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quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A Ilha do Tesouro

A ILHA DO TESOURO

ROBERT LOUIS STEVENSON

Robert Louis Stevenson escritor britânico de finais do século
XIX, deixou-nos como legado algumas narrativas que se tornaram
clássicas entre as quais se salienta A Ilha Do Tesouro, uma
deliciosa história de piratas cheia de emoções e perigo. Nela
são contadas as peripécias vividas por Jim Hawkins, um jovem
que se vê envolvido na busca do tesouro enterrado do maldoso
capitão Flint. O enredo cativante, delineado com mestria, e a
caracterização inigualável das personagens contribuem para que
este romance de aventuras continue a ser um dos mais
apreciados da literatura universal.

índice


Primeira parte - O velho pirata

CAPÍTULo I - O velho Lobo-do-Mar
na Almirante Benbow .............. 6/0
CAPÍTUlO II - O Cão Negro aparece e some-se .... 12/0
CAPÍTULO III - A pinta preta ................... 17/0
CAPÍTULO IV - A arca de porão .................. 22/0
CAPÍTULO V - A morte do cego ................... 27/1
CAPÍTULO VI - Os papéis do capitão ............. 32/1


Segunda Parte - O cozinheiro de bordo

CAPÍTULO VII - Vou para Bristol ................ 37/1
CAPÍTULO VIII - Na casa do Óculo ............... 44/1
CAPÍTULO IX - Pólvora e armas .................. 49/2
CAPÍTULO X - A viagem .......................... 54/2
CAPÍTULO XI - O que ouvi no barril de maçãs .... 59/2
CAPÍTULO XII - Conselho de guerra .............. 64/2


Terceira Parte - A minha aventura em terra

CAPÍTULO XIII - Como comecei a minha aventura
. na ilha ......................... 71/3
CAPÍTULO XIv - O primeiro recontro ............. 76/3
CAPÍTULO XV - O homem da ilha .................. 81/3


Quarta Parte - A paliçada

CAPÍTULO XVI - Narrativa retomada pelo médico
- Como o navio foi abandonado ... 89/3
CAPÍTULO XVII - Prosseguimento da narrativa do
médico - A última viagem da canoa 93/3
CAPÍTULO XVIII - Continua a narrativa do médico
- Fim das lutas do primeiro dia . 97/4
CAPÍTULO XIX - Narração retomada por Jim Hawkins
- A guarnição do fortim ........ 101/4
CAPÍTULO XX - A embaixada de Silver ........... 106/4
CAPÍTULO XXI - O ataque ....................... 111/4


Quinta Parte - A minha aventura no mar

CAPÍTULO XXII - Como comecei a minha aventura
no mar ......................... 117/4
CAPÍTULO XXIII - A maré desce ................. 124/5
CAPÍTULO XXIV - O cruzeiro do coracle ......... 128/5
CAPÍTULO XXV - Ataco a bandeira negra ......... 133/5
CAPÍTULO XXVI - Israel Hands .................. 137/5
CAPÍTULO XXVII - Peças de oito ................ 144/6


Sexta Parte - O capitão Silver

CAPÍTULO XXVIII - No acampamento inimigo ...... 149/6
Capítulo XXX- Liberdade sob palavra ........... 162/6
CAPÍTULO XXXI - A CAÇA AO TESOURO
- O indicador de Flint ......... 168/7
CAPÍTULO XXXII - A caça ao tesouro
- A voz no meio das árvores .... 174/7
CAPÍTULO XXXIII - A queda de um cacique ....... 179/7
CAPÍTULO XXXIV - Por último ................... 184/7


Primeira parte


O velho pirata


CAPÍTULo I

O velho Lobo-do-Mar na Almirante Benbow


Como me foi pedido pelo Morgado Trelawnev, pelo doutor
Livesey e pelos restantes cavalheiros para passar a escrito
todos os detalhes relativos à ilha do Tesouro, do princípio
até ao fim, sem nada omitir a não ser a situação da ilha, mas
isso apenas porque parte do tesouro ainda está por
desenterrar, pego na pena no ano da graça de 17..., e volto ao
tempo em que o meu pai tinha a hospedaria "Almirante Benbow":
e ao dia em que sob o nosso tecto se alojou o velho marinheiro
de face queimada e marcada por um golpe de sabre.
Dele me lembro como se fosse ontem, a arrastar os passos até
à porta da hospedaria, e da arca de porão que atrás dele
seguia num carrinho de mão; alto, forte e pesado, era um homem
acastanhado; o rabicho oleoso caía-lhe nos ombros do casaco
azul mais que sujo; as mãos calejadas e cobertas de
cicatrizes, as unhas pretas e rachadas; e a marca do golpe de
sabre através do rosto era de um branco sujo e lívido.
Lembro-me de o ver observar a enseada enquanto assobiava para
si próprio e, a seguir, sair-se com aquela veLha cantiga do
mar que tantas vezes cantou depois:


"Quinze homens na arca do morto,
Aiou-ou-ou e uma garrafa de rum!"


numa voz aguda, velha e esganiçada, que parecia ter sido
afinada e gasta nas barras dos cabrestantes. De seguida bateu
à porta com uma amostra de bengala que lhe servia de bordão e,
quando o meu pai apareceu, encomendou de má catadura um copo
de rum. Quando este lhe foi servido, bebeu devagar, como
entendedor, demorando-se a apreciar-Lhe o sabor e continuando
ainda a olhar em volta, para os rochedos e para a nossa
tabuleta.
- Tem bom ar a enseada - declarou por fim - e a taberna está
bem situada. Muita gente por cá, camarada?
O meu pai disse que não, que havia muito pouca, o que era
uma lástima.
- Bem - retorquiu -, então é o ancoradouro que me convém.


8


Olha cá, ó moço - gritou para o homem que trazia o carrinho de
mão -, atraca aí e traz a arca para cima. Vou cá ficar por uns
tempos - continuou. - Sou um homem simples; basta-me rum e
toucinho com ovos, e aquele alto além para ir ver os navios
passar. E como me hão-de tratar? Pois tratem-me por capitão.
Ah, já percebi o que pretende... tome lá - e atirou três ou
quatro moedas de ouro para a soleira da porta.
- Avise-me quando tiver gasto isso - terminou, tão soberbo
como um almirante.
E na verdade, por más que fossem tanto as roupas como a
linguagem, não tinha nada o aspecto dum homem que trabalhasse
no convés, mas mais lembrava um imediato ou um comandante,
habituado a ser obedecido ou a castigar. O homem que trazia o
carrinho de mão contou-nos que a mala-posta o deixara, na
véspera de manhã, no Royal George; que tinha querido saber que
estalagens havia ao longo da costa e, ao dizerem-Lhe bem da
nossa, creio, e também que era isolada, a tinha escolhido
entre as mais para sua residência. E foi tudo o que ficámos a
saber sobre o nosso hóspede.
De costume, era um sujeito muito calado. Durante todo o dia
se perdia pela enseada, ou nas arribas, com um telescópio de
latão; e todos os serões se sentava num canto da sala junto ao
fogão, a beber rum com água sem parar.
Quase nunca falava quando alguém se lhe dirigia; limitava-se
a levantar a cabeça num gesto brusco e cheio de soberba,
roncava pelo nariz como uma sirena de nevoeiro e tanto nós
como os clientes nos habituámos em pouco tempo a deixá-lo em
paz. Todos os dias, ao voltar do passeio, perguntava se
quaisquer marítimos tinham passado na estrada. A princípio
pensávamos que fazia essa pergunta por sentir a falta dos seus
iguais; mas por fim começámos a ver que desejava evitá-los.
Sempre que algum marinheiro ficava na Almirante Benbow (o que
por vezes sucedia com os que se dirigiam a Bristol pela
estrada da costa) espiava-o pela cortina antes de entrar na
sala; e sempre que lá estivesse qualquer desses homens era
certo e sabido que ele se conservava calado como um rato. Para
mim, pelo menos, não havia naquilo nenhum segredo; porque, de
certa maneira, partilhei dos sobressaltos dele.
Uma vez, chamara-me de parte para me prometer quatro
dinheiros de prata no primeiro dia de todos os meses se eu
"estivesse sempre de vigia para avistar um marinheiro duma
perna só",, e o avisasse logo que este aparecesse. Muitas
vezes, quando no primeiro dia do mês ia ter com ele para
receber o meu soldo, limitava-se a roncar com o nariz e a
fulminar-me com os olhos, mas antes que a semana chegasse ao
fim certamente reconsiderava e lá vinha trazer-me a moeda de
quatro dinheiros, repetindo as ordens de estar atento ao
"marinheiro duma perna só".


9


Nem preciso de contar como tal personagem me assombrava em
sonhos. Em noites de tormenta, quando o vento abalava os
quatro cantos da casa e as vagas rugiam na enseada e contra as
arribas, via-o com mil formas e mil expressões diabólicas.
Umas vezes tinha a perna cortada pelo joelho, outras pelo
quadril; depois era uma espécie de criatura monstruosa nascida
só com a perna única, ao meio do corpo. Vê-lo saltar e correr
e perseguir-me por cima de sebes e valas era o pior de todos
os pesadelos. Em suma, era um preço bem caro para a minha
moeda mensal de quatro dinheiros, que tinha de pagar na forma
de tais visões abomináveis.
Mas, embora andasse tão aterrorizado pela ideia do
marinheiro duma perna só, era eu quem do próprio capitão tinha
menos medo do que qualquer outra pessoa que o conhecesse.
Noites havia em que tomava um pedaço mais de rum com água do
que a cabeça lhe podia suportar; então, ficava por vezes
sentado a cantar aquelas velhas cantigas do mar maliciosas e
depravadas, sem se importar com ninguém; mas por vezes
encomendava rodadas de copos, obrigando todos os presentes
assustados a ouvir-lhe as histórias ou a acompanhá-lo em coro.
E tantas vezes senti a casa estremecer com o "Aiou-ou-ou e uma
garrafa de rum", os vizinhos todos a participar por amor à
vida, subjugados pelo medo da morte, com cada um a cantar mais
alto para evitar ser chamado à ordem. Pois quando Lhe davam
estes ataques, era o parceiro mais possessivo que já se viu;
com palmadas na mesa ordenava o silêncio completo; lançava-se
numa paixão de raiva se lhe faziam uma pergunta ou, outras
vezes, se não Lhe faziam nenhuma, concluindo que não estavam a
dar ouvidos à sua história. Nem deixava ninguém sair da
estalagem até ele próprio ter bebido a ponto de cair de sono e
ir de roldão para a cama.
As narrativas eram o que mais assustava as pessoas. Eram
histórias terríficas: de enforcamentos, do castigo da prancha
no mar, tempestades, as Tortugas Secas, feitos selvagens e
lugares no continente espanhol da América. Pelo que contava,
devia ter vivido toda a vida entre os piores malfeitores que
Deus jamais pusera sobre o mar; e a linguagem em que as
contava chocava os nossos simples aldeões quase tanto como os
crimes que descrevia. O meu pai estava sempre a dizer que a
hospedaria acabava em ruína, porque as pessoas dentro em breve
deixariam de lá entrar para serem tiranizadas e oprimidas, e
ficarem arrepiadas à hora de deitar; mas em verdade creio que
a presença dele nos fez bem.


10


Na altura as pessoas andavam atemorizadas, mas ao recordar
até gostavam daquilo; era um rico motivo de excitação para a
tranquila vida de província; e até corria entre os mais jovens
a pretensão de o admirar, chamando-Lhe um marujo dos antigos e
nomes semelhantes, com a afirmação de que se tratava do género
de homem que fizera temível o poderio inglês no mar.
De facto, por um lado, apostava em arruinar-nos, porque se
deixava ficar semana após semana, e por fim mês após mês, ao
ponto de muito depois de todo o dinheiro se ter esgotado ainda
o meu pai não ganhar ânimo para insistir em receber mais. Se
tocava no assunto por acaso, o capitão fungava tão forte que
mais parecia um rugido e, só com um olhar fixo, obrigava-o a
sair. Vi-o a retorcer as mãos depois duma destas recusas, e
estou certo de que a preocupação e o terror em que o meu pai
vivia muito lhe devem ter precipitado a morte precoce e
infeliz.
O capitão nunca mudou de vestuário durante todo o tempo que
esteve connosco, com a excepção de ter comprado uns pares de
meias a um vendedor ambulante. Desde o dia em que Lhe caiu uma
das abas do chapéu que a deixou ficar pendurada, embora fosse
um aborrecimento quando havia vento. Recordo o aspecto do
casaco, que ia remendando no quarto e que, para o fim, não era
senão remendos. Nunca escreveu nem recebeu qualquer carta e
nunca falava com ninguém a não ser com os vizinhos, e até com
estes, a maior parte das vezes, só quando estava cheio de rum.
Quanto à grande arca de porão, nenhum de nós a tinha visto
aberta.
Uma única vez lhe fizeram frente, e foi já perto do fim do
meu pobre pai, na fase avançada do definhamento que o levou
desta vida. O doutor Livesey veio ao fim da tarde ver o
doente, aceitou da minha mãe um parco jantar e foi até à sala
fumar cachimbo até lhe trazerem o cavalo da aldeia, pois não
tínhamos estábulo na velha Benbow. Segui-o e lembro-me de
notar o contraste que o médico limpo e asseado, com a
cabeleira empoada e branca como neve e os olhos brilhantes e
negros, o porte agradável, fazia com os labregos desajeitados
e, mais do que todos, com aquele espantalho sujo, maçiço e
remelento que era o nosso pirata, sentado e cheio de rum, de
braços atravessados na mesa. Bruscamente, ele - quero dizer o
capitão - pôs-se a bradar a eterna cantiga:


"Quinze homens na arca do morto,
Aiou-ou-oa e uma garrafa de rum!


Aos outros levou-os a bebida e o diabo
Aiou-ou-ou e uma garrafa de rum!"


11


Primeiro eu tinha pensado que a arca do morto era aquele
grande caixote que ele tinha lá em cima no quarto da frente, e
a ideia tinha-se-me misturado nos pesadelos em conjunto com a
do marinheiro duma perna só. Mas naquela altura já todos
tínhamos deixado de dar atenção especial à cantiga; nessa
noite só era nova para o doutor Livesey, e notei que não
produzia nele um efeito agradável, pois levantou por instantes
a cabeça, visivelmente irritado, antes de continuar a conversa
com o velho jardineiro Taylor sobre um novo remédio para o
reumatismo. Enquanto isso, o capitão começou a ficar animado
com a própria música, até que deu uma grande palmada na mesa
de um modo que todos sabíamos o que queria dizer - silêncio.
As vozes calaram-se logo, todas menos a do doutor Livesey;
continuou como antes a falar com voz clara e atenciosa, a
chupar o cachimbo a cada palavra ou duas. O capitão fitou-o
por momentos, deu outra palmada na mesa, fitou ainda com mais
força, e por fim rosnou uma praga maldosa: - Silêncio, aí na
coberta!
- O senhor estava a falar comigo? - disse o médico; e quando
o tratante lhe disse, com outra praga, que sim, respondeu: -
Só tenho a dizer-lhe, senhor, que se continua a beber rum, não
tarda muito que o mundo se livre dum malandro nojento!
A fúria do velhote foi medonha. Pôs-se em pé dum salto,
sacou e abriu uma navalha de mola e, com ela aberta na palma
da mão, ameaçou espetar o médico contra a parede.
Este nem sequer fez um gesto. Como antes, continuou a
falar-Lhe por cima do ombro e no mesmo tom de voz,
suficientemente alto para que todos pudessem ouvir, mas
perfeitamente calmo e firme:
- Ou mete já essa faca no bolso ou dou-Lhe a minha palavra
de honra que será condenado à forca na próxima sessão do
tribunal.
Seguiu-se uma luta de olhares entre os dois; mas o capitão
em breve se retraiu, guardou a arma e voltou a sentar-se, a
resmungar como um cão derrotado.
- E agora, senhor - continuou o médico -, visto que já sei
que está na minha zona um sujeito da sua espécie, pode ficar
certo que o mandarei vigiar dia e noite. Não sou só médico,
sou um magistrado; e se apanho uma sombra de queixa contra si,
nem que seja por mau comportamento cívico como o de hoje,
tomarei as medidas necessárias para o apanhar e expulsar por
isso. Acho que basta.
Pouco depois chegou o cavalo do doutor Livesey e ele foi-se
embora, mas o capitão manteve-se calado naquela noite e por
muitas outras a seguir.

CAPÍTUlO II


O Cão Negro aparece e some-se


Pouco tempo se passou antes que ocorresse o primeiro dos
acontecimentos misteriosos que por fim nos livraram do
capitão, embora, como se verá, não dos assuntos que a ele
estavam ligados. Foi um Inverno gelado, com geadas duras,
prolongadas e fortes temporais; e logo de princípio se tornou
claro que era pouco provável o meu pobre pai chegar a ver a
Primavera. Definhava de dia para dia, e a minha mãe e eu
tínhamos de tratar de toda a hospedaria, ocupados a ponto de
não dar muita atenção ao nosso hóspede antipático.
Sucedeu em Janeiro, de manhãzinha - numa gélida e cortante
manhã -, com a enseada toda grisalha de geada, a ressaca a
lamber ao de leve as rochas e o Sol, ainda baixo, a aflorar o
topo dos montes e a brilhar lá longe no mar. O capitão
tinha-se levantado mais cedo que o costume e descera para a
praia, com o sabre a bailar debaixo das abas do velho casaco
azul e o óculo de latão no braço, o chapéu tombado para trás.
Lembro-me de lhe ver a respiração suspensa como fumo atrás
dele enquanto se afastava, e a última coisa que lhe ouvi, ao
passar pelo penedo grande, foi um alto brado de indignação,
como se em espírito ainda altercasse com o doutor Livesey.
A mãe estava lá em cima com o pai, e eu a pôr a mesa para
servir o pequeno-almoço quando o capitão voltasse, quando a
porta da sala se abriu e entrou um homem em quem nunca tinha
posto os olhos. Era uma pessoa pálida e ensebada, sem dois
dedos da mão esquerda; e embora usasse sabre, não tínha nada
ar de guerreiro. Eu, que continuava de olhos abertos para tudo
o que fosse gente do mar, com uma perna ou com duas, lembro-me
que aquele me atrapalhou. Não lembrava um marinheiro, e mesmo
assim também não deixava de ter algo que fazia pensar no mar.
Perguntei em que podia servi-lo e respondeu que queria rum,
mas, quando eu ia a sair para lho trazer, encostou-se a uma
mesa e fez-me sinal para me aproximar. Fiquei onde estava, de
guardanapo na mão.
- Anda cá, filho - disse. - Chega-te mais para cá.
Avancei um passo.
- Esta mesa aqui é para o meu camarada Bill? - perguntou,
com olhar matreiro. Disse-lhe que não conhecia o camarada Bill
e que a mesa era para uma pessoa ali hospedada a quem
chamávamos capitão.
- Bem - retorquiu -, o meu camarada Bill bem pode ser
capitão, é mesmo dele. Tem um corte na cara, e é um sujeito
bem divertido, principalmente na bebida. Então te digo, como
prova, que o teu capitão tem um golpe na face - e mais te
declaro, se quiseres, que é na face direita. E pronto! Já te
disse. Agora, está aqui na casa o meu camarada Bill?
Disse-lhe que tinha saído.
- Para que lado, filho? Para que lado foi ele?
Depois de eu ter apontado para o rochedo e dito como e
quando o capitão devia voltar, e respondido a várias outras
perguntas, ele terminou: - Ah, esta vai-Lhe saber tão bem como
uns copos, ao meu camarada Bill.
A sua expressão ao dizer estas palavras não era nada
simpática, e tinha as minhas razões para crer que u estranho
se enganava, mesmo partindo do princípio de que estava a ser
sincero. Mas pensei que aquilo não me dizia respeito; além do
mais, era difícil saber o que havia de fazer. O estranho
deixou-se ficar ali dentro sem se afastar da porta, a
espreitar para a esquina como um gato à espera do rato. Quando
de uma vez saí para a rua, logo me chamou. e, como não
obedecesse logo ao seu desejo, uma mudança horrível se Lhe
espalhou na cara de sebo e mandou-me entrar com uma praga que
me fez saltar.
Logo que entrei voltou aos bons modos anteriores, meio
cativante, meio trocista, fez-me uma festa no ombro, chamou-me
bom rapaz e disse que tinha grande simpatia por mim. - Tenho
um rapaz também - disse -, igualzinho a ti, que é todo o meu
orgulho. Mas para os rapazes o mais importante é a disciplina,
filho, a disciplina. Olha que se já tivesses andado no mar com
o Bill, não tinhas ficado lá fora à espera que te chamassem
duas vezes, nem pensar. O Bill nunca se portou assim, nem os
que embarcavam com ele. E lá vem ele, de certeza, o meu
companheiro Bill, com o óculo debaixo do braço, benza-o Deus,
é mesmo ele. Anda comigo para a sala, filho, vamos ficar atrás
da porta e fazer-lhe uma surpresa, e torno a dizer: abençoado
seja.
Assim falando, o estranho puxou-me com ele para a sala e
pôs-me atrás dele no canto, de modo a ficarmos escondidos pela
porta aberta.


14


Fiquei atrapalhado e assustado, como podeis calcular, e os
meus receios aumentaram ao perceber que o forasteiro também
não estava nada à vontade. Aprontou o punho do sabre e
desprendeu a lâmina da bainha, e durante todo o tempo que ali
esperámos não deixou de engolir em seco, como se quisesse o
que a gente costumava chamar puxar por um nó na garganta.
Por fim entrou o capitão, bateu com a porta sem olhar para
os lados e atravessou a sala em direcção ao pequeno-almoço.
- Bill - chamou o estranho, com uma voz que, pensei, tentava
soar forte e ousada.
O capitão girou meia volta e enfrentou-nos; toda a cor
morena lhe tinha fugido da cara, e até o nariz ficou azul;
tinha o ar dum homem que vê um fantasma, ou o Anjo do Mal, ou
algo pior ainda, se houver; e, pela fé de quem sou, tive pena
de o ver, num curto instante, ficar tão velho e agoniado.
- Vamos, Bill, bem me conheces; decerto que te lembras dum
velho camarada, Bill.
O capitão soltou uma espécie de suspiro estrangulado.
- Cão Negro! - exclamou.
- Quem havia de ser? - retorquiu o outro, mostrando-se mais
à vontade. - O mesmo Cão Negro de sempre, para visitar o velho
companheiro Bill na Hospedaria "Almirante Benbow". Ah, Bill,
Bill, muitas voltas deu o mundo para nós dois desde que perdi
estas duas garras - disse, exibindo a mão mutilada.
- Ouve cá - disse o capitão -, apanhaste-me, aqui me tens;
pois então, fala, que se passa?
- És mesmo tu, Bill - tornou o Cão Negro -, acertas sempre.
Vou tomar um copo de rum, trazido por este bom menino de quem
gosto tanto, e vamo-nos sentar, se fazes favor, e conversar
como deve ser, como companheiros de bordo que fomos.
Quando voltei com o rum já estavam sentados de cada lado da
mesa - o Cão Negro junto da porta e sentado de lado, de modo a
ter um olho no capitão e o outro, segundo pensei, na retirada.
Mandou-me embora e disse-me para deixar a porta bem aberta.
- Nada de espreitar às fechaduras, filho - declarou, e lá os
deixei juntos, retirando-me para a taberna.
Durante muito tempo, embora tentasse escutar, só consegui
ouvir uns murmúrios; mas por fim as vozes começaram a subir de
tom e pude apanhar uma oú outra palavra, a maior parte pragas
do capitão.
- Não, não, não e não; e é acabar com tudo! - gritou uma
vez. E outra: - Se tocar a pendurar, que se pendurem todos,
digo eu.


15


A seguir, e de chofre, houve uma grande barulheira de pragas
e outros sons; a cadeira e a mesa tombaram juntas, seguiu-se o
choque de aço contra aço, depois um grito de dor e no momento
imediato avistei o Cão Negro em fuga precipitada com o capitão
na peugada, ambos de sabre desembainhado, o primeiro a jorrar
sangue do ombro esquerdo. Mesmo ao chegar à porta o capitão
apontou-lhe um ültimo e violento golpe, muito capaz de o abrir
até à espinha se não tivesse sido parado pela nossa grande
tabuleta da "Almirante Benbow". Ainda hoje se pode ver a marca
na parte inferior do caixilho.
A batalha terminou com aquele golpe. Apanhando-se na
estrada, o Cão Negro, apesar da ferida, mostrou um par de
calcanhares bem lestos e levou meio minuto para desaparecer
por cima do monte. Pela sua parte, o capitão ficou especado a
mirar a tabuleta com assombro. Depois de esfregar os olhos
várias vezes com a mão, voltou enfim para dentro.
- Jim - disse -, rum. - Ao falar cambaleou um pouco e
segurou-se à parede com a mão.
- Está ferido? - gemi.
- Rum - repetiu. - Tenho de me ir embora daqui. Rum! Rum!
Corri, mas estava transtornado por tudo o que sucedera,
parti um copo e encravei a torneira do pipo, e enquanto ainda
não tinha saído daquela atrapalhação ouvi na sala uma queda
violenta, voltei a correr e dei com o capitão estendido ao
comprido no chão. Nesse instante, a minha mãe, assustada com
os gritos e a luta, descia a correr as escadas para me ajudar.
Um de cada lado, levantámos-lhe a cabeça. Respirava com ruído
e dificuldade, mas com os olhos fechados e uma cor medonha na
cara.
- Ai de mim, ai de mim! - choramingou a minha mãe. - Que
desgraça em casa! E o pobre do pai doente!
Não fazíamos ideia do que era preciso fazer para socorrer o
capitão, e só pensávamos que fora ferido de morte no combate
com o estranho. O certo é que peguei no rum e tentei fazê-lo
beber, mas tinha os dentes e os queixos cerrados como ferro.
Foi com grande alívio que vimos a porta abrir-se para dar
entrada ao doutor Livesey, que viera ver o meu pai.
- Oh, doutor - gememos -, que temos de fazer? Onde é que ele
está ferido?
- Ferido? Mas que disparate! - atalhou o médico. - Está
tanto como vocês ou eu. O que ele teve foi um ataque, como eu
o avisei. Olhe, senhora Hawkins, agora vá para o pé do seu
marido e se puder não lhe conte nada. Por mim vou tentar
salvar a fraca vida deste sujeito que nada vale; e tu traz-me
uma bacia, Jim.


16


Quando voltei com a bacia, o médico já tinha rasgado a manga
do capitão de forma a expor o braço grande e musculoso. Tinha
tatuagens em vários pontos. "Boa Fortuna, Bons Ventos e Ao
Gosto de Billy Bones", estavam muito bem marcadas com clareza
no antebraço; e junto ao ombro tinha o desenho duma forca com
um enforcado, que me pareceu feito com grande engenho.
- Profético - afirmou o médico, tocando nesta figura com o
dedo. - E agora, Mestre Billy Bones, se é esse o teu nome,
vamos ver a cor do teu sangue. Jim, tens medo do sangue?
- Não, senhor.
- Então segura aqui na bacia - e dito isto pegou na lanceta
e abriu uma veia. Muito sangue foi tirado até o capitão
acordar e virar para nós o olhar embaciado. Em primeiro lugar
reconheceu o médico com um franzir eloquente; depois virou-se
para mim e pareceu aliviado. Mas de repente mudou de cor e
tentou erguer-se, exclamando:
- Que é feito do Cão Negro?
- Aqui não há nenhum cão preto - disse o médico -, excepto o
que você já carrega em cima de si. Você continuou a beber rum;
teve um ataque, precisamente como lhe disse; e agora mesmo,
muito contra a minha vontade, o arranquei da cova pelos
cabelos. Ora, senhor Bones...
- Não é o meu nome - interrompeu.
- Bem me importa - ripostou o médico. - É o nome dum pirata
que conheço, e dou-lho a si porque não estou para perder
tempo, e digo-lhe o seguinte: um copo de rum não o vai matar,
mas quando toma um você continua sem parar, e aposto a minha
cabeleira que, se não pára já, morre; entende o que lhe digo?
Morre, e vai para onde é o seu lugar, como diz a Bíblia.
Vamos, agora faça um esforço. Ao menos por esta vez vou
ajudá-lo até à cama.
Um de cada lado, com muito esforço, lá conseguimos guindá-lo
escada acima e deitá-lo na cama, onde a cabeça lhe tombou na
travesseira como se estivesse a ponto de desmaiar.
- Agora atenção - preveniu o médico -, fico com a
consciência limpa... para si o rum é igual à morte.
E com estas palavras saiu do quarto para ir ver o meu pai,
levando-me pelo braço.
Logo que fechou a porta, virou-se para mim: - Aquilo não é
nada. Tirei-lhe sangue bastante para o deixar em sossego por
algum tempo; deve ficar de cama por uma semana, é o melhor
para ele e para vocês, mas outro ataque vai liquidá-lo.

CAPÍTULO III


A pinta preta


Perto do meio-dia, fui ao quarto do capitão levar
refrescos e remédios. Estava quase como o tínhamos deixado,
mas menos abatido, com ar fraco e excitado.
- Jim - disse -, és a única pessoa que vale alguma coisa por
aqui; e sabes que fui sempre bom para ti. Nunca passou um mês
sem te dar os teus quatro dinheiros de prata. E agora vês,
companheiro, como estou por baixo e abandonado por toda a
gente; vê lá se me trazes um bocadinho de rum, sim, compincha?
- O doutor... - comecei.
Mas logo começou a praguejar contra o médico, em voz fraca
mas enérgica. - Os médicos são todos uns porcalhões - atalhou
-, e esse doutor aí, que sabe ele dos homens do mar? Já estive
em sítios quentes como alcatrão, com os parceiros a caírem por
todos os lados com febre amarela, e os tremores de terra a
fazer ondas como se fosse no mar. Que sabe o médico de terras
assim? E digo-te que me sustentava de rum. Para mim foi o pão
de cada dia, foi a minha criação; e se não tomo já o meu rum,
o meu pobre casco vai dar à costa. Vais ficar com as culpas,
Jim, e também aquele porco do doutor - e desfiou outra vez uma
série de pragas. - Olha, Jim, como me tremem os dedos -
prosseguiu num tom de súplica.Nem consigo fazê-los parar. Não
bebi uma pinga em todo o santo dia. Digo-te que esse médico é
doido. Se não bebo um gole, Jim, vêm-me os terrores; já os
comecei a ter. Vi o velho Flint aí ao canto por trás de ti;
vi-o pintado, tal e qual; e se me vêm os terrores, com a vida
dura que vivi, olha que fico pior que mau. Esse teu médico até
disse que um copo não me ia fazer mal. Dou-te um guinéu de
ouro por uma canequinha, Jim.
Ia ficando cada vez mais agitado, e fiquei assustado porque
o meu pai, que passava muito mal, precisava de sossego; além
do mais, fiquei mais confiante quando ele me lembrou o que o
médico dissera e, ao mesmo tempo, ofendido pela proposta de
suborno.
- Não quero nada do seu dinheiro - respondi -, senão o que
deve ao meu pai. Vou buscar-lhe um copo e mais nada.


18 19


Quando Lho trouxe, pegou-Lhe com sofreguidão e bebeu-o duma
vez só.
- Ai, ai - disse -, já estou um bocadinho melhor. E agora,
camarada, o médico não disse quanto tempo é que eu ia ficar
aqui atracado?
- Pelo menos uma semana - respondi.
- Raios! - protestou. - Uma semana! Nem pensar, antes disso
me põem uma pinta preta. Os desgraçados já por aí andam a
querer dar cabo de mim, malandros que não souberam guardar o
que era deles, e agora querem apanhar o que é dos outros.
Sempre queria saber se isso são modos de marinheiros. Mas cá
eu sou poupado. Nunca desperdicei nem perdi o meu bom
dinheiro; e hei-de enganá-los outra vez. Não tenho medo deles.
Vou safar-me desta, companheiro, e levá-los outra vez à
pincha.
Assim falando, tinha-se soerguido com grande dificuldade,
agarrado ao meu ombro com tal força que quase me fazia gritar,
e mexia as pernas como se fossem peso morto. As palavras,
cheias de intenção, contrastavam tristemente com a fraqueza da
voz que as pronunciava. Fez uma pausa quando ficou sentado na
borda da cama.
- Aquele médico deu cabo de mim - murmurou. - Tenho os
ouvidos a zumbir. Deita-me para trás.
Antes de o poder ajudar já se tinha deixado cair na posição
anterior, ficando calado por um bocado.
- Jim - disse, por fim -, viste aquele marinheiro, hoje?
- O Cão Negro? - perguntei.
- Ah! O Cão Negro - respondeu. - Esse é dos maus; mas ainda
pior é quem o mandou. Ora, se eu não puder sair daqui de
nenhum jeito, e eles me trouxerem a pinta preta, toma atenção,
que é a minha velha arca que eles querem; arranja um cavalo -
sabes montar, não sabes? Pois então monta a cavalo e vai...
bem, sim, tem de ser!... Vai procurar esse latrineiro do
médico, e diz-lhe para reunir todos... magistrados e dessa
gente... para os vir embarcar a todos aqui na "Almirante
Benbow" toda a tripulação do velho Flint, homens e rapazes,
todos os que restam. Eu era o imediato, sabes, o imediato do
velho Flint, e sou o único que sabe o sítio. Disse-mo ele a
caminho de Savannah, quando estava a morrer, como eu estou
agora, entendes. Mas não digas nada antes deles me trazerem a
pinta preta, ou antes de veres o Cão Negro outra vez, ou um
marinheiro duma perna só, Jim, esse mais do que todos.
- Mas o que é a pinta preta, capitão? - perguntei.
- É uma convocação, companheiro. Eu digo-te caso eles a
tragam. Mas abre-me bem esses olhos, Jim, e dou-te a minha
palavra que divido tudo a meias contigo.
Divagou ainda um pouco, com a voz cada vez mais fraca; mas
pouco depois de lhe dar o remédio, que tomou como uma criança,
com a observação - Se já se viu um marinheiro precisar de
drogas, sou eu -, caiu num sono pesado como um desmaio, e
assim o deixei. Se tudo tivesse corrido bem, não sei o que
teria feito. Possivelmente iria contar tudo ao médico, pois
sentia um medo mortal que o capitão se arrependesse daquela
confissão e desse cabo de mim. Mas as coisas saíram ao
contrário, o meu pai morreu de repente nessa mesma noite, e
isso pôs todos os outros assuntos de lado. O nosso desgosto
natural, as visitas dos vizinhos, os preparativos do funeral,
e com todo o trabalho da hospedaria para ser feito, tudo me
deixou tão ocupado que mal tinha tempo de pensar no capitão, e
ainda menos para ter medo dele.
O certo é que desceu à sala na manhã seguinte e comeu as
refeições como de costume, embora comesse pouco e tomasse
mais, desconfio, que a sua ração habitual de rum, porque foi
ele próprio servir-se à taberna, com ar sombrio e a roncar com
o nariz, e ninguém se atrevia a contrariá-lo. Na noite
anterior ao funeral estava bêbedo como sempre; e foi uma
lástima ouvi-lo, na casa enlutada, dar largas à feia e velha
cantiga do mar; mas, fraco como estava, todos receávamos que
morresse, e o médico, chamado a um doente de longe, nem sequer
passou por ali perto depois do meu pai morrer. Disse que o
capitão andava fraco, mas na verdade parecia ir enfraquecendo
em vez de recuperar as forças. Subia e descia aos tropeços, ia
da sala à taberna e voltava à sala, e por vezes punha o nariz
fora da porta para cheirar o mar, agarrando-se às paredes em
busca de apoio, com a respiração pesada e rápida como se
estivesse a trepar a uma encosta íngreme. Deixou de me falar
directamente, e pensei que tivesse esquecido as confidências
feitas; mas o seu génio estava mais caprichoso e, atendendo à
fraqueza física, mais violento do que nunca. Agora tinha uma
maneira assustadora de desembainhar o sabre e o deixar em cima
da mesa à sua frente quando se embebedava. Mas com tudo
aquilo, ligava menos às pessoas, parecendo absorto nos seus
pensamentos e perdido em divagações. Uma vez, por exemplo,
para nosso espanto, pôs-se a cantarolar uma ária diferente,
uma espécie de cantiga de amor que devia ter aprendido na
juventude antes de começar a ir para o mar.
Assim se passou até ao dia seguinte ao do funeral e, perto
das três horas daquela tarde dura, nevoenta e gelada, estava
eu por momentos à porta, cheio de tristes pensamentos pelo meu
pai, quando avistei alguém que lentamente se aproximava na
estrada.


20


Era um cego, pois tacteava u caminho com uma bengala e
trazia nos olhos e no nariz uma venda grande e verde; e tinha
uma corcunda como se fosse velho ou fraco, dentro dum velho e
imenso capote remendado, de marinheiro, com um capuz que o
fazia parecer absolutamente deformado. Nunca na minha vida vi
figura mais medonha. Parou a pouca distância e ergueu a voz,
dirigindo-se ao ar à frente dele, num velho estribilho:
- Quem quer dizer ao pobre cego, que perdeu a vista preciosa
dos olhos na defesa voluntária da sua terra-mãe, a Inglaterra,
"e que Deus abençoe o rei Jorge!", onde ou em que parte desta
terra se enCOntra?
- Aqui é a "Almirante Benbow", na enseada do Monte Negro,
meu bom homem - declarei.
- Oiço uma voz - tornou ele -, uma voz jovem. Podes dar-me a
mão, meu amiguinho, e levar-me para dentro?
Quando estendi a mão, fui num ápice agarrado como numa tenaz
por aquela criatura horrível, sonsa e cega. Fiquei tão
aterrado que lutei para me libertar, mas o cego puxou-me para
si com um só movimento do braço.
- Agora, rapaz - disse -, leva-me ao capitão.
- Senhor - respondi -, palavra que não me atrevo.
- Oh - troçou ele -, então é isso! Leva-me já, senão
parto-te o braço.
E deu-me um torcegão que me fez gritar de dor.
- Senhor - acrescentei -, é por si que tenho medo. O capitão
já não é o mesmo. E está sentado com o sabre desembainhado.
Outro senhor...
- Vamos lá, anda para a frente - atalhou ele, e nunca ouvi
uma voz tão cruel e fria, tão feia como a daquele cego. Fez-me
arrepiar mais do que a dor, e logo lhe fui fazendo a vontade,
passando pela porta e em direcção à sala onde estava o pirata
velho e doente, entontecido de rum. O cego mantinha-se colado
a mim, com uma garra de ferro, e derreava-me com um peso
superior às minhas forças. - Leva-me direito a ele, e quando
lá chegares grita "Bil], está aqui um seu amigo". Senão, olha
o que te faço - e deu-me outra torcidela que pensei que me ia
fazer desmaiar. Com tudo isto eu já estava tão aterrado pelo
pedinte cego que me esqueci do medo que tinha do capitão e, ao
abrir a porta da sala, gritei em voz trémula o que me fora
mandado.
O pobre do capitão ergueu os olhos, e no mesmo instante o
álcool desapareceu para dar lugar a um olhar fixo e sóbrio.


21


A expressão daquele rosto era menos de terror do que de um
sofrimento de morte. Fez um movimento para se levantar, mas
penso que Lhe não restava no corpo força suficiente.
- Agora deixa-te estar sentado onde estás, Bill - disse o
mendigo. - Se não posso ver, posso ouvir um dedo a mexer.
Negócio é negócio. Deixa ver a mão esquerda. Rapaz, segura-lhe
a mão esquerda e chega-a aqui à minha direita.
Ambos lhe obedecemos à letra, e vi-o passar algo da palma da
mão que trazia a bengala para a do capitão, que logo se
fechou.
- E pronto, já está feito - declarou o cego, e com estas
palavras largou-me de chofre, para com incrível exactidão e
agilidade se escapar da sala para a estrada onde, paralisado
ali dentro, fiquei a ouvir as pancadas da bengala
desaparecerem ao longe.
Passoú algum tempo antes de qualquer de nós recobrar os
sentidos; mas por fim larguei-Lhe o pulso, que ainda segurava,
e no mesmo momento ele retirou a mão e olhou fixamente para a
palma.
- Dez horas! - exclamou. - Faltam seis horas. Ainda os
apanhamos! - e pôs-se em pé de um salto.
Mal o fez cambaleou, levou a mão à garganta, oscilou por
instantes e a seguir, com um som estranho, estatelou-se ao
comprido no chão, de cara para baixo.
Corri logo para ele, chamando pela minha mãe. Mas toda a
pressa era inútil. A morte atingira o capitão com uma
apoplexia fulminante. É coisa difícil de explicar, tanto mais
que eu nunca tinha gostado do homem, embora tivesse sentido
pena dele nos últimos tempos, mas logo que percebi que morrera
desatei numa torrente de lágrimas. Era a segunda morte que
presenciava, e o desgosto da primeira ainda estava vivo no meu
coração.


CAPÍTULO IV


A arca de porão


Não perdi tempo, evidentemente, a contar à minha mãe tudo
o que sabia, e talvez lho devesse ter dito muito antes, e logo
nos vimos metidos numa situação difícil e perigosa. Algum do
dinheiro do homem - se é que tinha algum - certamente nos era
devido, mas não era de crer que os companheiros de bordo do
nosso capitão, em especial os dois exemplares que eu tinha
visto - o Cão Negro e o pedinte cego - estivessem na
disposição de largar mão do saque para pagar as dívidas do
morto. Se cumprisse a ordem do capitão para ir a cavalo buscar
o doutor Livesey, teria deixado a minha mãe sozinha e
desprotegida, e nem pensar nisso era bom. Na verdade, não nos
parecia possível continuar na casa por muito mais tempo; a
queda dos carvões na grade do fogão, o próprio tiquetaque do
relógio, enchiam-nos de susto.
Aos nossos ouvidos, a vizinhança parecia-nos assombrada por
passos que se aproximavam; e então, entre o corpo do capitão
morto no chão da sala e a lembrança daquele odioso mendigo
cego a pairar pelas redondezas e pronto a voltar, havia
momentos em que, por assim dizer, o terror me fazia saltar
dentro da pele. Alguma coisa tinha de ser resolvida, e
depressa, por fim ocorreu-nos ir juntos pedir ajuda à aldeia
próxima. Logo o fizemos. De cabeça descoberta, como estávamos,
saímos a correr para a noite que se ia fechando e para a bruma
cortante.
O lugar ficava a poucas centenas de metros, embora não se
visse do lado de lá da enseada próxima; e o que mais me
animava era que ficava na direcção contrária àquela de onde
tinha aparecido o cego, e para onde possivelmente voltara. Não
nos demorámos muito, embora parássemos de vez em quando para
nos mantermos juntos e ficar de ouvido à escuta. Mas não havia
nenhum som anormal - só o ruído fundo da ressaca e o crocitar
de corvos na mata.
Já se tinham acendido as luzes quando chegámos ao povoado, e
nunca me esquecerei do ânimo que senti ao vê-las a brilhar,
amarelas, em portas e janelas; mas isso, como aconteceu, foi a
única amostra de auxílio que nos foi possível encontrar ali.
Porque - dir-se-ia que os homens deviam ter vergonha - nem uma
daquelas almas se dispôs a voltar connosco à "Almirante
Benbow". Quanto mais Lhes contávamos as nossas aflições, mais
eles - homens, muLheres e crianças - se encolhiam no abrigo de
suas casas. O nome do capitão Flint, embora estranho para mim,
era bem conhecido por alguns deles e trazia consigo uma grande
carga de terror. Além disso, alguns dos homens que tinham ido
trabalhar no campo do lado de lá da "Almirante Benbow"
lembravam-se de ter visto uns forasteiros na estrada e,
pensando tratar-se de contrabandistas, tinham-se desviado; e
pelo menos um deles tinha visto um pequeno lugre no sítio
chamado Toca do Gato. Por isso, quem quer que fosse camarada
do capitão era suficiente para os assustar de morte. Ao fim e
ao cabo, a discussão resumiu-se em que pudemos encontrar
alguns com ânimo para ir a casa do doutor Livesey, noutra
direcção, mas ninguém que nos ajudasse a defender a estalagem.
Dizem que a cobardia é infecciosa; mas, por seu lado, a
discussão faz a gente ganhar coragem; e assim, quando todos
tinham falado, a minha mãe fez-lhes um sermão. Não ia,
declarou, perder dinheiro que pertencia ao seu filho órfão de
pai. - Se nenhum de vocês se atreve - disse ela -, o Jim e eu
atrevemo-nos. Vamos lá voltar pelo mesmo caminho e poucas
graças lhes temos a dar a vocês, homenzarrões cobardes como
frangos! Havemos de abrir aquela arca, nem que seja preciso
morrer. E peço-lhe aquele saco emprestado, senhor Crossley,
para trazer o dinheiro que nos pertence.
Claro que disse que acompanhava a minha mãe; e claro que
todos protestaram contra a nossa teimosia; mas mesmo assim
ninguém quis ir connosco. Apenas se prontificaram a dar-me uma
pistola carregada, para o caso de sermos atacados; e a
prometer ter ali cavalos prontos, para o caso de sermos
perseguidos na volta, enquanto mandavam um rapaz a casa do
médico, em busca de ajuda armada.
O coração batia-me excitadamente quando saímos os dois para
o frio da noite naquela empresa arriscada. Nascia a lua cheia,
a espreitar, avermelhada, pela borda superior da bruma, e isso
fez-nos apressar, pois parecia-nos evidente que antes de
regressarmos estaria tudo claro como dia, e a nossa partida
seria revelada a quem estivesse à espreita. Escapámo-nos junto
às sebes, ligeiros e em silêncio, sem vermos nem ouvirmos nada
que nos aumentasse o sobressalto até, com imenso alívio,
fecharmos atrás de nós a porta da "Almirante Benbow".
Corri logo a tranca, e ali ficámos por momentos a arfar no
escuro, a sós na casa com o cadáver do capitão. Depois a minha
mãe foi à taberna buscar uma candeia e, de mãos dadas,
entrámos na sala.


24


Estava estendido como o tínhamos deixado, de costas, com os
olhos abertos e um braço esticado. - Corre o estore, Jim -
segredou a minha mãe -, podem chegar e espreitar lá de fora. E
agora - acrescentou, depois de eu ter feito o que mandara -
temos de tirar a chave dali, mas quem é que vai mexer-lhe, não
me dizes? - terminou ela, numa espécie de soluço.
Pus-me logo de joelhos. No chão, junto à mão dele estava uma
pequena rodela de papel, pintada de preto num dos lados. Não
pude duvidar que aquilo era a pinta preta e, pegando-Lhe,
encontrei escrita do outro lado, em boa caligrafia, o recado:
"Esta noite até às dez".

