Campbell Black
Indiana Jones, professor de arqueologia e aventureiro
intrépido, já descobriu muitos tesouros. Mas agora o futuro
depende da descoberta de um objecto especial. Munido de um
chicote e acompanhado por uma bela jovem, Indiana Jones viaja
pelo Nepal e Egipto, esquivando-se a venenos, armadilhas e
cobras mortíferas, combatendo rivais antigos e recentes em
busca de um objecto que se supõe dará um poder incrível a quem
o possuir.
Subitamente a noite encheu-se de disparos luminosos que saíam
estridentemente da Arca, pilares de chamas que troavam na
escuridão, línguas de fogo que queimavam os céus. Um círculo
branco de luz formou um anel cintilante em redor da ilha,
torrentes de espuma, formando um maremoto a erguer-se no
escuro. A luz era a luz do primeiro dia do universo, a luz do
início, das coisas nascidas há pouco, era a luz de Deus: a luz
da criação.
Índice
Capítulo I - América do Sul, 1936 .... 7/0
Capítulo II - Berlim ................ 29/1
Capítulo III - CONNECTICUT .......... 33/1
Capítulo IV - BErCHTESGADEN, ALEMANHA 47/2
Capítulo V - Nepal .................. 50/2
VI - AS ESCAVAÇÕES EM TAniS, EGIPTO . 69/3
VII - Cairo ......................... 72/3
VIII - Cairo ........................ 80/4
IX - AS ESCAVAÇÕES DE Tanis, EGIPto . 96/5
X - As escavaÇÕes de Tanis, Egipto .116/6
XI - MediterrÂneo .................. 129/6
XII - UMA ILHA NO MEDITERRÂNEO ..... 139/7
XIII - EpÍlogo ..................... 150/7
CAPÍTULO I
AMÉRICA DO SUL, 1936
A selva era uma mancha verde-escura, sombria e ameaçadora. A
réstea de sol que passava por entre altas barreiras de ramos e
trepadeiras torcidas era pálida, esbranquiçada. O ar, quente e
abafado, criava um muro de humidade. Pássaros gritavam em
pânico, como se tivessem sido apanhados subitamente numa
gaiola gigantesca. Insectos cintilantes corriam debaixo dos
pés, animais agitavam-se e guinchavam na folhagem.
Primitivamente o lugar devia ter sido um terreno perdido, um
ponto não assinalado no mapa, inexplorado - o confim do mundo.
Oito homens avançavam lentamente ao longo de um trilho,
parando de vez em quando para cortar uma liana pendente ou
decepar um ramo suspenso. À frente deste grupo seguia um homem
alto com um casaco de cabedal e um chapéu de feltro com abas.
Atrás dele iam dois peruanos, que observavam a selva com
prudência, e cinco índios Quechua, nervosos, que se esforçavam
por dominar um par de burros que transportavam o material e os
mantimentos.
O homem que chefiava o grupo chamava-se Indiana Jones. Era
musculoso, quase como um atleta que ainda está no seu auge.
Tinha uma barba loira e suja de vários dias e riscas de suor
escuro num rosto que devia ter sido belo com uma expressão
dócil, fotogênica. Porêm,já havia pequenas rugas á volta dos
olhos, os cantos da boca, transformando a beleza quase suave
numa expressão de carácter, gravidade. Era como se os
contornos da sua experiência tivessem começado, lentamente, a
definir o seu aspecto.
Indy Jones não andava com a mesma cautela dos dois peruanos
- a sua confiança fazia parecer que ele era o nativo, e não
eles. Mas a sua arrogância não diminuía o sentido de alerta.
Conhecia o suficiente para olhar ocasionalmente, quase
imperceptivelmente, de um lado para o outro, na expectativa de
a selva revelar uma ameaça, um perigo, de um momento para o
outro. O afastar súbito de um ramo ou o estalido de madeira
apodrecida - esses eram os sinais, os pontos na sua bússola de
perigo. Às vezes parava, tirava o chapéu, limpava o suor da
testa e perguntava a si mesmo o que o incomodava mais - se era
a humidade ou o nervosismo dos Quechuas. Muitas vezes falavam
acaloradamente uns com os outros em explosões naquela língua
estranha, uma língua que fazia lembrar a Indy os sons das aves
da selva, criaturas da folhagem impenetrável, das névoas
recorrentes.
Ele virou-se e olhou para os dois peruanos, Barranca e
Satipo, e compreendeu que depositava pouca confiança neles e
que no entanto, era obrigado a depender deles para tirar
daquela selva aquilo que queria.
"Mas que grupo", pensou. "Dois peruanos furtivos, cinco
índios aterrorizados e dois burros obstinados. E eu sou o
chefe, que teria melhores resultados com um grupo de
escuteiros."
Indy virou-se para Barranca e, embora soubesse qual seria a
resposta,perguntou:
- Que estão os índios a dizer?
Barranca parecia irritado.
- O mesmo de sempre, Senhor Jones. A maldição. Sempre a
maldição.
Indy encolheu os ombros e fitou os índios. Indy compreendia
as suas superstições, as suas crenças, e, de certo modo,
aceitava-as. A maldição - antiga maldição do templo dos
Guerreiros Chachapoyan. Os Quechuas tinham sido criados com
ela; era intrínseca ao seu sistema de crenças.
Ele disse:
- Diz-lhes que se calem, Barranca. Diz que não lhes
acontecerá nada de mau. - O bálsamo das palavras. Sentia-se
como um curandeiro a administrar uma dose de um soro não
experimentado. Como diabo podia saber que nada de mau lhes
aconteceria?
Barranca observou Indy por instantes, depois falou com
dureza aos índios e estes ficaram calados por algum tempo - um
silêncio de medo reprimido. Uma vez mais, Indy sentiu pena
deles. palavras vagas de consolo não podiam fazer desaparecer
séculos de superstição. Pôs de novo o chapéu eavançou devagar
pelo trilho, infestado dos odores da selva, dos cheiros das
coisas que cresciam e de outras que apodreciam, carcaças
antigas cheias de moscas varejeiras, madeira em putrefacção,
vegetação quase morta.
"Podias pensar em melhores lugares que este", pensou "podias
pensar em lugares mais agradáveis." E então começou a
interrogar-se sobre Forrestal, imaginando-o a caminhar ao
longo daquele mesmo trilho há anos, imaginando a febre no
sangue de Forrestal quando este se aproximou do Templo. Mas
Forrestal, um excelente arqueólogo, não voltara da viagem
àquele lugar -e fossem quais fossem os segredos que estivessem
encerrados naquele Templo ainda lá estavam por desvendar.
Infeliz Forrestal. Morrer naquele sítio isolado era um
terrível epitáfio. Não era esse que Indy queria.
Recomeçou a caminhada ao longo do trilho, seguido pelo
grupo. Naquele ponto a selva estendia-se num vale profundo e o
trilho atravessava o desfiladeiro como uma antiga cicatriz. Já
se erguiam do solo névoas, vapores que ele sabia que se
tornariam mais cerrados, mais densos, à medida que as horas
passassem. As névoas ficariam presas naquele desfiladeiro como
se fossem teias de aranha tecidas pelas próprias árvores.
Uma enorme arara, garrida como um arco-íris, saiu da
vegetação rasteira soltando um grito e desaparecendo no meio
das árvores, assustando-o momentaneamente. E então os índios
recomeçaram a tagarelar, a gesticular freneticamente com as
mãos, espicaçando-se. Barranca virou-se e silenciou-os com uma
ordem violenta - mas Indy sabia que seria cada vez mais
difícil mantê-los sob qualquer tipo de controle. Sentia a
ansiedade com a mesma certeza com que sentia a humidade a
fazer-lhe pressão na carne.
Além disso, os índios preocupavam-no menos que a crescente
desconfiança dos dois peruanos. Sobretudo Barranca. Era um
instinto profundo, aquele em que sempre confiava, uma intuição
que sentira quase durante toda a viagem. Mas agora era mais
forte: Sabia que lhe cortariam a garganta por alguns amendoins
salgados.
"Já não falta muito", disse para si mesmo.
E quando percebeu que estava próximo do templo, quando
entendeu como estava perto do Ídolo dos Chachapoyans, sentiu
uma vez mais a adrenalina a subir: a concretização de um
sonho, um juramento antigo que fizera a si mesmo, um
compromisso que assumira quando era um principiante em
arqueologia. Era como se recuasse quinze anos ao passado, ao
sentido de admiração familiar, ao impulso obsessivo de
compreender os lugares obscuros da História, que a princípio o
tinham entusiasmado em relação à arqueologia. "Um sonho",
pensou. "Um sonho que tomava forma, deixando de ser uma coisa
nebulosa para se tornar tangível. E agora podia sentir a
proximidade do Templo, senti-la nos ossos." Ele parou e
escutou os índios a tagarelar de novo. Eles tambêm sabem.
Sabem que já estamos perto." E isso atemorizava-os. Avançou.
Por entre as árvores havia uma fenda na barreira do
desfiladeiro. O trilho mal se via: ficara tapado com plantas
trepadeiras, abafado por ervas bolbosas que rastejavam sobre
raízes - raízes que tinham o aspecto de ramificações de
esporos flutuantes que andavam à deriva no espaço, fixando-se
ali por simples capricho. Indy cortou-as num movimento amplo
do braço, para que a faca de lâmina larga derrubasse os obstáculos
como se fossem apenas folhas fibrosas. "Maldita
selva. Não devias permitir que a natureza, mesmo nos seus
aspectos mais perversos, mais selvagens, te vencesse." Quando
parou estava encharcado de suor e os músculos doíam-lhe. Mas
sentiu-se bem quando olhou para as trepadeiras cortadas, as
raízes rachadas. E então apercebeu-se da neblina que ficava
mais cerrada, não era uma neblina fria, gélida, mas qualquer
coisa proveniente do suor da própria selva. Conteve a
respiração e atravessou a passagem.
Vislumbrou-o quando chegou ao fim do trilho.
Lá estava ele.
Lá ao longe, oculto por árvores densas, o Templo.
Sentiu-se arrebatado durante um segundo por estranhos laços
da História; era uma sensação de permanência, um contínuo que
tornava possível que alguém chamado Indiana Jones estivesse
vivo no ano de 1936 e visse uma construção que fora erigida há
dois mil anos. Receoso, Dominado, Uma sensação de humildade.
Mas nenhuma daquelas descrições era realmente correcta.
Aquela excitação era indescritível.
Durante algum tempo foi incapaz de proferir uma palavra.
Contemplou o edifício e maravilhou-se com a energia que fora
necessária para construir uma estrutura como aquela no coração
de uma selva implacável. E então foi despertado para o
presente pelos gritos dos índios, e virou-se e viu três a
fugir pelo trilho abaixo, deixando os burros para trás.
Barranca tirara a pistola do coldre e apontava para os índios
em fuga, mas Indy agarrou o pulso do homem, torceu-o um pouco,
rodou o peruano para o olhar de frente.
- Não - disse ele.
Barranca fitou-o com ar acusador.
- São uns cobardes, Senhor Jones.
- Não precisamos deles - disse Indy. - E não temos
necessidade de os matar.
O peruano baixou a pistola, lançou um olhar ao companheiro,
Satipo, e fitou novamente Indy.
- Sem os índios, senhor, quem transportará os mantimentos? Não
ficou estipulado no nosso acordo que Satipo e eu fizéssemos
trabalho subalterno, pois não?
Indy observou o peruano, vendo a frieza no centro dos olhos
negros do homem. Nem conseguia imaginá-lo a sorrir. Não era
capaz de imaginar que a luz do dia alcançasse a alma de
Barranca. Indy lembrou-se de que já vira uns olhos mortos como
aqueles: num tubarão.
- Deixamos ficar os mantimentos. Assim que tivermos aquilo
que nos trouxe aqui, podemos regressar ao avião ao anoitecer.
Agora não precisamos de mantimentos.
Barranca abanava a pistola com nervosismo. "Um tipo que
gosta de puxar o gatilho", pensou Indy. "Para ele, três índios
mortos não faziam qualquer diferença."
- Guarde a arma - disse-lhe Indy. -As pistolas não comtam
comigo, Barranca, a menos que tenha o dedo no gatilho.
Barranca encolheu os ombros e olhou para Satipo;
estabeleceu-se entre eles uma espécie de comunicação
silenciosa. Indy sabia que escolheriam o momento. Agiriam no
momento certo. - Meta-a no cinto, está bem? - ordenou Indy.
Lançou o olhar para os dois índios, colocados nos seus lugares
por Satipo. Tinham expressões patéticas de medo nos rostos;
pareciam embrutecidos.
Indy virou-se na direcção do Templo, contemplando,
saboreando o momento. As névoas adensavam-se no local, uma
conspiração da natureza, como se a selva tencionasse guardar
para sempre os seus segredos.
Satipo baixou-se e arrancou qualquer coisa da casca de uma
árvore. Estendeu a mão a Indy. No centro da palma estava uma
flecha minúscula.
- Hovitos - disse Satipo. - O veneno ainda está fresco...
Três dias, Senhor Jones. Devem estar a seguir-nos.
- Se soubessem que estamos aqui,já nos teriam morto - disse
Indy calmamente.
Ele pegou na flecha. Tosca mas eficaz. Lembrou-se dos
Hoviis, da sua lendária ferocidade, da sua ligação histórica
ao Templo. Eram suficientemente supersticiosos para se
manterem afastados do próprio Templo, mas indubitavelmente
invejosos para matarem quem quer que lá fosse.
- Vamos - disse ele. - Acabemos com isto.
Tiveram de golpear e dar cutiladas de novo, cortar e fender
as trepadeiras elaboradamente emaranhadas, arrancar as plantas
que se erguiam do chão como elos de correntes à espera da
presa. A suar, Indy parou; largou a faca e deixou-a balouçar
junto à ilharga. Apercebeu-se pelo canto do olho que um dos
índios erguia um ramo grosso. Foi o grito que o fez rodar
subitamente, já com a faca no ar. Foi o grito estridente do
índio que o fez correr para o ramo no momento em que o
Quechua, ainda a berrar, fugia e desaparecia na selva. O outro
índio seguiu depois, tropeçando, tomado de pânico, nos ramos
cheios de farpas e trepadeiras cortantes. E ambos
desapareceram. Indy, com a faca em riste, levantou o ramo que
tanto assustara os índios. Estava pronto para saltar sobre
aquilo que os aterrorizara, pronto para atacar com a lâmina.
Afastou o ramo.
Este caiu na névoa rodopiante.
Esculpida em pedra, sem tempo, era um rosto, a ficção de um
pesadelo tenebroso, era uma escultura de um demônio
Chachapoyan. Observou-o um segundo, consciente da malevolência
do rosto imutável, e compreendeu que fora ali colocado para
guardar o templo, para afugentar quem pudesse passar por alí.
"Uma obra de arte", pensou, e interrogou-se por instantes
sobre os seus criadores, o seu sistema de crenças, sobre o
tipo de temor religioso que poderia ter inspirado algo tão
horrível como aquela estátua. Fez um esforço para estender a
mão e tocar no ombro do demônio de leve.
Então apercebeu-se de outra coisa, uma coisa que era mais
perturbadora que o rosto de pedra. Mais arrepiante.
O silêncio.
O silêncio arrepiante.
Nada. Nem pássaros. Nem insectos. Nem uma brisa para vibrar
os sons das árvores. Nada. Como se tudo naquele lugar
estivesse morto. Como se tudo tivesse sido acalmado,
silenciado por uma mão terrível, destrutiva. Tocou na testa.
Suor frio, muito frio. "Espectros", pensou. "O lugar está
cheio de espectros." Aquele era um silêncio que se poderia
imaginar antes da criação.
Ele afastou-se da figura de pedra, seguido pelos dois
peruanos, que pareciam estranhamente dominados.
- Por amor de Deus, que é? - perguntou Barranca.
Indy encolheu os ombros.
- Ah, alguma bugiganga antiga. Que mais poderia ser? Cada
casa Chachapoyan devia ter uma, não sabia?
Barranca estava com ar carregado.
- às vezes parece levar isto a brincar, Senhor Jones.
- Existe outra forma?
A névoa arrastava-se, rolava, prendia, dando a impressão que
vergava os três homens. Indy espreitou por entre os vapores
olhando fixamente para a entrada do templo, para os frisos
elaboradamente primitivos que cederam à vegetação com a
passagem do tempo, ao emaranhado de arbustos, folhas,
trepadeiras. mas aquilo que mais o surpreendeu foi a entrada
escura, redonda e aberta, como a boca de um cadáver.
Lembrou-se de Forestal a entrar naquela abertura escura, indo
de encontro à morte. Pobre homem.
Barranca olhou fixamente para a entrada.
- Como podemos confiar em si, Senhor Jones? Nunca saiu daqui
uma pessoa com vida. Por que ? que devemos depositar a nossa
confiança em si?
Indy sorriu ao peruano.
- Barranca, Barranca... têm de aprender que até um americano
miserável por vezes diz a verdade, hum? - E tirou um
pergaminho dobrado do bolso da camisa. Fitou os rostos dos
peruanos. As suas expressões eram transparentes, expressões de
desmesurada cobiça. Indy perguntou a si mesmo a quem tinham
cortado as gargantas para que aqueles dois vilões conseguissem
ficar com outra metade. - Isto, Barranca, deverá tomar conta
da vossa parte - e estendeu o pergaminho no chão.
Satipo tirou um pedaço de pergaminho semelhante do bolso
colocou-o ao lado daquele que Indy apresentara. As duas partes
encaixavam perfeitamente. Durante algum tempo ninguém falou;
chegara-se ao limiar da prudência, Indy sabia - e esperou,
tenso, que algo acontecesse.
- Então, amigos - disse ele. - Somos sócios. Temos aquilo
que poderíamos chamar necessidades mútuas. Nós temos um mapa
completo do plano do pavimento do Templo. Temos aquilo que
jamais ninguém teve. Agora, partindo do princípio de que
aquele pilar assinala o canto...
Antes que ele pudesse concluir a frase, viu, como se fosse
um filme em câmara lenta, Barranca a deitar a mão à pistola.
Viu a mão pequena e morena a agarrar a coronha da arma
prateada. depois ele pôs-se em movimento. Indiana Jones
moveu-se com uma rapidez que o peruano não poderia acompanhar;
os seus movimentos eram uma mancha, afastou-se de Barranca e,
metendo a mão na parte de trás do casaco de cabedal, tirou um
chicote enrolado, com a mão presa ao cabo. Os movimentos
tornaram-se líquidos, uma exibição fluida e graciosa de
músculo, prumo e equilíbrio, dando a impressão de que o braço
e o chicote eram uma coisa só, extensões um do outro. Agitou o
chicote, rasgando o ar, vendo-o enrolar-se ao pulso de
Barranca. Em seguida deu um puxão para baixo, apertando mais,
e a arma soltou-se caindo no chão. O peruano ficou imóvel por
instantes, num misto de confusão, dor e ódio, detestando o
facto de ter sido superado, humilhado. E então, quando o
chicote em redor do pulso ficou lasso, Barranca virou-se e
correu, fugindo atrás dos índios e desaparecendo na selva.
Indy virou-se para Satipo. O homem ergueu as mãos no ar.
- Senhor, por favor - disse ele. - Eu não sabia de nada, nada
deste plano. Ele é louco. É um louco. Por favor, Senhor.
Acredite em mim.
Indy observou-o por instantes, depois acenou com a cabeça e
pegou nas partes do mapa.
- Pode baixar as mãos, Satipo.
O peruano parecia aliviado e baixou os braços sem graça. -
Temos a planta do pavimento - disse Indy. - Por que esperamos?
E virou-se na direcção da entrada do Templo.
O odor era o do cheiro dos séculos, os cheiros presos de
animais, de silêncio e escuridão, da humidade da floresta que
se infiltrava. do apodrecimento de plantas. Gotejava água do
tecto, deslizava por entre os musgos que lá tinham brotado. A
passagem sussurrava com a fuga das garras de animais roedores.
E o ar - o ar era surpreendentemente frio, intocado pela luz
do sol, ensombrado para sempre. "Sons estranhos", pensou ele.
Uma agitação dos mortos - e, por momentos, teve a sensação de
estar no lugar errado no tempo errado, como um saqueador, um
espoliador, alguém decidido a danificar coisas que estavam em
paz há tempo de mais.
Ele conhecia bem a sensação, uma percepção de maldade.
Não era o tipo de emoção que gostava de sentir porque era como
ter um convidado enfadonho numjantar de festa decente. Viu
a sua sombra mover-se à luz do archote que Satipo empunhava.
A passagem tornava-se mais sinuosa à medida que se avançava no
interior do Templo. De vez em quando Indy parava e olhava para
o mapa, à luz do archote, procurando lembrar-se dos pormenores
da planta. Queria beber, a garganta estava seca, a língua
ressequida - mas não queria parar. Ouvia um tiquetaque no
crânio, e cada batida lhe dizia, "Não tens tempo, não tens
tempo..."
Os dois homens passaram por saliências talhadas nas paredes.
Aqui e ali Indy parava e examinava artefactos que estavam
colocados nas saliências. Observava-os pondo de parte alguns
com perícia, metendo outros nos bolsos. Moedas pequenas,
minúsculos medalhões, peças de barro suficientemente pequenas
para as transportar. Sabia o que era valioso e o que não era.
Mas não eram nada comparados com aquilo que realmente o levara
ali - o Ídolo.
Passou a caminhar mais depressa com o peruano a correr
atrás dele, ofegante, enquanto procurava acompanhar a passada.
E então Indy deteve-se subitamente.
- Por que parâmos? - perguntou Satipo, com um tom de voz
como se tivesse os pulmões a arder.
Indy não respondeu, ficou imóvel, quase sem respirar.
Satipo, confuso, deu um passo na direcção de Indy, ia tocar-lhe no
braço, mas tambêm parou e ficou com a mão no ar.
Uma enorme tarântula preta rastejava pelas costas de Indy.
exasperadamente devagar. Indy sentiu as patas aproximarem-se
da pele do pescoço descoberto. Esperou, o que parecia ser uma
eternidade, até sentir a horrível criatura parar no ombro.
Sentiu o pânico de Satipo, sentiu o desejo do homem de gritar
e saltar.
Sabia que tinha de ser rápido, mas certeiro para que Satipo
não fugisse. Indy, com um movimento suave, deitou a mão ao
ombro e fez saltar a criatura que desapareceu nas sombras.
Aliviado, começou a avançar mas ouviu o gemido de Satipo e, ao
virar-se, viu mais duas aranhas a cair no braço do peruano.
Instintivamente, o chicote de Indy saiu rapidamente das
sombras, atirando as criaturas ao
chão. Sem demora, Indy
atacou as aranhas em fuga, esmagando-as com a bota. Satipo
empalideceu, prestes a desmaiar. Indy agarrou, segurando-o
pelo braço até ficar firme. E então o arqueólogo apontou na
direcção do corredor para uma pequena câmara em frente, uma
câmara que estava iluminada por um único raio de sol que
entrava por um buraco no tecto. Esqueceram-se das tarãntolas;
Indy sabia que mais perigos o esperavam.
- Já chega, Senhor - disse Satipo, ofegante. - Voltemos para
trás.
Mas Indy não disse nada. Continuou a contemplar a câmara,
com o espírito já a trabalhar, a idealizar, a imaginação a
ajudá-lo a entrar no espírito das pessoas que tinham
construído aquele lugar há tanto tempo. "Eles queriam proteger
o tesouro do templo", pensou. "Queriam erguer barricadas,
armadilhas, para terem a certeza de que nenhum estranho jamais
atingiria o centro do templo.", Aproximou-se da entrada,
movendo-se com a prudência instintiva do caçador que sente o
perigo no vento, que sente o perigo antes de poder ver sinais
dele. Baixou-se, tacteou no chão, descobriu a haste de uma
planta, levantou-a - depois esticou o braço e atirou a haste
para dentro da câmara. Numa fracção de segundo nada aconteceu.
E depois ouviu-se um zumbido fraco, e as paredes da câmara
abriram-se bruscamente como gigantescos espigões de metal,
como as mandíbulas de um tubarão incrível, que se juntaram com
estrondo no centro da câmara. Indiana Jones sorriu, apreciando
os esforços dos autores do Templo, a astúcia daquela horrível
armadilha. O peruano praguejou, ofegante, estarrecido. Indy
preparava-se para dizer uma coisa quando notou um objecto
empalado nos enormes espigões. Levou apenas um instante para
perceber a natureza daquilo que fora trespassado pelo metal
cortante.
- Forrestal.
Metade esqueleto. Metade carne. O rosto grotescamente
preservado pela temperatura da câmara, a surpresa e o
sofrimento ainda visíveis, como se tivesse sido deixado
intacto como um aviso para quem quisesse entrar na sala.
Forrestal, com o peito e a virilha trespassados, sangue
escurecido no fato de caqui, manchas de morte. "Meu Deus",
pensou Indy. "Ninguém merecia uma morte como aquela. Ninguém."
Sentiu um segundo de tristeza.
"Foste cair nela, companheiro. Estavas sozinho. Devias ter
ficado na sala de aula." Indy fechou os olhos por instantes,
depois entrou na câmara e arrancou os restos do homem das
pontas dos espigões, colocando o cadáver no chão.
- Conhecia esta pessoa? - perguntou Satipo.
- Sim, conhecia.
O peruano fez de novo o sinal da cruz.
- Creio, Senhor, que não devíamos avançar.
- Não deixaria que uma coisa insignificante como esta o
desencorajasse, pois não, Satipo? - Então Indy não falou
durante algum tempo. Observou os espigões de metal que
começavam a encolher-se lentamente, deslizando novamente para
as paredes de onde tinham saído. Admirou-se com os mecanismos
simples da engrenagem - simples e fatais.
Indy sorriu ao peruano, tocando-lhe momentaneamente no
ombro. O homem suava muito, tremia. Indy entrou na câmara,
atento aos espigões, vendo as pontas horríveis a encaixar-se
nas paredes. Passado algum tempo o peruano, a resmungar, a
falar com os seus botões em voz baixa, avançou. Atravessaram a
câmara e entraram num corredor direito com cerca de quinze
metros de comprimento. Ao fundo do corredor havia uma porta,
iluminada pelo sol que entrava por cima.
- Estamos perto - disse Indy -, muito perto.
Estudou de novo o mapa antes de o dobrar, memorizando os
detalhes. Mas não se moveu de imediato. Os olhos perscrutaram
o local em busca de mais armadilhas, mais ciladas.
- Parece seguro - disse Satipo.
- É isso que me assusta, amigo.
- É seguro - repetiu o peruano. - Avancemos.
Satipo, repentinamente impaciente, avançou.
E então deteve-se quando o pé direito escorregou no
pavimento. Foi projectado para a frente, soltando gritos. Indy
correu e agarrou o peruano pelo cinto e içou-o. Satipo caiu no
chão exausto.
Indy olhou para o pavimento em que o peruano colocara os
pés. Teias de aranha, uma extensão elaborada de antigas teias
de aranha, sobre as quais havia uma camada de pés, criando a
ilusão de um soalho. Baixou-se, pegou numa pedra e atirou-a à
superfície das teias. Nada, nem um som, nem um eco se ouviu.
- É uma longa descida - murmurou Indy.
Satipo, sem fôlego, não disse nada.
Indy seguiu a superfície das teias com os olhos na direcção
da porta iluminada pelo sol. Como atravessar o espaço, o poço,
se não existia pavimento?
Satipo disse:
- Penso que agora voltamos para trás, Senhor. Não?
- Não - respondeu Indy. - Penso que avançamos.
- Como? Com asas? É nisso que está a pensar?
- Não precisa de asas para voar, amigo.
Tirou o chicote e olhou para o tecto. Havia várias vigas
fixas no telhado. "Talvez estejam podres", pensou ele. Por
outro lado, podiam ser suficientemente fortes para aguentarem
o seu peso. De qualquer maneira valia a pena tentar. Se não
resultasse, teria de desistir do Ídolo. Levantou bruscamente o
chicote, vendo-o enrolar-se numa viga, em seguida deu um puxão
ao chicote e testou a solidez.
Satipo abanou a cabeça.
- Não. Está louco.
- Vê uma solução melhor, amigo?
- O chicote não vai aguentar connosco. A viga rachará.
- Salve-me dos pessimistas - disse Indy. - Salve-me dos
descrentes. Confie em mim. Faça apenas aquilo que eu fizer,
mas bem?
Indy agarrou o chicote com as mãos, puxou uma vez mais para
o testar, em seguida içou-se lentamente no ar, sempre
conciente do pavimento ilusório por baixo dele, da escuridão,
do poço que ficava muito abaixo das camadas de teias de aranha
e pó, consciente da possibilidade de a viga rachar, de o
chicote se soltar, e então... Mas não tinha tempo para
ponderar essas hipóteses. Jogou-se, agarrando com força o
chicote, sentindo o ar a fustigá-lo. Balançou até ter a
certeza de que estava fora das bordas do poço e depois começou
a descer, pousando em solo firme. Atirou o chicote ao peruano
que estava no outro lado, que murmurou qualquer coisa em
espanhol, algo que Indy sabia que tinha um significado
religioso. Perguntou a si mesmo se haveria, algures nas
abóbodas do Vaticano, um santo padroeiro para aqueles que
tinham uma oportunidade de viajar num chicote.
Viu o peruano pousar ao seu lado.
- Eu disse-lhe, não disse? Beatniks a viajar de autocarro.
Satipo não disse nada. Mesmo na luz fraca Indy pôde ver que
o rosto dele estava pálido. Indy encostou então o cabo do
chicote à parede.
- Para a viagem de regresso - disse ele. - Nunca vou
definitivamente para um lugar, Satipo.
O peruano encolheu os ombros quando passaram pela porta
iluminada pelo sol e entraram num compartimento coberto com
uma cúpula, cujo tecto tinha clarabóias que deixavam entrar
feixes de luz solar que se projectavam no pavimento de
ladrilhos brancos e pretos. E então Indy notou uma coisa no
outro lado da câmara, algo que lhe tirou a respiração, o
encheu de pavor, de um prazer que mal podia definir.
O Ídolo.
Colocado numa espécie de altar, com uma expressão feroz e
doce, a forma dourada que cintilava à luz do archote, brilhava
à luz do sol que passava através do telhado - o Ídolo.
O Ídolo dos Guerreiros Chachapoyan.
Naquele momento aquilo que sentiu era a excitação de um
desejo esmagador, o desejo de atravessar a sala a correr e
tocar na sua beleza - uma beleza rodeada de obstáculos e
armadilhas. que tipo de armadilha estúpida tinham guardado
para o fim? Que espécie de armadilha cercava o próprio Ídolo?
- Vou entrar - disse ele.
O peruano tambêm viu o Ídolo e não disse nada. Fitou a
estatueta com uma expressão de avareza que sugeria que se
sentia repentinamente tão dominado pela cobiça que nada mais
importava a não ser deitar-lhe a mão. Indy observou por
instantes, e pensar: "Ele viu-o. Viu a sua beleza. Não se pode
confiar nele".
Satipo preparava-se para entrar quando Indy o deteve.
- Lembra-se de Forrestal? - perguntou Indy.
- Lembro.
Olhou fixamente para o desenho intrincado dos ladrilhos
pretos e brancos, a pensar na precisão da disposição, no
padrão. Ao lado da porta havia dois archotes antigos em
suportes de metal cobertos de ferrugem. Ergueu a mão, tirando
um, tentando imaginar o rosto da última pessoa que poderia ter
empunhado aquele mesmo archote; o intervalo de tempo - nunca
deixava de o surpreender que o mais insignificante dos
objectos aguentasse séculos. Acendeu-o, olhou rapidamente para
Satipo, depois baixou-se e fez pressão com a ponta apagada num
dos ladrilhos brancos. Bateu-lhe. Sólido. Nenhum eco, nenhuma
ressonância. Muito sólido. Em seguida bateu num dos ladrilhos
pretos.
Aconteceu antes de poder afastar a mão. Um ruído, o som de
uma coisa a atravessar velozmente o ar, uma coisa que sibilava
com a velocidade do seu próprio movimento, e uma pequena seta
enterrou-se na haste do archote. Afastou rapidamente a mão.
Satipo expirou devagar, em seguida apontou para o interior da
sala.
- Veio dali - disse ele. - Vê aquele buraco? A seta veio de
lá.
- Tambêm vejo centenas de buracos - disse Indy.
O local estava repleto de teias de aranha com recantos
sombrios, contendo cada um uma seta, cada um soltaria o seu
míssil sempre que fizesse pressão num ladrilho preto.
- Fique aqui, Satipo.
Lentamente, o peruano virou a cara.
- Se insiste.
Indy, empunhando o archote aceso, entrou cautelosamente na
câmara, evitando os ladrilhos pretos, passando por cima deles
para alcançar os brancos que eram seguros. Apercebeu-se da sua
sombra projectada nas paredes da sala à luz do archote,
consciente dos buracos perigosos, perceptíveis na penumbra, -
que continham as setas. Todavia era sobretudo o Ídolo que
atraía a sua atenção, a beleza simples que se torna mais
evidente à medida que se aproximava dele, o brilho hipnótico,
a expressão enigmática do rosto. "Estranho", pensou: "quinze
centímetros de altura, dois mil anos, uma massa de ouro no
rosto." dificilmente se poderia dizer que fosse belo - era
estranho que homens perdessem a cabeça por aquilo, matassem
por aquilo. E, no entanto, hipnotizava-o e viu-se obrigado a
desviar o olhar. "Concentra-te nos ladrilhos", disse para si
mesmo. "Apenas nos ladrilhos. Nada mais. Não percas aqui o teu
instinto apurado." Sob os pés, estendido sobre um ladrilho
branco e crivado de setas, estava um pequeno pássaro morto.
Olhou fixamente para ele, sentindo-se mal-disposto por
instantes, dominado pela percepção de quem construíra aquele
Templo, de quem concebera aquelas armadilhas, seria demasiado
sagaz para as colocar apenas nos ladrilhos pretos: como uma
carta perdida num baralho, pelo menos um ladrilho branco teria
sido envenenado. Pelo menos um. E se houvesse outros? Ele
hesitou, já a transpirar, sentindo a luz do sol vinda de Cima,
sentindo o calor da chama do archote no rosto. Prudentemente,
contornou o pássaro morto e olhou para os ladrilhos brancos
que ficavam entre ele e o Ídolo como se cada um fosse um
potencial inimigo. "às vezes", pensou, "não é apenas a
prudência que nos torna vitoriosos. Às vezes não se recebe o
prêmio quando se hesita, quando não se arrisca uma última vez.
A prudência tem de estar ligada ao acaso... mas nesse caso é
preciso saber de alguma forma que a vantagem é nossa." A visão
do Ídolo arrebata-o de novo. Magnetizou-o. E apercebeu-se de
que Satipo estava atrás dele, a observar da entrada,
certamente a planear a sua própria traição. "Não", disse para
si mesmo. "Não importa. Faz isso e que se dane a prudência."
Moveu-se com a graciosidade de um bailarino. Moveu-se com a
estranha elegância de um homem que avança serpenteando pelo
meio de lâminas de navalha. Cada ladrilho era já uma mina
possível, uma bomba de profundidade.
Avançou cuidadosamente e passou por cima dos quadrados
pretos, à espera que a pressão do seu peso acionasse o
mecanismo que faria vibrar o ar com setas. E já estava mais
próximo do retíbulo, mais próximo do Ídolo. Do prêmio. Do
triunfo. E da última armadilha.
Parou uma vez mais. O coração palpitava, o pulso acelerou, o
sangue ardia nas veias. Caía-lhe suor da testa e deslizava
pelas pálpebras, cegando-o. Limpou-o com as costas da mão.
"Mais alguns passos", pensou. "Mais alguns passos.
E mais alguns ladrilhos."
Moveu-se de novo, levantando as pernas e baixando-se
suavemente. se alguma vez precisava de equilíbrio era nesse
momento. O Ídolo parecia piscar-lhe os olhos, seduzi-lo.
Outro passo.
Outro passo.
Estendeu a perna direita, tocando no último ladrilho branco
antes de chegar ao altar.
Conseguira. Conseguira. Tirou um frasco com uma bebida
alcoólica do bolso, tirou-lhe a tampa, engoliu um trago. "E
que mereces", pensou. Em seguida guardou o frasco e fitou o
Ídolo.
"última armadilha. Que será a última armadilha?", perguntou
a si mesmo. "O último risco.", Pensou durante muito tempo,
tentou imaginar-se no espírito daqueles que tinham criado
aquele lugar, que tinham construído aquelas defesas. Muito
bem, alguém vem tirar o Ídolo, que significa que tem de ser
levantado, tem de ser retirado da pedra polida, tem de ser
tirado fisicamente., E depois?
"Algum tipo de mecanismo debaixo do Ídolo detecta a ausência
de peso do objecto, e isso acciona - o quê? Mais setas? Não
seria algo ainda mais destrutivo que isso. Algo mais
mortífero", Pensou uma vez mais; o pensamento corria, os
nervos vibravam. Baixou-se e olhou à volta da base do altar.
Havia pedaços de pedra, pó, cascalho, a acumulação de séculos.
"Talvez", pensou "Talvez." Tirou do bolso um pequeno saco que
se fechava com fio, abriu-o, retirou as moedas que continha,
em seguida começou a encher o saco com terra e pedras.
Tomou-lhe o peso na palma da mão por instantes. "Talvez",
pensou de novo. "Se conseguires fazer isso com rapidez
suficiente. Conseguias fazer isso com uma rapidez que vencesse
o mecanismo, se for de facto esse o tipo de armadilha aqui
envolvida."
Se, se, se. Demasiadas hipóteses. Ele sabia que noutras
circunstâncias se afastaria, evitaria as consequências de
tantas incertezas. Mas não naquele momento, naquele lugar.
Endireitou-se, tomou de novo o peso do saco, perguntou a si
mesmo se pesava o mesmo que o Ídolo, esperou que sim. Em
seguida agiu rapidamente, pegando no Ídolo e colocando o saco
no seu lugar, colocando-o na pedra polida. Nada. Durante um
longo momento, nada. Olhou fixamente para o saco, depois para
o Ídolo na mão, e então apercebeu-se de um estranho e distante
ruído, um estrondo como o de uma enorme máquina que se põe em
movimento, um som de coisas que despertam de um longo sono,
bramindo, dilacerando, e rangendo nos espaços do Templo. O
pedestal de pedra polida baixou repentinamente - doze, treze
centímetros. E depois o som tornou-se mais forte,
ensurdecedor, e tudo começou a abanar, a tremer, como se as
fundações se estivessem a separar, a fender, a abrir, os
tijolos e a madeira a lascar e a rachar. Virou-se e retrocedeu
rapidamente por cima dos ladrilhos o mais depressa possível em
direcção à porta. E, no entanto, o barulho, como um trovão
desesperado, aumentou e rolou e ecoou através dos velhos
corredores e passagens e câmaras. Dirigiu-se para Satipo, que
estava parado na entrada com uma expressão de terror estampada
no rosto. Já tudo tremia, tudo se movia, caíam tijolos,
desabavam paredes, tudo. Quando chegou à porta virou-se e viu
uma rocha a cair no soalho coberto de ladrilhos, fazendo
saltar as setas, que voavam aos milhares em todas as direcções
na câmara que se desmoronava, Satipo, respirando com
dificuldade, aproximara-se do chicote e atravessava o poço.
Quando alcançou o outro lado fitou Indy por instantes. "Sabia
o que ia acontecer", pensou Indy. "Sentia, sabia, e agora que
está prestes a acontecer, que posso fazer?" Viu Satipo
arrancar o chicote da viga e enrolá-lo na mão.
- Um acordo, Senhor. Uma troca. O Ídolo pelo chicote. Atira-
me o Ídolo, eu atiro-lhe o chicote.
Indy ouviu o estrondo da destruição atrás dele e observou
Satipo.
- Sabe Que hipóteses tem, Senhor Jones? - perguntou Satipo.
- E se eu deixar cair o Ídolo no poço, meu amigo? Tudo o que
resta depois de tantos problemas ? um chicote, certo?
- E ao certo que lhe resta depois de tantos problemas,
Senhor?
Indy encolheu os ombros. O barulho atrás dele tornava-se
mais forte; sentia o Templo a tremer, o soalho a começar a
oscilar. "O Ídolo", pensou - "não podia deixar que aquilo
caísse assi no abismo".
- Está bem, Satipo. O Ídolo pelo chicote. - E atirou o Ídolo
na direcção do peruano. Viu Satipo agarrar a relíquia,
enfiá-la no bolso e depois atirar o chicote ao chão.
Satipo sorriu.
- Lamento profundamente, Senhor Jones. Adios. E boa sorte.
- Não lamenta mais que eu - gritou Indy quando viu o peruano
desaparecer no corredor. Toda a estrutura, como uma divindade
vingativa da selva, abanou ainda mais.
Ouviu o som de pedras a cair, de pilares a desabar. "A
maldição do Ídolo", pensou ele. Era um filme da sessão da
tarde, era o tipo de filme que os miúdos viam arrebatados nas
tardes de sábado em cinemas escuros. Havia apenas uma coisa a
fazer - uma coisa, nenhuma alternativa. "Tens de saltar",
decidiu. "Tens de arriscar e transpor o poço e esperar que a
gravidade esteja do teu lado. O Inferno está à solta atrás de
ti e à tua frente há um abismo terrível. Por isso salta, voa
para a escuridão e faz figas." Salta!"
Respirou fundo, ergueu-se no ar por cima do poço,
balançou-se o mais que pôde, escutou o zumbido do ar à sua
volta quando se moveu. Teria rezado se fosse pessoa para
rezar, rezado para que não fosse tragado pelo vazio e pela
escuridão.
Descia já. O ímpeto abandonara o salto. Caía. Esperou que
estivesse a cair no outro lado do poço.
Mas não estava.
