninguém, traga-me aquI! - exclamou Georgiana.
Foi o único tributo que ela pagou a Tonto.
O olhar observador de Cal notou que, ao desmontar, ela
coxeava um pouco. Ele prendeu os cavalos e em seguida, pegando
no saco da merenda, conduziu Georgiana para um rochedo plano
que estava à sombra e onde a água era mais pura.


144


Aquela meia hora, durante a qual deram conta da comida até à
última migalha, foi a mais alegre e agradável que jamais tinha
passado com Georgiana. Ela era simpática, nada aborrecida nem
irritante, nem orgulhosa, ou estranha, ou arrogante, ou
"coquette"; era apenas uma rapariguinha esfomeada, satisfeita
com a vida e por estar naquele lugar maravilhoso.
- Cal, você tornou-se pensativo - observou ela.
- Sim? Gostaria de adivinhar os meus pensamentos?
Ela fitou-o e sacudiu a cabeça, em ar de dúvida.
- Parece-me que não... se corresponderem ao seu olhar.
- Georgie, vou estabelecer-me em Rock Spring Mesa. -
declarou ele, rudemente, sem se, Importar com a reacção dela.
- Já me disse isso uma vez - respondeu ela. - Mas, não me
explicou o que é que isso significava... estabelecer-se. A
palavra é nova para mim, mas soa-me bem ao ouvido.
- Escute - começou ele, com fervor. - Nas zonas despovoadas
do Oeste, o Governo auxilia os que querem fixar-se. Assim, uma
pessoa tem direito a cento e sessenta acres de terreno para
tratar e cultivar. Quanto Melhor é o solo e a água, tanto
maiores as possibilidades de desenvolver um bom rancho.
Constrói uma cabana e um curral. O Governo exige-lhe uma
determinada quantidade de trabalho por ano, durante três anos.
Depois, se satisfizer, como eles dizem, é-lhe dada a
autorização de propriedade. Isso dá-lhe direito a certas
regalias nas montanhas. Pode levar o seu gado a pastar até
certos limites... É isto o que eu vou fazer.
- Você deve dar um bom criador de gado - replicou Georgiana,
sonhadora. - Li, uma ocasião, uma coisa... um livro acerca de
uma rapariga fazendeira. Acredite-me, ela pagou bem o seu
disparate.


145


- Como? Com trabalho, solidão, luta pela vida?
- Creio que sim... Cal, quando você se estabelecer, fálo-á
sozinho?
- É possível. Tenho de cozinhar as minhas próprias
refeições, fazer as limpezas, cortar lenha, mugir as vacas,
lavrar, semear, podar e colher.

- Ora adeus! - Ela olhou-o com curiosidade, como se tivesse
descoberto uma nova faceta nele. -- Cal, não fique ofendido.
Você não é nenhum parvo. É até muito esperto e, na cidade,
havia de ir longe. Porque é que não pensa nisso?
- Há muito tempo, Georgie, tive as minhas tentações -
replicou ele, com ar saudoso. - Muitos rapazes vão para lá e
nenhum dos que eu conheço se tem dado bem. Gosto do ar livre,
dos lugares solitários... Todos na minha família são
pioneiros. Está-me na massa do sangue. E, deixe-me dizer-lhe,
Georgie, o pioneiro, o rancheiro e o fazendeiro, são, a meu
ver, os verdadeiros americanos. Nunca teriam existido cidades
ou homens de negócio, se os pioneiros não tivessem desbravado
os caminhos e aberto as portas deste país selvagem.
- Cal, sou o que chamam uma rapariga do século vinte, a
jovem moderna - respondeu Georgiana, com súbita amargura. -
Somos um tipo estranho, segundo oiço dizer. Não queremOs ser
mandadas. Nascemos para escolher o que queremos e desafiamos
todas as convenções. Queremos fazer o que os homens sempre
fizeram, ser livres.
Depois de pensar algum tempo, Cal retorquiu:
- Georgie, não compreendo o que quer dizer nem quero
discutir o assunto. Mas, uma coisa sei eu: é que o que você
mencionou não é o mais importante na vida. Se todas as
raparigas do seu género pensam da mesma maneira, será mau para
o futuro. As mulheres são para fundar lares.


146


- Olhem para ele! - exclamou Georgiana. - Fundar lares? Sim,
para os senhores do mundo, os homens. Cal, isso é sempre a
mesma conversa fiada.
- Essa agora! - -disse o rapaz, revoltado. - Não é nada
disso. Toda a gente tem de ter um lar ou então... Georgie,
todos os animais têm tocas, covis, cavernas... os seus lares.
E têm companheiras. É para isso que eles vivem. Agora, se
vocês, mulheres... mulheres "novas", não tencionarem criar os
vossos lares para os homens, que será de nós?
- Não me pergunte a mim - disse ela, com uma alegre
gargalhada. - Ao fim e ao cabo acabam todas por fazer O mesmo.
Cal fitou, em silêncio, o abismo do desfiladeiro. As últimas
palavras vibravam dentro dele. Pareciam petulantes, talvez um
pouco falsas. Ela não devia saber o que estava a dizer. Ele
não conseguia exprimir melhor as suas convicções, mas sentia
que eram razoáveis. Há quanto tempo estaria ali Tonto Canyon,
sob o céu azul dos dias claros e o manto negro das noites?
Quantas gerações teriam nascido e morrido desde a formação
daquela garganta? Os tempos mudaram e, com eles, as pessoas,
mas a relação, fundamental entre homem e mulher, nunca seria
diferente da primitiva.
- Desculpe se feri os seus sentimentos - recomeçou
Georgiana.
Cal, talvez eu não seja tão má como pareço.
- Acho que é razoavelmente boa - respondeu Cal. - Bom, se
queremos estar de volta ao pôr do sol, devemos apressar-nos.
- Oh, isto é tão bonito! Traz-me aqui outra vez?
- Sim. Na semana que vem, vimosaqui buscar o gado e

levamo-lo para a grande pastagem. Vale a pena ver. Mas, tem de
ser cuidadosa e sensata e fazer o que lhe disserem. Estes
animais são muito bravos.


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- Prometo. E deixa-me montar Blazes novamente?
- Bem... depois do dia de hoje, já não precisa de mo pedir -
disse ele, misteriosamente.
- Cal, quer dizer que já não sou uma principiante?-
retorquiu ela, com ardor.
- Não, não era nisso que eu estava a pensar.
- Então, que era? Você é tão... tão estranho.
- Blazes não é já meu, a partir de hoje.
- Oh, Cal... não vai vender o Blazes ou trocá-lo por outro,
Agora, que eu gosto tanto dele!
- Certamente que não.
Oiça, você está a falar por enigmas - protestou ela,
sentando-se com as mãos nos joelhos e observando-o com olhar
Brilhante e interrogativo.
Para Cal, o momento era simultaneamente cheio de alegria e
de angústia. Qualquer coisa ia decidir-se, -para ele. E nunca
Tonto o havia impregnado tanto, com a sua promessa de paz e
tranquilidade, com o seu aspecto triste e abandonado.
- Georgie, depois de hoje, Blazes já não me pertence - disse
ele, olhando-a fixamente.
- Porquê? - perguntou ela, rapidamente.
- Porque... lho dei a si, esta manhã.
Georgiana fitou-o, perturbada. Não tardou mais que um
segundo a apreender o sentido da resposta. Os seus olhos
abriram-se desmedidamente e os lábios afastaram-se.
- Deu-o... a mim? - repetiu, com voz sumida.
- Sim. Blazes, com sela, cobertor, cabeçada, é tudo para si.
- Oh, Cal! Meu? - gritou ela, maravilhada.
- Certamente - respondeu Cal, começando a tremer.
O rosto dela transformara-se, como que por magia. Se ele
esperava vê-la alegre, enganara-se redondamente. O sorriso, a
auréola luminosa, tudo era estático, e quando a Observou,


148


Fascinado pela sua formosura, o tom dourado da sua pele tinha
empalidecido, sensivelmente.
- Oh, querido! - exclamou ela.
E, inclinando-se rapidamente, beijou-o em cheio nos lábios.
Cal sentiu um choque. Por instantes, tudo à sua volta
pareceu girar e o coração sobressaltou-se-lhe dentro do peito.
O arvoredo voltava a ser verdejante e a espalhar a sombra;
Tonto, a seus pés, parecia mais longínquo, triste, como o
murmúrio das suas águas. As próprias rochas seculares pareciam
compartilhar com ele qualquer coisa da vida e da eternidade.
Georgiana voava para o sítio onde se Encontravam os cavalos
amarrados e Cal ouvia o seu riso e as exclamações de
contentamento pela sua preciosa prenda. Depois, escutou os

seus passos rápidos e ligeiros. Levantou-se e voltou-se para a
encarar.
- Cal, você é um bom rapaz - disse ela, estendendo a mão.
E dirigiu-se a ele, que estava encostado a um tronco de
árvore.
O rapaz tomou-a nos seus braços. Ela não se afastou, antes,
pelo contrário, se encostou a ele, com o rosto risonho,
erguido e a pequena mão enluvada sobre o seu ombro.
- Georgie... não devia... ter-me beijado - disse ele.
-não? Você Merecia e eu queria... E fá-lo-ei novamente se
não achou suficiente.
- Não quero agradecimentos - replicou ele, hesitante. - Só
pretendia fazê-la feliz.
- E conseguiu. Nunca esquecerei este dia.
- Mas, Georgie... eu... eu amo-a - desabafou ele.
- Bem... mais um motivo para eu o beijar.
- Não. Não... a não ser que também me ame.
- Evidentemente que o amo, Cal... quero dizer... julgo
que...


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Cal cingiu-a Fortemente, dominando o seu corpo frágil, e
inclinou-se sobre o seu rosto encantador. Uma felicidade
inexprimível apoderou-se dele e toda a sua timidez
desapareceu. Beijou-a nos cabelos, nas faces e depois na boca.
A sensação de ser correspondido, cegou-o por completo,
tornando-se quase rude na expressão do seu amor. Por fim, ela
esboçou um protesto, e tentou afastar-se dele, prazenteira,
não fugindo, todavia, ao amplexo dos seus braços.
- Cal! Tu não precisas de um lar! - exclamou ela, tratando-o
por tu. - O que tu queres é uma caverna. És um autêntico
selvagem, hei-de dizer a toda a gente.
- Georgie... perdoa-me se fui...
- Cal, onde é que aprendeste a beijar desse modo?-
interrompeu ela, em tom de mofa e de fingido Ciúme.
Tinha o rosto colorido, o chapéu caído e o cabelo em
desalinho. Cal teve de fazer apelo a todas as suas forças para
não a apertar novamente contra si. Provavelmente, tê-lo-ia
feito, se não fosse a inesperada pergunta.
- Georgie... eu não aprendi... foi só porque te amo, -
protestou.
- Ainda que queiras fazer pouco de mim, Cal Thurman, -
replicou ela, apontando-o com um dedo, em gesto de ameaça. -
Tenho a impressão de que não és dos menos felizes com as
raparigas de Tonto. Nenhum rapaz beijaria como tu, se não...
- Georgie, juro que até hoje só beijei duas raparigas... e
isso foi há muito tempo... quando era garoto.
- Sou a única que tu amaste? - perguntou ela, meio ansiosa,
meio trocista.
- És, sim - respondeu Cal, com simplicidade.
- Está bem, acredito - acrescentou ela, depois de o fitar
demoradamente. - Mas, escapaste por um triz...


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- Agora, penso que será melhor irmos andando, para casa,
antes que te desnorteies outra vez.
- Espera, Georgíe, - pediu ele, sustendo-a. - Eu... eu não
disse tudo quanto tenho para dizer... Georgie, queres casar
comigo?
- Lá estás tu a estragar tudo - protestou Georgiana. - Não
te satisfazes com o que eu disse e fiz?
- Satisfazer-me, sim. Extraordinariamente contente e
agradecido. Mas, tudo isso só contribuiu para que eu sentisse
necessidade de te perguntar outra vez... Georgie, estou
loucamente apaixonado por ti. Não queres COMPrometer-te
comigo?
- Não, não quero - replicou ela, francamente.- Pelo menos,
agora; pode ser que um dia... Cal, não estou segura de mim
mesma. Hoje, amo-te um bocadinho... e quis beijar-te... e
gostei dos teus beijos. Mas, amanhã, posso pensar de maneira
diferente.
- Partes-me o coração - disse ele, desesperado.
- Os corações não quebram com essa facilidade.
- O meu sim - retorquiu ele, carrancudo.
- Cal, porque não acabas com essa história do casamento e és
apenas um bom amigo? Deixa-me ter a minha vida. De qualquer
modo, não podes obrigar-me; mas, de quem eu gosto mais é de
ti. Podemos passar um tempo tão agradável!
- Georgie, tu queres andar comigo e, além disso, passar o
que tu chamas um tempo agradável com os outros rapazes, não é?
Novamente se ouviu o riso sincero e cristalino da jovem.
- Acertaste em cheio! Cal, pareces adivinho. É precisamente
o que desejo.
- Georgie, por andares comigo não arranjas complicações -
disse ele, rudemente. - Mas crias um salsifré dos demónios,

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se esse tempo agradável com os outros for como... como este
que passaste comigo.
- Ah, sim? - retorquiu ela, sobranceira -, É mesmo o modo de
falar de um homem... Cal, quando alguém tenta mandar em mim,
faço sempre aquilo que me proíbem.
- Georgie, não discutamos mais - disse ele, resignadamente.
- Não queria aborrecer-te. Tu não te entendes com esses
rapazes de Tonto... Vamos embora depressa, são nove milhas e
quase sempre a subir.
Quando chegaram ao rancho, o crepúsculo tinha já coberto o
vale com o seu manto. As luzes brilhantes, das janelas do
edifício, eram convidativas. O ar era frio, como um sopro
gelado. Algures, um coiote uivava. Não estava ninguém no
curral. æ claridade das luzes, Georgiana olhou para Cal, que
parou ao lado do seu cavalo.
- O fim de um dia perfeito, - disse ela, com profundo
suspiro. - Tira-me daqui de cima.
A custo, com um gemido abafado, ela tentou mover-se na sela,
e, ao desmontar, foi como um peso morto, que lhe tombou nos
braços.

- Pobre pequena! Eu já sabia que era demasiado para ti -
disse Cal, solícito, colocando a no solo. - Eu avisei-te,
Georgie. Era uma caminhada muito grande, para uma rapariga.
Mas, fizeste-a e devo-te um elogio que poucas, em Tonto,
receberam de mim.
- Oh! Tenho os ossos todos feitos em estilhas - disse ela,
em voz magoada. - Amanhã, estou morta, mas não teria perdido
este passeio por nada do mundo. Cal, devo-te o dia mais feliz
da minha vida. Se não tivesses...
Sem concluir o que ia a dizer, voltou-se e encaminhou-se,
vagarosamente, para casa.


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Cal observou a sua figura esbelta sumir-se, na obscuridade.
Sentiu um baque no peito. O dia tinha sido para ele o mesmo
que a jovem dissera ter sido para ela. Parado, com a mão no
flanco ainda quente do cavalo que dera a Georgiana, recebeu um
estranho e poderoso impullso de fé em perserverar no seu amor
e nas suas esperanças.


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Capítulo VIII


Setembro cedeu lugar a Outubro e todas as terras altas de
Tonto vestiram as suas cores outonais.
Nos sopés das colinas, os brilhantes dourados e vermelhos
limitavam-se a pedaços isolados, colocados como pedras
preciosas no verde escuro dos bosques. Aqui e além, alguma
correnteza de nogueiras ostentava ainda folhas suficientes
para estabelecer o contraste; mais abaixo, nas ravinas
tortuosas, entre as bases dos outeiros por onde Corriam os
regatos, havia grupos de sicómoros ainda Cobertos de folhagem,
crescendo mais garridos e belos à medida que se aproximavam os
gelos de Outubro... Nas encostas soalheiras voltadas a Sul,
viam-se pequenas áreas de sumagres, avermelhados, e algumas
proeminências das rochas mostravam pés de videira, carmesim e
bronzeados. Porém, nas terras baixas,, o matiz predominante da
estação era o verde-cinzento, escuro dos carvalhos, zimbros,
cedros e macieiras.
Próximo de Rim:, contudo, os longos declives culminavam num
fulgor portentoso,. OS despenhadeiros amarelados e o caminho
em ziguezague da cintura de rocha vermelha que caracterizava a
face, longa e irregular de Great Mesa, eram ofuscados e
subjugados pelas cores mais vivas da folhagem. Léguas e léguas
de florestas de pinheiros que subiam em direcção a Rim eram,
invariavelmente, de um vivo tom de verde escuro, até atingirem
a base daquela descomunal muralha montanhosa. Ali findavam,
excepto nas fendas escuras das gargantas e desfiladeiros,

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que cortavam os rochedos. Saltavam também à vista os bosques
de áceres, sob as saliências pedregosas à beira dos abismos.
Era uma verdadeira amálgama de cores, em que a púrpura, a
cor-de-cereja e o escarlate rivalizavam com o violáceo, em
competição de beleza. årvores isoladas, de abundante ramaria,
mais pareciam fogo vivo do que folhas coloridas. Para além das
grandes encostas onde as brechas das ravinas enegreciam com
pinheiros e abetos, começava o brilho dourado das faias, tão
dourado como o ouro puro que iluminava o Oeste, ao pôr do sol.
Sobrepondo-se ainda, erguiam-se as muralhas alcantiladas de
Rim, coroadas pela franja dos pinheirais.
Uma tarde, em Green Valley, quando terminada a contagem do
gado e quase pronta a sua reunião, Henry Thurman convocou
todos os seus cavaleiros.
- Rapazes, há sorgo para ser cortado - disse ele. - Deve
demorar poucos dias. Gard vai mandar os homens dele amanhã.
Assim, levem material para as terras de Boyd e despachem o
serviço.
- Acho bem - replicou Wess. - Deve levar uns três dias. E,
tio Henry, depois de juntar o gado, quem é que o leva a
Winslow?
- É melhor falares com Enoch a esse respeitO. Vocês não
podem ir todos. Vai fazer-se a instalação em Rock Spring para
Cal, e, alguns de nós, teremos de cortar e transportar
troncos.
- Eh, rapaz, porquê essa pressa toda? - indagou Wess,
voltando-se para Cal.
- Eu não tinha pressa, até que ouvi um boato, de que
Hatfield andava a catrapiscar Rock Spring Mesa.
- Oh, oh! Quem te disse?
- O pai recebeu a notícia do tio Gard.
O velho pioneiro confirmou com um aceno e informou os
rapazes de que Hatfield sabia havia muito do interesse de Cal
em Rock Spring, e que não era nada conveniente deixar o rancho


-158-


Bar XX apossar-se de terreno nas proximidades das suas
pastagens. Depois, na acesa discussão que se seguiu,
esclareceu-se, o facto, de que havia provas de que os Thurman
estavam a perder cabeças de gado. Os roubos em larga escala
pertenciam ao passado, mas a perda de vitelos sem marca era de
mais para ser ocasionada por simples enganos naturais aos
cavaleiros que os conduziam. Alguém, deliberadamente, afastava
os vitelos dos Thurman para longe das vacas, antes da data
conveniente para a separação, e os marcava para si.
- Serge Thurman marcou alguns vitelos no mês passado - disse
o rancheiro -, e fê-lo, tão subtilmente, que só ele os poderia
reconhecer. Ora bem, Serge ficou sem dois deles e anda agora à
sua procura.
- Ora! Que ganha ele, em descobrir que o rancho Bar XX lhes
pespegou o ferro? Não pode provar que há diferença entre o
nosso gado sem ferro, e o dele, se não estiver marcado -

replicou Wess.
- Sim, também penso que não - admitiu Henry.
- Só servirá para tornar piores as relações entre Enoch e
Bloom, que já não são nada boas.
- Tudo quanto lhes aconselho, rapazes, é que conservem a
boca fechada, e os olhos bem abertos. Eu vou para a serração e
mando Tuck Merry ter com Boyd para vos ajudar a cortar o
sorgo. Apostava que ele corta e transporta mais que qualquer
de vocês.
- Esse trangalhadanças, desconchavado, ganhar-me na apanha
do sorgo! - exclamou Wess, :altamente ressentido com a
observação.
Wess estava sempre à espera daquela regular competição da
apanha do ssorgo e era extremamente tenaz em conservar-se
invencível.


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- Wess, nem tu nem nenhum dos rapazes imagina a força do meu
ajudante - prosseguiu Henry, na sua voz calma. - É o melhor de
quantos tenho tido.
Wess ficou enfadado. A sua superioridade tinha sido posta em
dúvida, e tudo por causa de um forasteiro. Naturalmente, os
outros rapazes tornaram as coisas piores, secundando Henry e
propondo-se fazer apostas. Cal fez a cena atingir o auge,
apostando um dos seus cavalos contra um de Wess em como Tuck
Merry o podia bater.
- Olha lá, não te parece que andas a desbaratar os teus
cavalos? - inquiriu Wess, sarcástico;. - Apostaste o teu
melhor em como darias uma sova a Tim, no prazo de um ano. E,
Cal, o tempo voa. Depois deste, outro a Miss Georgie... e não
é difícil de calcular a aposta que fizeste e como a perdeste.
Agora, ainda tens coragem para arriscar o último bom animal
que possuis? Detesto partidas, Cal, considerando que não estás
no teU juízo, mas tu lá sabes.
Cal fitou o seu primo, com olhar pouco simpático.
- Olha, Wess, - disse ele, altivamente. - Já que és tão
esperto, aposto que ganho as três apostas!
- Que é que apostas? - Apressou-se wess, batendo no joelho
com a mão aberta.
Cal começou uma complicada enumeração dos seus dois últimos
cavalos, a sua "Winchester" e o laço, as esporas de prata que
Wess sempre lhe invejara, e a sua únIca sela, e estava prestes
a juntar mais cinquenta dólares à lista quando o pai o
interrompeu.
- Cal, o palpite de Wess, em como não estás bom da bola não
deve ser muito errado - respondeu. - Não faças mais apostas.
Se queres instalar-te em Rock Spring, precisas de tudo isso
que vais apostar.


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Quando, na manhã seguinte, a primeira luz acinzentada no
Nascente proclamava o nascer da alvorada, Enoch Thurman saiu

de casa e bradou em voz estentórea de forma a ser ouvido pelo
mais dorminhoco:
- Toca a trabalhar!
Enoch era o chefe da rapaziada e o seu chamamento era o
sinal para todos se levantarem. Ao romper do dia, o pequeno
almoço já fumegava sobre a longa mesa da cozinha e quando o
sol se erguia as selas e os sacos já estavam a ser atados.
Pouco depois, -os cavaleiros dirigiam-se para o rancho de
sorgo.
Era uma parcela de terreno liso, a cerca de três milhas de
Green Valley, para os lados de Rim, e formava um contraste
acentuado com outros ranchos mais férteis. Boyd Thurman tinha
ido fixar-se ali e metade dos cento e sessenta acres de
terreno estavam a ser cultivados. Estes oitenta acres eram
quase totalmente ocupados por uma plantação de sorgo, uma
planura amarelada que parecia de milho ou cana de açúcar,
embora não tão alta. Ervas daninhas e flores silvestres
cresciam quase tão densamente como os troncos. O campo tinha
sido pouco tratado desde a semeadura do sorgo.
O leito de um arroio corria ao longo do lado Poente do
campo, tal como a estrada poeirenta que levava à escola, já no
bosque, e aos barracões e ranchos dos outros Thurman, mais
para os lados de Rim. O regato era pouco profundo e estava
seco, à excepção de alguns charcos em lugares rochosos. Do
lado mais baixo da clareira, erguiam-se duas barracas e um
estábulo, todos bastante carcomidos pelas intempéries. Depois
de se ter estabelecido, Boyd Thurman tinha vivido quase sempre
em casa do pai. E aquele campo Imenso de sorgo era propriedade
de todos os Thurman. Tinham-no plantado em conjunto e em
conjunto o colheriam e dividiriam.
Enquanto os rapazes de Green Valley desatavam os seus
utensílios e os colocavam sob as árvores perto das barracas,
surgiu outro contigente dos Thurman, nove robustos cavaleiros,
com mais do que esse número de cavalos carregados. Assobiavam,
cantavam e fumavam, enquanto trabalhavam com a destreza da sua
longa prática. As piadas e os gracejos que trocavam em si eram
constantes. æs nove horas, estavam sentados à volta do
pinheiro que marcava o campo de Enoch, e todos afiavam as suas
facas nas pedras de amolar que cada um levava consigo. Ao
todo, eram dezassete trabalhadores, não incluindo Henry
Thurman. Apesar da sua idade, era capaz de trabalhar tanto
como os rapazes, quando lhe apetecia.
- Bem, rapazes, - disse Enoch, experimentando a lâmina da
sua faca no grosso polegar -, um para cada fiada e toca a
apanhar o mais possível.
- Enoch, eu fiz uma aposta que diz respeito a este serviço.
Por isso, podes contar com o meu melhor esforço - disse Wess.
- Ah, sim? E que é que apostaste e com quem? - replicou
Enoch, muito interessado.
Wess Contou a história à sua maneira e o seu tom de voz era
ao mesmo tempo triste e flamante; e, então, Cal deitou lenha
na fogueira, com a sua confiança exagerada em TuckMerry; por
fim, o pai de Cal ainda ajudou à festa, aumentando a irritação
de Wess.
- Bom, algum de vocês está em pulgas por apostar alguma
coisa? Cá por mim, não me escuso.
Começou, então, uma animada discussão,, bastante calorosa da
parte de Wess, e foram feitas várias e incríveis apostas.


162


Finalmente, quando os recursos de cada um pareciam
totalmente esgotados, pediram a Enoch que pusesse as
condições.
- A disputa não me parece equilibrada - disse este. - Wess
já cortava sorgo quando era ainda um catraio de calções e o
nosso camarada Merry das pernas compridas nunca viu tal
planta, até ter vindo para cá.
- É verdade - declarou Tuck. - Farei o possível por ganhar
por causa dos que apostaram por mim, mas reparem que eu não
arrisquei nada por mim próprio.
- Seja nosso amigo,, Tuck, - disse Cal, piscando-lhe um
olho. - Hei-de ganhar outra aposta hoje, além da que fiz por
você. Vamos a isso.
- Se ele é isso, nem que eu rebente, - respondeu Tuck, com
um significativo piscar de olho em resposta. - Wess, aposto
dez em como o venço a cortar estas caninhas e mais dez em como
carrego mais.
- Dez quê? - perguntou Wess, beligerante.
- Dez "rodas de carro"... dez "redondinhas" - replicou Tuck,
fazendo tilintar a prata no seu bolso.
- Wess, meu cabeça de atum, ele, quer dizer dez dólares -
explicou Cal.
- Está bem, aposto o dobro - retorquiu Wess, com ar de
superioridade.
- De acordo. É tudo quanto tenho e olhe que é pràticamente
dado - disse Tuck.
- De facto é, - interveio Enoch. - Bom, agora, escutem,
rapazes. Eu trabalho com Tuck durante a manhã. É justo, para
lhe ensinar o ofício. Depois do descanso do almoço, far-se-á a
competição: cortar uma fiada do campo e outra de volta aqui.
Eu serei o árbitro. Está bem assim, Wess?
- Acho bem - respondeu o rapaz.
- Bom, então, vamos trabalhar - disse Enoch, levantando-se.

163


- Tuck, venha comigo e faça o que me vir fazer.
Em seguida, encaminharam-se para o lado Poente da plantação
e, tomando cada um conta da sua fiada, dobraram os seus Corpos
robustos para começar a tarefa da colheita.
O procedimento da ceifa era simples. Os troncos de sorgo
cresciam com intervalos de um pé. Eram finos mas duros. A faca
tinha de ser afiada e a mão forte. Quando a haste era
decepada, era atirada para o braço esquerdo em arco ou
colocada no solo, de acordo com o método de trabalho de cada
um. O campo tinha cerca de uma milha de comprido e as fiadas
de caules estendiam-se por toda essa extensão.
Logo de início, a linha de avanço tornou-se irregular. Wess
tomou a dianteira, sem esforço aparente, parando, de vez em
quando,, baixando se e recomeçando a andar, como se andasse a
apanhar maçãs. Ia ganhando terreno e os outros rapazes

prosseguiam, conforme a sua capacidade. Enoch não perdeu muito
tempo nem se atrasou, apesar de dar instruções a Tuck. Alguns
trabalhavam a par e outros, gradualmente, iam ficando para
trás. Cal Thurman e Tim Matthews eram dois destes, pois Cal
nunca havia mostrado grande habilidade para as colheitas e
Tim, que era cavaleiro, detestava aquilo. Todavia, Cal
conservava avanço sobre ele.
Wess alcançou o ponto de partida à frente de todos, tendo
gastado uma hora e um quarto, na ida e volta. A camisa azul
estava tão ensopada em suor que parecia ter sido mergulhada em
água. As mãos estavam imundas e o rosto preto de poeira e
sulcado por fios de transpiração. Começou nova fiada antes de
os companheiros voltarem ao ponto de partida. Estes, logo que
chegaram, recomeçaram também, tal como Wesse fizera.


164

Serge Thurman largara o trabalho depois da primeira volta e,
quando os outros já estavam a findar a sua faina da manhã, a
refeição estava quase pronta. Um após outro, depois de Wess,
beberam copiosamente, lavaram as mãos sujas e estenderam-se
deliciados, à sombra. Mas, os seus ânimos logo se refizeram.
Cal ganhou a Tim pouco mais de trinta metros e dirigiu-se
para o seu abrigo, fazendo consideração sobre as fracas
ambições de Tim como ceifeiro. As suas palavras eram de molde
a enraivecer Tim, especialmente desde que este caira no
desagrado de miss Georgiana Stockwell e Cal subira no seu
conceito.
Porém, Cal não fez mais reflexões, Sentou-se para comer,
como que prevendo o avizinhar de borrasca. O acontecimento por
que ansiava estava prestes a consumar-se. Reparou no leve
sorriso de compreensão de Tuck Merry, que estava na
expectativa.
- Bom - disse Enoch, após ter devorado os últimos restos do,
seu prato de alumínio -, qual dos dois espectáculos é que nós
vamos ver primeiro?
- Dois? - perguntou o pai. - Qual é o outro, além da
competição entre Wess e o meu homem?
- Não ouviu Cal dizer a Tim: "Espera até logo"?
- Creio que sim. E que queria ele dizer com isso?
- Bem, Cal tem de dar uma tareia a Tim este ano, ou perderá
o seu melhor cavalo - informou Enoch.
- Filho, tu só fazes apostas tolas - replicou Henry.
- Pai, esta não é tão disparatada como pensa - disse Cal,
com um amplo sorriso.
- Cal Thurman, - atalhou Tim, com aspereza. - Olha que eu já
me habituei a considerar o teu cavalo como minha propriedade.
- Rapazes, vocês não podem perder o resto do dia nessas
conversas - disse Henry. - A não ser que o trabalho se faça.


165

- Não perderemos tempo nenhum com Wess e Merry - disse
Enoch. - Nós vamos com eles e, depois de findo o serviço,, Tim
e Cál podem pegar-se à vontade.
Voltaram todos ao trabalho, mas Enoch pôs Wess e Tuck Merry
a começarem à frente dele. Notava-se que, cada vez que um dos
ceifeiros se endireitava,, havia de perder um momento de
profundo interesse nos dois rivais, trabalhando furiosamente.
Wess ganhou vantagem e, gradualmente, afastou-se de Merry.
Faziam voar a poeira e espalhavam a passarada. Os gritos
encorajantes dos trabalhadores, na retaguarda, atroavam o ar
quente e parado. Os cavalos relinchavam com força, como se
estivessem muito interessados. Um cão de Wess corriaao lado do
dono, ladrando. As exclamações de quase todos eram em favor de
Merry.
- Não o deixes fugir, rapaz! - gritava um.
- Ele está a puxar, Tuck, mas não aguenta - berrava outro.
E, de facto, parecia ser verdade. O esgalgado competidor
começava a encurtar a distância entre ele e o ceifeiro
consumado. Wess esforçara-se demasiado, ou estava a abrandar
para ganhar fôlego para a ponta final. Apesar disso, chegou ao
fim do campo no seu melhor tempo e já ganhara vários metros da
corrida de volta quando Merry chegou a metade. Nesta altura,
Enoch parou de trabalhar e foi observar os rivais,. Os
restantes já o haviam feito antes. Wess conservou a dianteira
e acabou muito à frente de Merry, provando a sua incontestável
superioridade. Os outros vieram logo em tropel e começaram
animada discussão sobre perdas e ganhos.
- Ainda não se decidiu o prélio - declarou Enoch.