- Ele tinha até às dez horas, mãe - observei; e, nesse
preciso momento, o nosso velho relógio começou a dar as horas.
Ambos saltámos de susto mas o agoiro era bom, porque eram só
seis.
- Então, Jim - disse ela -, essa chave!
Revistei-lhe os bolsos, um após outro. Algumas moedas
pequenas, um dedal, um bocado de fio e agulhas grandes, uma
trança de tabaco mordida numa ponta, a faca dele com o punho
rachado, uma bússola de bolso e um acendedor de morrão, era
tudo o que neles havia, e comecei a desesperar.
- Talvez a tenha ao pescoço - lembrou a minha mãe.
Dominando uma forte repulsa, rasguei-Lhe a camisa e lá
encontrei a chave, pendurada num cordel oleoso que cortei com
aquela mesma faca. Com este triunfo enchemo-nos de esperança e
apressámo-nos a subir sem demora ao quartinho onde tanto tempo
dormira e onde a arca tinha ficado desde o dia em que chegara.
Por fora era como qualquer outra arca de marinheiro, com a
inicial B gravada a fogo na tampa, os cantos amassados e
partidos pelos maus tratos contínuos.
- Dá-me a chave - mandou a minha mãe, e embora o fecho
estivesse muito emperrado, num ápice Lhe deu a volta e atirou
a tampa para trás.
De dentro veio o cheiro forte de tabaco e alcatrão, mas nada
se via ao de cima a não ser um fato de excelente qualidade,
cuidadosamente escovado e dobrado. Nunca fora usado, afirmou a
minha mãe. Por baixo dele começou a aparecer a miscelânea - um
quadrante, uma caneca de estanho, vários rolos de tabaco, dois
pares de pistolas magníficas, uma peça de prata em barra, um
velho relógio espanhol e outras bugigangas de pouco valor, na
maioria estrangeiras, duas bússolas montadas em latão, e uma
meia dúzia de curiosas conchas das Índias Ocidentais.


25


Desde então, muitas vezes tenho pensado porque razão andava
ele com aquelas conchas na sua vida errante e assombrada de
fugitivo.
Entretanto, nada mais encontrámos de valor a não ser a prata
e as bugigangas, que não tinham interesse para nós. Por baixo
estava uma velha capa de bordo, manchada pelo salitre de
muitas barras marinhas. A minha mãe tirou-a com impaciência,
revelando o que restava no fundo da arca, um maço atado em
oleado, que parecia de papéis, e um saco de lona que, ao
primeiro toque, fez tinir as moedas.
- Vou provar àqueles malandros que sou honesta - afirmou a
minha mãe. - Vou tirar o que me devem e nem mais um tostão.
Agarra aí no saco da senhora Crossley. - E começou a contar os
gastos do capitão passando as moedas para o saco que eu
segurava.
Foi uma trabalheira difícil e demorada, pois as moedas eram
de todas as origens e tamanhos - dobrões, luíses de ouro,
guinéus e peças de oito, e sei lá que mais, todas misturadas
em monte. Além do mais, o que menos ali havia eram os guinéus,
e só destes é que a minha mãe sabia o valor.
Estávamos mais ou menos a meio, quando agarrei o braço da
minha mãe, por ter ouvido, no ar quieto e gelado, um som que
me trouxe o coração à boca - as batidas da bengala do cego na
estrada coberta de geada. Aproximava-se cada vez mais
enquanto, sentados, fazíamos por não respirar. A seguir, bateu
com força na porta da hospedaria, ouvimos o fecho girar e o
restolho da tranca quando a maldita criatura tentava entrar;
seguiu-se um silêncio demorado, tanto dentro como fora. Por
fim recomeçaram as batidas e, com intraduzível regozijo nosso,
de novo se afastaram lentamente até deixarem de se ouvir.
- Mãe - falei -, traga tudo e vamos embora - pois estava
certo de que a porta trancada devia ter levantado suspeitas,
que nos iam atirar para cima com todo o ninho de vespas,
embora ninguém que nunca tivesse encontrado o medonho cego
pudesse imaginar as graças que eu dava por me lembrar de a ter
trancado. Mas a mãe, até mesmo aterrorizada, não admitia tirar
dali uma migalha a mais do que Lhe era devido, e obstinava-se
a deixar-se contentar com menos. Disse-me que ainda faltava
muito para as sete, que conhecia os seus direitos e não
desistia deles; e ainda estava a discutir comigo quando soou
um assobio curto e baixo à distância, do lado do monte. Para
ambos, aquilo foi mais do que o suficiente.
- Levo o que já tenho - declarou ela, levantando-se dum
salto.
- E eu levo isto para acertar a conta - decidi, pegando no
embrulho de oleado.


26


Num instante voávamos pela escada abaixo, deixando a candeia
junto da arca vazia, e imediatamente abrimos a porta e fugimos
à desfilada. Saímos no momento exacto. O nevoeiro
dispersava-se rapidamente, a lua já brilhava claro nos
terrenos altos de ambos os lados, e só mesmo no fundo do vale
e junto à porta da taberna pairava ainda uma leve franja de
sombra para ocultar os primeiros passos da nossa retirada. A
menos de metade do caminho para a povoação, logo a seguir à
base do monte, tivemos de nos expor ao luar. Mas não era tudo,
pois já ouvíamos passos a correr e, ao olharmos para trás,
avistámos uma luz a oscilar dum lado para o outro, mas
avançando com rapidez, mostrando que um dos que se aproximavam
trazia uma lanterna.
- Querido - disse de chofre a minha mãe -, leva o dinheiro e
foge. Vou desmaiar.
Decerto era o fim de ambos, pensei. Como amaldiçoei a
cobardia dos vizinhos! Quanto censurei a honestidade e a
cobiça da minha mãe, pela ousadia mostrada antes e pela
fraqueza presente! Já estávamos junto à ponte, por sorte, e
ajudei-a, já trôpega, a alcançar a borda da margem, onde
acabou por suspirar e tombar no meu ombro. Não sei como
encontrei forças para fazer tudo aquilo, e receio que o tenha
feito à toa, mas lá consegui arrastá-la pelo barranco até
debaixo da ponte. Não a podia levar mais longe, porque o arco
era baixo demais e só deixava espaço para rastejar. De modo
que tivemos de parar ali - a mãe quase toda a descoberto, e
ambos ao alcance de voz da estalagem.

CAPÍTULO V


A morte do cego


De certa maneira, a minha curiosidade era mais forte que o
medo, porque não consegui ficar onde estava e trepei de novo à
ribanceira, de onde, escondendo a cabeça atrás de uma giesta,
podia observar a estrada mesmo defronte da nossa porta. Mal
tinha tomado posição quando os meus inimigos começaram a
chegar, sete ou oito, com passos desencontrados, pela estrada,
precedidos pelo da lanterna. Três deles corriam juntos, de
mãos dadas, e distingui, mesmo com a névoa, que o do meio era
o pedinte cego. Logo a seguir, a voz dele mostrou-me que
acertara.
- Arrombem a porta! - gritou.
- Sim, senhor! - responderam dois ou três; e convergiram
para a Almirante Benbow, com o da lanterna atrás; a seguir
vi-os parar e as conversas diminuíram de tom, como se fossem
colhidos de surpresa por encontrarem a porta aberta. Mas a
pausa foi breve, pois o cego deu de novo as suas ordens. A voz
parecia mais forte e aguda, como se ardesse de impaciência e
raiva.
- Para dentro, entrem, entrem! - gritou, praguejando pela
demora. Quatro ou cinco obedeceram logo, ficando dois na
estrada com o impressionante mendigo. Houve nova pausa,
seguida dum grito de surpresa, e a seguir outro grito lá
dentro:
- O Bill está morto!
Mas o cego praguejou de novo contra a demora deles.
- Revistem-no, seus cabras, e o resto vai lá acima buscar a
arca - bradou.
Pude ouvir o barulho na escada, que deve ter feito abanar a
casa. Logo a seguir, novas demonstrações de espanto; a janela
do quarto do capitão abriu-se com estrondo e com estilhaçar de
vidros, e ao luar debruçou-se um homem, cabeça e ombros, que
se dirigiu ao mendigo cego na estrada.
- Pew! - exclamou -, já cá vieram antes de nós. Alguém virou
a arca do avesso.
- Está lá aquilo? - rugiu Pew.
- O dinheiro está.


28


O cego rogou pragas ao dinheiro.
- O que eu quero é o papel do Flint - gritou.
- Aqui não está - respondeu o outro.
- Vocês aí em baixo, já viram no Bill?
A esta pergunta, outro homem, decerto o que ficara a
revistar em baixo o corpo do capitão, veio à porta responder.
- O Bill já foi revistado - disse -, não tem nada.
- É essa gente da estalagem, foi aquele rapaz. E não lhe ter
eu arrancado os olhos! - exclamou o cego Pew. - Ainda há pouco
aqui estavam... tinham a porta trancada quando cheguei.
Espalhem-se, rapazes, e apanhem-nos.
- Por isso, deixaram aqui a candeia - acrescentou o da
janela.
- Espalhem-se e encontrem-nos! Deitem a casa abaixo! -
continuou Pew, batendo a bengala.
Então seguiu-se um fragor por toda a nossa velha pensão, com
correrias de pés, mobílias reviradas, portas arrombadas, cujo
eco chegava à própria penedia, até que os homens saíram, um
por um, para a estrada, concluindo que havíamos desaparecido.
Nesse momento o mesmo assobio que nos tinha assustado quando
contávamos o dinheiro do falecido capitão ouviu-se mais
claramente na noite, mas desta vez repetido em dois toques.
Pensara eu que devia ser a chamada do cego, por assim dizer, a
convocar os seus homens para o assalto, mas via agora que era
um sinal na encosta do lado do povoado e, pelo efeito que
provocou nos piratas, um sinal de aviso de perigo próximo.
- Aí está outra vez o Dirk - disse um. - Duas vezes: Temos
de nos safar, malta.
- Qual safar, seu bruto! - berrou Pew. - O Dirk foi sempre
tolo e cobarde, não Lhe liguem. Eles devem andar por aí, não
podem estar longe, vocês conseguem. Espalhem-se e busquem os
cachorros. Oh., vida minha - bradou -, tivesse eu uns olhos!
Pareceu dar algum resultado este último apelo, pois um par
de homens começou a procurar entre os destroços, embora com
pouco ânimo, pensei, com metade da atenção para os riscos que
corriam, enquanto os restantes ficavam na estrada,
irresolutos.
- Vocês com milhares à mão, palermas, e deixam-se ficar! Uma
fortuna de reis para quem a encontrar, vocês sabem que está
por aí, e ficam aí de mãos a abanar. Ninguém se atreveu a
fazer frente ao Bill, mas eu sim - um cego! E perco eu a minha
chance convosco! Tenho de ficar pobre de pedir, a mendigar uma
gota de rum, quando bem podia andar de carruagem! Se ao menos
tivessem a genica dum escaravelho, ainda os podiam caçar.


29


- Diabo, Pew, já cá temos os dobrões! - resmungou um deles.
- Devem ter escondido a maldita coisa - disse outro. -
Agarra mas é no dinheiro e deixa-te de arrelias.
Arrelias era o termo, a ira de Pew cresceu a tal ponto e com
tais argumentos que, por fim, totalmente dominado pela paixão,
bateu a torto e a direito e, apesar da cegueira, a bengala
atingiu os costados de vários deles com um som cavo.
Por seu turno, os atingidos insultavam o cego, ameaçando-o
com palavrões incríveis e tentando em vão tirar-lhe a bengala.
Aquela zaragata foi a nossa salvação, pois enquanto ainda
estava bem acesa, outro som veio do alto do monte, para o lado
da aldeia - o tropel de cavalos a galope. Quase ao mesmo
tempo, o estouro e o relâmpago dum tiro de pistola partiu do
lado das sebes.
Era evidente tratar-se do último sinal de perigo, que levou
os piratas a voltarem-se e a fugir em todas as direcções, uns
pela praia, outros pelo monte acima, de modo que em meio
minuto todos tinham desaparecido menos Pew. Tinham-no
abandonado, não sei se por puro pânico ou por vingança pelas
imprecações e bengaladas dele; mas ali ficou só, a tactear a
estrada num frenesi, cambaleante, chamando pelos companheiros.
Por fim virou-se na direcção errada e correu para além do
sítio onde eu estava, direito ao povoado, a gritar:
- Johnny, Cão Negro, Dirk - e ainda outros -, não deixem o
velho Pew só, rapazes, não o velho Pew!
Nessa altura, o ruído dos cavalos chegou ao máximo, e quatro
ou cinco cavaleiros apareceram ao luar e deslizaram pela
vertente abaixo a todo o galope.
Pew percebeu o seu engano, voltou-se com um grito e correu a
direito para a valeta, onde caiu. Mas num segundo se pôs de pé
e deu outra corrida, desta vez totalmente desnorteada, direito
ao primeiro dos cavalos.
O cavaleiro tentou desviar-se, mas em vão. Pew caiu com um
grito lancinante que rasgou a noite, e os cascos do animal
atingiram-no e espezinharam-no sem interromper a corrida. Caiu
de lado, depois abateu-se lentamente de bruços e ficou imóvel.
Saltei e chamei os cavaleiros. Mas já estavam todos a parar,
impressionados com o desastre, e logo pude ver quem eram; o
que seguia em último lugar era o rapaz que tinha ido da aldeia
a casa do doutor Livesey, o resto eram guardas fiscais que
encontrara no caminho e com que tinha tido a inteligência de
regressar logo. As notícias da presença do lugre na Toca do
Gato tinham chegado ao conhecimento do superintendente Dance e
feito com que nessa noite ele viesse para os nossos lados,


30 31


e foi a isso que a minha mãe e eu ficámos a dever o termos
escapado à morte.
Pew estava morto e bem morto. Quanto à minha mãe, depressa
recuperou os sentidos com água fria e sais depois de a
transportarmos para a aldeia, e o terror pelo qual passara não
foi tão forte que a fizesse esquecer de continuar a
lamentar-se pelo resto do dinheiro.
Enquanto isso, o superintendente cavalgou o mais rápido que
podia para a Toca do Gato, mas os seus homens tiveram de
desmontar e seguir pelo vale às apalpadelas, à frente dos
cavalos e por vezes tendo de os ajudar, num temor constante de
encontrar emboscadas, de modo que não foi motivo de surpresa
termos chegado à Toca e ver o lugre já largado, embora ainda
próximo. O oficial chamou para o barco. Uma voz respondeu
avisando-o para sair do luar se não queria apanhar chumbo, e
ao mesmo tempo uma bala assobiou-lhe junto ao braço. Logo
depois o lugre passou para lá do cabo e desapareceu. O senhor
Dance ficou por ali, dizendo que se sentia como peixe fora de
água,, e nada mais pôde fazer do que mandar um homem a B...
para avisar o barco-vedeta. - Mas isso - acrescentou - bem
pouca coisa é. Safaram-se, e acabou-se. Masconcluiu - ainda
bem que liquidei o mestre Pew - pois nessa altura já tinha
sabido a minha história.
Voltei com ele à Almirante Benbow", e não se pode imaginar
uma casa num tal estado de destruição, o próprio relógio não
escapara à fúria destruidora deles ao procurarem-nos, e embora
não tivessem tirado nada a não ser o saco das moedas do
capitão e o dinheiro do balcão, logo reconheci que estávamos
arruinados. O senhor Dance não conseguiu entender o que se
passara.
- Levaram o dinheiro, dizes tu? Bem, Hawkins, então de que
fortuna andavam eles atrás? Mais dinheiro, suponho?
- Não, senhor, creio que não era do dinheiro - respondi. -
Por acaso, senhor, parece que queriam o que eu tenho aqui no
bolso e, para lhe falar verdade, precisava de pôr isto a
salvo.
- Claro, rapaz, de acordo - disse ele. - Se quiseres, eu
guardo-o.
- Tinha pensado que o doutor Livesey, talvez... - comecei..
- Pronto, está bem - interrompeu, com ânimo -, acho muito
bem, é um cavalheiro e magistrado. E pensando melhor, posso lá
ir relatar o sucedido a ele ou ao morgado. Com o Pew morto, e
o caso arrumado... não é que eu sinta pena, mas ele foi morto,
sabes, e as pessoas relacionam logo o caso com um oficial do
fisco de sua majestade, se é que podem relacionar. Bom,
Hawkins, então se quiseres, levo-te comigo.
Agradeci-lhe com sinceridade, e voltámos a pé ao povoado
onde tinham ficado os cavalos. Quando tinha contado à minha
mãe o que ia fazer já todos estavam montados.
- Dogger - chamou o senhor Dance -, tens um bom cavalo, leva
este moço contigo.
Logo que montei, agarrado ao cinturão de Dogger, o
superintendente deu a partida e o grupo largou a trote largo
para casa do doutor Livesey.

CAPÍTULO VI


Os papéis do capitão


Todo o caminho cavalgámos depressa, até pararmos à porta
do doutor Livesey. A frente da casa estava às escuras.
O senhor Dance disse-me para me apear e tocar à porta, e
Dogger deu-me um estribo para descer. A criada veio abrir
quase logo.
- O doutor Livesey está? - perguntei.
- Não - disse ela. O médico tinha ido a casa de tarde, mas
saíra para jantar e passar o serão com o morgado no solar.
- Então vamos lá, rapazes - declarou o senhor Dance.
Dessa vez não montei porque a distância era pequena,
correndo em vez disso, a par da correia do estribo de Dogger,
até aos portões da propriedade, e pela longa avenida de
árvores despidas, ao luar, até onde se erguia o solar
debruçado, nas suas linhas brancas, sobre a extensão dos
velhos jardins. Ali desmontou o senhor Dance e, levando-me com
ele, foi rapidamente recebido.
Um criado conduziu-nos por um corredor atapetado até uma
grande biblioteca, toda forrada de estantes encimadas por
bustos e onde, de cachimbo na mão, estavam o morgado e o
doutor Livesey sentados de cada lado do fogão aceso.
Nunca tinha visto o morgado tão de perto. Era alto, com mais
de um metro e oitenta, bastante largo, de rosto franco e
expressivo, tornado áspero e avermelhado, marcado pelas longas
viagens. Tinha as sobrancelhas muito negras, que ao moverem-se
com vivacidade lhe davam um ar de ter algum génio, não mau,
mas antes rápido e animado.
- Entre, senhor Dance - disse, muito fidalgo e
condescendente.
- Boa tarde, Dance - acenou o médico. - E também para ti,
amigo Jim. Que bons ventos vos trazem cá?
O superintendente, em posição de sentido, narrou a sua
história como uma lição. E valia a pena ver os dois
cavalheiros inclinados para a frente a olhar um para o outro,
esquecendo-se de fumar tal era a sua surpresa e interesse. Ao
ouvirem como a minha mãe tinha voltado à hospedaria, o doutor
Livesey deu uma palmada na perna, e o morgado exclamou
"Bravo!", e partiu o cachimbo contra a grelha do fogão. Muito
antes de terminar o relato, o senhor Trelawney (lembrar-se-ão
que era esse o nome do morgado) tinha-se levantado e
passeava-se pela sala, enquanto o médico, como se para melhor
ouvir, tirara a cabeleira empoada e ficara sentado, parecendo
muito estranho com o seu cabelo natural, negro e curto.
Por fim, o senhor Dance terminou a narrativa.
- Senhor Dance - afirmou o morgado -, o senhor é um homem a
sério. E quanto a ter atropelado aquele meliante danado,
considero que foi uma boa acção, como a de calcar uma barata.
E então aqui este moço Hawkins é um ás, pelo que vejo.
Hawkins, faz favor tocas essa campainha? O senhor Dance tem de
beber uma cerveja.
- E então, Jim - disse o médico -, sempre és tu que tens o
que eles procuravam?
- Está aqui, senhor - respondi, dando-Lhe o embrulho de
oleado.
O médico virou-o de todos os lados, como se ansioso por o
abrir mas, em vez disso, meteu-o calmamente no bolso do
casaco.
- Morgado - adiantou -, quando o Dance beber a cerveja vai
ter, claro, de voltar ao serviço de sua majestade, mas eu
queria que o Jim Hawkins ficasse cá e depois fosse dormir a
minha casa, e se me dá licença podíamos mandar vir o empadão
frio e deixá-lo cear aqui.
- À vontade, Livesey - respondeu o morgado -, o Hawkins tem
direito a melhor do que empadão frio.
E assim me trouxeram uma grande empada de pombo que foi
posta numa mesinha, onde comi uma ceia valente, pois tinha
mais fome que um falcão, enquanto o senhor Dance, tendo
recebido os últimos elogios, por fim se retirou.
- E agora, morgado? - suspirou o médico.
- E agora, Livesey? - disse o morgado, em uníssono.
- Um de cada vez, um de cada vez - acrescentou o doutor
Livesey a rir. - Creio que ouviu falar do tal Flint?
- Se ouvi! - exclamou o morgado. - Diz você se ouvi falar
dele! Foi o pirata mais sanguinário de todos os tempos. À
vista de Flint, o Barba Negra era uma criança. Os espanhóis
tinham tanto medo dele que, digo-lhe, às vezes cheguei a
sentir orgulho de ser inglês. Vi com os meus olhos as velas
dele, muito ao longe, ao largo da Trinidad, e o comandante do
navio onde eu ia, o borrachola cobarde, fugiu logo, fugiu,
senhor, para o porto de Espanha.
- Bom, também eu ouvi falar dele aqui na Inglaterra - disse
o médico. - Mas a questão é... tinha ele fortuna?
- Fortuna! - exclamou o morgado. - Não soube da história?

34


Que procuravam esses bandidos a não ser dinheiro? Que mais
Lhes importava senão dinheiro? Em que arriscavam o coiro se
não fosse por dinheiro?
- Isso havemos de saber em breve - respondeu o médico. - Mas
o meu amigo está tão acalorado e excitado que nem me dá tempo
de falar. O que eu quero saber é isto: suponhamos que tenho
aqui no bolso qualquer pista do sítio onde o Flint escondeu o
seu tesouro, será tal tesouro muito grande?
- Grande, senhor! - exclamou de novo o anfitrião. - Será
grande a este ponto: se você tem a pista que diz, eu aparelho
um navio no porto de Bristol, levo-o a si e aqui ao Hawkins
comigo, e hei-de ter esse tesouro nem que leve um ano a
procurá-lo.
- Muito bem - concluiu o médico. - Ora então, se o Jim
estiver de acordo, vamos abrir o embrulho - e pousou-o na mesa
à sua frente.
O pacote estava cosido, e o médico teve de ir buscar a sua
caixa de instrumentos e cortar os pontos com a tesoura
cirúrgica. Continha duas coisas - um livro e um papel lacrado.
- Primeiro vamos ao livro - observou o médico.
Enquanto ele o abria, o morgado e eu espreitávamos um de
cada lado, pois o doutor Livesey tivera a atenção de me chamar
da mesinha onde comera para participar do entusiasmo da busca.
Na primeira página só havia umas garatujas, como se fossem
feitas por uma pessoa só para se divertir ou se treinar com a
pena na mão. Uma era a mesma que a marca tatuada, Ao gosto de
Billy Bones, a seguir havia "senhor W Bones, imediato",
"Acabou-se o rum, Apanhou-o ao largo de Palm Key", e mais
alguns rabiscos, a maior parte palavras isoladas e
ininteligíveis. Não pude deixar de imaginar quem seria que
tinha apanhado, e o que era o o que tinha apanhado. Talvez até
uma faca nas costas.
- Não tem coisa que se entenda - disse o doutor Livesey,
passando adiante.
As dez ou doze páginas a seguir eram preenchidas com uma
curiosa série de notas. No princípio da linha havia uma data e
no fim uma quantia de dinheiro, como nos livros de contas
vulgares; mas em vez de entradas escritas, entre as duas só se
via uma série de cruzes em número variável. Por exemplo, no
dia 12 de Junho de 1745, a quantia de setenta libras era
claramente lançada a débito de alguém, e apenas havia seis
cruzes para explicar o motivo. Em alguns casos era certo que
se tinha acrescentado o nome dum local, como Ao largo de
Caracas, ou só uma indicação de latitude e longitude, como "62
g. 17 min. 20 seg., 19. g. 2 min. 40 seg.".


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O registo desdobrava-se através de perto de vinte anos, com
o valor das diversas verbas a crescer com o decorrer do tempo,
e no fim tinha sido calculado um total geral, após cinco ou
seis somas erradas, com as palavras "Bones sua parte".
- Não consigo deslindar isto - disse o doutor Livesey.
- A coisa é clara como o dia - atalhou o morgado. - Isto é o
livro de contas daquele cachorro cruel. Essas cruzes são os
navios ou cidades que eles meteram ao fundo ou saquearam. Os
valores são a parte do malandro, e sempre que podia haver
alguma dúvida, veja que ele acrescentava qualquer coisa mais
clara. Ao largo de Caracas, deve ser qualquer barco infeliz
abordado naquelas paragens. Deus tenha em paz as almas dessa
tripulação, feitas em coral há muito.
- Certo! - disse o médico. - É o que faz ser viajante.
Certo! E as verbas vão aumentando, como vê, ao passo que ele
subia de posto.
Pouco mais havia no livro excepto algumas coordenadas de
lugares anotadas nas folhas em branco mais para o fim, e uma
tabela para reduzir dinheiro francês, inglês e espanhol a um
câmbio comum.
- O manhoso! - exclamou o médico. - Não era pessoa que se
deixasse vigarizar.
- E agora - disse o morgado -, vamos ao outro.
O papel fora lacrado em diversos sítios com um dedal a
servir de sinete, o próprio dedal, quem sabe, que eu
encontrara no bolso do capitão. O médico abriu os lacres com
todo o cuidado e revelou o mapa duma ilha, com a latitude e
longitude, as indicações dos fundos, nomes de montes, baías e
enseadas, e todos os pormenores necessários para levar um
navio a bom porto naquelas praias. Tinha cerca de quinze
quilómetros de comprido por oito de largura e o feitio podia,
talvez, lembrar um dragão gordo, em pé, e com dois bons portos
abrigados pela terra e uma montanha na parte central
assinalada com o nome de O Óculo. Havia diversos apontamentos
de data posterior mas, principalmente, três cruzes traçadas a
vermelho - duas na parte norte da ilha, uma no sudoeste e, ao
lado desta última, escritas com a mesma tinta vermelha, em
letra miúda e firme, muito diferente das letras tremidas do
capitão, estas palavras: "O grosso do tesouro aqui."
No verso do mapa, a mesma pessoa tinha escrito as seguintes
indicações:


"Árvore alta, quebrada do óculo, enfiada um ponto a N. de N.
N. E.


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Ilha do Esqueleto E. S. E. e uma quarta por E.
Dez pés.
Prata em barras no esconderijo norte; encontra-se na
direcção do cabeço leste, dez braças a sul da pedra negra com
a cara.
Fácil encontrar as armas na duna, ponta N. do cabo da angra
norte, para E. e uma quarta N.

J. F."


Era tudo, mas, embora tão breve e, para mim,
incompreensível, encheu o morgado e o doutor Livesey de
contentamento.
- Livesey - declarou o morgado -, você despede-se já da sua
prática que não vale nada. Amanhã parto para Bristol. Dentro
de três semanas - três semanas!... duas semanas... dez dias -
teremos o melhor navio, senhor, e a mais capaz tripulação de
toda a Inglaterra. O Hawkins vem como grumete. E vais ser um
estupendo grumete, Hawkins. Livesey é médico de bordo e eu sou
almirante. Contamos com o Redruth, o Joyce e o Hunter. Vamos
ter vento a favor e uma viagem rápida, sem nenhum problema
para dar com o local, e dinheiro para comer - para nos
rebolarmos nele -, para gozar durante toda a vida.
- Trelawney - observou o médico -, vou consigo, com a melhor
das vontades, e o Jim também, e darei à empresa todo o
esforço. Só há um homem que me mete medo.
- Mas quem é? - exclamou o morgado. - Diga-me quem é o
malandrim!
- É o senhor - replicou o médico -, que não consegue ter
tento na língua. Não somos só nós que sabemos deste papel.
Aqueles que atacaram a estalagem hoje - por certo cruéis e
desesperados - e o resto que ficou no lugre, e ainda mais,
atrevo-me a dizer, que não andam por longe, estão todos
resolvidos a fazer tudo por tudo para deitar a mão a esse
dinheiro. Nenhum de nós pode ficar sozinho até ir para o mar.
Até lá o Jim e eu ficamos juntos, leve o Joyce e o Hunter
consigo para Bristol e, do primeiro ao último, que nenhum de
nós sopre uma só palavra daquilo que descobrimos.
- Livesey - tornou o morgado -, você tem sempre razão. Vou
ser mudo como um túmulo.

Segunda Parte


O cozinheiro de bordo


CAPÍTULO VII


Vou para Bristol


Levou mais tempo do que o morgado pensara antes de
estarmos prontos para ir para o mar, e nenhum dos nossos
primeiros planos - nem sequer o do doutor Livesey me conservar
junto dele - pôde ser levado a cabo como pretendíamos. O
médico teve de ir a Londres tratar de arranjar um clínico que
tomasse conta dos seus clientes, o morgado atarefava-se em
Bristol, e eu fiquei a viver no solar ao cuidado do velho
canteiro Redruth, quase como prisioneiro, mas cheio de sonhos
do oceano e das mais risonhas fantasias de ilhas e aventuras
estranhas. Ficava absorto horas a fio às voltas com o mapa, do
qual recordava bem todos os pormenores. Sentado à lareira no
quarto do mordomo, o meu espírito chegava àquela ilha por
todas as direcções possíveis, explorava-lhe todos os recantos,
subia mil vezes àquele monte chamado o óculo e lá de cima
gozava as mais maravilhosas e cambiantes perspectivas. Por
vezes, a ilha estava apinhada de selvagens, com quem
lutávamos, outras, de animais perigosos que nos perseguiam,
mas em todas aquelas fantasias nada me sucedeu que fosse tão
estranho e trágico como as aventuras que havíamos de viver.
Assim se escoaram as semanas, até que um belo dia chegou uma
carta endereçada ao doutor Livesey, com a anotação "Para ser
aberta, se estiver ausente, por Tom Redruth ou pelo jovem
Hawkins". Seguindo tais instruções, encontrámos, ou melhor,
encontrei eu, pois o couteiro pouca coisa sabia ler a não ser
letra impressa, as seguintes novas importantes:
"Estalagem Velha Âncora, Bristol, 1 de Março de 17... Caro
Livesey, como não sei se está no solar ou ainda em Londres,
mando-lhe uma via desta para os dois locais.
O navio está comprado e aparelhado. Está fundeado, pronto
para o mar alto.
Não imagina uma escuna mais jeitosa do que esta - uma
criança podia manobrá-la -, de duzentas toneladas, chama-se
Hispaniola.
Obtive-a por intermédio do meu velho amigo Blandly, que em
tudo provou ser um ás de primeira ordem.


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Este sujeito admirável, praticamente, rendeu-se aos meus
interesses e o mesmo, posso dizer, sucedeu com toda a gente de
Bristol, logo que perceberam qual era o nosso porto de
destino, quer dizer, tesouro..."
- Redruth - observei, interrompendo a leitura -, o doutor
Livesey não vai gostar disto. No fim de contas, o morgado
andou a falar.
- E daí, não está no seu direito? - resmungou o couteiro. -
Era o que faltava, se o morgado tivesse de se calar por causa
do doutor, ora essa.
Contra isto desisti de tentar mais conversa, e continuei a
ler:
"Foi o Blandly quem descobriu a Hispaniola, e com
extraordinária perícia comercial a comprou por uma pechincha.
Há gente em Bristol cheia de preconceitos monstruosos contra
Blandly. Vão ao ponto de afirmar que tão honesta pessoa é
capaz de tudo por dinheiro, que o navio lhe pertencia, e que
mo vendeu por uma fortuna absurda - calúnias mais que
evidentes. Ninguém se atreve, contudo, a desdizer os méritos
do barco.
Até agora não houve problemas. Certo é que os
operáriosaprestadores e os mais - foram de uma lentidão
aflitiva, mas o tempo curou esse mal. Foi a equipagem que me
deu mais preocupações.
Pretendia uma vintena de homens - para o caso de termos de
enfrentar nativos, piratas, ou os malditos franceses -, e
passei por uns trabalhos do diabo para conseguir achar uma
meia dúzia, até que uma sorte espantosa me trouxe exactamente
o homem de que precisava.
Por puro acaso, estava eu na doca quando cheguei à fala com
ele. Fiquei a saber que se trata dum velho homem do mar, que
tem uma casa de hóspedes, conhece todos os marítimos de
Bristol, perdeu a saúde em terra, e queria um bom lugar de
cozinheiro para regressar ao mar. Contou-me que andava por ali
a dar uma volta matinal, para respirar o ar da maré.
Comoveu-me tanto - o mesmo lhe sucederia a si - que, cheio
de pena dele, ali mesmo o engajei como cozinheiro de bordo.
Chama-se Long John Silver, e perdeu uma das pernas, mas
considerei isso como recomendação, pois perdeu-a ao serviço do
seu país, às ordens do imortal Hawke. Não tem nenhuma pensão,
Livesey. Veja que época abominável esta!
Bem, amigo, pensei ter achado só um cozinheiro, mas o que
descobri foi uma equipagem. Com a colaboração de Silver,
arranjámos os dois em poucos dias uma tripulação dos marujos
mais valentes que se possa imaginar - não têm carinhas bonitas
para se ver, mas têm todos um ar da mais decidida coragem.
Digo-lhe que podíamos fazer frente a uma fragata.


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O Long John até despediu dois dos seis ou sete que eu já
tinha contratado. Num instante me demonstrou que eles eram uns
esfregões de água doce que tínhamos de evitar num
empreendimento de vulto.
Estou com uma saúde e disposição magníficas, como nem um
touro, durmo como um cepo, mas não vou gozar um só momento
antes de ouvir os meus velhos toldos a panejar em redor do
molinete. Pró mar alto! Ao diabo o tesouro! E a glória do
oceano que me deu volta ao juízo. E agora, Livesey, venha já,
não perca uma hora, se é meu amigo.
Deixe o Hawkins ir já ver a mãe, à guarda de Redruth, e a
seguir venham ambos depressa para Bristol.

John Trelawney


P S. - Ainda não lhe disse que Blandly, que a propósito
mandará outro barco à nossa procura se não aparecermos até ao
fim de Agosto, tinha encontrado um excelente parceiro para
comandar o nosso navio - é um homem emproado, o que lamento,
mas em tudo o mais é precioso. O Long John Silver desenterrou
um imediato muito competente, chamado Arrow. E temos um
contramestre tocador de gaita de foles, Livesey, de modo que a
bordo do Hispaniola as coisas vão-se passar como num barco de
guerra.
Esqueci-me de lhe dizer que o Silver é homem de posses,
tenho informações de que possui uma conta bancária, a qual
nunca teve saldo negativo. Deixa a mulher para tratar da
pensão e como ela é de cor, pode-se desculpar aos solteirões
que nós somos o calcular que é a mulher, tanto quanto a saúde,
que o faz voltar-se para a vida errante.

J. T.


P P S. - Deixe o Hawkins passar uma noite com a mãe dele.


J. T."


Bem podem calcular o estado de excitação em que esta carta
me deixou. Meio fora de mim de entusiasmo, se alguma vez
desprezei uma pessoa foi o velho Tom Redruth, que nada fazia
senão resmungar e lamentar-se. Qualquer um dos seus
subordinados teria de bom grado trocado de lugar com ele,


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mas tal não eram os desejos do morgado, e tais desejos eram a
lei para todos eles. Entre todos, só o velho Redruth era capaz
de se atrever a rezingar.
Na manhã seguinte dirigimo-nos a pé à Almirante Benbow, onde
encontrei a minha mãe de boa saúde e disposição. O capitão,
que tanto tempo fora motivo de tanto incómodo, partira para
onde os piores deixam de causar transtorno. O morgado tinha
mandado reparar toda a casa, pintar as salas e a tabuleta, e
acrescentara alguma mobília - principalmente um lindo cadeirão
para a minha mãe se sentar na taberna. Também lhe tinha
arranjado um rapaz como praticante, de modo a não lhe faltar
ajuda durante a minha ausência.
Foi ao ver esse rapaz que, pela primeira vez, entendi a
minha situação. Até essa altura tinha pensado nas aventuras
que se me deparavam, e nunca no lar que estava a ponto de
deixar, e agora, à vista daquele estranho desajeitado, que me
ia substituir ao lado da minha mãe, tive o meu primeiro ataque
de choro. Receio ter dado àquele moço uma vida de cão pois,
como era novo no serviço, logo encontrei inúmeras ocasiões
para o corrigir e o deixar ficar mal, ocasiões que bem
depressa aproveitei.
Passou a noite, e no dia seguinte, depois do jantar, o
Redruth e eu metemo-nos de novo à estrada. Despedi-me da mãe e
da enseada onde tinha vivido desde que nascera, assim como do
velho e querido Almirante Benbow, talvez menos amado depois de
pintado de fresco. Uma das minhas últimas lembranças foi a do
capitão, que tantas vezes percorrera a praia com o chapéu
inclinado, a cicatriz na cara, o velho óculo de latão. Logo a
seguir tínhamos feito a curva, e o lar desaparecera.
A mala-posta apanhou-nos ao crepúsculo na Royal George,, na
charneca. Fiquei espremido entre o Redruth e um velhote rijo
e, apesar do andamento rápido e do ar frio da noite, devo ter
dormitado bastante logo desde o princípio, e depois dormido
pesadamente por montes e vales, paragem após paragem, pois
quando por fim me acordaram, foi com um encontrão nas
costelas, e ao abrir os olhos dei connosco parados em frente a
um grande prédio numa rua da cidade, com o dia já nascido
havia muito.
- Onde estamos? - perguntei.
- Bristol - disse o Tom. - Desce.
O senhor Trelawney tinha ido morar para uma pensão junto ao
porto, para vigiar as obras da escuna. De onde estávamos
tivemos de seguir a pé e, com grande prazer meu, o caminho
seguia ao longo dos cais e ao lado de um sem-número de navios
de todos os tamanhos, aparelhos e bandeiras. Num, os
marinheiros cantavam ocupados no trabalho, noutro, havia
homens no ar, muito acima da minha cabeça, suspensos de fios
que não pareciam mais grossos que teias de aranha. Embora
sempre tivesse vivido à beira-mar, parecia-me nunca ter estado
tão perto dele até então. Aquele cheiro de alcatrão e sal era
novidade. Avistei as mais maravilhosas figuras de proa que
tinham, todas, atravessado os mares. Além disso, vi muitos
velhos homens do mar, de argolas nas orelhas, suíças
encaracoladas e tranças ensebadas, com o andar cambaleante e
desajeitado de todos os embarcadiços; não podia ficar mais
encantado se me fosse dado admirar outros tantos reis ou
arcebispos.
E eu próprio ia para o mar, para o mar numa escuna, com um
contramestre tocador de gaita e marinheiros que usavam trança
e cantavam, para o mar, com destino a uma ilha desconhecida, e
à procura de tesouros enterrados.
Ainda este sonho me encantava quando chegámos de chofre a
uma grande estalagem, e nos encontrámos com o Morgado
Trelawney, todo fardado de oficial da marinha, dum azul
imponente, que saía ao nosso encontro com um grande sorriso e
a imitação impecável do andar dum marinheiro.
- Cá estão vocês! - exclamou. - E o doutor chegou de Londres
ontem à noite. Bravo! A campanha está completa.
- Oh, senhor - atalhei -, e quando é que partimos?
- Partir! - ecoou ele. - Pois é amanhã que partimos.

CAPÍTULO VIII


Na casa do Óculo


A seguir ao meu pequeno-almoço, o morgado deu-me um
recado dirigido a John Silver, na casa do Óculo", dizendo-me
que era fácil encontrá-la seguindo ao longo dos cais e
procurando com atenção uma pequena taberna que tinha por
tabuleta um grande óculo de latão. Pus-me a caminho, cheio de
alegria por mais aquela ocasião de ver mais navios e
marinheiros, e segui por entre uma enorme multidão de gente,
carros e fardos, na hora mais movimentada do porto, até
encontrar a tal taberna.
Era um local de divertimento, pequeno mas bastante garrido.
A tabuleta fora recentemente pintada, as janelas tinham
cortinas vermelhas e bastante limpas, o soalho bem esfregado
com areia. Estava no meio de duas ruas com uma porta de cada
lado, o que dava claridade à sala grande e baixa, apesar dos
rolos de fumo de tabaco.
A maior parte dos clientes eram homens do mar, e falavam tão
alto que me deixei ficar à porta, quase com medo de entrar.
Enquanto ali estava vi um homem sair de uma sala ao lado, e
logo fiquei certo de que se tratava de Long John. A perna
esquerda fora-lhe cortada rente à anca, e segurava sob o ombro
esquerdo uma muleta que movia com espantosa destreza,
saltitando sobre ela como um pássaro. Era muito alto e forte,
com uma cara tão grande como um presunto - normal e pálida,
mas expressiva e sorridente. Parecia, na verdade, muito
bem-disposto, assobiando ao deslocar-se por entre as mesas,
com um dito alegre ou uma palmada nas costas aos mais
favorecidos dos seus fregueses.
Para falar verdade, devo confessar que, desde a primeira vez
que vira o nome de Long John na carta do Morgado Trelawney,
tinha receado que ele viesse a ser o próprio marinheiro duma
perna só que eu tanto tempo esperara ver na velha Benbow". Mas
bastou-me um olhar para aquele homem que agora estava à minha
frente. Já tinha visto o capitão, o Cão Negro e o cego Pew,
portanto pensei que sabia como era um pirata - alguém muito
diferente, na minha ideia, daquele dono da casa limpo e
bonacheirão.
De imediato recuperei coragem, entrei, e avancei direito ao
homem que, arrimado à muleta, conversava com um cliente.
- É o senhor Silver, senhor? - perguntei, estendendo o
recado.
- Sim, meu rapaz - respondeu -, exacto, é o meu nome. E quem
é vocemecê? - E ao olhar para a nota do morgado quase me
pareceu que tinha estremecido.
- Oh! - continuou, em voz bem alta, e de mão estendida - Bem
vejo. És o nosso novo grumete, muito prazer em conhecer-te.
E a mão grande e firme apertou a minha.
Naquele momento, um dos clientes do lado de lá da sala
levantou-se bruscamente e dirigiu-se à porta. Como estava
próxima, num instante ele se pôs na rua. Mas aquela pressa
chamou-me a atenção e tive tempo de o reconhecer. Era o homem
de cara de sebo, sem dois dedos, que primeiro tinha ido à
"Almirante Benbow".
- Oh - gritei -, apanhe-o! É o Cão Negro!
- Pouco me interessa quem é - exclamou Silver -, mas não
pagou a conta. Harry, corre e apanha-o.
Um dos outros que estava mais perto da porta saltou e correu
a persegui-lo.
- Mesmo se fosse o almirante Hawke tinha de pagar a conta -
afirmou Silver. Depois, soltando-me a mão, perguntou:
- Quem disseste tu que era? Negro quê?
- Cão Negro, senhor. O senhor Trelawney não Lhe contou dos
piratas? Era um deles.
- Ai sim? - rosnou Silver. - Na minha casa! Ben, vai a
correr ajudar o Harry. Então era um desses malandros, não era?
Eras tu que estavas a beber com ele, Morgan? Ora vem cá.
O homem a quem tratara por Morgan, um marinheiro velho e
grisalho, de rosto de mogno, avançou com ar receoso, a mascar
o seu tabaco.
- Ora, Morgan - começou Long John, muito enérgico -, nunca
tinhas visto esse Cão... Cão Negro até hoje, ou tinhas?
- Eu não, senhor - disse Morgan, com uma continência.
- Não sabias o nome dele, ou sabias?
- Não, senhor.
- Pelo Inferno, Tom Morgan, ainda bem para ti! - desabafou o
dono da casa. - Se andasses metido com essa ralé, garanto-te
que não tornavas a pôr os pés na minha casa. E que estava ele
a dizer-te?
- Não sei ao certo, senhor - respondeu Morgan.
- E chamas tu cabeça a essa maldita bola furada que tens nos
ombros? - gritou Long John. - Então não sabes ao certo, pois
não? Talvez saibas muito bem com quem falavas afinal, talvez?

46


Anda, que estava ele a contar, viagens, capitães, navios?
Despeja. Que é que era?
- Falámos de mergulho-à-quilha(1) - respondeu Morgan.
- Com que então, mergulho-à-quilha? Pois até vem muito a
propósito, e bem pode chegar a tua vez. Volta lá para o teu
reles lugar, Tom.
Enquanto Morgan lhe obedecia, Silver segredou-me em tom de
confidência, que achei muito lisonjeiro:
- O Tom Morgan é muito honesto, mas estúpido. E agora -
prosseguiu, novamente em voz alta -, vejamos, Cão Negro? Não,
eu cá não conheço tal nome. Mas penso que já... sim, já vi
esse porco. Costumava vir aqui com um mendigo cego,
costumava...
- Pode estar certo que vinha - assegurei. - Eu também
conheci esse cego. Chamava-se Pew.
- Isso - exclamou Silver, agora excitado. - Pew! Era mesmo o
nome dele. Ah, parecia um tubarão, parecia! Se caçarmos esse
tal Cão Negro agora, vai haver novidade para o capitão
Trelawney! O Ben corre bem, poucos marinheiros correm melhor
que ele. Deve de certeza deitar-lhe a mão, c'os diabos! Com
que então conversava do mergulho-à-quilha? Pois quem lhe dá o
mergulho sou eu!
Enquanto declamava estas frases, coxeava dum lado ao outro
da taberna agarrado à muleta, dava palmadas nas mesas e exibia
tal excitação que seria capaz de convencer um juiz do Criminal
ou um solicitador da Baixa. Todas as minhas suspeitas haviam
sido acordadas de novo ao encontrar o Cão Negro no "Óculo", e
observei o cozinheiro com toda a atenção. Mas era disfarçado,
rápido e esperto demais para mim, e na altura em que os dois
homens regressaram sem poderem respirar, confessando terem
perdido a pista no meio duma multidão, e depois de terem sido
repreendidos como dois ladrões, senti-me capaz de atestar a
inocência do Long John Silver.
- Ora vê lá tu, Hawkins - afirmou -, que diabo de coisa
havia de acontecer a um homem como eu, não é? E o capitão
Trelawney... que vai ele pensar? Aí está aquele maldito filho
de pirata sentado em minha casa, a beber-me do rum! Chegas tu
e pões-me tudo às claras, e aqui o deixo escapar das nossas
mãos completamente às cegas! Agora, Hawkins, vê lá se me fazes
justiça junto do capitão.


*1. Correctivo usado na disciplina marítima, que consistia
em lançar um homem à água e ir pescá-lo na amurada oposta, com
o navio em movimento, claro. (N. do T.)


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Claro que és ainda um rapaz, mas és fino como tinta. Vi logo
quando cá entraste. Ora aqui está que podia eu fazer preso a
este pau velho? No tempo em que era oficial de marinha
graduado havia de o atracar, de lhe deitar a mão e de o
estrancinhar com um par de safanões, era bem capaz disso, mas
agora...
De súbito, interrompeu-se e deixou cair os queixos como se
se lembrasse de qualquer coisa.
- A conta! - explodiu. - Três doses de rum! Ora, que o meu
convés rebente, se não me tinha esquecido da conta!
E, deixando-se cair num banco, pôs-se a rir até as lágrimas
lhe correrem pela cara. Não pude deixar de o acompanhar, e
rimos juntos, em gargalhadas incontidas, até a taberna ficar
outra vez cheia de barulho ensurdecedor.
- Ora mas que rico boi-marinho eu sou! - concluiu, limpando
o rosto. - Nós os dois vamo-nos dar bem, Hawkins, porque
aposto a minha lanterna que o meu posto devia ser moço de
convés.
Mas, vamos lá, agora, prontos para partir. Isto não nos
serve. O dever é o dever, malta. Vou buscar o meu velho chapéu
de plumas, e vou contigo ao capitão Trelawney para contar o
sucedido. Pois olha que é um caso sério, Hawkins, e nem tu nem
eu nos podemos gabar de o ter resolvido. Nem um nem outro,
dirás tu, foi esperto... nenhum dos dois esperto. Mas raios me
partam! Aquela da conta foi bem boa.
E começou de novo a rir, e com tanta gana que, embora não
visse a piada, tal como ele, fui outra vez obrigado a
juntar-me ao seu contentamento.
No breve percurso pelos cais tornou-se na mais cativante das
companhias, contando-me tudo sobre os navios por que íamos
passando, os aparelhos, a tonelagem e as bandeiras, e
explicando-me o decorrer do trabalho - um que descarregava,
outro que recebia carga, um terceiro pronto a largar, e a cada
momento contava-me qualquer pequena anedota de barcos ou
marinheiros, ou repetia uma expressão náutica até eu a ter
aprendido na perfeição.
Comecei a entender que estava ali um dos melhores de todos
os possíveis companheiros de bordo.
Chegados à estalagem, o morgado e o doutor Livesey estavam
sentados, a acabar um quarto de cerveja antes de se dirigirem
a bordo da escuna numa visita de inspecção.
Long John narrou o sucedido do princípio ao fim, com grande
ânimo e todo o rigor da verdade. - Foi assim ou não foi,
Hawkins? - perguntava a cada passo, e pude sempre concordar
plenamente.