Sentia a escuridão, o cheiro desagradável e a humidade, que
subiam vindas do fundo, e estendeu os braços, procurando um
apoio, um rebordo, algo a que se pudesse agarrar. Sentiu as
pontas dos dedos que se enterraram na borda do poço, do bordo
que se esboroava, e tentou içar-se enquanto o bordo cedia e
deixava cair pedras no abismo. Balançou as pernas, agarrou-se
com força, bateu-se como um peixe que ficou preso no areal
para se erguer. sair, alcançar qualquer coisa que o salvasse.
Esforçando-se arduamente, gemendo, batendo com as pernas na
parede interna do poço, lutou para se erguer. Não podia
permitir que o peruano traiçoeiro fugisse com o Ídolo.
Balançou de novo as pernas, deu pontapés, procurou uma espécie
de braço de alavanca que o ajudasse a sair do poço, uma coisa,
qualquer coisa, fosse o que fosse. E o templo continuava a
desabar como uma patética cabana de palha fustigada por um
furacão. Gemeu, enterrou os dedos no bordo, puxou até ter a
impressão de que os músculos rebentariam, as veias
estorariam, içou-se mesmo quando ouviu o som de unhas a
partir com o peso do corpo.
"Mais força", pensou ele. "Mais um esforço".
Com mais força, o suor cegava-o, os nervos começaram a
ceder. "Alguma coisa vai quebrar", pensou. "Alguma coisa vai e
então verás onde fica o fundo deste poço.", Parou, tentou
ganhar forças, recuperar a energia que desaparecia, em seguida
içou-se uma vez mais, centímetro a centímetro, com esforço e
finalmente conseguiu levantar a perna no cimo, arrastar-se até
à borda e para a relativa segurança do pavimento - um
pavimento que abanava, ameaçando fender-se a qualquer momento.
Conseguiu pôr-se de pé vacilando e olhou para o corredor por
onde saíra Satipo. Ele dirigira-se para o compartimento onde
tinham sido encontrados os restos mortais de Forrestal. A sala
dos espigões. A câmara da tortura. E, subitamente, Indy tomou
consciência daquilo que aconteceria ao peruano, apercebeu-se
repentinamente do destino do homem mesmo antes de ouvir o som
estridente e terrível dos espigões, mesmo antes de ouvir o
grito horrível do peruano ecoar no corredor. Prestou atenção,
e isou-se para apanhar o chicote, e em seguida correu para a
câmara. Satipo estava pendurado de lado, empalado como uma
borboleta grotescamente grande na colecção de um louco. -
Adios, Satipo - disse Indy. Depois arrancou o Ídolo do bolso
do homem morto, abriu caminho por entre os espigões e correu
para o corredor do outro lado. Em frente, viu a saída, a
clareira de luz, o maciço de árvores mais longe. E no entanto
o ruído aumentava, enchendo os ouvidos, penetrando no corpo.
Virou-se e viu, estupefacto, um enorme bloco de pedra rolar
pelo corredor em direcção a ele, adquirindo velocidade à
medida que avançava. "A última armadilha", pensou. "Quiseram
ter a certeza de que mesmo que entrasses no Templo, mesmo que
conseguisses esquivar-te a tudo o que fosse atirado contra ti,
não irias sair daqui com vida." Ele correu. Correu como um
louco para a saída enquanto a enorme pedra se precipitava pelo
corredor atrás dele. Atirou-se para a clareira de luz e caiu
na erva espessa no exterior precisamente no momento em que o
bloco batia na saída, selando o Templo para sempre. Exausto,
ofegante, ficou deitado de costas.
"Demasiado perto", pensou. "Demasiado perto para qualquer
forma de conforto." Queria dormir. Queria apenas a
possibilidade de fechar os olhos, transportar-se para a
escuridão que dá alívio, um alívio profundo e sem sonhos.
"Podias ter sofrido uma centena de mortes ali dentro",
compreendeu. "Podias ter sofrido mais mortes que qualquer
homem poderia esperar numa vida inteira."
E então sorriu, sentou-se, rodou várias vezes o Ídolo na
mão.
"Mas valeu a pena", pensou. "Valeu tudo o que passei."
Fitou a peça de ouro.
Ainda olhava fixamente para ela quando viu uma sombra Baixar
sobre ele.
A sombra surpreendeu-o numa posição sentada. Mantendo os
olhos semicerrados, olhou para cima. Estavam dois guerreiros
Hovitos a fitá-lo, com os rostos pintados com as cores vivas
da guerra, as longas azagaias de bambu erguidas como se fossem
lanças. Mas não era a presença dos índios que preocupava Indy
naquele momento; era a visão do homem branco que estava no
meio deles com um fato de safari e um capacete de palha. Indy
não disse nada durante muito tempo, deixando despertar o
sentido do reconhecimento. O homem com o capacete de palha
sorriu, o sorriso foi frio, letal.
- Belloq - disse Indy.
- Justamente Belloq.
Indy desviou o olhar do rosto do francês por instantes,
lançou um olhar ao Ídolo na mão, em seguida olhou fixamente
para o longe, para a orla do arvoredo atrás de Belloq, onde
estavam alinhados cerca de trinta guerreiros Hovitos. E ao
lado dos índios estava Barranca. Barranca, que não fitava
Indy, tinha um sorriso de cobiça estampado no rosto. Um
sorriso que se transformou lentamente numa expressão de
perplexidade e depois, mais rapidamente, numa expressão fria,
vaga, que Indy identificou como um sinal de morte.
Os índios de cada um dos lados do peruano traidor soltaram
os braços e Barranca caiu de borco. As costas estavam crivadas
de setas.
- Meu caro Dr. Jones - disse Belloq. - Tem um dom de
escolher os amigos errados.
Indy não disse nada. Viu Belloq baixar-se e tirar-lhe o
Ídolo da mão. Belloq apreciou a relíquia durante algum tempo,
revirando-a, com uma expressão de profunda apreciação.
Belloq inclinou um pouco a cabeça, um gesto breve que
sugeria uma delicadeza incongruente, um sentido de civilidade.
- Pode ter pensado que eu desistiria. Mas vemos uma vez mais
que não existe nada que possa possuir que eu não possa tirar.
Indy olhou na direcção dos índios.
- E os Hovitos esperam que lhes devolva o Ídolo?
- Exactamente - disse Belloq.
Indy riu-se.
- Como são ingênuos.
- Como você diz - comentou Belloq. - Se você ao menos
falasse a língua deles, poderia dar-lhes outro conselho,
claro.
- Claro - replicou Indy. Observou Belloq enquanto este se
virava na direcção dos guerreiros agrupados e ergueu o Ídolo
no ar; e então, numa extraordinária exibição de movimento
sincronizado que podia ter sido coreografado, ensaiado, os
guerreiros deitaram-se de borco no chão. Um momento de súbita
quietude, de terror religioso, primitivo.
"Noutras circunstâncias", pensou Indy, "poderia ficar
bastante impressionado para ficar a observar." Noutras
circunstâncias, mas não naquele momento".
Levantou-se devagar, pondo-se de joelhos, olhou para as
costas de Belloq e lançou uma vez mais um olhar aos guerreiros
listrados - e depois afastou-se, andando depressa, correndo
para as árvores, esperando pelo momento em que os índios se
levantariam e o ar ficaria cheio de setas atiradas com as
azagaias. Atirou-se para o meio das árvores quando ouviu
Belloq gritar atrás, berrando numa língua que presumivelmente
era a dos hovitos e desatou a correr por entre a folhagem, em
direcção ao lugar do hidroavião. "Corre. Corre mesmo quando
não te resta um pouco de energia. Procura alguma reserva." Não
pares".
E então ouviu as setas. Ouviu-as rasgar o ar, silvando,
zumbindo, criando uma teia de morte. Correu aos ziguezagues,
serpenteando por entre a folhagem. Atrás dele ouvia o estalido
dos ramos que se partiam, plantas que se esmagavam, enquanto
os Hovitos o perseguiam. Sentiu-se estranhamente desligado do
seu próprio corpo; via-se sem sentir o eu físico, sem as
exigências absurdas dos músculos e tendões, arrastando-se pelo
terreno de uma forma automática, num reflexo primitivo. Ouvia
de quando em quando a seta que batia numa casca de árvore, o
esvoaçar assustado das aves da selva que abandonavam os ramos,
o guincho de animais que fugiam dos Hovitos.
"Corre", continuava a pensar. "Corre até não poderes correr
mais, depois corre um pouco mais. Não vaciles. Não páres."
"Belloq", pensou. "A minha hora chegará. Se escapar desta".
Corria - não sabia há quanto tempo. Começava a anoitecer.
Parou, olhou para cima, para a luz fraca que passava através
das árvores densas, depois precipitou-se na direcção do rio.
Aquilo que mais desejava ouvir naquele momento era o som vital
da água impetuosa, aquilo que desejava ver era o avião
que o esperava.
Virou-se uma vez mais e atravessou uma clareira onde ficou
repentinamente exposto devido à ausência de árvores. Por
instantes, a clareira era ameaçadora, o silêncio súbito do
crepúsculo inquietante.
Então ouviu os gritos dos Hovitos e a clareira pareceu-lhe o
centro de um alvo bizarro. Rodou, apercebeu-se do movimento de
dois vultos, sentiu o ar vibrar quando duas setas passaram por
ele rodopiando - e depois disso desatou a correr de novo,
precipitando-se para o rio. Pensou, enquanto fugia, "Não te
ensinaram técnicas de sobrevivência em Arqueologia 101, não
fornecem os manuais de sobrevivência juntamente com a
metodologia de escavação." E certamente não te avisam da
sagacidade de um francês chamado Belloq.", Parou uma vez mais
e escutou os índios atrás dele. Então ouviu outro som, um que
o alegrou, que o exaltou: o movimento da água que corria
veloz, da torrente ondulante. "O rio! A que distância ficaria
ainda?"
Pôs-se à escuta de novo para se certificar e em seguida
caminhou na direcção do som, com as energias recobradas, com
as baterias revitalizadas. "Agora com mais rapidez, mais
esforço e destreza. Abrindo caminho através da folhagem que te
fustiga, ignora os golpes e as escoriações. Mais rapidez, mais
esforço e mais destreza.", O som tornava-se nais claro. A água
corria.
Deixou para trás as árvores.
"Além".
Na base da encosta, no outro lado da vegetação, da vegetação
hostil, o rio.
O rio e o hidroavião flutuando na ondulação. Não poderia
imaginar nada mais acolhedor. Desceu a encosta e então
percebeu que não havia uma maneira simples de passar através
da folhagem até alcançar o avião. Tambêm não havia tempo para
encontrar uma. "Terias de subir à encosta até ao ponto em que
se forma um rochedo sobre o rio e terias de saltar. Saltares,
é pena, Que importa: que é mais um salto?"
Subiu, consciente da forma de um homem que estava sentado
numa asa do avião lá no fundo. Indy atingiu um ponto quase
sobranceiro ao avião, olhou por instantes e depois fechou os
olhos e transpôs a borda do rochedo com um salto.
Caiu na água tépida junto à asa do avião, mergulhou quando a
corrente o arrastou, veio à superfície sem ver e nadou na
direcção do avião. O homem sobre a asa pôs-se de pé quando ele
agarrou um suporte e se içou.
- Pôe isso a trabalhar, Jock! - gritou Indy. - Põe isso a
trabalhar!
Jock correu ao longo da asa e subiu para o interior da
carlinga no momento em que Indy se precipitou, ofegando, para
o compartimento do passageiro e se deixou cair no banco.
Fechou os olhos e sentiu o rumor dos motores quando o avião
deslizou pela superfície da água.
- Não esperava que viesses tão de repente - disse Jock. -
Poupa-me a esses trocadilhos, está bem?
-Algum sarilho, rapaz?
Indy teve vontade de rir.
- Lembra-me para te contar um dia. - Recostou-se e fechou os
olhos, desejando que o sono viesse. Mas então percebeu que o
avião não se movia. Endireitou-se e inclinou-se na direcção do
companheiro.
- O motor deixou de trabalhar - disse Jock.
- Deixou de trabalhar! Porquê?
Jock sorriu.
- Eu apenas piloto este maldito aparelho. As pessoas têm a
mania de que todos os escoceses são mecânicos, Indy.
Através da janela Indy pôde ver os Hovitos começarem a
avançar, passando os baixios do rio. Nove, sete metros já.
Eram como fantasmas grotescos do leito do rio ressuscitados
para se vingarem de uma transgressão histórica.
Ergueram os braços; a chuva de setas voou na direcção da
fuselagem do avião.
- Jock...
- Estou a tentar, Indy. Estou a tentar.
Indy disse, calmamente:
- Penso que devias esforçar-te mais.
As setas atingiram o avião, embateram ruidosamente nas asas,
batendo na fuselagem com o som de enormes pedras de sal.
- Consegui - disse Jock.
Os motores começaram a trabalhar com algum esforço
precisamente no momento em que dois dos Hovitos alcançavam a
ponta da asa e começavam a trepar.
- Está a andar - disse Jock. - Está a andar.
O avião avançou uma vez mais e depois começou a subir, com
alguma dificuldade, sobrevoando o rio.
Indy viu os dois índios perderem o equilíbrio e caírem na
água, como estranhas criaturas da selva. O avião rasava os
topos das árvores e a corrente de ar fazia abanar os ramos, e
espantava as aves em pânico que desapareciam na luz
crepuscular.
Indy riu-se e fechou os olhos.
- Pensei que talvez não conseguisses - disse Jock. - Para te
dizer a verdade.
- Nunca duvidei - replicou Indy, e sorriu.
- Agora descontrai-te, homem. Dorme um pouco. Esquece esta
maldita selva.
Indy descontraiu-se por instantes. Alívio. O relaxamento dos
músculos. Uma sensação agradável. Podia entregar-se àquela
sensação por muito tempo.
Então uma coisa deslizou na sua coxa. Lenta e pesada.
Abriu os olhos e viu umajibóia enroscar-se ameaçadoramente
na coxa. Endireitou-se rapidamente.
- Jock!
O piloto virou-se, sorriu.
- Não te fará mal. É a Reggie. Não faz mal a ninguêm.
- Afasta-a de mim, Jock.
O piloto estendeu a mão, acariciou a cobra, em seguida
meteu-a na carlinga ao lado dele. Indy viu a cobra afastar-se
lentamente. Uma repulsa antiga, um terror inexplicável. Para
umas pessoas eram as aranhas, para outras as ratazanas, para
outras espaços fechados. Para ele era a visão repulsiva e o
toque de uma cobra. Limpou o suor que se formara na testa,
tiritando quando a água que ensopava a roupa se tornou
repentinamente gelada.
- Segura-a perto de ti - disse ele. - Detesto cobras.
- Vou-te revelar um pequeno segredo - disse Jock. - A cobra
vulgar é mais afável que a maioria das pessoas.
- Eu acredito na tua palavra - replicou Indy. - Não a deixes
aproximar-se de mim.
"Pensas que estás a salvo e uma jibóia resolve aquecer-se no
teu corpo. Tudo num dia de trabalho", pensou.
Olhou através dajanela por instantes e viu cair a escuridão
sobre a imensa selva com uma certeza inescrutável. "Podes
guardar os teus segredos", pensou Indy. "Podes guardar todos
os teus segredos".
Antes de adormecer, embalado pelo ruído dos motores desejou
não se cruzar tão cedo com aquele francês.
CAPÍTULO II
BERLIM
Num gabinete na Wilhelmstrasse, um oficial com o uniforme
preto das SS - absurdamente pequeno, chamado Eidel - estava
sentado na secretária, a olhar fIxamente para montes de pastas
de papel acastanhado empilhadas na frente dele. Foi evidente
para o visitante de Eidel, que se chamava Dietrich, que o
homem usava as rimas de pastas de um modo compensatório:
faziam-no sentir-se maior, mais importante. "Hoje em dia é o
mesmo em toda a parte", pensou Dietrich. "Avalia-se um homem e
o seu valor pela quantidade de papelada que consegue juntar,
pelo número de carimbos de borracha que é autorizado a usar".
Dietrich, que gostava de se considerar um homem de acção,
suspirou interiormente e olhou para ajanela, onde fora
colocado um estore castanho-claro. Esperou que Eidel falasse,
mas o oficial das SS ficou calado durante algum tempo, como se
até os seus silêncios se destinassem a comunicar alguma coisa
daquilo que ele considerava como a sua própria importância.
Dietrich olhou para o retrato do Fihrer pendurado na parede.
Quando chegasse o momento, não importava aquilo que se podia
pensar de uma pessoa como Eidel - brando, preso à secretária,
pomposo, fechado em gabinetes miseráveis -, porque Eidel tinha
uma linha directa de acesso a Hitler. Por isso prestava-se
atenção, e sorria-se, e fingia-se que se tinha uma categoria
inferior. Eidel, afinal, era membro do círculo interno, do
corpo de elite da guarda privada de Hitler. Eidel alisou o
uniforme, que parecia ter sido passado a ferro há pouco. Ele
disse:
- Espero que lhe tenha feito entender a importância deste
caso, Coronel?
Dietrich acenou com a cabeça. Sentia-se impaciente.
Detestava gabinetes.
Eidel levantou-se, pôs-se em bicos dos pés do modo como um
homem tenta agarrar uma presilha no metropolitano que sabe não
conseguir. Em seguida encaminhou-se para ajanela.
- O Fihrer está decidido a obter esse objecto. E quando
decide uma coisa, claro... - Eidel fez uma pausa, virou-se,
fitou Dietrich. Fez um gesto com as mãos, indicando que tudo
aquilo que passava pelo espírito do Fihrer era incompreensível
para homens inferiores.
- Compreendo - replicou Dietrich, batendo com as pontas dos
dedos na pequena mala para documentos.
- O significado religioso ? importante - disse Eidel. - Não
é que o Fihrer tenha um interesse especial por relíquias
judaicas em si, naturalmente. - E fez outra pausa, rindo de
uma forma estranha, como se o pensamento fosse muito
divertido. - Tem mais interesse no significado simbólico do
artigo, se me compreende.
Ocorreu a Dietrich que Eidel mentia, ocultando alguma coisa:
era difícil imaginar que o Fihrer
estivesse interessado em
qualquer coisa pelo seu valor simbólico. Olhou atentamente
para o telegrama banal que Eidel lhe deixara ler há alguns
minutos.
Em seguida lançou de novo um olhar ao retrato de Hitler, que
era sério,sinistro.
Eidel, com os modos de um professor universitário de uma
cidade pequena, disse:
- Temos agora de tratar da questão do conhecimento de
peritos.
- Exactamente - disse Dietrich.
- Vamos tratar, especificamente, da competência de peritos
em arqueologia.
Dietrich não disse nada. Viu onde aquilo ia dar. Viu aquilo
que exigiam dele.
Ele replicou:
- Receio que isso não esteja ao meu alcance.
Eidel esboçou um sorriso.
- Mas tem ligações, segundo me informaram.-Tem relações com
as maiores autoridades nesse campo, não é verdade?
- É Uma questão a debater.
- Não há tempo para esse tipo de debate - disse Eidel. - Não
estou aqui para discutir o que constitui a competência dos
peritos, Coronel. Estou aqui, como o senhor, para obedecer a
uma ordem importante.
- Não precisa de me lembrar isso - replicou Dietrich.
- Eu sei - disse Eidel, encostando-se à secretária. - E sabe
que estou a falar de um certo perito que é seu conhecido e
cujos conhecimentos neste campo de interesse particular serão
muito valiosos para nós. Correcto?
- O francês? - disse Dietrich.
- Evidentemente.
Dietrich ficou calado durante algum tempo. Sentia-se um
pouco constrangido. Era como se o rosto de Hitler o censurasse
pela sua hesitação.
- É difícil encontrar o francês. Como qualquer mercenário,
ele considera o mundo como lugar de emprego.
- Quando teve notícias dele pela última vez?
Dietrich encolheu os ombros.
- Na América do Sul, suponho.
Eidel examinou as costas das mãos, magras e claras, mas
grosseiras, como as mãos de alguém que não fora capaz de
concretizar a ambição de se tornar pianista de concertos. Ele
disse:
- Tem de encontrá-lo: percebe o que estou a dizer? Sabe de
onde vem esta ordem?
- Tenho de encontrá-lo - disse Dietrich. - Mas aviso já...
- Não me avise, Coronel.
Dietrich sentiu a garganta a ficar seca. Este amanuense
imbecil e feito à pressa. Adoraria estrangulá-lo, enfiar-lhe
aquelas pastas de cartão pelas goelas abaixo até sufocar.
- Muito bem, previno-o... o preço do francês é alto.
- Não tem importância - disse Eidel.
- E a sua honestidade ? duvidosa.
- Isso é uma coisa de que deverá tratar. A questão, coronel
Dietrich, é que terá de o encontrar elevá-lo à presença do
Fihrer. Mas isso deverá ser feito com rapidez. Deveria ter
sido feito ontem, se me entende.
Dietrich fitou a persiana da janela. As vezes ficava cheio
de medo que o Fihrer se tivesse rodeado de lacaios e loucos
como Eidel. Quando estavam envolvidos seres humanos isso
implicava uma certa obscuridade de julgamento.
Eidel sorriu, como se estivesse divertido com o embaraço de
Dietrich. Em seguida disse:
- A rapidez é importante, claro. Obviamente que outros
partidos estão interessados. Esses partidos não representam os
melhores interesses do Reich. Faço-me entender?
- Entendido - replicou Dietrich. Dietrich pensou por
instantes no francês; sabia, apesar de não ter dito a Eidel,
que Belloq se encontrava no sul de França naquele preciso
momento. A perspectiva de fazer negócio com Belloq era aquilo
que o aterrava. Havia uma certa brandura no homem que encobria
uma crueldade profunda, um egoísmo, um desrespeito por
filosofias, crenças, política. Se servisse os interesses de
Belloq, era, portanto, válido.
- Haverá que tratar de outros grupos, se emergirem - dizia
Eidel. - Não se deve preocupar com eles.
- Então será assim que os tratarei - disse Dietrich.
Eidel pegou no telegrama e deu uma vista de olhos.
- Aquilo de que falâmos não sai destas quatro paredes,
Coronel. Não preciso de dizer, pois não?
- Não precisa de dizer - repetiu Dietrich, irritado.
Eidel sentou-se de novo e olhou fixamente para o outro homem
do outro lado do monte de pastas. Ficou calado por instantes.
E depois fingiu-se surpreendido quando viu Dietrich sentado na
frente dele.
- Ainda aqui está, Coronel?
Dietrich agarrou na pasta de documentos e levantou-se. Era
difícil não sentir ódio por aqueles palhaços de uniforme
preto. Agiam como se fossem os donos do mundo.
- Ia sair agora mesmo - disse Dietrich.
- Heil Hitler - exclamou Eidel, erguendo a mão com o braço
rígido.
Junto à porta Dietrich respondeu com as mesmas palavras.
CAPÍTULO III
CONNECTICUT
Indiana Jones estava sentado no seu gabinete no Marshall
College.
Concluíra há pouco a primeira palestra do ano para
Arqueologia 101, e correra bem. Corria sempre bem. Adorava
ensinar e sabia que era capaz de transmitir a sua paixão pela
matéria aos seus alunos. Mas naquele momento estava inquieto e
a sua inquietação perturbava-o. Porque tinha consciência
daquilo que desejava fazer.
Indy colocou os pés em cima da secretária, derrubou
deliberadamente alguns livros, em seguida levantou-se e andou
a passo de um lado para o outro no gabinete - vendo-o não como
o lugar íntimo que era habitualmente, o seu refúgio, o seu
esconderijo, mas como a cela de um desconhecido.
"Jones", disse para si mesmo.
"Indiana Jones, toma juízo."
Os objectos à sua volta pareceram espalhar o seu significado
por algum tempo. O enorme mapa de parede da América do Sul
tornou-se uma mancha surrealista, a concepção dadaísta de um
artista. Repentinamente a réplica do Ídolo em barro pareceu
ridícula, horrível. Pegou nela e pensou: "Por uma coisa como
esta arriscaste a vida? Deves ter um parafuso essencial solto.
Um parafuso fora do lugar."
Segurou a réplica do Ídolo, fitando-a com o pensamento
distante.
Aquela paixão louca pela antiguidade apoderou-se dele como
algo profano, antinatural. Uma paixão insane, com o sentido da
História - mais que o sentido, a necessidade de estender a mão
e de lhe tocar, de a segurar, de a compreender através das
relíquias e artefactos, ver-se perseguido pelos rostos de
artesãos e artífices há muito falecidos, assombrado pela ideia
das mãos que criaram esses objectos, por dedos que há muito se
transformaram em esqueletos, em pó. Mas nunca esquecidos,
nunca verdadeiramente esquecidos, desde que se exista com essa
paixão irracional.
Por instantes os sentimentos antigos apoderaram-se de novo
dele, diversos, assaltaram-no, numa excitação que jamais
sentira desde que fora estudante. Quando? Há quinze anosó
Dezesseisó Vinte?
Não tinha importância: o tempo tinha um significado
diferente para ele do que tinha para a maioria das pessoas. O
tempo era algo que se descobria através dos segredos que
enterrara - em templos, em ruínas, sob rochas e pó e areia. O
tempo estendia-se, tornava-se elástico, criando aquela
sensação extraordinária de que tudo aquilo que existira estava
ligado a tudo aquilo que existia naquele momento; e a morte
era fundamentalmente desprovida de significação por causa
daquilo que se deixava para trás.
Desprovida de significação.
Lembrou-se de Champollion a trabalhar na pedra Rosetta, da
admiração de decifrar finalmente hieróglifos antigos.
Lembrou-se de Schliemann que descobriu o lugar onde existira
Tróia.
Flinders Petrie que fizera escavações no cemitério
prê-dinástico em Nagada. Wooley que descobrira o cemitério
real em Ur no Iraque. Carter e lorde Carnarvon que encontrara
por acaso o túmulo de Tutankhamon.
Foi aí que tudo começara. Naquela consciência da descoberta,
que era como o centro de um furacão. E era-se arrastado,
levado, transportado ao passado naquela máquina do tempo que
os escritores da fantasia não conseguiam compreender: a nossa
máquina do tempo, a nossa linha privada que nos ligava ao
passado vital.
Equilibrou a réplica do Ídolo no centro da mão e fitou-a
como se fosse um inimigo pessoal. "Não", pensou ele, "és o teu
pior inimigo, Jones. Foste levado porque tiveste acesso a
metade de um mapa que se encontrava nos papéis de Forrestal-e
porque quiseste confiar desesperadamente nos dois rufias que
tinham a outra metade."
"Moron", pensou.
E Belloq. Belloq era provavelmente o mais astuto. Belloq
tinha a argúcia para aproveitar as oportunidades. Belloq
sempre tivera essa qualidade - como as cobras pelas quais se
tem uma fobia. Saindo, sem ser visto, de debaixo de uma pedra,
o predador que desliza, agarrando sempre aquilo que não
procurara.
Naquele momento tudo o que se formou no centro do espírito
foi uma imagem de Belloq - aquele rosto delicado, belo, o tom
escuro dos olhos, o sorriso que ocultava a astúcia.
Recordou outros encontros com o francês. Recordou-se da
licenciatura, quando Belloq se candidatou ao Prêmio da
Sociedade de Arqueologia, apresentando um trabalho sobre
estratigrafia-em cuja base Indy reconheceu uma obra sua. E de
alguma forma Belloq plagiara-o, conseguira acesso a ela de
qualquer maneira. Indy não podia provar nada porque teria
sido um caso de maledicência, um ataque de inveja.
1934. Verão negro. Passara meses a planear uma escavação no
Deserto al Khali, na Arábia Saudita. Meses de trabalho, de
preparação e a pedir fundos, juntando as peças, argumentando
que os seus instintos em relação à escavação estavam certos,
que se iriam descobrir os vestígios de uma cultura nómada
naquele lugar árido, uma cultura anterior à era de Cristo. E
depois?
Ele fechou os olhos.
Mesmo naquele momento a recordação encheu-o de amargura.
Belloq estivera lá antes dele.
Belloq escavara o lugar.
Era verdade que o francês descobrira pouca coisa de
significado histórico nas escavações, mas não era essa a
questão.
A questão era que Belloq o roubara uma vez mais. E uma vez
mais não sabia ao certo como poderia provar o roubo.
E depois o Ídolo.
Indy levantou os olhos, interrompido no seu devaneio, quando
a porta do gabinete se abriu lentamente.
Apareceu Marcus Brody, com uma expressão de prudência
estampada no rosto, uma prudência que era parte preocupação.
Indy olhou atentamente para Marcus, conservador do National
Museum, o seu melhor amigo.
- Indiana - disse ele numa voz branda.
Ergueu a réplica do Ídolo, como se fosse oferecê-la ao outro
homem, depois, repentinamente, deitou-a na lata do lixo que
estava no chão.
- Tive o original na minha mão, Marcus. O original. - Indy
recostou-se, com os olhos fechados, massajando vigorosamente
as pálpebras com os dedos.
- Tu contaste-me, Indiana. Já me contaste - disse Brody. -
Assim que regressaste. Lembras-te?
- Eu posso recuperá-lo, Marcus. Posso recuperá-lo. Pensei
nisso. Belloq tem de o vender, certo? Por isso, onde vai
vendê-lo? Huhá
Brody olhou para ele com uma expressão de tolerância.
- Onde, Indiana?
- Marraquexe, Marraquexe, é aí. - Indy levantou-se,
indicando diversas figuras que estavam em cima da secretária.
Aqueles eram os artigos que tirara do Templo, os fragmentos e
as peças que juntara rapidamente. - Olha. Devem valer alguma
coisa, Marcus. Devem render o dinheiro suficiente para poder
ir a Marraquexe, certo?
Brody mal olhou para os artigos. Em vez disso, estendeu a
mão e pousou-a no ombro de Indy, um toque de amizade e
preocupação.
- O museu comprá-los-á, como sempre. Incondicionalmente. Mas
falaremos do Ídolo mais tarde. Neste momento quero que
conheças umas pessoas. Vieram de muito longe para te verem,
Indiana.
- Que pessoas?
Brody replicou:
- Vieram de Washington, Indiana. Só para falarem contigo.
- Quem são? - perguntou Indy com ar triste.
- Dos serviços secretos do exército.
- O quê? Estou metido nalgum sarilho?
- Não. Pelo contrário. Parece que precisam da tua ajuda.
- A única ajuda em que estou interessado é em obter o
dinheiro para ir a Marraquexe, Marcus. Estes objectos devem
valer alguma coisa.
- Mais tarde, Indiana. Mais tarde. Primeiro quero que
recebas essas pessoas.
Indy paroujunto ao mapa da América do Sul.
- Sim - disse ele. - Eu recebo-as.
- Estão à espera na sala de conferências.
Saíram para o corredor.
Uma rapariga bonita apareceu na frente de Indy. Trazia uma
rima de livros e fingia ser estudiosa, eficiente. Indy
animou-se quando a viu.
- Professor Jones - dizia ela.
- Uh...
- Estava a contar que pudéssemos ter uma conversa - disse
ela timidamente, lançando um olhar a Marcus Brody.
- Sim, claro, Susan, sei que disse que conversaríamos.
Marcus Brody disse:
- Agora não. Agora não, Indiana. - E virou-se para a
rapariga. - O professor Jones tem de ir a uma conferência
importante, minha cara. Por que não lhe telefona mais tarde?
- Sim - murmurou Indy. - Regressarei ao meio-dia.
A rapariga sorriu, desapontada, depois afastou-se seguindo
pelo corredor. Indy viu-a ir embora, admirando as pernas, as
barrigas das pernas torneadas, os tornozelos magros. Sentiu
Brody puxar-lhe a manga.
- Bonita. Superior aos teus padrões habituais, Indiana: Mas
mais tarde. Está bem?
- Mais tarde - disse Indy, desviando o olhar da rapariga com
relutância.
Brody abriu a porta da sala de conferências. Sentados junto
do estrado estavam dois oficiais do exército uniformizados.
Viraram a cara ao mesmo tempo quando a porta se abriu.
- Se esta é a comissão da inspecção,já fiz o serviço militar
- disse Indy.
Marcus Brody conduziu Indy a uma cadeira no estrado.
- Indiana, gostaria de te apresentar o coronel Musgrove e o
major Eaton. São as pessoas que vieram de Washington para
falar contigo.
Eaton disse.
- Prazer em o conhecer. Ouvi falar muito em si, professor
Jones. Doutor em Arqueologia, perito em ciências ocultas,
possuidor de antiguidades raras.
- É uma forma de colocar a questão - disse Indy.
- O possuidor de antiguidades raras, parece intrigante -
comentou o major.
Indy lançou um olhar a Brody, que disse:
- Tenho a certeza de que tudo aquilo que o professor Jones
faz para o nosso museu respeita rigorosamente as linhas gerais
do Tratado para a Protecção de Antiguidades.
- Oh, tenho a certeza disso - comentou o major Eaton.
Musgrove disse:
- É um homem de muitos talentos, Professor.
Indy fez um gesto de protesto, acenando com uma mão. Que
queriam aqueles indivíduos?, O major Eaton disse:
- Sei que estudou sob a orientação do professor Ravenwood na
Universidade de Chicago?
- Sim.
- Tem alguma ideia do lugar onde ele se encontra
presentemente?
Ravenwood. O nome trouxe-lhe recordações com uma violência
que não agradou a Indy.
- Rumores, nada mais. Creio que ouvi dizer que estava na
sia. Não sei.
- Disseram-nos que era amigo íntimo dele - disse Musgrove.
- Sim. - Indy coçou o queixo. - éramos amigos... Porêm não
nos falâmos durante anos. Receio que tenhamos tido o que se
poderia chamar uma desavença. - "Uma desavença", pensou.
"Havia uma maneira de colocar a situação. Uma desavença...
parecia mais um corte total". E então lembrou-se de Marion,
uma recordação indesejada, algo que ainda tinha de arrancar do
estrato mais profundo do espírito. Marion ftavenwood, a
rapariga com os olhos maravilhosos.
Os oficiais trocavam palavras em voz baixa, decidindo
alguma coisa. Em seguida Eaton virou-se e ficou com um ar
solene e disse:
- Aquilo que lhe vamos dizer é estritamente confidencial.
- Com certeza - disse Indy. Ravenwood... onde se encaixava o
velho naquele frágil enigma? E quando ? que alguém iria
directo ao assunto?
Musgrove disse:
- Ontem, uma das nossas bases europeias interceptou um
comunicado alemão enviado do Cairo para Berlim. A notícia que
continha era obviamente excitante para os agentes alemães no
Egipto. - Musgrove olhou para Eaton, esperando que este
continuasse a narrativa, como se cada um fosse capaz de
transmitir apenas certas informações de cada vez.
Eaton disse:
- Não sei bem se lhe estou a dizer uma coisa que já sabe,
professor Jones, quando menciono o facto de os Nazis terem
equipas de arqueólogos que percorrem o mundo nestes dois
últimos anos...
- Não me passou despercebido.
- Claro. Parece que procuram freneticamente qualquer tipo de
artefacto religioso que possam obter. Hitler, segundo os
relatórios dos nossos serviços secretos, até tem um adivinho,
se o que dizem for verdade. E parece que neste momento está em
curso uma espécie de escavação arqueológica, ultra-secreta, no
deserto próximo do Cairo.
Indy acenou com a cabeça. Aquilo estava a dar-lhe sono.
Tinha conhecimento da preocupação aparentemente infinita de
Hitler em adivinhar o futuro, extrair ouro do chumbo, em busca
de elixir, ou o que quer que fosse. "é só dizerem", pensou, "e
se for suficientemente estranho, então de certeza que o
homenzinho louco de bigode ficará interessado".
Indy viu Musgrove tirar uma folha da pasta. Segurou-a por
instantes, depois disse:
- Este comunicado contém algumas informações relacionadas
com a actividade no deserto, mas não sabemos que conclusão
podemos tirar. Pensâmos que talvêz lhe dissesse alguma coisa.
E entregou a folha a Indy. A mensagem dizia:
ACTIVIDADE DE DESENVOLVIMENTO TANIS. CONSIGAM O FLORÍO,
BASTÃO DE RÁ, ABNER RAVENWOOD, E. U.
Ele leu uma vez mais as palavras, com o espírito
repentinamente lúcido, repentinamente vivo. Levantou-se, olhou
para Brody e disse, com uma expressão de incredulidade:
- Os Nazis descobriram Tanis.
O rosto de Brody ficou sério e pálido.
Eaton replicou:
- Desculpe. Agora baralhou-me. Que significa Tanis para si?
Indy atravessou o estrado em direcção ájanela,já com o
espírito agitado. Abriu bruscamente ajanela e inspirou o ar
frio da manhã, sentindo-o agradavelmente fresco nos pulmões.
"Tanis. O Bastão da RÁ. Ravenwood". Vieram-lhe ao pensamento
as antigas lendas, as fábulas, as histórias. Foi atacado por
uma barragem de conhecimentos, informações que armazenara no
cérebro durante anos - tantas que as quis tirar rapidamente,
deixá-las para trás. "Tem calma", pensou. "Conta-lhes devagar
para que compreendam". Virou-se para os oficiais e disse:
- Vão ter dificuldade em perceber muitas coisas. Talvez. Não
sei. Dependerá das vossas crenças pessoais, desde já é o que
posso dizer-lhes. Está bem? - Fez uma pausa, olhando para os
rostos sem expressão.
- A cidade de Tanis é um dos possíveis lugares onde estará a
Arca Perdida...
Musgrove interrompeu:
- Arca? Como a de Noé?
Indy abanou a cabeça.
- Não ? a de Noé. Estou a falar da Arca da Aliança. Estou a
falar da arca que os Israelitas usaram para transportar os Dez
Mandamentos.
Eaton disse:
- DÉ uma ajuda. Refere-se aos Dez Mandamentos?
- Refiro-me às placas de pedra gravadas, as originais que
Moisés trouxe do Monte Horeb. Aquelas que disse que partiu
quando viu a decadência dos Judeus. Enquanto ele estava no
cimo da montanha a comunicar com Deus e Este lhe revelava a
lei, o resto do seu povo fazia orgias e construía Ídolos. Por
isso ficou furioso e despedaçou as placas, certo?
Os rostos dos militares estavam impávidos. Indy sentiu
vontade de lhes incutir o entusiasmo que ele próprio começava
a sentir.
- Então os Israelitas colocaram os bocados na Arca e
levaram-na para onde quer que fossem. Quando se instalaram em
Canaã, a Arca foi colocada no templo. Ficou lá durante anos...
depois desapareceu.
- Onde? - perguntou Musgrove.
- Ninguém sabe quem a levou nem quando.
Brody, falando com mais paciência que Indy, disse:
- Um faraó egípcio invadiu Jerusalém cerca de 926 a. C.,
Shislak era o seu nome. Pode tê-la levado de novo para a
cidade de Tanis...
Indy interrompeu-o:
- Onde a poderá ter escondido numa câmara secreta, a que
chamavam Poço das Almas.
Fez-se silêncio no salão.
Então Indy disse:
- Seja como for, é um mito. Mas parece que aconteciam sempre
coisas más aos forasteiros que mexiam na Arca. Pouco tempo
depois de Shislak ter regressado ao Egipto, a cidade de Tanis
foi consumida por uma tempestade de areia que durou um ano.
- A maldição obrigatória - comentou Eaton.
Indy ficou aborrecido com o cepticismo do homem.
- Se prefere assim - disse ele, tentando não perder a
paciência. - Mas, durante a Batalha de Jericó, os padres
hebreus transportaram a arca pela cidade sete dias antes de as
muralhas ruírem. E, quando os Filisteus supostamente se
apoderaram da Arca, fizeram com que tudo se abatesse sobre
eles... incluindo pragas de erupções e pragas de ratos.
Eaton disse:
- Isto é tudo muito interessante, suponho. Mas por que razão
seria mencionado um americano num telegrama nazi, se
conseguimos decifrar o essencial?
- Ele é o perito em Tanis - replicou Indy. - Tanis era a
obsessão dele. Até coleccionou algumas das suas relíquias. Mas
nunca encontrou a cidade.
- Por que razão os Nazis se interessariam por ele? -
perguntou Musgrove.
Indy fez uma curta pausa.
- Parece-me que os Nazis procuram o florão do Bastão de RÁ.
E pensam que está na posse de Abner.
- O Bastão de RÁ - disse Eaton. - É tudo um pouco
complicado.
Musgrove, que parecia mais interessado, curvou-se na
cadeira.
- Que é o Bastão de RÁ, professor Jones?
- Eu faço um desenho - disse Indy. Dirigiu-se ao quadro e
começou a fazer rapidamente um esboço. Quando fez um traço de
um lado ao outro com o giz, disse:
- Supõe-se que o Bastão de RÁ seja a chave para a
localização da Arca. Uma pista muito engenhosa neste caso. Era
basicamente um bastão comprido, talvez com um metro e oitenta
e dois de altura, ninguêm sabe ao certo.
Em todo o caso, encimado por um florão elaborado com a forma
do sol e com um cristal no centro. Estão a perceber? Era
preciso levar o bastão para uma sala de mapas na cidade de
Tanis... esta continha a planta completa da cidade em
miniatura. Quando se colocava o bastão num determinado lugar
nessa sala a certa hora do dia, o sol incidia no cristal do
florão e projectava um raio de luz no mapa, dando a
localização do Poço das Almas...
- Onde esconderam a Arca - disse Musgrove.
- Exactamente. Deve ser por isso que os Nazis querem o
florão. O que explica o nome de Ravenwood no telegrama.
Eaton levantou-se e começou a andar às voltas cheio de
nervosismo.
- Afinal qual é o aspecto da Arca?
- Eu mostro-lhe - disse Indy. Foi rapidamente para o fundo
do salão, encontrou um livro, folheou-o até encontrar uma
gravura grande e colorida. Mostrou-a aos dois oficiais.
Fitaram a ilustração, que representava uma cena da batalha
bíblica, em silêncio. O exército dos Israelitas vencia o
inimigo; na primeira fila das tropas israelitas estavam dois
homens que transportavam a Arca da Aliança, uma arca de ouro,
oblonga, coroada com dois querubins de ouro. Os Israelitas
transportavam a arca com varas compridas metidas em argolas
especiais nos cantos. Um objecto de extraordinária beleza, mas
mais impressionante que o seu aspecto era o feixe de luz
branca muito forte que saía das asas dos anjos, um feixe
luminoso que penetrava nas fileiras do exército em retirada,
parecendo criar terror e devastação.