166


- Wess ganhou na ceifa. Agora, vamos ver quem apanha mais
sorgo.
Então, Wess iniciou a marcha ao longo de uma esteira de
sorgo cortado, juntando pequenas porções em pilhas. Quando
arranjou o número de medas que lhe pareceu bem, tomou um molho
de canas no seu braço e seguiu para o seguinte, até que
sobraçou uma enorme quantidade. Estava quase submerso numa
montanha de caules. Enquanto os segurava, Enoch media o
perímetro do feixe. Depois, Wess colocou-o no solo, com os
troncos ao alto, e o sorgo ficou de pé, como uma meda de
milho.
- Bom, Tuck toca a mostrar as habilidades - disse Enoch. -
Aqui para nós, tenho a impressão de que não é difícil bater
Wess.
Assim encorajado, Tuck Merry começou a recolher o sorgo em
molhos, um tanto ou quanto à maneira de Wess, embora com menos
perfeição,. Formou muItos mais feixes isolados que Wess.
Então, o rapaz principiou a apanhar as porções que tinha
preparado e cedo se tornou evidente que podia ter poupado
muito labor insano se tivesse formado menos molhos e maiores
porque, depois de ter um grande braçado, tinha dificuldade em
apanhar nova quantidade. Tacteava com o pé, depois largava a
sua carga e voltava a pegar no novo conjunto aumentado. A dada
altura, mais parecia um montão de sorgo com pernas, o que
divertia extremamente os espectadores. A cara emporcalhada de

Wess começava a exprimir pasmo.
- Ai, o diabo do rapaz que me vai ganhar! - exclamou ele,
admirado.
Mas, Tuck Merry continuou a apanhar feixes, até que
conseguiu reunir tudo quanto tinha juntado. De algures debaixo
da pilha, soou uma voz sufocada:


167


- Ainda... posso... apanhar... mais - disse, roucaMente.
- Não é necessário - replicou Henry. - Está ganho de longe.
- Vamos lá a ver - acrescentou Enoch, lançando a corda sobre
o grande feixe e estendendo-se depois no solo, para pegar na
outra ponta. Ergueu-se, então, cingiu os troncos e fez a
medida.
- Diabos me levem! - exclamou, com um sorriso. - Bateu Wess
por um pé de comprimento.
- Ah, perdi, mas não foi por tanto - declarou Wess.
- Toma lá, Wess. Mede tu, então - replicou Enoch.
- Não, Deves ter razão. Venham de lá esses ossos, Merry.
Tuck deixou cair a montanha de sorgo, ou antes, emergiu de
baixo dela, numa figura caricata e super-carregada de pó. Wess
pegou-lhe na mão estendida e apertou-a com o respeito de um
homem por um superior.
- Você ganhou a segunda parte - disse ele. - Agora, vamos
medir os braços. Estou com curiosidade de saber como é que
conseguiu o que nenhum ainda tinha feito.
Os dois altos ceifeiros colocaram-se frente a frente, de
braços caídos e saltou à vista de todos que os de Merry eram
cerca de dez centímetros mais compridos que os do seu
adversário.
- Bem, isto explica tudo - concluiu Enoch. - Todas as
apostas anuladas, rapazes... E, agora, voltemos ao trabalho.
Quando a colheita terminou por aquele dia, um terço do
grande campo tinha sido ceifado, o que Henry Thurman viu com
muito agrado.
- Com a breca, foi um belo dia de trabalho! - exclamou ele.
- Todos se Portaram bem, excepto Tim, que odeia trabalhar, e
Cal, que nunca há-de dar nada nisto.
- Parece-me que estiveram ambos a poupar as forças - opinou
Enoch. - Trabalharam muito devagar.
- Já me tinha esquecido disso - retorquiu Henry. - Vou
gostar de ver Tim dar outra lição a Cal. Oiça, Tim, vocês vão
bater-se antes ou depois de jantar?
- Já que me pergunta, devo dizer que preferia um pouco de
exercício antes de me lavar para ir comer - disse Tim.
A ocasião parecia estar para breve. Serge andava já de volta
do fogo e os outros descansavam nas mais cómodas e diversas
posições.
Cal estava mais do que pronto,. O seu olhar agudo tinha
visto Georgiana e sua irmã Mary na estrada. Vinham da escola,
onde Georgiana havia passado o dia, e, naquele momento,
aproximavam-se da cancela sob as nogueiras, a Pouca distância
do campo. Ninguém, excepto Cal, parecia tê-la visto.
- Muito bem! - exclamou Cal, com uma jovialidade totalmente
reflectida na imagem cadavérica de Tuck Merry. E, erguendo-se:

- já me ia esquecendo... Vamos, Tim... acho-te com má cara.
Estou com fome e quero despachar isto antes de comer.
Os circunstantes acolheram o discurso de Cal com espanto e
grande regozijo. Tim só compartilhou da primeira sensação.
Lentamente, pôs-se em pé, com o rosto vermelho, que ele tinha
limpado da poeira, mostrando dúvida e desdém. Olhou Cal de
soslaio. Não estava muito certo de existir motivo para o seu
desdém.
- Anda, prepara-te - gritou Cal, desafiante. - Salta para
aqui. Não quero que vás cair sobre o jantar que Serge está a
preparar. Tim, tiveste o prazer de me derrotar quatro vezes e
tens de ser tão paciente como eu fui e aguentares-te agora.


168 169


- Estás a irritar-me, Cal Thurman, - resmungou Tim. - És
muito atrevido, e vou vencer-te pela quarta vez, porque é
mesmo o que estás a pedir.
Foi colocar-se na clareira atapetada de erva, afastado do
grupo que estava debaixo da árvore e, certamente, à vista da
estrada. Era o que Cal desejava. Não tinha a menor dúvida
sobre o que ia suceder. Tuck Merry garantira-lhe que Tim não
durava três minutos.
Subitamente, Cal estendeu ambas as mãos, ainda com as velhas
luvas calçadas, e começou a dançar em torno de Tim, com um
jogo de pernas que fizera parte da dolorosa instrução recebida
de Tuck Merry. Tim, lutador rijo mas pouco lesto, tentou
aproximar-se, mas não conseguiu uma abertura para atacar. Cal
aumentou de velocidade nos seus passos, elásticos e Começou a
simular golpes, verificando no mesmo instante que Tim estava
desnorteado com aquela táctica.
- Rapazes, não percam isto - disse Cal, em tom cortante. -
Todos sabem como Tim odeia que alguém o atinja no seu narigão,
disforme. Agora, reparem bem.
Manifestamente, os espectadores estavam inteiramente
absorvidos, em profunda expectativa. Andando de volta, Cal
continuava a ameaçar Tim com a esquerda, apenas para o manter
em respeito, e fazê-lo esquivar-se: até surgir o momento
favorável. Então, com a direita, disparou um soco fulminante,
em cheio no nariz de Tim. Não havia dúvidas quanto ao efeito
causado!
- Sim, esta foi no nariz - exclamou Cal, com ironia,
evitando o impetuoso contra-ataque e continuando a saltitar.
Depois, mais rápido ainda, estendeu a mão esquerda para o
mesmo ponto sensível. Desta vez, o sangue espirrou.


170


- Espera que eu já te digo! - berrou Tim, ferozmente,
atirando-se às cegas.
Mas, tudo quanto conseguiu foi ser atingido terceira vez:
- Ai! - gritou ele.
- Então, seu palerma! - ripostou Cal, em que o jocoso da
situação começava a ser substituído pelo calor da luta, à

vista de sangue e com o pensamento numa justa desforra.
Tim magoara-o deveras nas brigas anteriores e vangloriara-se
por isso. Agora, era a retribuição e Georgiana Stockwell
assistia a ela, sentada na cancela.
Porém, Tim não soltou mais queixumes. Estava demasiado irado
para o fazer. Toda a algazarra provinha dos circunstantes.
Então, repentinamente, Cal mudou de sistema, saltando na
direcção de Tim para logo retroceder. Tim não recuou; seguiu
Cal, mas sempre em desvantagem, demasiado lento para atingir o
adversário. De repente, Cal socou os punhos erguidos de Tim e
conseguiu alcançar o rosto dele com a sua esquerda, com pouca
força, mas uma, duas, três vezes; depois quando Tim perdeu um
pouco do entusiasmo, Cal projectou poderosamente a direita
mesmo na boca do estômago de Tim, provocando um som cavo, e
deixando o outro quase sem poder respirar.
- Este foi no estômago! - exclamou Cal. - Reparem agora,
este vai ser a rapar os dentes!
Tim, com o rosto horrivelmente contorcido,, os olhos
desorbitados, boca escancarada, queixo caído, parecia sem
movimento, inutilizado,, ouvindo-se apenas a sua respiração
dificultosa. Precisamente como Tuck Merry fizera a Bloom,
assim Cal o pretendia imitar. Era ridiculamente fácil! O ar
dos pulmões de Tim fora todo expelido, e ele não conseguia
inspirar. Então, Cal rematou a questão com um "directo" ao
queixo. Tim caiu por terra, feito num feixe, e assim ficou.


171


No silêncio de pasmo que se seguiu, Cal debruçou-se sobre
Tim, que gemia em voz débil, e fitou o adversário derrubado.
- Levanta-te, Tim... antes que eu arrefeça - disse.
Mas, o pobre Tim mal começara a ingerir algum ar para os
pulmões. Não podia erguer-se nem levantar a cabeça,
estonteado. Então, os outros rapazes começaram a refazer-se da
sua surpresa e a dar largas a uma alegria selvagem e ruidosa.
Gritavam, berravam, davam urros, de tal modo que Cal não
distinguia as suas palavras.
- Bem, eu seja cão se Cal não pôs Tim a dormir! - exclamou
Enoch, com espanto absoluto.
Estavam todos maravilhados e alguns pareciam cép ticos
quanto ao jogo de pernas de Cal, mesmo incrédulos,
particularmente o velho Henry.
- Que diabo... tinha ele... dentro das luvas? - perguntou
Tim, com voz rouca, quando Enoch o auxiliava a sentar-se.
- Apenas os punhos - replicou Cal, descalçando as luvas e
atirando-as a Tim.
O cavaleiro vencido contemplou-as, pateticamente.
- Oh... ele tinha... pedras dentro delas - lamentou-se.
- Não, Tim, não tinha nada - disse Enoch, amigável.
E com o seu lenço começou a limpar o sangue da cara de Tim.
- O caso é que ele liquidou-te enquanto o diabo esfregou um
olho.
Cal ajoelhou ao lado de Tim e pegou-lhe na mão.
- Queres fazer as pazes? - perguntou.
Tim sentou-se e fitou, perplexo, o seu antagonista. Não
podia crer no que via, mas estava convencido do que tinha

acontecido. Era um momento difícil para ele. Vagarosamente,


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apertou a mão de Cal.
- Cal, realmente,... perdi - replicou, num arranco -, e, de
facto, era o que eu merecia... Mas, como é que conseguiste?
Uma parelha de coices é coisa má mas, quando me acertaste, foi
pior ainda!


173

CAPíTULo ix


Naquele sábado, último dia de recolha do gado de Outubro,
realizava-se o baile mais importante da estação. Mary
Stockwell observou, ao cair da tarde, dois cortejos numerosos:
um de cavaleiros que regressavam, cansados, ao rancho; outro
de veículos na estrada, em direcção à escola, onde ia haver o
baile. æquele acontecimento social acorriam famílias de todas
as secções da região, que partiam de suas casas de manhã cedo,
a fim de chegarem à escola a tempo de jantarem antes de
começar o baile.
Quando Mary saiu para contemplar o pôr do sol de Outubro,
viu Pan Handle e Arizona, de rostos luzidios e barbeados,
vestidos com os seus melhores fatos, sentados no alpendre.
Pareciam muito satisfeitos.
- Porque é que estão tão bem dispostos? - perguntou Mary.
- Vimos agora mesmo Lock Thurman voltar com o cavalo que ele
pensava que a garota dele ia montar - replicou Pan Handle.
- Ela foi ao baile com outro - acrescentou Arizona.
- Se visse a cara dele! - continuou Pan Handle. - Ele é
doidinho por Milly e ela tinha-lhe prometido ir com ele.
- Porque é que não foi? - inquiriu a professora, curiosa.
- Bom, creio que Lock Thurman se atrasou em ir buscá-la e
ela foi com Bid Hatfield.
- Não!


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- Foi, foi, e se isto não vai dar sarrabulho, eu seja cão -
prosseguiu Arizona.
- Mas... onde é que está a graça? - perguntou Mary. - Acho
que Milly procedeu muito mal e as perspectivas de luta não
fazem rir ninguém.
- Oh, Miss Mary, - respondeu Arizona. - Lock é muito
presumido e disse que Milly estava perdidinha de todo por ele.
E uma briga é sempre um bom espectáculo, mais ainda por se
tratar de Bid Hatfield; alguém tem de lhe dar uma ensinadela
um dia. Além disso, o baile não seria um bom baile se não

houvesse um namoro acabado e uma luta.
- Hum! Palpita-me que há duas lutas em vez de uma - declarou
Pan Handle. - Tuck Merry convidou Ollie Thurman para ir com
ele. Oh, Abe Turner vai ficar pior que uma bicha! Parece que
Ollie está hesitante entre os dois.
- Não tenho par para levar, mas não perdia o baile de hoje
nem a troco de um milhão de dólares! - observou Arizona.
- Vocês são muito malignos - disse Mary Stockwell.
- Bem, professora, - respondeu Arizona, com um misterioso
reflexo no seu olhar risonho. - Aqui por estes sítios também
há alguém que gosta muito da senhora.
- Oh!... - exclamou ela, surpreendida e confusa.
Sentiu-se corar e voltou-se, afastando-se rapidamente.
Quando saiu a cancela, sentiu que as pulsações se lhe tinham
acelerado.
"Estes rapazes! - monologou. - Apesar de travessos, gosto
deles."
O magnífico ocaso podia ter sido feito especialmente para
benefício de Mary. Outubro trouxera cores mais vivas às
colinas e efeitos de nuvens mais maravilhosos ao céu. Um véu
purpúreo e opaco cobria os vales entre oscabeços e outeiros

178


elevados e arredondados, e sobre eles a luz doirada do poente
espalhava-se através das nuvens cor-de-rosa. O pôr do sol ali
parecia-lhe diferente de quantos tinha visto noutros sítios.
Eram terras do Arizona, distintas de quaisquer outras. Acabara
por gostar profundamente de tudo aquilo. E Tonto Basin era a
mais bravia das paragens do Arizona... Ela tentou compreender
o exacto significado do seu estado de espírito. Grandes
extensões de terreno despovoado, sucedendo-se indefinidamente,
profundamente sulcados e erguendo os seus cumes para o
firmamento, cordilheiras nuas, cinzentas ou cobertas de mato
de um verde macio e os grandes declives de pinheirais,
desfiladeiros pedregosos e regatos efervescentes, arestas
vivas de rocha avermelhada, ponteagudas, precipícios
amarelados, rodeados pela ramaria dos abetos, pássaros e
animais selvagens por toda a parte, que ela via no seu caminho
para a escola, as clareiras nas florestas, a que aqueles
pioneiros chamavam ranchos, e, por fim, os rapazes
desempoeirados e rudes, simples e bondosos mas também
selvagens nas suas maneiras, à semelhança do ambiente que os
cercava, tudo isto se misturava no espírito de Mary Stockwell
sem que ela conseguisse exprimir o apreço que nela nascera.
Naquela noite, Georgiana estava num dos seus momentos de
pior disposição. A julgar pela expressão de Cal à mesa do
jantar, ele e Georgiana tinham-se arrufado por qualquer
motivo. Como resultado, Georgiana estava muito atrasada na
preparação dos seus vestidos e fazia esperar o grupo que havia
de ir no carro de Enoch. Mary divertia-se com a impaciência
dos rapazes em sair, mas estava um pouco preocupada com
Georgiana. A irmã não estava a brincar. Ou estava mesmo
zangada ou farta de dissimular, ou começara a mudar para pior.


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Mary receava a última hipótese.
Naquele momento, Georgiana saiu do seu pequeno quarto,
brilhante e escassamente vestida, com mais pó e pintura no
rosto do que Mary jamais tinha visto. Se não fosse o excesso
de colorido, teria parecido maravilhosa. Os seus olhos,
todavia, não necessitavam de arranjo. Eram escuros e
cintilantes e cheios de malícia.
- Bem, querida, se queres causar sensação neste baile,
certamente o conseguirás - disse Mary. - Contudo, receio que
não seja o género de sensação que tu pretendes.
- Deixa-te de ideias tontas! - exclamou Georgiana. - Os
homens são todos iguais, quer seja em Nova Iorque, na åfrica
ou... em Tonto Basin.
- Georgiana, pensas que os homens querem que as raparigas
pareçam... o que tu Pareces? - perguntou Mary, incrédula.
- Não penso, tenho a certeza... Minha boa irmã, há coisas
que nunca hás-de aprender, acredita-me...
Foi interrompida por alguém que bateu à porta. Mary foi
abrir e Cal surgiu à entrada.
- Olá, Cal! Entre, - disse ela.
- Não, obrigado -, replicou ele, ficando parado.
A luz brilhava no seu rosto. Estava pálido e inquieto, quase
carrancudo. Mary achou que ele estava singularmente atraente.
Vestia um fato escuro que oferecia vincado contraste com o
trajo habitual de cavaleiro.
O seu olhar percorreu Georgiana dos pés à cabeça, com uma
expressão - que Mary achou estranha.
- Então... não vens comigo, pois não? - perguntou ele,
arriscando-se.
- Nem a este baile, nem a outro, nem a parte alguma -
replicou ela, secamente.
- Quem é que te leva esta noite? - indagou ele, rígido.


180


- Não é da tua conta, mas, se estás tão desejoso de saber...
vou com Tim - respondeu ela.
- Tim! - exclamou Cal.
- Sim, Tim! - retorquiu ela, espicaçada pela surpresa dele
ou por qualquer outro motivo desconhecido de Mary.
Georgiana nunca saira com Tim Matthews.
- Deves ter-te visto atrapalhada para arranjar par -
ripostou Cal, com sarcasmo. - Em todo o caso, se Tim não
gostar desse vestido... podes convencer Bid Hatfield a
levar-te.
- Tím é um cavalheiro - disse Georgiana. - E Hatfield também
sabe sê-lo, o que já não se pode dizer de certas pessoas.
- Admites... que és capaz de dançar com Hatfield? -
perguntou Cal, como que obrigado a fazer uma pergunta que
odiava.
- Porque não? - contra-atacou ela, com desafiante segurança.
O rosto pálido de Cal ganhou cor.
- Georgie, - começou ele, com um ardor completamente isento

de ciúme -, eu sei que me desprezas e que não queres saber dos
Thurman; mas, adoras a tua irmã e... por amor dela, não dances
com Hatfield... e não tentes nenhuma dessas novas danças que
tens andado a ensinar aos rapazes.
- Vai lá que logo vês - disse Georgiana, deliberadamente.
As duas manchas rubras das suas faces já não eram devidas
apenas à pintura.
- Não irei lá - respondeu Cal.
E, girando sobre si mesmo, afastou-se, embrenhando-se na
escuridão.
Mary cerrou a porta.


181


- Georgie, julgava que tu e Cal andavam de bem nestes
últimos tempos.
- E assim era. É isso o que mais me aborrece. Pensei que o
tinha acorrentado.
- Pobre Cal! Que fez ele desta vez?
- Que fez? Saltou-me em cima porque eu andava a ensinar uns
passos novos. E, depois do jantar, disse-me que se eu pusesse
este vestido branco não me levava ao baile. É preciso
descaramento! O louco anda com a mania de ser mandão! Por
isso, convidei Tim.
- Cal é novo, excitável e ciumento, bem sei. Mas, Georgie,
não há dúvida que pensa nos nossos interesses. Somos estranhas
nesta região. Tens feito coisas de doida e talvez ele já te
tenha evitado alguns maus bocados.
- Oh, Mary, para ser franca... Cal tem sido bom. Cheguei a
gostar dele. Não estou a mentir. Mas, não posso tolerar
aqueles ares de senhor e hei-de fazer-lho ver esta noite.
- Ele não vai lá - respondeu Mary.
- Podes saber muito acerca dos homens, irmã, mas ainda te
falta um bom bocado. Cal não poderia perder este baile.
- Ouve! Lá está Enoch a tocar a buzina outra vez.
Despachemo-nos! Abafa-te bem. Estas noites são frias. Eu... eu
estou desejosa por que este baile acabe.
- Mary, esta vida é esplêndida, desde que não se fraqueje -
retorquiu Georgiana.
Lá fora, na estrada, o grande carro estava repleto de
alegres rapazes dos Thurman, todos, excepto- Enoch, acomodados
da parte detrás.
Enoch começou a tentar recuperar o tempo de espera. Ao longo
do vale, guiou tão depressa que Mary ia fascinada e, ao mesmo
tempo, assustada. Os faróis projectavam os raios de luz para a
frente, sobre a estrada amarelada e sinuosa, com as suas sebes
e muros de vegetação. Coiotes, doninhas e coelhos atravessavam
os focos luminosos. A folhagem das árvores tomava um rico
matiz verde, as bagas de zimbro brilhavam como diamantes e os
ramos das macieiras avermelhavam-se mais. O ar da noite estava
penetrantemente frio e o céu azul escuro maravilhoso com as
miríades de estrelas. Chegou a altura em que Enoch teve de
abrandar a marcha e seguir cautelosamente sobre terreno
rochoso e sedimentar e nas curvas muito apertadas. Os dez
ocupantes do assento traseiro continuavam na mesma galhofa.
- Mary, diga-me o que é que atormenta Cal - pediu Enoch, em

voz baixa. - Nunca o vi como esta noite.
Ela contou-lhe tudo, resumidamente, sem poupar Georgiana.
- Estou inquieto por causa dele - prosseguiu Enoch. - Isto
assim não dá nada. Percebe-me, não é verdade, Mary?
- Creio que sim - disse ela.
- Sempre pensei que você nos compreendia e tem sido muito
boa. Cal é o melhor de todos os Thurman. Reconheço que o que
lhe ensinou durante dois anos teve grande influência nisso. Os
pais pensam como eu... nós devemos-lhe muito, Mary.
- Oh, não! Não me devem nada - murmurou Mary, surpreendida
pelo calor da voz dele.
- Bem, não quero discutir, mas bem vemos a sua obra na
escola. Nunca tivemos ninguém como você. Os nossos garotos,
vindos de toda a parte desta região inóspita, iam à escola com
grande custo. Mas, gostam de si e aprendem depressa. É um belo
trabalho o seu, Mary Stockwell.
- Obrigado, Enoch... Eu... eu apenas posso dizer que me
sinto feliz com as suas palavras... e que é uma missão que eu
adoro.


182 183


- Tenciona continuar a ensinar as nossas crianças?
- Certamente, enquanto quiserem ter-me cá.
- E não sente saudades do Este... de tudo quanto lá deixou.
- Não.
- Então, quer ficar no Arizona?
- Sim. Gosto muito disto.
- óptimo - disse ele, com ardor que modificou o seu falar
arrastado do Texas. - Se pensa assim, Mary, e quer prosseguir
no seu professorado, é porque gosta da nossa gente de Tonto.
- De facto... assim é - respondeu Mary.
- Nós somos apenas simples pioneiros e bastante rudes.
- Se é como diz, então, também devo ter algum sangue de
pioneiro nas veias - respondeu Mary, um pouco nervosa.
O tom da voz de Enoch emocionara-a. Havia qualquer coisa
oculta nas suas afirmações e ela sentiu que ele ia abrir-se
mais ainda. O seu coração alvoroçou-se. Iria aquele passeio
explicar o estranho feitiço que a tinha obcecado durante a
hora do pôr do sol? Ia suceder qualquer coisa. Lançou um olhar
de revés a Enoch. Era impossível vê-lo distintamente mas
parecia calmo e tranquilo como de costume e conduzia o carro
por caminho mau com todo o cuidado.
- Mary - começou ele, após um longo silêncio. - Desde que
chegou que me apaixonei por si, mas nunca tive ilusões, senão
Ultimamente. E, agora, consegui coragem suficiente para lhe
pedir que case comigo.
Não lhe perguntou se ela fazia ideia do que seria a mulher
de um rancheiro naquela região dura. Essa omissão e a
simplicidade da sua proposta pareceram a Mary que a
enalteciam. Seria ela como ele pensava? Fosse como fosse,


184

só sabia que era o homem mais feliz de toda a sua vida.
- Sim, Enoch, eu... eu casarei consigo - disse, num
murmúrio.
A mão direita dele largou o volante e pegou na que Mary já
lhe estendia. Através da luva, ela sentiu a aspereza e a
força dele, ao estreitar a sua.
- Bem, creio que este baile vai ser dos mais alegres para
mim - disse ele.
Mary deu consigo a tentar avaliar a súbita mudança de
finalidade da sua vida. O seu pulso tinha-se acelerado e os
nervos sacudiam-na. Uma sensação de calor, de plenitude e de
esperança invadia-lhe o coração. Afinal, o seu pequeno idílio
não fora um sonho. O seu amor secreto por aquele desempenado
representante da gente pioneira não necessitava de continuar
escondido; como coisa em que não devia pensar. Sentia-se
agradecida pela maravilhosa oportunidade de ser uma mulher e
uma auxiliar. Encontrara o seu lugar na vida.
Enoch comprimiu a mão dela e foi guiando com a esquerda.
Atrás deles, a alegria crescia à medida que o tempo decorria.
Henry Thurman assobiava uma das suas modas favoritas que
tocava na rabeca. Toda a gente, excepto Georgiana, parecia
divertir-se. Mary, naquele momento de ventura, não esquecia a
sua caprichosa e voluntariosa irmãzita; e pensou que como
noiva de Enoch poderia ter sobre ela uma preponderância maior.
O carro penetrou na densa floresta, subiu uma longa encosta
e zumbiu no caminho cheio de curvas para, finalmente, descer o
que parecia um interminável despenhadeiro. Enoch não ia muito
descuidado mas perdera um pouco da habitual prudência a
conduzir.
Adiante, o negrume deu lugar a um clarão amarelo, e em breve
brilhou uma enorme fogueira, à beira do terreno que circundava
a escola. æ sua volta, um grande grupo de adultos e crianças,
todos a comer sorvetes. Um moço de lenço vermelho fazia a
distribuição, servindo-se de uma geleira. Era evidente que os
organizadores daquele serão pretendiam manter os ânimos
refrescados.
A chegada do carro dos Thurman deu origem a enorme clamor.
Manifestavam o seu regozijo pelo aparecimento do principal
factor de entretenimento: o velho tocador de rabeca. Mais
gente jovem saíu da escola. Muitos cavalos estavam presos a
barras de madeira e o ruído assustava-os. Um deles começou a
escoicear e meia dúzia de rapazes correu -a segurá-lo. Porém,
quebrou a córda que o prendia e desarvorou pela estrada fora.
Rapazes e raparigas escoltaram HenryThurman até ao edifício
da escola. Mary verificou que era Enoch quem a conduzia, ao
mesmo tempo que tentava proteger a cesta dos doces. Mary
perdeu Georgiana de vista.
O interior da escola era familiar a Mary, embora naquela
noite lhe surgisse com um aspecto mais pitoresco. As paredes
caiadas tinham sido cobertas em alguns sítios com recortes de
jornais e revistas. A luz, fornecida por uma pequena lâmpada a
cada extremo da sala, era tão fraca que Mary teve dificuldade
em reconhecer as pessoas. Todas as carteiras tinham sido
arredadas. Ao longo das paredes, uma linha de bancos, cadeiras
e caixas. A um canto, um fogão, atrás do qual se sentava um
grupo de mulheres com crianças nos braços. Os miúdos corriam
por toda a parte, rindo e gritando a sua alegria sem peias.
- Tira a rabeca da caixa - disse um vigoroso cavaleiro a

Henry, sendo secundado por muitos outros.
O rosto escuro e enrugado de Henry Thurman iluminou-se. Ele
era o diapasão daquela festa e orgulhava-se da sua


-186-


importância. Mary não percebeu a sua resposta. Ele sentou-se
numa caixa e, inclinando-se sobre o instrumento, deu algumas
notas. Lock Thurman sentou-se a seu lado e com duas varas
finas bateu o compasso na rabeca.
Era o sinal para os pares e para as crianças. Quarenta pares
e cerca de vinte miúdos começaram a girar em volta da sala. Os
mais novos dançavam à sua maneira e Mary viu-se arrastada pelo
braço forte de Enoch. Depois, tudo quanto pôde ver foi a
multidão de pessoas. De vez em quando, sentia os garotos
passarem a correr ou puxarem-lhe pelas saias, e ouvia as suas
exclamações alegres, mas não podia vê-los. Para um cavaleiro
que usara botas pesadas toda a sua vida, Enoch creditava-se
como dançarino muito razoável. Como todos os outros, não
dançava nada mal. O que embaraçava Mary era que ele não se
fatigava e o tocador de rabeca parecia ter corda para muito
tempo. No entanto, Mary gostou da dança e sentiu-se ainda mais
integrada no ambiente.
Quando, por fim, Henry e Lock interromperam o seu esforço
conjunto, os mais novos correram todos para o exterior, para
ir comer gelados. A maioria das raparigas esqueceram-se de pôr
os seus casacos e uma delas foi Georgiana. Ao clarão da
fogueira, apresentava uma visão destinada a ficar
indelevelmente marcada na memória de quantos a viram. Os
rapazes olhavam-na, fascinados; as raparigas maravilhadas com
a audácia e beleza do seu vestido branco, e as pessoas de
idade com ar de censura.
Mary não demorou em perceber que Georgiana gozava com a
sensação que criara, particularmente entre os rapazes, que
enxameavam à sua volta. Mary conseguiu ver Hatfield mais
distintamente. Era um tipo de elevada estatura, de forte
compleição, bonitote - em demasia - tanto no aspecto como no
trajo. æ semelhança de muitos dos presentes, dançava sem
casaco nem colete. Vestia uma camisa azul, lenço vermelho,


187


cinto com botões prateados e calças escuras muito justas, que
salientavam os seus músculos de cavaleiro. A coronha de
madrepérola de uma arma aparecia no bolso detrás, o que
surpreendeu Mary, que chamou a atenção de Enoch para o facto.
- Afinal - disse este. - Bid não é o único que está armado.
O seu tom de voz e o seu olhar sobressaltaram Mary. Sob a
jovial simplicidade daquele baile, existiam os instintos
perversos que haviam sido herança de tempos atrás.
Resolutamente, Mary afastou todos os pensamentos sinistros.
Aquele dia significava muito para ela e queria desfrutá-lo
enquanto pudesse. Pressentia que em breve ia haver agitação,
pelo que não prestou mais atenção a Georgiana e se entregou

por completo à alegria do momento.
Dançou quatro músicas seguidas com Enoch, todas extensas e
cheias de repetições e, então, Wess convidou-a para seu par,
numa música à americana.
Vários rapazes entravam, de início, sem par e tinham o
privilégio de tomar as raparigas que andavam a dançar com os
outros. Era um género que lhes agradava em extremo e começaram
a entusiasmar-se. Mary e Georgiana, por esse motivo, mudaram
constantemente de parceiro. Georgiana mal chegava mesmo a
ensaiar alguns passos com cada um. Bid Hatfield estava
atrapalhado para conseguir alcançá-la. Por fim, Bid Hatfield
logrou a sua vez com Mary e esta verificou que era o que
melhor dançava. Então, Enoch, pela primeira vez naquele número
especial, foi buscá-la, dizendo-lhe ao ouvido:
- Não me importo que Hatfield dance com a minha rapariga.
Mas, vou anunciar a todos o nosso noivado.
- Oh, ainda não!... - murmurou ela.
Mas, Enoch, sorridente, negou com a cabeça.
No fim da música, Mary estava encalorada, ofegante, exausta.


188


Apetecia-lhe descansar. As crianças, todas suas alunas,
gravitavam à sua volta, parecendo terem descoberto nela alguma
coisa de interesse para elas. Pálidas e de olhos muito
abertos, davam mostras de uma excitação invulgar e estavam a
cair de sono. A senhora Gard Thurman e outra mulher estavam a
um canto a deitar as crianças. Dez ao todo adormeceram
depressa, lado a lado, em leitos de tapetes e cobertores
transportados evidentemente com aquele propósito.
Quando os pares se aprestaram novamente, o velho Henry
Thurman ergueu-se, de rabeca em punho, e fez ressoar algumas
notas agudas para chamar a atenção.
- Amigos - disse -, como membro da direcção da escola,
compete-me a mim, esta noite, estender um voto de
agradecimento à nossa boa professora, Miss Stockwell. Gostamos
muito dela. E era com muito prazer que eu ia pedir-lhe que
ficasse connosco mais tempo. Mas, agora, já não é preciso
pedir-lhe. Miss Mary decidiu formar o seu lar aqui em Tonto...
e o felizardo é o meu filho Enoch.
Sóneste momento Mary reparou nos olhares que estavam fixos
nela. A sua ventura teria sido completa se soubesse de
Georgiana. Perguntava a si mesma porque é que a irmã não teria
ido ter com ela, como todos os outros. Porém, Georgiana não
estava presente no momento da notícia. A meio da música
seguinte, enquanto Mary repousava, de conversa com a senhora
Thurman, Georgiana correu para ela, seguida por Hatfield, que
parecia ser o seu par.
- Mary... ele disse que tinham anunciado o teu noivado com
Enoch - proferiu ela, emocionada.
- Quem foi que disse? - perguntou Mary, risonha.
- O meu par... o senhor Hatfield - replicou Georgiana. -
Pensei que estivesse a troçar de mim, mas ele jura que não...
Mary, tu pareces...