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Os dois cavalheiros lamentaram que o Cão Negro tivesse
escapado, mas todos concordámos que não havia nada a fazer e,
depois de ser felicitado, o Long John pegou na muleta e
partiu.
- O pessoal a bordo às quatro da tarde! - gritou-lhe ainda o
morgado.
- Muito bem, senhor! - respondeu-lhe o cozinheiro à saída.
- Bom, morgado - observou o doutor Livesey -, olhe que não
tenho grande fé nas suas descobertas, isto em geral, mas uma
coisa lhe digo... o John Silver é dos meus.
- Um verdadeiro trunfo - declarou o morgado.
- E agora - juntou o médico -, o Jim pode vir a bordo
connosco, não pode?
- Claro que sim - respondeu o morgado. - Pega no chapéu,
Hawkins, e vamos ver o barco.


CAPÍTULO IX


Pólvora e armas


O Hispaniola estava fundeado bastante longe, e passámos
sob as figuras de proa e à volta das popas de muitos outros
navios, cujas amarras por vezes roçavam o fundo do bote e
outras baloiçavam sobre nós. Por fim, abordámos o barco e, ao
subir, fomos recebidos e saudados pelo imediato, senhor Arrow,
um homem do mar velho e moreno, que usava brincos e tinha um
olho torto. Ele e o morgado eram muito dados e amigos, mas em
breve pude notar que não se passava o mesmo entre o senhor
Trelawney e o capitão.
Este último tinha um ar áspero, parecia contrariado com tudo
o que se passava a bordo, e cedo ficámos a saber porquê, pois
mal tínhamos descido ao camarote quando um marinheiro nos foi
dizer:
- O capitão Smollett, senhor, deseja falar-lhe.
- Estou sempre às ordens do comandante. Diz-lhe que entre -
respondeu o morgado.
O capitão, que vinha logo atrás do homem, entrou de seguida
e fechou a porta.
- Bem, senhor - começou o capitão -, acho que o melhor é
falar a direito, mesmo com o risco de o ofender. Não me agrada
este cruzeiro, não gosto da tripulação, e não gosto do meu
primeiro oficial. E pronto, quanto mais depressa menos magoa.
- Aliás, senhor, talvez não lhe agrade o navio? - interrogou
o morgado, muito zangado -, como pude ver.
- Quanto a isso não posso dizer, senhor, antes de o ensaiar
- foi a resposta. - Parece-me de boa construção, mais não
posso adiantar.
- E se calhar, senhor, também lhe desagrada quem lhe deu o
emprego? - continuou o morgado.
Aí o doutor Livesey interrompeu.
- Deixe estar - disse -, um momento. Não interessa fazer
essas perguntas que só causam má impressão. O comandante ou já
falou de mais ou ainda não disse nada, e o que eu tenho de
dizer é que peço explicações. O que o senhor disse foi que o
cruzeiro não lhe agradava. Então, porquê?
- Fui contratado, senhor, na base do que se chama instruções
secretas, para conduzir este barco por conta deste senhor,


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com o destino que ele dissesse - prosseguiu o capitão. - Até
aí tudo bem. Mas agora descubro que todos os homens da
equipagem sabem mais do que eu. Ora, acho que isto não é
justo, ou é?
- Não - disse o doutor Livesey -, acho que não.
- Depois - continuou o capitão -, dizem-me que vamos
procurar um tesouro, atenção, é a própria tripulação quem o
diz. Ora, os tesouros são coisa que faz muitas comichões, não
gosto de expedições aos tesouros seja a que propósito for, e
não gosto principalmente se forem secretas, e ainda por cima
quando (que o senhor Trelawney me desculpe) o segredo já foi
contado ao papagaio.
- Ao papagaio do Silver? - perguntou o morgado.
- Um modo de falar - retorquiu o capitão. - Quero dizer,
falatório. Estou convencido de que nenhum dos senhores sabe
bem o que vai fazer, mas digo-Lhes a minha opinião, isto é de
vida ou de morte, e uma corrida às cegas.
- É evidente que sim, e até acho que é verdade - respondeu o
doutor Livesey. - Corremos o risco, mas olhe que não somos tão
ingénuos como o senhor pensa. E depois, também nos disse que
não gosta da equipagem. Porquê, não são bons marinheiros?
- Não gosto deles, senhor - insistiu o capitão Smollett. - E
penso que a escolha devia ser comigo, se não se importa.
- Talvez tenha razão - retorquiu o médico. - Talvez o meu
amigo tivesse feito melhor se o senhor fosse com ele, mas essa
falta, se a houve, foi involuntária. E o senhor antipatiza com
o senhor Arrow?
- Não, senhor. Creio que é um excelente marinheiro, mas dá
confiança de mais aos homens para ser um bom oficial. Um
imediato deve ser reservado... e não andar nos copos com o
pessoal do convés.
- Quer dizer que ele bebe por hábito? - saltou o morgado.
- Não, senhor - assentiu o comandante -, só quero dizer que
ele exagera na familiaridade.
- Ora bem, capitão, e agora vamos lá saber - adiantou o
médico. - Diga-nos o que pretende.
- Bom, meus senhores, estão absolutamente resolvidos a fazer
a viagem?
- Como nunca - respondeu o morgado.
- Muito bem - atalhou o capitão. - Nesse caso, como já
ouviram com muita paciência coisas que eu disse sem poder
provar, quero dizer mais umas palavras. A pólvora e as armas
estão a ser postas no porão da vante. Ora acontece que há um
bom espaço por baixo do camarote, porque não colocá-las aqui?
- primeiro ponto.


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Depois os senhores trazem quatro pessoas, e pelo que sei
algumas delas vão ser alojadas à proa. Porque não se arranja
lugar aqui ao lado do camarote? - segundo ponto.
- Mais alguma coisa? - perguntou o senhor Trelawney.
- Mais uma - disse o comandante. - Já houve falatório a
mais.
- Demais - concordou o médico.
- Vou dizer-lhes o que ouvi - continuou o capitão Smollett.
- Que os senhores têm um mapa da ilha, que há cruzes no mapa a
mostrar onde está o tesouro, e que a ilha fica a... - e
mencionou a latitude e a longitude exactas.
- Eu nunca disse isso - gemeu o morgado -, a vivalma.
- Os homens sabem-no, senhor - ripostou o capitão.
- Livesey, deve ter sido você ou o Hawkins - exclamou o
morgado.
- Nem interessa muito quem tenha sido - retorquiu o médico.
E pude ver que nem ele nem o comandante davam muita atenção
aos protestos do senhor Trelawney. O certo é que eu também
não, pois já lhe conhecia aquela língua solta, mas quanto
àquele caso penso que tinha de facto razão, e que ninguém
falara na localização da ilha.
- Bem, meus senhores - prosseguiu o capitão -, não sei quem
tem esse mapa, mas ponho a condição de ser mantido em segredo
até mesmo de mim e do senhor Arrow. De contrário, teria de me
demitir.
- Compreendo - disse o médico. - O senhor pretende ocultar o
caso e fazer uma guarnição à ré do navio com o pessoal
particular do meu amigo, e que disponha de todas as armas e
pólvora que há a bordo. Por outras palavras, receia um motim.
- Cavalheiro - observou o capitão Smollett -, sem nenhuma
intenção de o melindrar, não Lhe dou o direito de pronunciar
por mim palavras que não me saíram da boca. Nenhum comandante,
senhor, saía para o mar se tivesse motivo bastante para tal.
Quanto ao senhor Arrow, creio que é absolutamente honesto,
alguns dos homens também, tanto quanto sei, podem ser todos.
Mas sou responsável pela segurança do barco e pela vida de
todos a bordo, seja quem for. Pelo meu modo de ver, as coisas
não estão a correr lá muito bem, e estou a pedir-lhe para
tomar certas precauções, ou então que me deixe demitir do meu
lugar. E é tudo.
- Capitão Smollett - começou o médico, sorrindo -, já
conhece a fábula da montanha que pariu um rato? Desculpe lá,
mas o senhor até me fez lembrar essa história. Aposto a minha
peruca em como quando o senhor aqui entrou até vinha com
outras intenções.


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- Doutor - disse o capitão -, o senhor é esperto. Quando
cheguei vinha resolvido a ser dispensado. Nem tinha pensado
que o senhor Trelawney me desse ouvidos.
- Nem por sombras - atalhou o morgado. - Se não estivesse cá
o Livesey; eu por mim tinha-o mandado para o diabo. Mas agora,
já o ouvi. Farei como deseja, mas tenho a pior impressão da
sua pessoa.
- Como queira, senhor - terminou o capitão. - Vai ver que
cumpro o meu dever.
E com isto, retirou-se.
- Trelawney - afirmou o doutor -, apesar do que eu pensava,
creio que já conseguiu arranjar dois homens sérios a bordo,
este homem e o John Silver.
- O Silver, concordo - protestou o morgado -, mas esse
batoteiro insuportável, digo-lhe que acho que a conduta dele
não é de homem, nem de marinheiro, nem sequer dum inglês.
- Bem - disse o médico -, veremos.
Quando saímos para o convés os homens já tinham principiado
a retirar as armas e a pólvora e cantarolavam para ajudar o
trabalho, vigiados pelo capitão e pelo senhor Arrow.
Agradou-me muito a nova disposição das coisas. Toda a escuna
tinha sido sujeita a uma revisão; do que fora a parte
posterior do porão principal tinham-se feito acomodações para
seis pessoas, ficando assim o bloco dos camarotes ligado à
cozinha e ao castelo de proa só por um corredor de tabiques a
bombordo. A princípio deviam ser ocupadas pelo comandante, o
senhor Arrow, Hunter, Joyce, o doutor e o morgado. Mas agora
duas delas seriam para o Redruth e para mim, enquanto o senhor
Arrow e o capitão dormiriam na entrecoberta do convés, que
tinha sido aumentada dos dois lados de modo a formar quase uma
cabina de popa. Claro que ainda era muito baixa, mas mesmo
assim havia espaço para pendurar duas redes, e até o imediato
pareceu satisfeito com aquele arranjo. Talvez ele próprio
tivesse dúvidas quanto à equipagem, mas isso é apenas uma
suposição pois, como ficarão a saber, não foi por muito tempo
que pudemos contar com a opinião dele.
Andávamos todos atarefados com a mudança da pólvora e dos
beliches, quando um bote trouxe os dois últimos homens e o
Long John.
O cozinheiro embarcou com a agilidade dum macaco e, ao ver o
que se passava, gritou:
- Olha lá, malta! Que estão a fazer?
- A mudar a pólvora, pá - respondeu um.


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- Ora, c'os diabos - lamentou-se -, assim perdemos a maré da
manhã!
- Sou eu quem dá ordens! - exclamou o capitão, secamente. -
Podes descer, meu homem. O pessoal há-de querer a ceia.
- Muito bem, senhor - respondeu o cozinheiro e, tocando a
aba do chapéu, logo desapareceu direito à cozinha.
- Ali está um bom homem, comandante - disse o médico.
- É muito possível, senhor - respondeu o capitão Smollett. -
Cuidado aí, rapazes, cuidado - continuou, para os homens que
mudavam a pólvora; de repente deu comigo a admirar o canhão
giratório que levávamos a meia-nau, uma peça comprida de
calibre nove, recoberta de latão fundido:
- Tu aí, grumete - bradou -, já daí para fora! Vai-te
apresentar ao cozinheiro e toca a trabalhar.
Corri logo, mas ainda a tempo de o ouvir dizer em voz bem
alta para o médico:
- Não admito favoritismos a bordo do meu navio.
Garanto-Lhes que fiquei logo adepto do modo de pensar do
morgado, e detestei o comandante com todas as forças.

CAPÍTULO X


A viagem


Toda a noite durou a azáfama para deixar tudo bem
arrumado e estivado, enquanto carradas de amigos do morgado, o
senhor Blandly e outros vinham ao largo para nos desejarem os
votos de boa viagem e feliz regresso. Nunca na Almirante
Benbow, quando era eu a fazer metade do serviço, tínhamos
passado uma noite semelhante, e estava completamente estafado
quando, pouco antes do amanhecer, o contramestre apitou e o
pessoal começou a manobrar as barras do cabrestante. Mas mesmo
que o meu cansaço fosse a dobrar não seria capaz de sair do
convés, onde tudo para mim tinha novidade e interesse, as
ordens secas, as notas agudas do apito, os homens afadigados
nos seus postos, ao clarão das lanternas de bordo.
- Anda lá, ó Churrasco, dá-nos a deixa - gritou uma vez.
- A de antigamente - exclamou outra.
- Muito bem, malta - disse o Long John, que observava
apoiado à muleta, e logo entoou aquela música e letra que eu
conhecia tão bem:

"Quinze homens na arca do morto"...

E toda a equipagem Lhe respondeu em coro:

"Alou-ou-ou e uma garrafa de rum!"

E ao terceiro ou puxaram as barras à frente num impulso
colectivo.
Até naquele instante de excitação tudo me fez recuar num
segundo à velha "Almirante Benbow", como se ouvisse a voz
estridente do capitão juntar-se ao coro. Mas logo a âncora foi
suspensa e ficou fixa à vante, a gotejar, logo as velas
principiaram a puxar-nos, a terra e os navios a deslizar de
ambos os lados e, antes que pudesse estender-me para arrancar
uma hora de sono, o Hispaniola tinha começado a viagem à Ilha
do Tesouro.
Não vou narrar a viagem em pormenor. Tudo correu bem. O
navio provou ser excelente, a tripulação capaz e o comandante
perfeitamente ciente das suas funções. Mas antes de chegarmos
à Ilha do Tesouro ocorreram duas ou três coisas que merecem
ser contadas.
Em primeiro lugar, o senhor Arrow revelou ser ainda pior do
que o capitão tinha receado. Não tinha autoridade sobre os
homens, e as pessoas faziam dele o que lhes apetecia. Mas isso
não era o pior, porque logo no começo da viagem começou a
aparecer no convés com olhos turvos, face vermelha, voz
entaramelada e outros sinais de embriaguez. Repetidas vezes
foi repreendido e mandado recolher, outras, caiu e
arranhou-se. Umas vezes ficava todo o dia estendido no pequeno
catre num lado da camarata, outras conseguia estar quase
sóbrio por um ou dois dias e fazia o serviço menos mal.
Entretanto não fazíamos ideia onde ele arranjava a bebida.
Era o mistério do barco. Por muito que o vigiássemos, nada
podíamos descobrir e, quando lho perguntavam cara a cara, se
estivesse bêbedo só se ria mas, quando estava sóbrio, negava
solenemente tomar fosse o que fosse a não ser água.
Não era um inútil só como oficial, com a má influência que
isso tinha nos homens, como também era bastante claro que
daquele modo acabaria de certeza por se matar, de maneira que
não foi grande surpresa para ninguém, nem sequer desgosto,
quando uma noite escura, com o mar encapelado, desapareceu de
vez para não mais ser visto.
- Foi pela borda fora! - observou o comandante. - Bem,
senhores, isso poupa o trabalho de o pôr a ferros.
Mas assim seguíamos sem um primeiro oficial, e era preciso,
evidentemente, promover um dos homens. O candidato mais
indicado era o contramestre Job Anderson que, embora
conservando o posto anterior, passou a servir de imediato. O
senhor Trelawney, que já tinha experiência do mar, provou a
utilidade dos seus conhecimentos, pois também serviu muitas
vezes em quartos de vigia com bom tempo. E o timoneiro Israel
Hands era um velho e bem treinado marinheiro, cuidadoso e
hábil, em quem se podia confiar para quase todos os problemas.
Era um homem de grande confiança do Long John Silver, e
mencionar o seu nome leva-me a falar de novo do cozinheiro de
bordo, o "Churrasco", como os outros o tratavam.
A bordo trazia a muleta segura por um pedaço de escota ao
pescoço, para ter as mãos o mais livres possível. Era digno
vê-lo encaixar a ponta da muleta num tabique e, apoiado nela,


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acompanhando todos os movimentos do navio, prosseguir nos seus
cozinhados com a segurança de qualquer pessoa em terra. E
ainda mais curioso era vê-lo atravessar o convés com mau
tempo. Tinha mandado esticar um cabo ou dois para o ajudar a
atravessar os pontos mais largos - chamavam-lhes os brincos do
Long John - e deslocava-se de um para outro lugar, ora
empregando a muleta, ora levando-a de rastos pelo cordão ao
pescoço, tão rápido como qualquer outro que pudesse caminhar.
Mesmo assim, alguns dos que antes tinham viajado com ele
lamentavam vê-lo tão diminuído.
- Não tem nada de vulgar, esse Churrasco, - dizia-me o
timoneiro. - Teve boa educação quando era novo, e é capaz de
falar como um livro se lhe apetecer, e duma coragem... um leão
à beira do Long John não é nada! Já o vi agarrar quatro duma
vez e dar-lhes cabo das cabeças, e desarmado.
Toda a equipagem o respeitava e até lhe obedecia. Tinha uma
capacidade de comunicar com qualquer um e de prestar a todos
pequenas atenções. Para mim era duma amabilidade incomparável,
e sempre satisfeito de me ver na cozinha, que mantinha limpa
como nova, os pratos rebrilhavam alinhados - ao alto e, ao
canto, o papagaio numa gaiola.
- Anda daí, Hawkins - dizia -, anda cá conversar com o John.
Ninguém é mais bem-vindo que tu, meu rapaz. Senta-te aí e ouve
as notícias. Cá está o Capitão Flint, trato o papagaio por
Capitão Flint, nome do pirata célebre, cá está o Capitão Flint
a predizer bom sucesso para a viagem. Não estavas, capitão?
E o papagaio respondia, com grande rapidez: - Peças de oito!
Peças de oito! Peças de oito! - até dar a impressão que ia
perder o fôlego ou até o John cobrir a gaiola com o lenço.
- Ora, esse passarão - continuava - talvez tenha duzentos
anos, Hawkins... em geral nunca morrem, e só o diabo em pessoa
deve ter visto tanta maldade junta. Este andou a bordo com
England, o grande capitão pirata England. Foi a Madagáscar, ao
Malabar, ao Suriname, a Providence, a Portobello. Esteve na
recuperação das cargas de prata naufragadas. Foi lá que
aprendeu a dizer Peças de oito", e não admira, eram trezentas
e cinquenta mil, Hawkins! Esteve na abordagem do barco
Vice-rei das Índias, ao largo de Goa, lá isso esteve, e ao
olhares para ele ainda te parece criança. Mas tu cheiraste a
pólvora, não cheiraste, capitão?
- A postos para largar - guinchava o papagaio.
- Ah, lá jeitoso é ele - dizia o cozinheiro, dando-lhe do
bolso um torrão de açúcar, enquanto o papagaio debicava as
grades com uma série de pragas, numa imitação de malvadez.


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- Ora aí tens - acrescentava o John -, a gente não pode
mexer no peixe sem se sujar, rapaz. Aqui está este meu velho
pássaro inocente a queimar uns palavrões, e podes ter a
certeza que nem sabe o que diz. Por assim dizer, era capaz de
dizer o mesmo ao padre - e levava os dedos à pluma do chapéu
com tal solenidade que me fazia pensar ser a melhor das
criaturas.
Entretanto, o morgado e o capitão Smollett ainda se
mantinham muitíssimo distantes um do outro. O morgado não
disfarçava nada, desprezava o capitão. Este, por sua vez, só
falava quando se lhe dirigiam e era sempre exacto, breve e
seco, de um laconismo bem medido. Convencido por falta de
argumentos, admitia que talvez se tivesse enganado quanto à
tripulação, que alguns dos homens eram tão aptos quanto podia
desejar, e que era bom o comportamento de todos. Quanto ao
navio, tinha-se-lhe afeiçoado por completo.
- O barco responde ao vento ainda melhor do que um homem
pode exigir da própria mulher, senhor. Mas - acrescentava - só
tenho a dizer que ainda não estamos de volta e que a viagem
não me agrada.
Ao ouvir isto, o morgado virava costas e punha-se a
percorrer o convés, de nariz levantado.
- Mais uma palavra dele - afirmava -, e vou rebentar.
Tivemos algumas borrascas, que apenas serviram para
comprovar as excelentes qualidades do Hispaniola. Todos
pareciam bastante satisfeitos, e caso contrário seria gente
impossível de contentar, pois creio bem que nunca se vira uma
companhia tão apaparicada desde que Noé se fizera ao mar. A
dose dupla de grogue era distribuída ao menor dos pretextos,
em dias especiais havia doce, como por exemplo sempre que o
morgado soubesse que alguém fazia anos, e um barril de maçãs
ficava sempre aberto de fresco a meia-nau, para quem quisesse
servir-se.
- Que eu saiba isto nunca deu bom resultado - observava o
capitão ao doutor Livesey. - Estragar os homens com mimo faz
deles diabos. É o que penso.
Mas algum bem veio ao mundo pelo barril de maçãs, como vão
saber, pois se não fosse isso não chegaríamos a
apercebermo-nos do perigo e podíamos ter todos morrido à
traição.
Passo a contar o sucedido.
Tínhamos apanhado os ventos alísios para colocar a brisa a
nosso favor na demanda da ilha - não me é permitido ser mais
claro -, e para lá vogávamos com vigia constante dia e noite,
em boa velocidade.


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Pelos cálculos mais largos, devíamos estar cerca do último
dia da viagem de ida. A qualquer altura da noite ou, o mais
tardar, antes do meio-dia seguinte, devíamos avistar a Ilha do
Tesouro. Seguíamos para sul-sudoeste, firmes no curso da brisa
e com mar calmo. O Hispaniola, em balanço regular, banhava a
cada passo o pau da proa numa cabeleira de espuma. De baixo
até acima, todo o pano puxava, era geral a melhor das
disposições, pois chegava ao termo a primeira parte da nossa
aventura.
Foi logo a seguir ao sol-posto, quando tinha terminado o meu
serviço e me preparava para deitar, que me apeteceu comer uma
maçã. Saltei ao convés. O vigia estava todo à vante à espera
de ver a ilha. O da ré ocupava-se em manter o pano no curso da
brisa e assobiava para si próprio, o que era o único som além
do marulho das ondas em redor do barco.
Trepei para dentro do barril, para descobrir que estava
quase completamente vazio. No entanto, sentado ali na
escuridão e com o som do mar a juntar-se ao baloiçar do navio,
teria dormitado, ou estava a ponto disso, quando um homem se
sentou com estrondo, mesmo encostado ao barril. Este
estremeceu com o encontrão, e ia eu a saltar lá de dentro
quando o homem começou a falar. Era a voz do Silver e, mal
teria dito uma curta dúzia de palavras, já eu tinha decidido
não me mostrar por nada deste mundo, mas antes quedar-me ali,
a tremer e à escuta, no limite do medo e da curiosidade, pois
aquela dúzia de palavras dera-me a entender que as vidas de
toda a gente séria que havia a bordo só de mim dependiam.

CAPÍTULO XI


O que ouvi no barril de maçãs


- Não, eu não - dizia o Silver. - O capitão era
Flint, eu era quartel-mestre, cá com a perna de pau. Na mesma
descarga de metralha que me fez perder a perna, o velho Pew
ficou sem olhos. Quem me amputou foi um mestre cirurgião, da
universidade e tudo, carradas de latim, e tudo, mas foi
enforcado como um cachorro, e fumado ao sol como os outros, no
Corso Castle. Foram os homens do Robert, foram, que andavam
sempre a mudar o nome aos navios... o Royal Fortuna e os
outros. Ora, já que se baptiza um barco, o melhor é deixá-lo
ficar assim, acho eu. Assim foi com o Cassandra, que nos
trouxe todos a salvo do Malabar, depois do England ter tomado
o Vice-rei das Índias, assim foi com o velho Walrus, que era o
antigo navio do Flint, e que eu vi feito num charco vermelho
de sangue e quase a ir ao fundo com a carga de ouro.
- Ah! - exclamou uma segunda voz, a do tripulante mais novo
da companha, sem esconder a sua admiração. - Ele era a flor de
todo o rebanho, o Flint!
- Aliás, o Davis também era um grande homem, ao que dizem -
observou o Silver. - Nunca fui ao mar com ele, fui primeiro
com o England, depois com o Flint, e aí está a minha vida e,
por assim dizer, agora vou aqui por minha conta e risco. Com o
England ganhei novecentas libras, e com o Flint duas mil. Não
é nada mau para um marujo qualquer... tudo poupado e guardado
no banco. Ora não é o ganho, o que interessa é poupar as
massas, é o que te garanto. Onde param os homens todos do
England? Não sei. E os do Flint? Ora, a maior parte dele vai
aqui a bordo, e felizes por comerem pudim... dantes andavam a
pedir esmola, alguns deles. O velho Pew, esse, depois de
perder a vista, para se dar ares, gasta num ano mil e duzentas
libras, como um lorde. E onde está? Está morto e bem morto, lá
em baixo, mas ainda andou dois anos que o convés me rebente, a
morrer de fome. Pedia esmola, roubava, degolava gente, e nunca
deixou de passar fome, cos diabos!
- Bem, no fim de contas, de pouco vale - disse o moço.


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- De pouco vale aos tolos, afianço-te, nem isso, nem nada -
exclamou o Silver.
- Mas olha lá agora, ainda és novo, mas és fino como tinta,
percebi isso logo que te vi, e vou-te falar de homem para
homem.
Podem imaginar como fiquei ao ouvir aquele malandrim
abominável falar ao outro exactamente com as mesmas palavras
de insinuação que tinha usado para comigo. Senti que seria
capaz de o matar através do barril. Entretanto ele continuava,
muito longe de supor que estava a ser escutado.
- Eis o que se passa com um cavaleiro andante. Vive-se no
duro, arrisca-se a ser pendurado, mas come-se e bebe-se como
galos de combate, e quando se faz um cruzeiro, pois traz-se no
bolso uns centos de libras em vez de uns centos de réis. Ora,
a maioria esbanja tudo no rum e na boa vida, e depois torna a
embarcar só com a camisa que traz no corpo. Mas comigo não é
assim. Arrecado tudo, deposito um pouco aqui, mais algum
noutro sítio, e nunca grandes dinheiros num banco só, para não
levantar suspeitas. Repara que vou nos cinquenta anos, ao
voltar desta viagem vou-me instalar de vez como um homem de
bem. Também já não é sem tempo, dirás tu. Ah, mas tenho sempre
levado uma vida regalada, nunca me privei de nada, de nenhum
desejo, e toda a vida dormi no macio e comi do melhor, menos a
bordo. E por onde comecei? Por ser moço de convés, como tu!
- Bem - atalhou o outro -, mas o outro dinheiro todo já
acabou, não acabou? Você não se atreve a voltar para Bristol
depois desta.
- Ai sim, então onde pensas tu que ele estava? - perguntou o
Silver, trocista.
- Em Bristol, nos bancos e sítios assim - foi a resposta.
- Estava - declarou o cozinheiro -, estava quando levantámos
ferro. Mas agora quem o tem é a velha da patroa. E o Óculo
está vendido, com a licença, a freguesia e o recheio, e a
velhota já partiu ao meu encontro. Era capaz de te dizer o
sítio, porque confio em ti, mas podia fazer inveja ao resto da
malta.
- E pode ter confiança na sua mulher?
- Os cavalheiros de indústria - tornou o cozinheiro -
normalmente pouco confiam uns nos outros, e com razão, podes
crer. Mas eu cá tenho o meu estilo, sabes. Esteja eu onde
estiver; não há neste mundo camarada capaz de me armar o
laço... quero dizer, nenhum que me conheça. Havia quem tivesse
medo do Pew, e quem tivesse medo do Flint, mas o Flint em
pessoa não se atrevia comigo. Medo tinha ele, e era bravo. Se
houve tripulação mais dura, era a do Flint, o próprio diabo
era capaz de se encolher de embarcar com eles.


61


Ora, como te digo, não gosto de me gabar, e já viste como sou
sociável, mas quando fui quartel-mestre, os antigos piratas do
Flint não eram propriamente cordeiros. Enfim, podes
considerar-te em segurança no navio aqui do velho John.
- Bom, agora Lhe digo - retorquiu o moço - que não dava meio
tostão pelo lugar antes de ter esta conversa consigo, John,
mas agora já posso apertar-lhe a mão.
- E além de seres valente também és esperto - concluiu o
Silver, apertando-lhe a mão com energia a ponto de fazer
estremecer o barril -, e para um cavaleiro andante nunca estes
olhos toparam com figura de proa mais perfeita do que a tua.
Por essa altura tinha começado a entender o significado
daquelas expressões. Por cavaleiro andante ou de indústria,
queriam dizer nem mais nem menos do que um pirata vulgar, e a
cena que acabava de escutar era a parte final da corrupção dum
homem honesto, talvez do último que restava a bordo. Mas
quanto a isso não tardei a ficar convencido, pois a um pequeno
assobio do Silver um terceiro homem se aproximou para tomar
parte na conferência.
- O Dick é fixe - declarou o Silver.
- Oh, já sabia que o Dick era fixe - retorquiu a voz do
timoneiro Israel Hands.
- O Dick não é nenhum tolo - estava a mascar tabaco e
cuspiu. - Mas olha lá - continuou -, o que eu quero saber,
"Churrasco..." é quanto tempo temos de andar aqui fora e
dentro como num maldito barco de mantimentos. Já estou a ficar
farto do capitão Smollett, já não lhe posso ver a sombra, cum
raio! Tenho ganas de ir morar naquele camarote. Quero as
conservas e os vinhos deles, e o resto.
- Israel - adiantou o Silver -, a tua cabeça não vale grande
coisa, nem nunca valeu. Mas acho que consegues ouvir, pelo
menos tens as orelhas grandes. Ora o que te digo é isto: vais
dormir à vante, ter a vida dura, falas mansas, e não beber,
até eu dar o sinal, isso te garanto, filho.
- Bom, eu não disse o contrário, pois não? - gemeu o
timoneiro. - O que eu digo é, quando? Foi o que eu disse.
- Quando! C'os diabos! - protestou o Silver. - Pois já que
queres saber, digo-te quando. Vai ser no último momento até
onde eu conseguir chegar. Temos um piloto de categoria, o
capitão Smollett, a comandar-nos o navio. Temos aquele morgado
e o doutor com um mapa e esse... não sei onde está, pois não?
E tu também não, claro. Ora bem, então quero dizer que esse
morgado e o doutor vão encontrar o artigo e ajudar-nos a
trazê-lo para bordo, c'os diabos. Depois veremos.


62


Se eu estivesse bem seguro de vocês todos, seus filhos de
pirata enfeitado, deixava o capitão Smollett conduzir o barco
de volta até meio da viagem antes de dar o golpe.
- Mas acho que afinal todos aqui somos marinheiros, ao que
parece - disse o moço Dick.
- Queres dizer que todos sabemos trabalhar na coberta -
disparou o Silver. - Sabemos seguir uma rota, mas quem é que a
calcula? Aí é que os cavalheiros se enganam, sem excepção.
Pela minha maneira de ver as coisas, deixava o capitão
Smollett voltar a pôr-nos nos alísios, pelo menos, aí já não
havia os malditos erros de cálculo e podíamos sustentar-nos a
água. Mas eu já vos conheço. E é uma lástima ter de dar cabo
deles na ilha, logo depois de carregar o trambolho. Mas vocês
nunca ficam satisfeitos até se embebedarem. Que eu fique
arrombado, se não enjoo de andar a bordo com gente desta laia!
- Não compliques tudo, Long John - queixou-se o Israel. -
Quem é que te vai contrariar?
- Ora, diz lá quantos navios pensas que eu já vi
aprisionados? E quantos moços espertos no fumeiro da Doca da
Forca? - gemeu o Silver. - E todos por causa da mesma mania da
pressa e mais da pressa. Estás a ouvir? Eu no mar já vi umas
coisas, já passei por elas. Quem for capaz de manter a rota, e
dar atenção à bolina, vai poder andar de carruagem, e vai
mesmo. Mas vocês, vocês não! Eu já os conheço. Só querem o rum
garantido de véspera, e acabou-se.
- Toda a gente sabe que és como um capelão, John, mas havia
outros que sabiam manobrar e governar tão bem como tu -
observou o Israel. - E gostavam de gozar um bocado. Não eram
tão rijos e frios, nem de longe, mas gostavam da boa vida,
como compinchas, todos eles.
- Achas? - disse o Silver. - E onde estão agora? O Pew era
desses, e morreu na miséria. O Flint também, e morreu afogado
em rum em Savannah. Pois, eram todos uma maravilha, eram! Mas
onde foram parar?
- Mas - perguntou o Dick -, quando lhes saltarmos em cima,
afinal que vamos fazer deles?
- Tu é que és dos meus! - desabafou o Silver, apreciativo. -
É assim que se fala de negócios. Bom, que é que achas?
Abandoná-los numa ilha deserta? Era o que fazia o England. Ou
fazê-los em febras? Esse era mais o estilo do Flint e do Billy
Bones.
- Isso era mesmo do Billy - acrescentou o Israel. - "Os
mortos não mordem", dizia ele. Bom, agora também morreu, já
está mais que arrumado, se havia um duro no mar, era bem o
Billy.


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- Exacto - prosseguiu o Silver -, duro e atento. Mas nota
bem, sou um homem flexível... sou um tipo de cavalheiro, dirás
tu, mas desta vez a coisa é séria. O dever é o dever, malta.
Eu cá voto na morte. Quando for um lorde, e tiver a minha
carruagem, não quero ver nenhum desses advogados marujos a
entrar-me no camarote, de regresso, sem serem convidados, como
o diabo a tentar os santos. O que eu digo é que se tem de
esperar, mas na altura devida, pois, ela que faça a colheita!
- John - exclamou o timoneiro -, tu é que és um homem!
- Isso hás-de tu dizer, Israel, quando vires - disse o
Silver. - Há só uma coisa que eu quero, quero o Trelawney só
para mim. Com estas mãos hei-de-Lhe arrancar aquela cabeça de
vitela, Dick! - acrescentou, interrompendo-se -, põe-te lá em
pé, como um bom rapaz, e apanha-me uma maçã, para me refrescar
o tabaco.
Imaginem o meu terror! Devia ter saltado e fugido para
salvar a pele, se tivesse encontrado forças para tal. Mas
tanto as pernas como o ânimo me falharam. Senti o Dick começar
a levantar-se, mas a seguir alguém pareceu interrompê-lo, e a
voz do Hands exclamou:
- Deixa lá isso! John, não te ponhas a chuchar essa
porcaria. Vamos mas é a uma rodada de rum.
- Dick - concordou o Silver -, confio em ti. Atenção, que a
barrica do rum está marcada. Aí tens a chave, enche uma caneca
e trá-la cá acima.
Aterrado como estava, não pude deixar de pensar que devia
ter sido daquele modo que o senhor Arrow obtivera as águas
fortes que o liquidaram.
O Dick não se demorou muito, e durante a ausência dele, o
Israel pôs-se a segredar ao ouvido do cozinheiro. ,Só pude
apanhar uma ou outra palavra, mas mesmo assim consegui colher
notícias de importância porque, entre outros fragmentos do
mesmo teor, apareceu uma frase inteira: "Deles não contamos
com mais nenhum." Daí concluí que ainda havia forças fiéis a
bordo.
Quando o Dick voltou, beberam os três da caneca, um "A boa
sorte", o seguinte "Ao velho Flint", e o Silver declarando,
meio a cantar, "Aqui vai à nossa, e apanha-me esse vento, um
ror de prémios e cheios de massa."
Nesse momento uma claridade caiu-me dentro do barril e,
olhando para cima, vi que a Lua nascera e prateava o mastaréu
da mezena, brilhando numa chapa de brancura no bojo da vela de
estai, e quase no mesmo instante a voz do vigia gritava:
- Terra à vista!

CAPÍTULO XII


Conselho de guerra


Grande correria percorreu o convés. Pude ouvi-los aos
tropeções, a subir dos beliches e da coberta e, saltando num
ápice do meu barril, atirei-me de mergulho por baixo do
traquete, girei para a ré e fui ao encontro do Hunter e do
doutor Livesey, a quem me juntei na corrida para a amura de
sotavento da proa.
Ali já todos os homens estavam reunidos. Quase ao mesmo
tempo da Lua, tinha-se levantado uma barra de neblina. A
distância, para sudoeste, avistámos duas elevações com um
intervalo que teria um par de milhas, e por detrás duma delas
erguia-se um terceiro monte mais alto, cujo topo estava ainda
envolto no nevoeiro. Os três montes pareciam pontiagudos e
cónicos.
Vi tudo aquilo quase como em sonho, pois ainda não me tinha
recomposto do pavor de minutos antes. Depois ouvi a voz do
capitão Smollett a dar ordens. O Hispaniola orçou uns dois
pontos para barlavento, seguindo um curso que deixava a ilha a
nascente.
- E agora, rapazes - disse o capitão, depois de terminada a
manobra -, já algum de vocês viu essa terra aí à nossa frente?
- Já sim, senhor - respondeu o Silver. - Fiz aguada lá
quando era cozinheiro num barco mercante.
- Creio que o ancoradouro fica ao sul, atrás dum recife? -
perguntou o comandante.
- Sim, senhor, chamam-lhe a Ilha do Esqueleto. Antigamente
foi poiso de piratas, e havia nesse barco um homem que sabia
os nomes que lhe davam. Aquele monte para o norte chamam-lhe o
monte do Traquete, há três montes em fila para o sul,
Traquete, Grande e Mezena, senhor. Mas o Grande, o monte mais
alto que tem a nuvem em cima, é costume chamar-lhe o Óculo,
porque punham lá um vigia quando estavam fundeados, visto que
era lá que limpavam os navios, senhor, com sua licença.
- Tenho aqui um mapa - adiantou o capitão Smollett. - Vê lá
se o local é este - os olhos do Long John rebrilharam ao pegar
no mapa mas, quando vi o aspecto novo do papel, percebi que ia
ficar desiludido. Não se tratava do mapa encontrado ao pescoço
do Billy Bones mas sim de uma cópia muito minuciosa, nomes,
altitudes, fundos, com a única excepção das cruzes vermelhas e
das notas manuscritas. Por muito que lhe custasse, o Silver
teve presença de espírito para esconder a desilusão.
- Sim, senhor - disse -, é mesmo isto, tal e qual, e tão bem
desenhado. Quem teria sido? Não devem ter sido os piratas, que
eram tão ignorantes. É, cá está, ancoradouro do Capitão Kidd,
é o nome que o meu camarada dizia. Há uma corrente forte para
o sul, que depois vira ao norte pela costa poente. Razão tinha
o senhor - acrescentou - de orçar ao vento e pôr a ilha a
sotavento. Pelo menos se tinha a intenção de aportar para
querenar, e por estas águas não há sítio melhor para isso.
- Obrigado, meu homem - concluiu o capitão Smollett. -
Depois hei-de te pedir para nos dares uma ajuda. Podes
retirar-te.
Surpreendeu-me a frieza com que o Long John admitira
conhecer a ilha, e reconheço que fiquei meio assustado quando
o vi aproximar-se de mim. É certo que não sabia que eu tinha
escutado a conversa metido no barril de maçãs, mas, mesmo
assim, como nessa altura já estava aterrado com a crueldade, o
fingimento e o poder do homem, mal pude disfarçar um arrepio
quando ele me pôs a mão no braço.
- Ah - disse -, aqui está um sítio delicioso, esta ilha, uma
maravilha para um moço desembarcar. Tomar banho, subir às
árvores, caçar cabras, podes fazer tudo isso, e até podes
marinhar pelos montes como se fosses um cabrito. Ora, isto
faz-me rejuvenescer. Já me ia esquecer da minha muleta, já. É
tão bom ser novo e ter dez dedos nos pés, garanto-te. Quando
te apetecer fazer uma exploração, é só pedires ao velho John
para te arranjar um farnel.
E fazendo-me uma festa no ombro com a maior das amizades,
afastou-se e desceu.
O capitão Smollett, o morgado e o doutor Livesey conversavam
no tombadilho da popa e, embora ansioso por Lhes contar a
história, não me atrevi a interrompê-los abertamente. Enquanto
em pensamento me debatia por encontrar um pretexto, o doutor
Livesey chamou-me. Tinha deixado o cachimbo em baixo e,
escravo do tabaco como era, disse-me para o ir buscar, mas
logo que me cheguei a ele o suficiente para poder falar sem
ser ouvido pelos outros, anunciei sem demora:
- Doutor, deixe-me dizer. Leve o capitão e o senhor morgado
ao camarote e depois arranje maneira de me chamar. Tenho
notícias muito graves.
A expressão dele mudou um pouco, mas logo se dominou.


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- Obrigado, Jim - disse em voz bem alta -, é tudo o que eu
queria saber - como se me tivesse perguntado qualquer coisa.
E logo tornou a virar-se para os outros dois. Falaram por
momentos, e embora nenhum tivesse mostrado o mais pequeno
gesto de surpresa ou mudança no tom da voz, era claro que o
doutor Livesey Lhes transmitira o meu pedido, pois logo de
seguida o capitão deu uma ordem ao Job Anderson, e o apito
deste tocou a reunir todo o pessoal no convés.
- Rapazes - declarou o capitão Smollett -, tenho uma palavra
a dizer-lhes. Esta terra que avistamos é o destino da nossa
viagem. O senhor Trelawney, que como todos sabemos é um
cavalheiro muito generoso, acaba de me pedir algumas
informações, e como pude dizer-lhe que todos tinham cumprido o
seu dever, debaixo até acima, melhor do que se pode exigir,
pois então ele, eu e o doutor vamos lá abaixo ao camarote
beber à vossa saúde, e vai-se buscar grogue para vocês beberem
à nossa. Digo-vos o que eu acho: acho que é muito simpático. E
se concordam comigo, vamos dar um viva ao cavalheiro, que o
merece.
Seguiu-se a aclamação - que era óbvia -, mas com tal
estrondo e entusiasmo que, confesso, mal podia crer que
aqueles mesmos homens andassem a conspirar contra nós.
- Outro viva pelo capitão Smollett! - bradou o Long John,
logo que se calaram. E este foi também entoado em uníssono.
No calor da festa, os três cavalheiros desceram, e pouco
depois chegou o recado para o Jim Hawkins se apresentar no
camarote.
Encontrei-os sentados à mesa, com uma garrafa de vinho
espanhol e algumas uvas passas, e o médico fumando sem parar,
com a cabeleira no colo, o que já sabia ser sinal de
nervosismo. A janela da popa estava aberta, porque a noite
estava quente, e podia ver-se lá fora o brilho do luar na
esteira do navio.
- Então, Hawkins - disse o morgado -, tens algo a dizer.
Toca a falar.
Obedeci e, o mais rápido que pude, contei todos os detalhes
da conversa do Silver. Ninguém me interrompeu até ter
terminado, nem nenhum dos três fez um único movimento, mas não
tiraram de mim os olhos do princípio até ao fim.
- Jim - disse o doutor Livesey -, senta-te aí.
Deram-me um lugar à mesa, deitaram-me vinho num copo,
encheram-me as mãos de passas e todos três, com uma vénia,
brindaram um de cada vez à minha saúde, em reconhecimento pela
minha sorte e coragem.

67


- Pois é, capitão - disse o morgado -, o senhor é que tinha
razão e eu não. Reconheço que fui burro, e estou às suas
ordens.
- Mais burro que eu o senhor não é - ripostou o comandante.
- Nunca ouvi falar duma tripulação que conspirasse um motim
sem deixar nenhuma pista, para qualquer pessoa com olhos na
cara desconfiar da tramóia e pôr-se de prevenção. Mas esta
gente - acrescentou - leva-me a melhor.
- Comandante - disse o médico -, se me dá licença, é do
Silver que se trata. É um homem excepcional.
- Onde ele havia de ficar melhor era pendurado lá em cima,
senhor - retorquiu o capitão. - Mas isto é conversa, não nos
leva a nada. Vejo três ou quatro possibilidades, e se o senhor
Trelawney me permite, vou dizer quais são.
- O senhor é que é o comandante. É a si que compete falar -
adiantou o morgado, com ar solene.
- Primeiro - começou o senhor Smollett -, temos de continuar
porque não podemos voltar atrás. Se eu falasse nisso
revoltavam-se imediatamente. Segundo, dispomos de algum tempo,
pelo menos até encontrar o tesouro. Terceiro ponto, temos
gente do nosso lado. Ora, mais cedo ou mais tarde isto vai
acabar em pancadaria, e o que proponho é agarrar o tempo pelos
cabelos, por assim dizer, e atirarmo-nos a eles num belo dia
quando menos o esperarem. Creio bem que podemos contar com os
seus criados, senhor Trelawney?
- Como comigo próprio - afirmou o morgado.
- Três - contou o capitão -, connosco faz sete, contando
aqui com o Hawkins. E os homens do nosso lado?
- Seguramente serão os do Trelawney - disse o doutor -, os
que ele engajou antes de topar com o Silver.
- Não - tornou o morgado. - O Hands foi um dos meus.
- O Hands pensei eu que podia confiar nele - acrescentou o
capitão.
- E lembrar-me de que são todos ingleses! - protestou o
morgado. - Senhor, bem podia ter razões para fazer explodir o
barco.
- Bom, senhores - prosseguiu o capitão -, o melhor que eu
possa dizer não vale grande coisa. Ficamos por aqui, se não se
importam, e sempre de atalaia. Já sei que toca nos nervos da
gente. Seria mais divenido chegar a vias de facto. Mas não há
remédio até sabermos com quem contamos. Fica-se à espera até
chegar o vento, é o que eu acho.
- Aqui o Jim - adiantou o médico - pode ajudar-nos mais do
que ninguém. O pessoal está à vontade com ele e o Jim é bom
observador.


68


- Hawkins, a minha fé em ti não tem limites - terminou o
morgado.
Comecei a ficar deveras atrapalhado com aquilo, pois
sentia-me totalmente desamparado, e ainda assim, pelas linhas
tortas dos acontecimentos, foi de facto por meu intermédio que
nos salvámos. Aliás, por muito que conversássemos entretanto,
dos vinte e seis restavam só sete em quem podíamos confiar, e
um destes sete era um rapaz. Por conseguinte, os homens
crescidos eram seis nossos contra dezanove do lado deles.