Musgrove disse, impressionado:
- Que é aquilo que parece sair das asas?
Indy encolheu os ombros.
- Quem sabe? Um raio. Fogo. O poder de Deus. Seja o que for
que lhe chamemos, parece que era capaz de arrasar montanhas e
destruir regiões inteiras. Segundo Moisés, um exército que
transportasse a Arca na fila da frente ficava invisível. -
Indy olhou para o rosto de Eaton e concluiu:
"Este tipo não tem imaginação. Nada inflamará este
indivíduo."
Eaton encolheu os ombros e continuou a fitar a ilustração.
"Descrença", pensou Indy. "Ceticismo militar."
Musgrove disse:
- Qual é a sua opinião relativamente a isto... ao suposto
poder da Arca, Professor?
- Como disse, depende das nossas crenças. Depende de
aceitarmos o mito como tendo uma base na verdade.
- Está a esquivar-se - disse Musgrove e sorriu.
- Tenho um espírito aberto - respondeu Indy.
- Um louco como Hitler, porém... Talvez acreditasse
realmente nesse poder, certo? Talvez comprasse tudo.
- Possivelmente - disse Indy. Observou Eaton por instantes,
subitamente dominado por uma sensação de antecipação
familiar, pela subida da temperatura. A cidade perdida de
Tanis. O Poço das Almas. A Arca." Havia uma melodia alusiva, e
atraía-o como o canto sedutor de uma sereia.
- Podia pensar que se possuísse a Arca a máquina militar
seria invencível - disse Eaton, mais para ele mesmo que para
qualquer outra pessoa. - Estou a ver, se engolir o conto de
fadas, pelo menos sentiria a vantagem psicológica.
Indy disse:
- Há uma outra coisa. Segundo a lenda, a Arca será
recuperada no momento da vinda do verdadeiro Messias.
- O verdadeiro Messias - repetiu Musgrove.
- Provavelmente ? isso que Hitler pensa que é - comentou
Eaton.
Fez-se silêncio no salão. Indy olhou uma vez mais para a
ilustração, para a intensidade da luz que irradiava das asas
dos anjos e queimava os inimigos em fuga. Um poder acima de
todos os poderes. Indefinível. Fechou os olhos um segundo. E
se fosse verdade? Se esse poder existisse mesmo? "Muito bem,
tenta ser racional, tenta pensar como Eaton, atribuindo aquilo
a uma lenda antiga, posta a circular por um bando de
Israelitas invejosos. Uma táctica intimidatária contra os
inimigos, uma espécie de guerra psicológica. Mesmo assim,
havia qualquer coisa que não podia ser ignorada, ser posta de
parte."
Ele abriu os olhos e ouviu Musgrove suspirar e dizer:
- Ajudou-nos muito. Espero que possamos visitá-lo de novo se
precisarmos.
- A qualquer hora, senhores. Sempre que queiram - disse
Indy.
Despediram-se com um aperto de mão e em seguida Brody
acompanhou os oficiais até à porta. Só, no salão deserto, Indy
fechou o livro. Pensou por instantes, procurando ao mesmo
tempo reprimir a excitação que sentia. "Os Nazis descobriram
Tanis", e aquelas palavras rodopiaram no seu cérebro.
Susan, a rapariga, disse:
- Espero sinceramente não o ter embaraçado quando estava com
Brody. Fui tão... clara.
- Não foi clara - disse Indy.
Estavam sentados na sala de estar desarrumada da pequena
casa prefabricada de Indy. A sala estava cheia de recordações
de viagens, de escavações, vasilhas de barro restauradas e
minúsculas estátuas e fragmentos de porcelana e mapas e globos
- "tão desarrumada", pensava ele Às vezes, "como a minha
vida".
A rapariga levantou os joelhos, apertando-os com as mãos,
encostando a cara a eleS. "Como um gato", pensou ele. "Um
gatinho satisfeito."
- Adoro esta sala - disse ela. - Adoro a casa toda... mas
sobretudo esta sala.
Indy levantou-se do sofá e, com as mãos nos bolsos, andou de
um lado para o outro na sala. A rapariga, por qualquer motivo,
era uma intrusa, ao contrário do que se passava noutras
alturas. Por vezes, quando ela falava, deixava de a ouvir.
Escutava apenas o som da sua voz e não apreendia o significado
das palavras. Serviu-se de uma bebida, bebeu lentamente,
engoliu; ardeu-lhe no peito-uma sensação de ardor agradável,
como o calor de um pequeno sol a brilhar bem no fundo.
Susan disse:
- Esta noite parece tão distante, Indy.
- Distante?
- Está preocupado com alguma coisa. Não sei. - Ela encolheu
os ombros.
Ele caminhou na direcção do rádio, ligou, quase sem ouvir o
rumor de alguém que fazia um relato em voz alta para Maxwell
House. A rapariga mudou a estação e depois ouviu-se música de
dança tocada por um conjunto. "Distante", pensou ele. "Muito
mais longe do que poderia imaginar. A milhas de distância.
Oceanos e continentes e séculos."
Repentinamente pensava em Ravenwood, na última conversa que
tinham tido, na fúria terrível do velho, na sua ira. Quando
escutava os ecos daquelas vozes, sentia-se triste, desapontado
com ele mesmo; aceitara uma confiança frágil e despedaçara-a.
"A Marion está apaixonada por si, e você aproveitou-se
disso".
"Tem 28 anos, provavelmente um homem adulto e tirou partido
do entusiasmo louco de uma rapariga e aproveitou-se dele para
satisfazer os seus próprios interesses só porque ela pensa que
está apaixonada por si."
Susan disse:
- Se quer que eu me vá embora, Indy, eu vou. Se quiser ficar
só, eu compreendo.
- Não tem importância. A sério. Fique.
Ouviu-se um toque na porta; a varanda rangeu.
Indy saiu da sala e dirigiu-se ao pátio de entrada e viu
Marcus Brody. Tinha um sorriso estranho, como se tivesse
notícias que desejava guardar, saborear enquanto pudesse.
- Marcus - disse Indy. - Não contava contigo.
- Penso que contavas - disse Brody, empurrando a porta
dupla.
- Vamos para o gabinete - disse Indy.
- Por que não vamos para a sala de estar?
- Porque tenho companhia.
- Ah. E que mais?
Entraram no gabinete.
- Preparaste aquilo, não foi? - inquiriu Indy.
Brody sorriu.
- Querem que encontres a Arca antes dos Nazis.
Por algum tempo Indy não conseguiu dizer nada. Teve uma
sensação de exaltação, uma consciência do triunfo. A Arca.
Respondeu:
- Creio que tenho esperado toda a vida para ouvir uma coisa
como essa.
Brody olhou para o copo com bebida na mão de Indy por
instantes.
- Falaram com os superiores em Washington. Depois
consultaram-me. Precisam de ti, Indiana. Querem que sejas tu.
Indy sentou-se à secretária, olhou para dentro do copo, em
seguida lançou um olhar pela sala. Subitamente uma estranha
sensação apoderou-se dele; aquilo era mais que livros, artigos
e mapas, mais especulação, argumento acadêmico, discussão,
debate - uma sensação de realidade substituíra todas as
palavras e imagens.
Brody disse:
- Claro, tendo em conta o espírito militar, não acreditam
inteiramente no poder da Arca e etc. Não pretendem aceitar
essas mitologias. Afinal, são soldados, e os soldados gostam
de pensar que são realistas de linha dura. Querem a Arca... e
passo a citar, - "se for capaz... por causa do seu significado
histórico e cultural", e porque um objecto tão valioso não
pode ser propriedade de um regime fascista.", Ou palavras com
esse significado.
- Os seus motivos não interessam - disse Indy.
- Além disso, pagarão bem...
- Não quero saber do dinheiro, Marcus. - Indy levantou uma
mão, apontando rapidamente para a sala. - AArca representa o
aspecto elusivo que eu sinto em relação à arqueologia...
tu sabes, a História que esconde os seus segredos. Coisas
que esperam por ser descobertas. Não troco isso pelos motivos
deles nem pelo dinheiro. - E fez estalar os dedos.
Brody acenou com a cabeça, concordando.
- O museu, claro, ficará com a Arca.
- Evidentemente.
- Se existir... - Brody calou-se por instantes, em seguida
acrescentou. - Não devemos ter muitas esperanças.
Indy pôs-se de pé.
- Primeiro tenho de encontrar Abner. Esse seria o passo
lógico. Se Abner tiver o florão, então terei de lhe deitar a
mão antes que a oposição o faça. Faz sentido, não faz? Sem o
florão, voilá, não há Arca. Por isso onde encontrarei Abner? -
Calou-se, percebendo que falara muito depressa. - Creio que
sei onde devo começar a procurar...
Brody disse:
- Passou muito tempo, Indiana. Tudo muda.
Indy fitou o outro homem um segundo. Considerou o comentário
inigmático: "Tudo muda". E então compreendeu que Marcus Brody
estava a falar de Marion.
- Talvez não esteja tão irritado contigo - disse Brody. -
Por outro lado, pode sentir ainda ressentimento. Nesse caso, é
razoável pensar que não quererá dar-te o florão. Se de facto o
tiver.
- Esperemos que as coisas corram pelo melhor, meu amigo.
- Sempre otimista, não?
- Nem sempre - disse Indy. - O otimismo pode ser fatal.
Brody calara-se, andando de um lado para o outro na sala,
folheando as páginas dos livros. Em seguida olhou para Indy
com um ar sério.
- Quero que tenhas cuidado, Indiana.
- Eu tenho sempre cuidado.
-Às vezes és bastante imprudente. Sabes isso tão bem quanto
eu. Mas não procuraste nada semelhante à Arca. É mais
importante. Mais perigoso. - Brody fechou bruscamente um
livro, como se fosse para realçar esse ponto. - Não sou
céptico como esses militares... penso que a Arca encerra
segredos. Creio que tem segredos perigosos.
Durante um segundo Indy teve vontade de dizer algo
irreverente, algo sobre o tom melodramático da voz do outro
homem. Mas viu pela expressão no rosto de Brody que o homem
estava a falar a sério.
- Não quero perder-te, Indiana, por maior que seja o prêmio.
Percebes?
Os dois homens deram um aperto de mão.
Indy notou que a pele de Brody estava cheia de suor.
Sozinho, Indy ficou em pé até altas horas da noite, sem
conseguir dormir, sem conseguir deixar de pensar. Percorreu os
compartimentos da casa, abrindo e fechando as mãos. "Passados
tantos anos", pensou, "tanto tempo depois... Ravenwood
ajudá-lo-ia? Se ele tivesse o florão, viria Ravenwood em seu
auxílio?" E por detrás daquelas perguntas ainda havia outra.
"Marion ainda viveria com o pai?", Continuou a andar de sala
em sala até que se sentou por fim no gabinete e pôs os pés em
cima da secretária, olhando para os diversos obj ectos
espalhados na sala. Em seguida fechou os olhos por instantes,
tentando raciocinar, e levantou-se. Tirou um exemplar da velha
revista de Ravenwood de uma estante, um presente do velho dos
tempos em que ainda eram amigos. Indy folheou-a, reparando
numa lista de desilusões, uma escavação que se gorara, outra
que revelara apenas as pistas mais tênues, mais desesperadoras
do paradeiro da Arca. As linhas gerais de uma obsessão
naquelas páginas; a procura dilacerante de um objecto perdido
da História. Mas a Arca corria-lhe no sangue e enchia o ar que
respirava. E compreendeu a sinceridade do velho, a sua
devoção, a ânsia que o levara a andar de país em país, de
esperança em esperança. As páginas revelavam tudo isso-mas não
havia referência ao florão em parte alguma. Nada.
O último artigo da revista mencionava o Nepal, a perspectiva
de outra escavação. "Nepal", pensou Indy; "os Himalaias, a
região mais inóspita da terra. E muito distante daquilo que os
Alemães realizavam no Egipto. Talvez Ravenwood tivesse
encontrado lá alguma coisa por acaso, uma pista para descobrir
a Arca. Talvez tudo o que se dizia de Tanis estivesse mal.
Talvez".
"Nepal. Teria de começar por lá".
Era um começo.
Folheou a revista mais algum tempo, depois pousou-a,
desejando saber como Abner Ravenwood reagiria com ele.
E como reagiria Marion.
CAPÍTULO IV
BErCHTESGADEN, ALEMANHA
Dietrich sentia-se constrangido na companhia de Renê Belloq.
Não era tanto a falta de confiança que sentia no francês, mas
a sensação que tinha de que Belloq tratava quase tudo com
igual cinismo; era mais o estranho carisma de Belloq que
preocupava Dietrich, a ideia de que de certa forma sentice
vontade de simpatizar com ele, que o atraía contra a sua
própria vontade.
Estavam sentados na antecâmara em Berchtesgaden, o refúgio
do Fihrer na montanha, um lugar que Dietrich nunca visitara e
que o apavorava. Mas reparou que Belloq, recostando-se à
vontade, com as pernas compridas estendidas, não evidenciava
nenhum sentimento semelhante. Antes pelo contrário-Belloq
parecia estar sentado descontraidamente num café francês
vulgar, num lugar como aquele em que Dietrich o encontrara em
Marselha. "Sem respeito", pensou Dietrich. "Sem sentido da
importância das situações.", Estava irritado com a atitude do
arqueólogo.
Ouviu o tiquetaque de um relógio, os sons suaves dos
carrilhões. Belloq suspirou, rodou as pernas e olhou para o
relógio de pulso.
- Por que esperamos, Dietrichá - perguntou ele.
Dietrich não pôde evitar falar em voz baixa.
- O Fihrer receber-nos-á quando estiver pronto, Belloq. Deve
pensar que não tem nada melhor para fazer que conversar
consigo sobre uma peça de museu.
- Uma peça de museu. - Belloq falou com evidente desprezo,
olhando para o alemão do outro lado da sala. "Como sabem tão
pouco", pensou. "Como sabem tão pouco de História. Acreditam
em todas as coisas erradas: constroem os arcos monumentais e
exibem os exércitos com andar altivo... sem se aperceberem de
que não se pode criar deliberadamente o temor da História. É
algo que já existe, algo que não se pode aspirar a fabricar
com o aparato do fausto.", A Arca: só de pensar na
possibilidade de descobrir a Arca ficou impaciente. Afinal por
que razão tinha de falar com aquele miserável pintor de casas
alemão?
Por que era obrigado a assistir a uma reunião com o homem se
a escavação já se iniciara no Egipto? Afinal que poderia
aprender com Hitler?
"Nada", pensou. "Absolutamente nada. Talvez fosse uma
palestra pomposa. Uma crítica áspera. Alguma coisa sobre a
grandeza do Reich. Quais seriam os motivos quejustificariam a
posse da Arca por parte dos Alemães, se ela existisse?"
"Que saberiam?", interrogou-se ele.
A Arca não pertencia a lugar nenhum. Se tinha segredos, se
continha o poder que diziam possuir, então queria ser o
primeiro a descobri-la - não era uma coisa que se confiasse de
ânimo leve ao maníaco que estava naquele momento noutra sala
daquela casa da montanha e o fazia esperar.
Suspirou cheio de impaciência, mexendo-se na cadeira.
E em seguida levantou-se, encaminhou-se para a janela e
olhou as montanhas, sem as ver, fitando-as distraidamente.
Pensava no momento de abrir a caixa, de espreitar e
contemplar as relíquias das placas de pedra que Moisés
trouxera do Monte Horeb. Era fácil imaginar a mão a levantar a
tampa, o som da sua própria voz - depois o momento da
revelação.
O momento de uma vida inteira; não havia prêmio mais valioso
que a Arca Bíblica.
Quando se afastou dajanela, Dietrich observava O alemão
reparou na expressão estranha dos olhos de Belloq, o sorriso
tênue na boca que parecia interiorizar-se, como se estivesse a
apreciar uma enorme piada, um pensamento profundo e divertido.
Compreendeu então até onde podia ir a falta de confiança -
mas era um negócio do Fíhrer, fora o Fihrer que pedira Renê
Belloq.
Dietrich ouviu bater o quarto de hora no relógio. De um
corredor algures no interior do edifício, ouviu o ruído de
passos. Belloq virou-se para a porta na expectativa. Mas os
passos deixaram de se ouvir e Belloq praguejou em francês e em
voz baixa.
- Quanto tempo vamos ter de esperar? - perguntou o francês.
Dietrich encolheu os ombros.
- Não me diga - comentou Belloq. - O Fihrer vive de acordo
com um relógio ao qual nós, homens comuns, não temos acesso,
certo? Talvez tenha visões do seu próprio tempo, não será?
Talvez pense que tem um conhecimento profundo da natureza do
tempo? - Belloq fez um gesto de desdêm com uma mão, depois
sorriu.
Dietrich mexeu-se, constrangido, obcecado pela ideia de que
a sala estava sob escuta, que Hitler escutava aquela conversa
disparatada. Ele retorquiu:
- Não tem medo de nada, Belloq?
- Podia responder-lhe, Dietrich, só que duvido que
compreendesse aquilo de que estive a falar.
Ficaram em silêncio. Belloq voltou para junto dajanela.
"Cada momento preso aqui é um momento a menos que passo no
Egipto", pensou. E percebeu que o tempo era importante, que a
notícia das escavações se espalharia, que não poderia ser
guardada em segredo indefinidamente. Só esperava que a
segurança alemã fosse boa.
Olhou de novo para o alemão e disse:
- Não me explicou como se vai conseguir o florão. Preciso de
saber.
- Estão a tratar do caso - disse Dietrich. - Foram enviadas
pessoas...
- Que tipo de pessoas, Dietrich? Há algum arqueólogo?
- Não...
- Assassinos, Dietrich? Alguns dos seus rufias?
- Profissionais.
- Ah, mas não são arqueólogos profissionais. Como vão saber
se descobriram o florão? Como vão saber se não é uma
falsificação?
Dietrich sorriu.
- O segredo está em saber onde procurar, Belloq. Não depende
inteiramente de se saber aquilo que se procura.
- Um homem como Ravenwood não se força com facilidade -
disse Belloq.
- Falei em coerção?
- Não precisava - replicou Belloq. - Aprecio a necessidade
dela, é o que basta. Em certas áreas creio que constatará que
não sou um homem escrupuloso. Na verdade, muito pelo
contrário.
Dietrich acenou com a cabeça. Ouviram-se uma vez mais passos
do lado de fora da porta. Esperou. Abriram a porta. Entrou um
ajudante-de-campo de uniforme, com aquela túnica preta que
Dietrich tanto detestava. Não disse nada, apenas indicou com
um aceno de cabeça que o deveriam seguir.
Belloq dirigiu-se para a porta. "O santuário secreto",
pensou. "O quarto privado do pintorzinho de casas que sonhava
em se tornar o espírito da História, mas que não era capaz de
se aperceber da verdade". A única história em que Belloq
estava interessado, a única história que fazia sentido, estava
enterrada nos desertos do Egipto. "Com sorte", pensou Belloq.
"Com alguma sorte."
Viu Dietrich adiantar-se. Um homem nervoso, com o rosto tão
pálido como o de alguém que vai para a execução com a
dignidade que consegue reunir.
A ideia divertiu Belloq.
CAPÍTULO V
NEPAl
O DC-3 sobrevoou as colinas brancas das montanhas, rasando
de vez em quando bancos de nevoeiro, bancos de nuvens
cerradas. Os picos da cordilheira quase não se viam,
escondidos nas nuvens geladas, nuvens que pareciam imóveis e
sólidas, como se nenhum vento invernoso jamais as pudesse
dispersar.
"Uma rota tortuosa", pensou Indy, olhando através dajanela,
"e muito longa": através dos Estados Unidos até São Francisco,
depois seguindo no China Clipper da Pan Am, chegando a Hong
Kong depois de muitas paragens; outro avião pouco firme até
Xangai e, finalmente, aquele aparelho velho até Katmandu.
Indy tremeu quando imaginou a deslocação e o frio glacial
dos Himalaias. As fendas incríveis, as ravinas e os vales não
assinalados nos mapas, a neve alta que cobria tudo. Um
ambiente inconcebível, e, no entanto, a vida florescia lá, as
pessoas sobreviviam, trabalhavam e amavam. Fechou o que
estivera a ler - a revista de Abner Ravenwood - e seguiu a
parte lateral do avião com o olhar. Meteu a mão no bolso de
trás do casaco e apalpou o maço de notas, aquilo a que Marcus
Brody chamara "um adiantamento do Exército dos E. U.". Tinha
mais de cinco mil dólares, que começara a considerar como
dinheiro de persuasão se Abner Ranvenwood não tivesse mudado
de atitude em relação a ele. Um toque de chantagem, de la
mordida. Talvez o velho estivesse precisado de dinheiro, visto
que não aceitara nenhum cargo de ensino oficial durante anos,
tanto quanto Indy sabia. Teria de passar por aquele enorme
flagelo de qualquer disciplina acadêmica - o tormento de
angariar fundos. O parto das esmolas que era necessário abanar
a toda a hora. Indy tomou consciência de que cinco mil dólares
era uma quantia que jamais transportara consigo. Uma pequena
fortuna, na verdade. E isso fazia com que se sentisse
constrangido. Sempre encarara o dinheiro com uma atitude de
cavalheiro, gastando-o assim que o ganhava.
Fechou os olhos por instantes, perguntando a si mesmo se
ainda encontraria Marion com o pai. Concluiu que era pouco
provável. Ela crescera, partira, talvez até tivesse casado nos
Estados Unidos. E se ainda estivesse com o pai? E ele viu-se
subitamente sem vontade de enfrentar ftavenwood.
Todavia tinham passado tantos anos. Certamente que tudo
mudara.
Talvez não, talvez não com pessoas tão ingênuas como Abner.
Rancor era rancor-e se um colega tivesse uma relação com a
filha dele, então o rancor seria longo e profundo. Indy
suspirou. "Uma fraqueza", pensou. "Por que não conseguiste ser
forte nessa altura? Por que te deixaste envolver tanto?
Envolver tanto com uma garota? Mas nesse tempo não parecera
uma criança, mas sim uma mulher-criança, com algo nos olhos e
na expressão que revelava mais que uma rapariga em plena
adolescência."
"Deixa isso, esquece", pensou.
"Agora tens outras coisas em que pensar. E o Nepal é apenas
uma etapa no caminho para o Egipto." Uma longa etapa.", Indy
sentiu o avião começar a baixar quase imperceptivelmente ao
princípio, depois nitidamente, quando mergulhou em direcção ao
lugar de aterragem. Podia ver emergir dos desertos brancos de
neve as luzes fracas de uma cidade. Fechou os olhos e esperou
pelo momento em que as rodas tocaram no solo e o avião soltou
sons estridentes ao longo da pista quando travou. Em seguida o
avião dirigiu-se ao terminal - apenas um enorme hangar que
parecia ter sido convertido num ponto de chegadas e partidas.
Levantou-se do banco, reuniu os papéis e os livros, tirou o
saco de debaixo do banco e começou a descer a coxia.
Indiana Jones não reparou no homem com um impermeável que
estava mesmo atrás dele. Um passageiro que embarcara em Xangai
e que durante a última parte da viagem o observara quando
percorrera a coxia.
O vento que fustigava o campo de aviação era cortante,
açoitando Indy. Curvou a cabeça e correu para o hangar,
segurando o chapéu de feltro com uma mão e o saco de lona com
a outra. E entrou sem demora no edifício, onde não estava
muito calor, onde o calor parecia ser apenas o dos corpos
amontoados lá dentro. Passou rapidamente pela alfândega,
sujeitando-se às formalidades, mas depois foi assaltado por
pedintes, crianças com pernas estropiadas, garotos cegos, dois
paralíticos, alguns seres ressequidos cujo sexo não conseguiu
determinar. Agarraram-no, imploraram-lhe, mas uma vez que
conhecia a natureza dos pedintes de outras partes do mundo,
tambêm sabia que era melhor não aceitar presentes. Passou por
eles à força, admirado com o bulício do lugar. Era mais um
bazar que um aeroporto, atulhado de tendas, animais, com
a actividade frenética do mercado. Homens queimavam vísceras
em fogareiros, outros jogavam com excitação com uma espécie de
dados, e outros ainda pareciam envolvidos num leilão de
macacos - os animais presos com uma corda em fila, só pele e
osso, olhos sem expressão e o pelo estragado. Os pedintes
continuaram a segui-lo. Começou a caminhar mais depressa,
passando pelas tendas que pertenciam a cambistas, a
comerciantes, que vendiam peças de fruta e vegetais
irreconhecíveis, pelos mercadores de tapetes e lenãos e roupas
feitas de pele de iaque, pelas barracas primitivas de comida e
os balcões de bebidas frias, assaltado sempre por cheiros,
pelo cheiro de gordura quente, pela baforada de perfume, dos
aromas de estranhas especiarias. Ouviu alguém gritar o seu
nome no meio da multidão e Indy estacou, oscilando o saco de
lona para afastar os pedintes.
Olhou fixamente na direcção da voz. Viu o rosto de Lin-Su,
ainda familiar apesar de tantos anos volvidos. Aproximou-se do
chinês de baixa estatura e deram um aperto de mão vigoroso.
Lin-Su, com o rosto enrugado com um sorriso rasgado que
revelou uma boca quase sem dentes, segurou Indy pelo cotovelo
e acompanhou-o até à saída e de lá para a rua - onde o vento,
uma coisa selvagem, louca, soprava vindo das montanhas e
varria a rua como se estivesse decidido a pôr em prática uma
vingança antiga. Recolheram-se numa entrada, com o chinês
pequeno a segurar Indy pelo braço.
- Estou contente de o ver outra vez - disse Lin-Su num
inglês que era estranho e compassado, e rude pela falta de
prática.
- Passaram muitos anos.
- Demasiados - comentou Indy. - Doze? Treze?
- Como diz, doze... - Lin-Su fez uma pausa e olhou para a
rua. - Recebi o seu telegrama, claro. - O tom de voz baixou
quando a sua atenção foi atraída por um movimento na rua, uma
sombra que atravessava uma entrada. - Perdoe esta pergunta,
meu velho amigo: está a ser seguido?
Indy ficou com uma expressão de perplexidade.
- Que eu saiba, não.
- Não tem importância. Os olhos enganam.
Indy olhou para a rua. Não viu nada a não ser as frontarias
das lojas pequenas com os estores corridos e uma luz fraca, a
cor da chama de querosene que saía da porta aberta de um café.
O chinês baixo hesitou por instantes e depois disse:
- Como me pediu, fiz umas investigações.
- E?
- É difícil obter rapidamente informações num país como
este. Compreende. A falta de linhas de comunicação. E o tempo,
claro. A maldita neve dificulta tudo. O sistema de telefones é
primitivo, isto é, onde existe. - Lin-Su riu-se. - Todavia,
posso dizer-lhe que a última vez que se soube de Abner
Ravenwood, estava na região, nos arredores de Patan. Isso
posso garantir-lhe. As outras coisas que soube são rumores e
quase não merecem ser discutidas.
- Patan, huh? Há quanto tempo?
- É difícil dizer. Com segurança, há três anos. - Lin-Su
encolheu os ombros. - Lamento muito não poder ajudar mais, meu
amigo.
- Fez um excelente trabalho - disse Indy. - Há alguma
hipótese de ele ainda lá estar?
- Posso dizer-lhe que ninguêm tinha conhecimento de ele ter
saído deste país. Além disso... - Lin-Su tremeu e levantou a
gola do casaco pesado.
- Ajuda - replicou Indy.
- Naturalmente que gostaria de ajudar mais. Não me esqueci
da ajuda que me deu quando estive a última vez no seu grande
país.
- Tudo o que fiz foi interceder junto do Serviço de
Imigração, Lin-Su.
- Mesmo assim. Mas informou-os de que eu estava empregado no
seu museu quando realmente não estava.
- Uma mentira inocente - disse Indy.
- E que é a amizade se não a soma de favores?
- É Como você diz - comentou Indy. Nem sempre ficava à
vontade com os lugares-comuns orientais, com aquele tipo de
comentários que podiam ter sido retirados das obras de
terceira categoria de Confúcio. Mas percebeu que a actuação
chinesa de Lin-Su fora quase profissional, como se falasse
como os Ocidentais esperavam que fizesse.
- Como posso ir para Patan?
Lin-Su ergueu um dedo no ar.
- Aí posso ajudá-lo. Já tomei a liberdade. Venha por aqui.
Indy seguiu o homenzinho pela rua abaixo durante algum
tempo. Estacionado na frente de um prádio estava um carro
preto de uma marca desconhecida. Lin-Su apontou para ele com
orgulho.
- Coloco o meu automóvel à sua disposição.
- Tem a certeza?
- Absoluta. Lá dentro encontrará o mapa necessário.
- Estou surpreso.
- Uma coisa insignificante - disse Lin-Su.
Indy contornou o carro. Espreitou pela janela e olhou para
os estofos de cabedal rasgados e o aspecto das molas.
- De que marca é? - perguntou ele.
- Receio que seja uma mistura - respondeu Lin-Su. - Foi
montado por um mecânico na China e enviado de barco com alguma
despesa. Uma parte é Ford, outra Citroên. Suponho que tambêm
deve ter peças de um Morris.
- Como diabo conseguiu que o reparassem?
- A isso posso responder. Faço figas para que nunca avarie.
-O chinês riu e entregou um conjunto de chaves a Indy. - E até
agora não falhou. O que é bom, porque as estradas são muito
más.
- Fale-me das estradas para Patan.
- Más. No entanto, com alguma sorte não apanhará os nevões.
Siga a rota que marquei no mapa. Não terá problemas.
- Não sei como agradecer-lhe - disse Indy.
- Não passa a noite aqui?
- Não creio.
Lin-Su sorriu.
- Tem... qual é a palavra? Ah, sim. Um prazo?
- Certo. Tenho um prazo.
- Americanos - disse ele. - Têm sempre prazos. E têm sempre
úlceras.
- Por enquanto não há úlceras - disse Indy, e abriu a porta
do carro. Esta rangeu nas dobradiças.
- A embraiagem está perra - disse Lin-Su. - A direcção é
fraca. Maslevá-lo-á ao destino e irá trazê-lo de volta.
Indy atirou o saco para o banco do passageiro.
- Que mais podia um homem exigir de um carro, huhá
- Boa sorte, In-di-an-a. - O modo como Lin-Su o pronunciava
fazia-o parecer um nome chinês.
Deram um aperto de mão e em seguida Indy fechou a porta do
carro. Rodou a chave na ignição, ouviu o gemido do motor e
depois o carro começou a andar. Acenou com a mão ao chinês
baixo, que já descia a rua, radiante, como se estivesse
orgulhoso por ter emprestado o carro a um americano. Indy
olhou rapidamente para o mapa e desejou que estivesse correcto
porque não podia esperar tabuletas de sinalização num lugar
como aquele.
Conduziu durante horas nas estradas cheias de sulcos que
Lin-Su assinalara no mapa, atento, enquanto a escuridão descia
das montanhas surgindo como enormes fantasmas à sua volta.
Ficou contente por não poder ver os diversos desfiladeiros
que se estendiam por debaixo dele. Aqui e ali, onde a neve
bloqueava a estrada, teve de fazer passar o carro devagar,
removendo e limpando por vezes tanta neve quanto podia do
caminho. Uma região desolada. Incrivelmente erma. Indy
perguntou a si mesmo como seria viver ali, naquilo que parecia
um Inverno interminável. Chamavam-lhe o tecto do mundo. E ele
acreditava, só que era um tecto muito triste. Aparentemente
Lin-Su suportava-o, mas provavelmente era um bom lugar para a
actividade do chinês, a importação e exportação de mercadorias
que às vezes eram de natureza duvidosa. Nepal - era por lá que
passava o contrabando de todo o mundo, ou objectos de arte
roubados, antiguidades ou narcóticos. Era lá que as
autoridades desviavam os olhos que eram oficialmente cegos e
que tinham sempre as palmas estendidas para serem untadas às
escondidas.
Indy conduziu cheio de sono, bocejando, desejando um pouco
de café para lhe dar força. Milha após milha enfadonha ouvia
as molas do carro hábrido que rangiam e chiavam, o som abafado
dos pneus na neve. E então, inesperadamente, antes de poder
verificar o destino no mapa, viu-se nos arredores de uma vila,
uma vila que não tinha designação, tabuleta, nem nome.
Encostou o carro na beira da estrada e abriu o mapa. Acendeu a
luz interior e percebeu que devia ter chegado a Patan porque
não havia mais nenhuma comunidade bastante grande assinalada
no mapa de Lin-Su. Atravessou lentamente os arredores
dispersos da povoação, cabanas escuras, construções de
choupanas de barro e sem janelas. E então chegou àquilo que
parecia ser a estrada principal, uma rua estreita - pouco
maior que uma viela - com loj as minúsculas, passagens que
começavam em ângulos sinistros e desapareciam em sombras.
Parou o carro e olhou à sua volta. Uma rua estranha -
demasiado silenciosa.
De repente Indy apercebeu-se de outro carro que passava
atrás dele. Passou, desviou-se como se fosse para o evitar,
acelerou progressivamente. Quando desapareceu, lembrou-se de
que era o único carro que vira durante toda a viagem. "Que
lugar desolado", pensou, tentando imaginar Abner Ravenwood a
viver ali. Como é que alguém podia suportar aquilo?
Alguém caminhava ao longo da rua, dirigindo-se para ele. Um
homem, um homem forte com um casaco de pele, que cambaleava
como um ébrio. Indy saiu do carro e esperou até o homem com o
casaco de pele se aproximar dele antes de falar. O hálito do
homem cheirava a bebida alcoólica, era um cheiro tão forte que
Indy teve de virar a cara.
O homem, como alguém que esperava ser atacado, desviou-se
desconfiado. Indy estendeu os braços, com as mãos viradas para
cima, num gesto de inocência. Mas o homem não se aproximou.
Observou Indy atentamente. Um homem de raía mista, a forma dos
olhos sugeriam o Oriente, os malares largos talvez revelassem
uma mistura eslava. "Tenta uma língua", pensou Indy. "Tenta o
inglês para começar."
- Procuro Ravenwood - disse ele.
"Isto é absurdo", disse para os seus botões: "O silêncio da
noite num lugar deserto e andas à procura de uma pessoa numa
língua que possivelmente não faz sentido." - Um homem chamado
Ravenwood.
O homem arregalou os olhos, sem compreender. Abriu a boca.
- Você. Conhece. Alguém. Chamado. Ravenwood? - Devagar. Como
se falasse com um idiota.
- Raven-wood? - disse o homem.
- Percebeu, companheiro - disse Indy.
- Raven-wood. - O homem parecia chupar a palavra como se
fosse um rebuçado com um sabor exótico.
- Sim. Certo. Agora ficamos aqui toda a noite a falar por
entre dentes, supondo - disse Indy, gelado de novo, dominado
pelo cansaço.
- Ravenwood. - O homem sorriu em sinal de reconhecimento e
virou-se, apontando para o fundo da rua. Indy olhou e viu uma
luz ao longe. O homem pôs uma mão em concha e levou-a à boca,
o gesto de um bebedor.
- Ravenwood - disse ele várias vezes, apontando ainda.
Começou a abanar violentamente a cabeça. Indy percebeu que
devia seguir na direcção da luz.
- Muito obrigado - disse ele.
- Ravenwood - repetiu o homem.
- Sim, isso mesmo, isso mesmo - e Indy voltou para o carro.
Entrou e desceu a rua, parou perto da luz que o homem
indicara e apenas nesse instante percebeu que esta saía de uma
taberna, que tinha uma tabuleta pendurada escrita em inglês e
que destoava: THE RAVEN. O Corvo "the raven)", pensou Indy. "O
homem enganara-se. Estava confuso e embriagado". Todavia, se
era a única taberna aberta naquele burgo primitivo, podia ir
ver se alguém sabia alguma coisa. Saiu do carro,
apercebendo-se do barulho que se ouvia no interior da taberna,
o som estridente gerado por um qualquer grupo de bebedores que
passaram as últimas horas dedicados à tarefa de se consumirem.
Era um barulho que apreciava, a que estava acostumado, e nada
lhe agradaria mais que juntar-se aos folgazões. "Nem penses",
disse para si mesmo. "Não fizeste esta viagem para te encheres
como um turista perdido que procura conhecer a zona pobre
local. Vieste com um objectivo. Um objectivo bem definido.",
Dirigiu-se para a porta. "Tens estado em lugares estranhos",
disse para os seus botões. "Mas este bate-os a todos.", Aquilo
que viu à sua frente quando entrou foi um grupo bizarro de
ébrios, uma enorme variedade de nacionalidades. Era como se
alguém tivesse pegado numa pá, a tivesse enterrado num vaso
cheio de diversos tipos étnicos e o tivesse despejado ali na
escuridão louca, solitária do deserto. Este realmente leva a
palma". Indy riu-se interiormente. Guias da montanha Sherpa,
nativos do Nepal, Mongóis, Chineses, Indianos, montanhistas de
barba que pareciam ter caído de um escadote no estado em que
se encontravam, vários tipos furtivos de nenhuma nacionalidade
evidente. "Isto é mesmo o Nepal", pensou, "e estes são os
passadores do tráfico de droga internacional, contrabandistas,
bandidos.", Indy fechou a porta, depois reparou num enorme
corvo empalhado, com as asas abertas, ameaçadoras, colocado
atrás do balcão comprido. "Um elemento sinistro", pensou. E
ficou perturbado; a estranha semelhança entre o nome de Abner
e o nome daquele bar. Coincidência? Deu mais uns passos na
sala, que cheirava a suor, a álcool e a fumo de tabaco. Sentiu
o aroma suave do haxixe no ar.
Passava-se alguma coisa no bar, onde estava reunida a
maioria da clientela. Uma espécie de concurso de bebidas.
Estava alinhada no balcão uma série de copos com bebidas. Um
homem forte, gritando com sotaque australiano, cambaleava
encostado ao balcão mesmo quando levantou a mão e procurou às
cegas a bebida seguinte. , Indy aproximou-se. Um concurso de
bebidas. E perguntou a si mesmo qual seria o rival do
australiano. Abriu caminho, tentando ver.
Quando viu, quando reconheceu o rival no concurso, sentiu um
momento de tontura, uma vertigem que lhe apertou o peito, uma
punhalada, uma dor rápida. E durante um segundo a passagem do
tempo alterou-se, mudou como uma paisagem pintada há muito
tempo e abandonada. Uma ilusão. Uma miragem. E abanou a cabeça
como se esse movimento o pudesse trazer de novo à realidade.
Marion.
"Marion", pensou ele.
O cabelo negro que lhe caía nos ombros em ondas soltas e
suaves; os mesmos olhos grandes, castanhos e inteligentes que
observavam o mundo com um certo cepticismo, uma incredulidade
por aquilo que passava por comportamento humano-uns olhos que
pareciam sempre perscrutar uma pessoa, como se pudessem notar
a motivação mais íntima; a boca - talvez apenas aboca
estivesse um pouco diferente, um pouco mais dura, e o corpo
mais cheio. Mas era a Marion, a Marion que recordava.
E ali estava ela envolvida num louco concurso de bebidas com
um australiano grosseiro. Ficou a observar, quase sem se
atrever a mexer-se, enquanto a multidão em redor do balcão
fazia apostas. Até para o espectador mais inocente deveria
parecer muito pouco provável que o australiano fosse batido
por uma mulher que pouco mais tinha que metro e meio de
altura. Mas bebia rapidamente, igualando o homem no número de
copos. Qualquer coisa dentro dele, qualquer coisa que estava
dura no seu íntimo, tornou-se subitamente mole. Teve vontade
de a arrastar para fora daquele lugar de loucos. "Não", disse
para si mesmo. "Já não ? uma criança,já não ? a filha de
Abner... ? uma mulher, uma bela mulher. E sabe o que está a
fazer. Pode tomar conta dela... aqui, mesmo no meio desta
multidão heterogênea de casos perdidos, bandidos e ébrios."
Bebeu outro copo. A multidão bradou. Atiraram mais dinheiro
para o balcão. Outro berro. O australiano cambaleou, pegou
noutra bebida, falhou e caiu para trás como uma árvore
cortada. Indy estava impressionado. Observava quando ela
atirou o cabelo preto para trás, pegou no dinheiro que estava
em cima do balcão e gritou aos bebedores em nepali; e embora
ele não conhecesse a língua, era evidente pelo tom da voz que
lhes dizia que o divertimento da noite tinha terminado. Mas
ainda havia um copo no balcão e eles não se afastariam
enquanto ela não o bebesse.
Ela fitou-os, depois disse:
- Mandriões. - E bebeu de um trago. A multidão gritou uma
vez mais, em seguida Marion agitou os braços no ar e a turba
começou a dispersar, resmungando, encaminhando-se para a
porta. O empregado do bar, um nepales alto, certificava-se de
que eles saíam, empurrando-os para a noite. Tinha um cabo de
machado na mão. "Numa espelunca como esta", pensou Indy, "pode
ser preciso mais que um cabo de machado para fazer cumprir a
hora do fecho."
Então o bar ficou deserto, tendo ido embora os últimos
retardatários.
Marion foi para detrás do balcão, levantou o rosto e olhou
para Indy.
- Eh, não ouviu o que disse? É surdo ou quê? Acabou.
Percebe? Bairra chuh hayho?
Ela começou a caminhar em direcção a ele. E então surgiu no
seu rosto a expressão do reconhecimento e parou.
- Olá, Marion - disse ele.
Ela não se mexeu.
Ficou a olhar fixamente para ele.
Procurava vê-la naquele momento como estava, sem a recordar
como fora, e de repente o esforço tornou-se maior. Sentiu-se
de novo tenso, desta vez com um aperto na garganta, como se
algo tivesse congelado.
- Olá, Marion - repetiu. Sentou-se num banco junto ao
balcão.