189


- Minha querida, tenho muito gosto em confirmar que é
verdade.
- Oh! Vais casar com Enoch... viver aqui em Tonto? -
inquiriu a jovem, com voz incrédula.
Os seus belos olhos tinham escurecido, dilatados pela
surpresa.
- Sim, Georgie - replicou Mary.
- Meu Deus! Que será de mim? - sussurrou a rapariga.
Antes que Mary respondesse, Hatfield adiantou-se. Tinha um
ar prazenteiro e causava uma impressão favorável.
- Miss Stockwell, os meus parabéns - disse. - Enoch
Thurman...
Foi interrompido pela chegada de Cal, que se aproximou de
Mary, pálido e ansioso, e se inclinou para a beijar.
- Nunca me senti... tão feliz na minha vida - disse ele,
arquejante. - Vai ser mulher de Enoch e minha irmã. Estamos
com sorte os dois.
- Cal... você... deixa-me embaraçado - respondeu Mary, a
rir. - Não fazia ideia de ser tão popular.
Então, Cal Reparou em Georgiana e Hatfield. Ela fez-lhe um
ligeiro aceno com a cabeça e o seu par cumprimentou-o. Cal
olhou-os fixamente, com frieza, e depois, sem palavras, num
gesto, voltou-lhes as costas. Georgiana tornou-se escarlate.
Quaisquer vestígios de dignidade que ainda possuísse tinha-os
perdido com a sua reviravolta sentimental para Hatfield.
- Anda, Bid. Danças muito bem - disse ela, chegando-se a ele
e fitando-o nos olhos.
Hatfieldnão se fez rogado em aceder. Porém, no entender de
Mary, se Georgiana esperava esmagar Cal daquela maneira,
enganara-se. Cal, aparentemente, nem a vira nem ouvira as suas
palavras.
- Dance comigo, por favor - pediu ele a Mary.


190


- Espere para a seguinte, Cal - respondeu a professora. - Da
última vez, fiquei estafada.
- Quê? Na noite do seu noivado? Porquê, professora? -
retorquiu Cal, trocista.
- Bem, não estou derreada, como Tuck Merry costuma dizer,
mas preciso de descanso.
- Onde está Tuck? Estava mortinho por vir esta noite.
- Na verdade... ainda não o vi a dançar. Mas, com certeza
está cá. Veio no mesmo carro que nós... Cal, você veio a
cavalo?
- Vim, e vim quase a voar, quando me resolvi - respondeu
Cal, com uma franca gargalhada.
- Tinha dito que não vinha. Que é que houve? - perguntou
Mary, com amável curiosidade.
- Bem, não foi para me divertir. Tive um palpite de que ia
acontecer qualquer coisa e eu podia ser preciso.
- Cal, quer dizer briga?
- Não. Eu não viria para entrar em lutas ou evitar que

alguém o fizesse.
- Então, porque é que veio? - insistiu Mary, mais
interessada.
Cal fazia denodados esforços para reprimir a sua excitação.
Parecia mais homem, pleno de forças de reserva, e o seu ar de
tristeza ficava-lhe bem. Todavia, mostrava-se evasivo e ria-se
com as perguntas de Mary. Ela olhava-o atentamente, notando os
seus intentos de se tornar uma companhia agradável, e os seus
olhos que perscrutavam os pares de dançarinos, tentando
lobrigar Georgiana. Porém, quando ela se aproximava do sítio
onde ele estava sentado, não dava qualquer sinal de sequer a
ter visto.
Mary reparou, com inquietação, que o modo de dançar de
Georgiana se tornava escandalosamente provocante.
- Cal, você disse que não veio para se divertir - disse
Mary.


191


- Não deve fazer isso. Dance e tire o melhor partido.
- Professora, o meu coração está despedaçado - replicou ele,
com ar sombrio.
- Oh, Cal! - exclamou ela, apoquentada.
Abruptamente, ele deixou-a e não regressou senão quando
começou o número seguinte. Então, pareceu-se mais consigo
próprio,mas Mary ainda não se sentiu confiante. Havia qualquer
coisa a agravar-se dentro do rapaz. Ela adivinhava-o e nasceu
nela um certo receio. Durante a dança, perpassaram-lhe no
cérebro muitas coisas que lhe queria dizer.
- Cal, não está a dançar tão bem como é costume.
- Creio que não, professora. Não consigo concentrar-me na
música.
Cal, em que está a pensar?
Antes que ele pudesse responder, Enoch debruçou-se sobre
eles e afastou-os para um recanto.
- Cal, peço-te que fiques aqui até eu voltar - pediu Enoch,
com ardor.
- Está bem - respondeu Cal.
Era uma promessa e a expressão das suas convicções. Tinha
adivinhado porque é que o seu irmão lhe pedira que ficasse
ali.
- Anda, Mary, preciso de ti - prosseguiu Enoch, tratando,
pela primeira vez, por tu a sua noiva oficial.
E levou-a para o exterior. A noite estava fria e escura, e
as estrelas cintilavam sobre os pinhais. Junto à fogueira
festiva, soavam conversas, risos e cantigas e viam-se vários
pares a passear no clarão do fogo.
- Mary, quando eu ia a entrar, alguém me tocou no ombro e me
avisou de que Georgiana estava a... exceder-se com Bid
Hatfield - murmurou Enoch. - Com Tim a embriagar-se e Cal aqui
presente, isto não pode dar bom resultado. Acaba por alguém
lhes ir dizer e é o fim do mundo.


192


- Que havemos nós de fazer? - Perguntou Mary.
- Acho que a única solução é levar Georgiana para dentro e
conservá-la lá.
- Por isso, creio que posso responder eu - afirmou Mary.
- Bom, talvez. Bem sei que tens dificuldade em dominá-la,
mas, em qualquer dos casos, ela está acolá no meu carro com
Hatfield, e digo-te que se não se põe ponto final àquilo, vai
haver...
- Espera aqui. Eu vou - declarou Mary.


193


CAPíTULO X


Num misto de vergonha e de desespero, Mary correu para o
negrume da floresta, para encontrar Georgiana. Não tencionava
atenuar a gravidade do caso. Não estava bem certa de que
espécie de catástrofe estaria iminente, mas calculava que
alguma havia de ser. Cal parecia excessivamente indiferente,
demasiado descuidado para ser sincero, e a ela não passara em
branco o significado das palavras de Enoch. Georgiana era uma
intrusa e as coisas começavam a entortar-se-lhe.
Havia namorados a passear sob os pinheiros e aqui e além
vozes abafadas vindas da escuridão. Mary teve certa
dificuldade em descobrir o carro de Enoch e foi a voz bem
conhecida de Georgiana que lhe guiou os passos.
- Acabe com isso, sim? Não quero o meu vestido mais
amachucado do que já está - estava Georgiana a dizer.
A resposta de Hatfíeld soou bastante profunda e divertida:
- Também, ele não tem muito que amarrotar...
Mary apressou-se a chegar junto do carro. Na penumbra, podia
divisar a figura branca de Georgiana. Parecia estar nos braços
de Hatfield. Naquele momento, ele inclinava-se para a beijar.
Georgiana tentava libertar-se,, mas a sua reacção não era de
modo algum desesperada.
- Georgiana, sai desse carro e volta para a escola - ordenou
Mary, numa voz que nunca usara até então. Hatfield soltou
Georgiana e saiu do carro.


197


Mary podia ver o brilho pálido do rosto da irmã. Georgiana
ficou um momento sentada, em silêncio.
- Achas que sou uma criança, para ser mandada?
- A tua conduta é ignominiosa - retorquiu Mary, friamente. -
Se não tens respeito por ti, exijo que tenhas algum por mim.
- Mary! - exclamou Georgiana.
Depois, sem mais palavras, desceu do carro e correu para o
edifício da escola. Mary começou a segui-la mas Hatfield
interpôs-se.
- Miss Stockwell, devo dizer-lhe que a culpa foi minha -

disse ele. - Georgiana não queria sair.
- Não são precisas desculpas, senhor Hatfield, - replicou
Mary. - Não o acuso de nada; mas, se quer um conselho, sempre
lhe digo que esse namoro tem más consequências.
- Obrigado, mas eu bem sei com quem tenho de me haver.
Contudo, não sei em que é que posso ser incriminado. A sua
irmã deve gostar de mim, de contrário não me... ,ligaria
importância. Se assim for, estou disposto a lutar contra todos
os Thurman.
- Concordo consigo - respondeu Mary. - Mas, o pior de tudo
isto é que... Georgiana não quer saber de si. Eu... eu, na
verdade, preferia que assim fosse, pois não teria de me
envergonhar dela.
- Olhe, Miss Stockwell - continuou ele, atrevido. - Espero
que a senhora seja justa, Eu amo Georgiana e ela podia
tornar-me um tipo decente. Nenhuma rapariga beija nem... nem
fala como Georgie. se não tiver interesse. Bem sei que ela é
uma rapariguita endiabrada... e gosta de que os rapazes percam
a cabeça por ela. Mas, não devia ir... tão longe, a menos que
o rapaz lhe agrade.
- Creio que ela é pessoa para isso - replicou Mary. - Não
tenho a certeza. Parece destituída de vergonha, de
consciêncía... para não dizer mal. Anda apenas a brincar
consigo.


198


Hatfield mostrou-se chocado. Fitou atentamente o rosto de
Mary.
- Diz que... sua irmã? - perguntou, suspendendo a
respiração.
- Sim, acredito que sim. Não quero ser desagradável para si
nem injusta para ela. Mas, há-de concordar que a situação é
delicada.
- Reconheço que sim. Talvez pior do que se pensa - murmurou
ele.
- Não tenho mais nada a dizer, senhor Hatfield - terminou
Mary, afastando-se.
- já disse até de mais. Mostrou-me as coisas como elas são.
Agradeço-lhe e lamento que ela seja sua irmã. Se quer aceitar
uma ideia minha, mande-a para donde ela veio. Tonto não aceita
raparigas mal comportadas.
Mary esboçou um gesto de concordância e, apressadamente,
regressou à escola. Hatfield não parecia ser tão mau como se
dizia e, provavelmente, uma rapariga realmente boa teria feito
maravilhas dele. Tinha, afinal, as mesmas características de
rude franqueza de todos os cavaleiros de Tonto. As suas
últimas palavras e, especialmente, a sua sugestão acerca de
Georgiana, inquietavam-na imenso. De facto, a irmã não se
adaptava àquele meio primitivo.
Então, Enoch surgiu junto de Mary e estendeu-lhe a sua mão,
à qual ela se apoiou.
- Não há dúvida que desempenhaste bem o teu papel. - disse
ele. - Georgíe chegou esbaforida e, quando tentei fazê-la
parar, que pensas que disse ela?
- Faço lá ideia! - replicou Mary, desanimada.

- Bom, teve piada. Vi-a chegar e disse-lhe: "Georgie, como,
em breve, vou ser uma espécie de pai para ti, acho melhor que
faças as pazes comigo."


199


- Enoch, tu disseste isso?
- Certamente. E aquela gatinha brava relampagueou um olhar
para mim e retorquiu, mais arisca que nunca: "E se você fosse
à fava?"
Enoch riu com vontade e deu uma palmada na perna. Mas, Mary
não tinha disposição para rir; estava prestes a chorar.
Quando entraram na escola, o baile estava no auge da
animação. As crianças dormiam todas no recinto reservado para
isso. As pessoas de idade observavam e conversavam. Henry
Thurman tinha aquecido no desempenho das suas funções de
tocador e os rapazes e raparigas tinham começado a dançar como
devia ser, no dizer de Enoch. Mary achou que a única diferença
era haver mais gente, música mais rápida e uma alegria e
excitação sempre crescentes. Via agora que aquela ocasião era
importante, com o seu corropio interminável ao ritmo da
rabeca, pois era, de facto, a melhor para os jovens de Tonto
arranjarem namoro.
Toda a gente parecia agir e falar com perfeita naturalidade;
por isso, Mary duvidava da possibilidade de haver rixas. Cal
estava sentado com seu tio Gard e parecia ignorar a presença
do elemento feminino. Hatfield conseguira lugar perto de uma
janela, reclinado entre atraentes raparigas, desconhecidas de
Mary. Georgiana estava situada debaixo de uma lâmpada, o que,
na opinião de Mary, não devia ser casualidade, e não tinha
falta de admiradores. Tuck Merry parecia muito entretido, sem
rivais perto da jovem que acompanhava. Se tinha andado à
pancada com alguém, não o aparentava. Tim Matthews tinha a
cara muito vermelha e a língua muito solta. Aparentemente,
todavia, eStava bem humorado. Estava com alguns rapazes junto
da porta, todos de pé, e, quando ia a deixá-los, alguém o
reteve. Enoch disse que deviam ter uma garrafa com eles e que,
se Tim continuasse a beber, em breve seria posto na rua.


200


Mary não teve dificuldade em reconhecer que a maioria daqueles
simpáticos rapazes rodeavam Tim para o conservarem à parte de
qualquer sarilho. Tim devia ser o único no baile que não
reparara ainda nas atenções que Hatfield dedicava a Georgiana.
No conjunto, era um quadro ameno da vida da floresta, embora
Mary se sentisse intranquila. A simplicidade e a franqueza
tinham desaparecido em muitos sectores da vida americana, mas,
ali, persistiam. Quase todos aqueles rapazes tinham feito
serviço militar durante a guerra e alguns deles haviam estado
em França. Boyd Thurman era um bom exemplo! Contudo, ninguém o
adivinharia. Nem mesmo a influência de uma guerra tremenda
modificaria aqueles jovens do Arizona. As suas vidas tinham
sido muito livres, muito duras e difíceis para que o treino

militar causasse neles alguma mudança.
Mary recordava bem a resposta de Serge Thurman, quando lhe
perguntara que recordações trouxera da guerra: "Bom, creio que
foi só uma constipação e uma pancada na cabeça".
Henry Thurman pôs fim ao intervalo com um tanger das cordas
da rabeca.
- Escolham os pares - disse ele. - Vou começar a tocar e
sempre quero ver quem são os valentões que se aguentam.
Um clamor coroou o discurso de Henry. Era, sem dúvida, um
desafio lançado pelas raparigas e aceite pelos rapazes. A
música começou e todos correram para a pista de dança.
Enoch dirigiu-se a Mary.
- Tenho andado à procura de ti em toda a parte. Esta dança
pertence-me.


201


- Isto é à americana. Fico estafada. Não poderias ficar ao
pé de mim, em vez de me compartilhares com todos os Tim,
Dick e Harry que aqui estão?
- Eu conseguirei fugir a alguns.
Mas enganava-se. Mary estava na berlinda. Era-lhe arrebatada
incessantemente e, logo que ele a reavia, não conseguia dar um
passo antes que lha levassem outra vez.
Por fim, aborrecido, desistiu. Mary viu-se grega durante
aquele número. Os rapazes, feridos no seu amor-próprio pelo
desafio das raparigas para as cansarem, estavam alegres,
persistentes e absolutamente incansáveis. Mary dançou até
sentir a cabeça tonta e os pés paralisados. Mas, a animação do
momento era contagiosa.
A partir dali, Mary tornou-se espectadora. A dança continuou
e o ritmo acelerava-se, ao compasso da rabeca de Henry,
experimentando a resistência e o fôlego dos pares.
Gradualmente, porém, os que eram casados retiraram-se,
cedendo o lugar aos mais novos. Durante a festa, Mary tinha
ouvido o cantarolar monótono do velho tocador, em que ele
dizia coisas que ela não percebia. Agora, tinha ocasião de
escutar, e fê-lo com muito interesse, bastante divertida.
- Rapazes, vamos à dança, Que é pra isso que est ou
cá.
Gente nova não se cansa, Trá-lá-lá-lá-lá-lá-lá.
De quando em quando, Henry saía-se com um dos seus
improvisos, que eram acolhidos com ansiedade e jubilosamente.


- O Serge já está danado,
Como eu estou a ver daqui.
Esperem só mais um bocado
Que ele "pega-se" com o Lee.


202


Isto originou muitos brados de aprovação e inspirou Henry a
voos mais altos.


O Edd anda perdidinho
A fazer olhares galantes
A Clair, que parece mesmo.
Domadora de elefantes.


Edd Thurman era o gigante da multidão ali reunida e dançava
com um rinoceronte pesadão. æ sua custa, ouviu-se uma enorme
gargalhada. Henry esteve calado durante longo tempo, com a
cabeça grisalha debruçada sobre a rabeca, como que em profunda
meditação.


- Parece-me que os rapazes
Vão sofrer um bom revés
Reparem bem, raparigas,
Que já não podem co'os pés.


Henry não fora justo quanto ao conteúdo da sua rima. Mary
não via justificação para ela. æ medida que o tempo decorria,
aqueles mocetões pareciam cada vez mais frescos. Se havia
desânimo, era da parte das raparigas.


A Maria e mais a Marta
São moças cheias de vida.
Corram pra elas, rapazes,
Que valem bem a corrida.


Depois desta quadra, o velho Henry Thurman pareceu ficar
exausto. Quando, por fim, ergueu a cabeça para cantar de novo,
fê-lo em voz ainda mais sonora:


203


Co'a rabeca e o meu copinho
já estou um pouco alegrote.
Entre tanta gente nova,
Nem me sinto tão velhote.


Depois, fazendo uma pausa à espera do efeito, rugiu:

Tuck Merry, valentão,
lá partiu a cara a três.
Vão arranjar-lhe um caixão
Que os outros são mais de dez.


Nesta altura eram cerca de três horas da madrugada e a
alegria e excitação da dança estavam no apogeu. O baile
prosseguia quase ininterrupto e transformara-se em concurso.
Os cavaleiros, que haviam terminado o seu trabalho da semana

mais dura do ano, recusaram-se a cair mortos de fadiga,
levados pelas ambiciosas raparigas. Assim, a situação era
quase um beco sem saída, tendo como resultado a exaustão
física de ambas as partes.
Mary, recordando-se dos seus sinistros receios ao princípio
do serão, observou a Enoch que devia ter exagerado as
probabilidades de haver contenda.
- Ainda agora a procissão vai na praça - replicou ele,
enigmaticamente.
- Que queres dizer?
- Não sei explicar, mas tenho a impressão de que vai
acontecer qualquer coisa. Quanto mais demorar, pior será... Já
agora, a propósito, quero dizer-te que nenhum de nós, de mais
idade, acha bem o modo de dançar da tua irmã.
- Oh! - exclamou Mary. - Eu estava... preocupada. Mas,
Georgiana tem dançado muito... muito decentemente, para ela.
- Não creio. Olha para ela.


204


Mary não tardou em descobrir a figura maleável, flexível e
ondulante da sua irmã. O seu par era Díck Thurman, o mais novo
da família, e que era um dos que Georgiana tinha andado a
iniciar nas danças do Este. Amúsica moderna de "Jazz" estava
absolutamente deslocada naquele meio campestre. Mary estava
fascinada e, ao mesmo tempo, contrariada. Georgiana dava
demasiado nas vistas. Dobrava-se, rodopiava, saltava e parecia
monopolizar completamente a atenção do seu par.
- A coisa não seria tão má se Georgie se tivesse vestido de
maneira diferente - murmurou Enoch, como que querendo corrigir
o seu pensamento.
Mary procurou encontrar o olhar de Georgiana, o que se lhe
antolhava impossível. Aparentemente, Georgiana não tinha olhos
senão para o seu par. Contudo, devia ter consciencia da
sensação que causava.
- Co'a breca! - exclamou Enoch.
- Mary, está bem à vista que ela conseguiu pôr alguma da
nossa gente a dançar como ela. Ensinou-os e, agora, pretendem
generalizá-la no nosso meio. O diabo da garota!
Quando Mary verificou que Enoch falava verdade, a sua
inquietação aumentou. Três jovens pares haviam começado a
dançar de maneira a merecer as mais severas censuras. A sua
intenção era boa mas a execução ridícula. Os modos de
Georgiana tinham graciosidade, ritmo e beleza, à parte a
qualidade, que era criticável. Muitos tinham parado de dançar,
para observarem melhor aquele estilo novo e audacioso. A pouco
e pouco, Georgiana e os seus alunos despertaram as atenções
gerais. Era bem patente a desaprovação dos pais e mães
presentes e o agrado dos mais novos.
A música terminou, com infinito alívio de Mary. Esta
perguntou a Enoch se não seria acertado ir procurar Georgiana,


205

embora sem dar nas vistas, e, adverti-la de que não dançasse
mais assim.
Houve o habitual curto intervalo, no decorrer do qual Bid
Hatfield atravessou a pista vazia e se dirigiu a Georgiana,
provavelmente para a convidar para o número seguinte.
- Bid não tem grande culpa, mas está com pouca sorte - disse
Enoch.
- Porquê? - perguntou Mary.
- Nunca tinha visto aquela cintilação cinzenta no olhar de
Enoch nem os músculos do rosto endurecerem como pederneira.
- Mary, sabes que os Thurman brigam uns com os outros - é só
atirar a moeda ao ar - por simples desporto. Mas, pensamos
sempre duas vezes antes de lutar com um estranho. Hatfield tem
andado a exibir-se mesmo nas nossas barbas; não digo que Cal
seja melhor que os outros, mas Georgie tem-se portado muito
mal com ele, assim como Hatfield... Concluindo, Georgie e
Hatfield estão a tornar-se demasiado ofensivos para os
Thurman. Se têm coragem para dançar aquela... música de
selvagens, a bomba rebenta.
O som estrídulo da rabeca de Henry interrompeu as
considerações de Enoch. Mas, Mary não precisava de ouvir o
resto. Estava assustada, embora, de certo modo, esperasse o
desfecho com emoção. Desta vez, por qualquer razão estranha,
os pares demoravam-se em movimentar-se. Um por um,
decidiram-se a dançar, como que impelidos pelo facto de a
música ter começado. Mas, era evidente que teriam preferido
ficar a ver. Esta morosidade deu a Georgiana e Hatfield uma
oportunidade que eles não hesitaram em aproveitar e Iniciaram
a dança, estreitamente enlaçados e num movimento ondulante que
Mary sabia nunca ter sido visto ali. Observava-os com olhar
crítico. Ou Hatfield tinha sido instruído com mais cuidado,


206


ou se tinha esmerado mais na aprendizagem daquele novo estilo
que os outros. Era um par admirável para Mary. Dançavam ambos
com extrema perfeição um estilo que nunca se deveriam ter
atrevido a introduzir naquela sala. Hatfield não era frio, mas
era desafiante. Sem dúvida, tinha muito mais noção do que
Georgiana do espectáculo que estavam a dar. Quanto a
Georgiana, tinha o rosto encalorado e o olhar travesso.
Juventude, orgulho, vaidade e noção errada do triunfo
tinham-na levado a aceitar um risco que não imaginava.
olhou para Enoch e sentiu-se aliviada, ao vê-lo sorrir. Ele
era amável e conciliador, embora justo e severo. Então, Mary
observou os mais velhos dos Thurman, que estavam perto deles.
Não notava qualquer diferença no seu comportamento. Nesse
momento, porém, o robusto Gard Thurman, tio de Cal,
levantou-se e atravessou entre os dançarinos e a parede, até
junto do velho Henry.
Subitamente, a rabeca parou de tocar, tão de repente que
todos ficaram admirados. Gard Thurman subiu para um caixote,
sobrelevando-se aos pares. Os seus ombros quadrados pareciam
agressivamente largos. Tinha um olhar carrancudo, enrugada a
testa acobreada, e todo o seu aspecto era colérico.
- Meus amigos - começou, com voz sonora -, antes de

prosseguirmos com este baile, tenho uma palavra a dizer...
Temos passado bons bocados nesta escola e temos realizado
muitos e muitos bailes. Ora, não tem havido muito que dizer e
sempre têm sido decentes, e decentes continuarão a ser. Não é,
pois, qualquer pessoa de fora que pode vir e torná-los
indecentes... É tudo. Digo isto como cavalheiro e dando
desconto à irreverência da gente nova. E não há mais nada a
dizer.
Um silêncio pesado seguiu-se às palavras de Gard Thurman,


207


Este ficou ainda um momento a olhar fixamente para o par a
quem cabia a culpa, impondo a sua figura a um tempo ameaçadora
e amigável. Depois, desceu do caixote e o seu irmão Henry
começou a tocar com energia, como para compensar o tempo
perdido e atenuar o embaraçoso da situação. Os pares voltaram
a rodopiar, em movimentos rítmicos.
Mas, Georgiana e o seu companheiro não o fizeram. O olhar
atento de Mary víu-os afastarem-se da multidão, para um canto
da sala, onde estiveram a falar, de costas para os outros. Em
breve, Georgiana apressou-se a atravessar o recinto,
dirigindo-se ao sítio onde estavam os casacos e os abafos.
Hatfield seguiu-a. Mary viu-o abrir os braços, como se
protestasse ou implorasse, mas, aparentemente, Georgiana não
lhe prestou atenção. Estava com pressa.
Mary abandonou o seu lugar e, ao dar a volta ao salão,
perdeu a irmã de vista durante algum tempo. Entretanto, Enoch
tinha desaparecido. Quando Mary atingiu o extremo oposto do
salão, encontrou Enoch falando animadamente com Cal. Assim que
viu Mary, interrompeu o que estava a dizer. Cal estava branco
como um lençol. Havia mais pessoas ali perto, algumas delas
raparigas, mas Mary não se interessou por elas. Georgiana
parecia ter despedido Hatfield. Este mostrava-se zangado. Sem
sequer olhar para ele, Georgiana voltou-se para a porta. Tinha
vestido o seu casaco e estava a atar um lenço branco, de lã
fina, à cabeça. Encaminhou-se para o grupo junto da porta. Ao
ver a sua expressão, a cólera de Mary abrandou.
- Aonde vais, Georgie? - perguntou, apressadamente.
Mas, Georgiana não deu mostras de a ter ouvido nem reparou
nas suas mãos estendidas., Naquela altura, a música parou.


208


Georgie dirigiu-se a Cal e fitou-o. Mary, embora com a atenção
posta nela, reparou nos rostos curiosos dos do grupo.
- Cal, levas-me a casa? - perguntou ela, em voz baixa mas
distinta. - Tim está embriagado. Tenho receio de Hatfield. Não
há mais ninguém a quem eu peça... senão a ti. Levas-me?
Então, Mary sentiu, no seu coração, piedade e admiração pela
sua jovem irmã. Georgiana sofrera bruscamente um choque
violento. Parecia sob grande tensão, prestes a claudicar,
apenas sustentada pelo seu valoroso ânimo. Era corajosa; não
apresentara desculpas, mas o orgulho, a petulância e a

perversidade tinham-se esfumado do seu rosto. A sua força e
chama interiores tinham esmorecido.
Mary fitou Cal Thurman com olhar expectante. Também ele
estava muito espantado e Mary adivinhou que Georgiana, apesar
dos seus erros, tinha nele um amigo.
De todos os rapazes presentes, que a tinham visto humilhada,
havia escolhido aquele que ninguém esperava, para a acompanhar
no momento da sua vergonha. Teria sido essa a sua maneira de
provar a sua inocência? O caso era que, no meio da catástrofe,
ela recorrera a Cal. Mary adivinhava, pelo fulgor das pupilas
aceradas de Georgiana, pela sua atitude resoluta, que, se Cal
a repudiasse e lhe pagasse na mesma moeda, ela iria sozinha
para casa, caminharia por si própria a estrada longa e
solitária através da floresta. Cederia ele à natural fraqueza
humana de a ferir como ela o ferira primeiro? Mas, Mary
discorreu que se Cal queria ganhar o amor de Georgiana, aquela
era a ocasião própria. Era impossível calcular o que iria no
espírito daquela rapariga.
- Pois claro que te levo a casa - respondeu Cal, olhando-a
fixamente com as suas pupilas escuras, Estava tão comovido
como Enoch. - Foi para isso que eu vim aqui.


209


Então, a momentânea quebra de impossibilidade de Georgiana
foi a prova de que ela não estava certa do acto cavalheiresco
de Cal. Mas, ou ela não fosse mulher, na hora da necessidade,
resolvera experimentá-lo. Deixou pender a cabeça; talvez a
lealdade dele fosse a única coisa que a fazia sentir vergonha.
Cal pegou-lhe no braço e conduziu-a através das pessoas, até
saírem para o exterior.
- Eh, Cal! - chamou Enoch, atrás dele. - Vai buscar o carro
para a gente.


210

CAPíTULO XI


Era meio-dia em Rock Spring Mesa e o sol de Dezembro
brilhava tão aconchegante que os homens comiam em mangas de
camisa.
Havia uma linha branca de neve a coroar Rim e manchas alvas
sobre as encostas arborizadas. Mas, a neve raramente durava
muito no lado voltado a sul. Perús bravos e veados
percorriam os socalcos mais soalheiros.
Na opinião dos homens, Cal tinha escolhido o melhor local de
Tonto para fixar residência. Erguia-se sobre a terra escura e
ondulante da bacia, embora a um nível inferior ao de Rim. Na
realidade, não se tratava de um planalto geometricamente
quadrangular, pois só tinha três lados. O quarto era uma
extensão de terreno que se estendia até um bosque de cedros.
Promontório, teria sido o nome apropriado. Era um socalco

vasto, plano no cimo, coberto de cedros, zimbros e alguns
pinheiros, que se prolongavam até à bacia, mais longe e mais
alto que alguns outros que partiam de Rim. Um despenhadeiro
amarelado e rochoso sobressaía, áspero e escabroso, no fim da
planura, onde se iniciava o declive, e, ali, sob as rochas,
borbulhava a famosa nascente que dava o nome ao local (1).
Durante anos, os Thurman tinham-se considerado donos daquele
perpétuo manancial mas, na verdade, só o eram desde que Cal
chegara para construir ali a sua casa.


*1 - Nascente, em inglês: "spring", (N. T.).


213

Durante Novembro, tinham limpado cinquenta acres de terreno,
um belo solo avermelhado quase desprovido de rocha. Aquele
pedaço, em quadrado, compreendia a parte da frente do
planalto, excepto algumas árvores a sul e oeste.
- O vento é capaz de arrancar as tábuas das paredes e do
telhado - disse Gard Thurman.
- O que é preciso é fazer uma construção sólida e pesada -
respondeu o velho Henry.
- Bem - disse Wess, no tom que adoptava sempre que queria
largar alguma piada -, lá arrastar pranchas grossas para aqui
e transformá-las numa casa que nenhum vento norte seja capaz
de levantar, isso podemos nós fazer. Mas, Cal ainda terá muito
que aprender e que se esforçar, no que respeita a fundar um
lar.
- Sim, queres dizer que Cal precisa de encontrar uma mulher
- replicou Henry, pensativo. - Bom, nunca vi que arranjar
mulher fosse uma coisa assim tão difícil para um Thurman.
- Pois, já vai sendo tempo para ver - interrompeu Cal, com
mau modo. - E, se continuam a comer e a conversar todo o-dia,
nunca mais se acaba a obra.
- Meu filho, aprende a ser paciente - replicou o velho
Henry, bondosamente. - Não há pressa. Arranjaste a terra;
agora, temos todo o tempo que for preciso.
Cal afastou-se ao longo da orla da terra já tratada, através
da perfumada cinta de arvoredo verde-acastanhada, até à beira
do planalto. Havia muitos anos que aquele local era o seu
favorito. Quando tinha apenas dez anos, brincara ali e
pretendera construir a sua casa.
Havia um mês que Cal não ia a Green Valley. Tinha saudades
de ver Georgiana, mas o orgulho impedia-o de ir. Não estivera
com ela desde o baile de Outubro, quando a levara a casa,
envergonhada e oprimida.