Terceira Parte


A minha aventura em terra


CAPÍTULO XIII


Como comecei a minha aventura na ilha


Logo que cheguei ao convés, na manhã seguinte, o aspecto
da ilha modificara-se por completo. Embora quase já não
houvesse brisa, tínhamos andado bastante durante a noite e
pairávamos agora em calmaria a cerca de meia milha a sudeste
da costa oriental, que era baixa. Bosques acinzentados
recobriam grande parte do terreno. Aqui e ali, este tom neutro
era rasgado por traços de areal amarelo nas zonas mais baixas
e por um sem número de árvores altas da família dos pinheiros,
cujas copas se erguiam acima das outras, umas isoladas, outras
em grupos, mas a cor dominante era uniforme e tristonha. Os
montes suspendiam-se acima da vegetação como campanários de
rocha nua. Todos tinham formas bizarras e o monte do Óculo,
que dominava todos os outros por uma diferença de mais de cem
metros, era igualmente o de configuração mais estranha,
subindo a pino de quase todos os lados e terminando de súbito
no cume cortado, como se fosse um pedestal para pôr uma
estátua.
O Hispaniola rolava com as amuras ao rés da água, na vaga do
mar aberto. As vergas comiam os cubos, o leme batia dum lado
para o outro e todo o barco estalava, rangia e vibrava como
uma fábrica. Tive de me agarrar com força ao estai da gata
enquanto tudo girava confusamente aos meus olhos, pois embora
fosse um marinheiro razoável em cruzeiro normal, aquele estar
parado e ser balançado como uma garrafa era coisa que nunca
tinha aprendido a aguentar sem náuseas, ainda por cima de
manhã, sem nada no estômago.
Talvez fosse por isso, talvez fosse pelo ar da ilha, com os
bosques cinzentos e melancólicos e as rudes torres de pedra,
ou a ressaca que ouvíamos e víamos com a espuma a trovejar nas
arribas da costa, o caso é que, embora com um sol quente e
luminoso, as aves que vinham pescar e gritar à nossa volta, e
o contentamento que seria natural esperar de todos ao chegar a
terra depois de tantos dias no mar, o caso é que, por assim
dizer, o coração me caiu aos pés, e desde essa primeira vez
que a vi fiquei a detestar para sempre a simples lembrança da
Ilha do Tesouro.


72


Esperava-nos uma manhã de trabalho violento, pois não havia
sinal de vento e tiveram de se tirar as baleeiras para rebocar
o navio a remos três a quatro milhas em redor do cabo da ilha
e pelo canal que dava para o ancoradouro por detrás da Ilha do
Esqueleto. Ofereci-me como voluntário para seguir num dos
barcos, onde, como é evidente, nada me deram que fazer. Estava
um calor opressivo e os homens resmungavam com violência
durante o trabalho. Era o Anderson quem comandava o escaler
onde eu seguia, mas em vez de manter a disciplina era ele quem
praguejava tão forte como os piores.
- Ora - terminou ele, com um palavrão -, isto também não
dura muito.
Pensei que aquilo era um mau sinal, pois até ali o pessoal
não se tinha furtado ao trabalho e com bom ânimo. Mas bastava
a vista da ilha para afrouxar a disciplina.
Durante todo o percurso, o Long John manteve-se junto do
timoneiro atendendo à manobra. Conhecia o canal como a palma
da mão, e embora o encarregado da sonda fosse encontrando
sempre mais água do que a indicada no mapa, o John nunca
mostrou qualquer hesitação.
- Há aí uma corrente forte na vazante - dizia - e, por assim
dizer, este canal foi cavado à pá.
Lançámos ferro precisamente no sítio indicado no mapa, a
cerca de quatrocentos metros de terra e a igual distância da
Ilha do Esqueleto. O fundo era de areia limpa. O largar da
âncora fez levantar nuvens de aves que revolutearam num coro
de pios sobre o arvoredo, mas em menos de um minuto tornaram a
poisar, e tudo ficou de novo em silêncio.
O local era inteiramente resguardado, metido no matagal
cujas árvores desciam mesmo até à marca da maré alta, com o
areal plano na sua maior parte, e os topos dos montes
erguendo-se em redor, à distância, numa espécie de anfiteatro,
um aqui, outro além. Dois regatos, ou melhor dizendo, dois
pântanos, desaguavam nesta lagoa que era a enseada, e a
folhagem em redor da praia tinha um brilho quase doentio. De
bordo nada podíamos distinguir de construção ou paliçada, pois
estariam inteiramente enterradas na mata e, se não fosse o
mapa guardado no camarote, dir-se-ia que bem podíamos ser os
primeiros a fundear ali desde que as ilhas tinham surgido no
oceano.
Não havia um sopro de ar, nem um som a não ser o das ondas a
quebrar na praia a umas centenas de metros e do lado de fora
do recife. No fundeadouro pairava um cheiro característico dos
lugares estagnados, o cheiro de folhas saturadas de água e de
troncos apodrecidos.


73


Observei o doutor a cheirar e a fungar, como quem prova um ovo
podre.
- Nada sei do tesouro - afirmou -, mas aposto a minha peruca
que aqui há febre.
Se na baleeira a conduta dos homens tinha sido alarmante,
tornou-se mesmo ameaçadora ao voltarem para bordo. Deixaram-se
ficar estendidos pelo convés, murmurando uns com os outros. A
ordem mais insignificante era recebida de nariz torcido, e
obedecida à má cara e com descuido. Até mesmo os que eram
honestos deviam ter sido contaminados, pois não havia um único
capaz de corrigir o vizinho. A amotinação, era evidente,
pairava sobre nós como nuvem de trovoada. E não éramos só nós,
os do lado do camarote, a farejar o perigo. O Long John
atarefava-se de grupo em grupo, esgotando-se a dar bons
conselhos, e nenhum haveria capaz de dar melhor exemplo.
Virava-se do avesso em boa vontade e civismo; era todo
sorrisos para toda a gente. Se era dada qualquer ordem, logo
saltava na muleta com o mais animado "muito bem, senhor"; e se
não havia mais nada para fazer, enfiava cantigas umas atrás
das outras, como se para esconder o descontentamento dos
outros.
De todos os detalhes sombrios daquela tarde pesada, era
aquela ansiedade por demais evidente do Long John que parecia
mais ameaçadora.
Reunimos em conselho no camarote.
- Senhor - afirmou o capitão -, se me arrisco a dar outra
ordem, eles caem-nos todos em cima. Aqui está como as coisas
se passam. Respondem-me torto, não é? Ora se eu repontar,
tenho logo um pau de dois bicos, mas se não disser nada, o
Silver percebe que estou a esconder qualquer coisa, e o jogo
começa. Agora, só podemos confiar num homem.
- E quem é? - perguntou o morgado.
- É o Silver, senhor - tornou o capitão. - Anda tão ansioso
como nós para acalmar as coisas. A crise é passageira; ele era
capaz de os dissuadir se tivesse oportunidade de o fazer.
Vamos dar-Lhes uma tarde de folga em terra. Se forem todos,
pois então podemos defender o navio. Se nenhum quiser ir,
então aguentamos o camarote, e que Deus defenda os justos. No
caso de irem só alguns, posso garantir-lhe, senhor, que o
Silver os trará de volta mansos como cordeiros.
Assim foi decidido; distribuíram-se pistolas carregadas a
todos os homens de confiança.


74 75


Os factos foram explicados ao Hunter, ao Joyce e ao Redruth,
que os ouviram com menos surpresa e mais ânimo do que tínhamos
esperado, e em seguida o capitão dirigiu-se ao convés e falou
ao pessoal.
- Meus rapazes - declarou -, tivemos um dia estafante, e
está tudo cansado e maldisposto. Uma volta em terra não faz
mal a ninguém, os escaleres ainda estão na água, podem pegar
nos arpões, e quem lhe apetecer pode passar a tarde em terra.
Eu dou um tiro de chamada meia hora antes do sol-posto.
Creio que os tolos devem ter pensado que davam logo com as
canelas no tesouro mal desembarcassem, porque num instante
lhes passaram os amuos, e soltaram um coro de vivas que ecoou
ao longe nos montes e fez de novo levantar a passarada com os
seus gritos, em redor do fundeadouro.
O capitão tinha astúcia bastante para ficar ali parado. Num
momento desapareceu de vista, deixando o Silver tratar do
grupo, e acho que ainda bem que o fez. Se tivesse ficado no
tombadilho, não poderia fingir que não entendia a situação.
Era claro como água. Quem comandava era o Silver, à frente
duma equipagem pronta a revoltar-se. Os homens sérios - e em
breve me ia ser provado que ainda ali os havia - deviam ter
sido uns sujeitos muito estúpidos. Ou, melhor dizendo, suponho
que a verdade era esta: que estavam todos neutralizados pelo
exemplo dos chefes de fila - mas uns em maior grau que outros;
e uns poucos, sendo já de si boas pessoas, não podiam ser
recrutados nem arrastados mais longe. Uma coisa é dar-se ao
ócio e à cobardia, e outra muito diferente é assaltar um navio
e matar uma porção de pessoas inocentes.
Por fim, o grupo ficou formado. Ficavam seis homens a bordo,
e os outros treze, incluindo o Silver, dirigiram-se aos botes.
Foi nessa altura que me veio à ideia a primeira das coisas
loucas que tanto haviam de contribuir para nos salvar as
vidas. Se o Silver deixava seis homens, era evidente que o
nosso grupo não podia tomar e defender o navio; e desde que só
ficavam seis, também se tornava claro que o grupo do camarote
não ia precisar da minha ajuda. Logo me ocorreu ir a terra.
Num ápice, deixei-me escorregar pela amura e enrolei-me no
paneiro da proa do barco mais próximo, quase no mesmo instante
em que ele desencostou.
Ninguém deu por mim a não ser o remador da ré, que
perguntou: - És tu, Jim? Vê se te abaixas. - Mas o Silver, na
outra baleeira, virou-se rápido para perguntar se eu ia ali, e
desde essa altura comecei a arrepender-me do que tinha feito.
Remaram em estilo de regata direitos à praia, mas o barco
onde eu ia, tendo algum avanço, e sendo ao mesmo tempo o mais
leve e o mais bem manejado, lançou-se muito à frente do
adversário, e logo metera a proa nas árvores da margem, já eu
tinha saltado para um ramo e no mesmo balanço me deixara cair
dentro dos arbustos mais próximos, ao passo que o Silver e os
outros ainda vinham uns cem metros atrás.
- Jim, Jim! - ouvi-o chamar.
Mas bem podem crer que não liguei nada; saltando,
baixando-me e rompendo caminho, corri e corri sempre a
direito, até não poder mais.


CAPÍTULO XIv


O primeiro recontro


Fiquei tão satisfeito por me ter escapado ao Long John,
que dei largas ao meu contentamento e tratei de observar com
interesse a terra estranha onde me encontrava. Atravessara um
terreno pantanoso cheio de salgueiros, juncos e árvores
bizarras e exóticas das zonas alagadiças; à minha frente
abria-se agora uma clareira de dunas arenosas com perto de
dois quilómetros, semeada de alguns pinheiros e grande número
de árvores retorcidas, de tamanho semelhante ao dos carvalhos,
mas de folhagem clara como a dos salgueiros. Na extremidade
oposta da clareira erguia-se um dos montes, com dois picos de
escarpas caprichosas brilhando vivamente ao sol. Pela primeira
vez sentia o encantamento de explorar. A ilha era deserta; os
meus companheiros de bordo deixara-os para trás, e não havia
vivalma em frente a não ser mudos animais bravios e aves.
Vagueei por entre as árvores. Aqui e ali havia plantas em
flor, que desconhecia; avistei algumas cobras, e uma delas
ergueu a cabeça de uma fenda na pedra e silvou-me com um ruído
que lembrava um pião a girar. Estava longe de supor que se
tratava dum inimigo mortal, e que aquele ruído provinha do
famoso chocalho.
Cheguei em seguida a um extenso bosque daquelas árvores
parecidas com carvalhos - carvalhos vivazes ou sempre-verdes,
como soube mais tarde que se chamavam - que se erguiam a pouca
altura ao longo dos silvados da cor da areia, com os ramos
caprichosamente retorcidos e a folhagem compacta, como colmo.
O bosque estendia-se em descida desde o topo de uma das dunas,
alargando-se e tornando-se mais alto até atingir a margem do
charco largo e coberto de ervas bravas, através do qual o mais
próximo dos córregos se espreguiçava até à enseada. O pântano
escaldava em vapor com o calor do sol, e a silhueta do Óculo
tremia para lá da névoa.
De chofre, do meio dos juncos levantou-se uma espécie de
tumulto; um pato levantou, grasnando, logo seguido por outros,
e em breve se erguia sobre todo o pântano uma grande nuvem de
pássaros aos gritos e a voar em círculos. Admiti logo que
alguns dos meus companheiros deviam estar a aproximar-se em
redor do pântano. E não me enganei, pois não tardei a ouvir os
tons distantes e graves de voz humana que, ao passo que ia
escutando, se tornavam cada vez mais altos e mais próximos.
Aterrado, gatinhei para debaixo do carvalho-vivaz mais
próximo e ali fiquei agachado, em ânsia, calado como um rato.
Outra voz respondeu; em seguida, a primeira, que agora
reconhecia ser a do Silver, sobrepôs-se-lhe e prosseguiu por
longo tempo, só poucas vezes interrompida pela do outro. Pelo
tom deviam ter estado a discutir com força, e quase com
violência, mas sem que eu conseguisse entender uma palavra
clara.
Por fim pareceram ter feito uma pausa, ou talvez se tivessem
sentado, pois não só deixaram de se aproximar como também os
próprios pássaros começaram a ficar mais calados e a voltar ao
seu poiso no pântano.
Comecei então a achar que me estava a desempenhar mal da
minha obrigação; que desde que cometera a loucura de
desembarcar com tais bandidos, o menos que podia fazer era
escutá-los quando conferenciassem, e que o meu dever imediato
e evidente era o de me aproximar tanto quanto possível, a
coberto da protecção favorável das árvores baixas.
Sabia exactamente em que direcção estavam, não só pelo som
das vozes mas também pelo resto dos pássaros que ainda
volteavam em alarme sobre os intrusos.
De gatas, fui-me aproximando deles com firmeza, mas devagar,
até que por fim, erguendo a cabeça por uma abertura na
folhagem, pude avistar uma pequena depressão relvada à borda
do charco, resguardada pelas árvores, onde o Long John Silver
e outro homem da tripulação conversavam, de pé.
A luz do sol batia-Lhes em cheio. O Silver tinha atirado o
chapéu ao chão e fixava no outro, numa espécie de apelo,
aquela grande cara lisa e rosada toda brilhante de calor.
- Moço - dizia -, é porque penso que vales tanto como ouro
em pó, ouro em pó, garanto-te! Se não confiasse tanto em ti,
pensas que estava para aqui a avisar-te? Está tudo pronto, não
há nada a fazer nem a mudar; se estou a falar é para te salvar
o pescoço, e se um daqueles malditos soubesse, onde estava eu,
bom, ora diz lá, onde estava eu?
- Silver - atalhou o outro, e pude ver-Lhe o rosto vermelho
e ouvir-lhe a voz rouca como a dum corvo que, aliás, vibrava
como um cabo esticado -, Silver - dizia -, és velho, e és
sério, ou tens fama disso, e depois tens dinheiro, que não é
como muitos marinheiros pobres, e tens coragem,


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ou me engano muito. E queres dizer-me que te vais deixar levar
com essa malta de latrineiros? Isso nem parece teu! Tão certo
como Deus me está a ver, até era capaz de ficar sem esta mão.
Se faltar ao meu dever...
Um ruído interrompeu-o de súbito. Acabara de descobrir um
dos homens sérios - e no mesmo instante ouvia sinais de mais
outro. Lá longe no pântano erguera-se de repente um som como
um grito de ódio, logo seguido de outro, e a seguir um berro
horrível e arrastado. Ficou por muito tempo a ecoar na penedia
do monte do Óculo; todas as aves do pântano se levantaram de
novo num rodopio que escureceu o céu; e muito depois daquele
grito de morte me latejar ainda na cabeça, já o silêncio
voltara a dominar e somente o adejar dos pássaros que pousavam
e o longínquo rumor da ressaca perturbavam a quietude da
tarde.
Tom dera um salto ao ouvir aquele som, como um cavalo
esporeado, mas o Silver nem pestanejara. Ficou onde estava,
apoiado à vontade na muleta, a observá-lo como uma serpente
pronta a saltar.
- John! - exclamou o marinheiro, estendendo a mão.
- Tira a mão! - gritou o Silver com um salto atrás, que aos
meus olhos teve a rapidez e segurança dum bom atleta.
- Como queiras, John Silver, pronto - retorquiu o outro. - É
a consciência suja que te faz ter medo de mim. Mas por todos
os santos, diz-me o que foi aquilo?
- Aquilo? - tornou o Silver, num sorriso largo mas mais
manhoso do que nunca, com os olhos feitos pontas de alfinete,
mas a brilhar como contas de vidro.
- Aquilo? Ora, julgo que deve ter sido o Alan.
E a estas palavras o pobre do Tom explodiu com bravura.
- O Alan! - gemeu. - Paz à sua alma de bom marinheiro! E
quanto a ti, John Silver, foste meu amigo muito tempo, mas já
não és. Se eu morrer como um cachorro vai ser a cumprir o meu
dever. Então mataste o Alan, não mataste? Pois mata-me também,
se puderes. Mas desafio-te.
E o valente moço voltou costas ao cozinheiro para se afastar
em direcção à praia. Mas o destino não o ia levar longe. Com
um rugido, o John segurou-se a um ramo de árvore, empunhou a
muleta e arremessou-a como um dardo improvisado que silvou no
ar. A ponta atingiu o pobre Tom com espantosa violência em
cheio entre os ombros, no meio das costas. Levantou os braços,
soltou uma espécie de soluço e tombou.
Era impossível saber se estava muito ou pouco ferido. Aliás,
a julgar pelo som que fez, partira logo a espinha.


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Mas nem sequer lhe foi dado tempo de voltar a si. O Silver,
ágil como um macaco, mesmo sem perna nem muleta, saltou-lhe em
cima no instante imediato e cravou duas vezes a faca até ao
cabo naquele corpo indefeso. Do meu esconderijo pude ouvi-lo
arfar de esforço ao dar os golpes.
Não sei bem o que é desmaiar, mas sei que por um curto
momento tudo começou a flutuar afastando-se de mim num
redemoinho de névoa; o Silver e os pássaros e o alto do Óculo
giraram em redor e de pernas para o ar, de mistura com toda a
espécie de sinetas e de vozes distantes que me gritavam aos
ouvidos.
Quando voltei a mim, o monstro recompusera-se e tinha a
muleta debaixo do braço e o chapéu na cabeça. No relvado, a
seus pés, o Tom jazia imóvel, mas sem que o assassino lhe
prestasse a mínima atenção, ocupando-se a limpar a faca tinta
de sangue a um punhado de erva. Nada mais tinha mudado, o sol
continuava a cintilar impiedoso no charco sobreaquecido e na
crista da montanha, e mal podia acreditar no assassínio que
ocorrera, na vida humana tão brutalmente interrompida um
momento antes, diante dos meus olhos.
Em seguida, o Long John tirou do bolso um apito e nele
soprou várias notas moduladas que atravessaram o ar
escaldante. Claro que desconhecia o significado daquele sinal,
que logo despertou em mim todos os receios. Iam chegar outros
homens. Podiam descobrir-me. Já tinham morto duas das pessoas
de confiança; a seguir ao Tom e ao Alan não iria chegar a
minha vez?
Sem hesitar, comecei a sair do esconderijo e a recuar de
rastos, tão depressa e sem barulho quanto me era possível,
para a parte mais aberta do bosque. Entretanto, podia ouvir os
gritos trocados entre o velho pirata e os companheiros, e este
som do perigo deu-me asas. Logo que me livrei da sebe corri,
como nunca correra antes, pouco me importando em que direcção
fugia desde que fosse para longe dos assassinos e, ao passo
que fugia, o medo apossou-se cada vez mais de mim, até se
tornar numa espécie de frenesi.
Na verdade, quem podia estar mais definitivamente perdido do
que eu estava? Quando a peça de bordo desse o tiro de sinal,
como ia atrever-me a ir para os barcos no meio dos demónios,
ainda quentes dos crimes que tinham praticado? O primeiro que
me visse não era capaz de me torcer logo o pescoço como a uma
narceja? E a minha ausência não lhes ia provar o meu alarme, e
por conseguinte o meu fatal conhecimento do sucedido?
Convenci-me de que estava tudo acabado.


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Adeus Hispaniola, adeus morgado, doutor e capitão. Só me
restava morrer à fome, ou às mãos dos amotinados.
Assim pensando, como digo, continuava a correr e, sem dar
por isso, chegara perto da base da elevação com os dois picos,
numa zona da ilha onde os carvalhos bravos eram mais espaçados
e mais parecidos com árvores da floresta no seu porte e
tamanho. Misturados com eles havia alguns pinheiros dispersos,
uns com perto de quinze, outros com mais de vinte metros de
altura. E sentia, também, o ar mais fresco do que ao pé do
pântano.
Foi ali que um novo susto me imobilizou e o coração me
latejou desordenado.

CAPÍTULO XV


O homem da ilha


Da encosta, que ali era íngreme e pedregosa, deslocou-se
uma porção de saibro que caiu com ruído e rolou entre as
árvores. Olhei instintivamente naquela direcção e avistei um
vulto saltar com grande rapidez para trás dum pinheiro. Não
pude perceber do que se tratava, fosse urso, homem ou macaco.
Pareceu-me escuro e peludo, mais não sabia. Mas o terror desta
nova aparição fez-me estacar.
Devia estar, então, com o caminho cortado pelos dois lados;
atrás de mim os assassinos, e à frente aquela coisa a
espreitar. Desde logo dei comigo a preferir os perigos já
passados àqueles que ainda desconhecia. O próprio Silver me
parecia menos medonho em contraste com aquela criatura da
floresta, e, fazendo meia volta, a olhar por cima do ombro,
comecei a andar para trás em direcção aos botes.
Logo aquele vulto voltou a mostrar-se e, fazendo uma volta
larga, começou a passar-me à frente. Estava cansado mas, mesmo
que estivesse tão fresco como quando me levantara, pude ver
que em vão podia competir em velocidade com tal adversário. De
árvore a árvore, a criatura deslizava como um veado, a correr
como um homem com duas pernas e no entanto diferente de
qualquer outro que eu tivesse visto, dobrando-se quase ao meio
enquanto corria. Mas era de um homem que se tratava, disso já
não podia duvidar.
Lembrei-me do que ouvira contar dos canibais. Estava quase a
ponto de gritar por socorro. Mas o simples facto de se tratar
dum homem, embora selvagem, tranquilizou-me, e o medo que
sentia pelo Silver retomou a sua medida normal. Por
conseguinte fiquei imóvel, para magicar em qualquer processo
de fuga e, enquanto assim pensava, lembrei-me da minha
pistola. Ciente de não estar indefeso, a coragem voltou-me ao
coração, resolutamente, voltei-me para o homem da ilha e a ele
me dirigi em passo firme.
Escondera-se atrás doutro tronco, mas devia continuar a
espiar-me pois, logo que avancei, reapareceu e deu um passo ao
meu encontro.


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Depois hesitou, recuou, avançou de novo e, por fim, para meu
espanto e confusão, deixou-se cair de joelhos e estendeu as
mãos juntas, em súplica.
De novo parei.
- Quem é o senhor? - perguntei.
Como fechadura ferrugenta, uma voz rouca e desajeitada
respondeu: - Ben Gunn. Sou o pobre Benjamim Gunn, sou, e vai
para três anos que não falo com um cristão.
Podia agora ver que era um branco como eu, e até de feições
simpáticas. Onde se mostrava, a pele estava tostada do sol,
até os beiços eram pretos, e no meio do rosto tão escuro havia
a surpresa duns olhos claros. Entre todos os pobres de pedir
que vira ou imaginara, era ele o mais completo dos
maltrapilhos. Estava coberto de pedaços de velas e lonas
velhas, e tal manta de remendos era segura por um conjunto dos
mais variados e estranhos botões de latão, bocados de pau e
atilhos de estopa alcatroada. Um cinturão velho com fecho de
latão era a única coisa sólida do vestuário.
- Três anos! - exclamei. - Naufragado?
- Não, moço - respondeu. - Largado ao abandono.
Já ouvira falar daquilo e sabia tratar-se dum cruel castigo
bastante vulgar entre os piratas, pelo qual o réu era
abandonado em terra com um pouco de pólvora e chumbo e deixado
só em qualquer ilha deserta e longínqua.
- Largado já lá vão três anos - continuou -, e desde aí vivi
das cabras, bagas e ostras. Podes crer que, onde quer que
esteja, um homem pode safar-se sozinho. Mas olha, moço, que
ando doente por comida cristã. Por acaso não terás um bocado
de queijo? Não? Bom, nem sabes as noites que sonhei com
queijo, as mais das vezes tostado, e ao acordar, aqui estava
eu.
- Se eu puder voltar a bordo - prometi -, hás-de ter queijo
às arrobas.
Enquanto isso ele ia apalpando o tecido do meu casaco,
tacteava-me as mãos, admirava-me as botas e em tudo, nos
intervalos da conversa, demonstrava um prazer infantil na
presença dum semelhante. Mas reagiu às minhas últimas palavras
com uma espécie de desconfiança assustada.
- Se puderes voltar a bordo, dizes tu? - repetiu. - Ora,
então quem te vai impedir?
- Lá tu não hás-de ser - repliquei.
- Isso tens razão - exclamou. - Ora tu... como te chamas,
moço?
- Jim.


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- Jim, Jim - observou, parecendo muito satisfeito. - Pois
olha, Jim, levei vida tão dura que ficavas envergonhado só de
ouvir. Olha, por exemplo, ao olhar para mim não eras capaz de
pensar que a minha mãezinha era uma santa? - perguntou.
- Ora, nem por isso - respondi.
- Pois é - declarou -, mas era mesmo santinha. E eu fui um
rapaz bem educado e muito devoto, capaz de papaguear o
catecismo tão depressa que não se distinguiam as palavras. E
aqui tens onde ele chegou, Jim, e tudo começou por jogar ao
carolo nas campas do cemitério! Foi assim que começou, mas foi
mais além, como a minha mãe me disse, e tudo previu aquela
santa. Mas o que aqui me trouxe foi a Providência. Nesta ilha
solitária tudo me passou pelo pensamento e voltei a ser
devoto. Já não me podes apanhar a beber tanto rum, mas só um
dedalzinho dele, logo que puder. Estou resolvido a ser bom, e
sei como hei-de fazer. E, Jim... - olhando em volta e baixando
a voz num murmúrio... - sou rico.
Fiquei convencido que o pobre tinha enlouquecido na sua
solidão, e creio que deixei transparecer essa impressão na
minha cara, pois repetiu aquela frase com calor:
- Rico! Rico! Digo-to eu. E digo-te que vou fazer de ti um
homem, Jim. Ah, Jim, abençoada a tua sorte, tu que foste a
primeira pessoa a encontrar-me!
Neste ponto, o rosto ensombrou-se-lhe e, apertando-me mais a
mão, levantou um dedo ameaçador.
- Agora, Jim, diz-me a verdade, aquele barco não é o do
Flint? - interrogou.
- Não é o do Flint e ele morreu, mas digo-te a verdade como
pedes, há alguns dos homens do Flint a bordo, e é um azar para
nós.
- Não há um homem... duma... perna só? - soprou.
- Silver? - perguntei.
- Isso, Silver! - confirmou. - Era o nome dele.
- Esse é o cozinheiro e também o chefe do bando.
Ainda me agarrava o pulso e, ao ouvir aquilo, torceu-mo com
força.
- Se foi o Long John que te mandou - disse -, já sei que
estou feito em picado. Mas onde julgas que estás?
Só levei um instante a resolver-me e, em resposta,
contei-lhe toda a história da viagem e a situação em que nos
encontrávamos. Escutou-me com o maior interesse, e quando
terminei fez-me uma festa na cabeça.
- És um bom moço, Jim - declarou -, e estão todos metidos
num grande sarilho, não estão? Bem, basta que confies no Ben
Gunn... Cá o Ben Gunn é o homem indicado.


84 85


Agora, achas possível que o teu morgado se mostre generoso em
caso de ajuda... visto estar metido num sarilho, como dizes?
Disse-Lhe que o morgado era o mais generoso dos homens.
- Bom, mas bem vês - tornou o Benjamim Gunn -, a mim não me
interessa ser porteiro e andar de libré ou coisas dessas, não
é por aí que eu vou, Jim. O que quero saber é se ele é homem
para arranjar umas mil libras em dinheiro a um sujeito que já
as tem por contadas?
- Com certeza que sim - assegurei. - O que foi combinado foi
que cada um havia de ter a sua parte.
- E mais a viagem de volta? - acrescentou, com grande
esperteza.
- Ora - exclamei -, o morgado é um cavalheiro. E além disso,
se nos livrarmos dos outros, havemos de precisar de ti para
trabalhar na volta.
- Ah - respondeu -, pois é. - E pareceu muitíssimo aliviado.
- Agora vou contar-te - continuou. - Vou contar-te só isto,
e mais nada. Estava eu no navio do Flint quando ele enterrou o
tesouro, ele e mais seis... seis tipos fortes. Andaram em
terra perto duma semana, e nós lá esperámos e tornámos a
esperar no velho Walrus. Um belo dia deram o sinal, e lá chega
o Flint sozinho num bote, com um lenço azul atado à cabeça. O
sol estava a nascer, e ao encostar ele vinha mais branco que
um morto. Mas ouve, lá voltou ele, mas os outros seis estavam
todos mortos... mortos e enterrados. Ninguém a bordo.
"Ninguém pôde imaginar como ele tinha feito aquilo. Foi
luta, assassínio, morte súbita... pelo menos, ele contra seis.
O Billy Bones era o imediato, o contramestre era o Long John,
e perguntaram-lhe onde estava o tesouro.
- Ah., se querem saber podem ir a terra e ficarem lá - disse
ele -, mas cá o navio vai mas é buscar mais, cum raio! - foi o
que ele disse.
"Bom, há três anos ia eu noutro barco e avistámos a ilha. -
Moços - disse eu -, é ali que está o tesouro do Flint, vamos a
terra descobri-lo. - O capitão não gostou nada daquilo, mas os
meus companheiros puseram-se todos de acordo, e desembarcaram.
Doze dias o levámos a procurar, e cada dia que passava mais eu
era insultado, até que numa bela manhã voltaram todos para
bordo. - Quanto a ti, Benjamim Gunn - declararam -, aqui tens
um mosquete, uma pá e uma picareta. Podes ficar aí e encontrar
sozinho o dinheiro do Flint - foi o que me disseram.
"Bem, Jim, por cá fiquei três anos, e nem uma dentada de
comida cristã até hoje. Mas agora, olha cá, olha para mim.
Achas que tenho ar de moço de convés? Não, dizes tu. E até nem
era, digo-to eu.
Piscou o olho e beliscou-me com força.
- Trata de dizer isto ao teu morgado, Jim - prosseguiu. - E
até nem era, é a verdade. Por três anos fui o homem desta
ilha, dia e noite, com sol e chuva, e às vezes talvez pensasse
em rezar (dirás tu), e às vezes talvez pensasse na mãe, quem
sabe se ainda viva (vais tu dizer), mas a maior parte do tempo
o Gunn (é o que lhe vais dizer), a maior parte do tempo andava
ele ocupado com outro assunto. E dás-lhe um beliscão, como eu
a ti.
E de novo me beliscou, com todo aquele ar de confidência.
- A seguir - continuou -, pões-te muito sério e dizes isto:
que o Gunn é boa pessoa, e deseja confiar mais que tudo, mais
que tudo, não te esqueças, num verdadeiro cavalheiro do que
naquela ladroagem a quem se juntou.
- Está bem - atalhei -, não percebo nada do que disseste.
Mas isso não vem para o caso, pois como é que posso ir para
bordo?
- Ah - respondeu -, então é esse o azar. Olha, temos a minha
bateira que fiz com estas mãos. Guardo-a debaixo da pedra
branca. Na pior das hipóteses, podemos tentar depois do
anoitecer. Ai! - interrompeu-se -, que foi aquilo?
Nesse momento, embora ainda faltasse uma ou duas horas para
o pôr do Sol, todos os ecos da ilha despertaram e responderam
ao troar do canhão.
- Começou a luta! - gritei. - Segue-me!
E lancei-me em corrida para o ancoradouro, esquecendo todos
os receios, ao passo que o desterrado, envolto nos seus
farrapos, trotava ao meu lado com facilidade e leveza.
- À esquerda, à esquerda - dizia ele -, segue pela esquerda,
camarada Jim! Mete-te debaixo das árvores! Foi ali que cacei a
primeira cabra. Agora já não descem cá abaixo, ficaram todas
trepadas no monte com medo do Benjamim Gunn.
- Ah! E lá está o cetimério - o que ele queria dizer era
cemitério. - Vês os montes de terra? Vim cá rezar de vez em
quando, quando achava que devia ser domingo. Não era nenhuma
igreja, mas até parecia mais solene, mas então, dizes tu, o
Ben Gunn não tinha ajuda nenhuma, nem padre, nem sequer uma
Bíblia e um pendão, dirás tu.
Assim continuava a palrar enquanto corríamos, sem esperar
nem receber resposta.


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Depois de grande intervalo, o tiro do canhão foi seguido por
uma descarga de armas pequenas.
Nova pausa e, então, a menos de trezentos metros à nossa
frente, avistei a bandeira nacional a tremular por cima do
arvoredo.

Quarta Parte


A paliçada


CAPÍTULO XVI


Narrativa retomada pelo médico

- Como o navio foi abandonado


Foi perto da uma hora e meia - três badaladas para a
gente do mar - que do Hispaniola saíram dois escaleres para
terra. O capitão, o morgado e eu encontrávamo-nos no camarote
a passar em revista os acontecimentos. Se houvesse um sopro de
vento, teríamos caído em cima dos seis revoltosos que connosco
tinham ficado, deixado a amarra e largado para o mar alto. Mas
faltava o vento e, para cúmulo da nossa falta de defesa, veio
o Hunter anunciar-nos que o Jim Hawkins se tinha escapado para
um dos botes para ir a terra com os outros.
Não nos passava pela ideia desconfiar do Jim Hawkins, mas
ficámos preocupados pela sua segurança. Com a disposição em
que os homens estavam, tornar a ver o rapaz não passava de
simples hipótese. Corremos para o convés. O alcatrão fazia
bolhas nas juntas, o cheiro penetrante enjoou-me, se havia um
cheiro da febre e da desenteria era naquele ancoradouro
abominável. Os seis malandros estavam sentados a murmurar,
debaixo duma vela no castelo de proa; para terra podíamos
avistar os botes amarrados, cada um com um homem sentado,
junto à embocadura do rio. Um deles assobiava o "Lilibolero".
A espera era um tormento, por isso foi decidido que o Hunter
fosse comigo a terra na canoa em busca de informações.
Os botes tinham-se inclinado para a direita, mas avançámos
sem desvio na direcção da paliçada indicada no mapa. Os dois
que tinham ficado de guarda aos barcos pareceram agitados ao
ver-nos, o assobio interrompeu-se e avistei a discussão entre
os dois quanto ao que haviam de fazer. Se tivessem saído dali
para ir avisar o Silver, tudo podia ter sido diferente, mas
tinham as suas ordens, creio, e resolveram ficar onde estavam
e continuar o "Lilibolero".
Havia uma ligeira quebrada na praia, e manobrei o barco de
modo a ficar por detrás dela. Os botes desapareceram mesmo
antes de tocarmos em terra, saltei e pus-me a andar tão
depressa quanto pude, com um lenço grande de seda sob o chapéu
para me sentir mais fresco e tendo como protecção um par de
pistolas carregadas de novo.


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Ainda não tinha andado cem metros quando cheguei à paliçada.
Era a seguinte a sua configuração: havia uma fonte de água
clara no topo duma elevação. Sobre esta, em redor da fonte,
tinham construído uma casa de toros bem robusta, capaz de
abrigar uns quarenta homens à vontade, e com frestas para
mosquetes por todos os lados. Em redor de tudo isto tinha sido
aberta uma clareira larga, que por sua vez era circundada por
uma paliçada de metro e oitenta de alto, sem portas nem
aberturas, demasiado forte para ser derrubada sem tempo nem
trabalho, e demasiado aberta para oferecer protecção aos que a
sitiassem. As pessoas que estivessem na fortificação de toros
levariam sempre a melhor, deixavam-se ficar tranquilamente no
abrigo e atiravam aos outros como às perdizes. Tudo o que
precisavam era de boa vigilância e de comida pois, a menos que
fossem tomados de surpresa, podiam resistir a um regimento.
O que mais me admirou foi a nascente. Pois, embora no
camarote do Hispaniola dispuséssemos de bom espaço, com
abundância de armas, munições e comida, incluindo vinhos dos
melhores, uma coisa havia que não fora prevista - não tínhamos
água. Pensava nestas coisas quando retumbou na ilha o grito
dum homem às portas da morte. A morte violenta não era
novidade para mim - servi às ordens de sua alteza real o duque
de Cumberland, e fui ferido em Fontenoy -, mas senti o coração
falhar-me. "Lá se foi o Jim Hawkins", foi o meu primeiro
pensamento.
Alguma coisa é ter-se sido soldado, mas mais ainda é ser-se
médico. Nesta profissão não há tempo para desperdiçar. Assim,
a minha decisão foi instantânea, e sem demora voltei à praia e
saltei para a canoa.
Por sorte, o Hunter era bom remador. A água voou, a canoa
acostou e saltei para bordo da escuna.
Como era natural, todos estavam agitados. O morgado,
sentado, branco como um lençol, preocupava-se com os males em
que nos havia metido, pobre alma! E um dos seis homens do bico
da proa pouco melhor estava.
- Ali está um homem - disse o capitão Smollett, indicando-o
- que ainda é novo nesta vida. Quando ouviu aquele grito,
doutor, esteve quase a desmaiar. Mais um jeito do leme e
passa-se para o nosso lado.
Disse ao capitão qual era o meu plano, e entre nós tratámos
dos pormenores para o executar.


91


Pusemos o velho Redruth no corredor entre o camarote e o
castelo de proa, com três ou quatro mosquetes carregados e um
colchão a protegê-lo. O Hunter trouxe o escaler sob o portaló
da popa, e o Joyce e eu pusemo-nos a carregá-lo com pólvora,
latas, armas, sacos de bolachas, barricas de carne, um pipo de
aguardente e a minha preciosa mala de medicamentos.
Entretanto, o morgado e o capitão ficaram no convés, e este
último chamou o timoneiro, que era o principal graduado a
bordo.
- Senhor Hands - disse -, aqui estamos ambos com um par de
pistolas cada um. Se qualquer de vocês seis fizer um só gesto
suspeito, é um homem morto.
Recuaram todos, encolhidos; após breve conferência,
dirigiram-se em conjunto para a camarata de vante, pensando,
por certo, apanhar-nos de costas voltadas. Mas quando deram
com o Redruth à espera deles no corredor improvisado, mudaram
logo de direcção e de novo se viu aparecer uma cabeça no
convés.
- Para baixo, cachorro! - bradou o capitão.
A cabeça voltou a esconder-se, e não voltámos a ter notícia
daqueles seis marujos tão amedrontados.
Arrumando tudo à pressa, tínhamos carregado a canoa até não
poder mais. O Joyce e eu saímos pelo portaló da popa e remámos
de novo para terra tão depressa quanto podíamos.
Esta segunda excursão não deixou de despertar a atenção dos
guardas na praia.
O "Lilibolero" foi interrompido outra vez e, logo antes de
os perdermos de vista atrás da ponta de terra, um deles saltou
e desapareceu. Ainda pensei em mudar o plano para lhes
destruir os barcos, mas receava que o Silver e os outros se
encontrassem por perto, e podia deitar tudo a perder por
arriscar demais.
Desembarcámos no mesmo ponto da primeira vez e tratámos de
equipar o fortim. Seguimos os três pelo mesmo caminho, com
toda a carga às costas, e lançámos as provisões por cima da
paliçada.
Seguidamente deixámos o Joyce de guarda - claro que era só
um, mas com meia dúzia de mosquetes -, voltando o Hunter
comigo à canoa para trazermos novo carregamento. Assim
prosseguimos, sem tempo de respirar, até todo o material estar
arrumado e os dois homens ficarem a postos no fortim enquanto
eu, com as forças de que ainda dispunha, ginguei o barco de
volta ao Hispaniola.
Correr o risco de outro carregamento completo parece mais
audacioso do que na realidade era. Era evidente que eles
tinham a vantagem do número, mas nós tínhamos a das armas. Nem
um único dos que estavam em terra tinha um mosquete e,


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antes de chegarem ao alcance das pistolas, podíamo-nos gabar
de dar cabo de meia dúzia, pelo menos.
O morgado esperava-me à vigia da ré, com toda a energia
recuperada. Agarrou o cabo e prendeu-o, e lançámo-nos a
carregar o barco a toda a pressa. Levámos carne de porco,
pólvora e bolachas, só com mais um mosquete e um sabre por
cabeça para o morgado e para mim, o Redruth e o capitão. O
resto das armas e pólvora lançámo-las pela borda em duas
braças e meia de água. de modo que podíamos ver o brilho do
aço lá em baixo à luz do sol, no fundo de areia limpa.
A maré começava a descer, e o navio a rodar em torno da
âncora. Ouvimos vozes ao longe, do lado das baleeiras; embora
isso nos tranquilizasse quanto ao Joyce e ao Hunter, que
estavam bastante para nascente, era um aviso para que
partíssemos.
O Redruth retirou do seu posto no corredor e lançou-se no
barco, que então levámos de volta à amurada para receber o
capitão Smollett.
- Agora, senhores - disse este -, ouvem-me?
Da vante não deram resposta.
- É contigo, Abraham Gray, é contigo que falo.
Ainda nenhuma resposta.
- Gray - tornou o senhor Smollett, um pouco mais alto -, vou
deixar o navio, e dou-te ordem de seguires o teu capitão. Sei
que no fundo és bom homem, e até digo que nenhum dos outros
que aí estão é tão mau como quer parecer. Tenho aqui o meu
relógio, dou-te trinta segundos para te apresentares.
Um intervalo.
- Anda, meu rapaz - prosseguiu o capitão -, não estejas a
perder tempo. Cada segundo que passa estou a arriscar a minha
vida e a destes senhores.
Houve um restolho brusco, um ruído de pancadas, e de lá saiu
o Abraham Gray com um golpe de faca na face, correndo para o
capitão como um cão à chamada do dono.
- Estou com o senhor, comandante - afirmou.
Logo a seguir saltaram para junto de nós e pusémo-nos ao
largo.
Tínhamos deixado o navio, mas ainda faltava chegar a terra e
à nossa paliçada.

CAPÍTULO XVII


Prosseguimento da narrativa do médico

- A última viagem da canoa


Aquela quinta vez foi muito diferente das outras todas.
Em primeiro lugar, o barco onde nos metemos mais parecia um
pucarinho e estava perigosamente sobrecarregado. Cinco
adultos, e três deles - Trelawney, Redruth e o capitão - com
mais de metro e oitenta de altura, já ultrapassavam a sua
capacidade. A somar havia a pólvora, carne e sacas de pão. A
borda da ré ia metida na água. Por diversas vezes esta entrou,
e antes de percorrermos cem metros já os meus calções e as
abas do casaco estavam ensopados.
O capitão obrigou-nos a equilibrar o barco, e conseguimos
pô-lo um pouco mais direito. Mesmo assim, nem para respirar
nos sentíamos seguros.
Em segundo lugar, a vazante estava agora a puxar - uma
corrente forte e encrespada que seguia para poente pela baía,
e depois para o sul e para o mar alto pelos estreitos por onde
entráramos de manhã. Até as pequenas ondas eram um perigo para
a embarcação sobrecarregada, mas o pior de tudo era que
estávamos a ser arrastados do nosso curso normal,
afastando-nos do ponto de desembarque do lado de lá da ponta
de terra. Se nos deixássemos levar pela corrente, devíamos ir
parar à praia ao lado das baleeiras, onde os piratas podiam
aparecer de um momento para o outro.
- Não consigo meter a proa na paliçada, senhor - avisei o
capitão. Ia eu ao leme e ele a remar com o Redruth, por serem
os mais robustos. - A maré ainda nos leva. Não podem puxar
mais forte?
- Não, porque nos afundamos - respondeu. - Tem de aguentar,
por favor, aguentar até ver se avança.
Tentei, mas vi que a corrente continuava a arrastar-nos para
oeste até lhe acertar a proa a nascente, ou com o leme em
ângulo recto com o rumo que tínhamos de seguir.
- Nunca mais lá chegamos por este andar - afirmei.
- Se é o único curso a seguir, senhor, temos mesmo de o
seguir - retorquiu o capitão. - Temos de ir contra a corrente.
Ora veja - prosseguiu -, se garrarmos para sotavento do
desembarque, é difícil prever onde iremos encalhar,


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e além disso podemos ser abordados pelos escaleres, mas por
aqui a corrente acaba por ceder, e depois podemos voltar atrás
pela praia adiante.
- A corrente já não é tão forte, senhor - avisou o Gray, que
seguia sentado nos paneiros da proa -, pode aliviar um pouco.
- Obrigado, meu rapaz - respondi, como se nada tivesse
sucedido, pois havia entre todos um acordo tácito para o
tratar como um dos nossos.
De chofre, o capitão tornou a falar, e pensei notar-lhe uma
pequena mudança na voz.
- O canhão! - exclamou.
- Já pensei nisso - atalhei, certo de que ele pensara num
bombardeamento do forte. - Não o podem trazer para terra, e
mesmo se pudessem, nunca conseguiam transportá-lo pela
floresta.
- Olhe lá atrás, doutor - respondeu o capitão.
Tínhamo-nos esquecido totalmente da peça de nove, e lá
estavam, para consternação nossa, os cinco bandidos atarefados
à volta dela, retirando o jaquetão, como chamavam ao encerado
forte que a cobria durante a viagem. E não era só isso, mas
também ao mesmo tempo me lembrei que deixáramos ficar as
munições e a pólvora do canhão, e que bastava um golpe de
machado para pôr tudo ao dispor daqueles demónios.
- O Israel era o artilheiro do Flint - observou Gray, com a
voz rouca.
Arriscando tudo, enfiámos a proa do barco direita ao ponto
de desembarque. Por essa altura já nos tínhamos distanciado o
bastante da força da corrente para equilibrar o rumo com o
ritmo necessariamente lento da remada, de modo a podermo-nos
manter apontados ao destino. Mas o pior era que, nesse rumo,
ficávamos virados bem de lado para o Hispaniola, em vez de
estarmos de popa, oferecendo assim um alvo tão grande como a
porta dum palheiro.
Pude ouvir, tão bem como ver, aquele danado borrachão do
Israel Hands atirar no convés uma das balas redondas.
- Quem é o nosso melhor atirador? - perguntou o capitão.
- É o senhor Trelawney, e de longe - respondi.
- Senhor Trelawney, o senhor faz-me o favor de abater um
daqueles homens? Se possível o Hands? - pediu o capitão.
Trelawney manteve-se calmo como aço. Observou o fulminante
da arma.
- Agora - exclamou o capitão -, cuidado com essa arma,
senhor, para não afundar o barco. Atenção, todos equilibram o
barco quando ele apontar.