Durante um segundo pensou ter visto uma emoção antiga nos
olhos dela, qualquer coisa presa no olhar - mas aquilo que ela
fez a seguir surpreendeu-o. Cerrou o punho, girou o braço com
grande rapidez e atingiu-o em cheio no maxilar. Tonto, caiu do
banco e ficou estendido ao comprido no soalho, a olhar para
ela.
- Tambêm tenho muito gosto em te ver - disse ele e, passando
a mão no queixo, sorriu.
Ela replicou:
- Levante-se e saia.
- Espera, Marion.
Ela estava parada junto dele.
- Posso fazer uma segunda vez com a mesma facilidade -
disse, cerrando o punho de novo.
- Acredito - disse ele. Pôs-se de joelhos. O maxilar
doía-lhe. "Onde aprendera a bater assim? Onde aprendera a
beber tão bem, a propôsito? Surpresa, surpresa", pensou. "A
rapariga torna-se mulher e a mulher é afinal um terror".
- Não tenho nada para lhe dizer.
Pôs-se então de pé e limpou o pó da roupa.
- Está bem, está bem - disse ele. - Talvez não queiras falar
comigo. Eu compreendo.
- Que perspicácia.
"Aquela amargura", pensou Indy. Ele merecia aquele azedume?
Sim, talvez, apercebeu-se.
- Vim visitar o teu pai - disse ele.
- Vens com dois anos de atraso.
Indy notou que o empregado do bar empunhava o cabo do
machado. Era tambêm um indivíduo ameaçador.
- Não há problema, Mohan. Eu trato disto. - Ela fez um gesto
de desdêm a Indy. - Podes ir para casa.
Mohan colocou o cabo do machado em cima do balcão. Quando
acenou com a cabeça, ele encolheu os ombros e saiu.
- Que queres dizer com dois anos de atraso? - perguntou
Indy pausadamente. - Que aconteceu a Abner?
Pela primeira vez algo se suavizou em Marion. Expirou
lentamente, deixando sair uma tristeza antiga.
- Que pensas que quero dizer? Foi apanhado por uma
avalanche. Que mais o poderia apanhar? Foi apropriado...
passou a vida inteira a fazer escavações. Tanto quanto sei
ainda deve estar naquela encosta da montanha, preservado na
neve.
Afastou-se dele e encheu um copo. Indy sentou-se novamente
no banco do bar. Abner morto. Era inconcebível. Sentia-se como
se tivesse sido socado uma vez mais.
- Convenceu-se de que a Arca adorada estava enterrada a meia
encosta de uma montanha. - Marion bebeu lentamente. Ele via
parte da sua dureza, parte daquela concha exterior, a começar
a estalar. Mas combatia-a, combatia a revelação da fraqueza.
Ela disse:
- Ele arrastou-me, uma criança, quase pelo mundo inteiro por
causa das suas loucas escavações. Depois morre. Deixa-me sem
um centavo. Adivinhas como vivi, Jones? Trabalhei aqui. E não
era propriamente a empregada de bar, entendes?
Indy olhou fixamente para ela. Perguntou a si mesmo o que
sentia naquele momento, que sensações estranhas o dominavam.
Eram-lhe desconhecidas, estranhas. De repente ela ficou com
um ar de extrema fragilidade. E extrema beleza.
- O tipo que possuía o bar enlouqueceu. Aqui, mais cedo ou
mais tarde toda a gente enlouquece. Então, quando o levaram,
adivinha o que aconteceu? Deixa-me esta casa. Tudo para o
resto da minha vida. Podes imaginar uma maldição pior?
Era demasiado para Indy absorver imediatamente, demasiado
para compreender. Queria dizer qualquer coisa que a
confortasse. Mas sabia que não havia palavras.
- Lamento - disse ele.
- Grande coisa.
- Lamento sinceramente.
- Pensava que estava apaixonada por ti - replicou ela. - E
vê o que fizeste com essa informação sagrada.
- Não queria magoar-te.
- Era uma criança!
- Fiz o que fiz. Não me sinto satisfeito, não sei explicar.
E tambêm não espero que te sintas satisfeita.
- Estava enganada, Indiana Jones. E tu sabias que estava
errado.
Indy ficou calado, sem saber como poderia pedir desculpa por
acontecimentos do passado.
- Se pudesse recuar dez anos, se pudesse remediar tudo,
acredita em mim, Marion, tê-lo-ia feito.
- Eu sabia que um dia aparecias por aquela porta. Não me
perguntes porquê. Sabia - disse ela.
Ele colocou as mãos em cima do balcão.
- Afinal por que não regressaste aos Estados Unidos? -
perguntou ele.
- Dinheiro. É muito simples. Quero regressar com algum
estilo - replicou ela.
- Talvez eu possa ajudar. Talvez possa começar a fazer
alguma coisa por ti.
- Foi por isso que voltaste?
Ele abanou a cabeça.
- Preciso de uma das peças que penso que o teu pai possuía.
A mão direita de Marion ergueu-se rapidamente, mas dessa vez
Indy estava preparado e agarrou-lhe o pulso.
- Filho da mãe - disse ela. - Gostava que deixasses em paz
aquele velho louco. Só Deus sabe o quanto o fizeste sofrer
quando era vivo.
- Pagarei - disse ele.
- Quanto?
- O bastante para fazer com que regresses aos Estados Unidos
em grande estilo.
- Sim? O problema é que vendi todo o material dele.
Velharias. Tudo. Desperdiçou a vida inteira com velharias.
- Tudo? Vendeste tudo?
- Pareces desapontado. Qual é a sensação, Mr. Jones?
Indy sorriu-lhe. O segundo de triunfo agradou-lhe de certa
forma. E então perguntou a si mesmo se era verdade que tinha
vendido o material de Abner, se realmente não tinha nenhum
valor.
- Gosto de ver quando ficas abatido - disse ela. - Pago-te
uma bebida. Diz lá.
- Seltzer - replicou ele, e suspirou.
- Seltzer, huhá Os tempos mudaram, Indiana Jones. Eu prefiro
uísque. Gosto de bourbon, vodca e gim tambêm. Não aprecio
muito brande. Deixei-me disso.
- Agora és uma rapariga dura, não és?
Ela sorriu-lhe de novo.
- Isto não é propriamente Schenectady, amigo.
Ele passou a mão uma vez mais pelo queixo. De repente
sentiu-se farto de se proteger.
- Quantas vezes preciso de dizer que lamento? Será o
suficiente?
Empurrou um copo de soda e ele bebeu-a com um sorriso.
Depois ela encostou-se ao balcão, apoiada nos cotovelos.
- Podes pagar a dinheiro, não podes?
- Sim.
- Fala-me desse objecto que procuras. Quem sabe? Talvez
possa localizar a pessoa a quem vendi o objecto.
- Uma peça de bronze com a forma do sol. Tem um orifício, um
pouco afastado do centro. Lá dentro está um cristal vermelho.
Pertence à parte superior de um bastão. Já ouviste falar nela?
- Talvez. Quanto?
- Três mil dólares.
- Não chega.
- Está bem. Posso ir até cinco mil. Recebes mais quando
regressares aos Estados Unidos.
- Parece importante.
- Poderia ser.
- Tenho a tua palavra?
Ele acenou com a cabeça.
Marion disse:
- Já me deste a tua palavra, Indy. A última vez que
estivemos juntos prometeste que voltarias. Lembras-te?
- Eu voltei.
- O mesmo safado - disse ela.
Ficou calada durante algum tempo, saindo de detrás do balcão
até estar perto dele.
- Dê-me agora os cinco mil e volta amanhã.
- Porque amanhã?
- Porque eu disse. Porque chegou o momento de te dizer umas
verdades.
Ele tirou o dinheiro, deu-lho.
- Está bem - disse ele. - Confio em ti.
- És um idiota.
- Sim - disse ele, suspirando. - Já ouvi.
Desceu do banco. Perguntou a si mesmo onde iria passar a
noite. Pensou que seria num monte de neve. Se era a vontade de
Marion. Virou-se para se ir embora.
- Faz-me uma coisa - disse ela.
Virou-se para olhar para ela.
- Beija-me.
- Beijar-te?
- Sim. Vê lo. Refresca-me a memória.
- E se eu recusar?
- Então não voltes amanhã.
Ele soltou uma gargalhada. Inclinou-se, surpreendido com a
sua própria ansiedade, depois pelo ardor súbito do beijo, pelo
modo como ela lhe puxou o cabelo, pelo modo como a língua
pressionou os seus lábios e se encostou rapidamente ao céu da
boca. O beijo da criança desaparecera; aquele era diferente,
era o beijo de uma mulher que aprendera a natureza do jogo do
amor.
Ela afastou-se, sorriu, pegou no copo.
- Agora sai daqui - disse Marion.
Viu-o sair, viu a porta fechar-se. Não se mexeu; em seguida
desatou o lenão que trazia ao pescoço. Tinha um fio pendurado
entre os seios. Puxou o fio, em cuja extremidade estava um
medalháo de bronze com a forma do sol com um cristal
incrustado.
Friccionou pensativamente com o polegar e o dedo indicador.
Indy tiritou no ar gélido da noite quando se dirigiu para o
carro. Ficou sentado durante algum tempo. Que iria fazer?
Andar de um lado para o outro naquele buraco até de manhã? Era
pouco.
- Creio que compreendo o seu ponto de vista - disse ela. -
Olhe, posso ser razoável...
- Tenho a certeza, tenho a certeza. - Toht suspirou como se
fosse um homem cansado de violência, mas aquele som era
enganador. Avanãou para ela, segurando o atiçador perto do seu
rosto. Sentia o calor na pele. Virou o rosto e tentou
libertar-se das mãos do mongol, mas ele era forte de mais.
- Espere, eu mostro-lhe onde está!
Toht disse:
- Teve oportunidade para isso, minha cara.
"Um sádico da velha escola", pensou ela. "O medalháo não
significa nada para ele, apenas a visão daquele atiçador a
queimar a minha cara."
Debateu-se uma vez mais, mas foi em vão. "Muito bem",
concluiu, "perdeste tudo, tambêm podes ficar desfigurada."
Tentou morder o braço do homem corpulento, mas este
esbofeteou-a, ferindo-a com a palma da mão que cheirava a
cera.
Ela olhou fixamente para o atiçador.
Demasiado perto. Treze centímetros. Dez. Oito." O cheiro
nauseabundo do metal quente.
E depois...
Depois tudo aconteceu com demasiada rapidez para que pudesse
seguir durante um momento, uma série abrupta de acontecimentos
que ocorreu com imprecisão, como um desenho a tinta molhado
pela chuva. Ouviu um estalido, um estalido forte, e aquilo que
viu foi a mão do europeu erguer-se subitamente, o atiçador a
voar pela sala até àjanela, onde se prendeu nas cortinas e
começou a arder. Sentiu o mongol a soltá-la e então percebeu
que Indiana Jones voltara, que estava parado na entrada com o
velho chicote numa mão e uma pistola na outra. "Indiana Jones,
tal como a cavalaria que surge quando menos se espera. Que
diabo te deteve?", quis gritar. Mas naquele momento queria
mover-se, tinha de mover-se, a sala estava impregnada com todo
o tipo de violência, o ar estava carregado como a atmosfera de
uma tempestade eléctrica. Saltou por cima do balcão e agarrou
numa garrafa no momento em que Toht disparava uma arma na sua
direcção, mas as balas foram disparadas à toa e ela rolou no
chão atrás do balcão numa fúria devidro estilhaçado. Disparos
ensurdecedores, fortes, que lhe furavam os ouvidos.
O mongol, pesado, fez pontaria com a metralhadora. Ela
percebeu que estava apontada a Indy, para o atingir em cheio.
"Alguma coisa com que lhe bater", pensou. Agarrou
instintivamente o cabo do machado do empregado do bar e bateu
no crânio do mongol com quanta força tinha e este caiu. Mas
depois apareceu outra pessoa no bar, alguém que atravessou a
porta como se esta fosse feita de papelão, e levantou a cabeça
e viu uma pessoa que reconheceu, um sherpa, um dos habitantes,
um homem gigantesco que podia ser comprado por qualquer um em
troca de uns copos. Entrou como um furacão, placando Indy pela
retaguarda, atirando-o ao chão.
E então Toht gritou:
- Mata! Mata os dois!
O homem com a venda nos olhos recobrou a consciência com a
ordem de Toht. Tinha um revólver na mão e era evidente que ia
seguir Toht à letra. No momento em que ela entrava em pânico,
aconteceu uma coisa estranha: numa impossível conspiração de
sobrevivência, Indy e o sherpa tentaram agarrar
simultaneamente a arma caída, prendendo-a. Em seguida
viraram-na contra o assaltante e a arma disparou, atingindo o
Homem da Venda no Olho, um tiro certeiro na garganta com uma
força que o atirou de um lado ao outro da sala. Cambaleou para
trás até cair de encontro ao balcão com uma expressão no rosto
que fazia lembrar a de um pirata que é obrigado a passar por
debaixo da quilha durante uma pândega.
Então a luta recomeçou, a estranhajunção de forças, a trêgua
incompreensível chegou ao fim. O revólver caíra das mãos de
Indy e do sherpa, e eles rolavam sem parar enquanto tentavam
agarrar a arma. Mas Toht já podia acertar em Indiana. Ela
pegou na metralhadora que caíra do ombro do mongol e procurou
entender como funcionava. "Como poderá funcionar", pensou,
"se não se primir o gatilho!", Disparou, mas a arma deu um
coice e saltou. As balas passaram ao lado de Toht, sibilando.
Depois a sua atenção foi atraída pelas chamas dos cortinados
que se espalhavam ao resto do bar. "Ninguém vai vencer isto",
pensou.
Este fogo é a única coisa que talvez leve a melhor.
Viu, pelo canto do olho, Toht acocorar-se no fundo do bar
enquanto as chamas o cercavam, queimando o bar. "Ele viu-o",
pensou ela. "Viu o medalháo."
Viu a mão deslizar em direcção a ele, viu a expressão de
prazer no rosto dele, e então, repentinamente, gritava quando
o medalháo escurecido pelo fogo lhe queimou a palma da mão,
gravando a forma e desenho, as palavras antigas, profundamente
na carne. Não pôde segurá-lo. A dor era atroz. Rastejou na
direcção da porta, apertando a mão queimáda.
E então Marion olhou para trás, para Indy. Bateu na
metralhadora, mas a arma não funcionava. Então lembrou-se do
revólver.
O revólver atrás do corvo empalhado. Deitou-lhe a mão por
entre as chamas e o calor, voltou-se, ouviu as garrafas a
explodir à sua volta como cocktails Molotov, apontou para o
nepalís. "Um tiro certeiro", pensou. "Um tiro bom e
certeiro.", O danado não estava quieto.
O fumojá a cegava, sufocava-a.
Indy deu um pontapé ao sherpa, afastando-se dele, rolando, e
nesse momento o nepalís ficou com um alvo perfeito - o crânio
de Indy. "Agora! Dispara agora!", Ela premiu o gatilho.
O nepalís ergueu-se no ar, projectado para cima e para trás
pela força do disparo. E Indy, grato, olhou para ela por entre
o fumo e as chamas, sorrindo.
Ele agarrou no chicote e no chapéu e gritou:
- Vamos sair daqui!
- Não sem aquela peça que tu querias.
- Está aqui?
Marion correu para o lugar onde Toht deixara cair o
medalháo. A tossir, a tentar não respirar, com os olhos a
arder e a lacrimejar do fumo preto, baixou-se e pegou no
medalháo com o lenão solto que trazia ao pescoço. E em seguida
procurou a caixa de madeira em que pusera o dinheiro.
- Inacreditável! Cinzas. Cinco mil dólares envoltos em fumo.
Indiana Jones agarrou-a pelo pulso, arrastando-a por entre o
fogo até á porta.
- Vamos! Vamos! - gritou ele.
Saíram para o ar gélido da noite precisamente no momento em
que a casa começava a ruir, enquanto o fumo e as labaredas
subiam na escuridão numa violenta exibição de destruição.
Cinzas, brasas incandescentes, vigas em chamas - atravessavam
o telhado a arder numa dança em direcção à lua.
No outro lado da rua, Indy e Marion ficaram parados a
observar.
Ela notou que ele ainda lhe prendia o pulso. Aquele toque.
Fora há tanto tempo, e no entanto recordava o contacto, a
fricção da pele dele na dela; tentou apagar a recordação.
Ela olhou uma vez mais, fixamente; a enorme fogueira, e
ficou calada durante algum tempo. As vigas estalavam com o som
de porcos a serem queimados nos espetos.
- Creio que estás em dívida para comigo - disse ela por fim.
- Creio que me deves muito.
- Para principiantes?
- Para principiantes, isto - e mostrou-lhe o medalháo. - Sou
tua sócia, senhor. Porque este pequeno objecto aínda me
pertence.
- Sócia? - perguntou ele.
- Justamente.
Ficaram a ver o incêndio durante mais algum tempo, sem
repararem que Arnold Toht se esgueirava pelas vielas que saíam
da rua principal - que se esgueirava como um rato que avançava
num labirinto.
No carro Marion disse:
- E agora?
Indy ficou calado por instantes antes de responder.
- EgiPto.
- Egipto? - Marion olhou para ele enquanto o carro avançava
na escuridão. - Levas-me aos lugares mais exóticos.
Surgiram os contornos das montanhas; uma lua pálida rompeu o
céu da noite. Indy viu as nuvens a dispersar. Perguntou a si
mesmo por que sentiu uma súbita apreensão, uma sensação que
desapareceu quando ouviu Marion rir.
- Qual é a piada?
- Tu - disse ela. - Tu e aquele chicote.
- Não faças troça miúda. Salvou-te a vida.
- Nem queria acreditar quando te vi. Tinha-me esquecido
daquele velho chicote. Lembro-me como costumavas praticar com
ele todos os dias. Aquelas garrafas velhas no muro e tu lá com
o chicote. - E riu-se novamente.
"Uma recordação", pensou Indy. Recordou o estranho fascínio
que tivera com o chicote desde que vira um número com um
chicote num circo itinerante quando tinha 7 anos. Com os olhos
arregalados de surpresa, vendo o artista do chicote desafiar
toda a lógica. E depois as horas de treino, uma devoção que
ninguém, nem mesmo ele, sabia explicar verdadeiramente.
- Vais a algum lado sem ele? - perguntou ela.
- Nunca o levo para as aulas quando tenho de ensinar-
replicou ele.
- Aposto que dormes com ele, huhá
- Bem, depende - disse ele.
Ela calou-se, fitando a noite nos Himalaias. Depois disse:
- Depende de quê?
- Tenta descobrir - disse Jones.
- Creio que entendo.
Olhou uma vez para ela, depois voltou a olhar para a estrada
esburacada.
CAPÍTULO VI
AS ESCAVAÇÕES EM TAniS, EGIPTO
Um sol escaldante queimava a areia, cauterizando o deserto
que se estendia de um horizonte ao outro. "Num lugar como
este", pensou Belloq, "poder-se-ia imaginar o mundo inteiro
como um deserto escaldante, um planeta sem vegetação, sem
pródios, sem pessoas. Sem pessoas.", Algo naquele pensamento
lhe agradava. Sempre achara a deslealdade a moeda mais comum
entre os seres humanos - consequentemente, ele mesmo negociara
com essa moeda. E se não era a traição que as pessoas melhor
compreendiam então a alternativa era a violência. Protegeu os
olhos do sol e avançou, observando a escavação que estava em
curso. Uma escavação elaborada - mas era assim que os Alemães
gostavam. Elaborada, com circunstância e pompa desnecessárias.
Enfiou as mãos nos bolsos, vendo os caminhões e os bulldozers,
os escavadores Árabes, os supervisores alemães. E o ridículo
Dietrich, que parecia considerar-se senhor de tudo, dando
ordens, correndo de um lado para o outro como se fosse
perseguido por um tufão.
Parou, observando mas já sem ver, com uma expressão vaga nos
olhos. Recordava o encontro com o Fihrer, lembrando-se da
afectação constrangedora que este mostrara. "Você é um perito
mundial nesta matéria, segundo me disseram, e eu quero o
melhor". Bajulador e ignorante. Elogios falsos a tender para
uma retórica teutônica confusa, o Reich com mil anos, o plano
histórico grandioso que só podia ter sido concebido por um
lunático. Belloq deixara de prestar atenção, fitando o Fihrer,
assombrado, espantado com o facto de o destino de qualquer
país poder cair em mãos tão desastradas. "Claro que quero a
Arca". A Arca pertence ao Reich. O lugar de uma antiguidade
como essa mesma Alemanha.
Belloq fechou os olhos por causa do sol forte. Abstraiu-se
dos ruídos das escavações, dos gritos dos Alemães, dos sons
ocasionais dos Árabes. "A Arca", pensou, "não pertence a
nenhum homem, a nenhum lugar, a nenhuma época. Mas os seus
segredos são meus, se existem realmente segredos."
Abriu de novo os olhos e olhou fixamente para o buraco, para
as enormes crateras sem areia, e sentiu uma certa vibração,
uma intuição positiva, de que o grande prêmio estava ali
perto. Sentia, sentia o seu poder, ouvia o sussurro daquilo
que em breve se transformaria num estrondo. Tirou as mãos dos
bolsos e fitou o medalháo que estava no meio da palma. E
aquilo que percebeu quando olhava fixamente para ele foi uma
estranha obsessão - e o medo de poder acabar por ceder a ela.
"Anseias por uma coisa durante bastante tempo, como ele
ansiara pela Arca, e começas a sentir as raias de uma certa
loucura que é quase... quase o quê?"
Divina.
Talvez fosse a loucura dos santos e fanáticos.
A sensação de uma visão tão medonha que toda a realidade se
dissipava.
Uma percepção de um poder tão inexprimível, tão císmico, que
a frágil estrutura daquilo que se supunha ser o mundo real se
rompia, desintegrava, e ficava-se apenas com uma compreensão
que, como a de Deus, suplantava todas as coisas.
Talvez. Ele sorriu interiormente.
Contornou os limites das escavações, passando pelos caminhões
e bulldozers. Apertou com força o medalháo na mão. E então
pensou na forma como os rufias enviados ao Nepal por Dietrich
tinham estragado tudo. Sentiu repugnância.
Porêm aqueles anormais tinham trazido uma coisa que servia
os seus fins.
Fora o Toht choroso que mostrara a Belloq a palma da mão,
num gesto que Belloq pensava ser um pedido de compaixão. Sem
se aperceber de que tinha, gravada na carne, uma cópia
perfeita do objecto que ele não conseguira recuperar.
Fora divertido ver Toth sentado com impaciência durante
horas, dias, enquanto ele, Belloq, fazia meticulosamente uma
cópia perfeita. Trabalhava cuidadosamente, procurando recriar
o original. Mas não era o verdadeiro, o objecto histórico. Era
suficientemente fiel para os cálculos relacionados com a sala
dos mapas e o Poço das Almas, mas queria o original a todo o
custo.
Belloq meteu de novo o medalháo no bolso e aproximou-se do
lugar onde estava Dietrich. Não disse nada durante muito
tempo, satisfeito com a sensação de que a sua presença
constrangia um pouco o alemão. Dietrich disse por fim:
- Está a correr bem, não acha?
Belloq acenou com a cabeça, protegendo uma vez mais os
olhos. Naquele momento pensava noutra coisa, numa coisa que o
perturbava. Era a informação que tinha sido trazida do Nepal
por um dos lacaios de Dietrich. Indiana Jones.
Era de prever que Jones apareceria mais cedo ou mais tarde.
Jones era maçador, mesmo que a rivalidade entre eles acabasse
sempre na sua derrota. "Ele não tem a astúcia", pensou Belloq.
"HO instinto. O instinto assassino."
Mas ele já fora visto no Cairo com a rapariga que era filha
de Ravenwood.
Dietrich virou-se para ele e disse:
- Decidiu alguma coisa em relação ao outro assunto que
discutimos?
- Penso que sim - replicou Belloq.
- Presumo que seja a decisão a que imaginei que chegaria?
- As suposições são muitas vezes arrogantes, meu amigo.
Dietrich olhou para o outro homem em silêncio.
Belloq sorriu.
- Neste caso, porém, provavelmente está certo.
- Quer que eu trate disso?
Belloq acenou com a cabeça.
- Creio que posso deixar os detalhes por sua conta.
- Naturalmente - disse Dietrich.
CAPÍTULO VII
CAirO
A noite estava quente e calma, o ar como um vácuo. Estava
seco, custava respirar, como se toda a humidade se tivesse
evaporado no calor do dia. Indy estava sentado com Marion num
café, quase sem tirar os olhos da porta. Hà horas que
percorriam ruelas e becos, mantendo-se afastados das ruas
centrais - e, no entanto, ele tivera sempre a sensação de que
estava a ser vigiado. Marion parecia exausta, esgotada, com o
cabelo comprido e húmido de suor. E Indy apercebeu-se de que
estava cada vez mais impaciente com ele: naquele momento
fitava-o por cima da borda da chávena de café com um ar
acusador. Ele observava a porta, examinava os clientes que
entravam e saíam, e por vezes levantava o rosto para apanhar a
brisa que soprava da ventoínha que chiava suspensa no tecto.
- Podias ter a delicadeza de me dizer quanto tempo vamos
andar de um lado para o outro - disse Marion.
- É isso que andamos a fazer?
- Seria óbvio para um cego que nos escondemos de alguma
coisa, Jones. E começo a interrogar-me por que parti do Nepal.
Não te esqueças de que tinha um negócio próspero. Um negócio
que reduziste a cinzas.
Ele olhou para ela e sorriu e pensou como ela ficava
vibrante quando estava prestes a enfurecer-se. Estendeu-se por
cima da mesa pequena e tocou-lhe nas costas da mão.
- Escondemo-nos de tipos como aqueles que defrontâmos no
Nepal.
- Muito bem. Acredito. Mas por quanto tempo?
- Até ter a impressão de que não há perigo para irmos
embora.
- Não há perigo para irmos para onde? Que tens em mente?
- Não estou propriamente sem amigos.
Ela suspirou e acabou de beber o café, depois recostou-se na
cadeira e fechou os olhos. -Acorda-me quando tiveres decidido,
está bem?
Indy levantou-se e fê-la pôr-se de pé.
- Está na hora - disse ele. - Podemos ir agora.
- Que pena - disse ela. - Precisamente no momento em que
estava a dormir o meu primeiro sono.
Saíram para a viela, que estava praticamente deserta. Indy
parou, olhando para todos os lados. Em seguida pegou-lhe na mão e
começou a andar.
- Queres dar-me uma ideia do lugar para onde nos dirigimos.
- Para a casa de Sallah.
- E quem ? Sallahá
- O melhor pesquisador do Egipto.
Só esperava que Sallah ainda vivesse na mesma casa. E, para
além dessa, existia outra esperança, uma mais profunda, que
Sallah estivesse a trabalhar na escavação de Tanis.
Parou na esquina, um cruzamento onde bifurcavam duas ruas
estreitas.
- Por aqui - disse ele, ainda a puxar o braço de Marion.
Ela suspirou, depois bocejou. Seguiu-o.
Mexeu-se qualquer coisa nas sombras atrás deles, algo que
poderia ser humano. Movia-se sem ruído, deslizando rapidamente
sobre o betão; apenas sabia seguir as duas pessoas que
caminhavam à sua frente.
Indy foi bem recebido na casa de Sallah, como se tivessem
passado apenas algumas semanas desde a última vez que tinham
estado juntos. Mas tinham passado anos. Mesmo assim, Sallah
mudara pouco. Os mesmos olhos inteligentes no rosto moreno, a
mesmajovialidade enérgica, o ardor hospitaleiro. Abraçaram-se
quando a esposa de Sallah, uma mulher forte de nome Fayah, os
fez entrar em casa.
O calor do acolhimento emocionou Indy. O conforto da casa
fê-lo tambêm sentir-se imediatamente à vontade. Quando se
sentaram à mesa na sala de jantar, apreciando a comida que
Fayah preparara com a rapidez de um milagre de culinária, ele
olhou para a outra mesa no canto, onde estavam os filhos de
Sallah.
- Afinal mudaram algumas coisas - comentou ele. Meteu um
pequeno cubo de cordeiro na boca e acenou com a cabeça na
direcção das crianças.
- Ah - disse Sallah. A esposa sorriu toda orgulhosa. - Da
última vez não eram tantos.
- Só me lembro de três - disse Indy.
- Agora há nove - replicou Sallah.
- Nove - e Indy abanou a cabeça admirado.
Marion levantou-se da mesa e aproximou-se do lugar onde
estavam as crianças. Falou com cada uma delas, tocou-lhes,
brincou com elas por instantes, e depois afastou-se. Indy
pensou ter visto uma certa expressão, algo indeterminado, no
entanto nitidamente relacionado com uma paixão por crianças,
passar entre Marion e Fayah. Da sua parte nunca tivera tempo
na vida para crianças; constituíam o tipo de confusão de que
não precisava.
- Decidimos parar nos nove - disse Sallah.
- Eu diria que foi uma decisão sensata - disse Indy.
Sallah pegou numa tâmara, mastigou-a silenciosamente por
instantes e depois disse:
- É bom voltar a ver-te, Indiana. Tenho pensado muitas vezes
em ti. Até tencionava escrever, mas quase nunca escrevo.
suponho que contigo ainda é pior.
- Acertaste. - Indy tambêm pegou numa tâmara. Era suculenta
e deliciosa.
Sallah sorria.
- Não te perguntarei já, mas suponho que não vieste ao Cairo
só para me visitar. Estou certo?
- Certo.
Sallah ficou subitamente com uma expressão viva, maliciosa.
- Na realidade, era capaz de apostar em como sei o motivo
que te leva a estar aqui.
Indy fitou o amigo e não disse nada.
Sallah disse:
- Claro que não sou homem de apostas.
- Claro - disse Indy.
- Não falamos de negócios à mesa - comentou Fayah, com ar
majestoso.
- Mais tarde - disse Indy. Lançou um olhar a Marion, que
parecia já meio adormecida.
- Mais tarde, quando tudo estiver calmo - disse Sallah.
Durante um segundo fez-se silêncio na sala, e em seguida a
casa encheu-se repentinamente de barulho, como se tivesse
surgido alguma coisa na mesa onde estavam as crianças.
Fayah virou-se e tentou acabar com o pandemônio. Mas as
crianças não ouviam a sua voz, porque estavam ocupadas com
outra coisa. Ela levantou-se, dizendo:
- Temos convidados. Que modos são esses?
Mas continuavam a não lhe prestar atenção. Foi só quando se
aproximou da mesa que elas se calaram, deixando ver no meio um
pequeno macaco sentado direito no centro da mesa, mastigando
um pedaço de pão.
Fayah disse:
- Quem trouxe para aqui esse animal? Quem foi?
As crianças não responderam. Estavam entretidas a rir-se das
palhaçadas do animal, que andava de um lado para o outro
voneando-se com o pão nas patas. Deu saltos, fez o pino numa
pata com perfeição e em seguida saltou da mesa e atravessou o
chão aos pulos na direcção de Marion. Trepou-lhe para o regaço
e beijou-a rapidamente na face. Ela soltou uma gargalhada.
- Um macaco que dá beijos, huhá - disse ela. - Eu tambêm
gosto de ti.
Fayah disse:
- Como é que ele entrou aqui?
Durante algum tempo nenhuma das crianças falou. E depois
aquela que Indy reconheceu como sendo a mais velha disse:
- Não sabemos. Apareceu.
Fayah fitou os filhos com ar incrédulo. Marion disse:
- Se não querem o animal aqui...
Fayah interrompeu:
- Se gosta dele, Marion, então é bem-vindo na nossa casa.
Como você ?.
Marion segurou o macaco mais algum tempo antes de o colocar
no chão. Este fitou-a com ar sinistro e saltou de novo a toda
a pressa para o regaço dela.
- Deve gostar de ti - comentou Indy. Considerava os animais
um pouco mais maçadores que as crianças, e não tão espErtos.
Ela abraçou o pequeno animal e afagou-o. Enquanto observava
aquele comportamento, Indy perguntou a si mesmo: "Quem poderia
abraçar assim um macaco?" Virou a cara na direcção de Sallah,
que se levantava da mesa.
- Podemos ir para o pátio - disse Sallah.
Indy transpôs a porta atrás dele. Havia um calor abafado no
pátio murado; começou a sentir-se logo letárgico, mas sabia
que tinha de combater o cansaço por mais algum tempo.
Sallah indicou uma cadeira de ráfia e Indy sentou-se.
- Queres conversar sobre Tanis - disse Sallah.
- Acertaste.
- Imaginei - disse Sallah.
- Então estás a trabalhar lá?
Sallah ficou calado, a olhar para o céu da noite durante
algum tempo.
- Indy - disse ele. - Esta tarde entrei na Sala dos Mapas em
Tanis.
Essa notícia, embora de certo modo esperasse por ela,
abalou-o. Por algum tempo o espírito ficou vazio, sem
pensamentos, como se todas as percepções, todas as
recordações, tivessem escapado para um vácuo sombrio. A sala
dos Mapas em Tanis. E passado algum tempo, lembrou-se de Abner
Ravenwood, de uma vida inteira passada à procura da Arca, de
uma morte dominada pela loucura porque a Arca o obcecara.
Depois pensou nele próprio e na estranha reacção de inveja
que começara a sentir; quase como se devesse ser ele o
primeiro a entrar na Sala dos Mapas , como se tivesse esse
direito, como uma herança que Ravenwood lhe tivesse passado de
uma forma obscura. "Juízo irracional", disse para os seus
botões.
Olhou para Sallah e disse:
- Estão a andar depressa. É, - Os Nazis estão bem
organizados, Indy.
- Sim. Pelo menos são bons nalguma coisa, mesmo que seja
apenas em cumprir ordens.
- Além disso, têm o francês a chefiar.
- O francês?
- Belloq.
Indy ficou calado, sentado direito na cadeira. Belloq.
Haveria algum lugar no mundo onde o desgraçado não aparecesse?
A princípio sentiu-se furioso, depois sentiu uma outra coisa,
uma sensação que começou a gozar lentamente, um sentido de
competição, a emoção calma de antever a oportunidade de se
vingar Sorriu pela primeira vez. "Belloq, desta vez apanho-te."
E havia uma forte determinação na perspectiva.
Tirou o medalháo do bolso e entregou-o a Sallah.
- Eles podem ter descoberto a Sala dos Mapas - disse ele -
Mas não irão muito longe sem isto, pois não?
- Suponho que isto é o florão do Bastão de Rá?
- Exactamente. As marcas que tem são-me desconhecidas. Qual
é a tua interpretação?
Sallah abanou a cabeça.
- Pessoalmente, nada. Mas conheço uma pessoa que poderá
saber. Posso levar-te amanhã para a conheceres.
- Agradecia - disse Indy. Tirou o medalháo a Sallah e meteu-o
no bolso. "Em segurança", pensou. Sem isto, Belloq não terá
saída. "Uma delicada sensação de triunfo", disse para si
mesmo. "Renê, este pertence-me. Se conseguir descobrir um meio
de levar os Nazis."
Perguntou:
- Quantos alemães trabalham na escavação?
- Mais ou menos uns cem - respondeu Sallah. - Tambêm estão
muito bem equipados.
- Tambêm pensei nisso. - Indy fechou os olhos e recostou-se.
Sentia-se dominado pelo sono. "Pensarei em alguma coisa",
disse para os seus botões. "Em breve."
- Isso preocupa-me - disse Sallah.
- O quê?
- A Arca. Se estiver em Tanis... - Sallah calou-se, com uma
expressão de angústia reprimida no rosto. - É uma coisa que o
homem não deveria perturbar. A morte sempre esteve associada a
ela. Sempre. Não é deste mundo, percebes?
- Percebo - replicou Indy.
- E o francês... está nitidamente obcecado com o objecto.
Fito-o nos olhos e vejo uma coisa que não sei descrever. Os
Alemães não gostam dele. Ele não se importa. Até parece que
não se apercebe de nada. Ele só pensa na Arca. E o modo como
observa tudo... não deixa passar nada em branco. Quando entrou
na Sala dos Mapas... como hei-de descrever o rosto dele? Foi
transportado para um lugar para onde eu não desejaria ir.
Subitamente, sacudido da escuridão quente, levantou-se um
vento que fez saltar pó e areia - um vento que desapareceu com
a mesma rapidez com que surgira.
- Agora tens de dormir - disse Sallah. - A minha casa é tua,
claro.
- E eu estou grato.
Os dois homens entraram em casa, onde Marion dormia; ele
parou em frente da porta fechada, escutando o som fraco da sua
respiração. "A respiração de uma criança", pensou - e teve uma
visão de Marion anos atrás, quando tinham tido uma relação, se
assim se podia chamar. Mas o desejo que sentira nesse tempo
era algo diferente tambêm; era um desejo da mulher que ela já
era.
Agradou-lhe a sensação.
Percorreu o corredor, seguido por Sallah.
"A criança está enterrada", pensou ele. "Agora vive apenas a
mulher."
Sallah perguntou:
- Resistes à tentação, Indy?
- Não conhecias o meu lado puritano?
Sallah encolheu os ombros, fez um sorriso misterioso quando
Indy fechou a porta do quarto de hôspedes e se dirigiu à cama.
Ouviu Sallah afastar-se no corredor, depois a casa ficou em
silêncio. Fechou os olhos, à espera que o sono viesse depressa
-mas não veio. Manteve-se uma sombra elusiva para além do
alcance do espírito.
Virou-se com impaciência. Por que não se deixava vencer pelo
sono? "Resistes à tentação, Indy?"
Comprimiu as pálpebras com os nós dos dedos: virou-se mais
algumas vezes, mas aquilo que não deixava de ver no interior
da cabeça era uma imagem de Marion a dormir tranquilamente no
quarto. Levantou-se e abriu a porta. "Volta para a cama,
Indy", disse para si mesmo. "Não sabes o que estás a fazer.",
Saiu para o corredor e caminhou devagar - "um ladrão em
bicos de pés", pensou - na direcção do quarto de Marion.
Parou junto à porta. Dê meia volta. "Volta para a tua
insónia." Rodou o puxador da porta, entrou no quarto e viu-a
deitada em cima da colcha. O luar inundava o quarto com um
reflexo prateado projectado pelas asas de uma gigantesca
borboleta nocturna. Ela nem se mexeu. Estava com a cara virada
para o lado, os braços sob o estômago; a luz fazia sombras
suaves em volta da boca. "Vai-te embora", pensou. "Vai-te já
embora.", Bela. Estava tão bela, tão vulnerável. Uma mulher a
dormir e o toque da lua - uma combinação estonteante. Deu por
ele a aproximar-se da cama, a sentar-se depois na beira do
colchão. Olhou fixamente para o seu rosto, levantou a mão,
colocou as pontas dos dedos ao de leve numa face. Quase
imediatamente ela
abriu os olhos.
Ficou calada durante algum tempo. No quarto os olhos
pareciam pretos. Ele pôs um dedo nos lábios dela.
- Queres saber por que estou aqui sentado, certo? -
perguntou ele.
- Mal posso adivinhar - disse ela. - Vieste explicar as
complexidades do Novo Acordo de Mr. Roosevelt? Ou talvez
esperes que eu desmaie ao luar.
- Não espero nada.
Ela riu-se.
- Toda a gente conta com alguma coisa. É uma pequena canção
que aprendi ao longo da vida.
Ele levantou-lhe a mão, sentiu-a tremer um pouco.
Ela não disse nada quando ele baixou o rosto e a beijou na
boca. O beijo que recebeu em troca foi rápido, duro e sem
emoção. Afastou o rosto e olhou para ela durante algum tempo.
Ela sentou-se, tapando-se com um lençol. A camisa de noite era
transparente e viam-se os seios - uns seios firmes, já não
eram de uma criança.
- Gostaria que saísses - disse ela.
- Porquê?
- Não preciso de dar justificações.
Indy suspirou.
- Odeias-me assim tanto?
Ela olhou fixamente para ajanela.
- Que linda lua - disse ela.
- Fiz-te uma pergunta.
- Não podes entrar de novo na minha vida, assim sem mais nem
menos, Indy. Não podes derrubar as defesas que criei e esperar
que junte os fragmentos do passado. Não entendes?
- entendo - replicou ele.
- É a minha preleção. Agora preciso de dormir. Por isso
vai-te embora.
Ele levantou-se devagar.
Quando chegou à porta ouviu-a dizer:
- Tambêm te desejo. Pensas que não? Deixa passar algum
tempo, está bem? Vamos ver o que acontece.
- Claro - e depois saiu para o corredor, incapaz de
silenciar o eco de desapontamento que parecia ressoar-lhe na
cabeça. Ficou parado à luz da lua que passava sem fios
prateados através da janela no fundo do corredor, e perguntou
a si mesmo... quando o desejo começou a dissipar-se... se
fizera figura de urso. "Não seria a primeira vez", pensou.
Não conseguiu dormir depois de ele sair. Sentou-se perto da
janela e olhou fixamente para o contorno da cidade, para as
cúpulas, os minaretes, os telhados planos. Por que havia de
tentar tão depressa? O desgraçado nunca aprendera a ser
paciente, pois Era tão temerário em questôes do coração como
em tudo o resto. Não percebia que as pessoas precisavam de
tempo; talvez isso fosse um bom remédio, mas era muito melhor
que o iodo. Não ia abandonar o passado e a terra, como uma
criatura de uma galáxia distante, no despertar súbito do
presente de Indiana Jones. Tinha de ser planeado mais devagar.
Se houvesse alguma coisa a descobrir; se houvesse alguma coisa
a planear.
O vulto atravessou rapidamente o vestiário onde Indy e
Marion tinham deixado as malas e tudo o que lhes pertencia.