214


Naquela noite, pusera de parte o seu ressentimento, mas
esperara que Georgiana corrigisse os seus defeitos e o
compensasse do mal que lhe causara. Durante toda aquela

memorável jornada da floresta, esta mal proferira uma palavra.
Ao chegar a Green Valley, ela saltara do carro, junto da
cancela, e dissera:
- Não precisas de entrar... Obrigada, Cal Thurman.
Enganei-me a teu respeito. Se não fosse por ti, nunca mais
teria aqui voltado... Não mereço o teu respeito... nem seja o
que for. Boa noite.
- Oh, Georgie, não fales desse modo! Espera! - implorara
ele.
Mas, ela desaparecera e ele não lhe tinha posto os olhos em
cima durante uma semana. Depois, parecia mudada; quando ele
lhe deu oportunidade para falar, para fazer justiça ao mal que
lhe tinha feito, ela falou apenas de coisas banais e em breve
arranjou desculpa para o deixar. Os lábios de Cal tinham-se
fechado. E, nas semanas seguintes, tinham-se afastado mais
ainda.
Cal não sofrera cruelmente com aquela indiferença. Feria-o
mais que Georgiana nunca tivesse esquecido o insulto que a
atingira no baile, que não compreendesse nem acreditasse que
não tinha colocado mal a irmã. Mas quando as semanas passaram
e, gradualmente, Georgiana voltara a aceitar amigavelmente as
atenções dos rapazes, embora mais reservada, segundo lhe
parecera, então, Cal não pôde continuar a suportar a situação.
Convenceu o pai a começar imediatamente a construção da sua
casa e, agora, havia um mês que estava afastado. Enoch e os
seus homens haviam voltado de guiar o gado desde Winslow e
ajudavam a transportar as tábuas para a edificação. Em mais um
dia, as pranchas seriam cortadas e aplainadas, prontas a
formara mais bela casa que jamais se construíra naquelas
imediações.


215


Não obstante, Cal estava profundamente triste. Não aguentava
aquilo muito mais tempo. Quase desesperado, estava sentado
numa rocha, sob um zimbro que parecia um velho amigo, e, por
fim, exclamou, em voz inarticulada:
- Oh, que hei-de eu fazer?
Sentiu-se aliviado por expandir a sua agonia, a sua
melancolia, a sua incapacidade. Era como se se tivesse negado
orgulhosamente a pedir auxílio ou conselho. O orgulho estava
prestes a baquear. Sentia-se sozinho, sem ninguém a
observá-lo, a não ser Deus e a Natureza, no seu abatimento. O
eco da sua voz foi o último degrau da sua rendição. Desde
aquele momento, operou-se nele uma subtil mudança. Era aquele
o sítio e era aquela a ocasião. Tudo quanto lhe faltava era
Georgiana Stockwelll. Numa espécie de sonho, ao fechar os
olhos, atravessou-lhe o pensamento o que devia fazer para se
salvar. Tinha de a salvar a ela, era tudo. Não importava o que
ela tinha feito, o que ela era ou o que ela queria. Era aquela
a sua única esperança. Ela gostara dele uma vez, o bastante
para ele se sentir feliz. Poderia ela ter mudado
completamente? Não! Possivelmente, ainda teria maior
consideração por ele do que nunca. Simplesmente, preferiria
morrer a confessá-lo!
Cal encontrou-se a si mesmo, encontrou compreensão e

decisão, naquele lugar favorito da sua meninice. O vento frio
e fragrante de Dezembro trazia consigo aromas de Rim; o zimbro
de tom desigual, robusto e nodoso, velho e acinzentado,
inclinava sobre ele a lição da sua luta pela vida. A solidão
falava-lhe; as profundezas negras do bosque do desfiladeiro
chamavam-no em nome dos homens primitivos. O nobre cume de
Promontory parecia refulgir com luz doirada. Tudo em seu redor
parecia misterioso e forte, como que querendo inspirar-lhe,
num murmúrio, a mesma ideia persistente: procurar uma
companheira.


216


Mas, como? Como? - desabafou Cal, espantado, mas, ao mesmo
tempo, feliz com aquela revelação.
Não encontrava resposta. Os elementos não conspiravam com
ele. Apenas falavam, isentos de paixão, forçando-o a escutar a
sua própria natureza.

Dezasseis homens, todos dos Thurman, transportaram as tábuas
para construir a casa de Cal, o que era de facto uma distinção
de apreço raramente concedida. Cal ajudou também, com todas as
suas forças. Queria contribuir para o levantamento da sua
própria residência.
Ia ficar parecida com a de Gard Thurman, com duas divisões e
um telhado. Os quartos tinham quinze pés de largo e vinte de
comprido e no espaço entre eles ia ficar um alpendre coberto.
Nunca qualquer viatura se aproximara a menos de cinco milhas
da casa de Gard Thurman e a de Cal era ainda mais para além da
do tio. Durante dias, burros de carga tinham feito o
transporte da madeira da serração de Henry - pranchas para o
chão e para as portas e armações para as janelas e lavabos. As
quatro janelas tinham ido de Globe e tinham sido entregues aos
cuidados do velho Jinny, que melhor sabia embalar as vidraças.
Hastes finas de pinheiro tinham sido cortadas para as empenas
do telhado, que devia cobrir as duas divisões e o espaço
intermédio. As paredes eram formadas por boa madeira de pinho,
sem deixar interstícios, e consolidadas por grossas vigas
atravessadas. Alegremente, com entusiasmo, os homens
trabalhavam. Era trabalho de pioneiros e estavam a desbravar
as sendas da civilização.
Numa tarde de sábado, perto do Natal, o velho Henry limpou o
suor da sua testa enrugada e reuniu os poucos que ainda
estavam a dar os últimos retoques.


217


- Está pronta, rapaz", está mesmo um brinquinho.
Era uma construção sem rival em Tonto. As goteiras do
telhado, largas e inclinadas abrigavam o alpendre a todo o
comprimento da fachada. Havia uma escada que conduzia a um
piso superior, no espaço entre os dois quartos, onde havia .

amplo espaço para arrumações ou para quarto de cama. Um fogão
de sala com saída para o exterior, ao lado oeste, era o
orgulho de Henry. Comportava achas tão grandes quanto um homem
poderia transportar. Tinha sido feito também mobiliário
rústico, tosco mas satisfatório, como mesas, cadeiras e camas.
- Rapaz, a tua casa está pronta - disse Henry a seu filho. -
Vai a Green Valley no Natal. Então, arranjaremos as tuas
coisas, um fogão para a cozinha e mais o que por lá houver que
te faça jeito. Dou-te alguns cavalos e gado e... bem, Cal,
creio que pouco mais posso fazer por ti.
- Cal, quando arranjares companheira, havemos de cair cá
todos para a festa - observou Edd.
Defacto, a ideia de um lar sem uma mulher não estava
completa.


218

CAPíTULO XII

Os homens arrumaram as suas ferramentas e utensílios que
tinham usado durante a construção da casa e retiraram-se,
deixando Cal com o seu amigo.
Tuck tinha de ver tudo e o seu interesse era estimulante.
Percorreram toda a casa, até às arrecadações, e depois saíram
para o exterior, onde os cepos estavam ainda a arder. Tuck
quis beber água da nascente e manifestava em voz alta a sua
aprovação por tudo.
- Há mais alguma coisa para ver? - perguntou, por fim.
- Para facilitar, acho melhor que comecemos a tratar-nos por
tu, não te parece? - E, a um gesto de assentimento de Tuck,
prosseguiu: - Bom, já viste tudo, excepto o meu posto de
observação. Fica tão alto como o posto contra incêndios, em
Diamond - respondeu Cal.
- Leva-me lá - disse Tuck, com entusiasmo.
Então, Cal conduziu-o através do solo avermelhado e dos
madeiros dispersos, para lá do promontório. O dia estava
excepcionalmente agradável e límpido.
- Nem sempre se consegue ver Sierra Anca no Inverno - disse
Cal, apontando para a cordilheira mais afastada, do lado sul.
Tuck observou tudo, em todos os sentidos e direcções. A sua
satisfação aprazia a Cal, que começava a sentir certa dose da
antiga alegria. Afinal, tinha de viver ali, trabalhar e seguir
o seu destino. Talvez, com o tempo...


221


- Amigo, para um homem da cidade não há palavras que
descrevam isto. Simplesmente formidável! Aqui, não háo cheiro
das gasolinas, o trepidar dos comboios, o perigo dos ladrões e
dos cobradores, ou seja o que for! Para tudo ser perfeito só
te falta...

- Quê? - perguntou Cal, vendo o amigo hesitar.
- Georgiana Stockwell - replicou Tuck, decidido.
Cal sentou-se, bruscamente, numa pedra chata, debaixo de uma
árvore. A réplica de Tuck fora um golpe desferido sem qualquer
aviso. A emoção apoderou-se de Cal.
- Amigo - disse ele, cabisbaixo -, isso são golpes
proibidos.
- Essa agora! - exclamou Tuck, passando-lhe o braço sobre os
ombros. - Vim cá de propósito para to dizer e já esperava que
te encolhesses. Mas, não te apoquentes. É difícil,
especialmente para um Thurman, que não quer tentar conquistar
uma mulher.
- Tentar! Estás doido, Tuck - declarou Cal. - Quase que me
tenho posto de joelhos.
- Eu sei. Mas, não aproveitaste na devida altura nem
insististe o suficiente. E és muito orgulhoso. Esperavas que
Georgie se baixasse, apenas porque devia fazê-lo. Rapaz, não
conheces as mulheres. Aquela garota baixar-se! Nunca nesta
vida! Contudo, podia era ser assustada.
- Assustar Georgie! - repetiu Cal. - Isso não pode ser. Tem
mais ânimo do que quantas pessoas conheço,. Além disso, que se
ganhava em assustá-la?
- já lá vamos. Agora, o que eu quero esclarecer é isto: não
te vi durante várias semanas e, durante esse tempo, pensei que
te estivesses a recompor para voltar à luta. Mas, não.
Desististe e parece-me que estás pior do que eu imaginava.
Conta-me, Cal; nunca me hei-de esquecer do que fizeste por mim
quando eu estava sem emprego. Que é que há entre ti e
Georgiana?


222


- Creio que ela não me liga - disse Cal, desanimado.
- Mas, ligava... tanto quanto se lhe poderia exigir. As da
espécie dela têm de ser perseguidas de perto, primeiro que se
tornem dóceis. Nunca virá a gostar mais de ti, a menos que
insistas. E acho que esta tua ausência só contribui para a
esfriar. Se não tomas uma atitude rápida, acabas por perdê-la.
- Que diabo posso eu fazer? - lamentou-se Cal, no cúmulo do
desespero.
- Tens de tomar medidas drásticas - replicou Tuck, sorrindo.
- Farei tudo quanto não seja desonesto - disse Cal.
- Amigo, fazer que essa garota arisca case contigo não é
nada de mal. Seria a salvação dela e, ao mesmo tempo, uma
bênção para Mary Stockwell.
- Se podes explicar-me a tua ideia, despacha-te - disse Cal,
interessado.
- Então, ouve e não me interrompas até eu acabar - continuou
Tuck. - Tenho trazido Georgiana debaixo de olho e tudo quanto
lhe diz respeito eu tenho sabido nestas últimas quatro
semanas. Sabes que ela veio para aqui por motivos de saúde e,
a princípio, melhorou imenso. Pois bem, está a ir-se abaixo.
Não vai passear ao ar livre, como dantes. Mete-se no quarto,
até que a irmã se zanga com ela e a faz sair de lá, mas perdeu
toda a vivacidade. Isto não pode continuar assim. Acaba por se
ir embora ou fazer algum disparate. Miss Mary perdeu a

paciência com ela, o que não admira. E, naturalmente, desde o
escândalo no baile, os Thurman andam um pouco frios com ela. A
situação é má para Georgie. Toda a gente interpreta mal a tua
atitude; pensam que também a desprezaste e esses rumores
chegam aos ouvidos dela. Creio que, agora, imagina que te
odeia. Cada vez que falo em ti, os olhos dela desferem chispas
de raiva. Mas, talvez seja bom sinal. Contudo,


223


também não seria indicado andares de volta dela... Bem,
ultimamente, na semana passada, assisti a coisas que me
aborreceram. Por exemplo, Bid Hatfield foi a tua casa para
falar com Georgie.
- Não me digas! - exclamou Cal, desagradavelmente surpreso.
- É a verdade. Não conseguiu ver Georgie, mas deixou um
bilhete que lhe foi entregue. Nisso não havia mal; mas, duas
vezes nesta semana, vi-o cavalgar no caminho que vai ter à
serração. Duas vezes, a meio da tarde. Bom, fazendo-me
desinteressado, consegui saber por Miss Mary que Georgie tem
saído, quando as tardes estão boas, e...
- Tuck! Ela tem-se encontrado com Bid Hatfield? - indagou
Cal, tenso.
- Não me parece... por enquanto. Não tenho dados para o
afirmar e creio que ela é muito ajuizada nesse aspecto. Se deu
com Hatfield, foi por acaso. Mas, se não, é provável que venha
a fazê-lo.
- Tuck, se isso acontece e os meus sabem disso, Georgie
nunca mais será bem recebida em minha casa.
- Já o imaginava. O pior de tudo é que, se Georgie sabe
disso, há-de querer mesmo encontrar-se com Hatfield. São
curiosas, as mulheres! Está num estado de espírito e de saúde
em que, de um momento para o outro, se arrisca a arruinar a
sua vida. Ora bem, devemos ajudá-la.
- Muito bem, mas como? - perguntou Cal, com ardor.
- Pensei em tudo, amigo - continuou Tuck, calorosamente. -
No domingo depois do Natal, eu vou buscar o padre Meeker.
Encontrei-o algumas vezes e julgo que simpatiza comigo. Em
qualquer dos casos, eu manejo-o. Arranjo uma história que o
convença. Bem sabes que, aqui em Tonto, desde que se descubra
uma rapariga que sirva, é fácil casar. Essa será a tua missão
e, se não estou enganado, não vai ser simples. Eu levo o padre
Meeker para casa de Boyd Thurman. Não está lá ninguém e,


224


se fizer frio, acende-se a lareira. Estaremos lá na
segunda-feira à tarde e esperamos por ti. E creio que é tudo,
como diz Enoch.
- Tudo! Co'a breca, homem, eu não entrei ainda nesse plano
maravilhoso - disse Cal, excitado. - Afinal, que é que eu
tenho de fazer?
- Pegar na garota e levá-la para lá... Nós faremos o resto -
declarou Tuck.

- Quê?! - balbuciou Cal.
A ideia aterrava-o.
- Tudo quantotens a fazer é levar Georgie,ou "arrastar"
Georgie para fora de casa. Tens um cavalo à mão, escondido no
bosque. Leva-a à força, se for preciso. Tens de agir rápido,
áspero, brutal, se necessário. Não fales muito. Se falas, é
ela que te vence. Assusta-a a meio da semana que vem.
- É fácil de dizer, mas como é que hei-de assustar Georgie?
- perguntou Cal.
- Tens medo dela. Pois bem, inverte os papéis. Que sabe ela
de homens duros? Age como um desses facínoras de que ela tem
ouvido falar. Fá-la pensar que te transtornou o juízo. Ela é
apenas uma criança. Todo o seu aprumo não passa de um disfarce
da educação moderna. Fá-la perder esse aprumo. Depois,
convence-a a jurar que não diz ao padre Meeker que a levaste à
força.
- Sim. E depois, supondo que todo este... sonho resulta e eu
me caso... que farei? - perguntou Cal, como se tivesse perdido
o raciocínio.
- Transportá-la aqui para tua casa. Nessa altura, já podes
ter tudo composto.
- E depois... de a ter trazido para aqui... que lhe hei-de
dizer? - inquiriu Cal, com voz fraca. Tinha o coração oprimido
e a garganta apertada.


225


- Deixa-me ver - replicou aquele árbitro da sabedoria,
reflectindo. - Parece-me que se pode arranjar um grande
desfecho. Eu cá levava-a, nem que fosse às costas, e
deixava-a cair; depois, dizia em voz forte: "Agora, senhora
Cal Thurman, quero o meu jantar. Não estou disposto a pedir
outra vez; quero-o imediatamente!"... Depois, saía e
esperava que ela resolvesse.
Cal sacudiu a cabeça, tristemente, ao que ele considerava a
aberração mental do seu amigo. Todavia, a voz insidiosa da
tentação era irresistível. A sua última e única oportunidade!
Em qualquer hipótese, estava condenado a falhar. Se lograsse
forçar Georgiana a casar com ele, não havia possibilidade de a
conservar prisioneira.
- Amigo, não te esqueças de uma coisa - acrescentou Tuck,
como se lesse os pensamentos de Cal. - Logo que cases com
Georgie, ela não há-de achar tão fácil ver-se livre de ti como
tu imaginas e como ela julga. Ninguém acreditará que tu a
raptaste e, se ela fugir, então, é que deixa ficar mal a irmã.
Esta ideia coincidiu em cheio com a desesperada esperança de
Cal. Seria uma situação séria para Georgiana.
Mas, fosse qual fosse a sua reacção, a perspectiva mais
sedutora era que, se ele conseguisse casar com ela, não
haveria mais perigo de namoros nem riscos para ela. A lei de
Tonto era rígida e até os homens como Bid Hatfield a
respeitavam. Casada, salvar-se-ia de si própria, no que se
referia a Tonto, fizesse ela o que fizesse.
- Segunda-feira! Mais cinco dias! Meu Deus! - exclamou Cal,
numa derrota impregnada de esquisita tortura de alegria.
- Amigo, com a ajuda da Providência tudo há-de correr bem -

Respondeu Tuck, com grande alívio e satisfação. - Pela
Primavera, estaremos ambos sentados aqui, debaixo deste


226


velho zimbro e tu a dizer ao Tuck Merry que ela saldou a sua
dívida contigo.


Ao fim daquela tarde, Cal foi a Green Valley, obcecado pelo
papel a desempenhar. Desaparecera a sua mórbida depressão. Ia
ser difícil, quando chegasse a altura, fingir uma atitude
austera, sombria, perigosamente pensativa em face de
Georgiana.
O crepúsculo daquele Inverno frio tinha caído na altura em
que o rancho deserto de Bóyd Thurman foi atingido. A vista da
velha barraca de madeira onde tinha planeado casar com
Georgiana fê-lo ver a realidade. Apesar da aparente
simplicidade do esquema de Tuck Merry, ele estava receoso.
Já era escuro quando ele e Tuck chegaram a Green Valley.
Todos os cavaleiros tinham voltado, a julgar pelas selas
alinhadas. Ouvia os cavalos e as vacas a ruminar o feno nas
suas mangedouras. O odor familiar dos estábulos era doce para
as suas narinas. Antes de entrar, dirigiu-se com Tuck aos seus
alojamentos e ali, à luz de uma candeia, fez a barba e mudou
de vestuário.
O jantar fora adiado até à sua chegada e, assim, foi
acolhido com alegria e uma corrida para a mesa. A mãe observou
que ele "parecia mudado" e a irmã perguntou-lhe se pensava que
era domingo, "todo limpinho e barbeado".
Mary Stockwell e Georgiana foram sentar-se no topo da longa
mesa. Quando repararam em Cal, cumprimentaram-no amistosamente
e Georgiana disse:
- Olá, Cal! Não parece nada que andaste a acarretar tábuas!
Cal inclinou-se sobre o seu prato. Como aquela voz doce e
cristalina lhe afectava o coração! Por instantes,


227


o seu olhar velou-se, para se concentrar apenas na voz dele.
Deu, intimamente, graças a Tuck, pois teria fraquejado
instantaneamente se não fosse a lembrança do plano tão bem
arquitectado. Não voltou a olhar para Georgiana durante a
alegre refeição e, quando todos foram para o living-room, ele
não os acompanhou. Então, Mary foi apertar-lhe a mão.
- Como está, Cal? - perguntou ela, olhando-o com ansiedade.
- Menos mal, professora - respondeu, jovial. - Quando é o
grande dia para si e Enoch? Eu não me es queço da prenda de
casamento.
- Dir-lhe-ei quando estiver decidido - disse ela.
- Como está Georgie? - continuou ele, tentando mostrar-se
indiferente.
- Não olhou para ela?
- Não reparei lá muito. Porquê?

- Pensei que tivesse notado mudança.
- Ah, ela está doente?
- Georgie parece boa mas está cada vez mais pálida e magra.
Estou aflita, Cal. Ela... Mas, não lhe digo agora.
Havemos de ter melhor oportunidade.
- Pois bem, professora. O que eu puder fazer... já sabe -
respondeu ele.
A voz e o olhar dela pesavam-lhe no peito como chumbo.
- Só mais uma coisa - continuou ela, baixando a voz e
levando-o para um sítio afastado. Hesitou, quase desistiu e,
depois, o seu olhar brilhou. - Cal, você está outro; está mais
sisudo... mais homem. Gosto mais do seu aspecto. Tem
sofrido... Diga-me, já lhe passou?
- Passou o quê? - perguntou ele.
- A sua... paixão pela minha irmã - murmurou ela.
- Posso confiar em si?


228


- Oh, Cal, evidentemente - retorquiu ela. - Não posso
exprimir como me interessa que ainda goste dela.
- Então, escute - disse-lhe ele, ao ouvido. - Eu amo
Georgie... mais do que nunca.
A recompensa dele foi o clarão de alegria imensa no rosto
fatigado da rapariga. Afinal, não era ele o único a sofrer por
causa de Georgiana.


229


No dia seguinte, Cal pediu que dispensassem Tuck na serração
e ambos se dirigiram a Ryson e encheram um carro de utensílios
de toda a espécie, necessários para a sua casa de Rock Spring
e para prendas de Natal. Foi a falta de espaço no carro e não
o desgosto de Tuck por ver gastar tanto dinheiro, que fez Cal
terminar as suas compras. Voltaram a Green Valley e gastaram a
hora que lhes sobrava a arrumar as embalagens.
Na manhã seguinte, Cal e Tuck, com a ajuda de alguns dos
rapazes, carregaram dezanove burros e cavalos. Pela tarde
desse dia, descarregavam tudo em frente da casa de Cal.
Estiveram muito entretidos a espalhar as coisas todas e a
distribuí-las pelos seus respectivos lugares. A meio da tarde,
ainda trabalhavam laboriosamente; depois, tiveram de ir reunir
os animais, que se tinham dispersado e levá-los de regresso.
Chegaram a Green Valley antes do anoitecer, estafados mas
contentes e prontos para a grande aventura.
A véspera de Natal foi encontrar vinte Thurmans de todas as
idades reunidos no rancho de Green Valley, o que, com Mary
Stockwell, Georgiana e vários cavaleiros que também não eram
da família, constituía um número avultado de pessoas.
Cal deu-lhes uma pequena surpresa. Naquele dia, em Ryson,

229


na excitação das compras e na espectativa dos possíveis
acontecimentos, tinha comprado presentes para toda a gente. O
melhor que havia nos estabelecimentos não era bastante bom
para Cal. Tinha poupado o seu dinheiro durante anos. Aquele
Natal assinalava uma data memorável na sua vida e queria
celebrá-la.
Enoch pegou na espingarda que vira havia muito tempo em
Ryson e que tanto ambicionava.
- Cal, és um belo rapaz!
Tim Matthews revirava o magnífico chapéu de abas largas,
atirado para as suas mãos, -com as palavras: "Boas festas,
Tim". O rapaz nunca se reconciliara inteiramente com Cal,
desde a luta na plantação de sorgo de Boyd Thurman.
- Quê? - tartamudeou. - Este chapéu de quarenta dólares para
mim?... Oh, Cal Thurman, diabos me levem se há alguém melhor
que tu no mundo! Põe isso aí; hei-de levá-lo ao teu casamento.
Uma grande hilaridade servia de fundo à entrega dos
presentes.
- Isto parece outra chuva de maná! - exclamou o tio Gard
Thurman.
- Bem, não há dúvida que o rapaz enlouqueceu - disse Henry.
Então, ouviu-se uma velha tia de Cal:
- Vocês deviam era ter vergonha, seus avarentos!
Por fim, só faltava entregar um presente, que era o de
Georgiana. Não tinha escapado a Cal a sua curiosidade, embora
ela não se tivesse associado ao regozijo geral. O momento era
de ansiedade. Se ela recusasse! Mas, era Natal e ela não podia
fazer isso. Mary Stockwell tinha entreaberto os lábios para
censurar Cal pela sua extravagância, mas, quando viu o que era
o presente, ficou sim plesmente encantada. Cal pensava que
podia acreditar na natureza humana numa véspera de Natal,

230


mesmo tratando-se de uma pessoa como a altiva Georgiana.
Por fim, pôs-se de pé, com a caixa atrás das costas, e
exclamou, alegr emente:
- Anda, Georgie, vem buscar o teu presente.
Ela aproximou-se, sem grande interesse aparente. Sorria, um
pouco desdenhosa, com um ar ameninado na sua expressão. O
reflexo das achas na lareira da sala brilhava no seu rosto.
Era o mais próximo que Cal havia estado durante um mês e
sentia-se tremer. Custava-lhe manter o seu aspecto
despreocupado de Pai Natal improvisado. - Adivinha o que é -
disse Cal!
- Oh, não sei, não faço ideia...
- Estás mortinha por saber - prosseguiu Cal, acicatando-a. -
Tive sorte. Foi mesmo uma coisa caída do céu.
- Bom, dá cá... se é assim tão extraordinário - retorquiu
Georgiana.
Não estava muito convencida. Embora desejasse ver a prenda,
faltava-lhe entusiasmo.

- Bombons... de Nova Iorque! - anunciou Cal, triunfante,
entregando-lhe a caixa.
- Oh, sério? Que belo presente! - exclamou Georgiana,
subitamente radiante, pegando precipitadamente na oferta.
- Georgie, desejo-te um Natal muito feliz... e um Ano Novo
alegre... aqui em Tonto - acrescentou Cal, mudando de
expressão.
A transformação operada nele pareceu abalá-la. O seu rosto
pálido ganhou algum colorido.
- Obrigada, igualmente - respondeu ela, fitando-o
profundamente, por instantes.
Em seguida, voltou para junto da irmã.


231


O dia de Natal e o domingo seguinte foram pesadelos para
Cal. Procurou fazer as honras à opípara ceia de Tonto, que
incluía perú, mas o resto das festividades e acontecimentos
sociais passaram em branco para ele. Não recuperou o seu
equilíbrio mental senão quando Tuck Merry partiu no domingo à
tarde. Então, a sua estranha hesitação transformou-se em
intenso desassossego. Naquela noite, pouco dormiu.
Despontou o dia de segunda-feira, esplendoroso e cheio de
sol. A Natureza associava-se ao seu empreendimento. A cerca de
meia manhã, selou o seu cavalo e montou cavalgando em círculo
por detrás de umas sebes, e foi colocar-se acima do nível do
rancho, onde as castanheiras confluíam com a estrada. Perto
dali, amarrou a montada e voltou a casa. Vestindo as roupas
mais usadas que tinha - que, na realidade, já estavam postas
de parte - fez uma trouxa com as que levava anteriormente.
Colocou uma enorme pistola à cintura e, com o seu velho
chapéu, julgou ter assumido um aspecto suficientemente duro,
feroz. Se não estivesse a levar tão a peito o seu papel, o
caso seria, de facto,, engraçado. Em seguida, saiu de casa e
foi ocultar-se nuns arbustos ali perto, procurando
esquadrinhar o local do seu esconderijo. Poderia estar à
espera indefinidamente, horas sem fim antes que ela se
resolvesse a sair! Ela era mesmo capaz de não o fazer e,
então, teria ele de ir buscá-la à força. A excitação, a
ansiedade do momento tinha-se esfumado. Sentia um nó na
garganta e a roupa colada ao corpo; a sua inquietação cresceu,
até tornar-se insuportável.
De súbito, o seu olhar aguçado avistou um cavaleiro que se
acercava através do vale.
- Quem será aquele? - murmurou Cal, aborrecido. Oxalá não
venha estragar-me a festa. Talvez prossiga no seu caminho.
O cavaleiro desapareceu, por momentos e voltou a surgir mais
abaixo, para se encaminhar pelo atalho que levava aos terrenos
dos Thurman. Ali, ficou novamente tapado pelo arvoredo, até
reaparecer na estrada, onde olhou cuidadosamente em todas as
direcções. Cal começou a respirar com dificuldade. O cavaleiro
prosseguiu estrada fora e voltou para o lado do grupo de
castanheiras onde Cal tinha escondido o seu cavalo.
- Bid Hatfield! - arquejou Cal, deixando-se cair,
desalentado, no seu posto de observação.
Estava à espera de que Georgiana saísse para ir passear, bem

como Bid Hatfield. Cal meditou nesse problema. Ao mesmo tempo,
espreitou insistentemente e ficou subitamente rígido.
Georgiana aparecera na cancela e o seu olhar rápido e
preocupado não se fixou sobre Cal.
- Ah, patife! - proferiu Cal, entredentes.
Georgiana sabia que Bid Hatfield se encontrava ali. Ia ter
com ele. Por momentos, Cal sentiu no coração pancadas que
nunca antes sentira. Então, veloz como o pensamento, toda a
sua atitude se transformou.
- Pois bem - murmurou, com voz rouca. - Também irei ao
encontro dele, Georgie... e poderás escolher.
Rastejando como um índio, através dos arbustos, Cal parou
pouco antes de atingir a estrada. Georgiana caminhava
apressadamente para a curva a seguir à qual havia uma clareira
onde Hatfield devia estar à espera. Cal deixou-a adiantar-se,
Depois, enredou-se através dos tufos de mato e subiu uma
pequena lomba que formava o lado oeste do maciço de
castanheiras. Conhecia perfeitamente o terreno e a melhor
maneira de se colocar sobranceiro àqueles dois que se iam
encontrar. Embora possuído por ardente paixão, tinha domínio
suficiente para deixar as coisas seguirem o seu curso.


232 233


Rancoroso e irritado como estava, não podia, ainda assim, pôr
de parte a sua esperança; a sua fé em Georgiana não Podia
morrer.
Através de uma abertura entre as árvores, mais abaixo,
vislumbrou Georgiana, ainda apressada. Escorregou e foi no seu
encalço, tendo o cuidado de se ocultar. Nesse momento viu a
cor castanha do cabelo de Hatfield e, logo a seguir, o próprio
Hatfield, sentado num tronco, à espera.Viu chegar Georgiana.
Que atitude tão interessada a dele! Cal rangeu os dentes, de
raiva ciumenta. Talvez o rapaz tivesse motivo para se sentir
contente. Eles tinham escolhido a parte mais densa do bosque
para o seu encontro. Cal voltou a ver Georgiana, desta vez
mais vagarosa, quase a passo de procissão. Cal agachou-se e
milhentas coisas lhe passaram pelo espírito. Estava agora
suficientemente próximo para resolver o que devia fazer.
Ansiosamente, continuou a espreitar.
Quando Hatfield procurou aprisionar a rapariga nos seus
braços e ela o repeliu de modo inquestionável, Cal
experimentou nova comoção no seu peito, mas... como era
diferente da primeira! Não foi preciso olhar mais para ver que
Georgiana não era namorada de Hatfield. O olhar vivo de Cal
percorreu o corpo do rapaz, em busca de uma arma. Não havia
nenhuma visível. "Se traz alguma escondida, estou pronto a
fazer-lhe frente", murmurou Cal. "Se não, o seu encontro com
Georgie aqui é uma grande sorte para mim".
Puxando da sua pistola, Cal começou a andar, sempre a
coberto, pisando cautelosamente. Mas, não necessitava de
grandes precauções. Hatfield exclamava, em voz forte:
- Oh, Georgie, isso não pode ser verdade.
- Pode, sim - replicou Georgiana, secamente. - Tenho andado
com a cabeça no ar... até de mais. É disparate encontrar-me


-234-


consigo. Sê-lo-ia, ainda que o amasse, o que não é o caso. Nem
nunca...
Cal ordenou, com voz potente:
- Mãos no ar, Bid! Rápido! - Hatfield estava de costas para
ele. Ergueu as mãos e ficou rígido. Georgiana voltou-se e,
vendo Cal, soltou um grito estridente.
- Cala a boca! - exclamou Cal, cortante como uma chicotada.
Depois, indo postar-se em frente de Hatfield, apontou-lhe a
arma mesmo à cara. Um olhar de relance fê-lo compreender que o
outro não estava armado, o que o acalmou apreciavelmente e o
fez cobrar forças para tirar o melhor partido da ocasião.
- Eu mato-te" - sibilou, com toda a fúria que pôde
aparentar.
Devia ter representado bem a farsa porque Hatfield
empalideceu e Georgiana gritou, horrorizada.
- Por amor de Deus, Cal... não... não o mates! - pediu ela,
toda trémula.
- Porque não? Vens ter com ele aqui... escapulindo-te da
casa onde és uma hóspede... insultando todos os Thurman de
Tonto... colocando mal tua irmã. É porque gostas dele.
- Oh, Cal, juro que não! - gritou ela, aterrada. - Tenho-me
sentido abandonada... infeliz... Primeiro, encontrei-o por
acaso. Ele voltou a insistir e eu fui... tão parva que
concordei em vir. Fui uma tonta... mas não me interesso por
ele. Nem sequer pensei nisso jamais.
- Vieste ter com ele e isso é o bastante para os Thurman -
retorquiu Cal, duramente.
- Mas, Hatfield não tem a culpa - disse a rapariga. - Sou eu
a responsável... Baixa essa pistola, Cal!
Na ânsia do seu apelo, avançou como se fosse agarrar Cal.