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O morgado levantou a arma, os remos pararam, e inclinámo-nos
para manter o equilíbrio, com tal harmonia que nem gota de
água entrou.
Entretanto, os do navio tinham feito rodar o canhão no seu
eixo e o Hands, que estava à boca da peça com o escovilhão,
era por isso o mais exposto. Mas não tivemos sorte, porque no
instante em que Trelawney disparara ele abaixou-se e a bala,
assobiando-lhe por cima, foi atingir um dos outros quatro.
O grito que soltou foi respondido não só pelos companheiros
de bordo mas também por grande número de vozes de terra, e
quando para lá olhei vi os restantes piratas a sair em corrida
do arvoredo e a precipitarem-se para os escaleres.
- Aí vêm eles, senhor - avisei.
- A toda a força - comandou o capitão. - Agora não interessa
se vamos ao charco. Se não pudermos desembarcar, acabou-se.
- Só um bote é que tem homens, senhor - acrescentei -, a
tripulação do outro se calhar vai por terra cortar-nos o
caminho.
- Vão ficar fartos de correr, senhor - retorquiu o capitão.
- Sabe como é o marinheiro em terra. Com eles não me preocupo,
mas sim com as balas da peça. Aqueles berlindes! Nem a criada
da minha mulher falhava o tiro. Diga-nos, morgado, quando vir
a mecha, e o resto é lógico.
Tínhamos entretanto avançado em boa média para um batel tão
carregado, metendo relativamente pouca água. Já estávamos bem
perto, mais trinta a quarenta remadas e encalharíamos, pois a
vazante já deixara à vista uma língua de areia estreita abaixo
da cortina de árvores. A baleeira já não nos assustava, a
ponta de terra já a ocultara. A maré, que tão cruelmente nos
retardara, estava agora a compensar-nos, demorando os nossos
perseguidores. O perigo só podia vir da peça.
- Se me atrevesse - afirmou o capitão -, era capaz de parar
para liquidar outro homem.
Mas era evidente que tudo faziam para não demorar o tiro do
canhão. Nem sequer tinham olhado para o camarada tombado,
embora não tivesse morrido, pois pude vê-lo tentando
arrastar-se.
- Prontos! - gritou o morgado.
- Firme! - bradou o capitão, rápido como o eco.
E ele e o Redruth recuaram com um grande puxão que meteu a
ré toda dentro de água. No mesmo instante soou o tiro. Foi o
primeiro que o Jim ouviu, não lhe tendo chegado o som do tiro
do morgado. Nenhum de nós soube precisamente quando o
projéctil passou por nós, mas imagino que tenha sido mesmo por
cima da cabeça e que talvez a sua deslocação do ar tenha
contribuído para o nosso desastre.


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O certo é que a canoa se afundou pela ré, muito devagar, num
metro de água, deixando-me a mim e ao comandante em pé, de
frente um para o outro. Os outros três mergulharam de cabeça e
levantaram-se, ensopados e a deitar água por todos os lados. ;
Até aí o mal não foi grande. Não havia baixas, e podíamos cha
pinhar a salvo para terra. Mas ficaram todas as provisões no
fundo e, para piorar as coisas, só duas das cinco armas
estavam em condições. Tirara à pressa a minha dos joelhos e
segurara-a acima da cabeça, como por instinto. Quanto ao
capitão, tinha a dele às costas em bandoleira, mas com a
coronha virada para cima, muito sensatamente. As outras três
também tinham tomado um banho.
Para aumentar a nossa preocupação, ouvimos vozes que se
aproximavam ao longo da floresta da praia, e corríamos não só
o perigo de nos ser cortado o caminho da paliçada, no estado
de inferioridade em que ficáramos, como também o que nos
esperava se, no caso do Hunter e do Joyce serem atacados por
meia dúzia deles, não estivessem ambos à altura para aguentar
o assalto. Que o Hunter era rijo, isso sabíamos nós, o Joyce
já oferecia dúvidas - era um homem agradável e educado como
criado de quarto e para tratar de roupas, mas com aptidão
insuficiente para soldado de linha. Com tudo isto no espírito,
chapinhámos para terra o mais depressa que nos foi possível,
deixando para trás a pobre canoa e praticamente metade de toda
a pólvora e provisões.


CAPÍTULO XVIII


Continua a narrativa do médico


- Fim das lutas do primeiro dia


Atravessámos com toda a rapidez possível a zona da
floresta que aí nos separava da paliçada, e a cada passo as
vozes dos piratas se aproximavam mais. Em breve podíamos
ouvir-lhes as passadas, e o restolho dos ramos quando
atravessavam alguma sebe de arbustos.
Comecei a ver que o embate estava para muito breve, e tratei
dos meus fulminantes.
- Comandante - pedi. - O Trelawney é o melhor atirador.
Dê-lhe a sua arma, a dele está imprestável.
Trocaram-nas, e Trelawney, calado e frio como sempre desde
que começara o tumulto, interrompeu por um momento a marcha
para verificar se estava tudo em ordem. Ao mesmo tempo, vendo
que o Gray estava desarmado, passei-lhe o meu sabre. A todos
nos animou vê-lo cuspir na mão, carregar o sobrolho e fazer a
lâmina cantar no ar. Toda a sua atitude demonstrava claramente
que aquele novo membro do grupo valia bem o que pesava.
Quarenta passos à frente, chegámos à borda do bosque e
avistámos a paliçada. Atingimos a cerca perto do meio do lado
sul e, quase ao mesmo tempo, sete amotinados - com o
contramestre Job Anderson à cabeça - surgiram em gritaria do
canto de sudoeste.
Pararam como se tolhidos de surpresa e, antes de se
refazerem, não só o morgado e eu, mas também o Hunter e o
Joyce da paliçada, tivemos tempo de fazer fogo. Os quatro
tiros saíram bastante desordenados, mas fizeram o serviço, um
dos inimigos tombou e os restantes, sem hesitar, retiraram
para o arvoredo.
Depois de carregarmos as armas, fomos por fora da paliçada
ver o adversário caído.
Estava bem morto - com uma bala no coração.
Começávamos a regozijar-nos com o sucesso quando uma pistola
disparou do meio da folhagem, uma bala me assobiou ao ouvido e
o pobre Tom Redruth cambaleou e caiu ao comprido. O morgado e
eu respondemos ao tiro, mas, sem ter nada a que apontar,


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possivelmente foi só desperdiçar pólvora. Carregámos de novo e
dirigimos as atenções para o pobre Tom.
O capitão e o Gray já o examinavam, mas bastou-me uma
olhadela para ver que estava arrumado.
Creio que a prontidão da nossa descarga tinha dispersado
outra vez os revoltosos, porque nos foi permitido sem mais
incómodos içar o nosso pobre e velho guarda de caça por cima
da cerca e carregá-lo, a gemer e sangrando, para a casa de
troncos.
Meu pobre velho! Não pronunciara uma só palavra de surpresa,
queixa, receio, nem sequer de concordância, desde o próprio
começo das nossas aventuras até àquele momento em que o
pousámos, para morrer, na casa de troncos. Aguentara como um
troiano atrás do seu colchão no corredor do navio, a todas as
ordens obedecera em silêncio, prontamente e bem, era o mais
velho do grupo, com uma diferença duns bons vinte anos, e
agora era ele, o servidor atento, sombrio e velho, quem ia
morrer.
O morgado ajoelhou a seu lado e beijou-lhe as mãos, a chorar
como um menino.
- Estou a ir, doutor? - perguntou.
- Tom, meu velho - respondi -, vais voltar a casa.
- Mas eu ainda queria dar um gosto ao dedo com a arma -
replicou.
- Tom - disse o morgado -, diz que me perdoas, dizes?
- E acha que havia o mesmo respeito assim, de mim para o
senhor, fidalgo? - foi a resposta. - Seja como for, assim
seja, amém!
Após alguns momentos de silêncio, declarou que achava que
alguém podia ler uma oração. - É por ser costume, senhor -
acrescentou, em tom de desculpa. E pouco a seguir, sem voltar
a falar, expirou.
Entretanto, o capitão, cujo peitilho e bolsos eu já notara
estarem exageradamente dilatados, fora deles tirando grande
variedade de artigos - a bandeira britânica, uma Bíblia, um
rolo de cabo forte, pena, tinta, o diário de bordo e uma
quantidade impressionante de tabaco. Encontrara no cercado um
choupo caído, bastante comprido e, com a ajuda do Hunter,
fixara-o ao canto da casa onde os troncos se entrecruzavam. A
seguir, trepando ao telhado sozinho, desdobrara e içara a
bandeira.
Aquilo pareceu trazer-Lhe um enorme alívio. Voltou a entrar
e ocupou-se a inventariar o material; como se nada mais
existisse. Mas durante tudo isso conservou-se atento à morte
do Tom e, logo que tudo terminou, aproximou-se com outra
bandeira e estendeu-a com reverência sobre o morto.


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- Não se deixe abater, senhor - disse, apertando a mão do
morgado. - Para ele está tudo bem, um homem que é morto no
cumprimento do dever para com o seu comandante e o seu patrão
não pode ter nada a recear. Isto pouco terá de sagrado, mas
olhe que é um facto.
Seguidamente chamou-me de lado.
- Doutor Livesey - perguntou -, quantas semanas pensam o
senhor e o morgado que vai levar a chegar o grupo de socorro?
Expliquei-lhe que não era questão de semanas, mas de meses,
que se não regressássemos pelos fins de Agosto, o Blandly nos
mandaria procurar, mas nem antes nem depois.
- O senhor pode fazer o cálculo - acrescentei.
- Ora, pois - retorquiu o capitão, coçando a cabeça -, e
mesmo se dermos uma margem muito grande a todos os favores da
Providência, estou em dizer que nos vamos meter num aperto.
- Como assim? - perguntei.
- É uma lástima termos perdido aquela segunda carga, senhor.
É a isso que me refiro - respondeu. - Quanto a pólvora e
chumbo, não há novidade. Mas as rações são poucas, muito
poucas, tão poucas, doutor Livesey, que devemos estar
praticamente na mesma com aquela boca a menos.
E apontou o morto coberto pela bandeira.
Nesse instante, rugindo e silvando, uma bala de canhão
passou por cima do telhado e embrenhou-se ao longe no
arvoredo.
- Oh! - disse o capitão. - Atirem à vontade! Já pouca
pólvora devem ter para gastar, meus rapazes.
A segunda tentativa, a pontaria foi melhor e o balázio caiu
dentro da cerca, espalhando uma nuvem de areia mas sem causar
mais danos.
- Capitão - adiantou o morgado -, a casa não se pode ver do
navio. Eles devem estar a apontar para a bandeira. Não seria
melhor tirá-la?
- Virar costas à bandeira! - bradou o capitão. - Não,
senhor, nem pensar nisso - e logo que falou creio que todos
reconhecemos estar de acordo. Pois não se tratava somente de
sentimentos de valentia própria dum homem votado ao mar, era
também de boa política, para mostrar ao inimigo que
desprezávamos a sua artilharia.
E pelo resto da tarde continuaram a bombardear-nos. Umas a
seguir às outras, as balas voavam ou caíam perto, ou vinham
remexer a areia do cercado, mas tinham de disparar tanto por
alto que os projécteis tombavam em queda livre e vinham
enterrar-se na areia solta. Não receávamos o ricochete, e
embora uma tivesse entrado pelo tecto e saído pelo soalho,


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em breve estávamos habituados àquela espécie de carrocel e lhe
ligávamos tanta importância como ao críquete.
- Há uma coisa boa em tudo isto - observou o capitão -, a
floresta aqui à frente não deve estar ocupada. A maré já levou
muita água, talvez os mantimentos já estejam a descoberto.
Peço voluntários para ir buscar a carne.
Os primeiros a apresentarem-se foram o Gray e o Hunter. Bem
armados, escaparam-se para fora da estacaria, mas a missão não
deu bom resultado. Os amotinados eram mais arrojados do que
calculávamos, ou teriam mais confiança na artilharia do
Israel, porque quatro ou cinco deles se ocupavam já a carregar
as nossas provisões e a passá-las para uma das baleeiras que,
com os remos a aguentar firme contra a corrente, tinham
manobrado até junto da praia. O Silver comandava a operação
nos paneiros da ré e já todos estavam armados de mosquetes,
retirados de algum paiol secreto.
O capitão sentou-se com o seu diário aberto e começou o
registo do dia com as seguintes palavras:


"Alexander Smollett, comandante; David Livesey, médico de
bordo; Abraham Gray, carpinteiro ajudante; John Trelawney,
armador; John Hunter e Richard Joyce, servidores do armador,
civis - sendo todos os que restaram fiéis à companha do navio
- com mantimentos para dez dias com racionamento,
désembarcaram nesta data e içaram a bandeira britânica na casa
de troncos da Ilha do Tesouro. Thomas Redruth, servidor do
armador, morto a tiro pelos amotinados; James Hawkins,
grumete..."


E na mesma altura magicava eu no que seria feito do pobre
Jim Hawkins.
Um grito do lado de terra.
- É alguém a chamar por nós - avisou o Hunter, que estava de
sentinela.
- Doutor! Morgado! Capitão! Olá, Hunter, és tu? - gritava a
voz.
E corri para a porta a tempo de ver o Jim Hawkins, são e
salvo, a trepar para dentro da paliçada.

CAPÍTULO XIX


Narração retomada por Jim Hawkins


- A guarnição do fortim


Logo que o Ben Gunn avistou a bandeira parou, puxou-me
pelo braço e sentou-se.
- Olha - disse -, de certeza que são os teus amigos.
- É mais natural que sejam os piratas - observei.
- Qual! - exclamou. - Ora num sítio destes, onde só aparecem
salteadores, o Silver havia mas era de içar a bandeira negra,
não ponhamos dúvidas. Ná, são os teus amigos. Também houve os
tiros, e acho que foram eles que levaram a melhor; e cá estão
em terra no velho forte que o Flint fez há anos e anos. Lá boa
cabeça tinha. ele, o Flint. Mesmo cheio de rum, era homem que
nunca dava o flanco. Medo foi coisa que nunca teve; só do
Silver... do Silver que era mais refinado.
- Bom - respondi -, talvez sejam eles, e antes assim; mais
uma razão para ir a correr ter com eles.
- Ná, camarada - redarguiu -, não corras tanto. És bom moço,
se não me engano; mas não passas dum rapaz, e pronto. Agora cá
o Ben Gunn é que tem asas. Nem o rum me leva lá para onde
vais... nada disso, até falar com o teu fidalgo e apanhar-lhe
a palavra de honra. E não te vás esquecer das minhas palavras:
Acima de tudo (é o que lhe vais dizer), confiar nele acima de
tudo"... e a seguir dás-lhe um beliscão.
E pela terceira vez me beliscou com aquele mesmo ar de
esperteza.
- E quando mandarem chamar o Ben Gunn já sabes onde o hás-de
encontrar, Jim. No mesmo sítio de hoje. E quem vier tem de
trazer na mão um pano branco, e tem de vir sozinho. Ah! E
também lhe dizes isto: O Ben Gunn, dirás tu, lá tem as suas
razões. , - Está bem - respondi -, acho que já percebi. Tens
uma proposta a fazer, queres falar ao morgado ou ao doutor, e
estás no sítio onde te encontrei. É só isso?
- "Mas quando?", dizes tu - acrescentou. - Ora, aí entre o
meio-dia pelo sol e as seis badaladas, mais ou menos.


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- Pronto - atalhei -, e agora posso ir?
- Não te esqueces? - perguntou, ansioso. - Dizes que quero a
prova de confiança e que tenho as minhas razões. Razões
particulares, é o mais importante, como de homem para homem.
Pronto - ainda a prender-me -, acho que já podes ir, Jim. Mas
Jim, se encontrares o Silver, não és capaz de entregar o Ben
Gunn? Por nada deste mundo? Não, tu o dizes. E se os piratas
desembarcarem, que achas se amanhã de manhã houver mais
algumas viúvas?
Foi interrompido pelo estrondo dum tiro, e uma bala de
canhão rasgou a folhagem e veio enterrar-se na areia a menos
de cem metros de onde estávamos. No instante imediato,
saltámos ambos para fugir cada um para seu lado.
Por uma boa hora, a frequência dos tiros abalou a ilha, e as
balas continuaram a romper com estrépito pela floresta.
Mudei-me de esconderijo em esconderijo, sempre perseguido, ou
assim me parecia, por aqueles aterradores projécteis. Mas para
o fim do bombardeamento, embora ainda não ousasse aventurar-me
para o lado da paliçada, onde as balas caíam com mais
frequência, tinha começado, de certa maneira, a recuperar a
presença de espírito: e depois de um longo desvio para
nascente, abriguei-me sob as árvores junto à praia.
Era já sol-posto, a brisa marítima agitava e penetrava o
arvoredo, enrugando a superfície cinzenta do fundeadouro; a
maré já vazara por completo, deixando a descoberto grandes
extensões de areia; o ar, depois do calor do dia,
atravessava-me o casaco de frio.
O Hispaniola estava ainda onde tinha ancorado; mas lá estava
a bandeira negra - a flâmula dos piratas - içada à vante. Novo
clarão vermelho, novo estrondo que fez retinir os ecos, e nova
bala assobiando pelo ar. Era a última do bombardeamento.
Fiquei por algum tempo a escutar o tumulto que sucedeu ao
ataque. Havia homens a derrubar algo com machados na praia,
perto da paliçada - depois descobri tratar-se da pobre canoa.
Mais longe, cerca da foz do rio, uma grande fogueira brilhava
por entre as árvores, e entre aquele ponto e o navio
atarefava-se uma das baleeiras, cujos homens, que eu já vira
tão abatidos, gritavam como miúdos, agarrados aos remos. Mas
naquelas vozes havia algo que fazia lembrar o rum.
Pensei, por fim que já podia voltar para a paliçada. Estava
a considerável distância, no cabedelo que fecha o ancoradouro
pelo nascente, ligado à Ilha do Esqueleto na meia-maré; e
então, ao levantar-me, avistei ainda mais para baixo da língua
de areia, no meio de arbustos rasteiros, um penedo isolado
bastante alto e todo branco.


103


Lembrei-me que devia ser a pedra branca da qual falara o Ben
Gunn, e que se de um dia para o outro fosse preciso um bote já
sabia onde o havia de procurar.
A seguir, entranhei-me no bosque até chegar à retaguarda do
forte, do lado virado para a praia, e pouco depois encontrei o
mais caloroso acolhimento dos meus fiéis companheiros.
Logo que lhes contei o sucedido, pude olhar em meu redor. A
casa de troncos era toda feita de toros não aparados -
telhado, paredes e soalho. Este último estava assente a pouco
mais de trinta centímetros da areia. Havia um alpendre à
porta, e abrigada neste alpendre ficava a pequena fonte metida
numa bacia artificial bastante estranha - nada menos do que
uma enorme chaleira de bordo, de ferro, com o fundo arrancado,
metida na areia até às marcas, como dizia o capitão.
Pouco restava além da estrutura da casa, mas havia num canto
uma laje de pedra ao jeito de lareira, na qual um velho cesto
de ferro ferrugento servia de grelha para o fogo.
As irregularidades da duna e todo o interior do cercado
tinham sido libertos das árvores para construir a casa, e
pelos cepos cortados podíamos ver como devia ter sido belo e
majestoso o bosque derrubado. A maior parte do terreno fora
arrastada ou coberta de detritos depois da remoção das
árvores; somente por onde corria o fio de água da chaleira um
tapete de musgo espesso com alguns fetos e humildes arbustos
verdejavam ainda pela areia. Logo em redor da paliçada -
demasiado perto, diziam -, a floresta continuava pujante, alta
e densa, toda de pinheiros do lado de terra, mas do lado do
mar com grande percentagem de carvalhos vivazes.
A brisa fria da noite, de que já falei, assobiava por cada
frincha da construção rude, polvilhando o chão com uma chuva
contínua de areia fina. Tínhamos areia nos olhos, nos dentes,
na comida, areia a rodopiar na fonte no fundo da chaleira,
areia por todo o lado como papas a levantar fervura. A chaminé
era um buraco quadrado no tecto; só pequena parte do fumo por
lá passava, ficando o resto a pairar lá dentro, connosco a
tossir e a esfregar os olhos.
A acrescentar a isto havia o Gray, com uma ligadura na cara
por causa dum corte que fizera ao fugir dos amotinados; e o
pobre do velho Tom Redruth, por enterrar, estendido junto à
parede, esticado e rígido, coberto com a bandeira nacional.
Se nos deixassem ficar ali sentados sem fazer nada,
acabaríamos por cair todos na neurastenia, mas o capitão
Smollett nunca seria capaz de chegar a tal ponto. Convocou
todo o grupo e fez a distribuição dos quartos de guarda.


104


O doutor, o Gray e eu, no primeiro; o morgado, o Joyce e o
Hunter, no outro. Embora cansados como estávamos, dois foram
mandados à lenha, outros dois fazer a cova do Redruth, o
doutor encarregou-se da cozinha, eu fui de sentinela para a
porta e o próprio capitão ia de uns para outros, mantendo o
moral e dando uma mão onde quer que fosse preciso.
De vez em quando, o doutor vinha à porta apanhar ar e dar
descanso aos olhos, que quase lhe caíam com tanto fumo, e
sempre que assim fazia conversava um pouco comigo.
- Aquele Smollett - observou de uma vez - é melhor homem do
que eu. E para dizer isto é porque é um caso sério, Jim.
De outra vez ficou calado por um pedaço. A seguir, inclinou
a cabeça de lado e encarou-me.
- Esse tal Ben Gunn é gente? - perguntou.
- Não sei, senhor - respondi. - Não tenho bem a certeza se
ele está bom da cabeça.
- Se há dúvida quanto a isso, é porque está - retorquiu o
médico. - Um homem que passou três anos a roer as unhas numa
ilha deserta, Jim, não pode parecer tão normal como tu ou eu.
Não é da natureza humana. Tinhas dito que ele adorava queijo?
- Sim, senhor, queijo - respondi.
- Ora bem, Jim - continuou -, vê lá tu como as lambarices
podem trazer bem ao mundo. Já viste a minha caixa de rapé, não
viste? E nunca me viste tomar rapé; pela razão que na caixa de
rapé tenho um pedaço de queijo Parmesão, é feito em Itália, é
um queijo muito alimentício. Pois bem, fica para o Ben Gunn!
Antes de cearmos, enterrámos o velho Tom na areia, ficando
em redor dele por algum tempo de cabeças descobertas ao vento.
Tínhamos apanhado uma boa porção de lenha que ainda não era
suficiente, na opinião do capitão e este, abanando a cabeça,
disse-nos que no dia seguinte nos tínhamos de entregar ao
trabalho com mais ânimo. Seguidamente, depois de todos
comermos a ração de carne de porco e bebermos um bom gole de
aguardente aquecida, os três chefes reuniram-se - a um canto
para discutir o nosso futuro.
Creio que teriam esgotado a sua capacidade quanto ao que
fazer, pois as provisões eram tão poucas que bem podíamos
morrer à fome e rendermo-nos muito antes de chegar qualquer
socorro. Mas concluíram que a melhor esperança para nós era ir
liquidando os piratas um a um até que eles se rendessem ou
fugissem com o Hispaniola. De dezanove já tinham sido
reduzidos a quinze, mais dois tinham sido feridos, e pelo
menos um - o homem abatido junto da peça - ferido com
gravidade, ou talvez já morto. De cada vez que fazíamos fogo,


105


tínhamos de ser cuidadosos em extremo e resguardar as nossas
vidas. Além do mais, contávamos com dois aliados de confiança
- o rum e o clima.
Quanto ao primeiro, embora a perto de meia milha de
distância, podíamos ouvi-los a berrar e cantar pela noite
fora; e quanto ao segundo, o doutor apostou a cabeleira que
metade deles ia morrer antes de passar uma semana, visto
estarem acampados nos pântanos, sem medicamentos.
- Portanto - concluiu -, se não nos matarem primeiro a tiro,
ainda têm a sorte de se juntarem na escuna. Sempre é um navio,
e podem voltar à vida de piratas, suponho.
- Vai ser o primeiro navio que perco na minha vida - disse o
capitão Smollet.
Como podem imaginar estava morto de cansaço, e quando
consegui adormecer, depois de muitas reviravoltas, dormi como
um madeiro.
Já os outros se tinham levantado havia muito, tomado o
pequeno-almoço e aumentado de quase metade a pilha de lenha,
quando fui acordado pelo tumulto e som de vozes.
- Bandeira de tréguas! - ouvi alguém dizer, e logo a seguir,
numa exclamação de surpresa. - É o Silver em pessoa!
Levantei-me logo e, a esfregar os olhos, corri para uma das
frestas abertas na parede.

CAPÍTULO XX


A embaixada de Silver


Era certo que havia dois homens do lado de fora, um dos
quais acenava com um pano branco; o outro era o Silver em
pessoa, calmo e descontraído.
Ainda era muito cedo, e a manhã mais fria que me lembro de
ter passado em terra estranha; um frio que penetrava até à
medula dos ossos. O céu, claro e sem nuvens, deixava o sol
pincelar de reflexos rosados as copas das árvores. Mas o sítio
onde o Silver ficara com o seu ajudante ainda estava
mergulhado na sombra, e ambos tinham os joelhos metidos na
bruma branca que durante a noite se acumulara no charco. Tanto
o frio como aquela névoa contribuíam para dar da ilha uma
triste ideia. Era sem dúvida um local húmido, doentio,
insalubre.
- Ninguém sai cá de dentro - mandou o capitão. - Jogo dez
para um em como aqui há truque. ; - Quem vem lá? Alto, ou
atiramos.
- Bandeira de trégua! - bradou o Silver.
O comandante abrigava-se no alpendre procurando
resguardar-se de qualquer tiro à traição. Voltou-se para nos
falar.
- O doutor de guarda na vigia. Doutor Livesey, por favor, do
lado norte; Jim para o nascente; Gray, poente. Toda a guarda
deitada, e mosquetes carregados. Alerta, homens, e muito
cuidado.
A seguir voltou-se de novo para os piratas.
- Que querem vocês com a trégua? - gritou.
Foi a vez do outro homem responder.
- O capitão Silver deseja entrar e discutir condições,
senhor.
- Capitão Silver! Não conheço. Quem é? - respondeu o
capitão. E ouvimo-lo acrescentar para si próprio. - Com que
então, capitão? Vida minha, isto é que é fazer promoções! -
foi o próprio Long John a dar a resposta.
- Sou eu, senhor. Estes desgraçados elegeram-me capitão,
depois do senhor desertar - com um reforço especial na palavra
desertar,. - Estamos dispostos a render-nos, se chegarmos a
acordo, e nada de reservas. Só Lhe peço a sua palavra, capitão
Smollett, para me deixar sair são e salvo desta cerca, e um
minuto para sair do alcance de tiro.
- Homem - respondeu o capitão Smollett -, não tenho
interesse nenhum em falar contigo. Se quiseres falar comigo,
podes entrar, e pronto. Se houver traição tem de ser do teu
lado, e que Deus te ajude.
- Está certo, capitão - gritou o Long John, com ânimo. -
Basta uma palavra sua. Sei o que é um cavalheiro, garanto-lhe.
Pudemos ver o homem que trazia a bandeira branca tentar
reter o Silver. Nem era para admirar, depois da resposta tão
brava do capitão. Mas o Silver riu-se dele e deu-lhe uma
palmada nas costas, como se a ideia do perigo fosse absurda. A
seguir avançou para a paliçada, atirou a muleta para dentro,
trepou com a perna e, com grande energia e habilidade,
conseguiu saltar a estacaria e cair em segurança do lado de
dentro.
Devo confessar que estava ocupado demais em seguir o que se
passava para que o meu posto de sentinela tivesse qualquer
utilidade; já tinha, na verdade, abandonado o meu postigo a
nascente e ido de rastos até chegar atrás do capitão, que se
sentara no alpendre com os cotovelos nos joelhos e a cabeça
apoiada nas mãos, os olhos fixos na água que gotejava da velha
chaleira enterrada na areia. Assobiava baixinho o "Venham,
Moças e Rapazes".
O Silver fazia um esforço tremendo para subir a duna. Com o
terreno íngreme, os cepos cortados e a areia mole, ele e a
muleta eram tão indefesos como um navio à sirga. Mas teimou
como um homem naquele esforço mudo, chegando enfim em frente
do capitão a quem fez uma continência na mais perfeita ordem.
Estava vestido com o melhor que tinha: um enorme casacão azul
recoberto de botões de latão, até aos joelhos, e um chapéu de
fitas inclinado para trás.
- Ora cá estás tu, homem - disse o capitão, erguendo a
cabeça. - O melhor é sentares-te. .
- Não me vai deixar entrar, capitão? - queixou-se o Long
John. - A manhã está fria a valer, para a gente se sentar cá
fora na areia.
- Então, Silver - retorquiu o capitão -, se tu quisesses ser
um homem sério bem podias estar agora sentado na tua cozinha.
Tu é que resolves. Ou és o meu cozinheiro de bordo, e então és
tratado como deve ser, ou então és o capitão Silver, um
amotinado e pirata ordinário, e nesse caso podes enforcar-te!
- Pronto, pronto capitão - tornou o cozinheiro, sentando-se
na areia como lhe tinham dito -, depois tem de me ajudar a
levantar outra vez, nada mais. Que rico lugar o senhor aqui
tem. Ah, lá está o Jim! Bons dias para ti, Jim.


108


Doutor, os meus respeitos. Ora vejam, aqui estão todos juntos
como uma família feliz, por assim dizer.
- Se tens alguma coisa a dizer, diz lá o que é - observou o
capitão.
- Tem razão, capitão Smollett - respondeu. - O dever é
dever, certo. Ora bem, escute, aquilo desta noite foi um bom
golpe. Não nego que foi um óptimo golpe. Alguns dos senhores
são mesmo bons com um espeto. E também não nega que alguma da
minha gente ficou abalada, talvez ficassem todos, talvez eu
próprio ficasse abalado, pode ser que eu esteja aqui para
discutir por causa disso mesmo. Mas tome nota, capitão, que
não vai haver segunda vez, cum raio! Vamos ter de organizar as
guardas e ter mais cuidado com o rum. Talvez julgue que
estávamos todos emborrachados. Mas digo-lhe que eu fiquei
sóbrio, o que estava era estafado como cachorro, e se tivesse
acordado um segundo mais cedo era capaz de apanhar o senhor
com a boca na botija, era. Ele não tinha morrido quando lá
cheguei à beira dele, não senhor.
- E depois? - atalhou o capitão Smollett, completamente
frio.
Tudo o que o Silver dissera era um enigma para ele, mas nada
deixou transparecer na voz. Quanto a mim, começava a ter uma
ideia do que se passara. Recordei as últimas palavras do Ben
Gunn. Pensei que os devia ter ido visitar enquanto estavam
estendidos e bêbedos em redor da fogueira, e senti-me
reanimado ao calcular que nos restavam catorze inimigos.
- Ora bem - continuou o Silver. - Queremos o tesouro, e
havemos de o apanhar, é o que interessa! Pela vossa parte,
porem-se a salvo é o que lhes interessa a vocês, calculo. Os
senhores têm um mapa,,não têm?
- É possível - respondeu o capitão.
- Ora, ora, bem sei que têm - tornou o Long John. - Não
precisa de levantar tanta poeira, isso não leva a nada,
garanto-lhe. Vejamos, o que nós queremos é o mapa. Por mim,
nunca Lhes quis fazer mal.
- Isso para mim não vale nada, homem - interrompeu o
capitão. - Sabemos exactamente o que vocês pretendem, mas não
estamos interessados, porque agora, bem vês, não podem fazer
nada.
Encarando-o com toda a calma, o capitão pôs-se a encher o
cachimbo.
- Se o Abe Gray... - começou o Silver.
- Alto lá! - exclamou o senhor Smollett. - O Gray não me
disse nada, nem eu lhe perguntei nada, e além do mais pouco me
importa que ardas tu e ele e toda a ilha primeiro até
desaparecer tudo.


109


E aí tens qual é o meu interesse pela tua pessoa em todo este
caso, homem.
Aquele arremedo de mau génio pareceu arrefecer o Silver.
Começara por se mostrar abespinhado, mas agora recuperava a
compostura.
- Está certo - disse. - Não vou pôr-me a dizer o que as
pessoas devem ou não devem fazer. E, visto que o senhor vai
fumar cachimbo, capitão, dê-me licença de fazer o mesmo.
Encheu o cachimbo e acendeu-o, e os dois ficaram a fumar em
silêncio por muito tempo, umas vezes olhando-se, outras
tapando o tabaco com os dedos ou inclinando-se para cuspir.
Olhar para os dois era um espectáculo.
- Então - recomeçou o Silver -, aqui temos. Vocês dão-nos o
mapa para ir à procura do tesouro, e deixam de dar tiros nos
pobres marinheiros e de os rebentar enquanto dormem. Em troca,
ofereço-lhes uma alternativa. Ou voltam para bordo connosco,
com o tesouro embarcado, e então dou-lhes a minha palavra que
os deixo ficar a salvo em qualquer sítio. Ou, se não lhes
agrada esta solução, visto que alguns dos meus homens são
brutos e podem querer ajustar contas por terem vistas curtas,
então podem ficar aqui mesmo, podem. Dividimos as provisões
com os senhores, homem por homem e, como já disse, dou-Lhes a
minha palavra de honra que falo ao primeiro navio que
encontrar para os vir cá buscar. Hão-de reconhecer que isto
faz sentido. Melhor que isto não podem arranjar, de certeza. E
espero - elevando a voz - que toda a gente aqui dentro entenda
o que estou a dizer, porque o que eu disse a um é o que digo a
todos.
O capitão Smollett levantou-se e sacudiu a cinza do cachimbo
na palma da mão esquerda, perguntando:
- Já acabaste?
- Evidentemente, cum raio! - respondeu o John. - Se recusar
não tem mais nada da minha parte senão tiros de mosquete.
- Muito bem - disse o capitão. - Agora vais ouvir-me. Se
vocês se apresentarem um por um, desarmados, comprometo-me a
pô-los todos a ferros e a levá-los para Inglaterra para serem
lá julgados com justiça. Se não se apresentarem, ou eu não me
chame Alexander Smollett, a servir a bandeira do meu rei,
mando-os a todos para o Inferno. Vocês não são capazes de
encontrar o tesouro. Não podem comandar o barco, não têm um
único capaz de o comandar. Não podem dar-nos luta, ali o Gray
escapou-se a cinco dos teus. A tua barca está a ferros, Mestre
Silver, não te safas, e não tarda que o fiques a saber.


110


Sou eu que aqui estou quem to diz, e da minha parte não vais
ouvir mais nada, porque te juro que te meto uma bala nas
costas da próxima vez que te vir. Rua, homem. Arruma-te daqui
para fora, a galope, e a toda a pressa.
A cara do Silver era uma estampa, os olhos saltavam-lhe de
raiva. Sacudiu a brasa do cachimbo.
- Ajude-me a levantar! - gemeu.
- Eu não - retorquiu o capitão.
- Quem me ajuda a levantar? - rugiu.
Ninguém se mexeu. Resmungando as mais violentas imprecações,
engatinhou pela areia até encontrar apoio no alpendre para se
guindar na muleta. A seguir cuspiu para dentro da fonte.
- Pronto! - gritou. - Aí está o que penso de vocês. Daqui a
menos de uma hora asso-os no forte como ponche. Riam, cum
raio, riam! Daqui a menos de uma hora vão rir no outro mundo.
Sorte vão ter os que morrerem.
E com uma praga ameaçadora afastou-se a mancar, sulcando a
areia, até ser ajudado a saltar a cerca, depois de quatro ou
cinco tentativas falhadas, pelo homem da bandeira branca, e
desapareceu num instante no meio das árvores.

CAPÍTULO XXI


O ataque


Logo que o Silver desapareceu, o capitão, que continuara
a vigiá-lo, voltou-se para dentro e descobriu que nenhum de
nós ficara no seu posto excepto o Gray.
Foi a primeira vez que o vimos zangado de verdade.
- De guarda! - vociferou. A seguir, enquanto recolhíamos aos
lugares, acrescentou: - Gray, vou pôr o teu nome no registo,
fizeste o teu dever como um marinheiro. Senhor Trelawney,
estou admirado consigo. Doutor, pensava que o senhor tinha
usado a farda real! Se foi assim que serviu em... Fontenoy,
mais valia que tivesse ficado no seu beliche.
Os da guarda do médico tinham voltado para as vigias, os
restantes ocupavam-se a carregar os mosquetes de reserva, e
todos, evidentemente, corados até aos cabelos e com a pulga na
orelha, como costuma dizer-se.
O capitão observou-nos por algum tempo em silêncio. Depois
falou.
- Rapazes - disse. - Dei um flanco ao Silver. Foi de
propósito que o levei ao rubro, e em menos de uma hora, como
ele disse, vamos ser abordados. Não preciso de vos dizer que
somos menos do que eles, mas temos o abrigo para lutar e,
ainda há pouco, ia dizer que lutamos com disciplina. Não quero
duvidar que podemos levar a melhor, se vocês quiserem.
Em seguida, fez uma revista e encontrou, como dizia, tudo em
boa ordem.
Nos dois lados mais pequenos da casa, a nascente e poente,
havia só duas vigias; no lado sul onde estava o alpendre,
outras duas; e mais cinco do lado norte. Havia uma vintena de
mosquetes para os sete, a lenha tinha sido junta em quatro
pilhas - à maneira de mesas - cada uma mais ou menos a meio de
cada lado, onde se tinham colocado munições e quatro mosquetes
carregados, à mão dos defensores. Ao centro, alinhavam-se os
sabres.
- Apaguem o lume - disse o capitão -, já não está frio, e
escusamos de apanhar fumo nos olhos.


112


O senhor Trelawney carregou com a cesta de ferro para fora e
as brasas foram apagadas na areia.
- O Hawkins não comeu nada. Hawkins, serve-te e vai comer
para o teu posto - continuou o capitão Smollett. - Rápido,
rapaz, não tarda nada que não te apeteça mais. Hunter, serve
uma rodada de aguardente aos homens.
Enquanto isso, o capitão ia completando o seu plano de
defesa.
- Doutor, fique com a porta - prosseguiu. - De modo a ver
sem se expor, mantenha-se cá dentro e faça fogo pelo portal.
Hunter, tu vais ali para o nascente. Joyce, ficas no poente,
homem. Senhor Trelawney, é o melhor atirador, o senhor e o
Gray ficam aqui do lado norte com as cinco vigias, é aqui que
está o perigo. Se eles cá chegarem e atirarem pelas nossas
vigias, as coisas vão ficar mais feias. Hawkins, nem tu nem eu
somos grande coisa a atirar, ficamos a carregar as armas e a
dar uma mão onde for preciso.
Como dissera, o frio tinha passado. Logo que o sol se ergueu
acima da nossa cintura de arvoredo, bateu na clareira com toda
a força e sorveu toda a humidade em pouco tempo. Em breve a
areia escaldava, e a resina derretia nos toros do fortim.
Blusões e casacos foram atirados para o lado, as camisas
abertas e as mangas enroladas até aos ombros, e ali ficámos,
cada um no seu posto, numa febre de calor e ansiedade.
Decorreu uma hora.
- Que se enforquem! - desabafou o capitão. - Isto é pior que
a calma podre. Gray, assobia lá a ver se há vento.
E naquele preciso momento chegaram os primeiros sinais do
ataque.
- Por favor, comandante - disse o Joyce -, se vir alguém,
faço fogo?
- Já te disse que sim! - exclamou o capitão.
- Obrigado, senhor - retorquiu o Joyce, com a mesma educação
calma.
Nada aconteceu, mas aquelas palavras tinham-nos posto a
todos de sobreaviso, com ouvidos e olhos atentos, os
atiradores de armas alerta, o capitão no meio da casa, com a
boca contraída e expressão carregada.
Assim passaram alguns segundos, até que de chofre o Joyce
ergueu a arma e disparou. Ainda mal tinha desaparecido o som
do tiro quando do lado de fora foi repetido vezes sem conta
numa descarga desordenada, um a seguir a outro como um bando
de gansos, de todos os lados da cerca. Várias balas atingiram
a construção, mas nenhuma entrou; e quando o fumo desapareceu,
a paliçada e a floresta pareceu tão tranquila e vazia como
antes. Nem um ramo mexia, nem o brilho dum cano traía a
presença dos inimigos.


113


- Acertaste-lhe? - perguntou o capitão.
- Não, senhor - respondeu o Joyce. - Creio que não.
- É melhor falar sempre verdade - resmungou o capitão
Smollett. - Carrega-lhe a arma, Hawkins. Quantos acha que
vinham desse lado, doutor?
- Tenho a certeza - respondeu o doutor Livesey. - Disparam
três tiros deste lado. Vi os três clarões, dois juntos e outro
mais longe.
- Três! - repetiu o capitão. - E do seu lado, senhor
Trelawney?
A resposta não foi tão fácil. Do norte tinham vindo muitos,
sete, pela ideia do morgado, oito a nove, segundo o Gray. Do
nascente e poente só tinham disparado um tiro. Era, portanto,
claro que o ataque se ia desenvolver do lado norte, e que dos
outros três só íamos ser incomodados por demonstrações de
hostilidade.
Mas o capitão Smollett não modificou as medidas tomadas. Se
os amotinados conseguissem penetrar na estacaria, estava
convencido de que eram capazes de se apoderar de qualquer
vigia desprotegida e dali nos fuzilar como ratos no nosso
abrigo. Nem nos restava grande tempo para pensar. De súbito,
com grande berraria, um amontoado de piratas saltou do meio do
arvoredo a norte e dirigiu-se em corrida para a paliçada. No
mesmo instante, tornaram a abrir fogo da floresta, e uma bala
zuniu pela porta dentro e foi espatifar o mosquete do médico.
Os assaltantes treparam pela cerca como macacos. O morgado e
o Gray continuaram a disparar; caíram três homens, um para a
frente dentro do cercado e os outros dois para fora. Mas um
deles estava na verdade mais assustado do que atingido, pois
levantou-se num ápice para logo desaparecer nas árvores.
Dois tinham a sua conta, um fugira, quatro tinham metido bem
o pé dentro do nosso terreno, enquanto abrigados pela
floresta, uns sete ou oito homens, cada um munido de alguns
mosquetes, mantinham a casa debaixo de fogo rápido mas sem
consequências.
Os quatro que tinham feito a abordagem corriam a direito
para a casa, gritando, e os do bosque gritavam também para os
encorajar. Fizeram-se vários tiros, mas a pressa dos
atiradores era tal que nenhum deles pareceu dar resultado. Num
momento, os quatro piratas tinham trepado à duna e caíam sobre
nós.
A cabeça do Job Anderson, o contramestre, mostrou-se na
vigia do centro.
- Todos a eles, todos! - rugiu.


114


Ao mesmo tempo, outro pirata agarrou o mosquete do Hunter
pelo cano, arrancou-Lho das mãos, espetou-o com força pela
vigia e, com uma pancada violenta, estendeu o pobre homem no
chão, sem sentidos. Entretanto um terceiro, dando volta à casa
sem ser molestado, apareceu de surpresa à porta e atirou-se,
de sabre em punho, ao doutor.
A nossa posição invertera-se por completo. Momentos antes,
abrigados, atirávamos a um inimigo descoberto, agora era a
nossa vez de ficarmos a descoberto, sem poder responder aos
golpes.
A casa estava cheia de fumo, ao qual devíamos uma relativa
segurança. Gritos de confusão, clarões e estampidos de
pistolas e um gemido contínuo retiniam-me nos ouvidos.
- Para fora, rapazes, saiam e lutem lá fora! Aos sabres! -
gritava o capitão.
Apanhei um sabre e alguém que pegava noutro ao mesmo tempo
deu-me um golpe nos dedos que mal senti. Saí a correr para o
sol. Alguém vinha logo atrás, não sei quem. Logo à frente, o
médico perseguia o seu atacante pela duna abaixo, até que o
apanhou em falta e o derrubou com uma grande cutilada na cara.
- À volta da casa, rapazes! À volta da casa! - gritou o
capitão, e até no meio da confusão percebi uma mudança naquela
voz.
Obedeci mecanicamente, virei-me para nascente e, de sabre no
ar, corri para o outro lado. Dei de caras com o Anderson. Com
um rugido, levantou o facalhão que rebrilhou ao sol. Sem tempo
para me assustar, mas ainda antes que ele desse o golpe,
saltei de lado e falhei o pé na areia, rolando pela ribanceira
abaixo. Quando eu saíra, os outros piratas já tinham começado
a trepar à paliçada para acabar connosco. Um homem de barrete
vermelho, sabre na boca, tinha passado uma perna para o lado
de dentro. Enfim, passara tão pouco tempo que quando me tornei
a pôr em pé ainda estava tudo na mesma, com o do barrete
vermelho ainda a meio do salto e a cabeça de outro que vinha a
seguir por cima das estacas. E todavia, em tão curto espaço de
tempo, a luta terminava e a vitória era nossa.
O Gray, que ia logo atrás de mim, aniquilara o enorme
contramestre antes de ele ter tempo de se recompor do golpe
falhado. Outro tinha sido abatido a tiro por uma das vigias na
altura em que disparava para dentro da casa, e agonizava agora
com a pistola ainda fumegante na mão. Um terceiro fora o que
eu vira ser arrumado pelo doutor com um só golpe. Dos quatro
que tinham transposto a estacada só um ainda não tivera a sua
conta, mas tinha abandonado o sabre e escapulia-se agora no
terror da morte.


115


- Fogo... fogo da casa! - gritou o médico. - E vocês,
rapazes, abriguem-se.
Mas aquelas palavras não foram atendidas, ninguém disparou e
o último assaltante fugiu e desapareceu com os restantes na
floresta. Em três segundos nada restava do grupo atacante
senão os cinco que tinham caído, quatro do lado de dentro e um
fora da paliçada.
O médico, o Gray e eu corremos a abrigar-nos a toda a
pressa. Não tardaria que os sobreviventes voltassem para onde
tinham deixado os mosquetes, e o tiroteio podia recomeçar em
qualquer momento.
A casa já estava mais ou menos livre da fumarada, e pudemos
ver rapidamente qual fora o preço da vitória. O Hunter estava
estendido ao lado da vigia, atordoado, o Joyce, com um tiro na
cabeça, imóvel para sempre, enquanto no meio da casa o morgado
amparava o capitão, um tão pálido como o outro.
- O capitão está ferido - disse o senhor Trelawney.
- Fugiram? - perguntou o senhor Smollett.
- Todos os que puderam fugir, esteja descansado - respondeu
o médico -, mas cinco deles nunca mais fogem.
- Cinco! - exclamou o capitão. - Assim já é melhor. Cinco
contra três deixa-nos quatro para nove. A probabilidade sempre
é melhor que no princípio. Éramos sete contra dezanove, ou
assim pensámos, e para ser mau já chegou.