Movia-se de um modo estranhamente furtivo, abrindo caixas,
remexendo roupas, pegando em pedaços de papel, examinando-os
com uma lentidão surpreendente. Não descobriu aquilo que o
tinham ensinado a encontrar. Sabia que tinha de procurar uma
determinada forma - um desenho, um objecto, não interessava
desde que tivesse a forma. Como não descobriu nada, percebeu
que o dono ficaria desapontado. E isso implicaria falta de
comida. Até podia significar castigo. Visualizou uma vez mais
a forma: a forma do sol, pequenas marcas à volta, um orifício
no centro. Recomeçou a busca minuciosa. E, uma vez mais, não
descobriu nada. O macaco entrou sorrateiramente no corredor,
tirou alguns restos de comida da mesa onde brincara com a
mulher bonita, saiu por umajanela aberta e desapareceu na
escuridão.
CAPÍTULO VIII
CAirO
A tarde estava soalheira, o céu quase branco. Tudo reflectia
brancura, as paredes, a roupa, o vidro, como se a luz se
tivesse transformado numa geada que cobria todas as
superfícies.
- Precisávamos do macaco? - perguntou Indy. Atravessaram
rapidamente a rua apinhada de gente, passando pelos bazares,
pelos mercadores.
- Seguiu-me, não fui eu que o trouxe - replicou Marion.
- Deve ter estima por ti.
- Não tem assim tanta estima por mim, Indy. Pensa que sou o
pai dele, percebes? Até é um pouco parecido contigo.
- É parecido comigo e esperto como tu.
Marion ficou calada durante algum tempo antes de perguntar:
- Por que não arranjaste uma rapariga simpática para aí a
sentares e criares nove filhos?
- Quem diz que não arranjei?
Ela lançou-lhe um olhar. Agradou-lhe a ideia de ter visto um
laivo de pânico no rosto dela, de inveja.
- Não eras capaz de assumir a responsabilidade. O meu pai
tinha realmente uma opinião a teu respeito, Indy. Dizia que
eras um mandrião.
- Estava a ser generoso.
- O mandrião mais talentoso que jamais ensinara, mas apesar
de tudo um mandrião. Amei-te, sabes? Foi preciso muito para
tudo afastares.
Indy suspirou.
- Não pretendo apresentar outra versão, Marion.
- Eu tambêm não a quero - disse ela. - Mas às vezes gosto de
te recordar isso.
- Uma injecção emocional, é isso?
- Um corte, sim. Precisas, para saberes ocupar o teu lugar.
Indy começou a caminhar mais depressa. Havia alturas em que,
apesar das suas próprias defesas, ela conseguia tocar-lhe no
fundo. Era como o desejo inesperado que sentira na noite
antErior. "Não preciso", pensou. "Não preciso disso na minha
vida. O amor implica um certo tipo de ordem, e não desejas
ordem quando já te acostumaste a ser bem sucedido no caos."
- Ainda não me disseste para onde vamos - disse Marion.
- Encontramo-nos com Sallah, depois vamos visitar o perito
de Sallah, Imam.
- O que aprecio é o modo como me arrastas por todo o lado -
disse Marion. - Por vezes fazes-me lembrar o meu pai.
Arrastou-me à volta do globo como se eu fosse um trapo.
Chegaram a umabifurcação na rua. Imediatamente o macaco
libertou-se da mão de Marion e correu pelo meio da multidão
com movimentos rápidos e largos.
- Hey! - gritou Marion. - Volta aqui!
Indy disse, aliviado.
- Deixa-o ir.
- Começava a habituar-me a ele.
Indy lançou-lhe um olhar de desprezo, segurou-a pela mão e
obrigou-a a acompanhá-lo.
O macaco esgueirava-se, deslizando pelo meio das multidões
que apinhavam a rua. Esquivava-se às mãos estendidas das
pessoas que queriam tocar-lhe, depois dobrou uma esquina e
entrou numa porta. Lá, saltou para os braços do homem que o
amestrara. Treinara-o muito bem. Encostou-o ao corpo,
meteu-lhe um doce na boca e depois afastou-se da entrada. O
macaco era melhor que um cão de caça, e cem vezes mais
esperto.
O homem examinou a rua estreita, erguendo o rosto na
direcção do cimo dos telhados. Acenou com a mão.
De um telhado próximo uma pessoa acenou tambêm.
Depois acariciou o animal. Fizera bem o seu trabalho,
seguindo os dois que iriam ser mortos, descobrindo o rasto com
a diligência de um predador, mas com muito mais encanto.
"Bem", pensou o homem. "Muito bem."
Indy e Marion chegaram a uma pequena praça, um lugar repleto
de barracas de vendedores, as multidões de compradores. Indy
parou de repente. Já sentia aquele velho instinto a dominá-lo,
a bulir-lhe com os nervos, pondo-o tenso. "Vai acontecer
alguma coisa", pensou.
Perscrutou as multidões. "O quê, ao certo?"
- Por que parâmos? - perguntou Marion.
Indy não respondeu.
Aquela multidão. Como podia adivinhar no meio daquele
grupo de pessoas? Meteu a mão no casaco e prendeu o cabo do
chicote e Fitou de novo a multidão. Havia um grupo que
caminhava em direcção a eles com mais determinação que
qualquer um dos compradores habituais.
Uns Árabes. Alguns que eram europeus Com a visão apurada,
Indy viu o clarão de um objecto metálico e pensou, "um
punhal."
Viu-o brilhar na mão de um Árabe que se aproximava
rapidamente deles. Indy tirou o chicote, agitou-o, ouviu
quando este rasgou o ar com o som de uma melodia ameaçadora:
enrolou-se na mão do Árabe e o punhal caiu algures sem fazer
mal Mas depois surgiram mais pessoas a avançar para eles e ele
tinha de pensar sem demora.
- Sai daqui - disse a Marion, e deu-lhe um empurrão. -
Corre!
Mas Marion não fugia. Em vez disso, agarrou numa vassoura
que estava numa barraca próxima e agrediu outro Árabe na
garganta.
- Vai - repetiu Indy. - Vai!
- O diabo ? que vou - replicou ela.
"Eram muitos", pensou Indy. Era impossível enfrentá-los
mesmo com a ajuda dela. Viu oscilar a lâmina de um machado.
atacou de novo com o chicote, desta vez enrolando-o no pescoço
do Árabe. Puxou com força e o homem gemeu antes de cair. E
depois um dos europeus agredia-o, tentando arrancar-lhe o
chicote da mão. Indy levantou a perna, caindo numa barraca de
fruta no meio de legumes espalhados e esmagados que parecia
uma natureza morta estranha. Indy reparou num portão e num
muro. agarrou Marion, fazendo-a entrar, colocando em seguida o
ferrolho para que ela não pudesse sair apesar dos seus gritos
e protestos. Lançou um olhar pela praça, fazendo estalar o
chicote, derrubando os suportes das barracas. Caos, o caos
total, e ele adorou, Uma lâmina oscilou à sua frente e ele
baixou-se mesmo no momento em que ouvia o aço silvar por cima
da cabeça. Em seguida deu um estalo com o chicote e enrolou-o
nos tornozelos do Árabe, fazendo-o cair num monte de vasos
espalhados e jarras partidas, enquanto o comerciante gritava
cheio de raiva.
Ele examinou os estragos. Perguntou a si mesmo se haveria
mais assaltantes. O desejo de acção que sentia era intenso.
Ninguém se mexeu a não ser os negociantes que tinham visto
as suas barracas destruídas por um lunático com um chicote.
Ele começou a recuar, dirigindo-se para a porta no muro,
deitando a mão ao ferrolho. Ouvia Marion a bater na madeira.
Mas, antes que pudesse levantar o ferrolho, um vulto com um
albornoz precipitou-se em direcção a ele com um sabre. Indy
levantou o braço para desviar o golpe, pegando o homem pelo
pulso e lutando com ele.
Marion deixou de bater e afastou-se da porta, procurando
outro acesso à praça. "Maldito Indy", pensou, "por achar que
tem um direito dado por Deus de me proteger! Diabos o levem
por um comportamento que pertence à Idade Média!"
Desceu a rua estreita em que se encontrava e depois parou:
um Árabe caminhava na sua direcção, com passos rápidos e
ameaçadores. Esgueirou-se pela ruela mais próxima, ouviu o
homem a aproximar-se.
Um beco sem saída.
Trepou para cima do muro, ouvindo o Árabe a resmungar
enquanto a perseguia. Passou por cima do muro para o outro
lado, escondeu-se num recanto entre prádios. O Árabe, sem
desconfiar, passou por ela e, algum tempo depois, Marion
espreitou. Voltara atrás, dessa vez na companhia de um dos
europeus. Recuou para o interior do recanto, respirando com
dificuldade mesmo no momento em que tentava desesperadamente
acalmar os pulmões, fazer parar o barulho do coração. "Que
fazes numa situação como esta?", pensou ela. "Escondes-te, não
é? Escondes-te, simplesmente.", Encolhera-se mais no recanto,
procurando as sombras, os lugares escuros, quando deparou com
um cesto de junco. "Muito bem", pensou, "sentes-te como um dos
Quarenta Ladrões, mas havia um velho ditado que falava de um
porto na tempestade, certo?"
Trepou para dentro do cesto, colocou a tampa e ficou lá
dentro acocorada. "Está quieta. Não te mexas."
Ela ouvia através das aberturas nojunco o som dos dois
homens a andar furtivamente de um lado para o outro. Falaram
um com o outro num inglês tão macarrônico que ela pensou que
necessitava de uma tala maior.
- Procura aqui.
- Já procurei aqui.
Ela ficou muito quieta.
Aquilo que não viu, aquilo que não podia ver, era o macaco
sentado num muro que dava para o recanto; ouviu-o tagarelar
subitamente, violentamente, pouco tempo depois percebeu o que
era o barulho. "Aquele macaco", pensou. "Seguiu-me. A traição
afectuosa. Por favor, macaco, vai-te embora, deixa-me em
paz.", Mas sentiu que a levantavam, que levantavam o cesto.
Espreitou pelas tiras estreitas do cesto e viu que eram o
Árabe e o europeu que o erguiam, que estava a ser levada, como
lixo, aos ombros. Ela procurou libertar-se, bateu com os
punhos na tampa, que já estava presa.
No bazar, Indy afastara o homem com o sabre; mas já reinava
a confusão, os negociantes Árabes, furiosos, moviam-se com
impaciência, gesticulando violentamente na direcção do louco
com o chicote. Indy recuou até embater na porta, procurou o
ferrolho, viu o sabre vir de novo direito a ele. Desta vez
atacou com o pé, derrubando o homem que caiu de costas no meio
da multidão. Depois conseguiu abrir a porta e escapou para a
rua estreita, procurando qualquer vestígio dela. Nada. Apenas
dois indivíduos no outro lado da rua que transportavam um
cesto.
"Para onde foi ela?" E então, sem saber de onde, ouviu a voz
dela chamar o seu nome, e o eco foi estranhamente arrepiante.
O cesto.
Viu mexer a tampa quando os dois homens que o carregavam
dobraram a esquina. Por instantes, um estranho ruído desviou a
sua atenção do cesto, e ele olhou para cima e viu o macaco
empoleirado no muro. Devia estar a zombar dele. Sentiu um
desejo enorme de sacar da pistola e matar o animal com um tiro
certeiro. Em vez disso, desatou a correr na direcção dos dois
homens. Fez o mesmo desvio que os homens tinham feito, vendo a
rapidez com que corriam à frente dele com o cesto a balançar
no meio deles. "Como podiam aqueles tipos andar tão depressa
enquanto suportavam o peso de Marion?"interrogou-se."
Viravam semprE uma esquina antes dele, tinham sempre um passo
de avanço. Seguiu-os ao longo de ruas movimentadas, cheias de
compradores e mercadores, onde tinha de abrir caminho
freneticamente. Não podia perder de vista aquele cesto, não os
podia deixar escapulir-se assim. Deu empurrões, afastou
pessoas com violência, ignorou queixas e clamores. "Não
pares. Não a percas de vista."
E então apercebeu-se de um barulho estranho, um som
melodioso que tinha meios tons tristes, com uma certa
melancolia. Não o conseguiu localizar, mas fê-lo parar; estava
desorientado Quando recomeçou a andar, percebeu que a perdera.
Já não via o cesto.
Desatou a correr de novo, abrindo caminho através da
multidão. E o estranho som de lamentação, como se fosse isso,
tornou-se mais forte, mais agudo.
Parou na esquina de uma rua estreita.
Afrente dele estavam dois Árabes que transportavam um cesto
de junco.
Imediatamente, sacou do chicote e derrubou um, afastou o
chicote, e fe-lo estalar outra vez. Bateu com um ruído seco na
perna do outro Árabe, rodeando-a, enlaçando-a como um réptil,
e seguio. O cesto tombou e ele aproximou-se.
Nem sinal de Marion." já Confuso, olhou para aquilo que
caíra do cesto.
Espingardas, carabinas, munições.
O cesto errado!, Saiu da viela e continuou a subir a rua
principal dos bazares e o estranho som dolente tornou-se ainda
mais forte.
Entrou numa grande praça, confundido com a súbita visão de
miséria a sua volta: uma praça de mendigos, os mutilados, os
cegos, os abortos, que exibiam cotos de braços numa procura de
ajuda, descuidada e hesitante. Sentia-se o cheiro a suor, a
urina e a excremento, um cheiro penetrante que enchia o ar com
a tangibilidade de um objecto sólido.
Ele atravessou a praça, evitando os pedintes.
E teve de parar em seguida.
Já conhecia a natureza do som dolente.
No extremo da praça passava um cortejo fúnebre. Grande e
comprido, obviamente o funeral de um cidadão importante.
Cavalos sem cavaleiro transportavam o caixão, padres entoavam
cânticos do Corão, mulheres que carpiam iam à frente com as
cabeças envoltas em lenços, criados iam atrás, e na
retaguarda, pesado e desajeitado, seguia o búfalo sacrificial.
Olhou fixamente para o cortejo durante algum tempo. Como
diabo iria atravessar aquela coluna?" Olhou para o caixão,
ornado, rico, erguido; e depois viu, por entre uma pequena
abertura na coluna, o cesto que era transportado pelos dois
homens em direcção a um caminhão com uma cobertura de lona
estacionado na esquina mais distante da praça. Era impossível
identificar o som por causa do barulho feito pelos que tomavam
parte no funeral, mas pareceu-lhe ouvir Marion gritar lá
dentro.
Preparava-se para avançar e abrir caminho através do cortejo
quando tudo aconteceu.
Do interior do caminhão uma metralhadora começou a disparar,
varrendo a praça, dispersando a coluna do cortejo fúnebre e a
multidão de pedintes. Os padres continuaram a entoar os
cânticos até as rajadas atravessarem o próprio caixão,
atirando ao ar lascas de madeira, fazendo com que o cadáver
mumificado passasse pela tampa partida e caísse no chão. As
pessoas gemeram com renovado interesse. Indy correu aos
ziguezagues na direcção de um poço no extremo da praça,
aproximando-se do caminhão. Escondeu-se atrás do poço,
espreitando, precisamente no momento em que atiravam o cesto
de junco para a parte de trás do caminhão. Quase nessa ocasião,
quase fora da sua linha de visão, quase despercebido,
arrancava um sedan preto. O caminhão tambêm se pôs em movimento.
Afastou-se da praça.
Antes de desaparecer, Indy fez pontaria com cuidado, com uma
precisão como nunca fizera antes, e premiu o gatilho. O
condutor caiu em cima do volante. O caminhão guinou, bateu num
muro, capotou.
Quando se preparava para se dirigir a ele, parou
horrorizado.
Compreendeu então que jamais poderia sentir de novo coisa
tão intensa, um sofrimento tal, uma angústia tal, ter sensação
de entorpecimento tão terrível e profunda.
Compreendeu tudo isso quando viu o caminhão explodir, deitando
chamas dele, lançando fragmentos no ar, destruindo-se e tambêm
percebeu que o cesto fora atirado para a parte traseira de um
caminhão que transportava munições.
Que Marion estava morta.
Morta com uma bala da sua própria arma.
Como foi possível? Fechou os olhos,já sem ouvir, consciente
apenas do sol a bater-lhe nas pálpebras fechadas.
Caminhou sem saber por quanto tempo, indiferente, recordando
o momento em que apontara a arma e atingira o condutor.
Porquê? Por que não pensara na possibilidade de o caminhão poder
transportar alguma coisa perigosa?, "Arruinaste-lhe a vida
quando era uma rapariga." Agora acabaste com ela quando era
uma mulher."
Percorreu as ruas estreitas, as vielas apinhadas de gente, e
culpou-se vezes sem conta da morte de Marion.
Era um sofrimento inimaginável, insuportável. E ele só
conhecia um remédio. Conhecia apenas uma forma segura de
automedicação. Por isso deu por ele a dirigir-se a um bar
onde, previamente, combinara encontrar-se com Sallah. Isso já
parecia encerrado num passado distante, noutro mundo, numa
outra vida.
Ele era até um outro homem.
Viu o bar, um lugar miserável. Entrou e foi assaltado por um
fumo espesso de tabaco, pelo cheiro de bebidas entornadas.
Sentou-se num banco junto ao balcão. Pediu uma garrafa de
uísque de cerca de um quartilho e bebeu monotonamente um copo
apôs outro, perguntando a si mesmo - a medida que ficava mais
embriagado - o que fazia com que algumas pessoas se
comportassem assim enquanto outras estavam animadas como
relógios avariados; que mecanismo era esse tão necessário para
relações bem sucedidas que umas pessoas possuíam e outras não.
Deixou rodopiar a pergunta no espírito até ocultar o sentido,
flutuando através de percepções alcoólicas como um navio
fantasma.
Pegou noutro copo. Sentiu um toque no braço e virou devagar
a cara e viu o macaco em cima do balcão. Aquele primata
estúpido ao qual se afeiçoara Marion de forma tão insensata.
Então recordou-se que aquele animal idiota dera um beijo na
face de Marion: "Está bem, Marion, simpatizou contigo,
tolero."
- Queres uma bebida, babuíno?
O macaco inclinou a cabeça para um lado, observando-o.
Indy apercebeu-se de que o empregado do bar o observava como
se fosse um fugitivo de um asilo próximo. E depois tambêm se
apercebeu de outra coisa: três homens, europeus - supôs que
fossem alemães por causa do sotaque -, tinham-se juntado em
redor dele.
- Uma pessoa deseja a sua companhia - disse um deles.
- Estou a beber aqui com o meu amigo - respondeu Indy.
O macaco mexeu-se.
- A sua companhia não é solicitada, Mr. Jones. É exigida.
Levantaram-no do banco e empurraram-no para uma sala nas
traseiras. O macaco foi atrás a guinchar. A sala estava escura
e arderam-lhe os olhos do fumo.
Alguém estava sentado numa mesa no canto.
Indy compreendeu que aquele confronto era inevitável.
Renê Belloq bebia um copo de vinho e oscilava uma corrente
da qual pendia um relógio.
- Um macaco - disse Belloq. - Vejo que continua a ter um
gosto admirável na escolha dos amigos.
- Tem montes de piada, Belloq.
O francês fez uma careta.
- A sua capacidade de dar respostas vivas e espirituosas
consterna-me. Acontecia o mesmo quando éramos estudantes,
Indiana. Falta-lhe bravata.
- Devia matá-lo já...
- Ah, entendo o seu desejo. Mas devo lembrar-lhe que não fui
eu que envolvi Miss Ravenwood neste caso um tanto sórdido. E
aquilo que o consome, meu velho amigo, é a consciência de que
você é responsavel por isso. Não?
Com os olhos raiados de sangue, Indy fitou Belloq.
- Não é preciso ser desagradável.
- Pense nisto - disse Belloq. - A arqueologia sempre foi a
nossa religião, a nossa doutrina. Ambos nos afastâmos de certo
modo do chamado verdadeiro caminho, notoriamente. Ambos nos
dedicamos ocasionalmente a... transações... duvidosas. Os
nossos métodos não são assim tão diferentes como você afirma.
Eu sou, se quiser, um reflexo vago de si próprio. Que seria
preciso para o tornar igual a mim, Professor? Um gume? Uma
afiação do instinto assassino, sim?
Indy não disse nada. As palavras de Belloq chegaram aos
ouvidos dele como ruídos abafados por um nevoeiro. Dizia
disparates, puros disparates, que pareciam esplêndidos e
verdadeiros porque eram ditos com um sotaque francês que
poderia descrever-se como bizarro, encantador. O que Indy
ouviu foi o silvo de uma cobra escondida.
- Duvida de mim, Jones? Pense: que o trás aqui? O desejo de
encontrar a Arca, estou certo? O velho sonho da antiguidade. A
relíquia histórica, a procura... poderia ser um vírus no seu
sangue. Sonha com coisas que passaram. - Belloq sorria,
oscilando um relógio suspenso numa corrente. Disse: - Olhe
para este relógio. Barato. Nada. Leve-o para o deserto e
enterre-o durante mil anos e ficará com um valor incalculável.
Homens matarão por causa dele. Homens como você e eu, Jones.
Admito que a Arca é diferente. Claro que a questão do lucro
está posta um pouco de lado. Compreendemos, você e eu. Mas a
cobiça ainda está no coração, meu amigo. O vício que temos em
comum.
O francês deixou de sorrir. Havia uma expressão vítrea nos
olhos, um distanciamento, um isolamento. Podia estar a
conversar com ele mesmo.
- Compreende o que é a Arca? É como um transmissor. Como um
rádio através do qual se pode comunicar com Deus. E eu estou
muito perto dela. Mesmo muito perto. Esperei anos para chegar
tão perto. E aquilo de que falo está para além do lucro, para
além do desejo da simples aquisição. Falo de comunicar com
aquilo que está encerrado na Arca.
- Compra isso, Belloq? Compra o misticismo? O poder?
Belloq parecia indignado. Recostou-se. Juntou as pontas dos
dedos.
- Você não?
Indy encolheu os ombros.
- Ah, não tem a certeza, pois não? Até você não tem a
certeza. - Belloq baixou a voz. - Eu tenho mais que a certeza,
Jones. Tenho a certeza absoluta. Já não tenho a menor dúvida.
As minhas pesquisas levaram-me sempre nessa direcção. Eu sei.
- Está louco - disse Indy.
- É uma pena que acabe assim - disse Belloq. - Às vezes
estimulou-me, uma coisa rara num mundo tão aborrecido como
este.
- Esse pensamento faz-me feliz, Belloq.
- Ainda bem. A sério. Mas tudo acaba.
- Não é um lugar muito retirado para cometer um assassinato.
- Raramente tem importância. Estes Árabes não interferirão
no assunto de um branco. Não se importam que nos matemos.
Belloq levantou-se a sorrir. Acenou com a cabeça
bruscamente.
Indy, tentando ganhar tempo, qualquer coisa, disse:
- Espero que aprenda alguma coisa com a sua pequena conversa
com Deus, Belloq.
- Naturalmente.
Indy encheu-se de coragem. Não havia tempo para se virar
rapidamente e sacar a pistola, e ainda menos tempo para pegar
no chicote. Os assassinos estavam mesmo atrás dele.
Belloq olhava para o relógio.
- Quem sabe, Jones? Talvez exista uma vida futura onde almas
como você e eu se voltem a encontrar. Diverte-me pensar que eu
tambêm o vencerei lá.
Ouviu-se então um som no exterior. Era um som inarmônico. A
tagarelice colectiva de crianças animadas, um som alegre que
Indy associou a uma manhâ de Natal. Não era o que esperava
ouvir na câmara da morte.
Belloq olhou para a porta, surpreendido. Os filhos de
Sallah, os nove, entravam em grupo na sala, gritando o nome de
Indy. Indy arregalou os olhos quando eles o cercaram, enquanto
os mais pequenos lhe trepavam para os joelhos e os outros
formavam um círculo como se fossem frágeis escudos humanos.
Alguns começaram a trepar-lhe para os ombros. Um conseguira
agarrar-se ao pescoço de Indy como se fosse andar às
cavalitas, e outro ainda apertava-lhe os tornozelos.
Belloq franzia as sobrancelhas.
- Pensa que pode sair daqui, não pensa? Pensa que esse
círculo humano insignificante o protegerá?
- Não penso nada - replicou Indy.
Já o puxavam para a porta, arrastavam-no ao mesmo tempo que
o protegiam. Sallah! Devia ter sido Sallah quem planeara tudo,
pondo em perigo os filhos e enviando-os para aquele bar, e
maquinara tirá-lo dali de qualquer maneira. Como era possível
que Sallah tivesse corrido um tal risco?
Belloq sentara-se outra vez, com os braços cruzados. A
expressão do seu rosto era a de um pai relutante numa festa de
escola. Abanou a cabeça.
- Regalar-me-ei na próxima reunião da Sociedade
Internacional de Arqueologia com a denúncia do seu desrespeito
pelas leis que regulam o trabalho infantil, Jones.
- Nem sequer é membro.
Belloq sorriu, mas apenas por breves instantes. Continuou a
fitar as crianças e depois, como se estivesse a tomar uma
decisão, virou-se para os cúmplices. Levantou a mão, um gesto
que indicava que deviam guardar as armas.
- Tenho um lugar agradável para cães e crianças, Jones. Pode
expressar a sua gratidão de uma forma simples, de uma forma
que lhe agrade. Mas crianças não o salvarão quando nos
voltarmos a encontrar.
Indy recuava rapidamente. E, em seguida, esgueirou-se, com
os miúdos agarrados a ele como se fosse um brinquedo valioso.
O caminhão de Sallah estava estacionado na rua - uma visão que
encheu Indy de alegria, o primeiro acontecimento do dia que o
animou um pouco.
Belloq acabou de beber o copo de vinho. Ouviu o caminhão a
afastar-se. Quando o som deixou de se ouvir pensou, com uma
perspicácia que o surpreendeu vagamente, que ainda não estava
preparado para matar Indy. Que ainda não chegara a hora. Não
fora a presença das crianças - quase não tinham importância,
Era antes o facto de preferir, algures num lugar que ainda não
sondara, um canto remoto do entendimento, poupar Jones, deixar
que o homem vivesse mais algum tempo.
"Afinal há outras coisas piores que a morte", pensou ele.
E divertiu-o pensar na agonia, na angústia, por que passaria
Jones: pelo menos havia a rapariga - isso seria o castigo
suficiente, a tortura. Mas tambêm havia o facto, igualmente
punidor, talvez ainda mais forte, de que Jones viveria para
ver a Arca passar-lhe por entre os dedos.
Belloq inclinou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada;
e os cúmplices alemães fitaram-no confusos.
No caminhão, Indy disse:
- Os teus miúdos têm um sentido da oportunidade que venceria
os Fuzileiros dos E. U.A. Sallah.
- Apercebi-me da situação. Tinha de agir prontamente - disse
Sallah.
Indy olhou para a estrada: escuridão, luzes fracas, pessoas
que se afastavam do caminhão. Os miúdos iam atrás, a cantar e a
rir. "Sons inocentes", pensou Indy, recordando aquilo que
queria esquecer.
- Marion...
- Eu sei - disse Sallah. - Soube antes. Estou triste. Mais
que triste. Que posso dizer para te consolar? Como posso
minorar o teu sofrimento?
- Nada faz diminuir o sofrimento, Sallah.
Sallah acenou com a cabeça.
- Compreendo perfeitamente.
- Mas podes ajudar-me de outro modo. Podes ajudar-me a
vencer aqueles safados.
- Podes contar com a minha ajuda, Indiana - disse Sallah.
- Em qualquer altura.
Sallah ficou calado durante algum tempo, guiando o caminhão e
percorrendo a distância que faltava para chegar a casa.
- Tenho mais notícias para te dar - disse ele passado algum
tempo. - Uma não é uma boa notícia. Mas diz respeito a Arca.
- Dê-ma - disse Indy.
- Em breve. Quando chegarmos a minha casa. E mais tarde, se
quiseres, podemos ir a casa de Imam, que te explicará as
marcas.
Indy caiu num silêncio de morte. Já tinha uma sensação
desagradável, um latejo forte na nuca. E se os sentidos
estivessem mais apurados, a intuição menos embotada pelo
álcool, talvez tivesse reparado na motorizada que seguira o
caminhão desde o bar. Mas, mesmo que a tivesse visto, não
reconheceria o condutor, o homem que se especializara em
treinar macacos.
Quando as crianças foram para dentro de casa, Indy e Sallah
saíram para o pátio murado. Sallah andou de um lado para o
outro no pátio durante algum tempo antes de parar junto ao
muro e dizer:
- Belloq tem o medalháo.
- O quê? - Indy meteu imediatamente a mão no bolso e os
dedos tocaram no florão. - Estás enganado.
- Ele tem uma cópia, um florão como o teu, com um cristal no
centro. E a peça tem as mesmas marcas da tua.
- Não percebo - disse Indy, consternado. - Sempre me
convenci de que não havia gravuras. Nenhum duplicado: Não
entendo.
Sallah disse:
- Há outra coisa, Indiana.
- Sou todo ouvidos.
- Belloq entrou na Sala dos Mapas hoje de manhã. Quando saiu
disse-nos onde devíamos escavar. Um outro lugar, afastado da
primeira escavação.
- O Poço das Almas - disse Indy num tom de resignação.
- Creio que sim, se ele fez os cálculos na Sala dos Mapas.
Indy começou a bater com as palmas das mãos. Virou-se uma
vez mais para Sallah, tirando o medalháo do bolso.
- Tens a certeza de que era como este?
- Eu vi.
- Olha outra vez, Sallah.
O egípcio encolheu os ombros, pegou no florão e ôlhou
fixamente para ele durante algum tempo, virando-o na mão.
Disse:
- Talvez haja uma diferença.
- Não me escondas nada.
- Creio que o medalháo de Belloq tinha apenas marcas num
lado.
- Tens a certeza?
- Tenho quase a certeza absoluta.
- Então - disse Indy - só preciso de saber qual é o
significado das marcas.
- Então deverêmos ir a casa de Imam. Devíamos ir já.
Indy não disse nada. Seguido por Sallah, saiu do pátio para
a rua estreita. Já sentia a urgência. A Arca, sim - mas era
algo mais que a Arca. Era por causa de Marion. Para que a
morte dela tivesse explicação teria de chegar ao Poço das
Almas antes de Belloq. "Como se a morte tivesse explicação",
pensou ele.
Subiram para o caminhão de Sallah, e nesse preciso momento
Indy viu o macaco na parte de trás. Fitou-o. Alguma vez seria
possível deixar de ver o animal? Em breve aprenderia a
linguagem humana e chamá-lo-ia papá. Um eco fê-lo sofrer: a
piada de Marion sobre a parecença do animal com ele.
O macaco fez uns ruídos estridentes e esfregou as patas
dianteiras.
Depois de o caminhão ter percorrido alguns metros, a
motorizada saiu da escuridão e seguiu-o.
A casa de Imam ficava situada nos arredores da cidade do
Cairo, construída numa colina; era uma construção invulgar,
fazendo lembrar a Indy um pequeno observatório. Na realidade,
quando ele e Sallah, seguidos pelo macaco, se encaminharam
para a entrada, reparou numa abertura no telhado da casa da
qual saía um enorme telescópio.
Sallah disse:
- Imam tem muitos interesses, Indiana. Padre. Intelectual.
Astrônomo. Se existe alguém que pode explicar as marcas,
essa pessoa é ele.
Abriram a porta da rua. Estava lá umjovem, acenando com a
cabeça quando entraram.
- Boa noite, Abu - disse Sallah. - Este é Indiana Jones.Uma
apresentação breve e cortês. - Indiana, este é Abu, o aprendiz
de Iman.
Indy acenou com a cabeça, sorriu, impaciente por conhecer o
intelectual - que apareceu naquele momento no fundo do
corredor. Um homem de idade com uma túnica coçada, as mãos
deformadas e cheias de manchas castanhas da idade; os olhos,
porém, estavam brilhantes de curiosidade e vida. Curvou a
cabeça numa saudação silenciosa. Seguiram-no até ao gabinete,
uma grande sala repleta de manuscritos, almofadas, mapas,
documentos antigos.
"Sente-se aqui", pensou Indy, "uma vida inteira de dedicação
ao estudo. Cada momento de cada dia é uma experiência
enriquecedora. Nada desperdiçado."
Indy entregou o medalháo a Imam, que pegou nele em silêncio
e o levou para uma mesa no extremo da sala onde estava aceso
um pequeno candeeiro. Sentou-se, virando o objecto nos dedos,
olhando para ele. Indy e Sallah sentaram-se numas almofadas,
com o macaco no meio deles. Sallah afagou o pescoço do animal.
Silêncio.
O velho bebeu um golo de vinho, em seguida escreveu
rapidamente qualquer coisa num pequeno pedaço de papel. Indy
torceu-se, olhando com impaciência. Parecia que Imam examinava
o florão como se não tivesse nenhum interesse para ele.
- Paciência - disse Sallah.
"Depressa", pensou Indy.
O homem parou a motorizada a alguma distância da casa.
Contornou sorrateiramente a casa até às traseiras, espreitando
pelas janelas até descobrir a cozinha. Encostou-se a parede,
observando o rapaz, Abu, que passava umas tâmaras por água na
banca. Esperou. Abu colocou as tâmaras numa taça, em seguida
pousou a taça em cima da mesa. O homem continuou imóvel, era
já mais uma sombra que uma substância. O rapaz pegou numa
garrafa de vinho de cristal, em vários copos, colocou-os numa
bandeja, em seguida saiu da cozinha. Só então é que o homem
saiu das sombras. Tirou uma garrafa de debaixo da capa,
abriu-a e, depois de passar uma busca a cozinha, deitou algum
líquido da garrafa sobre a taça de tâmaras. Parou um segundo.
Ouviu o som do rapaz que voltava, e rapidamente,
silenciosamente como entrara, esgueirou-se novamente.
Imam ainda não falara. Indy olhava de vez em quando para
Sallah, cuja expressão era a de um homem habituado a períodos
de enorme paciência, períodos de espera. A porta abriu-se. Abu
entrou com uma garrafa de cristal com vinho e copos e pousou a
bandeja na mesa. O vinho era tentador, mas Indy não lhe tocou.
Achou o silêncio constrangedor. O rapaz saiu e quando voltou
trazia comida - pratos de queijo, fruta, uma taça de tâmaras.
Sallah pegou distraidamente num bocado de queijo e comeu com
ar pensativo. As tâmaras tinham bom aspecto, mas Indy não
sentia fome. O macaco afastou-se, acomodando-se debaixo da
mesa. Reinava ainda o silêncio. Indy curvou-se e pegou numa
tâmara.
Inclinou a cabeça para trás, atirou a tâmara ao ar e tentou
apanhá-la com a boca quando caiu-mas ela bateu na ponta do
queixo e deslizou no soalho. Abu lançou-lhe um olhar estranho
-como se aquele costume ocidental fosse demasiado louco para
ser aprofundado-, depois apanhou a tâmara e deitou-a no
cinzeiro.
"Diabo", pensou Indy. "A minha coordenação deve estar
afectada".
- Vejam. Aproximem-se e vejam - disse Imam subitamente.
A voz estranha e rouca quebrou o silêncio com a autoridade
solene de um pregador. Era o tipo de voz ao qual uma pessoa
respondia sem pensar duas vezes.
Por cima do ombro, Indy e Sallah viram Imam apontar para as
marcas em relevo.
- Isso é um aviso... para não se tocar na Arca da Aliança.
- Só me faltava isso - disse Indy.
Curvou-se, quase tocando nos ombros frágeis de Imam.
- As outras marcas dizem respeito a altura do Bastão de Rã
ao qual se deve ligar este florão. Caso contrário, o florão
não tem qualquer utilidade. - Indy notou que os lábios do
velho estavam um pouco enegrecidos, que os lambeu várias
vezes.
- Então Belloq conseguiu saber a altura do Bastão por esta
cópia do medalháo - disse Indy.
Sallah acenou com a cabeça.
- Que dizem as marcas? - perguntou Indy.
- Esta era a maneira antiga. Isto significa seis kadam de
altura.
- Cerca de cento e oitenta e três centímetros - disse
Sallah.
Indy ouviu o macaco a andar a volta da mesa, apanhando um
pouco de cada coisa.. Ele aproximou-se e pegou numa tâmara,
agarrando-a antes que o macaco a apanhasse.
- Ainda não terminei - disse Imam. -No outro lado do florão
há mais. Eu leio. - "E devolvam um kadam para honrar o Deus
hebreu ao qual pertence esta Arca.", A mão de Indy parou quase
ao chegar a boca.
- Tens a certeza de que o medalháo de Belloq tem marcas
apenas num lado? - perguntou ele a Sallah.
- Absoluta.
Indy desatou a rir.
- Então o bastão de Belloq tem mais trinta centímetros de
comprimento! Estão a escavar no lugar errado!
Sallah riu-se tambêm. Os homens abraçaram-se enquanto Imam
os observava, sisudo.
O velho disse:
- Não sei quem é Belloq. Só lhes posso dizer que o aviso
sobre a Arca é grave. Tambêm lhes posso dizer que está
escrito... "aqueles que abrirem a Arca e deixarem sair a sua
força morrerão se olharem para ela. Se ficarem frente a frente
com ela". Meus amigos, eu prestaria atenção a estes avisos.
Deveria ter sido um momento solene, mas Indy sentiu-se
subitamente demasiado entusiasmado ao perceber o erro do
francês para absorver as palavras do velho. "Um triunfo!",
pensou. "Maravilhoso.", Gostava de ver a expressão do rosto de
Belloq quando não conseguisse descobrir o Poço das Almas.
Atirou uma tâmara ao ar, abrindo a boca.
"Desta vez", pensou ele.
Mas a mão de Sallah agarrou a tâmara no ar antes de esta
entrar na boca de Indy.
- Então!
Sallah apontou para o soalho por baixo da mesa.
O macaco estava estendido numa posição de morto. Estava
rodeado de pevides de tâmara. Uma pata tremeu um pouco, depois
os olhos fecharam-se devagar. Depois disso não se mexeu mais.
Indy virou a cara para Sallah.
O egípcio encolheu os ombros e disse:
- Tâmaras estragadas.
CAPÍTULO IX
AS ESCAVAÇÕES DE Tanis, EGIPto
A manhã no deserto era escaldante, as extensões de ar
lançavam reflexos. "Uma paisagem", pensou Indy, "em que o
homem teria todo o direito de afirmar que vira miragens.",
Olhou para o céu enquanto o caminhão percorria a estrada
ruidosamente.
Sentia-se mal com o albornoz que lhe emprestara Sallah, e
estava inteiramente convencido de que conseguiria fazer-se
passar por Árabe-mas tudo valia a pena. Virava-se para trás de
vez em quando para olhar para o outro caminhão. O amigo de
Sallah, Omar, conduzia o segundo caminhão; na parte de trás iam
seis cavadores Árabes. Iam outros três no caminhão de Sallah.
"Esperemos", pensou ele, "que sejam de confiança como afirma
Sallah".
- Estou nervoso - disse Sallah. - Não me importo de o
confessar.
- Não te preocupes demasiado.
- Estás a correr um enorme risco - disse Sallah.
- É o nome deste jogo - comentou Indy. Olhou de novo para o
céu. O sol da manhã batia nas areias com a força de um martelo
poderoso.
Sallah suspirou.
- Espero que tenhamos cortado o bastão com o tamanho certo.
- Medimo-lo muito bem - disse Indy. Pensou no bastão metro e
meio de comprimento que estava naquele momento na parte de
trás do caminhão. Tinham passado várias horas na noite anterior,
a cortá-lo, a afiar a ponta para que o florão encaixasse. "Uma
sensação estranha", pensou Indy, colocando o medalháo no
bastão. Nessa altura sentira uma profunda afinidade com o
passado, imaginando outras mãos a colocarem o mesmo medalháo
do mesmo modo há tantos anos atrás.
Os dois caminhoes pararam. Indy saiu e dirigiu-se ao caminhão
conduzido por Omar; o Árabe desceu, erguendo o braço numa
saudação. E, em seguida, apontou para um lugar ao longe, um
lugar onde o terreno era menos plano, onde as dunas ondulavam.
- Esperaremos acolá - disse Omar.
Indy passou as costas da mão nos lábios secos.
- E boa sorte - disse o Árabe.
Omar voltou para o caminhão e afastou-se, deixando para trás
uma tempestade de pó e areia. Indy viu-o partir. Regressou
para o lugar onde Sallah estacionara, entrou; o caminhão andou
devagar durante uma milha, depois parou de novo. Sallah e Indy
apearam-se, atravessaram uma faixa de areia, depois
deitaram-se e olharam para o outro lado de uma depressão no
terreno por debaixo deles.
As escavações de Tanis.
Era elaborada, extensa; era evidente, pela quantidade de
equipamento lá em baixo, pelo número de trabalhadores, que o
Fihrer queria a Arca a todo o custo. Havia caminhôes,
bulldozers, tendas. Havia centenas de escavadores Árabes e,
parecia, outros tantos inspectores alemães, um tanto
deslocados com os seus uniformes, como se procurassem
deliberadamente desconforto ali no deserto. A terra fora
escavada; tinham aberto buracos, depois foram abandonados,
desenterradas fundações e passagens e depois abandonadas. E no
outro lado das escavações principais estava uma coisa que
parecia ser uma pista de aterragem improvisada.
- Nunca vi uma escavação com estas dimensões - disse Indy.
Sallah apontava para o centro da actividade, indicando um
enorme monte de areia, com um buraco no meio; tinham colocado
uma corda a volta deles, suspensa entre postes.
- A Sala dos Mapas - disse ele.
- A que horas o sol incide lá?
- Logo depois das oito.
- Não temos muito tempo. - Olhou para o relógio de pulso que
pedira emprestado a Sallah. - Onde é que os alemães estão a
escavar para descobrirem o Poço das Almas?
Sallah apontou uma vez mais. A alguma distância do centro da
actividade, no meio das dunas, estavam vários caminhões e um
bulldozer. Indy observou durante algum tempo. Depois
levantou-se.
- Trouxeste a corda?
- Claro.
- Então vamos.