235


Este, com um movimento do seu braço esquerdo, empurrou-a,
fazendo-a cair sobre o tronco de árvore. Ela levou a mão ao
peito, a boca entreabriu-se-lhe e os olhos faiscaram.
- Hatfield, monta a cavalo e desaparece - exigiu Cal. - Não
voltes a aparecer na minha frente. Deixo-te ir embora porque
ela te ilibou.
Com rápidas e largas passadas, Hatfield dirigiu-se à sua
montada. Montou, pegou nas rédeas e endireitou-se, lançando a
Cal um olhar torvo e vingativo. Em seguida, esporeou o animal
e afastou-se através das árvores. Pouco depois, ouviu-se o
matraquear dos cascos na estrada.
Quando Cal se voltou para Georgiana, a sua firme resolução
quase tinha desaparecido; mas, naquela altura, não se podiam
admitir fraquezas nem compaixão.
- Bem, se a culpa é tua, és tu que vais pagar - começou ele,
acercando-se dela.
- Cal! - exclamou ela. - Não te vi assim... antes.
- Antes, não sabia eu o que sei agora - replicou ele, com
amargura.
A pequenina cabeça ergueu-se e o rosto pálido coloriu-se um

pouco.
- Não podes falar-me dessa maneira - disse ela. - Estou
arrependida do que fiz, mas não envergonhada. Tem cuidado não
me insultes.
Cal pensou que quanto menos paleio houvesse melhor. Meteu a
pistola no coldre e, depois, com um rápido movimento, agarrou
com a mão esquerda as bandas do casaco de Georgiana e a blusa.
- Vens comigo - disse ele.
- Ai, isso é que não... - negou-se ela, mas, devido à força
por ele exercida, não pôde concluir a frase.
Cal começou a caminhar, levando-a com ele. Durante alguns
metros, ela foi, submissa, como que assombrada.


236


Depois, quis resistir. Recuou, tentou libertar-se e
bateu-lhe, mas não conseguiu soltar-se.
- Já te disse... deixa-me! - gritou. - Estás louco ou
bebeste? Cal Thurman, eu não vou contigo. Oh, és pior que
Hatfield!
Então, ele sacudiu-a e puxou-a de tal modo que teria caído,
se não fossem os seus braços ampará-la. Arrastou-a à força e,
quando viu o cavalo dele, a jovem ficou atónita.
- Que... significa... isto? - murmurou.
Ele não deu troco. Desatar as rédeas com uma única mão não
era fácil, mas sempre o fez. Então, torcendo a rapariga,
tentou montar, o que era ainda mais difícil. Finalmente,
decidiu saltar num relâmpago e, adquirido o equilíbrio,
estendeu o braço e agarrou-a antes que ela pudesse dar um
passo. O cavalo era bom, embora um tanto nervoso, e o seu
remexer nervoso fez Cal levantar a jovem do solo. Apelando
para todas as suas energias, balançou-a no ar, de modo a poder
segurá-la com a outra mão. Então, ergueu-a em peso e colocou-a
atravessada sobre a sela, em frente dele. Previamente,
contando já com aquela solução de emergência, havia colocado
um cobertor de modo a que ela não se magoasse contra o animal.
Quando este começou a trotar, Georgiana gritou e Cal tapou-lhe
rudemente a boca com a mão. Ela começou a debater-se,
mordendo-lhe a mão com fúria e arranhando-o.
- És um patife, Cal Thurman? - explodiu ela. - Sou algum
índio selvagem... para ser levada... assim?
Por momentos, ela fez-lhe a vida negra. Forcejando nos seus
braços, batendo-lhe no rosto, tornava-lhe quase impossível
segurá-la e guiar a montada sob as árvores. Foi atingido pelos
ramos várias vezes, numa delas ficando entontecido com a
pancada. Então, novo tronco bateu na cabeça da revoltada
jovem, fazendo-a perder os sentidos. Quando ela ficou inerte
nos seus braços, Cal experimentou a sensação mais


237


surpreendente da sua vida. Não compreendia bem o que era. Mas,
o misto de receio, cólera e vergonha com que estivera a
debater-se transformara-se de repente numa alegria vaga mas

profunda, como que uma emoção familiar e muito intensa.
Cingiu-a estreitamente.
Quando a cabeça de Georgiana tombou sobre o seu ombro é que
ele verificou que estava desmaiada. Apenas a podia ajeitar e
suster. Para lá da colina seguinte havia água e, se ela não
voltasse a si até lá, tencionava parar para a reanimar.
Felizmente, o caminho fugira já das árvores de copa baixa e
estavam novamente sob os raios cálidos do sol. Ele notou que a
jovem tinha perdido o pequeno chapéu de feltro. Não havia
tempo para voltar atrás a buscá-lo. O seu cabelo solto caía
nos braços dele e esvoaçava ao sabor da brisa.
- Já está! - suspirou ele, como se falasse para a beleza das
montanhas.
Ao aproximar-se do cume do outeiro, viu à sua volta o
verde-cinzento suave dos bosques e o avermelhado dos rochedos.
Parecia haver qualquer afinidade entre eles e Cal. Eles
viam-no com os olhos da Natureza e ele sentia-se transportado,
embora com o coração sobressaltado pela brancura e imobilidade
de Georgiana. Um arranhão na testa mostrava pequeninas gotas
de sangue. Cal beijou-as e, repentinamente, também nos lábios.
Sentiu-se cobarde e ladrão, mas tinha de os beijar, não como
da primeira vez, mas de um modo tão diferente! Ela era sua,
agora.


238

Capítulo XIII


O caminho era densamente povoado, de vegetação e, por
muito que fizesse, não podia livrar Georgiana de ser arranhada
ou ficar contundida. No entanto, tentou proteger-lhe o rosto.
Ela permaneceu inânime tanto tempo que ele começou a
sentir-se preocupado. Contudo, não se convencia de que ela
ficara ferida. Ainda assim, aparecera-lhe uma escoriação na
testa, que inchava e donde brotava algum sangue. Talvez o ramo
da árvore a tivesse atingido com mais força do que ele
imaginava. Como ele se mostrava estranhamente calmo com a
possibilidade de a ter ferido! Não conseguia compreender como
não se importava com isso.
Mas, quando chegou ao sopé da colina, num vale largo e
luxuriante de verdura, com um curso de água serpenteando
através dele, alterou o seu caminho para ir em busca da água.
Finalmente, chegou junto de uns sicómoros, ainda ostentando as
suas folhas castanho-douradas, e perto deles descobriu um
charco.
Deslizou da sela enquanto mantinha Georgiana sobre ela.
Depois, pegou-lhe e colocou-a à sombra das árvores. A jovem
pareceu estremecer mas conservava as pálpebras cerradas.
Correndo para a água, ele molhou o seu lenço e apressou-se a
voltar para junto de Georgiana, banhando-lhe o rosto. Então,
ela recuperou os sentidos. Os seus olhos, de um azul escuro
amortecido, abriram-se, aparentando um vago temor. Ao ver Cal
ajoelhado ao lado dela, pareceu relacionar os factos.


241


Ele viu-a encolher-se, Instintivamente. Nos lábios do rapaz,
tramitam palavras de amor, de remorso e de vergonha, mas
mordeu-os para não falar. Ela continuou a fitá-lo por bastante
tempo; em seguida, viu o cavalo, aquele estranho local do
bosque e a ele de novo. A compreensão aflorou-lhe ao rosto.
- Tu... bateste-me! - balbuciou, assombrada, quase com
horror.
Rapidamente, Cal percebeu o tom de voz e o olhar dela. Ela
pensava que ele lhe batera enquanto lutavam. Era-lhe quase
impossível ocultar a realidade do que sucedera, mas poderia
contar-lhe noutra altura. A sua intuição mostrou-lhe que ela o
olhava com surpresa, medo e pavor, embora não houvesse ódio na
sua expressão. Esperava que ela o fustigasse com palavras
duras por ter sido tão brutal; contudo, o comportamento dela
era diferente.
- Podes sentar-te? - perguntou ele, carrancudo.
- Creio que sim - respondeu ela e, com a ajuda dele,
sentou-se.
Mas não se refez da sua fraqueza tão depressa como ele
julgava e desejava. O coração de Cal batia com força.
Onde estariam o animo e a genica de Georgiana? Ela continuou
a olhá-lo com tal fixidez que ele viu-se seriamente
embaraçado. Torcendo o lenço, atou-o em torno do pescoço.
- Cal, diz-me... terias... matado Bid Hatfield... se eu não
tivesse arcado com a culpa? - perguntou ela, em voz ténue.
- Sem dúvida! Como um cão danado - replicou Cal, com a voz
quente e profunda que decidira adoptar.
- Oh, céus! Que fiz eu? - exclamou ela, como que sentindo um
rebate de consciência.
- Uma série de disparates.
- Isto não é brincadeira... à moda de Tonto... para...

242


- Para mim, não - declarou, de mau humor, o rapaz.
Então, ela deixou de o fitar e pareceu olhar a profundeza
dos bosques, sem contudo estar a ver. Cal aproveitou para a
observar melhor. As faces redondas e coradas, o aspecto
sadio,, ganhos durante os primeiros tempOS da sua estadia em
Green Valley haviam desaparecido. Cal sentia que a piedade, o
receio, e o amor o faziam fraquejar. Se ela começasse a chorar
e a suplicar, ele estaria perdido. Mas, nada disso aconteceu.
- Levanta-te. Não quero perder mais tempo - disse Cal.
Ela ergueu-se, sem que ele a auxiliasse.
- Para onde me levas? - perguntou.
- Tens tempo de saber... quando chegarmos - respondeu ele,
acercando-se do cavalo. Montou e estendeu a mão para ela.
- Põe o pé no estribo que eu puxo-te.
Ele não acreditava que ela cumprisse a sua ordem e estava já
preparado para a perseguir, se fugisse. Mas, no espírito de
Georgiana não passara a ideia de se escapar. Com a ajuda dele,
subiu para a sua frente e sentou-se o melhor que pôde.

Em breve sairam da ravina e, subindo uma longa colina,
dirigiram-se para a estrada que conduzia ao local combinado
com Tuck.
Durante este tempo, a jovem mantivera-se silenciosa. Cal não
sabia como interpretar o facto, mais intimamente,
agradecia-lhe. No entanto, ela devia estar prestes a explodir.
Ao ver a construção, o coração dele sobressaltou-se e, depois
observando dois cavaleiros, que se aproximavam do outro lado
do rancho, viu chegado o grande momento.
- Estou a ver dois cavaleiros - disse Georgiana, falando
pela primeira vez.
- Também eu - retorquiu Cal.
- Por amor de Deus, fala! - exclamou ela, por fim.


243


- Dás comigo em doida! Que vais fazer agora?... Aqueles
homens! Vou gritar por socorro.
- æ tua vontade, mas não ganhas nada com isso - declarou
Cal, com desespero íntimo.
Se ela gritasse, teria de a fazer calar de qualquer modo.
Mas, como o seu papel naquela inédita aventura era todo ele
uma simulação,, pensou que mais lhe valia deixar correr e
esperar o resultado. Ela não gritou, mas a sua calma
extinguira-se. Estava agora erecta, excitada e,
inconscientemente, encostara-se ao braço dele. Trotaram
através de uma linda alameda de pinheiros, até desembocarem na
clareira. A casa estava perto. Dois Cavalos estavam presos a
troncos de árvore. Os seus cavaleiros deviam ter entrado no
edifício, pois via-se uma coluna vaporosa de fumo azulado
ascender da chaminé.
Desmontando, fez o mesmo à rapariga e segurou-a.
- Não me fizeste já mal suficiente? - perguntou ela,
tentando libertar-se.
Os seus olhos cintilavam; estava apenas subjugada, de
momento, mas não vencida.
- Vou levar-te àquela casa e tens de fazer o que eu te
disser - informou ele, tentando aparentar calma.
- Quem é que lá está? - indagou ela.
- Amigos meus. Tuck Merry e... o padre Mecker.
A voz de Cal ajudava-o a prosseguir. Sentir-se-ia feliz se a
terra se abrisse e o engolisse. Contudo, o olhar que lançou a
Georgiana era duro.
- O padre Mecker! - murmurou ela.
- Sim... E vais casar comigo, percebeste?
Ela só olhava para ele.
- Eu disse... que vais casar comigo - repetiu, com voz
rouca, sacudindo-a.


244


Verificou, então, que ela tinha medo dele, embora sob falsa
impressão.. Ela pusera-se novamente de uma palidez de cera e,
com a mão trémula, compriniu o peito.

- Cal... não podes obrigar-me a dizer... sim - ciciou.
- Não, mas se o não fizeres, será pior para os dois.
- Posso dizer ao padre Mecker que me trouxeste à força e
que, quando me opus, me bateste e fizeste desmaiar. Assim,, já
ele não se atreveria a casar-nos.
- Mas não lhe vais dizer isso - retorquiu ele, ferozmente.
- Porque... não?
- Porque já fui demasiado longe. Não me interessa o que
possa acontecer. Nem que eu aponte a pistola ao padre
Mecker... E, se lhe contares, eu levo-te comigo na mesma.
- Para onde? - disse ela, alarmada. - Não para tua casa
porque, certamente, a tua família iria lá procurar-me.
- Levo-te para a floresta... até que consintas em casar
Comigo.
- Cal... ter-te-ei eu... enlouquecido? - perguntou ela,
apavorada.
- Já é tarde para pensar nisso. Casas comigo ou não?
- Cal Thurman... não irei contigo viva a não ser que cases
comigo - respondeu ela.
- Então... está o assunto arrumado. Anda e deixa-me eu
falar.
Conduziu-a para a casa e toda a sua força de vontade não
conseguia acalmar o turbilhão de emoções que o percorriam,
Alternadamente, sonhava e encarava a realidade daquela Mãozita
que apertava na sua. Ela deixava-se levar de boa vontade.
- Entra... Georgie, - disse ele, abrindo a porta e
penetrando após ela.
No interior, estava escuro e havia fumo. Cal fechou a porta.
Por momentos, não viu nada. Depois, Tuck Merry aproximou-se,
prazenteiro.


245

- Ora, cá estão - ribombou a sua voz sonora. - Mesmo na
hora... Amigo, que grande dia... Georgie, tenho muito prazer
em vê-la. Vem com ar de quem andou muito a cavalo... Bom,
fugir à tutela de uma irmã mais velha é difícil... Padre
Mecker, é esta a menina, Georgiana Stockwell.
O padre, um homem alto e moreno, inclinou-se para apertar a
mão a Georgiana e olhar para ela.
- Tenho muito gosto em conhecê-la, menina, - disse, com um
acento texano inconfundível.
Não parecia estar a par do artificial da situação.
- Igualmente - respondeu Georgiana, com nervosismo.
- Olá, senhor prior, - interveio Cal, calorosamente,
apertando a mão a Mecker. - Foi muito amável da sua parte ter
vindo aqui. Bem vê... eu e Georgie temo-nos visto atrapalhados
para... conseguir casar. Tive de vir pelo bosque para evitar
encontros e, por isso, peço-lhe que se apresse.
- É para já - replicou Tuck, alegremente. - Agarra aí na mão
dela, amigos, e vamos já tratar do assunto.
Foi então que Cal sentiu a cabeça andar à roda, naquela sala
escura e cheia de fumo,, e a única coisa que sabia ao certo
era que sentia tremer na sua a mão frágil de Georgiana. Ouviu
a voz do padre e a sua própria, e o sussurro da jovem, tudo

muito longínquo.
Depois, Tuck batia-lhe nas costas, apertava-lhe a mão e
falava pelos cotovelos. O padre felicitava-o, também. Só então
o seu espírito pôde discernir o facto maravilhoso de ter
casado com Georgiana.
- Oh, oh! Parece-me que tenho de beijar a noiva - disse
Tuck, debruçando-se sobre a rapariga. - Georgie, sempre tive
vontade de a beijar nem que fosse só uma vez. Pronto! É para
lhe dar sorte. Tenho uma irmã da sua idade e sentir-me-ia


246


muito feliz se ela lhe seguisse o exemplo, percebeu? Casou com
um verdadeiro homem, minha amiga. Deus os abençoe!
O padre teve palavras bondosas de congratulação para Cal e
Georgiana. Tuck Merry, contudo, era a figura dominante, talvez
por ser o único que via as coisas devidamente.
- Cal, temos de nos despachar - disse ele. - Está tudo
pronto e és o rapaz com mais sorte de Tonto. Eu volto para o
rancho a dar a novidade. Como vão ficar espantados! Mas, já é
tarde de mais,! Ninguém pode alterar as coisas. Georgie e tu
estão casados, já reparaste? Bom, Georgie já. As raparigas não
casam -sem pensar. Amanhã, direi a Mary que embrulhe as coisas
de Georgie e levo-as a Rock Spring Mesa. O teu novo lar,
Cal... Georgie, lembre-se da minha profecia. Há-de adorar
aquela casa.
Se Cal estivera num estranho estado de suspensão antes de
entrar naquela casa, mais estava ainda ao sair de lá, levando
Georgiana consigo para onde deixara o cavalo.
Desatou o animal e começou a encurtar os estribos. Georgiana
conservou-se perto, a observá-lo, com olhar que ele sentia
Extremamente penetrante. Não a fitou. A sua miserável atitude
mascarada não podia durar muito mais tempo.
- Vais a pé? - perguntou ela.
- Sim. O caminho é mau e a subir e tens de ir a cavalo.
- O que Tuck Merry disse... é verdade? Levas-me para tua
casa?
- Logo vês - replicou ele, tentando reassumir o primitivo
tom de aspereza.
Cal desamarrou o cobertor de frente da sela e fez-lhe sinal
para montar. Ela tinha dificuldade em subir, mas ele não se
podia arriscar a ajudá-la; tinha medo de a encarar de frente.


247


A saia dela, que era curtta e justa, ia tornar-lhe a jornada
desconfortável. Cal dobrou o cobertor ao comprido e atirou-o
por sobre a sela, em frente da rapariga, de forma a
proporcionar-lhe alguma protecção contra os arbustos. Em
seguida, pegou na cabeçada e iniciou a marcha, conduzindo o
animal.
A tarde, com o seu curto período de sol, começara a declinar
e o ar esfriara. As copas dos pinheiros frustravam as últimas
tentativas de penetração dos raios de sol.

- Tens frio? - perguntou Cal.
A figura desamparada da rapariga seguia, amarfanhada, na
sela.
- Bastante - disse ela.
Cal despiu o casaco.
- Toma, pões isto, - disse ele, entregando-lho.
Os olhares encontraram-se. Ele viu nela fadiga, dor, e uma
sombra que tomou por receio.
- Não - replicou ela.
- Não te suja - respondeu ele, ressentido.
- Recusei-o porque pensei que te fizesse falta, não porque
esteja sujo ou amachucado - retorquiu ela, altiva.
- Sim. De repente, começaste a ter grande consideração por
mim - disse Cal, sarcástico. - Ora veste lá isso se não queres
que to vista eu. Percebido?
Os olhos dela dilataram-se, com uma chama, que brilhou e
logo se apagou, e os lábios tremeram-lhe. Não perdeu mais
tempo em discussões e vestiu o casaco.
Cal voltou a pegar na rédea e retomou a marcha. Qualquer
troca de palavras entre eles só resultaria em cinismo ou
insultos mútuos. Se ela não o odiava já antes, devia odiá-lo
então. Cal sentiu uma melancólica resignação. Certamente,
apenas da linguagem exuberante de Tuck Merry, Cal só esperava
alcançar duas coisas com aquela aventura:


248


fazer de Georgiana sua mulher e pôr fim aos seus perigosos
devaneios com os rapazes de Tonto. Caso extraordinário,
conseguira ambas as coisas. Não tinha qualquer outra
esperança. Quando Cal se recordou de que Tuck falara em levar
os objectos de Georgiana para sua casa, teve de conter um
amargo sorriso. Georgiana ir-se-ia embora antes que Tuck lá
chegasse.
Por fim, o cimo do planalto parecia prestes a ser atingido.
Em breve, Cal guiava o cavalo sob os frondosos zimbros de
troncos acinzentados, através do mato seco e emaranhado. Ao
chegar a campo descoberto,, onde os troncos enegrecidos ainda
fumegavam, viu a sua nova residência e sentiu um baque no
peito, como se tivesse sido apunhalado. O seu lar! Como lhe
parecia ridículo levar a sua noiva consigo! æ luz crepuscular,
a construção pressagiava a solidão a que sempre deveria estar
votada.
Mais uns passos e algumas palavras falsas, e a farsa
terminaría.
Cal largou o cavalo em frente do alpendre. Voltando-se para
Georgiana, viu-a a observar curiosamente a casa. Não se
mostrava tão cansada como na segunda longa caminhada. Depois,
o olhar dela recaiu sobre ele. O rosto dela parecia pequeno e
descorado. Puxando o cobertor que a envolvia, ele atirou-o
para os degraus da entrada.
- Desmonta e entra! - disse ele.
A velha fórmula de boas-víndas dos homens do Oeste a
qualquer visitante! Mas não deu resultado.
Georgiana não se moveu nem falou. A sua cabeça estava um
pouco inclinada para trás. Cal esperava alguma das suas

deprimentes e irónicas observações, que o faria odiar-se ainda
mais a si próprio, e tinha os nervos tensos.
- Anda... minha noiva! - chamou, com voz forte, chegando
junto dela.


249


De repente, sentiu-se violentamente esbofeteado. Foi tal o
choque que quase caiu. O sangue ferveu-lhe nas veias. Não lhe
dissera nada inSultuoso. Quanto a ele, era apenas uma alusão
trocista à realidade! da situação.
Então, uma espécie de furiosa paixão transformou-o por
completo. De um poderoso esticão, desalojou-a da sela e
enlaçou-a nos braços. Assim a manteve, fortemente apertada,
tanto que a fraca resistência que ela ofereceu era inútil.
Beijou-a quase tão violentamente como ela lhe batera. Toda a
sua ira, e amor, e agonia haviam encontrado terrível expressão
nos beijos com que lhe cobria os olhos, o rosto e os lábios.
Ela ficou imóvel nos seus braços. Teria desmaiado novamente?
Ele afastou-a. Os olhos escuros da jovem estavam muito abertos
e neles julgou ver reflectida a sua própria alma.
Subindo os degraus do alpendre, transportou-a até à porta da
cozinha, a qual abriu. Entrou no escuro aposento e olhou em
torno de si, até que viu um divã a um canto. Dirigiu-se a ele
e depositou-a aí.
Tudo estava em perfeita arrumação e Limpeza. Acendeu uma
candeia. Era nova e grande, e espalhava uma luz intensa e
brilhante. As suas mãos deixaram de lhe tremer e o cataclismo
que se operava no seu coração diminuía, pouco a pouco. Sem
olhar para a rapariga, foi acender o fogão. As achas e aparas
de zimbro seco começaram a arder e a soltar faúlhas.
Acrescentou-lhes alguns toros mais grossos e em breve tinha
uma acolhedora braseira. Depois, fechou o fogão. Na mão
direita segurava ainda uma acha, CoMo Se isso o animasse a
articular o discurso que Tuck Merry lhe encenara para aquela
ocasião.
Girando sobre si mesmo, olhou para Georgiana. Ela estava
sentada, com as mãos agarradas ao casaco que tinha despido..
Por seu turno, ela fitava-o, estranhamente. Tudo nela parecia
diferente do que ele previra ou receara.


250


Naquele momento, só a sua doçura e beleza o enchiam de
desespero. Mas, nada podia modificar o remate daquela comédia.
- Ora bem, senhora de Cal Thurman, - trovejou ele, batendo
no fogão com uma vara de madeira. A sua voz ressoou e
Georgiana sentiu-se amedrontada. - Quero o meu jantar! Não
estou disposto a dizê-lo mais vez nenhuma, nem a implorar...
Quero o meu jantar, pura e simplesmente!
Então, teve a maior surpresa da sua vida. Ela largou o
casaco e pôs-se em pé. Não parecia a Georgiana que ele
conhecia, embora lhe pertencessem aquele rosto,, os olhos
profundos, agora mais escuros, o cabelo em desalinho. Ela

aproximou-se dele.
- Sim... e... eu vou fazer o teu... jantar - disse, com voz
trémula...
-Ah! - ouviu-se a exclamação favorita de Cal.
- Tens cá... o que é preciso? - perguntou ela.
- Está aí tudo - disse ele, secamente. - Eu... vou tratar do
cavalo e fazer mais umas coisas.
E desapareceu, fechando a porta atrás de si. O vento frio da
noite refrescava-lhe o rosto muito quente.
- Está boa, está! - murmurou ele, encostando-se a uma coluna
do alpendre. - Assustei-a até para a semana que vem!... Diabos
levem aquele Tuck Merry! Há-de pagar-mas...
Desaparelhou o cavalo e levou-o para pastar livremente no
terreiro. Depois, pegou na sela e foi colocá-la sob o
alpendre. Em seguida, transportou alguns pedaços de lenha para
junto da porta que dava para o living-room. Acendeu um
candeeiro e tratou de acender lume no fogão de sala. Feito
isto com todo o vagar, percorreu o aposento com o olhar. Era
acolhedor. Ele e Tuck haviam diligenciado porfiadamente por
utilizar tudo quanto Cal tinha comprado.


251


Uma manta vermelha sobre a cama emprestava a nota colorida.
Que pensaria Georgiana dos reposteiros que enquadravam a cama
e que quase chegavam ao tecto? Havia até um espelho, um jarro
branco para água e uma bacia de cara. Cal pensava que talvez
fosse demasiado luxo para um pioneiro. Então, -de repente,
voltou de novo à triste realidade e sentiu que o seu castelo
de quimeras se desmoronava. Georgiana nunca compartilharia
aquele lar com ele.
Saiu, deixando a porta aberta, e o clarão do fogo seguiu-o
através do espaço entre o alpendre e a porta da cozinha.
Vigorosamente, abriu-a. Georgiana estava a pôr a mesa e a sua
entrada sobressaltou-a.
Cal encarou-a, sentindo-se homem pela primeira vez havia
muito tempo.. Ela tinha-se assustado e feito uma rude jornada,
mas não fora magoada, Era ele quem devia sofrer. Ela
salvara-se, pelo menos, -de Tonto. Era sobre ele que devia
recair todo o ridículo e zombaria. Toda a sua atitude estudada
caiu por terra, como folha morta.
- Podes arranjar-me água, Georgie? - pediu, jovial.
Ela deitou água quente de uma chaleira. Cal notou que ela o
observava, mas não ligou e começou a lavar a cara
energicamente,, como se quisesse, além da poeira, remover
também a máscara de hipocrisia adoptada até ali.
- Então, o jantar? - indagou, com a maior naturalidade.
- Está pronto - disse ela. - Foi o melhor que pude fazer...
Tenho os dedos como que paralisados,, esta noite.
Cal tinha fome e queria poupar a si próprio e a Georgiana
outros maus momentos. Não voltou a falar senão para lhe
perguntar se ela não comia.
- Não tenho apetite - respondeu ela.
Passado pouco tempo, ele acabou e levantou-se.
- Fora de brincadeira, Georgie, o jantar estava bom.


252


Não me hei-de esquecer disso.. E agora deixa que eu lavo a
loiça.
- Cal, estás diferente... como antigamente! - exclamou ela,
subitamente.
- Bom, Georgie, tu nunca me compreendeste e, pior ainda para
mim, nunca virás a compreender... Anda cá, quero que vejas o
outro quarto.
- Outro quarto? - repetiu ela.
- Sim. Isto é apenas a cozinha. Anda.
Como ela não se movesse e o olhasse, espantada, ele
pegou-lhe na mão e fê-la sair da cozinha. O tremer da mão
dela, o seu calor, disse-lhe muito. Teve de a levar um pouco à
força para que ela o acompanhasse.
Como era confortável, aconchegado e íntimo aquele quarto! E
quente, também, -devido ao zimbro que ardia, espalhando o seu
agradável aroma.
- Não é bonito? - perguntou ele, sem a fitar e largando-lhe
a mão.
- É tudo teu - continuou ele. - Aqui... está a tranca para a
porta. O tio Gard diz que nem um urso pardo consegue aqui
entrar com a porta trancada.
Depois, tirou a pistola da cintura e colocou-a em cima da
mesa.
- Não deves precisar disto, mas aqui fica - disse, voltando
a aproximar-se da porta.
Então, ergueu a cabeça, com certo orgulho e fitou-a,
tristemente.
- Boa noite.
E saiu, fechando a POrta.


253


CAPíTULO xiv


Quando a porta bateu atrás de Cal, sem violência, mas com
decisão, Georgiana sentiu uma espécie de choque nervoso. Por
momentos ficou imóvel, de pé, a tremer, passando, de um temor
incerto a um alívio seguro, contemplando a porta por onde Cal
saira. Então, levada pelo instinto, correu a levantar a pesada
barra de madeira e a trancar a porta. Aquilo parecia
Representar uma imensa e estranha diferença.
As suas pernas ameaçavam fraquejar e novamente sentiu a
cabeça oca. Deitou-se na cama e assim esteve um bom pedaço,
percorrida por pensamentos tristes, e vagos. Quando aquela
sensação de mal-estar indefinido lhe passou, sentou-se e teve
consciência de estar cansada e com dores de cabeça, embora
voltando, gradualmente, à sua lucidez.
Afinal, que sucedera? Olhando em volta daquele quarto feito
de tábuas e troncos, ;tão novo, tão perfumado de pinho
recém-cortado, para o telhado tosco e inclinado, a argila

avermelhada que tapara as fendas entre as pranchas, as poucas
peças de mobiliário rústico, robusto e bem acabado, atendendo
a quem o fabricara, as diversas peles de camurça que cobriam o
chão assoaLhado, as janelitas que abriam para dentro, como
portas, o grande fogão de sala, feito de pedra branca, com a
sua chama vermelha, incandescentes as brasas, vendo tudo isto
e, depois, o seu vestido esfarrapado, Georgiana Stockwell
conseguiu estabelecer alguma coisa da realidade da sua
situação.


257


Quando o seu olhar pousou na pistola azulada que Cal deixara
sobre a mesa, sentiu-se estremecer. Era a arma que ele
apontara a BId Hatfield e com a qual o podia ter matado.
Sentiu um calafrio e fechou os olhos. Contudo, não conseguiu
afastar a imagem de um Cal Thurman de olhar feroz e semblante
miserável, subitamente revelado no seu verdadeiro carácter.
Ela odiava-o. Ir-se-ia embora no dia seguinte, logo que
tivesse coragem, Havia de existir alguém a quem pudesse contar
a sua história. Mas... e se o encolerizasse outra vez? Aquela
ideia tirou-lhe as forças. Que grande selvagem ele tinha sido
e com que inaudito sangue-frio! Naquele estado,, Cal Thurman
seria capaz de tudo. Todavia, porque é que havia mudado tão
bruscamente, para voltar a ser o Cal de quem ela chegara a
gostar? Porque é que lhe dissera que trancasse a porta daquele
quarto e lhe dera a sua arma, e depois saira, com o ar de um
grande senhor ultrajado? Era isto que apoquentava e punha
perplexa a rapariga. Não havia relação entre as duas atitudes.
Ele tinha dois aspectos diferentes, qualquer deles
desconhecido para ela.
Após uns momentos de reflexão, apagou a luz e, sem sequer
descalçar os sapatos, deitou-se na cama e tapou-se com duas
mantas. O quarto parecia agora maravilhosamente transformado.
Os tições no fogão lançavam sombras rubras no sobrado, e
despediam raios de luz para os seus olhos. De súbito, notou um
som abafado e contínuo. Estremeceu e pôs-se à escuta. Era
apenas o vento sob as goteiras do telhado. Possuia o som mais
estranho, triste e persistente que jamais ouvira. Meteu-se
mais debaixo dos cobertores. Começava a sentir-se quente e
confortável e a lassidão apoderava-se dela.
Queria afastar Cal Thurman do seu espírito pelo menos tanto
quanto ela estaria longe da sua vida daí a dois dias.
- Sim... muito bem... mas tu és mulher dele!
Georgiana, embora só, proferiu estas palavras em voz alta.
Ficou hirta, na cama, com o pensamento paralisado por aquela
ideia.
De certo modo, parecia-lhe uma terrível situação... Não que
a fizesse modificar o seu procedimento posterior! Mas, como
seria ela olhada em Tonto? Nunca tinham gostado muito dela,
exemplo, alguns daqueles sentimentais e aéreos rapazes. Cal
ThUrman, contudo, era estimado por todos, até por Bid
Hatfield. Que dissera Bid uma vez? "Cal é um homem às
direitas". E, dito por Bid, que sempre fora acerrimamente
ciumento de Cal, aquela afirmação equivalia a um elogio.
- Tem de ser anulado... - disse Georgiana. - Posso metê-lo

na prisão... A sua vida não vai ser um mar de rosas depois de
eu contar tudo... E há-de perder a estima dos outros.
æ medida que a noite decorria, Georgiana jazeu na cama, sem
conseguir pregar olho, nem escutar a vozita que parecia bater
à porta da sua consciência. Ainda assim, tornou-se sonolenta e
o seu raciocínio enfraqueceu quando o cansaço a invadiu, a
pouco e pouco. Por fim, quando se perdia em conjecturas sem
forma, adormeceu.
Georgiana despertou. As pálpebras recusavam-se a
abrir-se-lhe e tinha o corpo confortavelmente estendido em
repouso. O sol brilhante coava-se para dentro do quarto. Um
olhar em volta fê-la relembrar o tempo, o lugar e a situação.
Afinal, tinha dormido. O sol ia alto... Depois, ouviu bater à
porta.
- Georgie, estás bem? - perguntou Cal, com tom de ansiedade.
Georgiana teve vontade de lhe responder que a deixasse em
paz. Que esperava ele que ela dissesse? Mas, permaneceu
calada.