Quinta Parte


A minha aventura no mar


CAPÍTULO XXII


Como comecei a minha aventura no mar


Os revoltosos não tornaram a aparecer, nem sequer houve
mais um tiro do arvoredo. Já tinham levado a ração do dia, no
dizer do capitão, e tínhamos o lugar por nossa conta e tempo
calmo para cuidar dos feridos e comer o jantar. O morgado e eu
cozinhámos ao ar livre, apesar do perigo, e até ali fora mal
podíamos atender ao que fazíamos, impressionados com os
gemidos dos doentes ao cuidado do médico.
Dos oito homens que haviam tombado em combate só três ainda
respiravam - o pirata que apanhara um tiro pela vigia, o
Hunter e o capitão Smollett -, e daqueles os primeiros dois
estavam como mortos; o pirata acabou por morrer enquanto o
doutor o operava, e o Hunter, depois de todos os cuidados, não
chegou a recuperar os sentidos. Para ali esteve o dia inteiro,
num estertor como o do velho pirata que tivera a apoplexia em
minha casa, mas com os ossos do peito esmagados pela pancada,
e o crânio fracturado na queda, foi ao encontro do Criador
durante a noite seguinte, sem um só gesto ou palavra.
Quanto ao capitão, estava de facto muito ferido, mas sem
perigo. Nenhum órgão fora atingido fatalmente. A bala do
Anderson, pois fora o Job o primeiro a acertar-lhe, tinha-lhe
partido a omoplata e tocado no pulmão, sem gravidade. Uma
segunda só lhe tinha rasgado e deslocado alguns músculos da
barriga da perna. Ia ficar bom, garantia o médico, mas
entretanto, por algumas semanas, tinha de não andar nem mexer
o braço, e ainda manter-se calado o mais que pudesse.
O acidente da minha cortadela nos dedos era uma ninharia. O
doutor Livesey pôs-lhe um remendo de pasta e deu-me um puxão
de orelhas em pagamento da cura.
A seguir ao jantar, o morgado e o médico sentaram-se à beira
do capitão em conferência; depois de conversarem até passar um
pouco do meio-dia, o médico pegou no chapéu e nas pistolas,
pôs um sabre à cinta, meteu o mapa no bolso e, de mosquete ao
ombro, saltou a paliçada do lado norte e partiu rápido por
entre as árvores.


120


O Gray e eu tínhamo-nos sentado do lado oposto da
construção, sem poder ouvir a conversa dos oficiais, e o Gray,
tirando o cachimbo da boca, deixou-o esquecido na mão, tal foi
o seu espanto com o sucedido.
- Olha - observou -, terá o doutor Livesey perdido o juízo?
- Ora, não - repliquei. - Deve ser o último de todos a quem
isso podia acontecer.
- Pois olha, patrício - continuou -, doido talvez não
esteja, mas se não está, então podes ter a certeza que sou eu
que estou.
- Acho - respondi - que o doutor lá tem uma ideia, e se é o
que penso, ele vai ter com o Ben Gunn.
Como depois se viu, assim era, mas entretanto, com a casa
feita num forno, e a areia dentro do cercado feita em brasa ao
sol do meio-dia, outro pensamento começou a nascer-me na
cabeça, ideia essa que já não estava nada certa. Comecei a
invejar o médico que caminhava pela sombra fresca do arvoredo,
rodeado de pássaros e do cheiro agradável dos pinheiros, ao
passo que eu ficava sentado a fritar, com a roupa colada à
resina quente, no meio da cena de sangue e de tantos
desgraçados mortos que me faziam sentir por aquele lugar uma
repugnância quase tão forte como o medo.
Ocupei-me a lavar toda a casa, e depois a lavar a loiça do
jantar, sem que aquela repugnância e inveja tivessem deixado
de aumentar cada vez mais até que, por fim, acercando-me duma
saca de pão, e sem que ninguém me observasse, dei o primeiro
passo para a fuga enchendo ambos os bolsos do casaco com
bolachas.
Estava a ser idiota, se quiserem, e de certeza que ia
cometer uma loucura irreflectida, mas estava resolvido a pô-la
em prática com todas as cautelas de que podia dispor. Aquelas
bolachas, se me acontecesse qualquer coisa, iam ao menos
impedir que morresse à fome até ao fim do dia seguinte.
A seguir, deitei a mão a um par de pistolas e, como já tinha
um polvorinho e balas, considerei-me bem armado.
Quanto ao plano que arquitectara, não era mau em si mesmo.
Tratava-se de ir até à língua de areia que separa o
ancoradouro a nascente do mar aberto, encontrar a pedra branca
que vira na véspera e verificar se era lá ou não que o Ben
Gunn escondera o barco, uma coisa que valia a pena ser feita,
como aliás ainda penso. Mas como tinha a certeza de que não me
deixavam sair do cercado, o único plano de que dispunha era
despedir-me à francesa e escapar-me sem ser visto, o que era
fazer as coisas tão mal que até pareciam de facto erradas. Mas
não passava de um rapazote e já tinha tomado a minha decisão.


121


Ora, pelo modo como as coisas se desenrolaram, acabei por
encontrar uma oportunidade estupenda. O morgado e o Gray
ocupavam-se com as ligaduras do capitão, a costa estava livre,
arranquei por cima da estacada e meti-me no mais espesso do
bosque, e antes que a minha ausência fosse notada já estava
fora do alcance da voz dos meus companheiros.
Era a minha segunda loucura, muito pior do que a primeira,
pois só deixara dois homens em condições de guardarem a casa,
mas, como da primeira, ia dar uma ajuda para a sálvação de
todos.
Segui a direito para a costa oriental da ilha, pois decidira
ir pelo lado do cabedelo virado ao mar para evitar ser visto
do fundeadouro. A tarde já ia alta, embora ainda quente e com
sol. Ao embrenhar-me no arvoredo alto podia ouvir ao longe,
não só o ronco contínuo da ressaca, mas também uma certa
agitação da folhagem e ranger de ramos que me diziam que a
brisa estava mais forte do que era hábito. Em breve me
chegaram correntes de ar fresco, e pouco depois atingia a
borda da enseada para avistar o mar azul e cheio de sol até ao
horizonte e as ondas que enrolavam e espalhavam a sua espuma
na praia.
Nunca em redor da Ilha do Tesouro vi o mar estar calado em
paz. Podia o sol dardejar lá em cima, o ar não ter um sopro, a
superfície da água lisa e azul, mas havia sempre aquelas vagas
a rolar ao longo de toda a costa, trovejando sem cessar dia e
noite, e não creio que haja na ilha um lugar onde aquele
barulho não se possa ouvir.
Cheio de contentamento, caminhei ao lado da ressaca até,
achando que já tinha avançado o suficiente para sul, me
abrigar nuns arbustos espessos e me arrastar com cuidado até
ao topo da língua de areia.
Atrás de mim tinha o mar, e à frente o ancoradouro. O vento,
como se estivesse prestes a esgotar-se mais cedo devido à
força fora do normal com que soprara, já não se fazia sentir,
sucederam-lhe massas de ar leves e variáveis do sul e sudeste,
que arrastavam grandes bancos de nevoeiro, e o ancoradouro, ao
abrigo da Ilha do Esqueleto, encontrava-se calmo e liso como
quando lá entrámos pela primeira vez. O Hispaniola, naquela
serenidade espelhada, era reflectido com exactidão desde a
ponta dos mastaréus até à linha de água, com a bandeira negra
suspensa no traquete.
Atracada ao navio estava uma das baleeiras, com o Silver nos
paneiros da ré - a ele podia-o sempre reconhecer -, ao passo
que dois homens se debruçavam na amura da popa, um deles com
um barrete vermelho, o mesmo bandido que vira algumas horas
antes escarranchado na paliçada.


122


Pareciam falar e rir, embora àquela distância - para cima de
uma milha - não pudesse, evidentemente, ouvir uma única
palavra. Mas de repente distingui uns gritos medonhos e
arrepiantes, que não deixaram de me assustar a princípio,
embora em breve tenha reconhecido a voz do capitão Flint, e
pensado que podia avistar as plumas garridas do papagaio
empoleirado no pulso do dono.
Pouco depois, o bote largou e dirigiu-se para terra, e o
homem do barrete vermelho desceu com o companheiro à escotilha
do camarote.
Por essa altura, o Sol descera por detrás do monte do Óculo
e, com o nevoeiro a acumular-se rapidamente, a escuridão
avançou. Vi que não tinha tempo a perder se quisesse encontrar
o barco naquela noite.
A rocha branca, bastante visível acima dos arbustos, ficava
ainda a mais de cem metros para o lado de baixo, e levou-me um
bom bocado a lá chegar, de rastos e muitas vezes de gatas, por
entre as moitas. Quase chegara a noite quando Lhe pus a mão
nos flancos rugosos. Mesmo por baixo dela havia uma depressão
muito pequena de turfa verde, oculta pelo declive e por mato
cerrado que me dava pelos joelhos e que ali crescia com
abundância, e lá estava, ao centro da cova, uma pequena tenda
de peles de cabra, como as que os ciganos usam na Inglaterra.
Saltei para a cova, levantei um lado da tenda e ali estava o
batel do Ben Gunn - feito à mão como nunca houvera nada
igual-, uma estrutura tosca de madeira forte, inclinada mais
dum lado que do outro, e esticada por cima dela uma cobertura
de pele de cabra, com o pêlo para dentro. A coisa era
minúscula, até para mim, e não creio que pudesse flutuar com
um adulto forte lá dentro. Havia um assento colocado tão baixo
quanto possível, uma espécie de esticador nas extremidades e
um remo duplo como propulsor.
Nunca tinha visto um coracle(1), como os feitos pelos
antigos bretões, mas vi um mais tarde, e a ideia mais
aproximada que posso dar do barco do Ben Gunn é dizer que me
pareceu o mais antigo e pior coracle jamais construído pelo
homem. Mas não havia dúvida que tinha a grande vantagem do
coracle, por ser extremamente leve e portátil.


123


Pois bem, já que encontrara o barco, talvez tenham pensado
que já satisfizera a minha vaidade, mas o certo é que
arranjara outra ideia, e a ela me entreguei a tal ponto que me
sentia capaz de a pôr em prática, creio, na presença do
capitão Smollett em carne e osso. E era sair pela calada da
noite e cortar as amarras do Hispaniola, deixando a escuna à
deriva para ir encalhar onde calhasse. Estava bem convencido
de que os amotinados, depois do desaire dessa manhã, não
tinham outro desejo senão levantar ferro e fazerem-se ao mar;
isso, pensei, bem merecia ser contrariado, e agora, que os
vira deixar o vigia sem um bote, pensei ainda que podia
executar o plano com um risco mínimo.
Sentei-me à espera que escurecesse e comi uma boa ceia de
bolachas. Era a noite ideal para o que ia fazer. A bruma
fizera desaparecer o céu todo. Ao desaparecerem os últimos
raios do dia, instalou-se na Ilha do Tesouro o negrume mais
completo. E quando, enfim, carreguei com o coracle aos ombros
e tacteei o caminho aos tropeções para sair do buraco onde
ceara, em todo o fundeadouro apenas dois pontos eram visíveis.
Um era a grande fogueira em terra, em redor da qual os
piratas derrotados se estendiam, no pântano, bebendo em
algazarra. O outro, um simples borrão de luz no escuro,
assinalava a posição do navio. Tinha rodado com a corrente da
maré - ficara com a popa virada para mim -, e a única luz a
bordo era a do camarote; o que eu avistava era somente a
claridade forte da janela da ré que se reflectia no nevoeiro.
A vazante já ia adiantada e tive de chapinhar pela extensa
faixa de areia encharcada, em que várias vezes me afundei até
às canelas, até chegar à beira da água e, metendo-me a ela,
empregar bastante força e destreza para lançar o meu coracle,
de quilha para baixo, ao mar.


*1. Termo do País de Gales: barco usado pelos pescadores
galeses, de couro ou oleado esticado sobre uma armação de
verga (Samuel Johnson, Um Dicionário da Língua Inglesa,
Londres, 1829). (N. do T.)

CAPÍTULO XXIII


A maré desce


O coracle - como já calculara - era um caiaque muito
seguro para uma pessoa do meu tamanho e peso, ao mesmo tempo
leve e bem equilibrado na água mas, por outro lado, o mais
caprichoso e imprevisível barco que se podia ter na mão.
Fizesse o que fizesse, virava constantemente de bordo, e a sua
manobra preferida era pôr-se às reviravoltas. Até o próprio
Ben Gunn concordava que o bote tinha um feitio esquisito até a
gente Lhe apanhar o jeito.
O certo é que não havia meio de lhe acertar com o tal
feitio. Virava-se para todos os lados menos para onde eu
queria ir, fui navegando quase sempre de borda ao mar, e tenho
a certeza que nunca teria chegado ao navio se não fosse a
maré. Por mais que remasse, tive a sorte de continuar a ser
arrastado por ela, e como o Hispaniola lá estava mesmo no meu
caminho, nem podia falhar.
Ergueu-se primeiro à minha frente como uma mancha ainda mais
negra do que a escuridão, a seguir começaram a tomar forma a
mastreação e o casco e, no que me pareceu um curto momento
(pois quanto mais avançava mais forte era a corrente da água),
cheguei à amarra e deitei-Lhe a mão.
O cabo estava esticado como a corda dum arco, tal era a
força que fazia na âncora. Em redor do casco, no negrume, a
correnteza borbulhava e cantava como uma cascata. Um golpe da
minha navalha, e o Hispaniola vogaria ao sabor da maré.
Tudo bem até aí, mas a seguir lembrei-me que um cabo
esticado, cortado de repente, é tão perigoso como um coice de
cavalo. Era mais que certo que, se me aventurasse a cortar a
amarra da âncora, tanto eu como o caiaque íamos ser varridos
do mar para fora.
Fiquei parado e, se a sorte não estivesse uma vez mais a meu
favor, acabaria por ter de abandonar o plano. Mas o vento
ligeiro que a princípio soprara de sudeste e sul rondara para
sudoeste depois de anoitecer. Na própria altura em que assim
meditava, a brisa apanhou o Hispaniola e impeliu o navio
contra a corrente, com grande contentamento senti o cabo
afrouxar-me na mão, que por instantes me ficou debaixo de
água.
Decidindo-me, tirei a navalha, abri-a com os dentes e fui
cortando as cordas uma a uma, até o cabo ficar feito em dois.
Depois parei, aguardando a ocasião de os cortar logo que a
força do navio fosse de novo aliviada por um sopro de vento.
Tinha estado sempre a ouvir vozes altas vindas do camarote
mas, para falar verdade, tinha a cabeça tão cheia de outros
pensamentos que mal lhes dera ouvidos. Mas agora, sem mais
nada em que me ocupar, comecei a prestar mais atenção.
Reconheci uma delas como a do timoneiro Israel Hands, que
fora outrora artilheiro de Flint. A outra era, com toda a
evidência, do meu amigo do barrete vermelho. Iam ambos no pior
da bebedeira, e continuavam a beber pois, ainda enquanto me
esforçava por ouvi-los, um deles abriu a escotilha da ré, com
uma praga, para atirar fora qualquer coisa que adivinhei ser
uma garrafa vazia. Mas não estavam só tocados, não havia
dúvida que estavam no auge da fúria. Soltavam uma saraivada de
pragas, e de cada vez que a irritação explodia mais eu ficava
com a certeza que aquilo ia acabar à pancada. Mas a discussão
voltava a dissipar-se e as vozes resmungavam em tom mais baixo
por algum tempo até chegar nova crise que, por sua vez, se
extinguia sem consequências.
Podia avistar na praia o clarão da grande fogueira a arder
por detrás das árvores. Alguém cantava um velho e monótono
lamento do mar, com uma pausa soluçada no fim de cada verso,
cujo fim parecia depender só da paciência do cantador. Mais de
uma vez a tinha ouvido em viagem e lembrava-me dos versos:


"No mar só um escapou com vida,
Dos setenta e cinco da partida."


E pensei que aquilo era um pouco duro demais, mesmo a
condizer com o grupo que pela manhã sofrera perdas tão
violentas. Mas na verdade, pelo que via, todos aqueles piratas
eram tão insensíveis como o mar por onde andavam.
Por fim, veio a brisa, a escuna guinou e aproximou-se no
escuro, senti o cabo aliviar outra vez, e empreguei todas as
forças a cortar o que restava das fibras.
A brisa não tinha grande efeito no coracle, e quase
instantaneamente fui arrastado de encontro ao Hispaniola. Ao
mesmo tempo, a escuna principiou a inclinar-se, rodando
lentamente, atravessada na corrente.
Lutei como um desesperado, pois esperava ir ao charco a cada
instante, vendo que não podia afastar o caiaque do casco do
navio, esforcei-me por arrastá-lo para a ré.


126


Acabei por me libertar do perigo tão próximo, dava ainda o
último puxão quando toquei num estai pendurado na borda da
amura de popa. Agarrei-me logo a ele.
Nem sei bem porque fiz aquilo. Ao princípio foi puro
instinto, mas ao agarrar a corda, encontrando-a firme, a
curiosidade acabou por prevalecer e decidi que tinha de
espreitar pela escotilha do camarote.
Icei-me mão após mão pelo cabo acima e, quando achei que já
estava perto, elevei-me mais um pouco com enorme risco, até
avistar o tecto e uma parte do interior do camarote.
Entretanto, a escuna e o minúsculo bote deslizavam com
rapidez pela água, a ponto de já irmos a passar em frente à
fogueira do acampamento. O navio falava, como dizem os
marinheiros, em voz alta, rompendo as pequenas ondas com o
marulho incessante dos redemoinhos; até os olhos me chegarem
ao peitoril, não podia entender como era que os homens de
guarda ainda não tinham mostrado alarme. Contudo, um só olhar
bastou, e não podia arriscar-me a olhar mais que uma vez em
cima daquele madeiro nada firme. Topei com o Hands e o
companheiro abraçados numa luta de morte, cada um com uma das
mãos no pescoço do outro.
Deixei-me cair, e mesmo a tempo, pois estive prestes a dar
um mergulho. Por momentos só continuava a ver aquelas duas
caras raivosas e purpúreas a balançar juntas debaixo do
candeeiro fumarento, e fechei os olhos para os habituar de
novo ao escuro.
A cantiga sem fim acabara por parar, e toda a companha que
restava à roda da fogueira entoava o coro tantas vezes ouvido:


"Quinze homens na arca do morto
Aiou-ou-ou e uma garrafa de rum!
O resto levou-os o vinho e o diabo
Aiou-ou-ou e uma garrafa de rum!"


Pensava em como nessa altura o álcool e o diabo estavam tão
ocupados no camarote do Hispaniola, quando um brusco safanão
do coracle me apanhou de surpresa. Ao mesmo tempo, baloiçou
com força e pareceu-me mudar de bordo. Por seu lado, a
velocidade aumentara de modo estranho.
Abri logo os olhos. Em toda a volta havia pequenos
redemoinhos que avançavam para mim com um som áspero, e tinham
uma leve fosforescência. O próprio Hispaniola, cuja esteira
ainda me arrastava a poucos metros de distância, pareceu
cambalear no seu rumo, e vi a mastreação inclinar-se um pouco
contra o negrume danoite;


127


prestando mais atenção, fiquei certo de que o barco estava a
garrar para sul.
Olhei de esguelha e o coração martelou-me as costelas. Além,
bem para trás, ia o clarão do fogo do acampamento. A corrente
dobrara em ângulo recto, levando consigo a escuna e o pequeno
coracle, que bailava; cada vez mais rápida, mais agitada, cada
vez mais barulhenta, enrolava-se pelos canais a caminho do mar
alto.
O navio, à minha frente, fez de repente um bordo violento,
virando-se talvez uns vinte graus, e quase no mesmo instante
ouvi dois gritos seguidos. Depois os passos em corrida pela
escada da camarata, e fiquei a saber que os dois bêbedos
tinham enfim interrompido a briga para se darem conta do
desastre em que estavam metidos.
Estendi-me ao comprido no fundo daquele malvado caixão e
recomendei com fervor a alma ao Criador. Tive a certeza de que
para lá dos estreitos havíamos de cair numa barreira qualquer
de vagalhões raivosos, onde todos os problemas não tardariam a
cessar, e embora talvez pudesse suportar a ideia de morrer,
não conseguia suportar a visão do destino que vinha ao meu
encontro.
Assim devo ter ficado durante horas, sempre a ser sacudido
em vaivém pelas vagas, a cada passo molhado por borrifos e sem
deixar de aguardar a morte sob a onda seguinte. Fui ficando
gradualmente entontecido, uma sonolência, por vezes um
entorpecimento, apoderava-se de mim apesar de estar cheio de
medo, até que por fim sobreveio o sono e, estendido no meu
caiaque rolado pelo mar, sonhei com a minha terra e com a
velha "Almirante Benbow".

CAPÍTULO XXIV


O cruzeiro do coracle


Era dia quando acordei e me encontrei a baloiçar na ponta
sudoeste da Ilha do Tesouro. O sol ia alto, mas ainda fora da
minha vista para lá do imponente monte do Óculo, que daquele
lado descia quase até ao mar em formidáveis arribas.
O cabo da Bolina e o monte da Mezena ficavam-me ao lado, o
monte despido e escuro, o cabo dominado pela falésia duns
quinze metros de alto e rodeado de grandes massas de rocha
tombada.
Encontrava-me a escassas centenas de metros ao largo e o
primeiro pensamento que tive foi remar para terra.
Em breve desisti daquela ideia. Entre os rochedos tombados
as vagas rebentavam e trovejavam, os estrondos fortes e os
jactos de água que se erguiam e caíam sucediam-se uns aos
outros de segundo a segundo, e via-me, se me aventurasse mais
perto, atirado para a morte na costa acidentada ou com as
forças gastas em vão ao escalar os penedos aguçados.
Mas aquilo não era tudo pois, arrastando-se juntos em cima
das lajes lisas, ou deixando-se cair no mar com fragor,
contemplei uns enormes monstros escorregadios - como se fossem
lesmas de inacreditável tamanho, juntos em dois ou três grupos
de vinte, que faziam os seus latidos ecoar na penedia.
Compreendi mais tarde que se tratava de leões marinhos,
completamente inofensivos. Mas o aspecto dos animais,
acrescido à dificuldade da costa e à ressaca agitada, foi mais
que suficiente para antipatizar com tal ponto de desembarque.
Achava preferível morrer à fome ao largo do que ter de
enfrentar tais perigos.
Entretanto, segundo supunha, aguardavam-me melhores
possibilidades. Para norte do cabo da Bolina há uma faixa
extensa de terra, que na maré baixa deixa a descoberto a areia
amarela. Ainda mais para o norte, há outra ponta - o cabo da
Floresta, como estava indicado no mapa -, coberta de pinheiros
altos e verdes descendo até à beira de água.
Lembrei-me das palavras do Silver sobre a corrente que segue
para norte por toda a costa oeste da Ilha do Tesouro e, vendo
pela minha situação que já estava sob a sua influência, achei
melhor deixar o cabo da Bolina para trás e poupar as forças
para tentar desembarcar no mais acolhedor cabo da Floresta.
A ondulação ao largo era larga e pouco cavada. Com o vento a
soprar constante e brando do sul, na mesma direcção da
corrente, a vaga subia e descia sem quebrar.
Se fosse de outro modo, devia ter naufragado muito antes,
mas assim, é admirável como o barquinho tão pequeno e leve
navegava com tanta segurança e facilidade. Muitas vezes, ainda
deitado no fundo e só com um olho a espreitar pela borda, via
um grande monte azul levantar-se mesmo por cima de mim, mas o
coracle só oscilava um pouco, dançava como se tivesse molas e
deslizava para a cova da onda do outro lado com a leveza dum
passarinho.
Passado pouco tempo comecei a recuperar a ousadia e
preparei-me para tentar pôr à prova a minha capacidade de
remador. Mas por pequena que seja, uma mudança da distribuição
do peso resulta em tremendas modificações no comportamento dum
coracle. E mal me tinha mexido quando o bote, deixando logo o
seu balanço brando, atirou-se a direito por uma descida de
água tão íngreme que me fez vertigens, e foi enfiar a ponta,
com um jacto de espuma, dentro da dobra da outra onda.
Encharcado e aterrado, voltei logo à posição anterior,
depois do que o caiaque pareceu reencontrar o equilíbrio, para
me levar com a mesma suavidade por entre as vagas. Era
evidente que não gostava de ser incomodado, mas daquele modo,
impedido de intervir na rota que seguia, que esperança me
restava de chegar a terra?
Comecei a ficar amedrontado de verdade, mas ainda assim não
perdi a cabeça. Primeiro, com todas as cautelas, fui
despejando a água com o boné, a seguir espreitei de novo pela
borda e pus-me a estudar como era que ele conseguia passar tão
discretamente pela vaga.
Descobri que cada uma das ondas, em vèz de ser aquela
montanha grande, lisa e espelhada que se vê de terra ou do
convés dum navio, era em tudo semelhante aos montes da terra,
com picos, planícies e vales. O coracle, entregue a si
próprio, virando-me dum lado para o outro, desfiava, por assim
dizer, o caminho através daquelas zonas mais baixas, evitando
os declives íngremes e as cristas mais altas e instáveis da
vaga.
"Ora bem", pensei, "é claro que tenho de ficar onde estou
sem perder o equilíbrio, mas também é evidente que posso pôr o
remo cá fora, e de vez em quando, em sítios calmos, dar-lhe um
ou dois puxões para terra."

130


Pus aquilo imediatamente em prática. Apoiei-me nos
cotovelos, na posição mais incómoda, e pouco a pouco dei uma
ou duas remadas fracas para virar a proa a terra.
Era trabalho muito cansativo e lento, mas não havia dúvida
que ganhei terreno e, ao aproximar-me do cabo da Floresta,
embora visse que não conseguia lá chegar, ainda assim tinha
feito umas centenas de metros para leste. Estava, aliás,
bastante perto. Avistava as copas frescas e verdes das árvores
a baloiçar ao vento, e tive a certeza de que não ia falhar o
promontório seguinte.
E estava na hora, pois a sede começava a torturar-me. O
clarão do sol lá em cima, os mil reflexos que punha nas ondas,
a água salgada que caíra e me secara no corpo, os beiços secos
de sal, tudo se combinava para me fazer a garganta arder e a
cabeça doer. A vista das árvores tão próximas quase me tornava
o desejo em agonia, mas a corrente em breve me fizera dobrar a
ponta e, com outro braço de mar à minha frente, avistei uma
coisa que me alterou todos os pensamentos. Mesmo à minha
frente, a menos de seiscentos metros, deparei com o Hispaniola
de vela içada. Fiquei certo de que ia ser capturado, mas
estava tão aflito com a falta de água que nem sabia se havia
de ficar contente ou triste com tal certeza mas, muito antes
de poder tirar qualquer conclusão, ficara totalmente tolhido
pela surpresa, e nada mais pude fazer senão ficar a olhar, de
boca aberta.
O Hispaniola vogava com a vela grande e duas gibas, e a
linda lona branca brilhava ao sol como neve ou prata. Quando o
avistara, as velas do navio iam todas a puxar, seguia para
noroeste, e calculei que os de bordo iam dar a volta à ilha
para regressar ao ancoradouro. Em seguida, começou a guinar
para oeste cada vez mais, por isso pensei que me tinham visto
e iam virar para me caçar. Por fim, contudo, o navio caiu na
linha do vento, foi impedido de prosseguir e ali ficou algum
tempo parado, de velas a abanar.
- Desastrados - desabafei -, ainda devem estar bêbedos como
cachos.
E pensei como o capitão Smollett era capaz de os fazer
bailar.
Entretanto, a escuna foi-se desviando, o pano encheu-se de
novo pela bolina contrária, navegou rápida cerca de um minuto
e estacou outra vez enfiada no olho do vento. Aquilo
repetiu-se inúmeras vezes. Para diante e para trás, para cima
e para baixo, norte, sul, este e oeste, o Hispaniola vogava às
guinadas e arranques, e de cada vez terminava como havia
começado, de panos a bater para nada. Vi claramente que
ninguém estava ao leme. A ser assim, onde estavam eles?


131


"Ou estavam mortos de bêbedos, ou tinham abandonado o navio",
pensei, "e se talvez conseguisse abordá-lo ser-me-ia possível
devolvê-lo ao capitão."
A corrente transportava o coracle e a escuna com a mesma
velocidade. Quanto ao navio, navegava de modo tão incerto e
intermitente, e de cada vez se demorava tanto, ferrado no
vento, que o mais certo era não ganhar avanço nenhum, se é que
até não perdia. Se ao menos me atrevesse a sentar-me e a
remar, tinha a certeza de poder alcançá-lo. A ideia tinha um
ar de aventura que me entusiasmou, e a lembrança da pipa de
água ao lado dos beliches da proa duplicou o meu ânimo.
Levantei-me, fui recebido quase de imediato por outra nuvem
de espuma, mas dessa vez fui direito ao fim e empreguei toda a
força e cuidado a remar atrás do Hispaniola desgovernado. Uma
vez apanhei uma onda tão forte que tive de parar para despejar
a água, com o coração a bater asas, mas pouco a pouco fui-lhe
apanhando o jeito e conduzi o meu caiaque pelas vagas, só com
uma ou outra pancada de través e uma chapa de espuma na cara.
Aproximava-me agora da escuna com rapidez. Podia ver o latão
a rebrilhar na barra do leme que batia desordenada, mas
ninguém aparecia no convés. Não pude deixar de pensar que o
navio estava abandonado. Ou então os homens estavam em baixo,
a cozer a bebedeira, onde talvez os pudesse trancar, para
fazer do navio o que eu quisesse.
Por algum tempo, a escuna fizera a pior coisa possível para
mim - ficar imóvel. Estava de proa quase a sul, evidentemente,
sempre a guinar. De cada vez que cambava, as velas enchiam-se
em parte e, num momento, traziam-na de novo contra o vento.
Dizia eu que isto, para mim, era o pior possível, porque o
navio, indefeso como parecia naquela situação, com as velas a
rolar e a bater pelo convés, continuava ainda a escapar-me,
não só com a velocidade da corrente mas também pela
resistência que oferecia ao vento, que era naturalmente
grande.
Mas então, finalmente, chegou a minha vez. Por alguns
segundos, a brisa caiu muito e, obedecendo à corrente, o
Hispaniola fez uma meia volta lenta até ficar de popa virada
para mim, com a janela do camarote ainda aberta e o candeeiro
deixado aceso. A vela grande ficou suspensa e solta como uma
bandeira. Exceptuando a corrente da água, o navio estava
imóvel.
Chegara a perder nos últimos instantes, mas agora,
redobrando os esforços, recomecei mais uma vez a recuperar.


132


Quando estava a menos de cem metros do navio, o vento tornou
a levantar-se, a escuna apanhou-o na bolina de bombordo e
tornou a arrancar, baloiçando e picando como uma gaivota.
Tive um primeiro impulso de desespero, logo seguido por
outro de alegria. O navio virou outra vez, até ficar de bojo
para mim... continuou a virar até meio, depois dois terços,
depois três quartos da distância que nos separava. Via o
cachão branco das ondas no bico da vante. Visto do coracle,
parecia duma altura imensa.
De repente, comecei então a compreender. Pouco tempo tinha
para pensar, pouco tempo dispunha para agir e pôr-me a salvo.
Estava no topo duma onda quando a escuna vinha a passar por
cima da seguinte. O gurupés estava por cima de mim. Pus-me em
pé e saltei, empurrando o bote para debaixo de água.
Agarrei-me com uma das mãos ao pau da giba, enquanto o pé me
ficou entalado entre o estai e o cabresto e, enquanto ainda
ali estava pendurado e arquejante, uma pancada surda disse-me
que a escuna atingira o coracle e que já me não era possível
sair do Hispaniola.

CAPÍTULO XXV


Ataco a bandeira negra


Mal me tinha alojado no gurupés quando a giba esvoaçante
bateu e se encheu do lado da escota contrária com um estrondo
como um tiro. A escuna tremeu até à quilha com o puxão mas,
logo a seguir, com as outras velas ainda cheias, a giba voltou
a cair e ficou pendurada.
Aquilo quase me atirara ao mar e tratei de não perder tempo;
trepei pelo pau do gurupés e caí de cabeça no tombadilho.
Encontrava-me a sotavento da vante, e a vela grande, ainda
cheia, ocultava-me de uma parte do convés da ré. Não via
ninguém. As pranchas, por lavar desde a revolta, estavam
cheias de pegadas, e uma garrafa vazia, com o gargalo partido,
rolava de um para outro lado como coisa viva nos escoadouros.
O Hispaniola enfiou de súbito ao vento. As gibas atrás de
mim estalaram, o leme bateu com força, todo o barco arrancou e
estremeceu, e ao mesmo tempo a verga grande girou para dentro,
o pano roncou nas escotas, pondo à vista o convés da ré a
sotavento.
Lá estavam os dois guardas: o Barrete-Vermelho de costas,
teso como um varapau, com os braços abertos em cruz e os
dentes de fora da boca aberta, o Israel Hands apoiado na
amura, o queixo no peito, as mãos estendidas para a frente no
convés, e a cara, debaixo da pele queimada, tão pálida como
uma vela de sebo.
Por algum tempo, o navio continuou a afocinhar e a cambar
como um cavalo torto, as velas a encher ora dum lado ora do
outro, e a verga a girar para a frente e para trás até todo o
mastro gemer com o esforço A cada passo, também uma nuvem de
respingos saltava pelas amuras, juntamente com as pancadas
fortes do costado a lutar com a ondulação - de modo que o
tempo parecia muito mais forte naquele grande navio de armação
do que no meu coracle feito à mão e empenado, que agora estava
no fundo.
A cada salto da escuna, o Barrete-Vermelho virava dum lado
para o outro, mas - o que era impressionante de se ver - nem a
atitude nem o sorriso congelado do homem eram perturbados por
tais maus tratos.


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A cada salto, também o Hands parecia cada vez mais caído
sobre si próprio e fixo ao convés, com os pés a ficarem cada
vez mais afastados e todo o corpo inclinado para a ré, de modo
que pouco a pouco deixei de Lhe ver a cara, até que por fim só
Lhe podia ver uma orelha e o caracol ralo de uma das suíças.
Observei ainda que, em redor de ambos, havia manchas de
sangue escuro nas pranchas, e comecei a convencer-me de que se
tinham morto um ao outro durante a bebedeira.
Enquanto assim olhava e magicava, numa altura em que o navio
se aquietou, o Israel Hands virou-se em parte para, com um
gemido, se encolher de novo na posição em que primeiro o vira.
Aquele gemido, que falava de dor e fraqueza mortal, e o jeito
em que os queixos Lhe pendiam, foi-me direito ao coração. Mas
ao recordar a conversa escutada no barril de maçãs, deixei de
sentir qualquer pena. Dirigi-me para a ré até chegar ao mastro
grande.
- Venha para bordo, senhor Hands - declarei, irónico.
Rebolou os olhos pesadamente, mas estava entorpecido demais
para mostrar surpresa. A única coisa que conseguiu balbuciar
foi uma palavra - brandy.
Lembrei-me que não tinha tempo a perder e, evitando a verga
que de novo girava de través, escapei-me para a ré e desci as
escadas para o camarote.
Mal podem imaginar a cena de confusão. Todas as fechaduras
tinham sido rebentadas em busca do mapa. O soalho
encontrava-se coberto de lama, onde os bandidos se haviam
sentado para beber ou discutir depois de se alagarem nos
charcos à roda do acampamento. As amuras, todas pintadas de
branco com cercaduras douradas, estavam repletas de marcas de
mãos sujas. Dúzias de garrafas vazias tilintavam pelos cantos
umas contra as outras com o rolar do navio. Um dos livros de
medicina do doutor estava aberto em cima da mesa, com metade
das folhas arrancadas, suponho que para acender cachimbos. No
meio de tudo isto o candeeiro ainda dava uma luz mortiça,
cheia de fumo e terrosa.
Dirigi-me à despensa, todos os barris haviam desaparecido, e
o número mais inacreditável de garrafas tinha sido consumido e
deitado fora. De certéza que desde o princípio do motim nem um
único deles tinha podido estar sóbrio.
Rebuscando tudo encontrei uma garrafa ainda com algum
brandy, para o Hands, e para mim arranquei algumas bolachas,
umas frutas de conserva, boa porção de uvas e um pedaço de
queijo. Com isto voltei para cima, coloquei os mantimentos
atrás do posto do leme e bem fora do alcance do timoneiro,


135


fui à vante beber uma quantidade de água da pipa e depois, só
depois, levei o brandy ao Hands.
Deve ter bebido um copo inteiro até tirar a garrafa da boca.
- Ai - disse ele -, cum raio, era disto que precisava!
Já me sentara no meu canto e começara a comer.
- Está muito ferido? - perguntei.
Grunhiu, ou melhor dizendo, ladrou.
- Se o médico cá estivesse - disse -, punha-me bom num
instante, mas bem vês que não tenho sorte nenhuma, esse é que
é o meu mal. E olha aquele, está pronto e morto, é o que ele
está - acrescentou, apontando o do barrete vermelho. - Lá
marinheiro é que nunca foi, afinal. E tu, donde é que saíste?
- Ora bem - respondi -, vim a bordo tomar posse deste barco,
senhor Hands, e até nova ordem faz favor de me tratar como
comandante.
Encarou-me com amargura, mas sem responder. O rosto tinha
melhor cor, embora parecesse ainda muito doente e continuasse
a escorregar e a estender-se com os safanões do navio.
- A propósito - continuei -, não aceito aquela bandeira,
senhor Hands, e com sua licença vou arriá-la. É melhor não ter
nenhuma do que esta.
E de novo evitando a verga, corri para a adriça, arriei a
bandeira negra e atirei-a pela borda fora.
- Deus salve o rei! - exclamei, agitando o boné. - E
acabou-se o capitão Silver.
Olhava-me com atenção e ar manhoso, sem tirar o queixo do
peito.
- Acho - disse por fim -, acho, capitão Hawkins, que agora
há-de querer ir para terra. Podíamos conversar.
- Pois claro - respondi -, é o que mais desejo, senhor
Hands. Ora diga lá - e recomecei a comer com apetite.
- Esse homem - começou, com um aceno fraco para o corpo -
chamava-se O'Brien, um irlandês dos bons, ele e eu pusemos-lhe
o pano, com a ideia de levar o barco de volta.. Bom, agora
morreu... está mais que morto, e não vejo quem é que vai levar
o navio. Tu não és de certeza, se eu não te ajudo. Ora bem,
dás-me de comer e beber, e um lenço velho ou um pano para atar
a minha ferida, dás, e eu ensino-te a conduzir, e isto vai dar
tudo certo, acho eu.
- Eu digo-Lhe - atalhei -, não vou voltar para o ancoradouro
do capitão Kidd. Quero levá-lo para a Angra do Norte, e pô-lo
a salvo na praia.


136


- Pois claro que está certo - gemeu ele. - Ora, no fim de
contas não sou assim tão mau. Sei perceber, não sei? Fiz o meu
jogo, fiz e perdi, e agora quem tem as cartas és tu. Angra do
Norte? Ora, eu cá não tenho por onde escolher. Era capaz de te
ajudar a navegar até à Doca da Forca, cum raio! E era mesmo.
Ao que me parecia, aquilo fazia algum sentido. O negócio foi
fechado. Três minutos depois o Hispaniola vogava com bom vento
ao longo da costa da Ilha do Tesouro, com boas esperanças de
dobrar a ponta norte antes do meio-dia e de correr de novo até
à Angra Norte antes da praia-mar, onde podíamos aportar em
segurança e aguardar que a vazante nos deixasse desembarcar.
Amarrei a barra do leme e desci para ir buscar à minha arca
um lenço de seda da minha mãe. Com este e ajudado por mim, o
Hands ligou o golpe sangrento que recebera na coxa e, depois
de ter comido um pouco e de dar mais um ou dois golos no
brandy, começou a recuperar nitidamente, sentou-se mais
direito, falou mais alto e com voz mais clara, e pareceu em
tudo um novo homem.
A brisa ia maravilhosamente a nosso favor. Vogávamos como
uma ave impelidos por ela, a costa da ilha a desenrolar-se com
rapidez e a vista a mudar de minuto a minuto. Em breve
deixámos para trás as terras altas e nos projectávamos ao
longo de terrenos baixos e arenosos, pintalgados de pinheiros
baixos, e em breve também os ultrapassámos para dobrar a ponta
do monte rochoso em que a ilha termina ao norte.
Tinha grande entusiasmo pelo meu posto de comando e estava
contente pelo tempo claro e cheio de sol, assim como por
aquelas variadas perspectivas da costa. Tinha muita água e boa
comida, e a consciência, que bastante me roera por causa da
fuga, tranquilizara-se pela grande conquista que fizera. Nada
pareceria faltar-me se não fosse o olhar do timoneiro que me
seguia disfarçadamente pelo convés, e o sorriso estranho que
lhe aparecia a cada passo na cara. Aquele sorriso tinha algo
de dor e fraqueza ao mesmo tempo - um sorriso hesitante de
velho, mas havia nele, além disso, um ar trocista, um véu
traiçoeiro, um todo manhoso na expressão com que me vigiava e
tornava a vigiar no meu trabalho.

CAPÍTULO XXVI


Israel Hands


O vento, acedendo aos nossos desejos, orçava para poente.
Mais fácil nos seria, assim, seguir da ponta noroeste da ilha
até à entrada da Angra Norte. Acontecia que não tínhamos
pessoal para lançar o ferro e não nos atrevíamos a abordar a
praia até a maré subir mais um pedaço, ficando, por
conseguinte, à mercê das horas. O timoneiro explicou-me como
aguentar o navio parado, após uma série de tentativas consegui
fazê-lo, e sentámo-nos em silêncio, para comer outra vez.
- Capitão - começou ele, por fim, com aquele mesmo sorriso
incómodo -, lá está o velho camarada O'Brien, acho que podias
deitá-lo pela borda. De costume não sou esquisito, nem me
arrependo de ter dado cabo dele, mas não o acho nada
decorativo, e tu?
- Nem tenho força, nem gosto desse serviço, por mim, deixe-o
ficar - retorqui.
- Este navio não tem sorte nenhuma, Jim - prosseguiu,
pestanejando. - Uma porção de gente morreu aqui no Hispaniola,
uma quantidade de mortos desde que embarcámos os dois em
Bristol.
"Nunca vi tanto azar, não. Ora, este O'Brien que por aí
andava, está morto ou não está? Eu não tenho estudos nenhuns,
mas tu, que és um moço que sabe ler e escrever, então diz lá
se achas que um homem morre de vez, ou se pode tornar a viver?
- A gente pode matar o corpo, senhor Hands, mas não o
espírito, já devia saber isso - retorqui. - Ali ó O'Brien está
no outro mundo, e talvez nos esteja a ver.
- Ah! - suspirou ele. - Mas que pena... até parece que matar
alguém foi só uma perda de tempo. Seja como for, os espíritos
não são grande coisa, pelo que tenho visto. Com espíritos não
me atrapalho, Jim. Olha, agora que já falaste abertamente,
agradecia-te muito se me trouxesses da cabine um... ora,
uma... diabo! Que não me lembro do nome. Bem, traz-me uma
garrafa de vinho, Jim, este brandy aqui é forte demais para a
minha cabeça.
A hesitação do timoneiro não era nada natural, e não pude
crer na ideia de preferir o vinho à aguardente. Tudo aquilo
era um pretexto. Era claro que queria afastar-me do convés,


138 139


mas não consegui saber com que intenção. Nunca me olhava de
frente, desviava os olhos para todos os lados, ora para o céu,
ora de revés para o morto O'Brien. Continuava sempre a sorrir
e a deitar a língua de fora com ar de culpa e embaraço, de
modo que até uma criança percebia logo que estava a tramar
alguma. Mas eu já tinha a resposta preparada, pois via bem a
minha vantagem, e também via que com um sujeito tão estúpido
podia disfarçar até ao fim a minha desconfiança.
- Vinho? - respondi. - Tanto melhor. Quer branco ou tinto?
- Olha que cá para mim tanto me faz, parceiro - declarou. -
Desde que seja forte e que haja muito, qual é a diferença?
- Pronto - atalhei. - Trago-Lhe Porto, senhor Hands. Mas
tenho de o ir procurar.
Com estas palavras desci à camarata fazendo o máximo barulho
possível, tirei os sapatos, corri em silêncio pelo corredor de
tabique, subi a escada do castelo de proa e espreitei pela
escotilha. Tomei toda a cautela, embora sabendo que ele não
esperava ver-me daquele lado, e logo a pior das minhas
suspeitas se confirmou.
Pusera-se de gatas e, apesar da perna lhe doer quando se
mexeu - ouvi-o abafar um gemido -, assim mesmo, foi com boa
velocidade que gatinhou pelo convés. Em meio minuto chegou aos
escoadouros de bombordo, e tirou de um rolo de cabo uma faca
comprida, ou melhor, uma adaga pequena, suja de sangue até ao
punho. Mirou-a por um momento com um gesto de apreciação,
experimentou a ponta na mão e, depois de a esconder à pressa
no peito do colete, voltou a arrastar-se para o mesmo lugar
encostado à amurada.
Era tudo o que precisava de saber. O Israel podia mexer-se,
agora estava armado e, se tivera tanto trabalho para se livrar
de mim, era evidente que eu tinha de ser a vítima.
O que iria fazer depois, quer tentasse atravessar a ilha de
rastos desde a Angra Norte até ao acampamento nos charcos,
quer desse um tiro de canhão na esperança de os capangas serem
os primeiros a vir em seu auxílio, era, claro, mais do que eu
podia calcular.
Mas tinha a certeza que numa coisa eu podia confiar, visto
que nisso se juntava o nosso interesse, e era o poder contar
com a escuna. Ambos pretendíamos encalhá-la em segurança, num
local abrigado, de modo que, na altura própria, pudesse ser
retirada com o mínimo trabalho e risco possíveis, e até lá
chegar era de admitir como certo que a vida me fosse poupada.
Enquanto o meu pensamento dava voltas ao caso não me deixei
ficar parado. Voltara a correr ao camarote, calçara os sapatos
e pegara ao acaso numa garrafa de vinho, a qual me justificava
a demora quando tornei a mostrar-me no tombadilho.
O Hands estava estendido como antes, todo feito num fardo e
com as pálpebras caídas como se estivesse fraco demais para
suportar a luz. Mas levantou a cabeça à minha chegada, quebrou
o gargalo da garrafa como um homem com muita prática daquilo,
e bebeu um bom trago, com o seu brinde preferido de "À
sorte!". Deixou-se ficar calado e a seguir, tirando um rolo de
tabaco, pediu-me para lhe cortar um bocado.
- Corta-me isso - disse -, porque não tenho faca, e mesmo se
tivesse, já quase não tenho forças. Ah, Jim, Jim, acho que
perdi a amarra! Corta-me esse tabaco que é capaz de ser o
último, porque estou quase na última, não haja dúvida.
- Está bem - respondi -, corto-lhe o tabaco, mas se fosse a
si e me sentisse tão mal, dizia as minhas orações, como um
cristão.
- Porquê? - atalhou ele. - Ora diz-me lá porquê.
- Porquê? - exclamei. - Ainda há bocado me estava a
perguntar dos mortos. Jurou falso, viveu em pecado, em
mentiras e em sangue, agora mesmo tem à frente um homem que
matou, e pergunta-me porquê! Pela piedade de Deus, senhor
Hands, aí tem porquê.
Falei com algum calor, pensando no punhal ensanguentado que
ele escondera e com o qual, cheio de maus pensamentos,
pretendia acabar comigo. Por seu lado, tomando um grande gole
de vinho, pôs-se a falar com uma solenidade surpreendente.
- Por trinta anos - afirmou -, andei no mar e vi bom e mau,
melhor e pior, bom tempo e borrasca, falta de mantimentos,
facas espetadas, e por aí fora. Pois olha que te digo que
ainda nunca vi coisa boa vir da bondade. O meu lado é o do que
dá o primeiro golpe, os mortos não ferram, é o que eu acho,
amém, assim seja. E agora, ouve - acrescentou, mudando
bruscamente de tom -, já chega de tolices. A maré já vai boa.
Segue as minhas instruções, capitão Hawkins, e vamos
alapar-nos lá dentro e acabar com isto.
No total, tínhamos à frente umas escassas duas milhas, mas a
navegação era melindrosa, a entrada daquele fundeadouro norte
era não só estreita e pouco profunda, mas também rodeada de
terra pelos dois lados, de modo que a manobra tinha de ser
muito boa para meter lá dentro o navio. Penso que fui um
discípulo bom e atento, e tenho absoluta certeza que o Hands
era um piloto excelente, porque seguimos, fazendo viragens, em
ziguezague, a raspar nas margens, com uma segurança e
exactidão bem dignas de se ver.
Mal tínhamos passado o cabo quando a terra se fechou à nossa
volta.