Um dos escavadores Árabes sentou-se ao volante do caminhão e
conduziu-o lentamente na direcção das escavações. Indy e
Sallah apearam-se no meio das tendas. Encaminharam-se
furtivamente para a Sala dos Mapas, Indy levava o bastão de
metro e meio e perguntava a si mesmo durante quanto tempo
seria capaz de passar despercebido com uma vara tão comprida
na mão. Passaram por vários alemães de uniforme, que mal
olhavam para eles: estavam agrupados, a fumar e a conversar ao
sol da manhã. Quando estavam a uma certa distância, Sallah
indicou que deveriam passar: tinham chegado ? Sala dos Mapas.
Indy olhou em redor durante algum tempo e depois caminhou, com
tanta calma quanto possível, em direcção à borda do buraco - o
tecto da antiga Sala dos Mapas. Espreitou, susteve a
respiração e depois olhou para Sallah, que tirou uma corda de
debaixo da túnica e amarrou uma ponta à volta de um bidão de
óleo, que estava ali perto. Indy fez descer o bastão no
buraco, sorriu a Sallah e pegou numa ponta da corda. Sallah
ficou a ver com um ar carregado e o rosto coberto de suor.
Indy começou a descer para o interior da Sala dos Mapas.
"A Sala dos Mapas em Tanis", pensou ele. Noutra sala talvez
recea se pensar no dia em que estaria naquele lugar; noutra
altura talvez tivesse parado para dar uma vista de olhos,
talvez tivesse desejado demorar-se ali - mas não naquele
momento. Atingiu o chão e deu um puxão à corda, que foi içada
imediatamente. "é muito difícil", pensou, "não se ficar
excitado com este lugar". uma sala com frescos elaborados
iluminada pelo sol que entrava a jorros por cima. Dirigiu-se
para o lugar onde fora colocado o modelo em miniatura da
cidade de Tanis: um mapa extraordinário talhado em pedra, com
detalhes perfeitos, tão bem construído que quase se podia
imaginar pessoas em miniatura a viver naqueles prádios ou a
andar naquelas ruas. Não pôde deixar de se surpreender com o
trabalho da planta, com a paciência que devia ter exigido a
construção.
Ao lado da planta estava uma linha criada por mosaicos
fixos. Havia fendas com espaços regulares nessa linha, cada
uma acompanhada por um símbolo para a época do ano. As fendas
tinham sido feitas para se encaixar a base do bastão. Tirou o
florão de debaixo da túnica, deitou a mão ao bastão e olhou
para a luz do sol reflectida que começara já a deslocar-se
lentamente através da cidade em miniatura aos seus pés.
Eram sete e cinquenta minutos. Não tinha muito tempo.
Sallah recolhera a corda, enrolara-a nas mãos e começara a
caminhar de novo na direcção do bidão de óleo. Quase não ouvi
ojipe que parara ao lado dele, e a voz alta do alemão
assustou-o.
- Eh! Você!
Sallah forçou um sorriso de néscio.
O alemão disse:
- Você, sim. Que está a fazer aí?
- Nada. Nada. - Inclinou a cabeça num gesto de inocência.
- Traga a corda - ordenou o alemão. - Este malditojipe está
atolado.
Sallah hesitou, depois desamarrou a corda e levou-a para ao
pé dojipe. Já aparecera outro veículo, um caminhão; parou a
alguns metros dojipe.
- Prenda a corda do jipe ao caminhão - disse o alemão.
Sallah assim fez a transpirar. "A corda", pensou ele, a
corda preciosa estava a ser levada. Ouviu os motores dos dois
veículos, vendo os pneus a derrapar na areia. A corda estava a
ser esticada. Que faria para tirar Indy da Sala dos Mapas sem
uma corda?, Ele seguiu ojipe durante algum tempo caminhando na
areia, sem reparar que estava ao lado de uma caldeira de
comida quente que fervia em cima de uma chama descoberta.
Havia vários soldados alemães sentados à volta de uma mesa e
um gritava-lhe para que trouxesse mais comida. Impotente,
ficou a olhar para o alemão.
- É surdo?
Ele fez uma vênia, subserviente, e pegou na caldeira pesada,
levando-a para a mesa. Pensava em Indy que estava preso na
Sala dos Mapas; perguntava a si mesmo como é que ele
conseguiria tirar o americano sem uma corda.
Começou a servir, procurando ignorar os insultos dos
soldados. Serviu apressadamente. Derramou comida na mesa e foi
socado na cabeça pelos seus esforços.
- Desastrado! Olha a minha camisa. Olha o que deitaste na
camisa.
Sallah baixou a cara. Falsa vergonha.
- Vai buscar água. Depressa.
Ele correu para ir à procura de água.
Indy tirou o florão e colocou-o cuidadosamente no cimo do
bastão. Introduziu a base do bastão núma das fendas nos
mosaicos e ouviu o som da madeira a estalar no mosaico antigo.
A luz do sol incidiu no topo do florão e o feixe amarelo
moveu-se um pouco no minúsculo buraco no cristal. Esperou.
Ouviu gritos que vinham de cima. Ignorou-os. Mais tarde, se
fosse preciso, preocupar-se-ia com os alemães. Mas não naquele
momento.
O sol atravessou o cristal, lançando uma linha brilhante
através da cidade em miniatura. A linha de luz foi alterada e
partida pelo prisma do cristal-e então, naqueles prádios e
ruas em miniatura, incidiu num lugar. Uma luz vermelha,
cintilando num prádio pequeno, que, por alguma química antiga,
por alguma arte remota, começou a brilhar. Viu este efeito
extasiado, vendo já umas marcas de tinta vermelha no meio de
outros prádios, marcas que eram recentes e claras. Os cálculos
de Beloq.
Ou cálculos errados: o prádio iluminado pelo florão estava
quarenta e seis centímetros mais próximo do que a última marca
vermelha deixada pelo francês.
"Ótimo. Perfeito Não podia ter esperado nada melhor". Indy
ajoelhou-se ao lado da cidade em miniatura e tirou uma fita
métrica de debaixo da túnica. Esticou a fita entre a última
marca de Belloq e o prádio que brilhava à luz do sol. Fez
rapidamente os cálculos, escrevinhando num pequeno bloco de
apontamentos. A cara ardia-lhe do suor, caía em gotas nas
costas das mãos.
Sallah não foi buscar água. Correu pelo meio das tendas,
esperando que nenhum dos alemães o fizesse parar outra vez. Em
pânico, começou a procurar uma corda. Não descobriu nenhuma.
Nenhuma corda, nada à vista. Correu de um lado para o outro,
escorregando e deslizando na areia, rezando para que nenhum
alemão se apercebesse do seu estranho comportamento ou o
chamasse para executar algum trabalho de criado. Tinha de
fazer alguma coisa sem demora para tirar Indy. Mas o quê?
Parou. No meio de duas tendas estavam várias cestas com as
tampas levantadas.
"Nenhuma corda", pensou ele, "por isso numa situação como
esta improvisa-se." Quando se certificou de que não estava a
ser observado, dirigiu-se para as cestas.
Indy partiu o bastão de madeira ao meio e meteu de novo o
florão debaixo da túnica. Escondeu os bocados de madeira num
canto da Sala dos Mapas, em seguida encaminhou-se para um
lugar mesmo por baixo do buraco e olhou para o céu brilhante.
O azul brilhante cegou-o momentaneamente.
- Sallah! - gritou ele, preso entre um berro e um sussurro.
Nada.
- Sallah.
Nada.
Lançou um olhar á sala a procura de uma saída alternativa,
mas não conseguiu ver nenhuma. Onde estava Sallah?
- Sallah!
Silêncio.
Observou a abertura; pestanejou por causa da luz intensa,
mas Alguma coisa se mexeu por cima. Depois começou a cair
qualquer coisa do buraco e por um segundo pensou que era a
corda, mas não era: o que viu descer foi um punhado de roupas
presas umas as outras, com nós grosseiros para formarem uma
corda de emergência - camisas, túnicas, calças, mantos e -
surpreendentemente - uma bandeira suástica.
Deitou a mão à corda, puxou-a, e depois começou a trepar.
Chegou à superfície, caindo de estômago no chão quando Sallah
começou a içar a corda feita de roupa. Indy sorriu e o egipcio
enfiou a corda improvisada no bidão de óleo. Em seguida Indy
levantou-se e seguiu Sallah rapidamente pelo meio de algumas
tendas.
Não viram o alemão que andava de um lado para o outro com
uma expressão de grande impaciência estampada no rosto.
- Tu! Ainda estou à espera daquela água!
Sallah estendeu as mãos como quem pede desculpa.
O alemão virou-se para Indy.
- Tu és outro preguiçoso. Por que não estás a escavar?
Sallah dirigiu-se ao alemão enquanto Indy, fazendo uma vênia
num gesto de subserviência, se afastava rapidamente na
direcção oposta.
Caminhava mais depressa, com a túnica a ondular enquanto
corria por entre as tendas. E de trás, como se tivesse surgido
inesperadamente uma suspeita, uma suspeita de crime, ouviu o
alemão a gritar por ele.
- Espera. Volta aqui.
Indy pensou, A última coisa que tenciono fazer é voltar, a
dummkopf",. Passou rapidamente pelas tendas, apanhado entre a
relutância em parecer suspeito e o desejo ardente de começar a
escavar em busca do Poço das Almas, quando surgiram dois
alemães à frente dele. "Diabo", pensou, parando, vendo-os
parar para conversar, acender cigarros. A passagem estava
bloqueada.
Esgueirou-se, passando rente às tendas, sem se afastar das
sombras que encontrava, e depois atravessou uma abertura, uma
entrada, e entrou numa das tendas. Ali poderia esperar pelo
menos alguns minutos até o caminho estar livre. Aqueles dois
krauts dificilmente ficariam lá fora todo o dia a fumar e a
conversar.
Limpou o suor da testa, esfregou as palmas húmidas das mãos
na túnica. Pela primeira vez, desde que entrara naquele lugar,
pensou na Sala dos Mapas: pensou na estranha sensação de
perenidade que tivera, uma experiência de estar a ser
suspenso, a flutuar - como se se tivesse transformado tambêm
num objecto preso no frasco da História, preservado, perfeito,
intacto. A Sala dos Mapas em Tanis. De certa forma era como se
se descobrisse que um conto de fadas se baseava na realidade -
a lenda com perou.
um fundo de verdade. O pensamento tocou--o de um modo que
considerou um pouco humilhante: Vives no ano de 1936, com os
aviões, os rádios e as grandes máquinas de guerra-e então
encontras por acaso uma coisa tão simplesmente intrincada, tão
primitivamente elaborada, como uma planta em miniatura com um
determinado prádio concebido para brilhar quando iluminado de
uma certa forma pela luz. Chamem-lhe alquimia, arte ou até
magia - seja qual for a designação que se dá, a passagem dos
séculos não melhorara nada significativamente. Os movimentos
do tempo tinham batido contra as raízes de um profundo sentido
do cósmico, do mágico., E naquele momento estava próximo do
Poço das Almas.
Da Arca.
Limpou uma vez mais a testa com a ponta da túnica. Espreitou
pela fenda da tenda. Ainda lá estavam a fumar, a conversar.
Quando é que se decidiriam a afastar-se?, Pensava numa
saída, tentando imaginar um meio de fugir, quando ouviu um
ruído no outro canto da tenda. Um grunhido estranho, um som
abafado. Virou-se e examinou a tenda, que imaginara que estava
deserta.
Por um momento, um momento de incredulidade, intensa
incredulidade, sentiu palpitações que depois se dissiparam.
Ela estava sentada numa cadeira, atada a ela com cordas
entrecruzadas, um lenço amarrado à volta da boca. Estava ali
com os olhos a implorarem-lhe, a enviarem-lhe mensagens, e
esforçava-se por falar com ele através das pregas do lenço que
lhe apertava os lábios. Ele atravessou rapidamente a tenda,
soltou a mordaça e deixou-a cair da boca. Beijou-a e o beijo
foi ansioso, longo, profundo. Quando afastou o rosto, encostou
a palma da mão à face dela.
Quando falou a voz tremeu.
- Tinham dois cestos... dois cestos para te confundirem.
Quando pensaste que eu estava no caminhão, estava num carro...
- Pensei que tinhas morrido - disse ele. Que sensação era
aquela... um alívio incomensurável? O dissipar da culpa? Ou
era puro prazer, gratidão, por ela estar viva?
- Ainda dou pontapés - disse ela.
- Fizeram-te mal?
Ela parecia debater-se com uma ansiedade secreta.
- Não... não me fizeram mal. Apenas perguntaram por ti,
queriam descobrir aquilo que sabias.
Indy coçou o queixo e perguntou a si mesmo por que detectara
uma estranha hesitação em Marion. Mas ainda estava demasiado
excitado para parar e pensar.
- Indy, por favor, tira-me daqui. Ele é perverso...
- Quem?
- O francês.
Preparava-se para desamarrar a corda mas parou.
- Qual é o problema? - perguntou ela.
- Nunca perceberás como me sinto neste momento. Nunca
poderei expressar isso. Mas quero que confies em mim. Vou
fazer uma coisa que não gosto de fazer.
- Solta-me, Indy. Solta-me, por favor.
- Esse é o problema. Se eu te soltar, então irão revirar
cada partícula de areia para te encontrarem e neste momento
não posso dar-me a esse luxo. E, uma vez que sei onde está a
Arca, é importante que lhe deite a mão antes deles, depois
posso virbuscar-te...
- Indy, não.
- Só precisas de ficar quieta mais algum tempo.
- Safado. Solta-me!
Colocou-lhe de novo a mordaça e apertou-a. Em seguida,
beijando-a uma vez mais na testa, ignorando os protestos, os
resmungos, endireitou-se.
- Fica quieta - disse ele. - Eu volto.
"Eu volto", pensou ele. Naquilo havia um eco muito antigo,
um eco que recuava dez anos no tempo. E viu dúvida nos olhos
dela. Beijou-a outra vez, em seguida dirigiu-se para a
abertura na tenda.
Ela bateu com a cadeira no chão.
Ele saiu; os soldados alemães tinham-se ido embora.
O sol já escaldava. Abrasava.
"Viva", pensou ele, "ela está viva." E o pensamento ficou a
pairar na sua cabeça. Começou a correr, afastando-se das
tendas, das escavações, penetrando nas dunas escaldantes, até
ao lugar onde tinha um encontro com Omar e os escavadores.
Ele tirou o instrumento de agrimensura da parte de trás do
caminhão e montou-o nas dunas. Alinhou com a sala dos Mapas ao
longe e, consultando os cálculos que fizera, estabeleceu uma
posição a algumas milhas no interior do deserto, numa duna
intacta muito mais perto que o lugar onde Belloq escavava
erradamente em busca do Poço das Almas. "Acolá", pensou. "O
lugar exacto!"
- Consegui! - exclamou ele, e desmontou o instrumento e
colocou-o de novo no caminhão. O lugar estava bem escondido da
escavação de Belloq, oculto pela elevação das dunas. Podiam
escavar sem serem vistos.
Quando subia para o caminhão, Indy divisou um vulto sobre as
dunas. Era Sallah, com a túnica a bater, a correr em direcção
ao caminhão.
- Pensei que nunca mais vinhas - disse Indy.
- Quase não consegui - disse Sallah, subindo.
- Partamos - disse Indy ao condutor.
Quando se tinham embrenhado nas dunas, estacionaram o caminhão.
Era um lugar isolado para se procurar algo tão excitante como
a Arca. No céu o sol estava incandescente, com a cor de uma
rosa amarela que explodia; e era isso que sugeria a sua
intensidade, algo que estava prestes a desprender-se do céu.
Encaminharam-se para o lugar que Indy calculara. Ele ficou
parado pouco tempo a olhar para ele - areia seca. Era
impossível imaginar alguma coisa a crescer ali. Era impossível
imaginar aquele solo a ceder a alguma coisa. E muito menos à
Arca.
Indy dirigiu-se ao caminhão e tirou uma pá. Os escavadores já
caminhavam na direcção do lugar. Tinham rostos semelhantes a
couro, rostos queimados. Indy perguntou a si mesmo se
conseguiriam viver para além dos quarenta num lugar como
aquele.
Sallah, levando uma pá, caminhou ao lado dele.
- Creio que só virão para aqui se Belloq perceber que está a
trabalhar no lugar errado. Caso contrário não haveria um bom
motivo.
- Alguma vez ouviste dizer que um nazi precisa de um bom
motivo?
Sallah sorriu. Virou-se e olhou para lá das dunas; apenas se
via deserto. Ficou calado durante algum tempo. Depois disse:
- Até um nazi precisaria de um bom motivo para vaguear neste
lugar.
Indy bateu no solo com a ponta da pá.
- Mesmo assim precisaria de um requerimento e que fosse
assinado em triplicado em Berlim. -Olhou para os escavadores.
- Vamos - disse ele. - Vamos ao trabalho.
Começaram a escavar, amontoando areia, trabalhando
arduamente, furiosamente, parando apenas para beber água que
já aquecera nos sacos de pele de camelo. Escavaram até a luz
no céu desaparecer; mas o calor mantinha-se preso à areia.
Belloq estava sentado na tenda, batendo com as pontas dos
dedos na mesa que tinha mapas, desenhos da Arca, folhas de
papel cobertas de hieroglifos dos cálculos. Sentia-se
profundamente frustrado; estava irritável, nervoso - e a
presença de Dietrich e do lacaio, Gobler, não ajudou muito o
seu estado de espírito. llevantou-se, aproximou-se de uma
bacia, salpicou água no rosto.
- Um dia perdido - disse Dietrich. - Um dia perdido...
Belloq limpou o rosto a uma toalha, depois encheu um copo de
Conhaque. Fitou o alemão, depois o subordinado, Gobler, que
parecia existir apenas como uma sombra de Dietrich.
Dietrich, decidido, prosseguiu:
- Os meus homens escavaram todo o dia... e para quê?
Diga-me, para quê?
Belloq bebeu lentamente, depois disse:
- Com base nas informações em meu poder, os meus cálculos
estavam certos. Mas a Arqueologia não é uma das ciências mais
exactas, Dietrich. Não creio que compreenda muito bem esse
facto. Talvez se encontre a Arca numa câmara contígua. Talvez
ainda nos escape alguma prova vital. - Ele encolheu os ombros
e terminou a bebida. Geralmente odiava o modo como os alemães
davam demasiada importância a coisas insignificantes, o modo
como pareciam sempre andar à volta dele como se esperassem que
fosse um vidente, um profeta. Naquele momento, porém,
compreendia a mudança de estado do espírito.
- O Fihrer exige relatórios de progresso constantes - disse
Dietrich. - Não é um homem paciente.
- Pode relembrar a minha conversa com o vosso Fihrer,
Dietrich. Tambêm pode recordar que não fiz promessas. Apenas
disse que a situação parecia favorável, nada mais.
Fez-se silêncio. Gobler mexeu-se em frente da lámpada de
querosene, projectando uma sombra enorme que Belloq achou
estranhamente ameaçadora. Gobler disse:
- A rapariga podia ajudar-nos. Afinal, ela teve em seu poder
a peça original durante anos.
- De facto - replicou Dietrich.
- Duvido que saiba alguma coisa - disse Belloq.
- Vale a pena tentar - disse Gobler.
Perguntou a si mesmo por que o perturbava o modo como eles
tratavam a rapariga. Tinham-na usado de uma forma bárbara -
tinham-na ameaçado com uma série de torturas, mas parecia-lhe
que ela não tinha nada para dizer. Seria aquilo algum ponto
fraco, alguma fraqueza terrível, que tinha em relação a ela. A
ideia apavorou-o. Fitou Dietrich por instantes. "Como vivem
aterrorizados por causa do Fihrer miserável", pensou. "Deve
povoar os sonhos deles a noite... se é que sonham", uma ideia
em que mal podia acreditar. Eram homens desprovidos de
imaginação.
- Se não quiser preocupar-se com a rapariga, Belloq, tenho
alguém que pode encarregar-se de descobrir aquilo que ela
sabe.
Não era o momento para ostentar uma fraqueza, uma
preocupação com a mulher. Dietrich dirigiu-se para a abertura
da tenda e gritou. Pouco tempo depois apareceu um homem
chamado Arnold Toht, estendendo o braço numa saudação nazi. No
centro da mão estava a cicatriz, o tecido queimado, com a
forma perfeita do florão.
- A mulher - disse Dietrich. - Creio que a conhece, Toht.
Toht respondeu:
- Há que ajustar contas antigas.
- E cicatrizes antigas - disse Belloq.
Toht, constrangido, baixou a mão.
Quando escureceu e surgiu no horizonte uma lua pálida do
deserto, uma lua azul suave, Indy e os Árabes pararam de
cavar. Tinham acendido archotes e observavam a lua que
começava lentamente a escurecer enquanto passavam nuvens pela
frente; De seguida viram-se relâmpagos no céu, relâmpagos
estranhos que apareciam por instantes com a forma de garfos e
clarões; dava a impressão de que se formava uma tempestade
elétrica não se sabia onde.
Os homens tinham aberto um buraco que revelou uma pesada
porta de pedra que estava ao mesmo nível do fundo da cova.
Ninguém falou durante muito tempo. Retiraram-se ferramentas do
caminhão e os escavadores abriram a porta de pedra a força,
resmungando enquanto se debatiam com o peso da mesma.
A porta de pedra foi puxada para trás. Por debaixo da porta
havia uma câmara subterrânea. O Poço das Almas. Estava a cerca
de nove metros de profundidade, uma enorme câmara cujas
paredes estavam cobertas de hierôglifos e gravuras. O tecto do
compartimento era sustentado por gigantescas estátuas,
guardiâes do sepulcro. Era uma construção terrível, e criava, a
luz dos archotes, uma sensação de abismo, um abismo em que a
própria História ficara presa. Os homens deslocaram os
archotes enquanto espreitavam.
A extremidade da câmara avistou-se, mal iluminada. Havia um
altar de pedra sobre o qual estava um cofre; um soalho com um
revestimento escuro, estranho.
- O cofre deve conter a Arca - disse Indy. - Não sei o que é
aquele revestimento cinzento do soalho.
Mas então, com o clarão de outro relâmpago, viu; tremeu,
deixou cair o archote no Poço, ouvindo o silvo de centenas de
cobras.
Enquanto o archote ardia, as cobras afastaram-se da chama.
Não eram centenas, mas milhares de cobras, áspides egípcias,
que tremiam e ondulavam e se enroscavam no soalho enquanto
reagiam a chama com o silvo estridente. O pavimento parecia
mover-se com a luz trêmula do archote - mas não era o
pavimento, eram as cobras, saltando para trás e fugindo a
chama. Somente o altar não era assaltado pelas cobras. Somente
o altar de pedra parecia imune ás áspides.
- Por que tinham de ser cobras? - perguntou Indy. - Podia
ser outra coisa qualquer e não cobras. Podia imaginar tudo
menoS isto.
- Áspides - disse Sallah. - Muito venenosas.
- Obrigado pela informação, Sallah. - Como vós, mantêm-se
afastadas da chama.
"Recompõe-te,, pensou Indy. Estás tão próximo da Arca que
podes sentir, por isso enfrenta a tua fobia, mantêm-te calmo e
faz alguma coisa. Milhares de cobras... e daí? E daí?", O
pavimento com vida era a personificação de um pesadelo antigo.
As Cobras perseguiam-no nos sonhos mais sombrios, fixando-se
aos receios mais profundos. Virou-se para os escavadores e
disse:
- Muito bem. Muito bem. Umas cobras. Grande coisa. Quero
muitos archotes. E petróleo. Quero fazer uma pista lá em
baixo.
Passado algum tempo, atiraram archotes acesos para o
interior do Poço. Foram derramadas várias latas de petróleo
nos espaços para onde se tinham arrastado as cobras para
fugirem às chamas. Em seguida os escavadores começaram a
baixar uma enorme grade de madeira, com pegas de corda presas
de cada um dos cantos, para a introduzirem no buraco. Indy
ficou a observar, perguntando a si mesmo se uma fobia era algo
que se podia repelir, algo que se podia ignorar como se fosse
a dor intensa de uma digestão passageira. Apesar da sua
determinação em descer, tremeu - e as áspides, enroscando-se e
desenroscando-se, envolviam a escuridão com o som sibilante,
um som mais ameaçador de qualquer um quejá ouvira. Fizeram
descer uma corda: endireitou-se, engoliu, em seguida
pendurou-se na corda e desceu até ao Poço. Pouco depois Sallah
seguiu-o. No outro lado da porta e das chamas as cobras
colearam, deslizaram, cobras empilhavam-se sobre cobras,
montanhas de répteis, ovos de cobra que chocavam, cascas que
se partiam deixando ver áspides minúsculas, cobras que
devoravam outras cobras. Ficou suspenso durante algum tempo, a
corda balançava, Sallah estava pendurado mesmo por cima dele.
- Creio que chegou a hora - disse ele.
Marion viu Belloq entrar na tenda. Caminhou devagar e
observou-a durante algum tempo, mas não fez nenhum movimento
para lhe desapertar a mordaça. Que tinha aquele homem? Que era
aquilo que provocava uma sensação, algo semelhante a
pânico, dentro dela?" Ouvia o coração a palpitar. Olhou
fixamente para ele, desejando poder fechar os olhos e virar a
cara. Quando o vira pela primeira vez, depois de ter sido
capturada, não lhe dissera quase nada - limitara-se a
examiná-la como fazia naquele momento. O olhar era frio e no
entanto parecia capaz, embora não soubesse ao certo, de ceder
a uma cordialidade ocasional. Era tambêm perspicaz, como se
tivesse penetrado num segredo profundo, como se tivesse
testado a realidade e a tivesse considerado pobre. O rosto
tinha uma beleza que ela talvez associasse às gravuras em
revistas românticas de Europeus que envergavam fatos brancos e
bebiam bebidas exóticas nas varandas de casas de campo. Mas
esses não eram os atributos que atraíam.
Era outra coisa.
Uma coisa em que não queria pensar.
Fechou então os olhos. Marion não suportava que a olhasse de
tão perto, não suportava ver-se como um objecto de exame
talvez como um fragmento arqueológico, um bocado de barro
solto de uma peça antiga de porcelana. Inanimado, um objecto
que tem de ser classificado.
Quando o ouviu mexer abriu os olhos.
Continuou sem dizer uma palavra. E a sua inquietação
aumentou. Atravessou a tenda até ficar ao lado dela, em
seguida estendeu a mão muito devagar e tirou-lhe a mordaça dos
lábios, fazendo-a deslizar suave e provocantemente da boca.
Teve uma visão súbita, uma visão que não queria reter, da mão
dele a acariciar-lhe a curva da anca. "Não", pensou ela. "Não
é nada disso.", Mas a imagem continuava na cabeça. E a mão de
Belloq, com a certeza do amante bem sucedido, retirou
lentamente a mordaça da boca e baixou-a até ao queixo e depois
desfez o nó - tudo executado devagar, com a elegância casual
de um sedutor que pressente, de uma forma predatória, a
cedência da presa.
Ela virou a cara para o lado. Queria fazer desaparecer
aqueles pensamentos, mas parecia incapaz de o fazer. "Não
quero ser seduzida por este homem"; pensou. "Não quero que me
toque.", Mas então, quando ele passou os dedos por baixo do
queixo e começou a acariciar-lhe a garganta, compreendeu que
era incapaz de oferecer resistência. "Não deixarei que veja
isso nos meus olhos", disse para si mesma. "Não deixarei que
veja isso na minha cara."
Contra a sua vontade, começou a imaginar as mãos passarem ao
de leve no seu corpo, umas mãos que eram estranhamente suaves,
delicadas no toque, íntimas e excitantes nas promessas. E,
subitamente, compreendeu que aquele homem seria um amante de
extraordinária generosidade, que lhe provocaria os prazeres
que jamais sentira. "Ele sabe", pensou. "Tambêm sabe."
Aproximou mais o rosto. Ela sentiu o cheiro doce do seu
hálito. "Não, não, não", pensou. Mas não falou. Apercebeu-se
de que se inclinava ligeiramente para a frente, esperando o
beijo, com o espírito a rodopiar, o desejo intenso. Não
aconteceu. Não foi um beijo. Baixara-se e começava a
desapertar as cordas, agindo do mesmo modo, deixando cair as
cordas no chão como se fossem as roupas mais eréticas. Ele não
dissera uma palavra. Olhava para ela. Havia um brilho nos
olhos, o vislumbre de dor que imaginara antes - mas não podia
dizer se era verdadeiro ou se era algo que utilizava, um apoio
no seu repertório de francês. Depois disse:
- É muito bonita.
Ela abanou a cabeça.
- Por favor... - Mas não sabia se suplicava que a deixasse
em paz ou se lhe pedia que a beijasse, e compreendeu que nunca
sentira uma emoção tão confusa em toda a vida. Por que ? que
Indy não a libertara? Por que a deixara assim?" Repelida,
atraída - por que não havia uma fronteira definida entre as
duas? - Sinais que pudesse ler? Não importava: havia na fusão
de distinções nos seus pensamentos. Viu a contradição e
percebeu, com uma sensação de pavor, que desejava que aquele
homem fizesse amor com ela, que lhe explicasse que aquilo que
sentia era a compreensão profunda do amor físico; e, para
exenplo disso, existia a sensação de que ele podia ser cruel,
uma percepção que repentinamente deixou tambêm de ter
importância para ela. Aproximou de novo o rosto. Ela olhou
para os seus lábios. Os olhos estavam cheios de entendimento,
uma compreensão que jamais vira no rosto de um homem. Mesmo
antes de a beijar, já conhecia, podia ver o seu íntimo. Nunca
se sentira tão desnuda. Até aquela vulnerabilidade a excitava
já. Aproximou-se mais. Beijou-a. Quis afastar-se outra vez.
O beijo - fechou os olhos e entregou-se ao beijo, e foi
diferente de qualquer outro beijo. Ultrapassou os limites
estreitos dos lábios e das línguas. Criou espaços de luz
brilhante na cabeça dela, cores, teias de ouro; prata, amarelo
e azul, como se estivesse a contemplar um pôr do Sol
impossível. Lento, paciente, generoso. Nunca ninguêm lhe
tocara assim. Não daquele modo. Nem mesmo Indy.
Quando ele afastou o rosto, percebeu que o segurava com
força. Cravava as unhas no seu corpo. E a consciência disso
foi choque para ela, um choque que provocou uma súbita
sensação de vergonha. Que estava a fazer? Que se apoderara
dela?" Afastou-se dele.
- Por favor - disse ela. - Mais, não.
Ele sorriu e falou pela primeira vez:
- Eles tencionam fazer-lhe mal.
Era como se o beijo não tivesse existido. Era como se
tivesse sido manipulada. A desilusão inesperada que sentiu foi
a de queda abrupta numa montanha-russa.
- Consegui convencê-los a darem-me um tempo para estar a sós
consigo, minha cara. Afinal é uma mulher muito atraente E não
quero que lhe façam mal. São bárbaros.
Aproximou-se uma vez mais dela. "Não", pensou ela. "Outra
vez, não."
- Tem de me contar alguma coisa que os acalme. Alguma
informação.
- Não sei nada... quantas vezes tenho de lhes repetir? -
sentia-se tonta, precisava de se sentar. "Por que não a
beijava de novo?"
- E em relação a Jones?
- Não sei nada.
- A sua lealdade é admirável. Mas tem de me dizer aquilo que
Jones sabe.
Indy veio-lhe de novo ao espírito.
- Só me tem causado problemas...
- Concordo - disse Belloq. Estendeu o braço, segurou o rosto
dela entre as mãos, examinou os seus olhos. - Creio que desejo
acreditar que não sabe nada. Mas não posso controlar os
alemães. Não os posso conter.
- Não deixe que me façam mal.
Belloq encolheu os ombros.
- Então diga-me qualquer coisa!
A porta da tenda abriu-se. Marion olhou para o vulto de
Arnold Toht. Atrás dele estavam os alemães que conhecera como
sendo Dietrich e Gobler. O medo que sentiu foi como um sol que
lhe queimava a cabeça.
Belloq disse:
- Lamento.
Ela não se mexeu. Limitou-se a fitar Toht, lembrando-se da
enorme vontade que tivera de lhe bater com o atiçador.
- Frizulein - disse Toht. - Percorremos uma longa distância
desde o Nepal, não foi?
Recuando, ela abanou a cabeça, apavorada.
Toht avançou para ela. Lançou um olhar a Belloq, como se ele
fosse fazer um último apelo, mas ele já saía da tenda para a
noite. Lá fora, Belloq parou. Era estranho sentir-se atraído
pela mulher, era estranho desejar fazer amor com ela apesar de
o facto ter sido provocado pelo desejo de lhe arrancar
informações. Mas depois disso, depois do primeiro beijo...
Enfiou as mãos nos bolsos e hesitou no lado de fora da tenda.
Queria entrar novamente e impedir aqueles vermes de
concretizarem aquilo que estavam prestes a fazer, mas a sua
atenção foi subitamente atraída para o horizonte. Um relâmpago
- um relâmpago estranhamente concentrado num lugar, como se se
tivesse formado deliberadamente lá, dirigido por uma
consciência meteorológica. Uma congregação de relâmpagos,
espigões, forquilhas e clarões que chispavam num só lugar.
Mordeu o lábio inferior, absorto em pensamentos, e depois
entrou de novo na tenda.
Indy encaminhou-se para o altar. Tentou ignorar o som das
cobras, um barulho louco-que se tornava mais perturbador com
as sombras fantasmagóricas projectadas pelos archotes.
Salpicara o chão com o petróleo das latas e deitara-lhe fogo,
abrindo um caminho no meio das cobras; e então aquelas chamas,
agigantando-se no ar, eclipsaram o relâmpago. Sallah estava
atrás dele. Juntos tentaram levantar a tampa do cofre até esta
se soltar; no interior, mais bela do que ele imaginara, estava
a Arca.
Ficou imóvel algum tempo. Olhou fixamente para os anjos
dourados e brilhantes que estavam virados de frente um para o
outro por cima da tampa, o ouro que revestia a madeira de
acácia. As pegas de ouro em forma de anel presas aos quatro
cantos cintilaram à luz do archote. Olhou para Sallah, que
examinava a Arca em silêncio respeitoso. Naquele momento Indy
sentia um enorme desejo de estender a mão e tocar na Arca-mas
quando pensava nisso, Sallah estendeu a mão.
- Não lhe toques - exclamou Indy. - Nunca toques nela.
Sallah afastou a mão. Voltaram para junto da grade de
madeira e retiraram as estacas que estavam presas aos cantos.
Meteram as estacas nos anéis da Arca e levantaram-na, gemendo
com o seu peso, retirando-a do cofre de pedra e colocando-a na
grade. Os fogos começavam a extinguir-se e as cobras, cujo
silvo começava a parecer-se mais com uma voz alta, isolada,
deslizavam na direcção do altar.
- Depressa - disse Indy. - Depressa.
Ataram as cordas à grade. Indy puxou uma das cordas e a
grade foi içada e retirada da câmara. Sallah agarrou-se à
corda ao lado e subiu rapidamente. Indy deitou a mão à corda,
dando um puxão para verificar se estava bem segura-e ela caiu,
como uma cobra, da abertura no cimo para o interior da câmara.
- Que diabo.
De cima a voz do francês soou clara.
- Então, Dr. Jones, que faz nesse lugar sórdido?
Ouviu-se uma gargalhada.
- Está a transformar isto num hábito, Belloq - disse Indy.
As cobras silvaram mais perto. Ouvia os corpos a deslizarem
no pavimento.
- Um mau hábito, concordo - disse Belloq espreitando. -
Infelizmente, não preciso de si, meu velho amigo. E acho
irónico que esteja prestes a tornar-se um suplemento
permanente desta descoberta arquelógica.
- Morro de riso - gritou Indy.
Continuou a tentar olhar para cima, procurando descobrir se
havia alguma saída... e ainda se interrogava quando viu Marion
ser empurrada da beira do buraco, ceder, cair. Correu e
amorteceu a pancada com o corpo, atirando-se ao chão quando
embateu nele. As cobras aproximaram-se lentamente. Ela
agarrou-se freneticamente a Indy, que conseguiu ouvir Belloq a
discutir em cima.
- Ela era minha!
-Agora já não tem utilidade para nós, Belloq. Só interessa
a missão do Fihrer.
- Tinha planos para ela!
- Os únicos planos são os que dizem respeito a Berlim -
respondeu Dietrich a Belloq.
Em cima fez-se silêncio. E, então, Belloq pôs-se a olhar
para a câmara, para Marion.
A voz dele soou baixa.
- Não era para ser assim - disse-lhe ele. Em seguida acenou
a Indy. - Indiana Jones, Adieu!
De repente a porta de pedra que dava para a câmara foi
fechada por um grupo de soldados alemães. O ar foi extraído do
Poço.
os archotes apagaram-se e as cobras deslocavam-se para as
cavernas escuras.
Marion agarrou-se com força a Indy. Ele desenredou-se,
pegando em dois archotes que ainda estavam acesos, entregando-
lhe um.
- Abana o archote quando vires alguma coisa a mover-se -
disse ele.
- Tudo se move - replicou ela. - Tudo está a resvalar.
- Não me lembres isso.
Ele começou a tactear na escuridão, descobriu uma das latas
de petróleo, derramou petróleo junto à parede e deitou-lhe
fogo. Fitou uma das estátuas por cima, sentindo as cobras a
aproximarem-se cada vez mais dele.
- Que estás a fazer? - perguntou Marion.
Deitou o resto do petróleo num círculo à volta deles e
incendiou-o.
- Fica aqui.
- Porquê? Onde vais?
- Eu volto. Mantêm-te vigilante e prepara-te para correr.
- Correr para onde?
Ele não respondeu. Recuou por entre as chamas até ao centro
da sala. As cobras contorciam-se à volta dos pés, e ele
agitava desesperadamente o archote para não as deixar
aproximarem-se. Levantou os olhos para a estátua, que chegava
quase ao tecto. Tirou de debaixo da túnica o chicote e fê-lo
estalar na penumbra, vendo-o enrolar-se na base da estátua.
Puxou para testar a resistência, em seguida começou a trepar
com uma mão, com o archote na outra. Içou-se e torceu-se uma
vez para olhar para Marion lá em baixo, que estava atrás do
muro de chamas que ficava mais baixo. Parecia perdida,
desamparada e desesperada. Subiu até ao cimo da estátua quando
surgiu uma cobra à volta do rosto da estátua - silvando mesmo
à frente dos olhos de Indy. Indy atirou-lhe o archote a
cabeça, sentiu o cheiro a carne queimada do réptil, viu a
cobra deslizar na pedra lisa e cair. Firmou-se, com os pés
fixos entre a parede e a estátua. "Esperemos que resulte",
pensou. Trepavam cobras pela estátua, enroscando-se, e o
archote - muito fraco - não as manteria arretadas por muito
tempo. Agitou-o, batendo aqui e ali, ouvindo cobras a ceder e
a cair na câmara. Então o archote escorregou-lhe da mão e
apagou-se ao cair: "Agora que precisas de uma luz, não tens
nenhuma", pensou. E qualquer coisa rastejou na sua mão. Ele
gritou surpreendido. , Nesse preciso momento, a estátua cedeu,
soltou-se da base e balançou, tremeu, inclinando-se, formando
umângulo terrível com o tecto da câmara. "Aqui vamos nós",
pensou Indy, agarrando-se àquela estátua como se fosse uma
mula selvagem. Mas mais parecia que se agarrava a um cepo num
mar revolto - e ía, caía enquanto ele procurava manter-se
seguro, ganhando velocidade, passando pela Marion assustada,
que estava no meio das chamas que se extinguiam, passando por
ela silvando como na árvore derrubada por um lenhador,
atravessando o pavimento do Poço e esmagando-se na escuridão.
Então a viagem sobre a estátua parou abruptamente quando a
estátua partida bateu no fundo e ele escorregou, atordoado,
passando a mão pelo lado da cabeça. Apalpou na escuridão por
instantes, apercebendo-se de uma luz fraca que
se infiltrava no buraco irregular do Poço. Marion chamava-o em
voz alta.
- Indy! Onde estás?
Meteu o braço no buraco quando ela espreitou.
- Nunca viajes numa estátua - disse ele. - Segue o meu
conselho.
- Não me esquecerei.
Agarrou a mão dela e ajudou-a a entrar. Ela segurou o
archote por cima da cabeça. Já era uma luz fraca - mas é
suficiente para verem que estavam num labirinto de câmaras
interligadas, esquinadas, que se sucediam por baixo do Poço,
catacumbas que abriam túneis na terra.
- Então onde estamos agora?
- O teu palpite seria tão bom quanto o meu. Talvez tenham
construído o Poço por cima destas catacumbas por algum motivo,
Não sei. É difícil dizer. Mas sempre é melhor que as cobras.
Um magote de morcegos aflitos saiu da escuridão, voando a
volta deles, agitando o ar como loucos. Curvaram-se e entraram
noutra câmara. Marion agitou as mãos por cima da cabeça e
gritou.
- Não faças isso - disse ele. - Assusta-me.
- Que pensas que eu sinto?
Percorreram câmara apôs câmara.
- Tem de haver uma saída - disse ele. - Os morcegos são um
bom sinal. Têm de encontrar o céu para irem em busca de
alimento.
Outra câmara, e lá o cheiro era nauseabundo. Marion levantou
o archote.
Havia múmias apodrecidas com as faixas meias soltas, a carne
putrefacta que pendia de ligaduras amarelecidas, montes de
caveiras, ossos, alguns com carne quase intacta presa a
superfície. Uma parede em frente delas estava repleta de
escaravelhos reluzentes.
- Não suporto este cheiro - disse Marion.
- Estás a queixar-te?
- Acho que vou ficar enjoada.
- Ótimo - disse-lhe Indy. - Isso seria um remate excelente
para esta experiência.
Marion suspirou.
- Nunca estive num lugar tão horrível.
- Não, lá dentro foi o lugar mais horrível em que estiveste.
- Sabes que mais, Indy? - disse ela. - Se tivesse de ficar
aqui com alguém...
- Apanhei-te - interrompeu-a. - Apanhei-te.
- É verdade. Apanhaste.