258 259


- Georgie, morreste? - gritou ele, batendo com força.
- Se não morri não foi porque não tenhas feito o possível
para isso - respondeu ela. - Que é -que queres?
- Oh! - exclamou ele, aliviado. - Se me deixares entrar, vou
acender-te o fogão. Estes sítios são frios.
- Não precIso de calor nenhum.
- Queres o pequeno almoço?
Georgiana ponderou um instante e respondeu:
- Eu vou fazer o teu, mas para mim não quero.
- O teu já está preparado - prosseguiu ele.
Georgiana sentou-se na cama e, lentamente, puxou os
cobertores para baixo. O tom de voz de Cal adquirira o timbre
que lhe afectava os nervos. Esteve prestes a dizer que não
tinha apetite quando ele falou de novo.
- Levanta-te e avia-te, antes que a comida arrefeça. Tenho
que fazer e não posso estar à espera.
- Que horas são?
- Quase meio-dia... Georgie, tenho de ir ao rancho do tio
Gard e devo vir tarde. - Aqui parou e tossiu. - Eu... tu...
quero dizer... tens o tempo livre para fazeres o que queiras.
Georgiana ouvia-o entre surpresa e duvidosa.
- Estás a ouvir-me? - perguntou ele.
- Sim, estou a ouvir-te, Cal Thurman, mas não sei o que
queres dizer - retorquiu. - Pensas que sou mentirosa, não é?
- Bom:, já que queres que te responda, creio que sim., E
muito mais coisas ainda!
Seguiu-se profundo silêncio. Georgiana não compreendia a sua
súbita e impulsiva explosão. Apetecia-lhe rir, embora
estivesse zangada. Que doido era Cal!
- Bom! - suspirou ele. - Creio que é tudo.


260

Os seus passos pesados ressoaram no pórtico e ao pisar o
cascalho. Georgiana COrreu à janela e espreitou. Ele montava a
cavalo... Depois, afastou-se. Provavelmente, era um ardil para
a decepcionar. Em breve Desapareceu na orla do bosque. Após um
movimento de reflexão, Georgiana pensou que não havia
realmente motivo para pensar que ele não se tinha ido embora.
Mas, o facto de ter partido era-lhe muito grato.
Então, dedicou-se aos assuntos que, de momento, mais a
interessavam pessoalmente. Dormira completamente vestida e
pensou que devia estar horrível. Tinha o cabelo num estado que
jamais se recordava de ter atingido. No rosto, notavam-se os
Sulcos das Lágrimas através da poeira escura acumulada. Viu
ainda uma nódoa negra na testa, que, felizmente, pôde ocultar
com o cabelo.
- Ora vejam lá! - murmurou, mirando-se ao espelho. - Ao que
eu cheguei!
A água do jarro estava tão fria que a jovem não pôde
utilizá-la. Abriu -a porta e, espreitando para ambos os lados,
Atravessou o alpendre e entrou na cozinha. Estava quente.
Sentiu nas narinas o cheiro agradável do presunto, e, então,
descobriu que estava a cair de fome. A mesa posta para uma
pessoa, A sua limpeza e arrumação surpreenderam-na. Os
biscoitos estavam quentes, a cafeteira do café exalava
fragrantes vapores e sobre o fogão, lá estava uma frigideira
com duas fatias de presunto.
- Por esta não esperava eu - murmurou.
Depois, lavou a cara com a água quente da chaleira e,
encontrando um pente e uma escova junto do espelho, conseguiu
que o cabelo retomasse uma forma semelhante à habitual. O seu
espírito trabalhava afanosamente. Por momentos, esquecera os
seus temores. Agradava-lhe verificar que, apesar da mazela na
testa, quando puxou o cabelo para a tapar, ficou ainda mais
interessante. Não era tão bonita, sem o pó de arroz e a
pintura, mas de uma brancura intensa e cativante!


261


E assim se queria mostrar quando relatasse a sua história
trágica.
Não havia mais nada a fazer senão esperar que chegasse
alguém. Georgiana não gostava muito de esperar. Tinha de se
ocupar em alguma coisa ou seria tomada pelo nerVosismo.
- Não seria má ideia lavar esta loiça velha - disse para si.
- Devo mostrar a Cal Thurman que sei ser dona de casa. Quase
que me esfolava viva, ontem... mas, sempre me fez o presunto.
Os homens têm de saber estas coisas... e até tomar conta das
crianças, que é o mais provável que lhe aconteça.
Georgiana lavou a loiça toda e acabara de arrumar a cozinha
quando o som de vozes e o ruído de cascos fizeram o coração
acelerar-se-lhe. Teria Cal regressado? Assomou à janela da
cozinha e viu uma porção de burros ajoujados, o primeiro dos
quais com um baú. Georgiana reconheceu-o. Aquela mala era sua.
Então, admirada, viu Mary, cavalgando a montada de Enoch e
depois Tuck Merry e outro cavaleiro.
Georgiana saiu da janela. Sentia-se livre e ao mesmo tempo
embaraçada. Quis sair a correr, mas não foi capaz.

- Mas, não ganham nada com isso... lá porque trouxeram as
minhas coisas para aqui - murmurou. - Ninguém os mandou, e vou
já pôr tudo em pratos limpos com Mary.
Ouviu passos no alpendre.
- Eh, Dorminhocos - chamou a voz sonora e alegre de Mary.
Georgiana sentiu profundo choque no coração. Quando é que
Mary falara assim alguma vez? Georgiana abriu a porta.
Era Mary quem estava defronte dela. Vestia um casaco curto e
pesado, com a gola de pele voltada para cima. O rosto dela
vinha rosado com o frio e o exercício. O seu olhar brilhava de
ternura e felicidade e o sorriso que lhe apareceu tão radiante
ao ver Georgiana era belo. O que quer que Georgiana quisesse
dizer foi suspenso.
- Oh, Georgie... irmãzinha! - exclamou Mary, quase soluçando
de alegria, agarrando-a, apertando-a e beijando-a, de tal modo
que Georgiana quase ficou sem respiração.
Mais ferida, a jovem sentiu o coração oprimido e os olhos
humedeceram-se-lhe. Qualquer coisa a tinha desanimado. A
alegria de Mary ao vê-la atingira-a profundamente. Georgiana
verificou que precisava de uma mãe e Mary estava no lugar
dela. Aconchegou-se contra a irmã, silenciosa e
apaixonadamente, e aquele contacto afastou os vestígios de
constrangimento que ainda restavam. Depois quis desabafar
antes que Mary estranhasse a sua atitude, mas tinha a língua
paralisada.
- Georgie... pequenina, não chores - dizia Mary, cingindo-a
estreitamente. - Não estou zangada. Percebes? A tua fuga
transformou-me na mais feliz das mulheres!
- Na mais... feliz?... Mary! - exclamou Georgiana, atónita.
- É claro que não compreendes - replicou Mary. - Mas, depois
te conto. Vamos para dentro, que estou quase gelada.
Acercou-se da entrada e dIsse aos outros:
- Descarreguem as coisas e tragam-nas para o alpendre.
Fechando a porta, abraçou Georgiana mais uma vez.
- Minha querida selvagem! Minha màzona! Afinal, era Cal! Oh,
Georgie, estou tão contente! Quase perdi a cabeça!
- Realmente!... não pareces estar boa - replicou a irmã,
trémula.


262 263


- Que cozinha tão bonita, tão acolhedora! - exclamou Mary,
vistoriando tudo com olhar entendido. - Mas, falemos
primeiro... Onde está Cal? Quero ver tudo.
- Foi à vida dele - retorquiu Georgiana.
E esteve prestes a descobrir a perfídia de Cal e a sua
situação insustentável. Mas, calou-se.
- Georgie, o teu casamento salvou a minha felicidade -
declarou Mary, com suave gravidade.
- Que... queres dizer? - perguntou Georgiana.
- Sentemo-nos aqui, anda - replicou Mary, Levando Georgiana
para o divã e continuando com o braço em torno dela, - Agora,
já posso dizer-te, porque estás casada e livre de perigos,
graças a Deus! Oh, Georgie, aquele rapaz, Cal, salvou-te e a
mim, também... Escuta e não te ofendas com o que eu possa
dizer. Nunca viste bem qual era a situação aqui. Tentei, há

muito tempo, fazer-te compreender o perigo dos teus...
devaneios com esses rapazes. Nunca avaliaste a importância de
namorares a sério Cal Thurman e de o fazeres apaixonar-se por
ti, com conhecimento de todos os Thurman. A princípio,
toleraram-te, apesar da tua imodéstia no vestir e da tua
linguagem. Mas, quando começaste a andar com os outros e a
atormentar Cal, então, esfriaram muito. Não é necessário
dizer-te tudo o que sei a esse respeito. Depois do baile de
Outubro e da tua indiferença por Cal, quando devias ter
apreciado a sua lealdade, até Enoch se pôs contra ti. Queria
que eu te mandasse para casa. Eu não podia fazer isso, pois o
teu lugar era comigo... Bom, anteontem, a tempestade desabou.
Oh, -querida, até me custa contar-te!
- Continua - disse Georgiana, em tom abafado. Contorcia-se
como se estivesse a ser chicoteada. - Não te importes comigo.
- Enoch chegou da cidade, furioso em extremo com qualquer
coisa que tinha ouvido a teu respeito, dita por Hatfield,


264


segundo os boatos. Enoch afirmou que tinhas de te ir embora,
que tinhas feito de Cal o bombo de festa de Tonto. Pior ainda,
se os boatos chegassem aos ouvidos de Cal, este mataria
Hatfield. Eu... fiquei sem pinga de sangue... Então, disse a
Enoch que estaria do teu lado, sucedesse o que sucedesse.
Zangámo-nos. Ui! Nunca pensei que ele pudesse ser tão... tão,
não sei que lhe chame. Nunca irrites demasiado o teu marido.
Pus o meu jogo todo na mesa, como se costuma dizer. Depois,
ele praguejou e disse que era tudo por causa "daquela gata
brava da tua irmã". Mandei-o calar e disse-lhe que lhe dava
dois dias para reconsiderar, depois, se continuasse na mesma,
quebraria o compromisso entre nós e levava-te comigo... para
longe de Tonto.
- Oh, Mary! - exclamou Georgiana.
- Custou muito, Georgie querida, - continuou a irmã -, Mas
não vi outro caminho. Fiquei ainda mais desditosa. Enoch
conservou-se afastado de mim e sei que nunca cederia. É
estranho que não tivesses visto que havia qualquer coisa a
correr mal. Mas, o teu espírito estava todo ocupado pelo teu
romance de amor. Apenas, se tivesses adivinhado como o meu
coração estava a ser despedaçado, ter-me-ias contado... Só
cheguei a casa ontem à noite, já tarde. Enoch encontrou-me,
mas não me disse nada. Limitou-se a abraçar-me, com força de
um urso, diante de todos. Então, reparei que parecia
extremamente feliz, assim como todos os Thurman, Especialmente
o velho Henry, que me disse: "Aquele Cal é um rapaz esperto.
Já devia calcular o que ia acontecer, para nos fazer andar
todos à lufa-lufa a construir-lhe a casa".
Perguntei o que significava aquilo, especialmente a conduta
extraordinária de Enoch, e todos exclamaram: "Cal e Georgie
casaram-se!" Caí das nuvens, mas, quando me convenci de que
era verdade, senti-me a pessoa mais feliz.


265

Tuck Merry levara a novidade. Era um herói. Todo aquele que
facilita uma fuga de uma rapariga para ela se casar, nesta
terra, ganha distinção. Não pude falar com Tuck naquela
altura, mas falei com Enoch. Ele não cabia em si de contente:
"Oh, Mary, é por Cal e por ti que eu estou satisfeito". Como
ele estima Cal!... Bem, eu não estava contente, ou por outra,
não queria que ele o percebesse. Por isso, disse-lhe certas
coisas e preguei-lhe um bom susto, fazendo-o crer que não lhe
perdoava a sua obstinação. Ele suplicou-me. Soube-me muito
bem, depois do modo como ele altercara comigo quando nos
zangámos. Disse que estava muito arrependido de não ter
esperado alguns dias, porque nunca nos teríamos aborrecido...
Bom, resunindo, fizemos as pazes e vamos comemorar o vosso
enlace casando-nos nós.
- Quando, Mary? - murmurou Georgiana, roucamente.
- Enoch pediu-me que fosse uma semana depois de vocês, mas
eu adiei-o por um mês... E, assim, querida, fizeste-nos todos
felizes. Salvaste Cal mesmo no momento oportuno, para não
falar em mim e em ti! Esta manhã, encontrei o velho Gard
Thurman, em Green Valley. Estava com algum receio dele, -mas
foi muito simpático: "Bom, ,não hádúvida que mulheres são
sempre mulheres e as do Este são difíceis de dominar. Mas,
tudo está bem quando acaba bem. Ela, agora, já pertence aos
Thurman"... E, Georgie, isto significa tudo para esta gente
simples.
- Diz-me, Mary, Cal soube que te zangaste com Enoch? -
perguntou Georgiana, sentindo encher a maré de um irresistível
caudal no seu peito.
- Evidentemente; Enoch disse-lhe. Eu só o soube ontem à
noite. Cal ficou como doido, segundo me contou Enoch. Jurou
que, se ele fizesse que tu e eu nos fôssemos embora, cortaria
relações com os Thurman. Oh. a coisa esteve feia.


266


Para falar com franqueza, julgo que Enoch ficou tão contente
em apaziguar as coisas entre ele e Cal como em me reaver.
De súbito, Georgiana aninhou-se no regaço da irmã e, colada
a ela, soluçou, incoerentemente.
- Oh... Mary... Ma... ry! Eu fui... o que Enoch... me
chamou... e, oh, eu... eu quero morrer.
- Porquê, Georgie? - exclamou Mary, assustada, abraçando a
irmã estreitamente e inclinando-se para ela com ternura. - Que
estás tu a dizer? Pobre criança! Oh, oxalá que eu não tenha
falhado na minha missão de mãe para ti! Mas, querida, tu
própria não o suportarias. Tinhas de fazer sempre a tua
vontade e... acabou-se, graças a Deus! Alegro-me por te ver
chorar. Chora à vontade. Oh, Georgie, andava tão apoquentada
contigo! Mas, não importa. Não digo mais nada. Quero apenas
amparar-te e recordar-me dos tempos em que corrias para nós,
há anos, com os teus problemas de criancinha.
Georgiana tardou em moderar a sua crise de choro. O dique do
seu pranto ruira, e durante um bom pedaço deu largas à sua
angústia. Quando, finalmente, pareceu um pouco mais aliviada
era como se tivesse tido um tremendo pesadelo.

- Mary, tu ainda... gostas de mím? - perguntou ela.
- Que pergunta, Georgie! E, agora, cada vez mais, pois,
quando o mau tempo passar, tudo isto servirá para nos
aproximar ainda mais, querida irmã.
Georgiana calou-se, com a cabeça recostada no seio da irmã
tão extremosa. Tinha sofrido um choque terrível. Era como se
as revelações de Mary tivessem transformado a sua própria
vida, mas como, não o poderia dizer. Apenas duas coisas
tomavam forma concreta no seu cérebro esvaído; os seus lábios
conservavam-se cerrados e, só isso, era motivo para se
desprezar a si mesma. Durante cerca de uma hora,


267


tudo quanto pôde fazer foi dominar-se para ser suficientemente
mulher para poupar a sua irmã, para esconder a sua vergonha e
miséria, para aceitar o seu estranho destino no momento
presente e pôr de parte os seus desejos egoístas, em atenção
aos outros, para ocasião mais favorável. Estava sozinha,
agora, Não havia ninguém que a ajudasse, que a tirasse da sua
confusão.
- Irmã, tudo quanto posso dizer é que começo a ver... e, se
só tivesse alguns meses de vida, seria diferente.
Mary beijou-a com ardor e meiguice.
- Georgie, é tudo quanto eu precisava hoje para tornar
completa a minha felicidade. Oh, eu nunca perdi a fé em ti!
O desprezo por si própria podia esperar, assim como a hora
de encarar o seu problema. Naquele momento, devia apresentar o
que Mary imaginava. e, !por isso, secou as lágrimas e
conseguiu o milagre de um sorriso, no seu rosto, quando o
desdém, por si mesma e um sentimento de baixeza lhe
aguilhoavam o coração.


268

Capítulo XV


Eram cinco horas da tarde e o sol já beijava os cumes da
cordilheira distante. Mary tinha saído duas horas antes.
Durante aquele tempo, Georgiana sentara-se, silenciosa,
encurralada entre a emoção e o pensamento.
- Que posso eu... que devo eu fazer? - murmurou, saindo da
sua completa inactividade.
Percorreu o quarto, observando as vastas melhorias que a
irmã levara consigo. Que dura prova tinha experimentado a
ajudá-la a colocar as suas malas e caixas, todos os seus
haveres, naquele living-room, a vê-la e a escutá-la enquanto
abria tudo e pendurava e arrumava, até ficar pronta aquela
transformação! Todos os enfeites, adornos, fotografias e
imensas ninharias, tão queridos do seu coração, que não tinham
cabimento em Green Valley, ali estavam dispostos de molde a
tornar o aposento mais colorido e embelezado.

Georgiana olhava em torno de si, como se aquelas
quinquilharias devessem despertar nela a sabedoria que lhe
iluminasse a existência futura. Mas, só lhe falavam de prazer,
alegres recordações, do conforto do lar, de tudo quanto
parecia ali troçar dela. O fogo que ela e Mary tinham ateado
brilhava, cálido e rubro, no fogão de pedra; também aquilo se
lhe assemelhava a uma mentira:
- Aqui estou. Não me fui embora. Ele deve estar a voltar...
E eu, sou a sua mulher!
- gritou ela, sem poder reprimir-se.


271


Tinha de ficar. O seu único motivo de fuga desaparecera.
Poderia ter coragem para o fazer, fugir para longe daquele
lugar da floresta, à noite. De que lhe serviria? Viria a
morrer de frio, e de fome. De resto, tinha de permanecer ali,
atendendo a Mary, pelo menos, até que ela se tivesse casado
com o cara -de pau de Enoch.
- Tenho de me resignar - admitiu Georgiana, cobrindo a boca
com a mão, num gesto de desespero, - se fujo, vão dizer que
abandonei o meu marido após um dia de casados. Céus! Isso
arruinaria a vida de Mary. Estou aqui de pedra e cal. Tenho de
pagar pela minha... perversão...
Pareceu-lhe, então, que a sua resolução de ficar não
simplificava em nada a Situação. De facto, não. Era necessário
resolver-se, simplesmente porque não tinha alternativa. O que
afligia Georgiana era a premente necessidade de achar maneira
de salvar o seu orgulho. Era uma vaidade sua e ela sabia-o.
- Que posso eu dizer-lhe... quando me encontrar ainda aqui?
- perguntou a si própria. - Tenho de arranjar um plano.
Convencer e enganar os outros havia sido o passatempo de
Georgiana enquanto criança e, como mulher, tornara-se a sua
característica dominante. De repente, um rasgo de sublimidade
pareceu iluminar-lhe a escura perplexidade do seu espírito.
Porque não ser honesta? Em menos de um dia, chegara a recear
Cal Thurman mais do que tudo na vida. E ali estava ela a
contorcer o cérebro para descobrir o meio de o desiludir - de
lhe mostrar que não tinha medo - para salvar o seu orgulho.
Ficou mal disposta com este pensamento.
Mas verificara as consequências Catastróficas do seu
procedimento falso e vergonhoso. Não podia voltar a mentir nem
a enganar.


272


- Serei justa - decidiu -, e engolirei a pílula, por amarga
que seja.
Então, resolutamente, entrou na cozinha e concentrou-se na
responsabilidade de preparar o jantar. O curto dia de Inverno
findara e o crepúsculo cobrira a região. Acendeu a luz e,
lembrando-se dos seus graciosos aventais, voltou ao
living-room, pegou num e ajustou-o ao corpo, demorando-se um
pouco a deitar uma olhadela ao espelho. Voltando à cozinha,

atiçou as brasas do fogão, e apressou-se nos preparativos da
refeição. Ocupada de mãos, preocupada de espírito, esqueceu os
seus temores, até que ouviu passos lá fora e bateram à porta.
- Quem é? - perguntou.
- Sou eu, Cal - foi a resposta, em voz cansada.
- Entra.
Ele entrou, abstracto e coberto de pó, e caminhou, Coxeando
um pouco. Do seu trajo, evolava-se o aroma seco dos pinheiros.
- Encontrei Mary, perto da escola. Não lhe disseste...
- Não - respondeu a jovem, -simplesmente.
- Porquê?
- Sabes da desavença entre ela e Enoch, por minha causa.
- Sim. Enoch é um velho Porco-espinho. Fizeram já as pazes?
- Sim. E eu... não fui capaz de lhe dizer.
- Reconheço que te devia custar...
É por isso que ainda cá estás?
- Principalmente por isso. Mas...
não estou muito interessada em ser tratada como ontem.
Ele estudou-a, com as suas pupilas escuras e tristes.
Parecia que aquele dia operava uma mudança nele, tal como
nela. Sem dizer palavra, foi deitar água na bacia e subiu a um
banco, para se lavar, Georgiana observava-o de lado,


273


enquanto se afadigava junto da mesa e do fogão. Quando, por
fim, ele se voltou novamente para a luz, ela fitou-o
atentamente. As suas abluções tinham removido os vestígios do
labor, -mas, em contrapartida, aumentado a sua macilenta
palidez. Cal aparentava grande preocupação mental. Num só dia,
era como se tivesse envelhecido anos. O rapaz desaparecera e
havia qualquer coisa de concreto acerca dele.
- Queres que te ajude? - perguntou ele, como se só então
tivesse reparado no trabalho dela.
- Está quase pronto - replicou a rapariga.
Desde que ele a fitava, ela deixara de olhar para ele. A
refeição estava pronta e sentaram-se em frente um do outro,
proferindo apenas as palavras estritamente indispensáveis. Cal
comeu pausadamente e a sua fronte, enrugada, denotava profunda
meditação. Quando terminaram aquela estranha refeição, Cal
disse que faria o resto do trabalho e Georgiana ficou
satisfeita por se ver aliviada. O Momento era de tensão.
Deixou Cal sentado à mesa, de cabeça apoiada na mão. Uma vez
isolada no seu quarto, Georgiana tornou-se vítima do remorso.
- Oh, estou tão triste... por ele, não importa o que me
tenha feito - exclamou. - Ele sabe como a situação é
irremediável e o que eu farei... e, então, terá a vida
estragada... Despedacei a vida dele... Oh, se eu tivesse
sabido!


O dia seguinte estabeleceu no espírito de Georgiana a
verdadeira perspectiva da sua existência, que, provavelmente,
seria igual durante mais algum tempo.

274


Não podia compreender Cal Thurman. Ele falava pouco e
parecia ansioso por se afastar dela. Uma preocupação quase
sombria o dominava enquanto estava com ela. Admitiu que ele
sabia perfeitamente que ela não permaneceria ali muito tempo
e, do mesmo modo, porque é que ainda lá estava. Era estranho,
mas ele não mostrava arrependimento pelo seu gesto, o que
causava surpresa a Georgiana. Se ele se tivesse arrependido,
talvez ela modificasse a sua opinião para melhor. Não parecia
justificar-se o receio da jovem de que ele tivesse outro
furioso repente como o que o levara a arrebatá-la contra a sua
vontade. Mas, sem dúvida, como ele mostrara o seu terrível
temperamento, este existia nele e podia voltar a
manifestar-se. Não obstante, o novo dia levou-lhe a consolação
de que ele iria deixá-la absolutamente sozinha.
No dia imediato, teve uma visita, nem mais nem menos que o
seu sogro, Henry Thurman.
- Então, como vai isto por cá? - indagou ele.
- Cal está a construir um muro para o tio e eu cá vou com os
meus afazeres - respondeu Georgiana.
Ele percorreu a cozinha, fazendo perguntas sobre tudo, e, em
seguida, passou à sala.
- Hum... creio que aquela gente de Tonto tem a mania de
falar cedo de mais - disse, enigmaticamente. - Filha,
parece-me que Cal teve sorte.
- Obrigada - murmurou Georgiana, ruborizando-se com o
elogio.
Era uma vitória sem proveito, -mas que, ainda assim, lhe
causava agrado.
- Georgiana, que é que queres para prenda de casamento? -
perguntou Henry, com largo sorriso. - Foi por isso que cá vim.
- É muito amável da sua parte, mas não quero nada - disse
Georgiana.


275


- Hum... um casal novo precisa sempre de alguma coisa. Anda,
filha, pensa lá o que há-de ser.
- Se lhe disser o que eu gostava... guardaria segredo
durante algum tempo? - perguntou ela.
- Mudo como uma estátua, Georgie.
- Pois, queria uma máquina de costura e uma porção de
tecidos.
- Para vestidos e coisas no género, não? - pergun tou ele,
com um sorriso amigável.
- Nada disso... Para fazer cortinas, lençóis, fronhas,
toalhas de mesa e de rosto... oh, uma Infinidade de coisas.
- Bom, diabos me levem! - exclamou Henry Thurman, com
evidente satisfação.
- Filha, tenho muito orgulho em ti. Agora, vais já fazer uma
lista de quanto precisas e eu mando-a a Ryson. Eles de lá
telefonam para Globe e mandam vir tudo na diligência. Então,
eu mando tudo para aqui e farei todos os possíveis para evitar
que o resto da família tenha conhecimento.

Trabalhando e dormindo, os dias passavam velozmente para
Georgiana, e, embora lhe parecessem todos iguais, havia
qualquer coisa de intangível que se avolumava com eles. Se
existia alguma transformação em Cal, era o olhar espantado,
surpreendido, em que a envolvia em certas ocasiões. Em
seguida, vinha uma expressão de dor aguda e ele saía
abruptamente ou voltava-se de costas para a ocultar.
Georgiana tomara a ombros uma tarefa quase incOmportável
para as suas forças. Mas, perseverava em realizá-la. Até
partia lenha e transportava água, o que, por vezes era uma
necessidade quando Cal estava ausente.
Georgiana prometera a si própria não se afundar no bem-estar
daquella vida rude de pioneiros, tão nova para ela. Sofria
dores, arranhões, golpes, queimaduras e, durante muitos dias,
o cansaço absoluto do seu corpo frágil. Então, quando previa
estar a atingir o limite das suas forças, estas renovavam-se.
O seu apetite aumentara com curiosa e alarmante Rapidez. O
vento frio, e cortante do Inverno, o ar límpido! mas gelado,
haviam deixado de a apoquentar.
Naquela parte mais soalheira, por estar a Sul, a neve
derretia-se mal tombava e, assim, um dos quadros que a
princípio mais aterravam Georgiana já não a faziam permanecer
em casa fechada.
Durante este tempo, Cal fizera alguns melhoramentos no seu
lar. Do rancho do seu tio Gard, levara galinhas, porcos, duas
vacas e um vitelo, bem como montes de sorgo, e de palha para
alimento do gado. Assim, o estábulo, a capoeira e a pocilga
receberam os seus ocupantes, e iniciavam a vida autêntica de
um rancho. Os novos seres vivos não representavam acréscimo de
labuta para Georgiana, pois Cal tomara a seu cargo o seu
completo tratamento. Contudo, aumentaram, de certo modo as
responsabilidades de Georgiana. Igualmente, também ela e Cal
verificaram ser impossível, embora constrangidos, -continuarem
a viver duas vidas à parte. Era o lar de Cal e Georgiana,
tendo encetado a sua missão, não podia agora descurá-la. æ
noite, quando Cal regressava da sua faina quotidiana,
conversavam sobre os acontecimentos triviais do dia e as
necessidades e probabilidades do seguinte. Parecia que Cal
ocultava todos OS sinais do seu amor e Georgiana, a pouco e
pouco, perdeu o medo. Nunca estavam juntos senão às horas de
comer. Uma noite, Cal chegou com a expressão alterada.
- Enoch mandou dizer que devíamos ir amanhã a Green Valley -
disse ele. - Ele e Mary vão casar-se.
- Oh, já passou um mês desde que...


276 277


- já - replicou Cal, secamente. - Faz um mês amanhã. A mim,
parece-me um milhão de anos... Queres ir ao casamento da tua
irmã?
- Tenho de ir - respondeu Georgiana, muito perturbada. -
Mary sentir-se-ia magoada... E, sim, quero ir. Não queres?
- Creio que não, mas sempre irei se tu fores. Hão-de lá
estar todos os Thurman e muito mais gente. E vão ver-nos.
- Eu... eu esquecia-me disso. Há-de ser embaraçoso, com
certeza.

- Sim! Acho que deve ser terrível. É contigo. Se eu não
fosse, Enoch ficava melindrado, mas eu não me ralava.
- Ralavas-te, sim. Enoch estima-te muito, Cal. - Sentiria a
tua falta. E não arranjaríamos desculpa. Estou aterrada com
a ideia de ir encontrar tanta gente.
- Eles pensam que somos muito felizes - disse Cal, com uma
gargalhada falsa.
Isto chocou-a.
- O teu tom leva a crer que és infeliz sem o mereceres -
retorquiu ela.
- Está bem. Vamos ou não?
- Oh, temos de ir! - exclamou a jovem.
- óptimo. Lavo daí as minhas mãos, não te esqueças. E é
melhor pensarmos em tudo com antecedência. Temos de ir a
cavalo e voltar para casa amanhã à noite. Ora, isso não tem
grande jeito.
- Mas, porquê? - Inquiriu Georgiana.
- Não pareces tão esperta como é costume. Se ficamos toda a
noite, a mãe dá-nos só um quarto... para ambos. É natural,
visto que somos casados. E nós não podemos ficar lá,
acabou-se.
- Eu... não me lembrei - replicou Georgiana, apressadamente,


278


sentindo no rosto uma onda de fogo. - Evidentemente, temos de
regressar.
- O que quer dizer que tens de ir com o fato de montar -
continuou ele. - Há-de fazer frio mas, se te agasalhares bem e
calçares as botas, deve ser o suficiente.
- Mas, Cal, eu não posso estar com Mary... em traj o de
montar... enquanto durar a cerimónia - protestou Georgiana.
- Então, que é que queres levar?
Ela pensou um momento e respondeu, hesitante:
- O meu vestido branco... o que tu odiavas... Mas, baixei-o
já bastante.
- Bom! Não me interesso mais pelos teus vestidos, mas
parece-me que quanto mais comprido melhor para sossego da
minha família.
A rapariga manteve-se silenciosa, consciente do coração
acelerado, e de certa irritação. Com que então, ele já não se
importava com o aspecto dela? Ela pensou que era uma
observação perigosa para fazer a uma mulher. Manifestamente, o
amor dele, não tendo de que se nutrir, morrera. Tal era a
constância dos homens! Por um instante, a primitiva Georgiana
voltou a querer ser conquistadora. Ela podia fazer que ele a
amasse tanto como a princípio, ou mais, e ainda tinha dentro
de si um diabinho que a incitava a fazê-lo, se ele tentasse
troçar dela. Mas, o rosto triste e cansado de Cal, o seu olhar
macambúzio, mostrando que ele procurava esquecer-se de si
próprio e dos outros, desarmou o seu súbito impulso. Todavia,
uma certa amargura oprimia-lhe o coração. Ela não fizera nada
que o levasse a desprezá-la.
- Eu amarro a tua mala na minha sela - prosseguiu ele. -
Agora, queres que te dê um conselho... para teu bem?
Ela fitou-o, com ar de dúvida. Ele parecia sério,

279


embora indiferente-. Aquele casamento da irmã punha em
evidência uma situação que ambos haviam evitado. Ela viu a
sinceridade dele. Podia, realmente, haver alguma sugestão que
tornasse as coisas menos dolorosas.
- Sim - respondeu ela.
- Recordo-me da noite em que fingiste ter ficado ferida no
carro... lembras-te, quando te fui buscar para Green Valley.
Enganaste a todos. E reconheço que és uma razoável actriz,
como Tuck disse depois... Pois bem, faz o mesmo amanhã. Vai
para te divertires e mostra-te alegre mesmo que te sintas a
morrer de desgosto... És pessoa para te enganares até a ti
mesma. De resto, toda a gente, sem querer, colaborará contigo,
na representação.
- Obrigada. Vou pensar nisso, - disse, ela, evitando
olhá-lo.
O dia Hestava invulgarmente bom para a época, sem ser frio,
mas revigorante e convidativo, com nuvens brancas a percorrer
o céu azul e um sol que aquecia confortavelmente.
Georgiana tinha um começo auspicioso para o seu dia em que
pretendia fingir-se feliz. A senhora de Gard Thurman, uma
mulher vincada pela rudeza da vida do campo, embora meiga e
amorosa, tocou na corda sensível no seu cumprimento a
Georgiana.
- Bem, filha, congratulo-me por te ver recuperar as forças -
disse, suavemente. - Estás mesmo bonita, com essas bochechas
tão coradas!
Georgiana não pôde afastar o prazer que isto lhe deu nem o
seu significado. Havia semanas que deixara de se preocupar com
a sua saúde. Seria verdade que estava mais forte? Uma onda de
-calor deixou o seu coração imerso. Afinal, a vida era
agradável. Seria possível que da derrota e do trabalho árduo
pudessem nascer o sucesso e a paz? Era uma ídeia nova. Tudo em
quanto pensara fora no seu orgulho e vaidade.