140


A costa da Angra Norte era tão densamente arborizada como a
do ancoradouro do Sul, mas a passagem, mais comprida e
estreita, mais fazia lembrar o que de facto era, a foz dum
rio. Mesmo à nossa frente, no extremo sul, vimos os últimos
vestígios dos destroços de um navio. Fora uma embarcação
grande de três mastros, mas tanto tempo estivera exposta ao
desgaste do tempo que estava recoberta de grandes cortinas de
algas gotejantes, enquanto arbustos de terra tinham ganho raiz
no convés e estavam agora juncados de flores. O espectáculo
era triste, mas mostrava que o fundeadouro era calmo.
- Ora - observou o Hands -, olha para ali, sítio ideal para
se alapar um barco. Areia lisa e fina, nem uma covinha,
árvores a toda a roda e as flores do barco velho como um
jardim.
- E depois de encalharmos - perguntei -, como é que tornamos
a safar o navio?
- Ora, assim - respondeu -, leva-se um cabo a terra na
baixa-mar, ali do outro lado, dá-se-lhe a volta num daqueles
pinheiros grandes, traz-se para cá e enrola-se no cabrestante,
e espera-se pela maré. Vem a praia-mar, põe-se todo o pessoal
ao cabo e pronto, fica safo que é uma limpeza. E agora, moço,
muita atenção. Estamos a chegar, e o navio vai embalado de
mais. Estibordo um pouco... assim... firme... estibordo... a
bombordo um pouco... firme... firme!
Assim ia dando as ordens, a que eu obedecia sem respirar,
até que de repente gritou: - Aí, meu bravo, força! - Empurrei
o leme com toda a força e o Hispaniola girou rápido e correu
direitinho à praia coberta de arbustos.
A excitação daquelas manobras perturbara de certo modo o
rigor da vigilância que até ao momento fizera sobre o
timoneiro. E mesmo então continuava tão interessado, à espera
que o navio encalhasse, que me tinha esquecido de todo do
perigo que me ameaçava, e continuei debruçado na amurada de
estibordo a ver as ondas a afastarem-se do bojo. Podia ter
tombado sem defesa, se não fosse um sobressalto fazer-me virar
a cabeça. Talvez tivesse ouvido uma tábua ranger ou visto a
sombra dele pelo canto do olho, talvez fosse um instinto como
o dum gato, mas o certo é que, ao voltar-me, lá vinha o Hands
a avançar para mim, de adaga na mão direita.
Devíamos ambos ter gritado alto quando nos encarámos, mas ao
passo que o meu foi um berro de terror, o dele foi um rugido
de fúria como o dum touro à carga. No mesmo instante,
atirou-se para a frente e eu saltei para o lado. Ao fazê-lo
larguei a barra do leme, que girou rápido para sotavento,
creio que aquilo me salvou a vida, pois foi bater no peito do
Hands e obrigou-o a estacar por algum tempo.


141


Antes que ele se recompusesse, safei-me do canto onde me
encurralara e fiquei com todo o convés para lhe trocar as
voltas. Parei à frente do mastro grande, tirei do bolso uma
pistola, fiz pontaria com calma, embora ele viesse de novo
direito a mim, e puxei o gatilho.
O percutor bateu, mas nem fogo nem tiro se seguiu, o
fulminante estava inutilizado pela água do mar. Amaldiçoei o
meu desleixo. Não tivera tanto tempo de voltar a escorvar e a
carregar as minhas únicas armas? Nesse caso não ficaria assim,
como uma simples ovelha a fugir ao carniceiro.
Apesar de ferido, era de admirar a rapidez com que ele
andava, com o cabelo grisalho tombado na cara e a própria cara
tão vermelha como uma flâmula vermelha, tal era a pressa e a
fúria. Não havia tempo para tentar a outra pistola, nem tinha
interesse nisso, aliás, porque tinha a certeza de estar
avariada. Uma coisa me parecia certa: não podia continuar só a
fugir dele, senão acabava por me encurralar à proa, como havia
pouco quase tinha feito na ré. A ser apanhado assim, trinta
centímetros da faca suja de sangue iam ser a minha última
sensação deste lado da eternidade. Pus as palmas das mãos no
mastro, bastante largo, e esperei, com todos os nervos
esticados.
Ao ver que me preparava para o fintar ele fez também uma
pausa, e passámos algum tempo naqueles movimentos trocados de
guarda e finta. Era o jogo de escondidas que tantas vezes
fizera na minha terra entre os penedos da enseada do Monte
Negro, mas jamais, podem crer, com o coração a bater tão
forte. Ainda assim, como digo, tratava-se dum jogo de rapazes,
e pensei que podia levar a melhor contra um marinheiro velho
ferido numa coxa. O certo é que a minha coragem crescera tanto
que me dera ao luxo de fazer um apanhado rápido de como iria
acabar a questão, e ao passo que tinha a certeza de poder
prolongar aquilo bastante tempo, não encontrava nenhuma
esperança de me escapar de vez.
Ora, entretanto, o Hispaniola bateu de súbito no fundo,
cambaleou, raspou na areia por um instante e depois, rápido
como uma sapatada, inclinou-se para bombordo, até o convés
fazer um ângulo de quarenta e cinco graus e perto de um tonel
de água esguichar pelos furos dos escoadouros, ficando
empoçado entre o tombadilho e a amura.
Ambos caímos num segundo, rebolando, quase juntos, para os
escoadouros, com o corpo hirto do Barrete-Vermelho ainda de
braços abertos, aos trambolhões atrás de nós. Estávamos tão
perto um do outro que dei com a cabeça no pé do timoneiro com
um choque que me fez bater os dentes.


142


Apesar da pancada fui o primeiro a pôr-me de pé, pois o Hands
ficara ensarilhado no morto. A inclinação brusca do barco
tornara impossíveis mais corridas no convés, tinha de
encontrar outra maneira de fugir, e bem depressa, porque o meu
inimigo estava quase a tocar-me. Rápido como o pensamento,
saltei para a enxárcia da mezena, gatinhei mão a mão por ali
acima, e só voltei a respirar quando me encontrei sentado na
verga.
Só a rapidez me salvara, a adaga espetara-se a poucos
centímetros do meu pé, quando voava por ali acima, e lá estava
o Israel Hands de boca aberta a olhar para mim, feito estátua
de surpresa e desilusão.
Agora que tinha uns momentos disponíveis, não perdi tempo a
mudar o fulminante da pistola e, então, depois de pronta e
para reforçar a defesa, tirei a bala da outra e tornei a
carregá-la de novo.
Aquele trabalho apanhou o Hands completamente de surpresa,
começou a ver a sorte voltar-se contra ele e, após uma visível
hesitação, içou-se também para a enxárcia e começou a subida
lenta e dolorosa com o punhal nos dentes. Levava imenso tempo
e proferia uma quantidade de gemidos para guindar atrás dele a
perna ferida, e já tinha terminado com calma os meus
preparativos quando ele ainda mal ultrapassara um terço da
distância. Em seguida, empunhando as duas pistolas, falei-lhe:
- Mais um passo, senhor Hands - declarei -, e rebento-lhe os
miolos! Os mortos não ferram, bem sabe - acrescentei, a rir.
Parou logo. Percebi-lhe pelo rosto que tentava pensar, mas
isso era-lhe tão demorado e difícil que, no meu poleiro
seguro, me ri na cara dele. Por fim, a engolir em seco, falou,
ainda com a mesma expressão de espanto. Para falar teve de
tirar a faca da boca mas, de resto, continuou imóvel.
- Jim - disse -, acho que estamos encravados, tu e eu, e
temos de chegar a acordo. Se não fosse aquele tombo tinha-te
apanhado, mas não tenho sorte nenhuma, isso não, e acho que
tenho de me render, o que custa tanto, bem vês, dum oficial
para um praticante como tu, Jim.
Eu tirava prazer daquelas palavras e sorria distraído, tão
vaidoso como um galo a passear, quando, num ápice, a mão
direita dele se ergueu acima do ombro. Algo assobiou no ar
como uma flecha, senti uma pancada seguida duma dor aguda, e
fiquei com o ombro pregado ao mastro. Na horrível dor e
surpresa daquele momento - mal posso dizer se foi de
propósito, mas tenho a certeza que foi sem cuidar da pontaria
- as duas pistolas dispararam ao mesmo tempo, e ambas me
caíram das mãos.


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Não caíram sozinhas: com um grito estrangulado o timoneiro
desprendeu-se da enxárcia e mergulhou de cabeça na água.


CAPÍTULO XXVII


Peças de oito


Devido à inclinação do navio, os mastros estavam
suspensos sobre o mar, e do meu poiso na verga só via por
baixo de mim a superfície da água. O Hands, que estivera mais
abaixo, caíra por conseguinte mais perto do navio, entre mim e
as amuras. Veio uma vez à tona numa mancha de espuma e sangue,
e depois afundou-se de vez. Quando a água parou pude vê-lo
enrolado na areia limpa e clara, à sombra do navio. Um ou dois
peixes passaram por ele. Por vezes, com o movimento da água,
pareceu mover-se um pouco, como se tentando levantar-se. Mas
estava bem morto, aliás, morto a tiro e afogado, e ia dar de
comer aos peixes no próprio sítio onde resolvera
sacrificar-me.
Mal me dera conta daquilo tudo quando comecei a sentir-me
enjoado, fraco e apavorado. O sangue quente escorria-me nas
costas e no peito. O punhal, onde me pregara o ombro ao
mastro, mais parecia um ferro em brasa. No entanto não eram
aquelas dores reais que me desesperavam, porque essas, assim
me parecia, podia aguentá-las e bem, era o horror que me ia cá
dentro de cair da verga para dentro daquela água verde e
parada, ao lado do corpo do timoneiro.
Agarrei-me com as mãos até as unhas me doerem, fechando os
olhos como se isso pudesse ocultar o perigo. Pouco a pouco
recuperei a presença de espírito, o pulso voltou a uma batida
mais normal, e voltei a ser senhor de mim próprio.
Em primeiro lugar pensei em arrancar a adaga, mas ou estava
espetada demais ou me faltou a coragem, e desisti com um
encolher de ombros. Por estranho que pareça, foi mesmo aquele
gesto que resolveu o caso. A faca, na verdade, por pouco que
não falhara o golpe, só me prendia por uma simples ponta da
pele, que aquele encolher de ombros rasgou. Claro que o sangue
voltou a jorrar com mais força, mas já me sentia recuperado, e
estava preso ao mastro somente pelo casaco e camisa.
Rasguei estes últimos com um puxão, e voltei ao convés pela
enxárcia de estibordo. Por nada deste mundo me arriscaria,
abalado como estava, pela de bombordo, da qual o Israel tinha
caído havia pouco.
Desci e tratei da ferida como pude, doía-me bastante e ainda
deitava muito sangue, mas não era profunda nem perigosa, e
também não me incomodava ao mexer o braço. A seguir olhei em
volta, e como, por assim dizer, o navio agora me pertencia,
pus-me a pensar livrá-lo do último ocupante - O'Brien, o
morto.
Rebolara, como já disse, contra a amurada, onde ficara feito
numa espécie de boneco horripilante e retorcido. Na verdade
era uma pessoa, mas que diferença de cor e de porte fazia dos
vivos! Naquela posição ia ser fácil mexer-lhe e, como o hábito
das aventuras trágicas já me tinha tirado quase todo o medo
dos mortos, agarrei-o pelo cinto como se fosse um saco de
farelo e, com um forte puxão, arremessei-o pela borda.
Mergulhou de chapão, o barrete vermelho soltou-se e ficou a
boiar e, logo que a água se aquietou, avistei-o junto do
Israel, o contorno dos dois corpos a seguir o movimento
trémulo da superfície, num ondular ritmado. O O'Brien, apesar
de ainda novo, era muito careca. E ali ficou com aquela careca
pousada nos joelhos do seu assassino, e com os peixes rápidos
a dar voltas sobre ambos.
Estava agora sozinho a bordo, a maré acabara de mudar. O pôr
do Sol estava tão próximo que já as sombras dos pinheiros do
lado poente atravessavam o fundeadouro e se recortavam no
tombadilho. A brisa da tarde levantara-se e, apesar de estar
abrigado a leste pelo monte com os dois picos, o cordame
pôs-se a assobiar baixinho e as velas paradas a abanar para a
frente e para trás.
Comecei a ver naquilo um perigo para o barco. As gibas
rapidamente as desprendi e deixei cair no convés, mas a vela
grande era caso mais sério. Claro que quando a escuna
adornara, a verga inferior tinha girado para dentro de água,
levando consigo um meio metro de vela suspensa. Achava que
aquilo ainda era mais perigoso, e era tanto o peso que receava
meter-me ao trabalho. Por fim peguei na faca e cortei as
escotas. A verga grande caiu logo, deixando uma enorme barriga
de lona solta a flutuar, e visto que, por mais que puxasse,
não tinha maneira de me desenvencilhar de tudo aquilo, dei por
terminado o que podia fazer. Quanto ao resto, o Hispaniola
ficava entregue à sorte, como eu.
Entretanto, todo o ancoradouro ficara na sombra, os
derradeiros raios, recordo, vinham por uma abertura do bosque
cair e brilhar como jóias no manto florido do barco
naufragado. Começou a ficar frio, a maré a descer rápida e a
escuna a encostar-se cada vez mais de lado.


146


Debrucei-me e olhei para a água. Parecia bastante baixa e,
segurando-me com as duas mãos ao cabo cortado, para uma última
precaução, deixei-me escorregar devagar pela borda. A água mal
me chegava à cintura, a areia estava firme e com as marcas da
corrente de água, e chapinhei para terra cheio de ânimo,
deixando o Hispaniola adornado, com a vela grande a
arrastar-se, desdobrada, à tona da enseada. Pela mesma altura,
o sol baixara muito e a brisa murmurava branda no crepúsculo
entre os pinheiros ondulantes.
Pelo menos, e por fim, saíra do mar, e além disso não
voltara de mãos vazias. Lá estava a escuna, enfim livre de
piratas e pronta para o embarque e regresso ao mar dos nossos
homens. A minha maior vontade era voltar à paliçada para me
gabar dos meus feitos. Era possível que me ralhassem um pouco
pelo meu desaforo, mas a retomada do Hispaniola era uma
resposta convincente, e tinha a esperança de que até mesmo o
capitão Smollett reconhecesse que não perdera o meu tempo.
Assim pensando, e com excelente disposição, comecei a tomar o
rumo do fortim e dos meus companheiros. Lembrei-me que o rio
que ficava mais para leste dos dois que iam desaguar à enseada
do capitão Kidd nascia no monte dos dois picos à minha
esquerda, e desviei-me nessa direcção de modo a poder
atravessar o curso de água enquanto era pequeno. A floresta
era muito aberta e, seguindo o caminho pelas quebradas mais
baixas, em breve dera a volta ao monte e pouco depois
atravessava o ribeiro com a água pelas canelas.
O caminho conduziu-me perto do sítio onde encontrara o Ben
Gunn, o desterrado, e caminhei com mais cuidado, a prestar
atenção à minha volta. O crepúsculo fechara-se por completo e,
ao passar o desfiladeiro entre os dois picos, notei uma
claridade que ondulava no céu e pensei que talvez fosse o
homem a fazer a ceia numa grande fogueira. Mas também achei
estranho que tivesse tanta falta de cuidado. Pois se podia
avistar aquele clarão, não ia ele chamar a atenção do próprio
Silver, acampado nos pântanos da costa?
Pouco a pouco, a escuridão aumentou, não tinha outro modo de
me orientar para o meu destino, mesmo por tentativas, o monte
duplo atrás de mim e o do Óculo à direita desapareciam a olhos
vistos, as estrelas eram poucas e pálidas, e no terreno baixo
onde me encontrava continuava a tropeçar nos arbustos e a
escorregar em buracos de areia.
De súbito, fiquei rodeado por uma claridade. Olhei para
cima, um leve brilho de luar tinha iluminado o topo do Óculo,


147


e logo a seguir vi uma coisa grande e prateada a voar muito
baixo para lá das árvores, e percebi que a lua havia nascido.
Com aquela ajuda, rapidamente venci o que me restava da
jornada e, umas vezes a andar, outras a correr, aproximei-me
impaciente da paliçada. No entanto, ao entrar no bosque à
frente dela, não fui tão tolo que me descuidasse no andar e
deixasse de prestar toda a atenção ao caminho. Seria um fim
bem triste que as minhas aventuras terminassem com um tiro da
minha gente dado por engano.
A lua ia subindo cada vez mais, o luar começou a penetrar
aqui e ali entre as zonas mais abertas do arvoredo e, mesmo à
minha frente, avistei um clarão de cor diferente no meio das
árvores. Vermelho e quente, por vezes escurecendo um pouco,
lembrava as brasas duma fogueira a apagar-se.
Posso jurar que não conseguia imaginar do que se tratava.
Enfim, cheguei mesmo à borda da clareira. O lado poente já
estava banhado pelo luar, o resto, e o próprio fortim, ainda
estava metido no negrume cortado por riscos de luz prateada.
Do outro lado da casa uma descomunal fogueira ardera até ficar
feita em brasas, cujo reverbero constante e rubro contrastava
com a doce palidez da lua. Não havia um único movimento, nem
um som além do murmúrio da brisa.
Parei, com o coração cheio de espanto e, talvez, também um
pouco de medo. Fazer fogueiras era coisa que não fazíamos, até
éramos bastante avarentos com a lenha, por ordem do capitão, e
principiei a recear que algo tivesse corrido mal durante a
minha ausência.
Escapei-me pelo lado nascente, junto à sombra, e num sítio
favorável, onde estava mais escuro, saltei a paliçada.
Para maior segurança pus-me de gatas e avancei, sem ruído,
para a esquina da casa. Ao aproximar-me, senti um grande
alívio. Aquele barulho em si próprio nada tinha de agradável,
e já em muitas outras ocasiões me queixara dele, mas nesse
momento era tão bom como música escutar os meus amigos a
ressonar tão alto e em paz durante o sono. O grito do vigia de
bordo, aquele belo "Tudo vai bem", nunca me soara mais
tranquilizador aos ouvidos.
Entretanto, não havia dúvida duma coisa: a guarda era o pior
possível. Se fosse o Silver e os homens dele a fazer aquele
assalto, ninguém chegava ao outro dia. Era o que acontecia,
pensei eu, estando o capitão ferido, e de novo me senti
grandemente culpado de os ter deixado naquele perigo com tão
poucos para montar a guarda.


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Ao chegar à porta, levantei-me. Lá dentro estava tudo às
escuras, por isso não podia distinguir nada com os olhos.
Quanto aos ouvidos, havia o ronco regular do ressonar, e um
pequeno ruído de vez em quando, um roçagar ou debicar que me
foi impossível identificar. .
Estendi os braços e entrei a direito. Devia ir estender-me
no meu lugar (pensei, rindo em silêncio) e gozar a cara deles
quando me encontrassem de manhã. Bati com o pé numa coisa que
cedia - era a perna dum deles, que se virou com um ronco, mas
sem acordar.
Então, num repente, um guincho a rasgar o escuro:
- Peças de oito! Peças de oito! Peças de oito! Peças de oito!
Peças de oito! - e assim por diante, sem pausa nem mudança,
como o chiar dum pequeno moinho.
O papagaio verde do Silver, o Capitão Flint! Fora a ele que
ouvira debicar num bocado de casca, era ele, melhor vigia que
qualquer humano, quem assim me anunciava a chegada com aquele
refrão monótono.
Não tive tempo de me recompor. Aos gritos esganiçados do
papagaio, os que dormiam acordaram e levantaram-se, e com uma
praga a voz do Silver bradou:
- Quem vem lá?
Virei-me para fugir, fui com força de encontro a um homem,
recuei e atirei-me para os braços de outro que, por seu lado,
os fechou e me prendeu bem preso.
- Uma tocha, Dick - mandou o Silver, quando a minha captura
estava confirmada.
E um dos homens saiu, para logo voltar com uma acha a arder.

Sexta Parte


O capitão Silver


CAPÍTULO XXVIII


No acampamento inimigo


A chama vermelha da tocha mostrou-me, ao iluminar o
interior da casamata, consumada a pior das minhas apreensões.
Os piratas haviam tomado a casa e as provisões como antes, lá
estava um barril de conhaque, lá estava a carne e o pão e, a
multiplicar por dez o meu terror, nem sombra de prisioneiros.
Pensei que tivessem morrido todos, e o coração acusou-me
amargamente de não ter lá ficado para morrer com eles.
Eram ao todo seis piratas, não ficara mais ninguém com vida.
Cinco tinham-se posto de pé, corados e inchados, arrancados de
súbito ao primeiro sono da bebedeira. O sexto erguera-se
apenas no cotovelo, estava pálido de morte, e a ligadura
ensanguentada em volta da cabeça dizia que o ferimento era
recente e o tratamento ainda mais recente. Lembrei-me do tiro
dado ao homem que fugira para o bosque durante o assalto, e
fiquei certo que era ele.
O papagaio estava empoleirado, a alisar as penas, no ombro
do Long John. Também ele, pensei, parecia mais pálido e tenso
do que o habitual. Ainda trazia vestido o fardamento que
pusera para a sua embaixada, mas estava em muito pior estado,
coçado, manchado de barro e rasgado pelos ramos aguçados da
floresta.
- Então - disse -, cá temos o Jim Hawkins, que as pranchas
me rebentem! Vieste fazer uma visitinha, é? Está bem,
recebo-te como amigo.
E sentou-se no barril de brandy, começando a encher o
cachimbo.
- Dá-me cá lume, Dick -, continuou, a seguir, com o tabaco
bem aceso. - Tá bem, rapaz - acrescentou -, mete o archote na
pilha da lenha, e os senhores cheguem-se para cá! Não precisam
de ficar de pé por causa do senhor Hawkins, ele dá licença,
garanto-lhes. E então, Jim - calcando o tabaco -, cá estás tu,
e que surpresa agradável para o velho John. Já sabia que eras
esperto desde a primeira vez que te vi, mas isto passa das
minhas marcas, passa.
Como é natural, não dei resposta a tudo aquilo. Tinham-me
feito encostar à parede, e ali fiquei a encarar o Silver,


152


esperando aparentar à vontade, mas com o coração negro de
desespero.
- Ora bem, Jim, já que estás aqui - declarou -, vou
desabafar contigo. Sempre gostei de ti, sempre, por seres um
moço valente, e teres a mesma figura que eu tinha quando era
novo e jeitoso. Sempre quis que viesses ter comigo e que
recebesses a tua parte, para morrer como um fidalgo, e agora,
meu franganote, chegaste. O capitão Smollett é um óptimo
oficial, como nunca deixei de reconhecer, mas rijo na
disciplina. O dever é o dever,, diz ele, e tem razão. É melhor
não te aproximares dele. O próprio doutor anda morto por te
deitar a mão, o malvado ingrato foi o que ele disse, e toda
esta história se resume nisto: não podes voltar para a tua
gente, porque eles não te querem e, se por ti mesmo não
arranjas uma terceira companha de bordo, até para não ficares
sozinho, tens mas é de te juntar ao capitão Silver.
Até ali não havia novidade. Os meus amigos estavam então
ainda vivos e, embora acreditasse em parte na história do
Silver, de que o grupo do camarote andava irritado com a minha
fuga, senti-me mais aliviado do que preocupado com o que tinha
ouvido.
- Não tenho nada a dizer a tu estares entregue nas nossas
mãos -prosseguiu o Silver-, embora estejas, garanto-te. Sou
todo a favor da discussão, as ameaças nunca dão bom resultado,
que eu saiba. Se te agrada o serviço, pois, juntas-te a nós, e
se não te agrada, Jim, ora tens toda a liberdade de responder
que não, és livre e bem-vindo, patrício, e não há marinheiro
neste mundo capaz de ser mais leal que isto, ou arrombem-me os
costados!
- Então tenho de responder? - perguntei, com a voz muito
trémula. Com toda aquela conversa sarcástica fora posta a
claro a ameaça de morte sobre a minha pessoa, tinha a cara a
arder e o coração batia-me doloroso no peito.
- Moço - disse o Silver -, nada de pressas. Tem calma.
Nenhum de nós te vai apertar, rapaz, na tua companhia o tempo
não custa nada a passar, percebes?
- Está bem - respondi, com um pouco mais de ânimo -, se
posso escolher, acho que tenho o direito de saber tudo o que
se passa, e porque é que vocês estão aqui, e onde estão os
meus amigos.
- O que se passa? - ecoou um dos piratas, em voz rouca. -
Ah, se alguém soubesse estava cheio de sorte!
- Talvez seja melhor teres os porões fechados até falarem
contigo, meu amigo - exclamou o Silver, com dureza, para o que
falara.
- Ontem de manhã, senhor Hawkins - continuou -, de
madrugada, chegou o doutor Livesey com uma bandeira de trégua.


153


Disse-me ele: "Capitão Silver, está arrumado. O navio foi-se
embora!"
"Ora, pode ser que a gente estivesse a beber um copo, e a
cantar para ajudar. Não digo que não. Pelo menos nenhum de nós
tinha olhado. Olhámos e, cum raio, o barco tinha desaparecido!
Nunca vi uma alcateia de palermas fazer tão grande figura de
urso, e garanto-te que o mais urso de todos era eu. "Bem", diz
o doutor, "vamos ao acordo." Chegámos a acordo, ele e eu, e cá
estamos, provisões, aguardente, casamata, a lenha que vocês
tiveram a amabilidade de cortar e, por assim dizer, o barco
todo, das gáveas até à quilha. Quanto a eles, puseram-se a
mexer, não sei onde param.
Deu mais umas fumaças no cachimbo.
- E caso tenhas nessa cabeça a ideia - acrescentou - que a
tua pessoa foi metida neste acordo, aqui tens a última coisa
que se disse: "Quantos têm vocês", digo eu, "para ir embora?"
"Quatro", diz ele, "quatro, e um de nós está ferido. Quanto
àquele rapaz não sei por onde anda, o malandrim", diz ele, "e
pouco me interessa. Já estamos fartos dele." Foi isto que ele
disse:
- Mais nada? - perguntei.
- Pois, para ti é quanto basta, meu filho - retorquiu o
Silver.
- E agora tenho de escolher?
- E agora tens de escolher, posso garantir-te.
- Pois bem, não sou tão tolo que não saiba com o que é que
posso contar. Se o pior ficar ainda pior, pouco me interessa.
Já vi muita gente morrer desde que ando com vocês. Mas há uma
ou duas coisas que tenho de lhes dizer - comecei, cada vez
mais exaltado -, e a primeira é esta. Aqui estão vocês, numa
triste situação, navio perdido, tesouro perdido, homens
perdidos, o negócio foi todo ao charco, e se querem saber,
quem fez tudo fui eu! Estava metido no barril das maçãs na
noite que avistámos terra, e ouvi-te a ti, John, e a ti, Dick
Johnson, e ao Hands, que está agora no fundo do mar, e fui
contar tudo o que vocês disseram logo naquela hora. E a
escuna, fui eu que lhe cortei o cabo, e fui eu que matei os
homens que lá deixaram, e fui eu,que a levei para onde nunca
mais a tornam a ver, nenhum de vós. É a minha vez de rir,
dirigi a coisa toda desde o princípio, já não me metem mais
medo do que uma mosca. Matem-me, se lhes apetecer, ou
poupem-me. Mas só digo uma coisa, e mais nada, se me pouparem,
o que lá vai lá vai, e quando forem julgados por pirataria
farei tudo para vos defender. Agora escolham. Matem mais um,
sem ganhar nada com isso, ou então poupem-me e fiquem com uma
testemunha para vos livrar da forca.
Parei porque, podem crer, já me faltava o ar e, para meu
espanto, nenhum deles se mexeu, mas olhavam-me pasmados como
carneiros. E enquanto estavam ainda a olhar, falei de novo:


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- E agora, senhor Silver - terminei -, julgo que és tu quem
manda aqui, e se as coisas forem pelo pior, peço-te o favor de
contares ao médico como é que eu me portei.
- Eu tomo nota - disse o Silver, com um tom de voz tão
esquisito que não tive meio de perceber se estava a fazer
troça ou se ficara com boa impressão da minha coragem.
- E digo mais - exclamou o velho da cara cor de mogno,
chamado Morgan, que encontrara na taberna do Long John no
porto de Bristol. - Era este que conhecia o Cão Negro.
- Bem, e oiçam lá - tornou o cozinheiro -, também eu digo
mais, cum raio! Pois foi este mesmo moço quem falsificou o
mapa do Billy Bones. Temos andado sempre aos tombos por causa
do Jim Hawkins!
- Então aí vai! - atirou o Morgan, com uma praga.
E saltou de pé, puxando da faca, como se tivesse vinte anos.
- Alto aí! - gritou o Silver. - Quem és tu, Tom Morgan? Se
calhar pensavas que eras por aí capitão, talvez. Pelo inferno,
que já te ensino! Atravessa-te comigo e vais parar onde já
foram muitos antes de ti, do primeiro ao último, nestes trinta
anos para cá, alguns no mastro, os costados me rebentem! E
outros à tábua, e todos para os peixinhos. Olha que ninguém me
fez frente que vivesse mais um dia, Tom Morgan, garanto-te.
O Morgan deteve-se, mas os outros soltaram murmúrios roucos.
- O Tom tem razão - disse um.
- Já me encolhi tempo de mais - acrescentou outro. - Que me
enforquem se me encolho de ti, John Silver.
- Algum dos senhores queria haver-se comigo? - rugiu o
Silver, inclinando-se todo para a frente no seu barril, com o
cachimbo aceso na mão direita. - Digam lá o que pretendem,
acho que não são mudos. O que quiser tê-lo, terá. Será que
passei tantos anos para deixar um filho duma colher de rum ir
pendurar o chapéu atravessado na minha amarra na ponta final?
Vocês sabem como é, são todos cavaleiros da fortuna, por conta
própria. Ora, aqui me têm. O que se atrever que pegue num
sabre, que o viro do avesso, com muleta e tudo, antes deste
cachimbo acabar.
Ninguém se mexeu, ninguém respondeu.
- É assim que vocês são, não é? - acrescentou, levando o
cachimbo à boca. - Até dão vontade de rir, de qualquer
maneira. Lá para lutar não são grande coisa, não. Devem
entender o inglês do rei Jorge.


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O capitão aqui sou eu por eleição. O capitão aqui sou eu
porque sou o melhor, de bem longe. Não querem lutar, como os
bons aventureiros, nesse caso, cum raio, têm de obedecer, e é
garantido! Ora eu cá gosto deste rapaz, nunca vi moço melhor
que ele. É mais homem do que vocês são ratos aqui nesta casa,
e só lhes digo isto: eu que saiba que alguém lhe põe a mão...
é o que tenho a declarar, e garanto-Lhes.
A isto seguiu-se um silêncio prolongado. Endireitei-me
contra a parede, o coração a bater como um martelo; mas com um
raio de esperança a brilhar por dentro. O Silver encostou-se à
parede, de braços cruzados e cachimbo ao canto da boca, calmo
como se estivesse na missa, mas o olhar vagueava furtivo, e
vigiava os capangas pelo canto do olho. Por seu lado, eles
foram-se juntando no canto mais afastado da casamata, e o tom
baixo dos seus murmúrios chegava-me aos ouvidos sem parar com
um curso de água. Uns após outros levantavam a cabeça, com a
luz vermelha da tocha a tocar por instantes os rostos
nervosos, mas não era para mim, e sim para o Silver, que os
olhos se voltavam.
- Parece-me que têm muito que falar - observou o Silver,
cuspindo para o ar. - Digam lá o que tiverem a dizer, ou então
fiquem quietos.
- Desculpe, senhor - retorquiu um dos homens. - O senhor é
muito aberto com algumas regras, e talvez faça o favor de
atender ao resto. A tripulação não está contente, a tripulação
acha que conversa fiada não vale um gancho, a tripulação tem
os seus direitos como qualquer outra, para falar com
franqueza, e por aquilo que o senhor defende acho que podemos
ter uma conversa. O senhor me desculpará, pois reconheço que é
o capitão aqui, mas reclamo o meu direito para pedir uma
reunião de conselho lá fora.
E com uma continência pretensiosa aquele sujeito, um homem
alto e doentio de olhos amarelos e de trinta e cinco anos,
dirigiu-se com calma à porta e desapareceu lá fora. Um após
outro os restantes seguiram-lhe o exemplo, cada um fazendo a
continência ao passar, cada um acrescentando qualquer
desculpa. - Segundo as regras - disse um. - Conselho da
coberta - observou o Morgan. E assim por diante, com uma ou
outra frase, todos saíram deixando-nos ao Silver e a mim
sozinhos à luz da tocha.
O cozinheiro tirou logo o cachimbo da boca.
- Agora escuta, Jim Hawkins - segredou em voz firme e tão
baixa que só eu ouvia -, estás a meia prancha da morte, e o
que é muito pior, da tortura. Eles vão pôr-me de fora. Mas não
te esqueças, estou contigo haja o que houver.


156


Não era o que eu queria, não era, não, antes de tu falares.
Fiquei danado de perder tanto dinheiro, e ainda por cima ser
enforcado. Mas vejo que tu é que és o que me convinha. E disse
para mim: ajuda o Hawkins, John, que o Hawkins te ajudará. Tu
és a última cartada dele, John, e cum raio, ele é a tua!
Costas com costas, digo eu. Salvas a tua testemunha e ele
salva-te o pescoço!
Começava a perceber vagamente.
- Queres dizer que tudo está perdido? - perguntei.
- Claro que quero, diabo! - respondeu. - Vai-se o navio,
vai-se o pescoço, as coisas estão nesse pé. Quando olhei para
o mar, Jim Hawkins, e não vi a escuna, olha que sou forte, mas
desanimei. Aquela malta e a conferência, eu digo-te, são tudo
tolos e cobardes. Vou-te livrar deles dê lá por onde der. Mas
olha cá, Jim... é ela por ela... trata de livrar o Long John
da forca.
Fiquei mais que atrapalhado, o que ele pedia parecia-me de
tal modo impossível, ele, o velho pirata, o chefe em toda a
linha.
- O que puder fazer faço - respondi.
- Estamos entendidos! - exclamou o Long John. - Falaste como
deve ser, e cum raio, tenho uma oportunidade.
Manquejou até à tocha espetada na pilha da lenha, para
reacender o cachimbo.
- Vê se me entendes, Jim - disse na volta. - Cá por mim
tenho uma cabeça nos ombros. Agora estou do lado do morgado.
Sei que meteste o navio nalgum lado. Como o fizeste não sei,
mas seguro deve estar. Creio que o Hands e o O'Brien ficaram
moles. Nunca acreditei grande coisa em nenhum deles. Ora
presta atenção. Não faço perguntas, nem quero que mas façam.
Quando acaba o jogo, lá isso sei eu, e conheço um moço bem
valente. Ah, tu que és novo, tu e eu podíamos ter feito juntos
uma porção de coisas boas!
Tirou do barril algum conhaque com uma caneca de folha.
- Queres provar, companheiro? - perguntou e, à minha
negativa, acrescentou: - Pronto, tomo eu um gole, Jim. Preciso
de aquecimento, porque vai haver sarilho. E por falar nisso,
Jim, porque será que o médico me deu aquele mapa?
A minha cara mostrou uma surpresa tão evidente que ele não
teve precisão de mais perguntas.
- Ah, mas olha que deu, de facto - disse. - E por detrás
disso há qualquer coisa, por certo... decerto que há-de haver
alguma coisa por detrás disso, Jim, boa ou má.
E bebeu outra golada de brandy, sacudindo a grande cabeça
loira como um homem que está à espera do pior.

CAPÍTULO XXIX


De novo a pinta preta


A reunião dos piratas durara algum tempo, quando um deles
voltou e, repetindo a mesma continência, que aos meus olhos
tinha um ar trocista, pediu a tocha emprestada por momentos. O
Silver concordou com um gesto e o emissário tornou a sair,
deixando-nos juntos no escuro.
- Vem aí o vento, Jim - observou o Silver, que nessa altura
já me falava em tom amigável e familiar.
Voltei-me para a vigia mais próxima e espreitei para fora.
As brasas da fogueira grande tinham-se apagado e estavam então
tão baixas e poeirentas que percebi porque era que os
conspiradores precisavam dum archote. Estavam reunidos num
grupo a cerca de meia distância da descida para a paliçada, um
segurava a luz, outro estava no meio, de joelhos, e vi o
brilho da lâmina de uma faca que mudava de cor com o reflexo
do luar e da tocha. Os outros estavam todos mais ou menos
inclinados, como se observando o que fazia este último. Só
tive tempo de perceber que tinha na mão um livro, além da
faca, e imaginava como se teriam apossado de coisa tão
incongruente quando o que estava ajoelhado se levantou e todo
o grupo começou a dirigir-se para a casa.
- Lá vêm eles - avisei, voltando à posição primitiva, pois
não me queria rebaixar a ser encontrado à espreita.
- Pronto deixa-os entrar, moço, deixa-os vir - disse o
Silver, animado. - Ainda tenho chumbo no armário.
A porta abriu-se e os cinco homens, juntos num magote à
entrada, empurraram um deles para a frente. Noutras
circunstâncias teria sido cómico ver o vagar com que avançava,
cheio de hesitação nos pés, mas com a mão direita estendida e
fechada.
- Anda daí, rapaz - exclamou o Silver. - Não te vou comer.
Dá cá isso, lorpa. Conheço as regras, conheço, não posso fazer
mal a um emissário.
Encorajado, o pirata avançou com mais decisão e, tendo
passado algo para a mão do Silver, retirou-se ainda mais
rápido para o pé dos outros.


158

O cozinheiro olhou para o que Lhe tinha sido entregue.
- A pinta preta! Já tinha pensado nisso - notou. - Onde
teriam arranjado o papel? Ora, que é isto! Ora vejam só! Isto
é que é ter azar! Vocês rasgaram isto duma Bíblia. Quem é o
tolo capaz de cortar uma Bíblia?
- Ora aí está - disse o Morgan -, aí está. Que é que eu
disse? Isto não vai dar em bem, disse eu.
- Pois é, vocês meteram-se em boa, todos vós - continuou o
Silver. - Acho que agora vai ser tudo pendurado. Quem é o
parvalhão que tinha uma Bíblia?
- Era o Dick - disse um.
- Ai era o Dick? Pois então o Dick pode pôr-se a rezar -
retorquiu o Silver. - Já teve a sua sorte, o Dick,
garanto-lhes.
Mas aí o homem alto de olhos amarelos interveio.
- Acaba lá com a conversa, John Silver - disse. - Esta
equipagem fez-te a marca negra em plenário, como manda a lei,
agora vira-a, como manda a lei, e vê o que lá tem escrito.
Depois podes falar.
- Obrigado, George - respondeu o cozinheiro. - Foste sempre
esperto no negócio, e sabes as regras de cor, George, o que me
agrada. Bom, o que é isto, afinal? Ah! "Deposto", é isso, não
é? Muito bem escrito, pois, como se fosse impresso, vejam só.
É a tua letra, George? Olha, estás a ficar um comandante a
sério, nesta tripulação aqui. Não me admirava se fosses o
próximo capitão. Importas-te de me passar a tocha outra vez,
sim? Este cachimbo não puxa.
- Ora, vamos - atalhou o George -, tu já não enganas esta
tripulação. Se tens o teu feitio, guarda-o para ti, mas agora
acabou-se, e é melhor saíres desse barril e tomar parte na
votação.
- Pensei que tinhas dito que conhecias as regras - tornou o
Silver, com desprezo. - Ao menos, se não conheces, conheço-as
eu, e aqui fico à espera, ainda sou o vosso capitão,
lembrem-se, até vocês dizerem quais são as queixas, e eu
responder, até lá, a vossa pinta preta não vale uma bolacha.
Depois veremos.
- Oh - replicou o George -, escusas de estar preocupado, nós
somos todos de confiança, somos. Primeiro, deste cabo desta
viagem, só por toleima é que eras capaz de dizer que não.
Segundo, deixas o inimigo sair desta ratoeira para nada.
Porque é que quiseram ir embora? Não sei, mas é evidente que
queriam alguma coisa. Terceiro, não queres deixar-nos ir à
caça deles. Oh, nós bem vemos o que tu queres, John Silver, o
teu mal é quereres mais que a tua parte, é o que é. E em
quarto lugar, há este rapaz aqui.


159


- Mais nada? - perguntou o Silver, com calma.
- E já chega - repontou o George. - Vamo-nos pendurar e
secar ao sol por causa das tuas trapalhices.
- Ora então vamos lá ver, que vou responder a esses quatro
pontos, um por um que lhes respondo. Dei cabo da viagem, não
dei? Ora bem, todos vós sabiam o que eu pretendia, e todos
sabem que, se tivesse sido feito, todos estávamos esta noite
no Hispaniola como sempre foi, todos vivos, em forma, e cheios
de doce de ameixas, e com o tesouro no porão, cum raio! Então,
quem me atraiçoou? Quem me trocou as voltas, a mim que sou o
capitão legal? Quem me quis passar a pinta preta desde o dia
em que desembarcámos, e começou a dança? Ah, é uma rica dança,
nisso estamos de acordo, e até parece uma gaita de foles na
ponta da corda na Doca da Forca na cidade de Londres, parece.
Mas quem fez isto? Olha, foi o Anderson e o Hands e tu, George
Merry! E és tu o último que resta dessa malta de intriguistas,
e tens tu a insolência de te ofereceres para me substituir
como capitão, tu, que nos deitaste todos ao fundo! C'os
infernos! Nunca vi fio tão mal fiado.
O Silver interrompeu-se, e pude ver pelas caras do George e
dos seus novos amigos que aquele discurso não fora em vão.
- Isto quanto ao primeiro ponto - exclamou o acusado, a
limpar o suor da testa, pois falara com um calor que
estremecera a casa. - Ora, palavra que fico enjoado de falar
convosco. Não têm juízo nem memória, e sei lá como é que as
vossas mães os deixaram vir ao mar. Ao mar! Cavaleiros da
aventura! Acho que para alfaiates é que estão bem.
- Continua, John - interveio o Morgan. - Vê se também falas
para os outros.
- Ah, os outros! - replicou o John. - São bem bons, não são?
Dizem vocês que este cruzeiro está encravado. Ah! C'os diabos,
se percebessem até que ponto está encravado, é que haviam de
ver! Estamos tão perto do laço que tenho o pescoço teso só de
pensar nele. Já os devem ter visto por aí pendurados em
correntes, com os pássaros à volta e a malta a apontá-los
enquanto vão descendo com a maré. Quem é aquele? diz um.
Aquele, olha, é o John Silver. Conheci-o bem!, diz outro. E
ouvem-se as correntes a bater quando se anda às voltas para
agarrar outra bóia. Pois já quase lá chegámos todos, os filhos
das nossas mães, por causa desse tipo, e do Hands, e do
Anderson, e doutros palermas de vós que estragam tudo. E sem
quererem saber do número quatro, deste rapaz, ora, o convés me
rebente! É ou não é um refém? Vamos desperdiçar um refém? Não,
não vamos, não me admira que ele seja a nossa última tábua.


160


Matar o rapaz? Nem pensar nisso. E o número três? Pois há
tanto que dizer do número três. Talvez vocês não achem grande
coisa ter todos os dias a visita dum médico a sério, tu, John,
com a cabeça partida, ou tu, George Merry, que ainda há menos
de seis horas estavas a tremer de febre, e ainda estás com os
olhos amarelos como limão mesmo agora? E se calhar, talvez não
saibam que também vem aí um barco de socorro? Mas vem, e não
falta muito, e quando lá chegarmos vão ver quanto vale ter um
refém. E quanto ao número dois, e porque é que eu fiz um
acordo, vocês vieram de rastos, de joelhos, de tão em baixo
que estavam, e mais, morriam à fome se eu não o tivesse
feito... mas isso são ninharias! Ora vejam, aqui está porquê!
E atirou ao chão um papel que imediatamente reconheci - nada
menos que o mapa de papel amarelo, com as três cruzes
vermelhas, que eu encontrara dentro do oleado no fundo da arca
do capitão. Qual a razão porque o médico lho dera era superior
à minha imaginação.
Mas se para mim o aparecimento do mapa era inexplicável,
para os piratas sobreviventes foi incrível. Saltaram sobre ele
como gatos a um rato. Correu de mão em mão, arrancado de uns
para os outros, e pelas pragas, gritos e risos infantis que
acompanhavam o exame, pensar-se-ia que não só tocavam no
próprio ouro mas que além disso já o tinham levado para o mar,
em segurança.
- Sim - disse um -, não há dúvida que é o Flint. J. F. e um
traço por baixo, com um nó de cravo, como fazia sempre.
- Muito lindo - atalhou o George. - Mas como é que nos
safamos com ele, e sem navio?
O Silver levantou-se bruscamente e segurou-se com a mão à
parede:
- Agora previno-te, George - exclamou. - Mais uma palavra da
tua conversa, e desafio-te à luta. Como? Ora, sei lá! Tu é que
me hás-de dizer, tu e o resto, que me perderam o navio por se
intrometerem, raios! Mas não dizes por que não sabes, não tens
mais cabeça que uma barata. Mas falar com educação já sabes, e
hás-de falar, George Merry, isso te garanto.
- É justo - adiantou o velho Morgan.
- Justo! Acho bem que sim - respondeu o cozinheiro. - Tu
perdeste o navio, eu encontrei o tesouro. Quem foi o melhor?
Pois agora demito-me, cum raio! Nomeiem quem quiserem para
capitão, para mim, acabou.
- Silver! - gritaram todos. - Viva o Churrasco! O Churrasco
a capitão!