Marion beijou-o suavemente nos lábios. A suavidade do toque
surpreendeu-o. Ele afastou o rosto, quis beijá-la outra vez mas
ela apontava com excitação para qualquer coisa, e, quando
virou a cara, viu, a alguma distância, a cena abençoada do sol
do deserto, um sol da aurora, branco, maravilhoso e promissor.
- Graças a Deus - disse ela.
- Agradece a quem quiseres. Mas ainda temos de trabalhar.
CAPÍTULO X
AS ESCAVações dE TANIS, Egipto
Atravessaram as escavações abandonadas mais próximas da
pista que fora aberta no deserto pelos alemães. Na pista
estavam dois caminhões de combustível, uma tenda que servia de
armazém de mercadorias, e uma pessoa - nitidamente um
mecânico, a avaliar pela bata - parado na extremidade da pista
com as mãos nas ancas, o rosto virado para o céu. Marion
reconheceu-o como sendo o ajudante de campo de Dietrich,
Gobler.
Subitamente, ouviu-se um barulho ensurdecedor no céu, e na
posição por detrás da escavação abandonada, Marion e Indy
viram um Flying Wing a aproximar-se para aterrar.
Gobler gritava ao mecânico:
- Encha o depôsito imediatamente! Tem de estar pronto para
decolar sem demora com uma carga importante!
O Flying Wing aterrou, deslocando-se aos solavancos na
pista.
- Vão meter a Arca naquele avião - disse Indy.
- Então que fazemos? Dizemos adeus com a mão?
- Não. Quando a Arca for carregada, já estaremos no avião.
Ela lançou-lhe um olhar irônico.
- Outro dos teus planos?
- Chegâmos até aqui... continuemos. - Correram
precipitadamente para um lugar mesmo atrás da tenda das
mercadorias.
O mecânico já colocava blocos a frente dos pneus do Flying
Wing.
O alemão ajustou a mangueira do combustível no avião. As
hélices rodavam, o motor fazia um barulho ensurdecedor.
Aproximaram-se ainda mais da pista, sem verem o mecânico
alemão, um jovem de cabelo louro com os braços tatuados, a
aparecer por detrás deles. Dirigiu-se para eles com a chave
inglesa no ar, e o alvo era a base do crânio de Indy. Foi
Marion quem viu a sombra, viu-a cair vagamente a sua frente;
gritou. Indy virou-se quando a chave inglesa baixava. Pôs-se
de pé num salto, agarrou o braço que se agitava e atirou o
homem ao chão enquanto Marion se escondia atrás de umas
grades, observando, pensando naquilo que poderia fazer para
ajudar.
Indy e o homem rolaram na pista. O primeiro mecânico
afastou-se do avião, estacoujunto aos homens que lutavam e
esperou pela oportunidade de dar um pontapé a Indy-mas Indy
levantou-se de repente, ágil, atacando o primeiro homem e
derrubando-o com os dois punhos. Mas o homem com os braços
tatuados ainda estava ansioso por lutar, e engalfinharam-se de
novo, rolando para a parte traseira do avião, onde as hélices
rodopiavam violentamente.
"De um momento para o outro podes ficar reduzido a carne
picada", pensou Indy.
Sentia as lâminas terríveis a cravarem-se no ar a sua volta
como facas a cortarem manteiga.
Tentou afastar ojovem das hélices, mas o rapaz era forte.
Gemendo, Indy agarrou o rapaz pela garganta e apertou com
força, mas o alemão libertou-se e atacou novamente com força
renovada. Marion, observando atrás das grades, viu o piloto a
sair da carlinga e a pegar numa Luger, fazendo pontaria, para
atingir Indy em cheio. Ela correu pela pista, levantou com
esforço um dos blocos que estava por debaixo das rodas e
atirou-o a cabeça do piloto, e este tombou, caindo de novo
para dentro da carlinga, embatendo na alavanca e aumentando
assim as rotações do motor.
O avião começou a rodar, girando, como se estivesse
frustrado, em torno dos únicos pneus que ainda estavam
bloqueados. Marion tentou agarrar-se a ponta da carlinga para
não deslizar para dentro das hélices, em seguida entrou,
curvando-se, e procurou afastar o piloto inconsciente da
alavanca.
Nada. Era demasiado pesado. O avião ameaçava ficar
descontrolado e virar-se, provavelmente esmagando Indy, ou
reduzindo-o a tiras. "As coisas que faço por ti, Indy", pensou
ela. E entrou para a carlinga, batendo na protecção de fibra
de vidro, fazendo-a fechar por cima dela. O avião continuava a
oscilar, com a asa a mover-se perigosamente por cima do lugar
onde Indy lutava com o alemão. Em pânico, viu-o derrubar o
homem, e logo depois este pôs-se de pé para Indy o atirar para
trás com um soco...
Para dentro das hélices.
Marion fechou os olhos. Mas não antes de ver as lâminas a
dilacerarem ojovem alemão, lançando no ar umjacto de sangue. E
o avião continuava a rolar. Abriu os olhos, tentou sair da
carlinga, percebeu que estava encurralada. bateu com força na
cobertura, mas não aconteceu nada. "Primeiro um cesto, agora
uma carlinga", pensou. "Onde vai parar isto?", Indy correu
para o avião, vendo-o inclinar, preocupado ao ver Marion a
bater violentamente no interior da carlinga. Então a asa,
partindo-se, tombando, enfiou-se no caminhão do combustível,
rasgando-o com a autoridade final do bisturi de um cirurgião,
derramando gasolina ao longo da pista como sangue de um doente
anestesiado. Indy começou a correr, escorregou na gasolina.
Tentou equilibrar-se, escorregou, levantou-se e começou de
novo a correr. Trepou para a asa e dirigiu-se para a carlinga.
- Sai! Isto vai explodir! - gritou-lhe.
Procurou agarrar o manópulo que abriria a carlinga do
exterior.
Forçou-a, tentou tudo, assaltado pelo cheiro forte a
gasolina que saía do caminhão.
Encurralada, Marion lançou-lhe um olhar de súplica.
A grade de madeira, cercada por três soldados alemães
armados, estava junto a entrada da tenda de Dietrich. Lá
dentro, numa grande agitação, empacotavam-se documentos,
dobravam-se mapas, desmontavam-se aparelhos de rádio. Belloq,
de pé no interior da tenda, assistia a preparação da partida
com um olhar vago, distante. O seu pensamento estava
completamente concentrado naquilo que estava na grade, o
objecto que desejava examinar. Era difícil refrear a
impaciência, manter-se controlado. Recordava naquele momento
os preparativos rituais que tinham de ser observados quando se
abrisse a Arca. Era estranho como se preparara ao longo dos
anos para aquele momento - e estranha tambêm a forma como
aprendera a conhecer os feitiços. Os Nazis não iriam gostar,
claro-mas poderiam fazer o que quisessem com a Arca depois de
a ter examinado. Podiam despachá-la e guardá-la num museu
qualquer que não teria a menor importância para ele.
Feitiços hebraicos; não iriam gostar nada disso. E a ideia
deu-lhe algum prazer. Mas o prazer não durou muito porque o
conteúdo da grade chamou uma vez mais a sua atenção. Se tudo
aquilo que aprendera sobre a Arca era verdadeiro, se todas as
histórias antigas relativas ao seu poder fossem correctas,
seria o primeiro homem a comunicar directamente com aquilo que
tinha a sua origem num lugar - um lugar infinito - para além
do entendimento humano.
Ele saiu da tenda.
Ao longe, flamejando como uma coluna de fogo que podia vir
do céu, deu-se uma enorme explosão.
Começou a correr, levado pela ansiedade, para a pista.
Dietrich apareceu atrás dele, seguido por Gobler, que
estivera na pista vários minutos antes.
Os caminhões do combustível tinham explodido e o avião estava
completamente destruído e em chamas.
- Sabotagem - disse Dietrich. - Mas quem?
- Jones - disse Belloq.
- Jones? - Dietrich parecia desorientado.
- O homem tem mais vidas que o gato - disse Belloq. - Mas
há-de chegar a hora em que as esgotará, não?
Observaram as chamas em silêncio.
- temos de tirar daqui a Arca imediatamente - comentou
Belloq. - Temos de a colocar num caminhão e ir para o Cairo. De
lá podemos ir de avião.
Belloq olhou mais algum tempo para os destroços, admirado
com o sentido de objectivo de Indiana Jones, com o dom pródigo
de sobrevivência. Uma pessoa tinha de admirar o apego tenaz do
homem a vida. E uma pessoa tinha de ter cuidado com a astúcia,
e fortaleza de espírito subjacentes a tudo. "Era quase
impossível", pensou Belloq, "menosprezar a oposição." E talvez
tivesse menosprezado sempre Indiana Jones.
- Precisamos de muita protecção, Dietrich.
- Claro. Eu trato disso.
Belloq virou-se. O voo do Cairo era uma mentira, claro - já
dera instruções pela rádio para a ilha, sem o conhecimento de
Diietrich. Era uma ponte que atravessaria quando lá chegasse.
A única coisa importante naquele momento era que ele deveria
abrir a Arca antes de ela ser enviada para Berlim.
Já reinava uma grande confusão nas tendas. Soldados alemães
tinham corrido para a pista e regressado muito perturbados.
Outro grupo de homens armados, com os rostos enegrecidos do
fumo do acidente, tinha começado a carregar a Arca para o
caminhão com uma cobertura de lona: Dietrich fiscalizava-os,
dando ordens em voz alta, nervosa e estridente. Sentir-se-ia
aliviado e contente quando aquela grade em mau estado
estivesse finalmente a salvo em Berlim, mas até lá não
confiava em Belloq - entrevira uma forte determinação, uma
determinação tortuosa, nos olhos do francês. E por detrás
dessa determinação algo que parecia louco, distante, como se o
arqueólogo se dedicasse mais profundamente a comunicar consigo
mesmo. "Era um olhar de loucura", pensou ele, um pouco
alarmado quando se apercebeu de que vira um olhar algo
semelhante no rosto do Fihrer quando estivera na Baviera com
Belloq. Talvez fossem semelhantes, o francês e Adolf Hitler.
Talvez a sua força, assim como a sua loucura, fosse aquilo que
os separava das pessoas comuns. Dietrich limitava-se a
conjecturar. Olhou fixamente para a grade que ia ser metida no
caminhão e interrogou-se sobre Jones - mas Jones não podia estar
vivo, tinha de estar sepultado naquela câmara sinistra.
Mesmo assim, o francês parecia convencido de que o americano
estivera por detrás da sabotagem. Talvez aquela animosidade,
aquela rivalidade, que existia entre os dois fosse outro
aspecto da loucura de Belloq.
Talvez.
Não havia tempo para meditar sobre o estado de espírito do
francês. Havia a Arca e a estrada para o Cairo e a terrível
perspectiva de mais sabotagens pelo caminho. A transpirar, a
odiar aquele deserto lúgubre, aquele calor, gritou mais uma
vez aos homens que carregavam o caminhão - sentindo alguma pena
deles - Como ele, estavam muito longe da Fatherland
(Alemanha).
Marion e Indy esconderam-se atrás de uns barris, vendo os
Árabes a correr de um lado para o outro muito desorientados,
vendo os alemães a carregar o caminhão. Os rostos estavam negros
da sucessivas explosões e Marion, visivelmente pálida mesmo
por debaixo da fuligem, parecia extremamente cansada.
- Demoraste muito - queixou-se ela.
- Tirei-te de lá, não tirei?
- Mesmo no último minuto - disse ela. - Como ? que Deixas
sempre tudo para o fim?
Ele lançou-lhe um olhar, passou as pontas dos dedos no
rosto, olhou fixamente para a fuligem incrustada nas espirais
das pontas dos dedos, depois voltou-se para espreitar para o
caminhão.
- Vão levar a Arca para algum lugar... É neste momento
aquilo que mais me interessa.
Um grupo de Árabes passou a correr. No meio deles, para seu
prazer e sua surpresa, Indy viu Sallah. Estendeu o pé,
rasteirando o egípcio, que tropeçou e se levantou com uma
expressão de alegria no rosto.
- Indy! Marion! Pensei que vos tinha perdido.
- Nós tambêm - disse Indy. - Que aconteceu?
- Quase não prestam atenção aos Árabes, meu amigo. Pensam
que somos tolos, ignorantes... além disso quase não nos
conseguem distinguir. Escapei-me e eles não estavam a prestar
grande atenção.
Escondeu-se atrás dos barris, respirando com dificuldade.
- Imagino que foste tu quem provocou a explosão?
- Acertaste.
- Não sabes que tencionam levar a Arca para o Cairo no
caminhão?
- Cairo?
- Talvez depois para Berlim.
- Quanto a Berlim, duvido - disse Indy. -Não consigo
imaginar Belloq a deixar que a Arca chegue a Alemanha antes de
a examinar.
Um carro do estado-maior, descapotável, parou ao lado do
caminhão. Belloq e Dietrich entraram com um motorista e um
guarda armado. Ouviram o som de pés que se arrastavam na
areia; cerca de dez soldados armados subiram para o caminhão com
a Arca.
- É impossível - disse Marion.
Indy não respondeu. "Observa", disse para si mesmo. "Observa
e concentra-te. Pensa.", Já lá estava um segundo carro do
estado-maior, descapotável, com uma metralhadora montada na
retaguarda; um atirador estava sentado com impaciência atrás
dela. Na frente deste carro estava Gobler ao volante. Ao lado
de Gobler estava Arnold Toht.
Marion susteve bruscamente a respiração quando viu Toht.
- Ele é um monstro.
- São todos monstros - disse Sallah.
- Monstros ou não - replicou ela -, neste momento tudo
parece cada vez mais impossível.
"Metralhadora, soldados armados", pensou Indy. "Talvez fosse
possível alguma coisa. Talvez não precisasse de aceitar o
desespero como a única resposta". Viu aquele comboio começar a
pôr-se em marcha, oscilando sobre as areias.
- Vou segui-los - disse ele.
- Como? - perguntou Marion. - Consegues correr com tanta
velocidade?
- Tenho uma ideia melhor. - Indy pôs-se de pé. - Vocês
regressam ao Cairo o mais depressa possível e providenciam
qualquer tipo de transporte para Inglaterra... qualquer coisa,
um barco, um avião, tanto me faz.
- Porquê Inglaterra? - perguntou Marion.
- Não há barreiras linguísticas nem Nazis - respondeu Indy.
Olhou para Sallah. - Onde podemos encontrar-nos no Cairo?
Sallah ficou com um ar pensativo durante algum tempo.
- Há a garagem de Omar, onde ele guarda o caminhão. Conheces o
Largo das Cobras?
- Horrendo - disse Indy. - Mas não me podia esquecer dessa
morada, pois não?
- Na parte antiga da cidade - disse Sallah.
- Lá estarei.
Marion levantou-se.
- Como é que sabes que chegarás lá inteiro?
- Confia em mim.
Beijou-a quando ela lhe prendeu o braço. Disse:
- Gostava de saber quando chegará o dia em que não me
deixarás mais?
Ele esgueirou-se, passando pelo meio dos barris.
- Podemos utilizar o meu caminhão - disse Sallah a Marion
depois de ele se ter ido embora. - Lento mas seguro.
Marion olhou fixamente para o espaço. Afinal que é que Indy
tinha que a afectava tanto? Não era propriamente um amante
meigo, se se lhe poderia chamar amante. E entrava e saía
repentinamente da sua vida como um feijão saltitante. Afinal o
que era? "Há mistérios que não se podem desvendar", pensou.
"Há alguns que nem sequer queremos desvendar."
Indy vira os garanhões presos a postes num lugar situado
entre a pista abandonada e as escavações; dois deles, um Árabe
branco e um preto, protegidos do Sol por uma lona verde. Tendo
deixado Marion e Sallah, correu na direcção dos garanhôes, na
esperança de que ainda lá estivessem. Estavam. É o meu dia de
sorte", pensou ele.
Aproximou-se deles cautelosamente. Há anos que não montava e
perguntou a si mesmo se andar a cavalo, como andar de
bicicleta, era uma coisa que nunca se esquecia depois de se
ter aprendido. Ele assim esperava. O garanháo preto,
resfolegando, batendo na areia com os cascos, empinou-se
quando ele se aproximou; o cavalo branco, por outro lado,
olhou-o com uma expressão dócil. Saltou para o costado branco,
puxou a crina, e sentiu-o arquear um pouco, movendo-se depois
na direcção do puxão. "Vai", pensou ele, e levou o cavalo para
fora do abrigo de lona, cravando-lhe os tacões nos flancos.
Fez com que o cavalo andasse a galope, obrigando-o a
atravessar as dunas, a descer barrancos, a subir declives.
Movia-se lindamente, respondendo aos seus gestos sem
protestar. Tinha de apanhar o comboio nas estradas montanhosas
algures antes de chegar ao Cairo. Depois disso - que iria
acontecer?
Teria de haver muita espontaneidade.
E a excitação da perseguição seria imensa.
O comboio avançava penosamente através da estrada estreita e
montanhosa que subia cada vez mais, através de curvas muito
pronunciadas que davam para desfiladeiros cuja profundidade
causava vertigens. Indy, montado no garanháo, viu-o
afastar-se; subia penosamente a alguma distância abaixo dele.
E os homens nos caminhões, que mais pareciam zombies de
uniforme, ainda empunhavam espingardas, e era preciso
respeitar, com grande precaução, qualquer homem armado.
Sobretudo se era componente de um pequeno exército e ele - com
mais intrepidez de que bom senso - seguia sozinho num cavalo
Árabe. Espicaçou o corcel para descer uma ladeira, uma ladeira
de vegetação rasteira, xisto e terra solta, e os cascos
provocavam pequenas avalanches. Depois atingiu a estrada
estreita, ficando perto do último carro do estado maior; uma
vez mais com esperança de que não o vissem. "Poucas
probabilidades", pensou. Obrigou o cavalo a avançar
precisamente no momento em que um atirador no carro da
retaguarda abriu fogo, crivando a superfície mole da estrada
de balas que fizeram com que o cavalo partisse. As balas
embateram nas vertentes da montanha fazendo eco. Forãou mais o
cavalo, quase rebentando o animal, e depois passava pelo carro
do estado-maior, vendo os rostos de surpresa dos alemães que
nele seguiam. O atirador rodou a metralhadora e esta disparou
ininterruptamente, deu coices, ficando sem munições enquanto
abria fogo ao acaso para atingir o homem a cavalo. Toht,
sentado ao lado do motorista, sacou de uma pistola, mas Indy
já estava protegido do carro do estado-maior pelo caminhão,
seguindo encostado a ele. O alemão disparou mesmo assim a
pistola. As balas atravessaram a lona do caminhão.
"Aproveita agora", pensou Indy. Saltou do animal, rodopiou
no ar, agarrou a parte lateral do caminhão e abriu a porta
quando guarda armado que seguia ao lado do condutor tentou
erguer a espingarda. Indy lutou com ele para lhe arrancar a
espingarda, torcendo-a enquanto o guarda resmungava devido ao
esforço de um combate em que não tinha o privilégio de se
servir da arma. indy torceu com força; subitamente ouviu o
ruído repugnante de pulsos que partiam, o grito de dor do
homem, e em seguida Indy empurrou o guarda do caminhão e este
caiu na estrada.
"Agora o condutor.", Indy lutou com ele, um homem possante
com dentes de ouro, enquanto o volante girava e o caminhão se
precipitava na direcção do precipício. Indy deitou a mão ao
volante, endireitando o caminhão, e o condutor atingiu-o em
cheio e com força no rosto.
Indy ficou aturdido por instantes. O condutor tentava
travar. Indy afastou o pé com um pontapé. E então
envolveram-se de novo numa luta enquanto o volante rodava
descontrolado e o caminhão guinava. No carro do estado-maior,
que seguia atrás, Grobler teve de virar o volante para fugir
ao caminhão - um movimento tão forte e tão brusco que o atirador
foi projectado do carro e atirado para um rochedo. Caiu como
um papagaio de papel com pesos de chumbo, braços esticados e o
cabelo a ondular com o vento, e o som do seu grito ecoou na
ravina.
No primeiro carro do estado-maior, Belloq virou-se para ver o
que se passava. "Jones", pensou. "Tinha de ser Jones, ainda
tentar apoderar-se da Arca. O prêmio nunca será teu, amigo.",
pensou. Fitou Dietrich e em seguida olhou para trás uma vEz
mais, mas a luz do sol não deixava ver o interior da cabina do
caminhão que ia atrás.
- Creio que existe um problema - disse Belloq
distraidamente.
O carro atingiu um pico, fez uma curva apertada, bateu na
fraca protecção e torceu-a. O condutor conseguiu endireitar o
carro, enquanto o guarda armado, sentado na retaguarda do
carro, apontava a metralhadora, e testou-a najanela da cabina.
Belloq deteve-o.
- Se disparares, podes matar o condutor. Se matares o
condutor, é muito provável que o premiozinho egípcio do vosso
Fihrer seja atirado pela borda fora. Que lhes diria ele em
Berlim?
Parecendo preocupado, Dietrich conseguiu acenar com a cabeça
de um modo severo.
- É mais uma das habilidades do seu amigo americano, Be loq?
- Não compreendo aquilo que pretende alcançar numa situação
de desvantagem como esta - replicou Belloq. - Mas tambêm me
assusta.
- Se acontecer alguma coisa a Arca... - Dieterich não
completou a frase, mas parecia passar um dedo indicador, como
uma lâmina, na laringe.
- Não acontecerá nada a Arca - disse Belloq.
Indy apertava já o pescoço do condutor e o caminhão ficou uma
vez mais descontrolado, rodando na direcção da protecção
partida, batendo-lhe em cheio, levantando uma nuvem de pó
antes de Indy deitar a mão ao volante e afastar o caminhão da
berma. No carro do estado-maior que seguia na retaguarda, o pó
cegou Gobler e Toht - Toht, que ainda empunhava a arma, mas em
vão.
Gobler, com a garganta cheia de poeira, tossiu. tentou tirar
o pó dos olhos, pestanejando: Mas pestanejou tarde de mais. A
última coisa que viu foi a protecção partida, a última coisa
que ouviu foi o grito terrível, inesperado, de Toht. O carro
do estado-maior, arrastado inexoravelmente para a beira do
desfiladeiro como um ferro atraído por um íman, transpôs a
protecção e cai no espaço, parecendo pairar um segundo numa
espécie de imitação grotesca de gravidade antes de cair, sem
parar, explodindo irrompendo em chamas quando descia aos
saltos pela encosta do desfiladeiro.
"Diabo", pensou Indy. "Sempre que agarrava o condutor, o
caminhão quase os levava a uma morte certa. E o indivíduo era
forte."
A fortaleza escondia uma camada de músculo, músculo rijo.
Pelo canto do olho, Indy apercebeu-se de outra coisa. Lançou
um olhar ao espelho lateral - trepavam soldados pelos lados do
caminhão, mantendo-se firmes devido ao medo e a determinação,
tentando alcançar a cabina. Numa súbita explosão de energia,
Indy afastou o condutor com um empurrão, abriu a porta do lado
do volante e atirou-o para fora da cabina com um pontapé. O
homem caiu envolto em pó e aos gritos, a esbracejar.
"Lamento", pensou Indy.
Deitou a mão ao volante e carregou no acelerador,
aproximando-se do carro da frente. Depois, subitamente, tudo
ficou escuro, era um pequeno túnel aberto na vertente da
montanha. Fez oscilar o caminhão de um lado para o outro,
raspando nas paredes, ouvindo os gritos dos soldados enquanto
eram esmagados contra as paredes, enquanto largavam os lados
do caminhão. Indy perguntou a si mesmo quantos soldados ainda
estariam na retaguarda do caminhão. Era impossível contar. Já
fora do túnel, de novo em plena luz do dia, intensa, dirigiu o
caminhão na direcção do carro do Estado-maior, embatendo nele, e
viu o rosto do guarda armado quando este olhou para cima -
apontava para o cimo do caminhão.
"Estragou tudo", pensou Indy. "Se há mais soldados em cima
do caminhão, aquele tipo acabou de estragar o plano. Melhor
ileso que arrependido.", Disse para os seus botões, carregando
subitamente nos travões, bloqueando as rodas, obrigando o
caminhão a parar. Viu os dois soldados a serem projectados do
tejadilho do caminhão de encontro a vertente da montanha.
Já desciam a estrada íngreme na montanha. Indy pôs o pé no
acelerador, pressionando o carro do estado-maior, batendo
nele. "uma sensação agradável", pensou, "saber que não se
arriscarão a matar-te por causa da carga preciosa".
Deleitou-se com a súbita sensação de liberdade, batendo várias
vezes no pára-choques posterior do carro, vendo Belloq e os
amigos alemães a serem abalados, sacudidos. Mas sabia que mais
cedo ou mais tarde teria de os ultrapassar.
Atirou uma vez mais o caminhão, batendo no carro do estado-
maior. A estrada começava a ficar plana a medida que se descia
peLos pontos mais elevados da montanha; ao longe, fraca mas
delineada, viu a neblina que cobria a cidade. A parte
perigosa, a parte pior; se não corriam nenhum perigo - e vê-lo
mergulhar - juntamente com o caminhão e a carga num
desfiladeiro, então iriam certamente tentar matá-lo, ou pelo
menos atirá-lo para fora da cabina. Como se fosse impelido
pelo pensamento, uma forma de teleia traiçoeira, o guarda
armado abriu fogo. As balas da metralhadora estilhaçaram o
vidro, rasgaram a lona, cravaram-se na parte principal
do caminhão. Indy ouviu-as passar ao lado, silvando, mas
desviou-se, instintivamente. Era preciso ultrapassar. a
estrada ainda tinha muitas curvas, e mesmo em frente havia uma
muito apertada. "Segura-te", disse para si mesmo. Segura-te
para conseguires.", Acelerou o caminhão o mais que pôde e fez
com que o veículo passasse o carro do estado-maior, ouvindo
outro silvo de balas, e nesse momento chocava com o carro e
via-o sair da estrada, descendo um pequeno talude.
Concluída uma fase. Mas sabia que se fariam de novo a
estrada e voltariam a persegui-lo. Olhou pelo espelho lateral;
já não havia dúvida. Subiam de novo a rampa, derrapando,
fazendo marcha atrás na estrada, endireitando o carro,
seguindo no seu encalço. Carregou a fundo no acelerador.
"Dê-me tudo o que tens para dar", pensou. E pouco depois
estava nos arredores da cidade, seguido de perto pelo carro do
estado-maior. Ruas de cidade: umjogo diferente.
Ruas estreitas. Atravessou-as a grande velocidade, atirando
ao ar animais e pessoas, derrubando bancas, cestos, a fruta a
comerciantes e vendedores, espalhando pedintes que se
atravessavam no seu caminho. Os peões corriam para as soleiras
enquanto o caminhão passava; depois percorreu ruas e becos mais
estreitos, procurando a praça onde Omar tinha a garagem,
lembrando a geografia do Cairo. Um pedinte cego subitamente
capaz de ver - um milagre - apareceu de repente, atirando ao
chão a taça das esmolas e levantando os óculos escuros para
olhar para o caminhão.
Forçou mais o caminhão. O carro do estado-maior ainda
avançava.
Deu uma guinada ao volante. Outra viela. À passagem do
caminhão saltaram macacos, um homem caiu de um escadote, um bebê
nos braços da mãe começou a gritar. "Desculpem", pensou Indy.
Ficaria e pediria desculpa pessoalmente, "mas não acho que
seja conveniente." Entretanto não tinha conseguido livrar-se
ainda do carro do estado-maior.
Encontrou a praça. Viu a tabuleta da garagem de Omar, com a
porta escancarada, e conduziu rapidamente o caminhão para lá. A
porta foi trancada imediatamente quando travou. Em seguida
vários rapazes Árabes com vassouras e escovas começaram a
limpar as marcas do veículo enquanto Indy, perguntando a si
mesmo se conseguira livrar-se, ficou recostado ao volante na
escuridão da garagem.
O carro do estado-maior abrandou, atravessou a praça e
continuou a sua marcha, com Belloq e Dietrich a examinar as
ruas com expressões de angústia e derrota.
Na retaguarda do caminhão, a salvo da grade, a Arca começou a
fazer um ruído surdo quase inaudível. Era como se dentro dela,
fechada e segura, um mecanismo tivesse começado
espontaneamente a funcionar. Ninguem ouviu o som.
Já estava escuro quando Sallah e Marion chegaram a garagem.
Indy adormecera por instantes numa cama-rede que Omar lhe
dera, acordando sozinho e esfomeado no meio do silêncio e da
escuridão. Esfregou os olhos quando acenderam uma lámpada
suspensa no tecto. Marion lavara e escovara o cabelo algures e
"estava com um aspecto assombroso", pensou Indy. Estava perto
dele quando abriu os olhos.
- Pareces muito magoado - disse ela.
- Uns golpes superficiais - respondeu ele, sentando-se,
gemendo, sentindo dores no corpo.
Mas nesse instante Sallah entrou no compartimento e Indy pôs
de lado o cansaço e as dores.
- Arranjámos um barco - disse Sallah.
- De confiança?
- Os homens são piratas, se posso usar essa expressão. Mas
podes confiar neles. O capitão, Katanga, é um homem honesto...
independentemente dos seus negócios mais duvidosos.
- Leva-nos a nós e a carga?
Sallah acenou com a cabeça.
- Por um preço.
- Que mais? - Indy, com grande esforço, levantou-se.
- Vamos levar o caminhão para o porto.
Lançou um olhar a Marion, depois disse:
- Tenho um pressentimento de que o nosso dia ainda não
terminou.
No edifício ornamentado que albergava a Embaixada da
Alemanha no Cairo, Dietrich e Belloq sentaram-se numa sala que
costumava ser utilizada pelo embaixador, um diplomata de
carreira que sobrevivera as expurgações de Hitler e que, de
bom grado, tinha cedido a sala para os seus fins. Já estavam
sentados em silêncio há algum tempo, Belloq a olhar para o
retrato de Hitler e Dietrich a fumar com impaciência cigarros
egípcios.
O telefone tocava de vez em quando, Dietrich atendia,
voltava a colocá-lo no lugar, depois abanava a cabeça na
direcção de Belloq.
- Se perdemos a Arca... - Dietrich acendeu outro cigarro.
Belloq levantou-se, deu uma volta pela sala, acenou com uma
mão, com indiferença.
- Eu não aceito essa possibilidade, Dietrich. Que aconteceu
a sua maravilhosa rede de espiões egípcios? Por que não
conseguem encontrar aquilo que os seus homens perderam?
- Hão-de encontrar. Estou esperançado.
- Esperança. Quem me dera ter alguma.
Dietrich fechou os olhos. Estava cansado da mordacidade de
Belloq; e ainda mais receoso de regressar a Berlim de mãos
vazias.
- Não posso conceber tamanha incompetência - disse Belloq. -
Como é que um homem, agindo sozinho... sozinho, não se
esqueça... destrói praticamente um comboio inteiro e
desapareceé Estupidez. Custa-me a crer.
- Já ouvi isso - disse Dietrich, irritado.
Belloq aproximou-se da janela e olhou para a escuridão.
Algures, escondido na noite impenetrável do Cairo, estava
Jones; e Jones tinha a Arca. Maldito." Não podia perder a
Arca; até a perspectiva o arrepiou, provocou uma sensação de
algo que se afundava dentro dele.
O telefone tocou outra vez. Dietrich atendeu, escutou e em
seguida o seu estado de espírito mudou. Quando desligou olhou
para o francês com uma expressão vaga de vingança no rosto.
- Eu disse-lhe que a minha rede descobriria alguma coisa.
- Descobriram?
- Segundo um vigia nas docas, um egípcio chamado Sallah, o
amigo de Jones, fretou um navio a vapor de mercadorias com o
nome Bantu Wind.
- Pode ser um ardil - disse Belloq.
- Pode ser. Mas vale a pena averiguar.
- Tambêm não temos mais nada - retorquiu Belloq.
- Vamos então?
Deixaram a pressa a Embaixada, chegando as docas apenas para
descobrirem que o navio de carga partira há uma hora. O
destino era desconhecido.
CAPÍTULO XI
MEDITERRâNEO
Na cabina do capitão do Bantu Wind, Indy despiu-se até a
cintura e Marion tratou-lhe os diversos golpes e ferimentos
com ligaduras e um frasco de iodo. Olhou fixamente para ela
enquanto trabalhava, reparando no vestido que trazia. Era
branco, com gola alta, um pouco extravagante. Achou-o
atraente.
- Afinal onde arranjaste isso? - perguntou ele.
- Há um guarda-roupa completo no armário - replicou ela. -
Tenho a impressão de que não sou a primeira mulher a viajar
com estes piratas.
- Gosto dele - disse ele.
- Sinto-me como uma... uma virgem.
- Creio que te pareces com uma.
Olhou para ele durante algum tempo, pondo iodo num golpe.
Depois disse:
- A virgindade é uma coisa elusiva, querido. Quando deixa de
existirjá não há remédio. Pagaste bem a tua conta.
Deixou de o tratar, encheu um copo pequeno com rum que
estava numa garrafa. Bebeu-o lentamente, observando-o ao mesmo
tempo, parecendo zombar dele por cima da borda do copo.
- Alguma vez pedi desculpa por deitar fogo a tua taberna? -
perguntou ele.
- Não posso dizer se o fizeste. Alguma vez te agradeci por
me teres tirado daquele avião em chamas?
Ele abanou a cabeça.
- Estamos quites. Talvez devêssemos pôr uma pedra sobre o
passado, que dizes?
Ficou calada por muito tempo.
- Onde sentes dores? - perguntou com ternura.
- Em todo o lado.
Marion beijou suavemente o ombro esquerdo.
- Aqui?
Indy deu um pequeno salto em resposta.
- Sim, aí.
Marion curvou-se, aproximando-se dele.
- Onde não tens dores? - E beijou-lhe o cotovelo. - Aqui?
Ele acenou com a cabeça. Beijou-lhe o cimo da cabeça. Depois
ele apontou para o pescoço e ela beijou-o. Depois a ponta do
nariz, os olhos. Depois tocou nos seus próprios lábios e ela
beijou-o, com a boca a devorar suavemente a dele.
Estava diferente; mudara. Já não o toque violento que
sentira no Nepal.
Alguma coisa a tocara, a tornara mais meiga.
Gostava de saber o que tinha sido.
Admirou-se com a mudança.
A Arca, protegida com a grade, estava no porão do navio. A
sua presença agitava as ratazanas do navio: corriam para trás
e para a frente, atabalhoadamente, a tremer, com os bigodes a
abanar. Ainda baixo como um sussurro, o mesmo som fraco,
sussurrante saiu da grade. Somente as ratazanas com a audição
muito sensível captaram o som; e isso obviamente assustou-as.
Na ponte, quando a primeira luz da aurora listrou o oceano,
o capitão fumava o cachimbo e observava a superfície da água
como se tentasse distinguir qualquer coisa que seria invisível
para pessoas confinadas a terra. Deixou que o sol e os
salpicos de sal lhe batessem no rosto, listas de sal que
deixavam traços de branco cristalino na pele negra. Havia
alguma coisa, qualquer coisa que emergia da escuridão, mas não
sabia ao certo o que era. Semicerrou os olhos, olhou
fixamente, não viu nada. Escutou o chocalhar, um pouco
reconfortante, dos motores cansados do navio e pensou num
coração fraco a tentar irrigar sangue num corpo debilitado.
Pensou por instantes em Indy e na mulher. Simpatizava com os
dois, e além disso eram amigos de Sallah.
Mas havia qualquer coisa na carga, qualquer coisa na grade
que o preocupava. Não sabia o que era; apenas sabia que
ficaria contente de se livrar dela quando chegasse a hora. Era
a mesma preocupação que sentia enquanto o olhar perscrutava o
oceano. Uma palpitação vaga. Algo em que não podia pôr o dedo.
Mas havia qualquer coisa semelhante lá, algo que se movia.
Percebeu mesmo antes de conseguir ver.
Sentia o cheiro, com a mesma certeza com que sentia os
salpicos salgados no ar, o odor inconfundível do perigo.
Continuou a observar, com o corpo na posição de alguém que
está prestes a saltar de uma prancha de saltos muito alta:
Alguém que não sabe nadar.
Quando Indy acordou, ficou a olhar para Marion durante algum
tempo. Ainda dormia, ainda tinha o ar virginal com o vestido
branco. Tinha o rosto virado para o lado, e a boca um pouco
aberta. Passou os dedos nas ligaduras onde a pele começara a
ficar irritada. Sallah tivera o bom senso de lhe ir buscar a
roupa, assim vestiu a camisa, verificou se o chicote estava
bem seguro nas costas, em seguida colocou o casaco de cabedal
e entreteve-se com o bordo do chapéu velho de feltro.
"Um chapéu com sorte", pensou ele algumas vezes. Sem ele
ter-se-ia sentido despido.
Marion mexeu-se e abriu os olhos.
- Que vista agradável - disse ela.
- Não me sinto agradável - replicou ele.
Ela olhou para as ligaduras e perguntou:
- Por que te metes sempre em sarilhos?
Sentou-se, alisando o cabelo, olhando para a cabina.
- Fico contente porver que mudaste de roupa. Receio que não
convencesses ninguêm de que eras Árabe.
- Fiz o melhor que pude.
Ela bocejou, espreguiçou-se e levantou-se da cama-rede.
Pareceu-lhe que havia algo de encantador no movimento, uma
qualidade que o tocava - que o tocava obliquamente,
indirectamente. Pegou-lhe na mão, beijou-a, depois deu uma
volta pela cabina.
- Quanto tempo vamos estar no mar? - perguntou ela.
- É uma pergunta directa ou metafórica?
- Entende-a como quiseres, Jones.
Ele sorriu-lhe.
E então compreendeu que acontecera alguma coisa: enquanto
estivera tão ocupado a fazer introspecção, os motores do navio
tinham parado e o veleiro já não se movia.
Levantou-se e correu para a porta, dirigindo-se rapidamente
para o convés e de lá para a ponte, onde Katanga olhava
fixamente para o oceano. O cachimbo do capitão estava apagado,
o rosto com um ar solene.
- Parece que tem amigos importantes, Mr. Jones - disse o
homem.
Indy arregalou os olhos. Ao princípio não percebeu nada. Mas
depois, seguindo a direcção da mão do capitão, viu que o Bantu
Wind, como uma solteirona cortejada por um grupo de
pretendentes, indesejados e insaciáveis, estava cercado por
uma dúzia de submarinos Wolf alemães.
- Diacho! - exclamou ele.
- É tambêm o que eu penso - disse Katanga. - Você e a
rapariga têm de desaparecer rapidamente. Temos um lugar no
porão onde se podem esconder. Mas tem de ser depressa. Vá
buscar a rapariga!
Era demasiado tarde: os dois homens viram cincojangadas com
grupos armados de abordagem a cercar o navio a vapor. Os
primeiros nazisjá subiam pelas escadas de corda que tinham
sido baixadas. Ele virou-se, correu. Marion estava em primeiro
lugar naquele momento. Primeiro tinha de a ir buscar. Tarde de
mais - o ar estava cheio do som de botas, palavras, ordens em
alemão. a sua frente viu Marion a ser arrastada para fora da
cabina por dois soldados. Os outros soldados, fazendo
rapidamente a abordagem, cercaram a tripulação no convés, com
as armas apontadas. Indy desapareceu nas sombras,
esgueirando-se por uma porta para o labirinto do navio.
Antes de desaparecer, com o pensamento a tentar encontrar
desesperadamente uma saída, ouviu Marion a rogar pragas aos
atacantes; e, apesar da situação, achou graça ao seu espírito.
"Uma excelente mulher", pensou ele, e impossível de se dominar
por completo. Gostava dela por isso.
Gostava muito dela".
Dietrich subiu a bordo, seguido por Belloq. O capitão já
fizera sinal a tripulação para não oferecer resistência. Era
evidente que os homens queriam lutar, mas estavam em
desvantagem.
Por isso alinharam-se com uma expressão taciturna sob as
armas alemãs enquanto Belloq e Dietrich passavam revista,
dando ordens em voz alta, mandando os soldados esquadrinhar o
navio até encontrarem a Arca.
Marion viu Belloq aproximar-se dela. Sentiu quase as mesmas
vibrações, mas daquela vez estava decidida a combatê-las,
decidida a não ceder a qualquer sensação que o homem pudesse
provocar nela.
- Minha cara - disse Belloq -, tem de me regalar com a
história... sem dúvida épica... de como conseguiram sair do
Poço. Porêm, isso pode esperar.
Marion não disse nada. Não haveria nenhum final a vista para
aquela sequência de acontecimentos? Aparentemente Indy tinha
um talento maravilhoso para semear a destruição maciça.
Observou Belloq, que lhe tocou ao de leve por baixo do
queixo. Ela afastou o rosto. Ele sorriu.
- Mais tarde - disse ele, encaminhando-se para o lugar onde
se encontrava Katanga.
Preparava-se para dizer alguma coisa quando um som lhe
chamou a atenção e virou-se, vendo um grupo de soldados a içar
a Arca do porão. Refreou a impaciência que sentiu. O mundo,
com todos os seus detalhes mundanos, sempre controlava a sua
ambição. Mas isso acabaria muito em breve. Lentamente,
relutantemente, desviou os olhos da grade quando Dietrich
ordenou que a colocassem num dos submarinos.
Ele olhou para Katanga.
- Onde está Jones?
- Morreu.
- Morreu? - disse Belloq.
- Para que nos servia ele? Atirâmo-lo borda fora. A rapariga
tem mais valor no tipo de mercado a que eu me dedico. Um homem
como Jones não tem qualquer valor para mim. Se era a carga
dele que queriam, apenas lhes peço que a levem e nos deixem a
rapariga. Reduzirá o prejuízo desta viagem.
- Está a pôr-me impaciente - disse Belloq. - Espera que eu
acredite que Jones morreu?
- Acredite naquilo que quiser. Só peço que nos deixem partir
em paz.
Dietrichjá se aproximara.
- Não está em posição de pedir seja o que for, Capitão.