280


Entregara-se persistentemente ao seu difícil e desagradável
trabalho, mas, agora, olhando para trás, aquilo que lhe
custara parecia-lhe uma recompensa. Georgiana pôs de parte o
pensamento, para mais tarde o retomar quando tivesse vagar.
Os homens cavalgaram eM grupo, conversando e fumando, por
vezes meio virados nas selas, no jeito curioso dos cavaleiros.
Georgiana ia atrás com as mulheres.
A trote e a passo, a cavalgada desceu os caminhos da
montanha, saindo dos pinhais para os cedros e zimbros e, por
fim, para o bosque. Demoraram quase três horas a chegar a
Green Valley. Georgiana distraiu-se e só quase no fim se
sentiu fatigada. O receio de ver gente não se materializou.
Chegou mesmo a rir-se quando Tuck Merry se aproximou da
estrada e mostrou o seu prazer em ver Ollie Thurman, assim
como um ar insofísmável de quem acolhe quem é seu.

- Tuck, o dia é mau para namorar - disse Henry, com o seu ar
respIngão.
Foi Tuck quem ergueu Georgiana do cavalo para o solo e não
se esqueceu de pôr no gesto toda a cortesia afectuosa.
O alpendre estava cheio de gente, a maioria, altos e bem
barbeados. cavaleiros que Georgiana não distinguia muito bem.
Mas, viu Mary com clareza e correu para ela.
- Georgie! - exclamou Mary, após o primeiro abraço, e
sustendo-a com os braços estendidos para a observar melhor. -
Estás diferente. A tua cara já não é tão magra. Nunca te vi
tão... bonita. Oh, as coisas estão a correr-te bem!
Georgiana estreitou-a.
- Querida, tenho muito gosto em ver-te e ouvir-te dizer
isso. Não... tinha pensado na minha saúde. Tenho trabalhado...


281


E olha que tu também estás óptima. Esta coisa de casar parece
que remoça as mulheres.
Mary riu, alegremente. Ela estava, de facto, com muito bom
aspecto, mais jovem e sem sombras de inquietação. Georgiana
não deixou de o notar e essa evidência ia direita ao seu
coração.
- Georgie, anda que tens de ir falar aos outros. E vê lá
como te portas e se evitas a terrível mania do calão.
- Irmãzinha, deixa-me dar largas à minha maneira de ser,
pelo menos contigo, - implorou Georgiana. - Não disse trinta
palavras desde que estive contigo. Mas, não te importes. Estou
aqui para ser a noiva de Cal Thurman, para exibiçãO, e,
acredita, hei-de comportar-me na linha.
Havia mais de um mês que Georgiana não vestia um vestido
bom. Estava tão ansiosa por ver os progressos que tinha feito
durante aquele tempo, que pôs o seu vestido branco a meio da
tarde. Isto passou-se no segredo do quarto de Mary. O efeito
em Georgiana foi mágico. No íntimo, receara estar a perder a
saúde e com ela a sua juventude e beleza. Porém, nunca na sua
vida parecera tão boa.
Mary era toda sorrisos, elogios, beijos, entre os quais se
maravilhava e comprazía com as melhorias de Georgiana. Esta já
não era frágil e magra. O seu vestido bem o demonstrava.
Contudo, não chegava a revelar nem metade, em comparação com o
que era antes da transformação sofrida.
- Quando te virem esta noite, eles esquecem-se do que tu
parecias - declarou Mary, com satisfação, não especificando o
que queria dizer com "eles".
- Cal detestava este vestido quando estava curto - observou
Georgiana. - Disse-lhe que lhe tinha dado mais comprimento,
mas não creio que ele tomasse isso com grande consideração.
- Essa agora! Não te vestiste convenientemente desde que
casaste? - perguntou Mary.


282


- Nem uma vez.

- Bom, esta noite vais compensar.
- Creio que estou bem composta - replicou a irmã, com ar de
convencida. - Mas, tenho de esconder as mãos.
Olha para isto!
Estendeu as pequenas mãos para Mary as ver. Sempre fora
muito orgulhosa da beleza delas e cuidava de as tratar com
todo o esmero. Mas, no último mês, o cuidado desaparecera com
o orgulho.
- Mulher de um rancheiro! São tal e qual e hei-de fazê-lo
ver a toda a gente! - exclamou Georgiana, pesarosa.
- Trataste-as cruelmente mas pôr-se-ão boas - disse Mary. -
E, agora, ajuda-me a pôr o meu vestido...
As duas irmãs gastaram a hora mais feliz do seu convívio a
sós. Georgiana não tinha de que fingir. Sentia-se intensamente
humana e a excitação, o louvor e a admiração actuavam nela
como o vinho. Tudo o que lhe sucedera durante aquele mês era
como que uma recordação do seu desenvolvimento. Ainda assim,
não se deteve a pensar. A alegria de Mary era contagiosa.
O padre Meeker pouco tempo gastou em tornar Mary esposa de
Enoch Thurman. Em Tonto, nem grandes namoros nem longas
cerimónias.
Mas, os parabéns aos noivos eram coisa diferente. Georgiana
pensou que os cavaleiros e demais pessoal os desfaziam. Era a
única oportunidade que tinham e não iam perdê-la. Aquela
hilariante meia hora preparou o ambiente para o jantar. Era
uma verdadeira festa, para a qual tinham contribuído todas as
mulheres da família. Georgiana sentou-se ao lado de Mary e, à
sua esquerda, Cal. Tinha-o quase esquecido até àquele momento.
Quaisquer que fossem os seus sentimentos, teve uma actuação
tão gentil e cavalheiresca que o fez subir aos olhos de
Georgiana.


283


Depois da refeição, chegou o contacto com todos os presentes
- a hora que Georgiana tanto temia. Contudo, como estivera
enganada! Seria, de facto, para recear? A seguir a Mary, foi
nela que se concentraram as atenções de amigos e parentes.
Estranhamente, Georgiana recordou o seu treino prévio. O
ultra-modernismo não tinha ali cabimento. Tudo era simples,
comezinho, sincero. Havia franqueza; não era uma reunião de
sociedade. Era o casamento do chefe do grupo. E Georgiana
sentiu uma coisa com que nem sequer sonhara - que era contada
como mais um membro da família. Se tinha sido caprichosa,
disparatada, arisca e irreverente, era como se nunca o tivesse
sido. Dera a sua mão a um Thurman, ao último dos Thurman. A
vida era uma coisa forte, preciosa, esplêndida, no meio
daquela gente. A juventude era apenas a preparação. O
casamento o princípio. Em breve intervalo, Georgiana tornou-se
pensativa, estranhamente arrependida.
Tinham arredado as mesas do enorme vestíbulo e o velho Henry
puxou da rabeca.
Começaram, então, a dançar um "square dance" (1) em que
tomavam parte novos e Velhos, com imensas trocas de par. Nunca
na sua vida Georgiana se sentira tão puxada, arrastada, num
autêntico virote. Iniciara a dança fresca e excitada, na

euforia da ocasião. Por fim, estava esgotada pela vitalidade e
calor daquele povo primitivo. Por acaso, Cal não se encontrara
com ela uma vez.
- Agora, descansa e arrefece um pouco - disse-lhe ele. -
Temos muito que andar e devemos partir cedo.
Georgiana sentiu-se aliviada por deixar a alegre reunião e
se retirar para o quarto da irmã, para mudar de trajo.


*(1) - Dança muito em voga ainda hoje, na América, em que
tomam parte muitos pares cujas evoluções são sincronizadas
normalmente por um dos músicos. A letra, "dansa em quadrado"
por o conjunto tomar quase sempre essa forma. (N. do T.).


284


Aliviada, sim, mas por um estranho motivo. As palavras de
Cal haviam quebrado o feitiço. Tinha-se esquecido dele e dela
própria, e da odiosa realidade. Ficara perturbada ao reparar
que a ideia de partirem desapontara todos os presentes. Assim,
Georgiana ficara sobriamente satisfeita por partir, ao
verificar que estava a divertir-se. Aquele facto
extraordinário merecia ser investigado.
Ela e Cal saíram pela parte detrás da casa, como se fossem
eles os noivos. A lua cheia brilhava no firmamento pálido. As
colinas eram negras e solitárias, e uma brisa cortante soprava
das alturas.
Georgiana estava tão abafada e recoberta com a camisola,
casaco, botas, lenços e mantas, que teve de ser colocada sobre
o seu cavalo. Uma vez na sela, contudo, ficou bem e não pôde
reprimir o seu regozijo.
- Temos muito que andar até chegar à encosta - disse Cal,
montando, por seu turno. - Vem, junto de mim, e grita se
alguma coisa não correr bem.
E meteu-se a caminho, a trote rápido. O animal de Georgiana
não precisava de ser acicatado. Cal em breve galopava e a
jovem deu consigo a percorrer a sinuosa estrada banhada pelo
luar, com a aragem agreste a fustigar-lhe o rosto. Era
agradável mas tão fria que tinha de respirar pelo nariz. A
floresta escura passava por eles, de ambos os lados. De vez em
quando, Cal olhava para trás, para ver se tudo ia bem.
Ela lembrou-se, então-, de que aquele mês de martírio tinha
terminado, com o casamento da irmã. Agora, podia abandonar a
casa de Cal Thurman. Nem ela nem os seus vexames, o seu
carácter turbulento, os seus problemas e responsabilidades
poriam mais em perigo o futuro de Mary. Enoch já não podia
exigir condições; tinha casado com ela e, na opinião de
Georgiana, um pioneiro, embora da melhor cepa, como Enoch era,


285


não podia aspirar a maior fortuna do que casar com uma mulher
como Mary Stockwell.
Georgiana sentiu que tinha de encarar agora o seu problema.

Não tinha motivo para ficar mais tempo com Cal. Como era fácil
enumerar aqueles factos! Mas, uma infinidade de considerações,
como inimigos emboscados no seu trilho, fizeram-na meditar. E
a primeira foi uma teimosia, uma incompreensível hesitação.
"Espera", murmurava ela. "Nada de pressas. Não penses nisso
por enquanto". As restantes chegaram após esta traiçoeira
fraqueza. Quando deveria partir? Como e para onde? Aonde iria
arranjar o dinheiro necessário? A quem podia recorrer?
Ser-lhe-ia possível entrar em explicações com alguém? Que
poderia suceder-lhe? E, por último, uma dúvida inquietante,
humilhante: porquê, de facto, partir?
Naquele último mês, trabalhara mais que em todos os anos da
sua vida. Trabalhara, quando desejaria fraquejar e tombar!
Devido a esse labor e ao sofrimento consequente, ganhara
saúde, e qualquer coisa que não podia precisar, um dom
indefinível.
Ao chegarem, Cal vacilou em ajudá-la a desmontar.
Ergueu a cabeça para observar. Cal lá ia à frente, absorto
nos seus pensamentos. Sentiu pena dele. Olhou para ela. A aba
larga do seu chapéu texano ocultava-lhe o rosto.
- Queria perguntar-te... se estás arrependida de teres ido.
- Não. Estou contente, Cal, - respondeu ela,
instantâneamente, como que querendo convencê-lo, de vez. -
Porquê? - acrescentou ele.
- Por duas razões. Agora, que sei o que é, não podia perder
ver a felicidade de Mary... por nenhum receio do mundo, real
ou fantasiado.


286


- Sim - disse ele, como que compreendendo.
- A outra razão é que eu estava enganada - prosseguiu ela. -
O que quer que fosse, que eu odiava... existia apenas em mim.
Esquecia-me. Passei um dia esplêndido. E vi que todos eram
bondosos e amáveis.
- Oh, isso é bom - explodiu ele. - Pois, eu tive um dia
desgraçado. - Tirou o chapéu, para que o vento frio lhe
mitigasse o calor que sentia na testa. Então, à claridade do
luar, o seu rosto surgiu, pálido e sombrio. - Foi pior para
mim do que eu esperava. A minha família, todas as senhoras de
idade, os garotos... até Tim Matthews, a virem ter comigo, e
elogiarem-te... a dizerem que pediam imensa desculpa...
arrependendo-se do que tinham dito de ti...
Que tinhas sentido a falta de uma mãe... Agora, tudo estava
bem e eu tinha sido feliz por ter conseguido uma mulherzinha
adorável... e... muito contentes por eu estar satisfeito...
Meu Deus!
- Deve ter sido um inferno - replicou ela, com simpatia. -
Lamento que tenhas tido de suportar tudo isso por minha causa.
- Na realidade, sinto-me satisfeito por ter ido -
apressou-se ele em responder. -, Se fosse esta a única vez que
tivesse de os ouvir. Mas, o que me atormenta é pensar na
próxima vez, quando... quando...
A voz quebrou-se-lhe. Georgiana compreendeu que ele se
referia a quando ela contasse a verdade do seu casamento,
entregando-o à troça e ao ridículo.

- Cal, eu fico, se isso significa tanto para ti... e também
por Mary - murmurou, vencendo a sua resistência. - Ficarei
mais algum tempo, por ti e por ela... se não esperares
demasiado de mim.
- Georgie, querida, - exclamou ele, com um soluço na voz -
suplico-te... que fiques... sejam quais forem as condições.
Não te pedirei nada ... nada, juro-te.
- Muito bem - disse Georgiana, desmontando do seu cavalo.


287


Como se sentia estonteada e oprimida, de repente! Queria
correr, e mal podia andar.
- Boa noite.
- Era melhor ires à cozinha para te aqueceres - disse Cal,
atrás dela.
Mas, ela atravessou a casa e foi para o seu quarto. Não
sentia o frio. A escuridão do aposento era-lhe agradável.
Livrara-se daquela desapiedada, brilhante, deslumbrante lua!
Não acendeu a luz. Atirou com as luvas, o capuz, o lenço e
casaco e curvou-se para desapertar as botas, com as mãos
trémulas. Em breve estava na cama, enfiando-se sob os
cobertores, soluçando e escaldando.
Não fora preciso fugir ainda. Não necessitara de encarar o
ameaçador do amanhã ou dos próximos dias, por enquanto.


288

Capítulo XVI


Primavera! O Inverno passara, com o transitório
Fevereiro, e a linha de neve desaparecera de Rim, e os perus
selvagens gorgorejavam pelas ladeiras. O sol aquecia o
espaço. O solo Vermelho, de Rock Spring Mesa, começara já a
secar. Quase metade do terreno do planalto fora limpo de
troncos e rochas e estava pronto para a sementeira da
Primavera. A outra metade ia a caminho do mesmo, graças aos
porfiados esforços de Cal.
Georgiana decidira ficar mais tempo. Não se afastara do lar.
Mary visitara-os uma vez, após o seu regresso de Phoenix, com
Enoch. O quarto de Georgiana fora acrescentado com uma pilha
de revistas e uma prateleira com livros. Ela trabalhava quase
tanto como nas primeiras semanas da sua estadia, embora não
tão duramente. Passava mais tempo, agora, no exterior, ao ar
livre.
Tudo se transformara, a sua doença, o seu estado físico, o
Seu espírito, o seu modo de encarar a vida, embora nada
parecesse diferente, pois Cal cumprira a sua promessa. Nada
lhe Pedira. Deixava-a sozinha, excepto durante o tempo em que
algum trabalho de conjunto ou as refeições a isso obrigavam.
Georgiana, na sua solidão, na crescente ansiedade por qualquer
coisa que não sabia o que era, pensava que poderia

perdoar-lhe. se ele voltasse um pouco ao que era dantes. Mas,
ele parecia, agora, outra pessoa, ,não já um rapaz, mas um
homem, bondoso, sério, preocupado, mas não desagradável, grato
pela presença e ajuda de Georgiana, embora nunca ultrapassasse


291


por palavras ou por acções, o que ele julgava o
seu lugar. Georgiana ressentia-se com a sua humildade.
Num belo dia de Março, uma porção de notícias espantosas,
perturbadoras e excitantes chegaram, sob a forma de uma carta
de Mary, levada por um cavalheiro. Uma tia das duas tinha
falecido e no testamento deixara a cada uma alguns milhares de
dólares. Mary, pela carta da mãe, não sabia ao certo, mas em
breve receberiam a herança. Era estranha a reacção de
Georgiana ao receber aquela notícia! Não sentiu qualquer
alegria especial, embora estivesse satisfeita por Mary. Por
ela, limitou-se a pensar que já podia partir. Havia qualquer
coisa inevitável acerca disso. Ela não mencionou a notícia da
herança a Cal.
Na manhã seguinte, antes de ela acordar, Cal foi a Ryson.
Georgiana tinha o dia todo por conta dela, para pensar nas
ilimitadas possibilidades que se lhe deparavam. A cada passo,
parecia movida por uma decisão, para logo, optar por outra.
Cal regressou já de noite e, no momento em que Georgiana viu
o seu rosto revelador, compreendeu que tinha sucedido qualquer
coisa invulgar. Ele evitou o olhar dela e, à pergunta tímida
que ela lhe fez, respondeu, lacónico:
- Nada de extraordinário.
Georgiana acalmou-se, mas continuou com curiosidade. Na
manhã imediata, após o pequeno-almoço, Cal chamou-a.
- Queria dizer-te uma coisa - disse ele, quando ela apareceu
à porta.
- Sim?
A voz dele, fria, incisiva e um pouco áspera, despertava a
sua curiosidade mais do que as próprias palavras. Então, notou
na fixidez do olhar dele.
- Georgie, lembras-te do dia em que te obriguei a casar
comigo?


292


- Claro que sim - respondeu ela, surpreendida.
- Pensaste que eu te tinha batido,... e feito perder os
sentidos?
- Sim. Não é verdade?
Ele mirou-a de um modo que a fez sentir-se infinitamente
pequena.
- Não! - declarou ele. - Fui bruto, mas não te bati. O meu
cavalo passou sob uma árvore e um ramo atingiu-te na cabeça.
Foi tudo.
- Porque é que me deixaste todo este tempo a pensar que
tinhas sido tu?
- A princípio servia o meu propósito de te amedrontar -

admitiu ele. - Mas, depois de casarmos, custou-me que tu
julgasses uma coisa dessas.
- Sim - replicou Georgiana. E porque é que mo dizes agora?
- Porque vou a Bar XX - respondeu ele, friamente, olhando-a
intensamente.
No seu tom de voz, havia um misto de audácia e de desespero.
Georgiana sabia o suficiente a respeito dos Thurman para
compreender o significado perigoso daquela súbita decisão.
- Bar XX? - balbuciou.
- Sim, e se por acaso eu não voltar até ao cair da noite,
montas a cavalo e vai a casa do tio Gard.
- Estarás... lá? - Perguntou ela, começando a tremer,
alarmada.
- Não, nem lá nem aqui - retorquiu ele, sombrio. - Mas devo
vir cedo. Queria apenas dizer-te o que devias fazer em caso
de...
- Cal! - gritou ela, angustiada.
- Até logo, Georgiana May, - despediu-se ele, com toda a sua
primitiva amargura e certo despeito.
O seu derradeiro olhar pareceu-lhe carregado de censura.


293


Depois, esporeou a montada e, como uma seta, atravessou o
terreiro.
- Cal! - gritou ela, novamente.
Mas, o rapaz não prestou atenção e em breve se perdeu na
espessura do bosque.
- Bar XX! - exclamou Georgiana, apavorada. - É o rancho de
Saunders. Bloom é o capataz. Hatfield está lá.
As primeiras horas daquele dia constituíram severa punição
para a rapariga. Tornou-se presa de um mórbido receio, quase
terror. Porém, gradualmente, o seu raciocínio sobrepôs-se ao
seu sentido intuitivo que adivinhava catástrofe. Mesmo que Cal
tivesse ido ao rancho Bar XX para se encontrar com Bid
Hatfield, isso não devia representar mais que uma luta entre
os dois.
Cerca de uma hora antes do pôr do sol, quando Georgiana
estava na cozinha a preparar a refeição da noite, ouviu o
ruído de cascos no exterior. Sobressaltou-se. Cal estava de
volta. Uma invulgar sensação de prazer percorreu o seu corpo.
- Olá! - chamou uma voz forte que, certamente, não era a de
Cal.
Georgiana correu a abrir a porta. Viu um cavaleiro de alta
estatura,, Wess Thurman, e dois cavalos; sobre o mais atrasado
pendia a figura inerte de um homem, com a cabeça balouçante da
sela.
- Quem é que vem ali? - exclamou Georgiana, com voz
penetrante.
- Bom, creio que é o que resta de Cal - Respondeu wess.
A sua cara bronzeada estava brilhante, reluzente.
- Oh, céus! Eu sabia que ia acontecer qualquer coisa
terrível! - disse Georgiana, correndo para junto de Wess, que
Tentava desatar Cal da sela.
- Oh, Wess, diga-me que ele não está ferido!... Sangue!


294


Todo coberto de sangue!
Oh, que desgraça!
- Ferido? - resmungou Wess. - Co'a breca, está ferido e bem,
mas não morreu. Deixe-me passar.
Wess passou os braços em torno da cintura de Cal e puxou-o
da sela. Depois, mudando de posição, ergueu-o do solo e
levou-o para a cozinha. Georgiana seguiu-o, con torcendo as
mãos. Wess colocou o corpo inanimado do rapaz no sofá.
- Dê-me água, Georgie, que eu trato dele, - disse Wess.
Está apenas desmaiado.
Georgiana apressou-se a ir buscar água e toalhas. O seu
terror imenso começava a desvanecer-se. Se ele só tivesse
perdido os sentidos!
- Meu Deus! Que triste aspecto para um Thurman! - exclamou
Wess, com compaixão... - Oiça, Georgie, não olhe para ele.
- Olho, sim! - retorquiu Georgiana, correndo para Wess com a
bacia da água.
E olhou para Cal... O nariz e a boca sangravam. O cabelo
estava empastado em sangue e a camisa feita em tiras e
completamente negra.
A jovem observou tudo isto e, horrorizada e trémula, caiu
de joelhos junto ao sofá.
- Oh, está terrivelmente magoado - lamentou-se.
- Que diabo! Não lhe disse que não olhasse para ele? -
resingou Wess, espalhando água pelo rosto de Cal. - Se vai
pôr-se aos gritos, é melhor sair daqui.
- Diga-me, por amor de Deus, o que aconteceu? - implorou
ela.
- Cal encontrou uma rês demasiado brava - respondeu Wess,
banhando a cara de Cal.
- Não me minta, Wess Thurman - disse a jovem.


295

- E montava um cavalo meio selvagem - prosseguiu Wess,
imperturbável.
- Oh, como é que pode estar com brincadeiras com... ele,
ali, tão maltratado?
- E caiu pelas rochas abaixo e rolou mais de uma milha -
acrescentou Wess.
Georgiana conseguiu conter-se, e deixar de fazer mais
perguntas inúteis. Além disso,, Cal começava a dar mostras de
voltar a si. O peito arfava-lhe. Estremeceu, moveu as mãos e,
então,, Georgiana reparou que elas estavam cortadas,
arranhadas e em carne viva em muitos sítios.
- Vamos, Cal, acorda - disse Wess.
- Trouxeste-me... para casa? - murmurou Cal, fracamente.
- Sim, e bom trabalho me custou.
- Georgie? - perguntou Cal, ansioso.
- Está aqui e a portar-se muito bem, para a ocasião -
respondeu Wess, sorrindo e piscando um olho à rapariga.
- Cal... estou aqui... junto de ti - disse ela, num

susSurro,. Gostaria de lhe pegar nas mãos, mas receava
magoá-lo por causa dos ferimentos. - Não me vês?
- Sim, já vejo, mas muito mal - disse ele.
Um dos seus olhos estava tão inchado que não abria e o outro
quase na mesma.
Wess entregou a toalha suja a Georgiana e disse:
- Parece-me que não o posso limpar melhor. Agora, Georgie,
vou levantá-lo e você tira-lhe essa imunda camisa. Rasgue-a...
já está desfeita, em qualquer dos casos... Ora aí está! - Em
seguida, Wess começou a descalçar as botas de Cal e, depois,
as calças que, embora não tão rasgadas como a camisa, estavam
pelo menos, tão sujas. - Bom., podes dormir com a roupa
interior, meu rapaz. Vou cobrir-te com este cobertor...


296


e creio que não posso fazer mais nada.
- WesS, as mãos é que me doem mais - queixou-se Cal.
Georgiana foi buscar um pano de linho fino ao seu
guarda-roupa e, com o auxílio de Wess, começou a ligar-lhe as
mãos praticamente esfaceladas.
- Georgie - disse Cal -, eu não lhe bati.
- Não? - murmurou Georgiana.
- Era demasiado forte. e robusto, para mim.
- NãO - interrompeu Wess, em ar de censura -, estás a fazer
de mim um mentiroso. Eu tinha dito a Georgie que tinhas caído
pelas rochas.
- Eu não o acreditei - retorquiu Georgiana.
- Wess, se eu o tivesse desancado, nunca lhe contaria a ela
- disse Cal.
Para Georgiana, aquela afirmação parecia ter um mundo de
significados. Afastados os primeiros receios, ia recuperando a
sua calma.
- Quem me dera que o tivesses feito! - respondeu Wess, com
súbita ferocidade que levou o terror ao coração da rapariga.
Era o sangue dos Thurman a manifestar-se. Se Cal tivesse
batido o seu adversário, talvez a família Thurman deixasse
ficar as coisas nesse pé. Mas, assim, tinham piorado ainda
mais.
Cal virou o seu rosto desfigurado para a parede e, jazeu
imóvel. Wess insistiu em passar lá a noite. Ajudou Georgiana a
fazer o jantar e, depois, mas só quando ele foi buscar lenha
para o fogão de sala é que a rapariga teve um momento a sós
com ele.
- Diga-me agora o que sucedeu - pediu ela, com energia.


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Wess pôs a lenha no chão e, vagarosamente, juntou as brasas
incandescentes e fez por cima uma pequena pilha de
tronquinhos.
- Devia mas era ir para a cama.
- Wess, você é um Thurman e eu estimo-o, - respondeu
Georgiana, deliberadamente. - Acho que deve ser um grande

amigo nas horas de necessidade, como agora. Mas, não empregue
os seus modos indiferentes e preguiçosos comigo. Para mim, não
servem.
- Modos preguiçosos! - exclamou ele. - Essa agora!
- Diga-me, vá - objectou ela, impaciente.
- Bem, Georgie, não sei grande coisa - replicou Wess. - Ia
eu a cavalo quando vi um cavaleiro que trazia um pela rédea e
montado noutro, a descer o caminho que vem de Mescal Ridge.
Emcontrámo-nos e vi que o outro era Tom Hall, do rancho Bar
XX. Trazia Cal sobre a sela do outro animal. Ele disse: "Wess,
ainda bem que te encontro. Cal foi desafiar Bid ao rancho e
tiveram uma luta infernal. Eu não assisti, mas os rapazes
contaram-me. Escavacaram o dormitório, onde Cal foi dar com
ele, e espatifaram tudo, em volta. Os rapazes dizem que Cal
aguentou até melhor que Bid enquanto a luta foi em pé, cara a
cara. Mas, Bid foi para o corpo-a-corpo e rolaram por terra.
Quase que matava Cal. O nosso patrão, Saunders, calhou a
aparecer e parou a luta. Estava muito irritado. Cal perdera os
sentidos e não podia, por isso mesmo, levantar-se. Bom, alguém
tinha de o levar para casa e fui eu o único que se ofereceu. E
não me agradava nada a ideia de ir levá-lo a Enoch ou ao pai.
Nada! E aqui estou. Cal está muito ferido e alegro-me por to
entregar!"
Wess falara pausadamente, no propósito de não esquecer
nenhum pormenor, e o relato como que o fazia reviver a cena.
- Bom -, continuou -, agradeci a Tom por ter sido tão bom e
tomei conta de Cal. Quando chegámos a Tonto Creeck,


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tentei endireitá-lo na sela, pensando que ele podia cavalgar.
Mas não,. Caiu do cavalo e perdeu outra vez os sentidos.
Assim, pu-lo novamente como um fardo e apressei-me em chegar a
casa. Não encontrámos mais ninguém até aqui.
- Foi um belo gesto da sua parte... tê-lo trazido para aqui,
onde ninguém pode vê-lo... Wess, ele está muito mal?
- Bastante em baixo - respondeu o rapaz, meneando a cabeça.
- Claro que não há perigo. Não gostei de o ver cuspir sangue,
mas talvez seja de algum lábio cortado ou dente partido.
- Precisará de um médico?
- Bom, -decidimos isso amanhã. Para já, não vejo motivo para
isso. E palpita-me que Cal não gostará de ver o médico. A mãe
vem cá, se for preciso, e ela é tão boa como o médico.
- Wess, agora, diga-me porque é que Cal foi à cata de Bid
Hatfield - rogou ela.
- Ora! Acho que queria apenas brigar - disse Wess, evasivo,
inclinando-se para soprar as brasas do fogão.
- Não tente enganar-me, nem me minta - retorquiu ela.
- Os tempos mudaram desde que eu e Cal éramos uns garotos.
Mas, nós, Thurman, não... Cal tem de correr com Hatfield de
Tonto ou... matá-lo.
- Oh, meu Deus! Que está a dizer, Wess? - exclamou
Georgiana, agora convencida do que receava.
- Detesto dizer-lhe, Georgie, mas é o que se passa.
- Porquê? Porquê? - murmurou Georgiana, acercando-se de
Wess.

- Porque Cal ouviu, por fim, o que todos nós sabíamos. Foi o
último a saber.
- Quê?
- Bid Hatfield falou de si.