Decidiremos aquilo que quisermos e depois pensaremos na
possibilidade de fazer ir pelos ares este barco antigo.
- A rapariga vai comigo - disse Belloq.
Dietrich abanou a cabeça.
Belloq prosseguiu:
- Considere-a como parte da minha compensação. Tenho a
certeza de que o Fihrer aprovaria. Uma vez que recuperâmos a
Arca, Dietrich.
Dietrich parecia hesitante.
- Claro, se ela deixar de me agradar, por mim pode atirá-la
aos tubarões.
- Muito bem - disse Dietrich. Notou, por instantes, uma
expressão de dúvida no rosto de Belloq, depois fez sinal para
que levassem Marion para o submarino.
Indy observava do seu esconderijo num ventilador, com o corpo
encolhido e desconfortável. As botas batiam violentamente no
convés, muito perto do seu rosto - mas não fora descoberto. A
mentira de Katanga pareceu-lhe fraca, um gesto desesperado mas
bondoso. Mas resultara. Espreitou, perscrutando o convés, a
pensar. Tinha de seguir no submarino, tinha de ir com Marion,
com a Arca. Como? Como?
Belloq observava o capitão com muita atenção.
- Como posso saber se o que diz a respeito de Jones é
verdade?
Katanga encolheu os ombros.
- Eu não minto. - Fitou o francês; não gostava nada dele.
Sentiu pena de Indy por ter um inimigo como Belloq.
- Os seus homens encontraram-no a bordo? - perguntou o
marinheiro.
Belloq pôs-se a pensar; Dietrich abanou a cabeça.
O alemão disse:
- Partamos. Temos a Arca. Vivo ou morto, Jones já não tem
importância.
O rosto e o corpo de Belloq ficaram tensos por instantes;
depois pareceu descontrair-se, seguindo Dietrich ao longo do
convés do navio de carga.
Indy ouviu asjangadas a afastarem-se do Bantu Wind. Em
seguida agiu rapidamente, saindo do esconderijo e correndo no
convés.
A bordo do submarino, Belloq entrou na sala de comunicações.
Colocou os auscultadores, pegou no microfone e murmurou um
sinal de chamada. Passado algum tempo ouviu uma voz
entrecortada por ruídos. O sotaque era alemão.
- Capitão Mohler, daqui fala Belloq.
A voz era muito fraca. Distante.
- Preparou-se tudo de acordo com o seu último comunicado, -
disse Belloq, - Ótimo. - Belloq tirou os auscultadores. Em
seguida saiu da sala de comunicações, dirigindo-se para a
cabina da frente, onde estava presa a mulher. Entrou no
compartimento. Ela estava sentada num beliche, com uma
expressão sombria. Não levantou os olhos quando se aproximou
dela. Estendeu a mão, tocou-lhe ao de leve por baixo do
queixo, levantou-lhe o rosto.
- Tem uns lindos olhos - disse ele. - Não os devia esconder.
Ela virou a cara para o lado.
Ele sorriu.
- Pensei que podíamos continuar o assunto que não
terminâmos.
Ela levantou-se do beliche, atravessou o quarto.
- Não temos nenhum assunto por concluir.
- Creio que temos. - Estendeu a mão e tentou segurar-lhe as
mãos; ela soltou o braço. - Resiste? Por que não resistiu
antes, minha cara? A que se deve a mudança de atitude?
- A situação é um pouco diferente - respondeu ela.
Observou-a em silêncio durante algum tempo. Depois disse:
- Sente alguma coisa por Jones? é isso?
Ela desviou o olhar, olhando para o quarto com uma expressão
vaga.
- Pobre Jones - disse Belloq. - Receio que esteja destinado
a perder sempre.
- O que é que isso significa?
Belloq encaminhou-se para a porta. Ao sair, virou-se para
trás.
- Nem sequer sabe, minha cara, se ele está vivo ou morto.
Pois não?
Em seguida fechou a porta e passou ao corredor estreito.
Passaram por ele vários marinheiros. Atrás deles seguia
Dietrich, cujo rosto estava irado, sombrio. Belloq sentiu
prazer ao ver aquela expressão; com a raiva, Dietrich parecia
ridículo, como um mestre-escola furioso sem poder castigar um
aluno rebelde.
- Talvez não fosse mau explicar-se, Belloq.
- Que há para explicar?
Dietrich parecia debater-se com o desejo de agredir o
francês.
- Deu ordens específicas ao capitão desta embarcação para se
dirigir a uma determinada base de abastecimento... numa ilha
situada ao largo da costa africana. Percebi que regressaríamos
ao Cairo e depois seguiríamos para Berlim com a Arca no
primeiro avião disponível. Por que tomou a liberdade de
alterar o plano, Belloq? Sentiu-se de repente um almirante da
marinha alemã? É isso? As suas ilusões de grandeza chegaram a
esse ponto?
- Ilusões de grandeza? - disse Belloq, ainda divertido com
Dietrich. - Não me parece, Dietrich. Na minha opinião
deveríamos abrir a Arca antes de a levarmos para Berlim.
Sentir-se-ia bem, meu amigo, se o vosso Fihrer descobrisse que
a Arca estava vazia? Não quer ter a certeza de que a arca
contêm relíquias sagradas antes de regressarmos à Alemanha?
Tento imaginar o terrível desapontamento no rosto de Adolf se
vir que não há nada na Arca.
Dietrich fitou o francês; a raiva desaparecera, fora
substituída por uma expressão de dúvida, incredulidade.
- Não confio em si, Belloq. Nunca confiei em si.
- Obrigado.
Dietrich fez uma pausa antes de continuar.
- Acho estranho que queira abrir a Arca numa ilha distante
em vez de seguir o caminho mais conveniente... nomeadamente o
Cairo. Por que não pode examinar a sua abençoada caixa no
Egipto, Belloq?
- Não seria conveniente - replicou Belloq.
- Pode explicar isso?
- Podia... mas receio que não compreendesse.
Dietrich ficou furioso; sentiu que a sua autoridade fora uma
vez mais destruída - mas o francês tinha o Fihrer como aliado.
Que podia fazer em face daquele facto?
Ele virou-se rapidamente e afastou-se. Belloq viu
retirar-se. O francês não se mexeu durante muito tempo. Sentiu
imediatamente uma profunda sensação de antecipação, pensando
na ilha. A Arca podia ter sido aberta praticamente em qualquer
lugar - nesse ponto Dietrich tinha razão. "Mas seria
apropriado", pensou Belloq, que se abrisse na ilha. Deveria
ser aberta num lugar cuja atmosfera estivesse carregada do
passado distante, um lugar com alguma importância histórica.
"Sim", pensou Belloq. O ambiente devia estar de harmonia com o
momento. Tinha de haver uma correspondência entre a Arca e o
ambiente. Nada mais serviria.
Dirigiu-se para a pequena cabina de abastecimento onde se
encontrava a grade.
Olhou para ela por instantes, com o espírito vazio. "Que
segredos? Que me pode revelar?"
Estendeu a mão e tocou na grade. Imaginou ter sentido uma
vibração na caixa? Imaginou ter ouvido um som fraco? Fechou os
olhos, com a mão ainda pousada na superfície de madeira. Um
momento de terrível pavor: viu um enorme vazio, uma escuridão
sublime, uma fronteira que transporia até um lugar para além
da linguagem e do tempo. Abriu os olhos; tinha uma sensação de
formigueiro nas pontas dos dedos.
"Em breve", disse para si mesmo.
"Em breve."
O mar estava frio, redemoinhando a sua volta em pequenos
vértices provocados pelos movimentos do submarino. Indy
pendurou-se a amurada, com os músculos a doer, o chicote
molhado contraindo-se na água e agarrando-se cada vez mais ao
corpo.
"Podias morrer afogado", pensou, e tentou recordar se morrer
afogado era uma boa maneira de morrer. Talvez fosse melhor que
ficar pendurado na amurada de um submarino que podia mergulhar
repentinamente a grande profundidade. A qualquer momento,
tambêm. Gostava de saber se os heróis tinham direito a pensão.
Içou-se, puxando o corpo para o convés. Depois lembrou-se de
uma coisa.
O chapéu. O chapéu desaparecera.
"Não sejas supersticioso agora. Não tens tempo para chorar o
desaparecimento de um chapéu com sorte."
O submarino começou a submergir. Perceptivelmente,
mergulhava como um gigantesco peixe metálico. Atravessou o
convés a correr já com água pela cintura. Alcançou a torre de
comando, em seguida começou a subir a escada. No cimo do
torreão olhou para baixo; o submarino continuava a submergir.
A água agitava-se violentamente, fazendo redemoinhos de espuma
em direcção a ele. O torreão estava a ser coberto pela água
que subia, e depois recolheram tambêm o mastro da rádio.
Dirigiu-se ao periscópio, abrindo caminho por entre a água.
Agarrou-se a ele enquanto a embarcação continuava a submergir.
Se ele submergisse totalmente então estaria perdido. O
periscópio começou a descer tambêm. Descia, descia enquanto
ele se agarrava. "Por favor", pensou, "por favor não desças
mais. Mas isto é o que acontece quando alguém tenta ir a
reboque num submarino alemão. Não se pode contar com o antigo
tratamento da passadeira vermelha, pois não?"
Gelado, a tiritar, manteve-se agarrado ao periscópio; e, a
certa altura, como se uma divindade misericordiosa do oceano
tivesse escutado as suas preces silenciosas, a embarcação
interrompeu o mergulho. A esquerda apenas ficaram noventa e um
centímetros do periscópio fora de água. Abençoados noventa e
um centímetros. Noventa e um centímetros eram tudo o que
precisava para sobreviver. "Não mergulhes mais", pensou. Então
apercebeu-se de que estava a falar em voz alta e não a pensar.
"Noutras circunstâncias poderia ser divertido - tentar manter
uma conversa racional com várias toneladas de metal alemão de
boa qualidade. Metal alemão. Estou louco. É isso. E tudo isto
não passa de uma alucinação. Uma loucura náutica".
Indy pegou no chicote e prendeu-se ao periscópio, esperando
que se adormecesse não acordaria para se ver no fundo escuro
do oceano, ou pior - transformado em alimento para os peixes.
O frio infiltrava-se no corpo. Tentou parar os dentes que
batiam. E o chicote, pesado da água, cortava-lhe a pele.
Esforçou-se por se manter desperto, preparado para qualquer
eventualidade - mas o cansaço já fazia sentir o seu peso e o
sono parecia a perspectiva mais prometedora.
Fechou os olhos. Tentou pensar nalguma coisa, em qualquer
coisa que o impedisse de adormecer - mas era difícil. Gostava
de saber para onde se dirigia o submarino. Cantou,
mentalmente, pequenas canções. Tentou lembrar-se de todos os
números de telefone que sabia. Pensou numa rapariga chamada
Rita com quem chegara quase a cantar: onde estaria naquela
hora? "Uma bela fuga", pensou.
Mas sentia-se exausto e os pensamentos andavam em círculo,
sem objectivo.
E adormeceu, apesar do frio, apesar do desconforto.
Deixou-se levar por um sono sem sonhos e profundo.
Quando acordoujá era dia e não sabia ao certo quanto tempo
dormira, se passara um dia. Já não sentia o corpo: um
entorpecimento total. E a pele estava enrugada da água, as
pontas dos dedos macias e encarquilhadas. Ajustou o chicote e
olhou em redor. Em frente havia uma porção de terra, uma ilha,
uma zona subtropical- "Alcúone", pensou. Olhou fixamente para
a folhagem rica. Verde, maravilhosa, carregada e calmante. O
submarino aproximou-se da ilha, entrando naquilo que parecia
ser uma gruta. Lá dentro, os alemães tinham construído uma
base de abastecimento completa, subterrânea, e um abrigo para
submarinos. E havia mais nazis uniformizados naquela doca do
que se poderia encontrar numa das extravagâncias de Hitler em
Nuremberga.
Como poderia passar despercebido?
Libertou-se rapidamente do chicote e deslizou para dentro de
água. Imergiu, apercebendo-se de que deixara o chicote preso
ao periscópio. O chicote e o chapéu: era sem dúvida um dia
para despedidas tristes a objectos de estimação.
Nadou em direcção a ilha, tentando permanecer debaixo de
água o mais que podia. Viu o submarino subir enquanto se
dirigia para a doca. Em seguida alcançou a praia, cambaleando,
satisfeito por voltar a sentir terra firme, apesar de ser a
terra de um paraíso nazi. Caminhou através da areia até um
ponto elevado onde tinha uma boa vista da doca. A grade foi
içada do interior do submarino, sob a supervisão de Belloq,
que parecia viver na expectativa e ansiedade que alguém
deixasse cair a sua preciosa relíquia. Girava em volta da
grade como um cirurgião em volta de um doente as portas da
morte.
E depois viu Marion, rodeada por um grupo de idiotas de
uniforme que a faziam avançar.
Sentou-se na areia, escondido no meio de juncos que cresciam
na beira das dunas.
"Inspiração", pensou ele. "É disso que preciso agora.", Numa
boa dose.
CAPÍTULO XII
UMA ILHA NO MEDITERRâNEO
Era quase noite quando Belloq se encontrou com Mohler. Não
estava muito satisfeito com a ideia de Dietrich participar na
conversa. O desgraçado iria certamente fazer perguntas, e a
sua impaciência já começara a enervar Belloq, como se fosse
contagiosa.
O capitão Mohler disse:
- Tudo foi preparado de acordo com as suas ordens, Belloq.
- Não descuraram nada?
- Nada.
- Então a Arca deve ser levada agora para aquele lugar.
Mohler olhou por instantes para Dietrich. Depois virou-se e
começou a fiscalizar um grupo de soldados enquanto colocavam a
grade num jipe.
Dietrich, que estivera calado, ficou irritado.
- Que quer ele dizer? De que preparativos está a falar?
- Isso não lhe diz respeito, Dietrich.
- Tudo o que se relaciona com esta maldita Arca me diz
respeito.
- Vou abrir a Arca - disse Belloq. - No entanto, há
certas... condições prévias relacionadas com a acção.
- Condições prévias? Tais como?
- Não creio que se deva preocupar, meu amigo. Não quero ser
um dos responsáveis pela sobrecarga do seu cérebro já cansado.
- Pode poupar-me ao sarcasmo, Belloq. Às vezes parece-me que
se esquece de quem manda aqui.
Belloq olhou fixamente para a grade durante algum tempo.
-Tem de compreender... não se trata apenas da abertura de
uma caixa, Dietrich. Existe um certo ritual. Não estamos
propriamente a lidar com uma caixa de granadas de mão, como
deve entender. Não é uma empresa vulgar.
- Que ritual?
- Verá a seu tempo, Dietrich. Todavia, não precisa de se
alarmar.
- Se acontecer alguma coisa a Arca, Belloq, alguma coisa, eu
mesmo puxarei a corda no cadafalso. Entende o que estou a
dizer?
Belloq acenou com a cabeça.
- A sua preocupação com a Arca é comovedora. Mas não precisa
de se preocupar. Ficará em segurança e será entregue em
Berlim, e o vosso Fihrer pode acrescentar outra relíquia a sua
bela colecção. Certo?
- Oxalá seja tão bom nos actos como nas palavras.
- Serei. Serei.
Belloq olhou para a grade que continha a Arca antes de olhar
para a selva do outro lado da zona das docas. Era lá que a
Arca seria aberta.
- A rapariga - disse Dietrich. - Tambêm detesto situações
dúbias. Que fazemos com a rapariga?
- Creio que posso deixar isso por sua conta - disse Belloq.
- Para mim não tem qualquer importância.
"Nada tem", pensou ele, "agora nada tem importância a não
ser a Arca. Por que se dera ao trabalho de nutrir qualquer
tipo de sentimento pela rapariga? Por que se incomodara, ainda
que vagamente, em protegê-la? Os sentimentos humanos eram
inúteis em comparação com a Arca. Toda a experiência humana se
transformou em nada. Que importava se ficaria viva ou
morreria?", Sentiu a mesma sensação agradável de antecipação
que sentira antes: era difícil, muito difícil, desviar os
olhos da grade. Estava na parte de trás de um jipe,
magnetizando-o. "Conhecerei os teus segredos", pensou ele.
"Conhecerei todos os teus segredos."
Indy contornou as árvores que ladeavam a zona das docas.
Viu Marion, acompanhada por escoltas nazis, entrar num jipe.
Em seguida ojipe arrancou e penetrou na selva. Belloq e o
alemão subiram para outro jipe e, seguindo de perto o veículo
que transportava a Arca, seguiram na mesma direcção de Marion.
"Para onde vão?", interrogou-se Índy. Começou a caminhar
silenciosamente por entre as árvores.
O alemão apareceu-lhe a frente, uma materialização que se
ergueu ameaçadoramente. Deitou a mão ao coldre, mas antes que
pudesse tirar a pistola Indy apanhou um ramo de uma árvore, um
pau de madeira apodrecida, e atingiu-o em cheio na garganta. O
alemão, um jovem, deitou as mãos a laringe como se estivesse
surpreendido, e começou a deitar sangue pela boca. Os olhos
reviraram, depois caiu dejoelhos. Indy bateu-lhe pela segunda
vez na cabeça e ele tombou. "Que fazes com um nazi
inconsciente?", interrogou-se.
Fitou o homem durante algum tempo antes de ter uma ideia.
"Por que não?" Mas por que não?"
O jipe que transportava Belloq e Dietrich atravessou
lentamente um desfiladeiro.
Dietrich disse:
- Estou descontente com este ritual.
"Ficarás ainda mais descontente muito em breve", pensou
Belloq. "O aparato daquilo a que chamas ritual com tanta
superficialidade dará um nó no teu cérebro de madeira, meu
amigo."
- É essencial?
- É - respondeu Belloq.
Dietrich limitou-se a olhar para a grade nojipe que seguia a
frente.
- Talvez o console pensar que amanhã a Arca estará nas mãos
do vosso Fihrer.
Dietrich suspirou.
O francês era louco, estava convencido disso. Algures ao
longo do caminho a Arca deformara o discernimento que poderia
ter tido. Via-se-lhe nos olhos, ouvia-se no modo como omitia
algumas sílabas quando falava nos últimos dias, e sentia-se
nos gestos estranhamente nervosos que fazia constantemente.
Dietrich só ficaria satisfeito quando regressasse a Berlim
com a missão cumprida.
O jipe entrou numa clareira, uma clareira repleta de tendas
e abrigos camuflados, barracas, veículos, antenas de rádio;
uma grande azáfama, soldados que corriam de um lado para o
outro. Dietrich examinou com orgulho o entreposto, mas Belloq
estava alheado de tudo. O francês olhava para uma elevação de
pedra no outro lado - um pináculo com cerca de noventa e um
metros e uma laje no cimo. Nos lados do talude alguma tribo
antiga, alguma espécie extinta, esculpira degraus toscos.
Parecia um altar - e fora aquele facto que trouxera Belloq
ali. Um altar, uma disposição natural da rocha que podia ter
sido destinada por Deus para a abertura daquela Arca.
Não conseguiu falar durante algum tempo. Olhou fixamente
para o rochedo até se aproximar o capitão Mohler e lhe tocar
no ombro.
- Deseja preparar-se agora? - perguntou o alemão.
Belloq acenou com a cabeça. Seguiu o alemão até uma tenda.
Pensava na tribo extinta que cortara aqueles degraus, que
deixara ali as suas relíquias espalhadas, na forma de estátuas
partidas que sugeriam divindades esquecidas, por toda a ilha.
As conotações religiosas do lugar eram precisas: a Arca
encontrara um lugar que estava de harmonia com o seu próprio
esplendor.
Não havia dúvida: nenhum lugar seria melhor.
- A tenda de seda branca - disse Belloq. Tocou no tecido
macio.
- Como pediu - disse Mohler.
- Ótimo, Ótimo. - E Belloq entrou. Estava uma caixa no
meio do chão. Levantou a tampa e espreitou. A túnica
cerimonial tinha um bordado primoroso. Maravilhado,
inclinou-se para lhe tocar. Em seguida olhou para o alemão.
- Seguiu a risca as minhas ordens. Estou satisfeito.
O alemão tinha qualquer coisa na mão: um bastão de marfim
com cerca de um metro e meio de comprimento. Passou-o a
Belloq, que tocou com os dedos nas incrustações da peça.
- Perfeito - disse Belloq. - A Arca tem de ser aberta,
segundo os ritos sagrados, com um bastão de marfim. E aquele
que abrir a Arca deve envergar esta túnica. Saiu-se muito bem.
O alemão sorriu.
- Não se esquecerá do nosso pacto.
- Prometo - retorquiu Belloq. - Quando regressar a Berlim
falarei pessoalmente com o Fihrer a seu respeito nos termos
mais elogiosos.
- Obrigado.
- Eu é que lhe agradeço - disse Belloq.
O alemão examinou a túnica por instantes.
- Sugere um certo sionismo, não sugere?
- Deveria sugerir, meu amigo. É judia.
- Vai ficar muito popular por aqui com essa vestimenta.
- Não estou interessado num concurso de popularidade,
Mohler.
Mohler ficou a ver enquanto Belloq vestia a túnica pela
cabeça, viu quando o brocado ornamentado cobriu o corpo dele.
Era uma transformação total: o homem começara a ficar até com
um ar santo. "Bem", pensou Mohler, "serve a todos os tipos.
Além disso, mesmo que Belloq estivesse louco, Belloq ainda
tinha acesso a Hitler, e isso é que importava."
- Está escuro lá fora? - perguntou Belloq. Sentia-se
estranho, distante de si mesmo, como se a identidade tivesse
começado a desintegrar-se e ele se tivesse tornado um estranho
num corpo que era apenas vagamente familiar.
- Dentro em breve - retorquiu o alemão.
- Temos de começar ao pôr do Sol. É importante.
- Levaram a Arca para a laje, como queria, Belloq.
- Ótimo. - Tocou na túnica, nos bordados em relevo do
tecido. Belloq: até o nome lhe parecia estranho. Era como se
algo espiritual, imaterial tivesse começado a consumi-lo.
Flutuava fora de si mesmo - uma percepção que tinha não só a
intensidade mas tambêm a imprecisão da reacção a um narcótico.
Pegou no bastão de marfim e saiu da tenda.
Praticamente em todo o lado, os soldados alemães
interromperam as actividades e viraram-se para olhar para ele.
Sentiu vagamente as vibrações de repulsa, a animosidade
provocada pela túnica. Mas, uma vez mais, essa impressão
atingiu-o de longe. Dietrich caminhava ao lado dele, calado. E
Belloq teve de se concentrar para compreender.
- Um ritual judeu? Está doido, homem?
Belloq não disse nada. Encaminhou-se para a base dos degraus
antigos; o sol era uma explosão de cor enquanto declinava, ao
longe, tocando em tudo com uma paleta estonteante de laranjas,
vermelhos e amarelos.
Dirigiu-se para o primeiro degrau, lançando um olhar aos
soldados alemães que o rodeavam. Tinham sido instalados
holofotes, que iluminavam as escadas, a Arca. Belloq teve a
certeza, assim que olhou para ela, de que ouvira um murmúrio.
E tinha quase a certeza, assim que olhou para ela, de que
ouvira um murmúrio. E tinha quase a certeza de que ela
começara a emitir uma espécie de luz. Mas então algo
aconteceu, algo o distraiu, o trouxe de novo a terra; um
movimento, uma sombra, não sabia o que era ao certo. Virou-se
e viu um dos soldados comportar-se de um modo estranho,
movendo-se com as costas arqueadas. Trazia o capacete torto,
como se procurasse esconder o rosto. Mas não foi apenas aquilo
que distraiu Belloq, foi uma estranha sensação de
familiaridade.
"O quê? Como?" Olhou fixamente - apercebendo-se de que o
soldado segurava a custo um lança-granadas, que não vira ao
princípio com a luz fraca. Mas aquela sensação estranha,
aquela inquietação - que significava? Teve um pensamento
sombrio. Uma escuridão que foi iluminada apenas quando o
soldado tirou o capacete e apontou o lança-granadas para a
Arca- a Arca, que fora retirada da grade e parecia vulnerável
sobre a laje.
- Alto - gritou Indy. - Se alguém se mexer faço voltar
aquela caixa para ao pé de Moisés.
- Jones, a sua persistência surpreende-me. Vai dar má
reputação aos mercenários - disse Belloq.
Dietrich interrompeu.
- Dr. Jones, certamente não pensa que pode fugir desta ilha.
- Isso depende, se estivermos dispostos a ser razoáveis. Só
quero a rapariga. Ficaremos na posse da Arca até termos um
transporte seguro para Inglaterra. Depois é toda vossa.
- Se recusarmos? - Dietrich quis saber.
- Então a Arca e alguns de nós iremos pelos ares. E não me
parece que Hitler gostasse disso.
Indy começou a caminhar na direcção de Marion, que tentava
libertar-se.
- Fica bem com um uniforme alemão, Jones - disse Belloq.
- você tambêm fica muito bem com essa túnica.
Mas nesse momento alguém se mexeu, aproximando-se de Indy
pela retaguarda. E, mesmo quando a rapariga começou a gritar
para o avisar, Belloq reconheceu Mohler. O capitão atirou-se a
Indy, arrancando-lhe a arma da mão e derrubando-o. Jones - "um
homem corajoso", pensou Belloq, "uma coragem sem limites", -
atacou o soldado com o punho, em seguida cravou o joelho na
virilha de Mohler. O capitão gemeu e rolou, mas Indy já estava
cercado por soldados, e embora os combatesse, embora caísse,
dando pontapés no meio de capacetes e botas de montar, estava
em desvantagem. Belloq abanou a cabeça e forçou um sorriso.
Olhou para Indy, que estava a ser preso por soldados.
- Uma excelente tentativa, Jones. Um bom esforço.
E nesse momento Dietrich passava pelo meio dos soldados.
- Uma loucura, uma verdadeira loucura - disse ele. - Não
posso acreditar na sua imprudência.
- Estou a tentar acabar com ela - replicou Indy. Lutou com
os soldados que o seguravam: em vão.
- Tenho a cura para isso - disse Dietrich. Tirou a pistola
do coldre, a sorrir.
Indy olhou para a arma, depois lançou um olhar a Marion, que
tinha os olhos fechados e soluçava.
Dietrich levantou a pistola, fez pontaria.
- Espere!
Avoz de Belloq soou ameaçadora, terrível, e o rosto tinha
uma expressão perversa a luz intensa dos holofotes. A arma na
mão de Dietrich foi baixada.
Belloq disse:
- Hà anos que este homem me irrita, coronel Dietrich. às
vezes, admito, divertiu-me. E, embora gostasse de assistir a
sua morte, gostaria que ele sofresse uma última derrota.
Deixe-o viver até abrir a Arca. Deixe-o viver até esse
momento. Sejam quais forem os tesouros que a Arca encerre,
ser-lhe-ão negados.
O conteúdo não será visto por ele. A ideia agrada-me. é um
prêmio com que sonhou durante anos... e agora não se
aproximará mais dele. Depois de eu abrir a Arca, pode
livrar-se dele. Por agora, sugiro que o prenda ao lado da
rapariga. - E Belloq soltou uma gargalhada, uma gargalhada
surda que ecoou na escuridão.
Indy foi arrastado até a estátua e amarrado, ombro a ombro
com Marion.
- Tenho medo, Indy - disse ela.
- Nunca houve um momento melhor para se sentir medo.
A Arca começou a fazer um ruído surdo e Indy virou-se para
ver Belloq a subir os degraus que iam dar ao altar.
Exasperava-o pensar nas mãos de Belloq sobre a Arca, em Belloq
a abri-la. O prêmio. E ele não o veria. Passava-se uma vida
inteira com a ambição de atingir um objectivo, e depois,
quando se encontrava, quando estava frente a frente - só
restava o sabor amargo da derrota. Como podia ver o francês
louco, vestido como um rabi da Idade Média, subir os degraus
até a Arca?
Como podia evitar não olhar?
- Creio que vamos morrer, Indy - disse Marion. - A menos que
encontres uma saída.
Indy, quase sem a ouvir, não disse nada: passava-se qualquer
coisa, qualquer coisa que começava a vir-lhe ao pensamento - o
murmúrio, baixo e constante, que parecia sair da Arca. Como
era possível? Fitou Belloq enquanto o vulto de túnica subia
para a laje.
- Então como saímos desta? - perguntou Marion outra vez.
- Só Deus sabe.
- É algum jogo de palavras? - disse ela.
- Talvez.
- É o momento errado para piadas de mau gosto, Jones. -
Virou-se para ele; havia círculos de fadiga por baixo dos
olhos dela. - Mesmo assim amo-te por isso.
- Amas?
- Se te amo? Claro.
- Penso que é recíproco - disse Indy, um pouco surpreendido
com ele próprio.
- Tambêm está um pouco ensombrado - disse Marion.
- Veremos.
Belloq, recordando as palavras de um antigo cântico
hebraico, palavras que recordara do pergaminho que tinha a
gravura do florão, começou a cantar num tom baixo, monótono.
Cantou enquanto subia os degraus, ouvindo o som da Arca a
acompanhar a sua voz, um murmúrio. Aumentava de intensidade,
ressoante, enchendo a escuridão. O poder da Arca, o forte
poder da Arca. Movia-se no sangue de Belloq, estonteante,
exigindo que o compreendessem. O poder. O conhecimento. Parou
quase no último degrau, ainda a cantar mas incapaz de ouvir a
sua própria voz. O murmúrio, o murmúrio-aumentava, cortando a
noite, enchendo todos os silêncios. Depois subiu mais, atingiu
o cimo, olhou fixamente para a Arca. Apesar do pó de séculos,
apesar do abandono, era a coisa mais bela que Belloq já vira.
E brilhava, brilhava, fraca a princípio mas depois com mais
intensidade, enquanto olhava para ela. Estava maravilhado,
contemplando os anjos, o ouro cintilante, o brilho interior. O
ruído, tambêm, soava dentro dele, abalava-o e surpreendia-o.
Sentiu-se a começar a vibrar, como se o tremor o pudesse
desintegrar e lançar no espaço. Mas não havia espaço, não
havia tempo: o seu ser era definido pela Arca, delineado por
aquela relíquia da comunicação do homem com Deus.
"Fala comigo".
"Conta-me o que sabies, diz-me quais são os segredos da
existência".
A sua própria voz parecia sairjá de todas as partes do
corpo, pela boca, pelos poros, pelas células sanguíneas. E ele
levantava-se, flutuando, distinto do mundo rígido da lógica
que o rodeava, desafiando as leis do universo. "Fala comigo.
Diz-me". Ergueu o bastão de marfim, colocando-o debaixo da
tampa, em seguida tentou levantar a todo o custo a tampa. O
murmúrio era já mais forte, consumindo tudo. Não ouviu
explodir os holofotes em baixo, as saraivadas de vidro partido
que caíam como diamantes sem valor na escuridão. O murmúrio -
"a voz de Deus", pensou ele. "Fala comigo. Fala comigo". E
então, quando manejava o bastão, sentiu-se subitamente vazio,
como se não tivesse existido até aquele momento, como se todas
as recordações tivessem sido apagadas, vazio e estranhamente
calmo, experimentando uma sensação de harmonia com a noite que
o cercava, ligado ao universo por toda a espécie de elos.
Ligado ao cosmo, a toda a matéria que flutuava, se expandia e
se contraía nos estuários mais longínquos do espaço, Às
estrelas que explodiam, aos planetas que giravam, e até a
escuridão incognoscível do infinito. Deixou de existir. Quem
quer que Belloq tivesse sido, deixara de ser. Já não era nada:
existia apenas como o som que saía da Arca. O som de Deus.
- Ele vai abri-la - disse Indy.
- O barulho - disse Marion. - Quem me dera poder tapar os
ouvidos. Que ruído é aquele?
- A Arca.
- A Arca?
Indy pensava numa coisa, numa recordação eclipsada, numa
coisa que andava solta no seu espírito. O quê? Que era? Algo
que ouvira recentemente. O quê? A Arca. Algo relacionado com a
Arca. O quê, o quê, o quê?
"A Arca, a Arca... tenta lembrar-te!"
Sobre a laje, no cimo dos degraus toscos, Belloq tentava
levantar a tampa. Explodiam lámpadas projectando violentamente
vidro estilhaçado. Mesmo a lua, já visível no céu da noite,
parecia uma esfera prestes a entrar em erupção e a
desintegrar-se. A noite, a noite inteira, era como uma enorme
bomba presa a ponta de um rastilho curto - "um rastilho
aceso", pensou Indy. "O que é? O que tento recordar?"
A tampa cedia.
Belloq, suando, transpirando com a túnica pesada, serviu-se
do bastão de marfim enquanto entoava o cântico que era já
abafado pelo ruído da Arca. O momento. O momento da verdade. A
revelação. As misteriosas redes do divino. Gemeu e levantou a
tampa. Esta abriu-se imediatamente e a luz que saiu do
interior cegou-o. Mas ele não recuou, não se afastou, não se
mexeu. A luz hipnotizou-o com a mesma intensidade com que o
som o mesmerizou. Não se podia mover. Os músculos ficaram
presos. O corpo deixou de funcionar. A tampa.
Foi a última coisa que viu.
Porque os foguetões, que saíam da Arca com sons estridentes,
as colunas de chamas, que iluminaram a escuridão, as labaredas
de fogo que rasgaram os céus, encheram então a noite. Um
círculo branco de luz fez um anel cintilante a volta da ilha,
uma luz que fez brilhar o oceano e provocou correntes de água,
obrigando uma vaga a erguer-se na escuridão. A luz, era luz do
primeiro dia do universo, a luz do início, das coisas
recêm-nascidas, era a luz que Deus criou: a luz da criação. E
penetrou em Belloq com o brilho ofuscante de um diamante
inconcebível, uma luz para além das limitações dolorosas de
qualquer pedra preciosa. Cravou-se no coração, despedaçou-se.
E era mais que uma luz - era uma arma, uma força, que
trespassou Belloq e o iluminou com a intensidade de um bilião
de velas: estava branco, cor de laranja, azul, atacado pela
electricidade que jorrava da Arca.
E ele sorriu.
Sorriu porque, por um instante, ele foi o poder. O poder
absorveu-o. Não havia diferença entre o homem e a força.
Depois, esse momento dissipou-se. Então os seus olhos
desintegraram-se nas órbitas, deixando buracos pretos, sem
vista, e a pele começou a desprender-se do osso, enrolando-se
como se tivesse sido atacada subitamente por lepra,
apodrecida, queimada, cauterizada, escurecida. E mesmo assim
continuava a sorrir. Sorriu mesmo quando começou a mudar de
uma coisa humana para outra tocada por Deus, tocada pela raiva
de Deus, uma coisa que se transformou, silenciosamente, numa
camada de pó.
Quando as luzes começaram a iluminar a escuridão, quando o
céu se enchia com a força da Arca, Indy fechara
involuntariamente os olhos - cego pela energia. E então,
instantaneamente, lembrou-se daquilo que lhe escapara, da
noite que passara na casa de Imam: "Aqueles que abrirem a Arca
e libertarem a sua força morrerão se o Lharem para ela..." E
abafado pelo barulho, envolto pelas colunas brancas,
ofuscantes que tinham extinguido as estrelas, gritou a Marion:
- Não olhes! Não abras os olhos!
Ela virara a cara para não ver o primeiro clarão, a erupção
de fogo, e depois, apesar de aquilo que ele dissera a ter
confundido, fechou os olhos com esforço. E, no entanto, queria
olhar. Ainda se sentia atraída pelo gigantesco fogo celestial,
pela louca destruição da noite.
- Não olhes - repetia ele enquanto ela se sentia desfalecer.
Repetia constantemente. Gritava.
A noite, como um dínamo, murmurava, gemia, bramia; as luzes
que cauterizavam a noite pareciam uivar.
- Não olhes, não olhes, não olhes!
A torre erguida de chamas devastou tudo. Pairou no céu como
a sombra de uma divindade, uma sombra a arder e a mover-se,
composta não de escuridão mas de luz, luz imaculada. Pairou
lá, bela e monstruosa, e cegava aqueles que a olhavam.
Arrancou os olhos dos rostos dos soldados. Transformou os
homens em esqueletos de uniforme, cobrindo o chão de ossos, as
marcas pretas de queimaduras, cobrindo tudo de restos humanos.
Queimou a ilha, abateu árvores, virou barcos, esmagou a
própria doca. Mudou tudo. Fogo e luz. Destruiu como se fosse
uma ira que talvez nunca fosse aplacada.
Partiu a estátua a qual tinham amarrado Indy e Marion: a
estátua esboroou-se até deixar de existir. E depois a tampa da
Arca baichou-se com um estrondo sobre a laje e a noite voltou
a ficar escura e o oceano silencioso. Indy esperou muito tempo
até abrir os olhos.
A Arca cintilava lá no alto.
Brilhava com uma intensidade que sugeria um silêncio de
satisfação; e de aviso, um aviso cheio de ameaça.
Indy fitou Marion.
Ela olhava a sua volta, atónita, olhando para aquilo que a
Arca provocara. Destruição, escombros, morte. Abriu a boca,
mas não falou.
Não havia nada para dizer.
Nada.
A terra a volta deles não fora queimada. Estava intacta.
Levantou o rosto na direcção da Arca.
Procurou muito lentamente a mão de Indy e agarrou-a com
força.
CAPÍTULO XIII
EPílOGO
WASHINGTON, D. C.
O sol entrava pelas janelas do gabinete do coronel Musgrove.
Lá fora, do outro lado de um relvado basto, havia um renque de
cerejeiras, e o céu da manhã estava claro, com um azul-pálido.
Musgrove estava sentado à secretária. Eaton estava numa
cadeira ao lado da secretária. Estava lá um outro homem, um
homem encostado a parede e que não dissera uma palavra; tinha
a animosidade sinistra de um burocrata. "Bem podia ter um
carimbo de borracha", pensou Indy. Funcionário Público
Poderoso em letras grossas e pretas na testa."
- Agradecemos o seu serviço - disse Musgrove. - E o
reembolso... pensamos que seja satisfatório?
Indy acenou com a cabeça e olhou primeiro para Marion,
depois para Marcus Brody.
Brody disse:
- Ainda não percebo por que é que o museu não pode ficar com
a Arca.
- Está num lugar muito seguro - respondeu Eaton
evasivamente.
- É uma força poderosa - disse-lhe Indy. - Tem de ser
compreendida. Analisada. Como sabe, não é nenhuma brincadeira.
Musgrove acenou com a cabeça.
- Temos os nossos peritos a examiná-la neste preciso
momento.
- Diga os nomes deles - disse Indy.
- Não posso por razões de segurança.
- A Arca estava destinada ao museu. Concordou com isso.
Agora vêm com essa conversa de peritos. Ali o Brody... ? um
dos melhores neste campo. Por que não lhe dão a oportunidade
de trabalhar com os seus peritos?
- Indy - disse Brody. - Não toques mais nesse assunto.
Esquece.
- Nem pensar - replicou Indy. - Para começar, este caso
custou-me o meu chapéu favorito.
- Garanto-lhe, Jones, que a Arca está bem protegida. E o seu
poder... se podemos aceitar a sua classificação... será
analisado no devido tempo.
- Devido tempo - repetiu Indy. - Faz-me lembrar as cartas
que recebo dos meus advogados.
- Olhe - disse Brody, parecendo tenso -, só queremos a Arca
para o museu. Tambêm queremos algumas garantias de que não
será danificada enquanto estiver em vosso poder...
- Já as têm - replicou Eaton. - Quanto a ida da Arca para o
museu, receio que tenhamos de rever a nossa posição.
Um silêncio. Um relógio fez tiquetaque. O burocrata sem
rosto brincou com os botões de punho.
Indy disse calmamente, finalmente:
- Não sabem o que estão a investigar, pois não?
Ele levantou-se e ajudou Marion a sair da cadeira.
- Entraremos em contacto, claro - disse Eaton. - Foi uma
gentileza da sua parte ter vindo. Os seus serviços são
apreciados.
Já ao sol quente, Marion pegou no braço de Indy. Brody
caminhava ao lado deles arrastando os pés. Marion disse:
- Bem, não nos vão dizer nada, por isso talvez fosse melhor
esqueceres a Arca e tocares a vida para a frente, Indy.
Indy lançou um olhar a Brody. Sabia que fora espoliado de
uma coisa que deveria ser dele.
Brody disse:
- Creio que devem ter bons motivos para não se desfazerem da
Arca. Porêm é um profundo desapontamento.
Marion parou, levantou a perna e coçou o calcanhar por
instantes. Disse a Indy:
- Pensa noutra coisa para variar.
- Em quê?
- Nisto - replicou ela, e beijou-o.
- Não ? a Arca - disse ele e sorriu. - Mas terá de servir.
A grade de madeira tinha uma inscrição de lado:
UlTRA-sECRETO, SERVIçOS SECRETOS DO EXéRCITO, 9906753, NãO
ABRIR. Estava colocada num carrinho, que o guarda do armazém
empurrava. Mal prestou atenção a grade. O seu mundo estava
cheio de grades como aquela, todas com marcas sem significado.
Números, números, códigos secretos. Tornara-se imune aqueles
hieróglifos. Ansiava apenas pela verificação semanal. Estava
velho, corcovado, e poucas coisas na vida o absorviam. Não era
certamente nenhuma daquelas grades. Havia centenas que enchiam
o armazém e não sentia curiosidade por nenhuma. Parecia que
ninguém sentia. Tanto quanto sabia ninguêm se dera ao trabalho
de abrir qualquer uma delas. Eram empilhadas até irem do
chão ao tecto. Grades e grades, centenas e centenas de grades.
Juntando poeira, ficando cobertas de teias de aranha. O homem
empurrou o carro e suspirou. Agora que diferença fazia mais
uma grade? Descobriu um espaço para esta, colocou-a no lugar,
depois parou e meteu um dedo no ouvido, agitando violentamente
o dedo. "Diabo", pensou ele. "Tenho de ir ao médico por causa
dos ouvidos."
Estava convencido de que ouvira um som baixo, um murmúrio.
FIM
18 de Outubro de 1997
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