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- Wess, foi... muito mal? - Perguntou ela, acercando-se,
subitamente, de Wess.
- Não podia ser pior - replicou ele, muito embaraçado.
Oiça, Georgie... Não faça essa cara de zangada. Foi você que
me obrigou a falar... E, por amor de Deus, não julgue que
algum dos Thurman faz coro com o que Hatfield diz. E Cal pensa
como todos nós e agiu de acordo com isso. Bom, falámos do
assunto entre nós e concluímos o seguinte: você era nova em
Tonto e muito diferente de nós. Gostou de Bid e não fez
segredo disso. De certo modo, também simpatizou com Tim
Matthews, Arizona e, evidentemente, Cal. Não sabia qual deles
queria e não tinha pressa. Bom, casou com Cal e tudo ficou
arrumado, E, se Bid não tem sido tão desprezível, nunca mais
se ouviria falar da sua atitude imprudente.
- Imprudente! - repetia Georgiana, com voz pungente. -
Começo agora a perceber. Oh, se eu tivesse sabido!... Wess,
agradeço-lhe a sua confiança em mim. É justificada, embora...
De repente, a porta escancarou-se e Cal apareceu. Vestira as
calças e pusera um casaco pelos ombros. Não se compreendia
bem, mas, o facto, era que devia ver o suficiente para poder
andar.
- Wess, de que é que vocês estão a falar há tanto tempo? -
perguntou, roucamente. - Eu ouvio-os.
- Oh, Cal, estava a contar a Georgie... Ela obrigou-me.
Georgiana afastou-se de Cal quando ele se acercou, mas foi
pela compaixão e horror que sentiu ao ver a sua cara sangrenta
e deformada.
- Cal, eu tinha de saber - apressou-se ela a dizer.
- Quê?
- Porque é que lutaste com Hatfield.
- Wess podia ter deixado isso por minha conta - declarou
Cal, com calor, e as suas mãos entrapadas,


300


tentaram enclavinhar-se.
- Bom, talvez. Mas, Georgie tem a sua maneira de ser, como
tu deves saber. Não quero meter-me nos vossos assuntos e peço,
desculpa se te ofendi.
Cal, atabalhoadamente, encontrou as costas de uma enorme
cadeira de braços, de fabrico caseiro, e encostou-se a ela,
para se amparar. Respirava a custo, quase arfando, e
apareceu-lhe sangue nos lábios amachucados. Georgiana ficou
tão horrorizada com as consequências da sua vaidade e egoísmo
que sentiu o coração quase parar-lhe. Tinha de olhar para ele.
Era parte da sua punição. Qualquer coisa de tremendo começava
a pairar sobre a sua consciência. Era devido à defesa do bom

nome da mulher que ele apresentava aquele aspecto e tinha o
espírito atrozmente torturado. Era por causa dela... que nada
lhe dera!
- Cal, não estejas zangado com Wess - implorou. Eu tinha de
saber a verdade.
- Está bem. Que é que Wess te contou? - indagou Cal.
- Tudo quanto sabia... Como toda a gente, ouviu a difamação
do meu carácter antes de tu o saberes. Hatfield mentiu! -
disse ela, em tom apaixonado.
- Georgie, por isso é que houve sarilho - respondeu Cal, de
um modo que a poderia dignificar se não fosse a sua voz e o
seu aspecto,. - Mentiu desde o princípio. Gabou-se de ter
andado "misturado" contigo e, então, pude aquilatar da mentira
que...
- Mas,, Cal, não foi mentira - interrompeu ela,
impetuosamente. - A verdade é que andou... tivemos certas
intimidades, como eu lhe disse que era uso inofensivo no Este.
Dávamos as mãos e beijávamo-nos. Aconteceu três vezes... Mas,
foi tudo quanto houve, absolutamente mais nada. Isso
significava tão pouco para mim que até me esqueci, até agora.
Georgiana não pôde vislumbrar no rosto de Cal qual teria
sido a sua reacção perante aquela revelação, mas o baixar da
cabeça, até, finalmente, se encostar à cadeira, pareceu-lhe
prova de amarga humilhação. Ela fitou-o, consternada e com dor
crescente. Um choque sacudiu-lhe o corpo. Nunca, até àquele
momento, ela imaginara as desastrosas consequências dos seus
descuidados namoricos. Sentiu a sua integridade, até mesmo a
sua reputação, abaladas pelo abatimento de Cal.
- Cal, não sejas louco! - exclamou ela, em tom ardente.
Desta vez, as mãos dela pousaram nos ombros dele e
sacudiram-no suavemente. - Compreendo um pouco melhor, mas tu
não... Deixei que rapazes sem conta me beijassem. E tu, aqui,
em Tonto... primeiro tu, depois Hatfield, Tim Matthews... e
Arizona, sim, até o horrível Arizona... e, por fim, novamente
Hatfield. Mas, isso, não significava nada. Que é um beijo?
Pelo menos, na terra de onde vim, dar um beijo não é maior
crime que comer chocolate. Enfim, foi o que eu fiz. Deixei-os
todos beijarem-me. Estou arrependida, mas não me envergonho.
Posso ter sido parva, Leviana... posso ter estado errada, mas
não fui "má"... Vê bem, Cal... não deves perder o respeito por
mim.
Cal ergueu o seu rosto amarfanhado e tocou com ele numa das
mãos de Georgiana, queimando-a com o seu calor.
- Georgie, isso fere-me acerbamente, mas alegro-me que
tenhas tido a coragem de mo dizer - disse ele, com voz
abafada.
- Tu... acreditas-me? - perguntou ela, trémula.
- Sim. E creio que te compreendo melhor. É pena que não me
tivesses dito... há mais tempo.
- Há mais tempo? - argumentou ela. - Queres dizer antes do
casamento? Ter-te-ia isso impedido de me tomares por esposa?


302


- Nada teria obstado a que casasse contigo... nem mesmo que
as palavras de Hatfield fossem verdadeiras.

- Cal! - gritou ela, contorcendo-se...
- Não me arrependo de nada. Conforme disse, só lamento que
não me tenhas informado senão demasiado tarde.
Desta vez, ela não insistiu em querer saber o que ele queria
dizer. Ela já sabia. E, repentinamente, emudeceu. Tinha
tornado Cal Thurman Imensamente infeliz. Como estava
arrependida! Mas, já nada havia a fazer.
- Cal, - interveio Wess, retirando-se da janela para onde se
afastara, discretamente -, creio que não têm mais nada a
discutir, por agora. Eu estava aqui e tenho ouvidos. Agora,
vou pôr-te outra vez na cama.
Encaminhou o alquebrado rapaz para a porta. Abriu-a e
voltou-se para a rapariga.
- Boa noite, Georgie. Eu cuido de Cal... E fique ciente de
que subiu muito na minha consideração.
Georgiana ficou só, vítima do mais profundo desespero
espiritual e complexidade de emoções que jamais sentira.
Esteve longo tempo sentada na pele de veado, em frente da
lareira, fascinada pelo clarão rubro, sem ver nada.
Por fim, atenuada a tensão, teve uma ideia coerente. "Tenho
de evitar que Cal mate Bid Hatfield, custe o que custar".
Causara a ruína moral de um esplêndido rapaz. Ao verificar
na qualidade de pessoa que Cal Thurman era, uma estranha
emoção avassalou o coração de Georgiana. Mas, não meditou
muito tempo naquilo,. Estava preocupada com uma nova questão -
como é que seria vista aos olhos de Tonto.
Aos seus próprios olhos, tornara-se culpada de coisas que
nunca teria confessado a Cal ou a qualquer outra pessoa. A sua
inteligência, prática e veloz, atribuía as culpas a alguém


303


que não a ela. Mas isso não era consolação nem servia de ajuda
naquela contingência. Ela tinha sido mais do que leviana,
egoísta, cruel e imprudente; fora também fraca, cega e
perversa. A sua vida em Tonto, as suas relações, podiam
aplicar-se a qualquer comunidade. E a espantosa realidade
surgiu-lhe brutalmente, Apesar de todos os argumentos que
levara com ela para o Oeste, que tanto haviam afligido Mary,
não queria que uma filha sua pensasse e agisse como ela o
tinha feito. Era essa ideia que a fazia curvar a cabeça. Vida
era vida, no Este ou no Oeste. O que podia ser feito
impunemente no Este adulterado não tinha lugar de modo nenhum
ali naquela terra. As pessoas não compreendiam. E, através da
simplicidade primitiva daqueles Thurman, era fácil verificar
como era errada a chamada liberdade do Este. Havia coisas que
as Mulheres não ousavam fazer, a menos que não lhes
interessasse o progresso do mundo.
Não podia continuar a ser uma traidora. Não podia abandonar
Tonto. Estava acorrentada ali pela sua consciência, pelo
desejo de reparação do mal causado, por qualquer coisa que fez
o seu rosto tornar-se rubro.

Capítulo XVII


Através da dor dos dias seguintes, de olhar por Cal
durante a noite, ouvindo as suas palavras sem nexo, a sonhar;
através das horas em que ele jazia na cama, voltado para a
parede e dos momentos de fraqueza em que chorava a sua
desgraça; através dos tratamentos dos seus ferimentos, de ler
para ele e falar-lhe para o fazer esquecer; e, por último,
através do contacto contínuo com ele durante aquele tempo,
Georgiana experimentou o desenvolvimento e transformação do
verdadeiro amor.
Isto causava-lhe uma dor lancinante, embora,
simultâneamente, a visão de uma futura felicidade. Tornara-se
uma mulher, aliviara-lhe o seu pesado fardo e decidira o seu
futuro.
Mas quando, após uma semana, Cal já podia mexer-se o
suficiente, para sair para o exterior, quando as hediondas
cicatrizes tinham desaparecido do seu rosto, de modo a já não
se sentir envergonhado de que a família o visse, e, mais
tarde, quando voltou a tornar-se sombrio e a evitá-la,
Georgiana compreendeu que tinha de agir depressa para prevenir
um segundo encontro dele com Hatfield.
O seu plano estava urdido havia muito e só esperava
execução. Escreveu um bilhete a Tuck Merry, pedindo-lhe que se
encontrasse com ela na manhã seguinte, junto à confluência dos
caminhos para Tonto e Mescal Ridge, e, metendo a nota numa
carta para a irmã, foi a casa de Gard Thurman e entregou-a a
um dos cavaleiros que iam a Green Valley naquela noite.


307


No dia imediato, Cal voltou a mostrar algum interesse no seu
lar. Wess tinha voltado vários dias para dar de comer aos
animais e enviara o irmão mais novo, de outras vezes, quando
ele não podia ir. Naquele dia, Cal assumiu as suas funções
novamente, embora com certa dificuldade, devido ao estado das
suas mãos.
Georgiana vestiu o fato de montar e calçou as botas, e, na
concentração do seu propósito, não avaliou a importância de se
tornar tão atraente quanto possível. Depois, foi à cavalariça
e, selando o seu cavalo, que tivera o cuidado de guardar,
afastou-se a trote, sem ver Cal e sem saber se ele a vira ou
não. Não lhe importava. Agora, nada a deteria.
Tuck Merry estava à espera dela e o seu rosto rude exprimia
considerável perturbação e muitíssimo prazer. Georgiana pensou
que nunca antes tinha reparado bem nele. Que enorme, tosco e
cómico indivíduo ele era! O seu rosto cadavérico, como um
presunto magro, aparecia adornado com imensas
particularidades, das quais a mais proeminente era o seu
desconforme nariz. Mas, o seu sorriso, a luz dos seus grandes
olhos, apagavam os seus defeitos, de natureza física. Tuck
Merry aparecia-lhe como o amigo fiel e solícito, de que ela
precisava.
- Georgie, foi uma surpresa para mim - disse ele, à guisa de
cumprimento.
- Olá, Tuck! Não se sente vaidoso por uma rapariga em apuros
lhe pedir auxílio? - perguntou Georgiana, estendendo-lhe a

mão.
- Vaidoso, e orgulhoso - replicou ele. - Mas não perca tempo
a querer puxar-me para o seu partido, porque já estou a seu
favor. Explique-se. Só sei que houve conflito com Cal e isso
faz-me doente.
- Vocês, em Green Valley, souberam da rixa entre Cal e
Hatfield?
- já tencionava ver Cal hoje mesmo.
Então, Georgiana, em linguagem apropriada, contou-lhe os
pormenores da sova que Hatfield pregara a Cal. Observava,
curiosa e interessada, a reacção de Tuck ao ouvir a narrativa.
Com grande espanto, viu que a primeira expresSão dele foi de
prazer. Mas, pouco tempo durou, para ceder o passo a uma
dureza de aço impressa nos seus músculos.
- Então, que pretende de mim? - perguntou ele. - Nós ouvimos
qualquer coisa, porque Tom Hall nos contou... Cal estava a
bater-se bem, até que o outro se embrulhou com ele e rolaram
pelo chão. - Quero que me leve! ao rancho Bar XX.
- Por amor de Deus, Georgie, para quê?
- Quero falar com Bid Hatfield cara a cara - retorquiu
Georgiana.
Então, em palavras rápidas e fluentes, progressivamente mais
calorosas, cOntou a Tuck como Hatfield tinha caluniado a sua
reputação, o miserável mentiroso que ele era, que Cal tentaria
apanhá-lo para o matar e, por fim, que ela tinha de ver o
outro primeiro, envergonhá-lo, perante todos e fazê-lo
retratar-se da sua baixeza.
- Muito bem. Acho magnífica essa tirada! - redarguiu Tuck,
com olhar de compreensão, e, ao mesmo tempo, admirativo. -
Conte comigo, Vamos pregá-la boa ao "senhor" Hatfield...
Agora, Georgie, atravesse o ribeiro e depois desça. Eu
apanho-a antes de ter percorrido meia milha. Quero telefonar a
Henry a dizer-lhe que vou serrar madeira hoje, mas não na
serração.
Georgiana cumpriu as instruções, sentindo-se grata pela
espontânea e valiosa cooperação. O local do Bar XX era tão
pitoresco como o de Green Valley. O caminho conduzia à entrada
e esta contornava vastos campos, com troncos secos de sorgo, e
milho, para desembocar depois num estreito vale entre duas
colinas recobertas de verdura.


308 309


Ali estavam situados os currais construídos de madeiros e
vários edifícios baixos, também de tábuas. Um fumo azulado
subia em espiral da chaminé do maior. Um dos currais estava
cheio de cavalos, poeirentos e nervosos. Havia selas
espalhadas pelo terreno em redor. Os cavaleiros de Bar XX
deviam estar a almoçar.
- Está alguém à porta, Georgie, - disse Tuck. - Cá estamos.
Agora, é consigo. Não se enerve.
Georgiana soltou uma pequena gargalhada desafiante que era
prova bem eloquente do seu equilíbrio nervoso. Se Cal se
sujeitara a ser esmurrado para a defender a ela, que não faria
ela em troca para o salvar de ser um assassino?
Várias caras surgiram junto à porta da casa. Depois, quando

Tuck e a jovem chegaram à distância de fala, um homem alto
aproximou-se, de cabeça descoberta. Tinha o cabelo ralo e um
bigode descaído, um rosto enrugado, magro e acobreado, no todo
um conjunto que denotava uma robustez de onde sobressaíam umas
pupilas de um azul-claro penetrante.
- Saunders, o patrão - murmurou Tuck à rapariga.
- Olá! Creio que já o vi algures - Disse o homem a Tuck.
Depois, reparando que o companheiro dele era uma jovem,
inclinou-se, com a deferência respeitosa que os homens de
Tonto sempre mostravam pelo sexo oposto. - Bom dia, menina. Em
que posso ser-lhes prestável?
- O senhor é que é o senhor Saunders? - perguntou ela.
- Sou, sim, às suas ordens - replicou ele, com um agradável
sorriso, estudando a expressão de Georgiana.
Era evidente que não a reconhecia.
- Sou a mulher de Cal Thurman - disse Georgiana, com um
súbito baque no coração e sentindo o sangue afluir-lhe ao
rosto. - Vim aqui para falar com um dos seus cavaleiros,


310


Bid Hatfield. Deixa-me vê-lo?
- Certamente, - redarguiu Saunders.
- Então, antes de o chamar, quero informá-lo do motivo que
aqui me trouxe - prosseguiu Georgiana, rapidamente, certa do
interesse e da simpatia do rancheiro. - Mary Stockwell, a
professora de Green Valley, é minha irmã. Deixou-me vir para
cá para me restabelecer da minha fraca saúde. Eu era uma
estouvada. Simpatizei com os rapazes e namorei com eles. Bid
Hatfield era um deles. Gostei dele, e deixei-o beijar-me...
várias vezes. Um dia, ele ofendeu-me; nunca o disse a ninguém.
Mas, quando voltei a estar com ele, disse-lhe que não queria
mais encontros. Depois disso,, casei com Cal Thurman.
ultimamente, soube que esse Hatfield andava a difamar-me. Cal
acabou por o saber também e brigaram. Agora, venho aqui para
dizer duas palavras a Hatfield.
- Bem, bem! - exclamou o rancheiro, confuso e chocado. -
Isso é uma acusação muito grave para um homem, aqui em Tonto.
- Por favor, deixe-me falar com ele - replicou a jovem.
- Bom, creio que sim e eu também falarei com ele.
Voltou-se, e, em largas passadas, encaminhou-se para a porta
de casa. Ia pensativo, preocupado. Então, chamou:
- Eh, Bid Hatfield, estão aqui à sua procura.
- Quem é que me quer ver? - ouviu-se uma voz arrastada.
- Para já, sou eu! - gritou Saunders, peremptório.
Venha cá imediatamente.
Em seguida, a figura corpulenta de Hatfield assomou à porta,
bamboleando-se um pouco, com o mesmo aspecto atrevido que
Georgiana lhe conhecera. Ao encará-la, a sua cara tornou-se
lívida e estacou.


311


- Hatfield - disse Saunders, secamente - está aqui a esposa

de Cal Thurman e tem uma acusação muito séria a fazer-lhe.
Várias pessoas transpuseram a soleira da porta e vieram para
o exterior. Por fim, já era perto de uma dúzia de cavaleiros
fora de casa, a observarem a cena.
Quando viu Hatfield e a súbita palidez das suas faces,
Georgiana teve de fazer um esforço para se conter. Era mais a
lembrança de Cal do que a ofensa feita a ela que a enfurecia.
Antes que ela falasse, Saunders e todos os cavaleiros foram
investigar o que se passava na estrada. Na curva do caminho,
levantava-se uma nuvem de poeira e, então, Georgiana ouviu
grande tropear. Por fim, surgiu uma porção de cavaleiros à
desfilada.
- Que diabo é isto? - exclamou Saunders. - Porque é que esta
gente traz tanta pressa?
- Patrão, é gente de Green Valley - disse um dos rapazes.
- Thurmans, hem? Bom, estejam todos percavidos.
Georgiana não percebeu bem o significado daquelas palavras,
até que reconheceu Enoch e depois Tim Matthews. Estava certa
deque outro era Arizona e outro Pan Handle Ames. A brusca
transformação da sua cólera em surpresa deixou-a a tremer.
Sentiu a mão enorme de Tuck a apertar-lhe a sua, para lhe dar
segurança. Como aqueles rapazes cavalgavam pela estrada! A
espuma branca saltava sobre a poeira. Numa massa escura e
compacta, aquela meia dúzia ou mais de cavalos aproximou-se da
casa. Foram refreados e, escarvando o solo, fizeram alto.
LogO, após os cavaleiros se terem apeado,, com ruidoso
tilintar de esporas, Georgiana viu que não se enganara e que
os restantes eram Boyd, Serge e Lock Thurm an. Formavam um
grupo, sombrio e ameaçador, do qual se destacou Enoch,


312


vagarosamente, os olhos cinzentos, a faiscar. æ cinta, levava
uma pistola.
- Olá, Saunders.
- Olá, Enoch.
- Alguém nos telefonou a dizer que ia haver festa rija aqui
- informou Enoch. - Como não queríamos perdê-la, cá viemos
alguns de nós.
- Bem vejo - replicou Saunders, secamente, indicando os
cavalos cobertos de espuma e estourados de cansaço.
Diabos me levem se não tenho gosto em ver-te, Enoch.
- Muito bem. Afinal, que se passa? - inquiriu Enoch,
incisivo percorrendo com os olhos Saunders e os seus homens e,
depois, Tuck e Georgiana.
Parece-me a mim que vai haver arraial - respondeu o
rancheiro. - A mulher de Cal está cá, como vês, e ela com
certeza quer falar por ela. Veio para fazer Hatfield provar as
suas basófias ou engoli-las.
Tuck Merry apertou com força a mão da jovem e murmurou-lhe
ao ouvido:
- É agora a altura.
Georgiana ergueu a mão, trémula e enluvada, e apontou para o
lívido cavaleiro.
- Agora, Bid Hatfield, diga-me na minha cara que eu não sou
uma mulher honesta - bradou ela, em voz ressoante e cheia de

desprezo. - Toda a gente pode dizer a Verdade. Demonstre-o, se
é verdade o que você disse. Se tem alguma coisa a dizer,
diga-a agora... na minha cara, em frente de todos estes
homens!
Manifestamente, a situação era terrível para Hatfield.
A surpresa de se ver tratado em público com tanto desdém
tolhia-lhe os movimentos.
- Oh, Georgie, isso são boatos que correm em Tonto.
Eu nunca dIsse nada de mau contra si.
- Mentiroso! - bradou Georgiana. - Toda a gente sabe que
você falou. E, se não é um miserável cobarde, diga a verdade.


313


Confesse que mentiu para me caluniar.
- Mas, Georgie, eu não disse o que... o que você ouviu
contar - respondeu ele, confundido.
- Muito bem. Já que não é homem suficiente para tomar as
responsabilidades, vamos de outra maneira. Você contou que eu
me deixei beijar, não é verdade?
- Talvez... é possível... quando estava bêbado, ou irritado
- assentiu ele, baixando a cabeça.
- Não é verdade que eu deixei de o fazer quando... você
tentou avançar demasiado... e não deixei eu de me encontrar
consigo? - perguntou a jovem, em tom imperioso, com ira
crescente.
- Sim... é verdade - replicou Hatfield, a custo, com o rosto
cor-de-cal.
Georgiana inspirou profundamente o ar.
- É tudo quanto precisava de o ouvir dizer, Bid Hatfield.
Mas, eu vou dizer mais - exclamou ela, com toda a ânsia
furiosa agora bem desperta nela. - Eu contei a verdade ao
senhor Saunders e não me envergonho de o fazer de novo seja a
quem for. Gostei de si. Deixei-o beijar-me... da mesma forma
que deixei Cal Tim e Arizona. Para mim, era tudo paródia, mas,
agora vejo que estava errada. Lamento ter sido tão parva.
Tinha de sofrer por isso... por ter beijado um homem que é do
género de se ir gabar das suas conquistas! É a coisa mais
indecente e ordinária que homem algum pode fazer. Aposto que
todos estes cavaleiros, os seus melhores amigos, se é que tem
alguns, o desprezarão por isso e pelas mentiras que disse. E,
para finalizar, quero dizer-lhe, frente a frente, que o
considero um verdadeiro canalha!
Georgiana não tinha de forma alguma, embora o tivesse dito,


314


intenção de ficar por ali. Mas, aproveitando uma pausa dela,
momentâneamente exausta, o silêncio foi quebrado por Tuck
Merry.
- Ah, ah, Seu conquistador das dúzias! - exclamou ele,
saltando com notável agilidade do seu cavalo. A senhora
acertou em cheio. Toda a gente aqui sabe que és um canalha.
agora, é que vais ver como elas te mordem.

Tuck Merry tornou-se alvo das atenções gerais. Atirou o
chapéu para a nuca, e, despindo o casaco, lançou-o ao solo.
Conservou as luvas e, começando a passear em torno de
Hatfield, ajustou-lhes os dedos, de modo muito significativo.
- Afasta-te das cordas e salta cá para o ringue, - Disse
Tuck, com voz forte.
- Olha lá, meu idiota, cala a boca senão parto-te a cara,
hem? - resmungou Hatfield.
Em frente dos homens, apresentava uma nova fachada.
- Assim é que é falar, Bid. Parece música aos meus ouvidos.
Canta mais um pouco. És a trouxa de carne mais formosa que já
vi para me treinar. Deves ser feito de queijo mole. És
parecido com um alemão gorduchinho que me apareceu pela frente
em Argonne. E, sabes uma coisa? Matei-o com um único soco na
barriga.
Hatfield estava pasmado e enraivecido. Tinha de andar às
voltas para vigiar Tuck, que caminhava em círculos,
movimentando os compridos braços.
- O tipo deve estar doido! - exclamou Bid.
Enoch deu uma gargalhada sonora.
- Bid, ele pode estar doido, mas eu não queria estar na tua
pele nem por um milhão de dólares.
Hatfield curvou-se como um touro prestes a marrar.
- Bid, tens algumas mensagens a enviar? - inquiriu Tuck,
andando cada vez mais rápido. - Se tens, despacha-te a
dizê-las enquanto eu aqueço. Era o meu costume. nos tempos em
que dava lições de boxe na Marinha. Bid, sou fuzIleiro naval


315


e escavaquei todos os tipos que me defrontaram no ringue. E,
antes que me esqueça, quero dizer-te que fui treinador de Jack
Dempsey - exclamou Tuck, alegremente. - E, acredita, meu
franganote, que ele se viu mais atrapalhado comigo do que em
muitos dos seus combates oficiais.
- És um estúpido lunático - gritou Hatfield.
De repente, Tuck atacou com incrível rapidez. Hatfield
tombou no solo, com um berro. E Georgiana soltou uma
exclamação de terror. Fascinada, envolvida numa sensação
ardente de temor e de prazer, ouvia e observava com os nervos
em franja. O quadro do trambulhão dado por Hatfield ficou-lhe
gravado na memória. O cavaleiro rolou e ergueu-se depressa,
para ser de novo atingido por um soco que lhe quebrou os
ímpetos. Tuck dançava em torno dele e os seus braços
trabalhavam como êmbolos, desferindo uma chuva de golpes sobre
Hatfield. E parecia que tinha um nome para cada espécie de
golpe. Os circunstantes remexiam-se e ululavam como índios.
Hatfield cambaleava, aqui e acolá, para logo se inteiriçar e
começar a tombar, não o fazendo porque, logo um soco brutal do
lado oposto o amparava na queda. Tuck Merry era demasiado ágil
para se seguirem os seus movimentos.
Então, mudou de táctica e, recuando, tudo se transformou
nele.
- O demónio te confunda, bandido! - sibilou. - Quiseste
desfazer o lar de Cal Thurman, por isso, vou fazer-te mil
vezes pior do que lhe fizeste a ele.

Como uma enorme pantera, Tuck deu um salto e caiu sobre
Hatfield, arrastando-o com ele. Seguiu-se uma tremenda
confusão de luta e bordoada que fervia. Os dois homens
rebolavam-se, numa nuvem de densa poeira. Então, esta pareceu
dissipar-se e Georgiana viu a actuação terrível de Tuck Merry.
Mais Vagaroso, agora, mas com que força!


316


Os seus socos produziam eco, como se batesse numa saca cheia
de qualquer coisa mole e encharcada. Eram de apavorar o mais
ousado. Hatfield parecia um boneco. Cada golpe que lhe
acertava fazia-o tomar grotescas posições. Georgiana cerrou as
pálpebras, mas continuou a ouvir o ruído da luta. Depois, tudo
cessou. Abriu os olhos. Tuck Merry ergueu-se e fitou o corpo
rígido do cavaleiro, singularmente hirto. Descalçou uma das
luvas e deu com ela na cara de Hatfield; depois, fez o mesmo
com a outra.
- Isto... servir-te-á de... emenda... para o resto... da tua
vida! - exclamou, ofegante.
Em seguida, voltou-se para o dono do rancho.
- Senhor Saunders... está pronto... liquidado - disse ele,
respirando a custo, - E garanto-lhe- que... não deve ter...
grande préstimo... durante longo tempo.
- Hatfield já não me serve daqui em diante - retorquiu
Saunders, com aspereza. Os cavaleiros estremeceram e
avançaram, rodeando Hatfield. Um deles ajoelhou. Alguns
assobiaram de admiração. Georgiana sentiu-se fraquejar, como
reacção da sua excitação.
Enoch foi também observar o corpo de Hatfield.
- Com a breca! - exclamou.
Então, Saunders deu-lhe uma forte palmada no ombro.
- Enoch, nunca tive grande coisa contra ti - disse.
- Bom, posso dizer o mesmo, a teu respeito - retorquiu
Enoch.
- Escuta. Vou despedir Bloom no fim do mês. E Hatfield deixa
o rancho amanhã, nem que vá amarrado sobre uma mula... E se
nós apertássemos a mão a esta jovem corajosa e um ao outro e
nos tornássemos amigos? Os de Green Valley e os daqui
costumavam andar de mãos dadas e por isso todos prosperaram.
Que dizes?
- Jim Saunders, concordo, de todo o meu coração.


317


Dirigiram-se para o sítio onde Georgiana estava, montada no
seu cavalo recebendo surpresa após surpresa com o desen rolar
dos acontecimentos.
- Minha senhora - disse Saunders, com galanteria -, queira
aceitar os meus respeitos. A sua bravura foi grande e Cal
Thurman é um rapaz feliz. Pode dizer-lhe que fez as pazes
entre os Thurman e o dono do rancho Bar XX.
- Georgie, não há dúvida que a vejo com muito mais admiração
do que via - disse Enoch, confirmando, embora incompletamente,

!as suas palavras com um caloroso aperto de mão.
Georgiana não permitiu que nenhum dos cavaleiros, nem mesmo
Tuck Merry, a acompanhasse para além da junção das estradas.
Queria ir sozinha para caSa, para pensar, meditar e
deleitar-se com o seu extraordinário cometimento. Chegou a
casa cerca do meio da tarde, encontrando Cal no alpendre.
- Georgie, onde é que estiveste? - perguntou ele.
Ela desmontou, antes de responder e atirou com as rédeas
para o dorso do animal.
- Cal, que dirias tu se te contasse que fiz as pazes entre
Enoch e Jim Saunders?
Cal deixou-se cair num banco, como se tivesse perdido a
força nas pernas.
- Estiveste em Bar XX? - exclamou, com voz aguda.
- É verdade, meu caro, e estou certa de que não é preciso
voltares lá outra vez.
- Que fizeste tu? - exigiu ele, num misto de cólera e
surpresa.
- Querido, mandei chamar Bid Hatfield - respondeu Georgiana,
subitamente tomada de alegria incontida.


318


- Fiz dele um miserável cobarde e mentiroso, perante o
patrão e o pessoal, e Enoch, também, com Lock, Serge, Boyd e
os outros rapazes. Oh, foi tão bom... Diabos o levem, pu-lo de
rastos! Depois,... Oh! Cal, só queria que tivesses visto Tuck
Merry a desancá-lo! - Disse ela. - Queria pagar-lhe o que ele
te tinha feito... Foi demasiado para mim e cheguei a gritar.
Oh, que socos e que bofetões! Mas, eu estava, como que
hipnotizada e não teria impedido Tuck para salvar a vida de
Bid. Nem nenhum dos presentes. Tuck fê-lo num bolo, Depois,
acabou-se. Saunders e Enoch tiveram uma conversa e
reconciliaram-se. Cumprimentaram-me e... agradeceram-me. Foi a
pequena Georgiana May quem fez tudo. Agora, que tens a dizer?
Cal não conseguia articular palavra, na sua imensa alegria,
surpresa e gratidão.
- Não tem importância! - exclamou ela. - Tenho uma coisa
ainda melhor a dizer-te...
E se nós fôssemos para aquele sítio... junto do zimbro...
onde me disseste as coisas que costumavas ver nos teus sonhos
de rapaz, de todas as coisas maravilhosas que iriam
suceder-te... Deixa-me que te conte lá. Anda.
A diantou-se a ele, quase correndo e sem o escutar, rindo
com satisfação. Penetrou na orla do bosque, atravessou-o sob
as copas dos cedros, pelos atalhos fragrantes que conduziam
ao local onde avultava o velho zimbro. Aí, de costas para a
árvore, esperou por Cal. Ele chegou e ela nunca o vira como
então. A luz que lhe resplandecia no rosto parecia ter apagado
o seu aspecto de sofrimento. Georgiana, zelosa, demorava a
altura em que daria largas ao seu contentamento pelo que ia
dizer-lhe.
- Sabias que tinhas casado com uma mulher rica? - perguntou,
com fingida arrogância.
- Georgie, estás doida ou sou eu que estou?
- É como te digo. Uma velha tia que eu sempre detestei,


319


morreu e deixou-nos algum dinheiro, a mim e a Mary, dínheiro a
rodos. Mas, não era só isso que queria dizer-te. Sou uma
mulher diferente... Tens a certeza de que não foste tu que me
bateste na cabeça, no dia em que casámos?
- Oh, Georgie, eu não minto. Foi um acidente.
- Bom, pois devias ter sido tu. Foi aquilo que me fez
amar-te de verdade.
- Ouve, não queiras agora troçar de mim - disse ele,
roucamente.
Então, ela lançou-lhe os braços em torno do pescoço.
- Cal, estou a falar muito a sério. Eu amo-te. Creio que
sempre te amei. Apenas fui travessa e má... Beija-me! Afinal,
tudo acabou em bem. Deixa-me compensar-te do mal que te
causei. Sou feliz porque me salvaste, Cal... E eu... eu quero
ser digna de um Thurman... Quero ser a tua verdadeira mulher!
Lado a lado, contemplaram a massa vermelha e púrpura das
nuvens que sobrevoavam a cordilheira do Oeste e o descer das
sombras crepusculares sobre as profundezas agrestes de Tonto.

FiM

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