161


- Então a música é essa, é? - bradou o cozinheiro. - George,
acho que tens de esperar por outra vez, amigo, e estás com
sorte por eu não ser vingativo. Mas nunca fui. E agora,
rapazes, esta pinta preta? Não vale grande coisa agora, pois
não? O Dick remou contra a sorte e estragou a Bíblia, e
acabou-se.
- Mas ainda serve para a gente rezar com o livro, não serve?
- resmungou o Dick, preocupado com a maldição que fizera a si
próprio.
- Uma Bíblia sem um bocado! - troçou o Silver. - Nem pensar.
Não vale mais que um livro de cantigas.
- Ai não? - exclamou o Dick, com uma ponta de contentamento.
- Bem, acho que também vale a pena ter um.
- Olha, Jim, uma lembrança para ti - disse o Silver,
passando-me o papel.
Era uma rodela do tamanho duma moeda de coroa. Um dos lados
estava em branco, pois fora da última folha, o outro tinha um
ou dois versículos do Apocalipse, com as palavras seguintes,
entre outras, que se me gravaram bem fundo no espírito: "De
fora ficam cães e assassinos." O lado impresso fora
enfarruscado com carvão, que já começava a desprender-se e a
sujar-me os dedos, do lado em branco tinha sido escrita com o
mesmo material a única palavra, Deposto. Tenho neste momento
ao meu lado aquela lembrança, mas nela não resta agora nenhum
vestígio de escrita além de uma única riscadela, como se fosse
feita por uma unha.
Assim terminou o caso daquela noite. Pouco depois, com uma
rodada geral de bebida, fomo-nos deitar, e a manifestação de
vingança do Silver foi pôr de sentinela o George Merry, e
ameaçá-lo de morte se fosse infiel.
Fiquei muito tempo sem pregar olho, pois não me faltava
assunto para meditar no homem que tinha morto nessa tarde, na
minha própria situação de perigo e, acima de tudo, no jogo
espantoso a que via o Silver entregar-se agora - manter os
piratas juntos com uma das mãos, enquanto com a outra se
agarrava a todos os expedientes, possíveis e impossíveis, de
assinar a paz e salvar a sua vida miserável. Pela sua parte,
dormia descansado e roncava alto, e mesmo assim sentia pena
dele, apesar de toda aquela malvadez, lembrando-me dos perigos
que pairavam ameaçadores e do cadafalso vergonhoso que lhe
estava destinado.

Capítulo XXX


Liberdade sob palavra


Fui acordado - na verdade todos fomos, pois até o
sentinela pude ver a pôr-se direito no sítio onde se deixara
cair contra o portal - por uma voz clara e possante a
chamar-nos da beira da floresta:
- Ó da casamata! - gritava. - Cá está o médico.
E era o médico. Embora contente por ouvi-lo, o meu
contentamento não era puro. Recordava, confuso, a minha
conduta insubordinada e furtiva, e quando reconheci onde ela
me trouxera, a que companhias e no meio de que perigos, senti
vergonha de olhar para ele.
Devia ter-se levantado de noite, pois o dia mal despontara,
e quando corri para uma das vigias para espreitar, avistei-o
de pé, como de outra vez avistara o Silver, com a névoa até ao
meio das pernas.
- Ó doutor! Muitos bons dias para o senhor! - gritou o
Silver, completamente desperto e num ápice cheio de boa
disposição. - Fresco e madrugador, claro, e é o pássaro
madrugador, como se diz, que come do melhor.
"George, arranca-me essas achas, filho, e ajuda o doutor
Livesey a subir para bordo. Está tudo bem, os seus doentes
todos bem e satisfeitos.
Assim continuou a palrar, de pé no alto da duna, com a
muleta sobraçada e uma mão apoiada ao lado da casa, tal qual o
John antigo na voz, gesto e expressão.
- Também temos uma boa surpresa para si, senhor -
prosseguiu. - Temos cá um pequeno forasteiro... hé! hé! Um
pensionista novo, senhor, direito e rijo como uma rabeca,
dormiu como uma pedra, dormiu, mesmo ao meu lado, esticados a
par, toda a noite.
O doutor Livesey já tinha saltado as estacas e estava perto
do cozinheiro, e pude notar a alteração da voz ao dizer:
- Não é o Jim?
- O mesmo Jim de sempre - disse o Silver.
O médico estacou, sem dizer nada, e alguns segundos passaram
antes que parecesse capaz de avançar.
- Bem, bem - disse por fim -, primeiro o dever e depois o
prazer, como tu próprio dirias, Silver. Vamos lá passar
revista aos teus doentes.
Instantes depois entrava e, dirigindo-me um aceno insípido,
ocupou-se dos doentes. Não me pareceu nada apreensivo, embora
devesse saber que, no meio daqueles demónios traiçoeiros, a
vida lhe estava por um cabelo, e ia conversando com os
clientes como se estivesse a visitar a mais serena família
inglesa. Creio que aqueles modos tinham boa influência nos
homens, pois portavam-se como se nada tivesse acontecido, como
se fosse ainda o médico de bordo, e eles ainda marinheiros
obedientes.
- Vais bem, amigo - disse ele ao homem da cabeça ligada -, e
olha que nunca ninguém rapou o cabelo tão rente como tu, deves
ter uma cabeça de ferro. Bom, George, que tal vai isso? Estás
com uma linda cor, claro, olha que o teu fígado, homem, anda
de pernas para o ar. Tomaste o remédio? Ele tomou o remédio,
pessoal?
- Sim, senhor, tomou, tomou - respondeu o Morgan.
- Porque, percebem, visto que sou médico de amotinados, ou
médico da prisão, como gosto mais de dizer-prosseguiu o doutor
Livesey, com a maior das satisfações -, faço ponto de honra em
não perder um só homem para o rei Jorge (Deus o abençoe! ) e
para a forca.
Os bandidos entreolharam-se, mas engoliram o golpe em
silêncio.
- O Dick não se sente bem, senhor - observou um.
- Não? - respondeu o médico. - Bem, chega-te aqui, Dick, e
mostra-me a língua. Não, já era para admirar, esta língua até
aos franceses mete medo. Mais uma febre.
- Ah, pois - adiantou o Morgan -, isso foi de estragar
Bíblias.
- Isso foi, como tu dizes, de serem uns burros vadios -
repontou o médico -, e de não serem capazes de distinguir o ar
puro dum veneno, nem terra seca dum buraco podre e pestilento.
Acho muito possível, mas claro que é só uma opinião, que
hão-de passar todos o diabo antes de lhes sair a malária do
corpo. Com que então, acampar num charco? Silver, estou
admirado contigo. De todos juntos, és o menos tolo, mas parece
que não tens a mais pequena noção das regras da saúde. Bom -
acrescentou, depois de dar remédio a todos e de todos acatarem
as receitas com tal humildade que chegava ao cómico, mais
própria dum asilo de crianças que de conspiradores e piratas
sanguinários -, pronto, por hoje chega. E agora, por favor,
quero falar com esse rapaz.
E apontou para mim com um gesto indiferente da cabeça.


164


O George Merry estava à porta, a cuspir e a resmungar pelo
remédio que lhe sabia mal, mas logo que ouviu a frase do
médico deu meia-volta muito corado e gritou, praguejando: -
Não!
O Silver bateu no barril com a mão espalmada.
- Si-lên-çio! - rugiu, olhando à volta como um leão. -
Doutor! - continuou, em voz normal. - Estava a pensar nisso,
por saber como o senhor gosta do rapaz. Estamos todos muito
agradecidos pela sua bondade e, como vê, temos confiança no
senhor, e engolimos os remédios como se fosse grogue. E penso
que achei maneira de ficarmos todos bem servidos. Hawkins,
dás-me a palavra de honra, como um jovem cavalheiro, porque és
um, embora nascido pobre, a palavra de honra que não vais roer
a corda?
Prontamente lhe fiz o juramento pedido.
-Então, doutor-disse o Silver-, o senhor passa para o lado
de fora das estacas, eu vou levar o rapaz pelo lado de dentro,
e acho que podem conversar pelos tabiques. Bom dia para o
senhor, e todos os nossos respeitos ao morgado e ao capitão
Smollett.
A explosão de descontentamento, que somente os olhares
ameaçadores do Silver tinham contido, manifestou-se logo que o
médico saiu. O Silver foi acusado de fazer jogo duplo, de
querer fazer uma paz separada para si próprio, de sacrificar
os interesses dos cúmplices e vítimas e, numa palavra, daquilo
que estava precisamente a fazer. Desta vez o caso parecia-me
tão óbvio que não podia imaginar como é que ele iria escapar à
raiva deles. Mas era duas vezes mais homem do que os outros, e
a vitória da véspera valera-lhe uma preponderância enorme
naquelas cabeças. Chamou-lhes a todos paspalhões e brutos,
afirmou que era preciso eu falar com o médico, sacudiu-Lhes o
mapa nas caras, perguntou-lhes se podiam dar-se ao luxo de
romper o acordo no próprio dia em que iam partir em busca do
tesouro.
- Não, cum raio! - vociferou. - Só quando chegar o momento é
que temos de romper o acordo, mas até lá hei-de levar o doutor
às boas nem que Lhe engraxe as botas com brandy.
E a seguir mandou-os acender a fogueira e saiu de muleta,
com a mão no meu ombro, deixando-os confusos e calados pela
sua inconstância, mas não convencidos.
- Devagar, moço, devagar - recomendou. - Podiam saltar-nos
em cima num piscar de olhos se nos vissem com pressa.
Muito decididos, portanto, atravessámos a areia até onde o
médico nos aguardava do lado de lá da paliçada e, logo que
chegámos a uma distância conveniente para falar à vontade, o
Silver parou.
- Também pode tomar nota disto, doutor - disse -,


165


e o rapaz há-de-lhe dizer como lhe salvei a vida e como fui
demitido por causa disso, também, garanto-lhe. Doutor, quando
um homem se chega ao vento como eu, como se fosse a jogar ao
berlinde o pouco de vida que lhe resta, talvez não ache demais
dar-Lhe ao menos um bom conselho! Peço-Lhe que se lembre que
agora não é só a minha vida... é a deste moço que está no
jogo, e por piedade, doutor, fale-me com franqueza, e dê-me
alguma esperança de continuar.
O Silver era outro homem, ali fora e de costas voltadas para
os amigos e para o fortim, a cara parecia encovada, e a voz
tremia-lhe, nunca se vira uma pessoa tão falha de ânimo.
- Ora, John, tu não tens medo? - perguntou o doutor
Livesey-.
- Doutor, não sou nenhum cobarde, não, não sou... tanto não
- e deu um estalo com os dedos. - Se fosse, não dizia. Mas
admito com franqueza que fico a tremer quando penso na forca.
O senhor é bom homem e dos autênticos, nunca vi homem melhor!
E não se esquece do bem que eu fiz, como não se esquece na
mesma do mal, já sei. E saio daqui, ora veja, para o deixar
sozinho com o Jim. E o senhor há-de pôr isto também a meu
favor, porque o esforço vale a pena, se vale!
Assim falando, afastou-se um pouco para trás até onde não
podia ouvir-nos, sentando-se num cepo de árvore e começando a
assobiar, enquanto por vezes se virava de modo a avistar ora
eu e o médico, ora os seus rufias que andavam pela areia, da
fogueira, que se ocupavam em reacender, para a casa, e de lá
traziam carne de porco e pão para o pequeno-almoço.
- Então, Jim - disse o médico, triste -, cá estás. O que
pões no teu lugar é o que tens de beber, meu rapaz. Deus sabe
quanto me custa ralhar-te, mas tenho de te dizer isto, quer te
agrade quer não, que quando o capitão Smollett estava bom não
te atrevias a fugir, e quando estava doente, sem poder
impedir-to, caramba, que cobardia!
Confesso que nesse momento comecei a chorar. - Doutor - pedi
-, podia poupar-me. Já me censurei de mais a mim mesmo, de
qualquer modo a minha vida nada vale, e já devia estar morto
se o Silver não me defendesse e, doutor, acredite-me, posso
morrer, e até mereço, mas da tortura é que eu tenho medo. Se
eles chegam a torturar-me...
- Jim - interrompeu o médico, com a voz alterada -, Jim,
deixa-te disso. Salta cá para fora, e vamo-nos escapar.
- Doutor - repliquei -, dei a minha palavra.
- Eu sei, eu sei - gemeu ele. - Paciência, Jim, ora.


166


A responsabilidade é minha, bolas para os castigos e remorsos,
rapaz, mas deixar-te aqui não posso. Salta! Um salto e ficas
livre, desatamos a fugir como antílopes.
- Não - teimei -, o senhor sabe muito bem que não era capaz
de fazer isso, nem o senhor nem o morgado, nem o capitão, e eu
também não. O Silver confiou em mim, dei a palavra e vou
voltar. Mas, doutor, o senhor não me deixou acabar. Se eles me
chegam a torturar, pode ser que eu deixe escapar onde está o
navio, porque apanhei o navio, tanto por sorte como por
arriscar, e deixei-o encalhado na Angra Norte, na praia do
lado sul, mesmo no fim da preia-mar. Com meia maré deve ficar
todo fora em seco.
- O navio! - exclamou o médico.
Rapidamente lhe contei as minhas aventuras, que ele ouviu em
silêncio.
- Há nisto qualquer coisa de fatalidade - observou, quando
terminei. - De cada vez és tu que salvas as nossas vidas, e
pensas que por acaso vamos deixar-te a ti perder a tua? Olha
que era uma fraca paga, meu rapaz. Descobriste a conspiração,
encontraste o Ben Gunn, a coisa melhor que já fizeste, nem
voltas a fazer, nem que vivas noventa anos. Oh, por Júpiter!
Por falar no Ben Gunn, ora, aquele é que é o diabo em pessoa.
Silver! - chamou - Silver! Vou dar-te um conselho -prosseguiu,
ao passo que o cozinheiro se aproximava -, não tenhas muita
pressa em correr à procura daquele tesouro.
- Como, senhor, pois faço o que puder, mas não é nada disso
- disse Silver. - Desculpe, mas só posso salvar a minha vida e
a do rapaz se for à procura do tesouro, isso lhe garanto.
- Está bem, Silver - respondeu o médico -, nesse caso,
digo-te só mais uma coisa: toma cuidado com algum grito que
oiças quando o achares!
- Senhor - queixou-se o Silver -, falando de homem para
homem, isso pouco adianta. O que é que o senhor pretende,
porque é que saiu da casa, porque é que me deu aquele mapa, eu
não sei, pois não? E mesmo assim fiz o seu jogo de olhos
fechados e nem uma palavra de esperança! Mas não, isto agora é
de mais. Se o senhor não me pode explicar tudo isso claro e
direito, diga, que eu saio da ponte.
- Não - replicou o médico, meditativo -, não tenho o direito
de dizer mais nada, o segredo não é meu, percebes, Silver,
senão, palavra que te contava. Mas digo-te quanto puder dizer,
e até um pouco mais, pois até vou ter de ouvir do capitão, se
não me engano! E em primeiro lugar, dou-te alguma esperança,


167


Silver, se ambos sairmos vivos desta armadilha, faço os
possíveis para te livrar, excepto jurar falso.
O rosto do Silver iluminou-se. - Não podia dizer mais, tenho
a certeza, nem que o senhor fosse a minha mãe - exclamou.
- Bom, isto é a minha primeira concessão - acrescentou o
médico. - A segunda é uma recomendação. Mantém o rapaz ao pé
de ti, e quando precisares de ajuda, chama. Venho logo sem
falta, e basta isso para veres se falo por falar. Adeus, Jim.
E o doutor Livesey apertou-me a mão através das estacas,
acenou ao Silver e retirou-se em passo rápido para a floresta.


CAPÍTULO XXXI


A CAÇA AO TESOURO

- O indicador de Flint


- Jim - disse o Silver, quando ficámos sós -, se te
salvei a vida, salvaste tu a minha, disso é que não me
esqueço. Dei uma espreitadela e topei o doutor a fazer-te
sinal para fugires, que eu bem vi, e vi-te dizer que não, tão
claro como se te estivesse a ouvir. Jim, marcaste um ponto.
Desde que o ataque falhou é a primeira esperança que tenho na
frente, e a ti o devo. E agora, Jim, temos de ir a essa caça
ao tesouro, com ordens seladas e tudo, e não me agrada, e tu e
eu temos de andar juntos, como de costas com costas, e salvar
o pescoço dê lá por onde der.
Nessa altura, gritaram-nos da fogueira que o pequeno-almoço
estava pronto, e em breve nos espalhávamos sentados na areia
com
bolachas e toucinho frito. Tinham feito uma fogueira capaz de
assar um boi, ficara tão quente que só lá se podia chegar por
barlavento, e mesmo assim com cuidado. Com a mesma atitude de
desperdício, tinham feito, creio, três vezes mais do que
podíamos
comer, e um deles, com um riso cretino, atirou o que restava
para
o fogo, que de novo cresceu e rugiu com aquele combustível
inesperado. Nunca na vida vi gente tão indiferente ao futuro,
da
mão à boca, é a única expressão capaz de descrever o
procedimento
deles, e além da comida deitada fora e das sentinelas a
dormir,
embora não lhes faltasse coragem para se lançarem numa
escaramuça
e ficarem arrumados, bem lhes podia ver a falta total de
preparação para coisas como uma campanha prolongada.
Nem o Silver, a comer afastado com o capitão Flint pousado
no
ombro, tinha uma única palavra de censura por aquela
indisciplina. O que me surpreendeu ainda mais, pois julgava
que
nunca até essa altura se mostrara tão vivaço.
- É, malta - disse ele -, é uma sorte vocês terem o
Churrasco
a pensar por vós aqui com esta cabeça. Consegui o que queria,
consegui. Claro que eles têm o navio, onde o têm, ainda não
sei,
mas quando apanharmos o tesouro, temos de dar por aí um salto
para saber. E então, malta, acho que nós que temos os botes é
que
vamos ficar por cima.
Continuava na conversa com a boca cheia do toucinho quente,
assim lhes ia restituindo a esperança e a confiança,
desconfio
muito que recuperava a dele ao mesmo tempo.
- Quanto ao refém - continuou -, acho que foi aquela a
última
conversa que teve com os amigos de quem gosta tanto. Já tenho
as
minhas novidades, e a ele as devo, mas isso está arrumado. Vou
levá-lo a reboque quando formos à caça do tesouro, porque
temos
de o guardar como se fosse ouro, caso haja algum acidente,
tomem
nota, e depois, quando tivermos o navio e o bolo, e tudo no
mar
como bons companheiros, ora então conversamos com o senhor
Hawkins e damos-lhe a parte dele, claro, por ter sido tão boa
pessoa.
Não era de admirar que estivessem todos bem-dispostos. Pela
minha parte, estava horrivelmente abatido. Se o plano que
acabara
de esboçar fosse praticável, o Silver não hesitaria em
adoptá-lo.
Ainda tinha um pé em cada campo, e não havia dúvida de que
preferia ser livre e rico na companhia dos piratas a escapar
por
um triz de ser enforcado, que era o melhor que podia esperar
do
nosso lado.
Ná, e até se as coisas corressem de modo a ser obrigado a
manter a fé depositada no doutor Livesey, que perigos não
teríamos de enfrentar! Que momentos não teríamos de passar
quando
as suspeitas dos seus cúmplices se tornassem em certezas, e
ele
fosse obrigado a lutar pela vida junto comigo - ele, um
aleijado,
e eu, um moço contra cinco marinheiros fortes e mexidos!
A acrescentar a esta dupla preocupação havia o mistério que
ainda pairava sobre o comportamento dos meus amigos, o
abandono
da paliçada, que estava por explicar, a inexplicável entrega
do
mapa ou, ainda mais difícil de compreender, o último aviso do
médico ao Silver, toma cuidado com algum grito que oiças
quando
o achares,, e bem podem crer no fraco apetite que eu sentia ao
pequeno-almoço, e na inquietação que me ia no peito quando
segui
os meus captores em busca do tesouro. .
Fazíamos uma figura bizarra, se ali estivesse alguém para
nos
ver, todos em roupas de bordo imundas, e todos menos eu
armados
até aos dentes. O Silver levava duas armas a tiracolo, uma à
frente e outra atrás, além do sabre à cinta, e de uma pistola
em
cada bolso do casacão. A completar aquele aspecto estranho, o
capitão Flint empoleirado no ombro a papaguear um rosário sem
fim
de conversa aprendida no mar. Com um cabo enrolado à cintura,
obediente, eu seguia o cozinheiro, que segurava a ponta da
corda,
ora na mão livre, ora nos dentes fortes. Para todos os
efeitos,
ia a ser conduzido como um urso de feira.


170


Os restantes homens carregavam coisas diversas, uns levavam
picaretas e pás - eram os utensílios mais importantes trazidos
em primeiro lugar do Hispaniola -, outros carregados com
carne,
pão e aguardente para o comer do meio-dia. Reparei que todas
as
provisões eram da nossa reserva, e entendi a sinceridade do
que
o Silver dissera na noite anterior. Caso não chegasse a acordo
com o médico, ele e os amotinados, sem o navio, teriam sido
forçados a subsistir de água doce e de caça. A água pouco lhes
agradaria ao paladar, marinheiro em terra em geral não é bom
atirador e, além de tudo isso, quando tivessem tão poucos
comestíveis, não era de esperar que houvesse pólvora aos
montes.
Pois assim equipados abalámos todos - até o da cabeça
partída,
que decerto se devia manter à sombra, e calcorreámos, em fila,
até à praia, onde nos esperavam as duas gigas. Até mesmo estas
tinham marcas das bebedeiras loucas dos piratas, uma com um
banco
partido, ambas nojentas e com os fundos cheios de água.
Tínhamos
de as levar connosco, por questão de segurança; assim,
divididos,
avançámos pelo leito da baía. Ao prosseguirmos criou-se viva
discussão acerca do mapa. A cruz vermelha era, evidentemente,
grande demais para servir de guia e os termos das anotações à
margem, como se verá, davam lugar a ambiguidade. Diziam, como
o
leitor se lembrará, o seguinte:


"Árvore alta, quebrada do Óculo, enfiada a um ponto a N. de
N.
N. E. Ilha do Esqueleto E. S. E. e uma quarta por E. Dez pés."


A marca principal era, portanto, uma árvore grande. Ora,
mesmo
à nossa frente, o fundeadouro era rodeado por uma plataforma
de
setenta a cem metros de alto, que ao norte se juntava ao
declive
da quebrada sul do Óculo, subindo outra vez para sul até à
elevação áspera e escarpada chamada monte da Mezena. O cimo da
plataforma estava recoberto de pinheiros de vários tamanhos.
Aqui
e ali erguiam-se outros de espécie diferente, doze a quinze
metros mais altos do que os vizinhos, e qual deles era a tal
árvore alta, do capitão Flint só podia ser determinado no
próprio
local e com ajuda da bússola.
Mas, embora assim fosse, cada um dos que seguiam nos barcos

escolhera para si uma das árvores antes mesmo de chegarmos a
meio
da travessia, enquanto só o Long John encolhia os ombros e
lhes
pedia que esperassem até lá chegarem.


171


Remámos devagar, segundo as ordens do Silver, para não
cansar
o pessoal antes de tempo e, depois de uma passagem demorada,
desembarcámos na foz do segundo rio, o que desce por uma
vertente
arborizada do Óculo. Daí, volvendo à nossa esquerda, começámos
a subir a encosta em direcção à plataforma.
Na primeira etapa, o avanço foi bastante demorado pelo
terreno
pesado e alagadiço, assim como pela vegetação emaranhada dos
pântanos, mas pouco a pouco o monte começou a ficar mais
íngreme
e o caminho mais pedregoso, e a vegetação a modificar-se e a
tornar-se mais aberta. Aproximávamo-nos, de facto, de uma zona
muito agradável da ilha. A erva fora substituída quase toda
por
uma giesta de perfume forte e por muitos arbustos em flor.
Sebes
de verdes moscadeiras contrastavam a cada passo com os troncos
vermelhos e a sombra larga dos pinheiros, e o perfume das
primeiras misturava-se com o aroma destes. Além disso, o ar
era
fresco e vivo e tudo isso, aos raios claros do sol, trazia um
rfrigério maravilhoso aos sentidos.
O grupo alargou-se em leque, aos gritos e aos saltos. Mais
ou
menos a meio, e um bom bocado atrás dos outros, seguíamos o
Silver e eu, eu rebocado pelo meu cabo, ele aos arranques, a
resfolegar, pelo saibro escorregadio. Por vezes tinha até de
lhe
deitar a mão, para evitar que tropeçasse e caísse de costas
pelo
monte abaixo.
Tínhamos caminhado assim quase um quilómetro e
acercávamo-nos
do bordo da plataforma, quando o homem da ponta esquerda
começou
em altos gritos, como aterrorizado.
Gritava e tornava a gritar, e os outros começaram a correr
para
ele.
- Não pode ter encontrado o tesouro - disse o velho Morgan,
passando-nos a correr pela direita -, que aquilo é sítio
aberto.
De facto, como vimos quando acabámos por lá chegar também,
tratava-se de algo muito diferente. Ao pé de um pinheiro muito
grande, e recoberto com uma trepadeira verde que até chegara a
levantar alguns dos ossos mais pequenos, estava um esqueleto
humano, com alguns farrapos de roupa, estendido no chão. Creio
bem que um calafrio atingiu por momentos todos os corações.
- Era marinheiro - disse o George Merry que, com mais
coragem,
se aproximara para examinar os farrapos. - Pelo menos, isto é
pano da marinha, e de boa qualidade.
- Pois, pois - adiantou o Silver -, deve ser, acho que a
gente
não espera encontrar aqui um bispo. Mas que maneira é essa de
se
deitarem os ossos? Não é nada natural.
A um segundo olhar, na verdade, parecia impossível admitir
que
o corpo estava na sua posição natural.


172


Com excepção de algumas deslocações (talvez obra dos pássaros
que
dele tinham comido, ou do crescimento vagaroso da trepadeira
que
lhe fora envolvendo os restos), o homem estava rigorosamente
direito, os pés apontados para um lado, as mãos acima da
cabeça
como as dum mergulhador, viradas a direito na direcção oposta.
- Tenho cá uma ideia na velha tola - observou o Silver. - Cá
está a bússola, além está a ponta mais alta da Ilha do
Esqueleto,
espetada como um dente. Ora vamos lá apontar pela linha desses
ossos.
Assim se fez. O corpo apontava a direito para a ilha, e a
bússola para E. S. E. e uma quarta por E.
- Era o que eu pensava - exclamou o cozinheiro -, ele é um
indicador. Aí vai a nossa linha para a Estrela Polar e os
ricos
dólares. Mas cum raio! Esta piada é mesmo das dele, não haja
dúvida. Ele veio cá com aqueles seis, matou-os a todos, e
trouxe
este para aqui e acertou-o pela bússola, que as achas me
rebentem! Esses ossos são compridos, e tinha cabelo amarelo.
Pois, deve ser o Allardyce. Lembras-te do Allardyce, Tom
Morgan?
- Lembro, lembro - retorquiu o Morgan -, lembro-me dele,
devia-me dinheiro e trouxe a minha faca para terra.
- Por falar em facas - adiantou outro -, porque é que não se
vê por aqui a dele? O Flint não era homem de roubar os bolsos
dos
outros, e acho que os pássaros a deixavam ficar.
- Pelo inferno que isso está certo! - exclamou o Silver.
- Por aqui não há nada - disse o Merry, ainda a revistar no
meio dos ossos -, nem um tostão de cobre nem uma lata de
tabaco.
Acho muito esquisito.
- É, que diabo, é - concordou o Silver -, nem é natural, nem
boa coisa, tu o dizes. Caramba! Pessoal, que se o Flint fosse
vivo estávamos todos a entrar nas quentes. Eram seis, e nós
também, e agora são só ossos.
- Eu vi-o morto com estes olhos - disse o Morgan. - O Billy
levou-me lá. Lá estava ele, com as moedas em cima dos olhos.
- Morto, pois, claro que está morto e enterrado -, disse o
da
cabeça ligada -, mas se há algum espírito à solta havia de ser
o do Flint. Bom coração, mas fraca morte foi a dele!
- Foi, foi - acrescentou outro -, ora se zangava, ora
berrava
pelo rum, ora se punha a cantar. Quinze homens era a única
cantiga dele, malta, e para ser sincero nunca mais gostei dela
desde aí. Estava um calor enorme e a janela aberta, e eu a
ouvir
a cantiga perfeitamente... e a morte já tinha o homem
apanhado.
- Vamos, então - disse o Silver -, acabem lá com isso. Ele
morreu, e não pode andar, é o que eu sei, pelo menos de dia
não
anda, isso vos garanto. Quem não arrisca, não petisca. Vamos

procurar esses dobrões.


173


Continuámos, claro, mas apesar do sol quente e da luz
intensa,
os piratas não voltaram a separar-se e a andar aos gritos pelo
bosque, conservando-se lado a lado e falando baixo. O terror
do
pirata morto esfriara-lhes os ânimos.

CAPÍTULO XXXII


A caça ao tesouro

- A voz no meio das árvores


Por um lado devido ao efeito desencorajador daquele
susto,
e por outro para dar descanso ao Silver e aos doentes, todo o
grupo se sentou logo que chegou ao fim da subida.
Encontrando-se a plataforma algo inclinada para poente, o
ponto
onde nos detivemos dominava uma perspectiva aberta para os
dois
lados. À nossa frente, sobre as copas das árvores, avistámos o
cabo da Floresta recortado na ressaca da praia, atrás, víamos
não
só o ancoradouro e a Ilha do Esqueleto, mas também, nítida
para
lá da falésia e da planura oriental, uma grande extensão de
mar
aberto para nascente. Logo acima de nós erguia-se o Óculo,
aqui
pontilhado de pinheiros isolados, além com a sombra negra dos
precipícios. Em toda a volta, só nos chegava o rumor das vagas
distantes e o fervilhar de incontáveis insectos no mato. Nem
uma
pessoa, nem uma vela no mar, a própria amplitude da vista
aumentava o sentimento de solidão.
O Silver, uma vez sentado, fez algumas observações com a
bússola.
- Há três árvores grandes" - disse -, mais ou menos enfiadas
com a Ilha do Esqueleto. Quebrada do Óculo, penso que quer
dizer
ali aquela ponta mais baixa. Agora vamos encontrar a coisa a
brincar. Já me está a apetecer jantar primeiro.
- Não me sinto nada em forma - resmungou o Morgan. - Pensar
no
Flint... parece que foi isso... deu cabo de mim.
- Olha, meu filho, podes dar graças por ele estar morto -
observou o Silver.
- Era um diabo feio - exclamou outro pirata, estremecendo -,
e até tinha aquela cara azul!
- Foi assim desde que o rum lhe pegou - acrescentou o Merry.
- Azul! É, parece que era azul. É verdade.
Desde que haviam topado com o esqueleto e encarreirado por
estes pensamentos, falavam cada vez mais baixo até estarem
quase
a segredar, a ponto do som das vozes já não interromper o
silêncio do bosque. De chofre, do meio das árvores em frente,
uma voz esganiçada, alta e trémula, soltou a música e os
versos
tão familiares:


"Quinze homens na arca do morto,
Aiou-ou-ou e uma garrafa de rum!"


Nunca vi homens tão apavorados. Como por encanto, a cor
desapareceu daqueles seis rostos, alguns puseram-se de pé,
outros
agarraram-se aos vizinhos, o Morgan esticou-se no chão.
- É o Flint, pelo...! - gemeu o Merry.
A cantiga parou tão de repente como começara, dir-se-ia que
interrompida a meio duma nota, como se alguém tivesse tapado a
boca ao cantor. Vibrando no ar claro e luminoso por entre as
copas verdes, parecera-me ligeira e suave, tornando ainda mais
estranho o efeito causado nos meus companheiros.
- Vamos - disse o Silver, num esforço para obrigar a boca
lívida a articular -, isso não é nada. Tudo a postos para a
marcha. O tipo já está bebido, não Lhe reconheço a voz, mas é
alguém a armar-se em laverca, e é de carne e osso, isso lhes
garanto.
Enquanto falava tinha-lhe voltado a coragem, e com ela
alguma
cor à cara. Já alguns se reconfortavam com aquelas palavras e
começavam a recuperar a presença de espírito, quando a mesma
voz
se fez ouvir de novo, não a cantar desta vez, mas numa chamada
débil e distante, que ecoava ainda mais fraca entre os
penhascos
do óculo.
- Darby McGraw! - uivava, é o termo que melhor descreve tal
som. - Darby McGraw! Darby McGraw! - sempre sem parar; de
seguida, um pouco mais forte, e com uma praga que omito: -
Vai-me
buscar esse rum, Darby!
Os piratas ficaram colados ao chão, os olhos a saltar das
órbitas. Boquiabertos, em silêncio e terror, ainda muito
depois
da voz se ter calado.
- Acabou-se! - soprou um. - Vamos embora.
- Foram as últimas palavras dele - suspirou o Morgan -, as
últimas antes de morrer.
O Dick pegara na Bíblia e rezava ao acaso. Verdade era que o
Dick tivera uma boa educação antes de ir para o mar e cair
entre
más companhias.
Contudo, o Silver não se dera por vencido. Pude ouvir-lhe os
dentes a bater, mas ainda não se rendera.
- Ninguém nesta ilha ouviu falar do Darby - murmurou -,
ninguém
a não ser nós que aqui estamos. A seguir, com grande esforço:
-
Malta - exclamou -, vim cá para buscar o material,


176


e não é homem nem diabo que me vai vencer. O Flint vivo nunca
me
meteu medo e, pelo inferno, morto é que não Lhe viro as
costas.
Além, a poucas centenas de metros, há setecentas mil libras.
Mas
que cavaleiro da fortuna já virou costas a tanta moeda por
causa
dum marinheiro bêbedo e velho de cara azul, e ainda por cima
morto?
Mas os cúmplices já não mostravam sinal da coragem desperta;
mais parecia, pelo contrário, que a írreverência daquelas
palavras lhes aumentava o terror.
- Deixa-te disso, John! - atalhou o Merry. - Não te
atravesses
com um espírito.
E os restantes estavam aterrorizados demais para responder.
Teriam debandado se se atrevessem, mas era o medo que os
mantinha
unidos e juntos do John, como se a sua ousadia os ajudasse.
Por
seu lado, ele conseguira dominar a própria fraqueza.
- Espírito? Ora, talvez seja - declarou. - Mas há uma coisa
que
me faz confusão. Houve um eco. Ora, nunca se viu um espírito
com
sombra. Então que anda ele a fazer com o eco atrás, gostava de
saber? Não é nada natural, de certeza.
Achei tal argumento realmente fraco. Mas nunca se sabe como
é
que os supersticiosos se deixam influenciar e, para meu
espanto,
o George Merry mostrou um grande alívio.
- Pois, lá isso é verdade - afirmou. - Tens a cabeça nos
ombros
John, não há dúvida. A postos, malta! Estamos com vento de
través, acho eu. E pensando melhor, bem me pareceu a voz do
Flint, mas no fim de contas não era bem assim como a dele, tal
e qual. Era mais parecida com a de outra pessoa agora... era
como
a...
- Inferno, o Ben Gunn! - rugiu o Silver.
- Pois, é isso - exclamou o Morgan, erguendo-se. - Era a do
Ben
Gunn, era!
- Mas qual é a grande diferença? - perguntou o Dick. - O Ben
Gunn não anda aí em carne e osso, na mesma que o Flint. - Mas
os
mais velhos troçaram da observação.
- Ora, quem se importa com o Ben Gunn? - replicou o Merry. -
Morto ou vivo, ninguém quer saber dele!
Foi extraordinário como os ânimos se recompuseram e como a
cor
natural lhes voltou à cara. Em breve as conversas se
espalharam,
com pequenos intervalos à escuta; e pouco depois, não tendo
ouvido mais sons, carregaram o material para prosseguir a
marcha,
com o Merry levando à frente a bússola do Silver a fim de se
conservarem na linha da Ilha do Esqueleto. Falara verdade,
morto
ou vivo, ninguém se importava com o Ben Gunn.
Só o Dick se mantinha agarrado à sua Bíblia lançando olhares
receosos em redor, mas sem encontrar apoio e com o Silver a
fazer
troça daquelas precauções.


177


- Eu bem te disse - dizia -, bem te disse que tinhas
estragado
a Bíblia. Se nem para um juramento serve, como é que um
espírito
lhe vai ligar? Nem isto! - e deu um estalo com os dedos,
parando
um instante encostado à muleta.
Mas o Dick continuava inconsolável; ia verdade, depressa me
apercebi que estava a ficar doente; favorecida pelo calor,
pelo
cansaço e pelo choque do susto sofrido, a febre anunciada pelo
doutor Livesey ia subindo com rapidez.
Ali no alto a marcha era fácil e aberta, o caminho descia um
pouco pois, como disse, a plataforma inclinava-se para poente.
Os pinheiros, grandes e pequenos, eram esparsos, e até entre
os
tufos de moscadeiras e azáleas havia espaços abertos à
torreira
do sol. Ao atravessarmos a ilha por um caminho virado a
noroeste
íamo-nos aproximando das vertentes do óculo, ao passo que a
vista
se alargava cada vez mais sobre a baía poente onde antes
andara
eu aos saltos e a tremer dentro do coracle.
Pelas medidas tiradas, a primeira das árvores altas que
alcançámos não era a desejada. O mesmo sucedeu com a segunda.
A
terceira erguia-se a mais de sessenta metros acima dum tufo de
arbustos, um vegetal gigantesco, com um tronco vermelho do
tamanho duma casa e com sombra capaz de cobrir uma companha em
movimento. Era bem visível do alto mar, tanto a leste como a
oeste, e podia ter sido assinalada no mapa como uma marca para
a navegação.
Mas não era o tamanho dela que então impressionava os meus
companheiros, era saber que setecentos milhares de libras de
ouro
se encontravam enterrados algures debaixo daquela sombra. Ao
aproximarem-se, o pensar no dinheiro absorvia todos os receios
anteriores. Os olhos ardiam nos rostos, os passos tornavam-se
mais rápidos e leves, todas aquelas almas estavam envoltas
naquela fortuna, na vida inteira de extravagância e prazer que
se estendia diante de cada um.
O Silver manquejava, a gemer, agarrado à muleta, as narinas
erguidas e trémulas, praguejava como louco quando as moscas
Lhe
pousavam na pele fermente e luzidia, puxava furioso pelo cabo
que
me prendia a ele e, de vez em quando, mirava-me com olhos
ameaçadores. Era certo que não se importava em disfarçar o que
lhe ia na cabeça, e também era certo que eu lhe lia todos os
pensamentos. À aproximação do ouro, tudo o resto fora
esquecido,
quer a sua promessa quer o aviso do médico pertenciam ao
passado,
e não me restavam dúvidas de que pretendia apoderar-se do
tesouro, encontrar e embarcar no Hispaniola a coberto da
noite,


178


cortar todos os pescoços de gente séria que restassem na ilha
e
fazer-se ao mar, conforme fora a sua primeira intenção, cheio
de
crimes e de haveres.
Sacudido como estava com todos aqueles abalos, era-me
custoso
acompanhar o passo dos caçadores do tesouro. Por vezes
tropeçava,
e era nessas alturas que o Silver dava ao cabo fortes puxões e
me lançava aqueles olhares assassinos. O Dick, que tinha
ficado
para trás, era então o último do grupo e balbuciava para si
próprio rezas misturadas com imprecações, ao passo que a febre
lhe ia subindo. Também aquilo aumentava a minha inquietação e,
para cúmulo, obcecava-me a lembrança da tragédia que em tempos
se desenrolara naquela plataforma quando o pirata diabólico da
cara azul - que morrera em Savannah a cantar e a gritar que
lhe
dessem de beber - ali tinha por suas próprias mãos liquidado
os
seis cúmplices. Aquele bosque, agora tão sereno, devia então
ter-se enchido de gritos, pensei, e só de pensar nisso me
parecia
estar ainda a ouvi-los.
Tínhamos chegado à orla do bosque.
- Eia, malta, todos juntos! - gritou o Merry, e os da frente
arrancaram em corrida. E de repente, mal passados dez metros,
vimo-los estacar. Entoaram um queixume em voz baixa. O Silver
redobrou o passo, a muleta a ferir o chão como um possesso, e
logo a seguir também nós estacámos.
À nossa frente estava uma grande cova, já antiga, com os
lados
esboroados e a erva a crescer no fundo. Lá dentro havia o cabo
duma picareta partido em dois e as tábuas espalhadas de várias
caixas. Numa das tábuas vi, gravado a fogo, o nome Walrus - o
nome do navio do Flint.
Estava tudo bem comprovado. O esconderijo fora descoberto e
saqueado - as setecentas mil libras haviam desaparecido!

CAPÍTULO XXXIII


A queda de um cacique


Nunca neste mundo se viu uma reviravolta tão grande. Os
seis
pareciam como se atingidos por um raio. Mas quanto ao Silver,
o
choque desapareceu quase imediatamente. Como um corredor,
tinha
depositado todo o pensamento naquele dinheiro, mas
recompôs-se,
intacto, num só segundo, conservou a cabeça, aguentou o ânimo
e
mudou de plano antes dos outros terem tempo de se aperceberem
do
desapontamento.
- Jim - segredou -, segura aí, e dá atenção que vai haver
barulho.
E passou-me uma pistola de dois canos.
Ao mesmo tempo deslocou-se em silêncio para o lado norte, de
modo que em poucos passos nos colocou em frente aos outros
cinco
com a cova no meio. Depois olhou-me e acenou com a cabeça,
como
se dissesse: "Estamos encurralados", como achei que de facto
estávamos. Tornava agora aos modos amigáveis, e tão revoltado
fiquei com aquelas mudanças constantes que não pude deixar de
segredar: - Então já mudaste outra vez; já?
Não teve tempo de me responder. Os piratas, com pragas e
berros, começaram a saltar um após outro para dentro da cova,
e
a cavar com os dedos, enquanto arredavam as tábuas. O Morgan
encontrou uma moeda de ouro. Exibiu-a com uma torrente de
imprecações. Era uma moeda de dois guinéus, que correu durante
alguns segundos de mão em mão.
- Dois guinéus! - rugiu o Merry, agitando-a virado para o
Silver. - São as tuas setecentas mil libras, não são? Tu é que
sabes de negócios, não é? És tu que nunca te enganas, seu
parolo,
cabeça de martelo!
- Cavem, rapazes - retorquiu o Silver, com a mais fria das
insolências -, não me admiro que encontrem por aí umas
bolotas.
- Bolotas! - ecoou o Merry, num berro. - Malta, vocês ouvem?
Ele já sabia, é o que Lhes digo. Olhem se não está escrito na
cara dele.
- Ah, Merry - notou o Silver -, já queres ser outra vez
capitão? Lá teimar teimas tu, moço.

180 181


Mas daquela vez estavam todos a favor do Merry. Começaram a
trepar para fora da cova, deitando olhares furibundos para
trás.
Uma coisa notei que nos dava alguma vantagem, era que saíam
todos
pelo lado oposto.
Bem, ali ficámos, dois dum lado, cinco do outro, a cova no
meio, e ninguém se afoitava a dar o primeiro golpe. O Silver
nunca se mexeu, observava-os, muito direito na muleta,
parecendo-me mais calmo que nunca. Bravo era ele, sem dúvida.
Por fim, o Merry achou que um discurso talvez ajudasse.
- Malta - disse -, estão além os dois sozinhos, um é o
aleijado
velho que nos trouxe aqui e nos aldrabou até agora, o outro é
aquela cria dum bicho a que vou tirar o coração. Agora,
malta...
Estava a levantar o braço e a voz, sem dúvida para arrancar
com
uma carga. Mas nesse instante - crac! crac! crac! - três tiros
de mosquete partiram das sebes. O Merry tombou de cabeça para
dentro da cova, o homem da cabeça ligada girou como um rapa e
estendeu-se ao comprido, morto, mas ainda a torcer-se, e os
outros três viraram-se para fugir a toda a pressa.
Num piscar de olhos, o Long John disparara os dois canos da
pistola sobre o Merry, que se debatia na cova, e como este ao
morrer ainda revirava um último olhar para ele, terminou: -
George, acho que te arrumei de vez.
Na mesma altura o médico, o Gray e o Ben Gunn, com os
mosquetes
fumegantes, saíram de entre as moscadeiras para se nos
juntarem.
- Em frente! - gritou o médico. - Mais depressa, rapazes.
Temos
de lhes cortar o caminho dos barcos.
E partimos em corrida, rompendo por vezes os arbustos que
nos
davam pelo peito.
Sou eu que conto, mas é verdade que o Silver fazia tudo por
nos
acompanhar. O esforço dele, a saltar na muleta até os músculos
do peito lhe ficarem a rebentar, era tal que nunca um homem
com
saúde pudera igualar, e o doutor pensa do mesmo modo. Mesmo
assim, já ia trinta metros atrás e prestes a abafar quando
chegámos à dobra da encosta.
- Doutor - chamou -, olhe além! Não há pressa!
Na verdade não havia pressa. Numa zona mais aberta do
planalto
podíamos ver os três sobreviventes ainda a fugir na mesma
direcção donde tinham partido, direitos ao Monte da Mezena. Já
nos encontrávamos entre eles e os botes, por conseguinte
sentámo-nos os quatro para ganhar fôlego enquanto o Long John,
a limpar a cara, se nos juntava mais devagar.
- Muito agradecido, doutor - disse. - Chegaram mesmo à
risca,
creio, para mim e para o Hawkins. E afinal sempre és tu, Ben
Gunn! - acrescentou. - E olha que és dos bons, não há dúvida.
- Sou o Ben Gunn, sou - retorquiu o abandonado, torcendo-se
de
embaraço como uma enguia. - E - continuou, depois de longa
pausa
-, como passas tu, senhor Silver? Muito bem, obrigado, dizes
tu.
- Ben, Ben - murmurou o Silver -, pensar que me trocaste as
voltas.
O médico mandou o Gray ir atrás buscar uma das picaretas,
deixada na fuga pelos amotinados, e ao prosseguirmos a descida
sem pressas até onde estavam os barcos, contou, em poucas
palavras, o que sucedera. Era uma história que interessava
profundamente o Silver, e da qual o Ben Gunn, o desterrado
meio
idiota, era o herói do princípio ao fim.
O Ben, no longo vaguear solitário por toda a ilha,
encontrara
o esqueleto. Fora ele que o saqueara, encontrara o tesouro,
desenterrara-o (era dele o cabo da picareta que ficara partido
na cova), carregara-o às costas, durante muitos dias
estafantes,
do pinheiro alto até a uma caverna que ocupara no monte dos
dois
picos na ponta nordeste da ilha, onde tinha ficado escondido
em
segurança dois meses antes da chegada do Hispaniola.
Quando o médico lhe sacara este segredo, na tarde do ataque,
e vira o ancoradouro vazio na manhã seguinte, dirigira-se ao
Silver, dera-Lhe o mapa, que já não servia para nada, dera-lhe
as provisões, pois a caverna do Ben Gunn estava bem fornecida
de
carne de cabra que ele mesmo salgara, dera-Lhe tudo e o que
quer
que fosse para ter a oportunidade de se mudar em segurança da
paliçada para o monte dos dois picos, de modo a ali ficar
livre
da malária e conservar o dinheiro guardado.
- Quanto a ti, Jim - disse -, era contra os meus
sentimentos,
mas fiz o que me pareceu melhor por aqueles que tinham
cumprido
o seu dever, e se tu não eras um deles,de quem era a culpa?
Nessa mesma manhã, vendo que eu ia tomar parte no
desapontamento tremendo que ele preparara para os piratas,
correra por ali acima até à gruta e, deixando o morgado de
guarda
ao capitão, trouxera o Gray e o abandonado com a intenção de
cortar em diagonal pela ilha de modo a ficar a postos ao lado
do
pinheiro. No entanto, em pouco tempo compreendera que o nosso
grupo já levava um grande avanço, e o Ben Gunn, que tinha o pé
ligeiro, fora despachado à frente para fazer sozinho o melhor
que
pudesse.


182


Este tivera então a lembrança de lidar com as superstições
dos
antigos camaradas, e tão bem se saíra daquela que o Gray e o
médico haviam chegado e já estavam emboscados antes da chegada
dos caçadores do tesouro.
- Ah - desabafou o Silver -, sorte tive eu em ter aqui o
Hawkins comigo. O senhor doutor havia de deixar o velho John
ser
cortado aos bocados e nem pensava mais nisso.
- Não pensava, não - replicou o médico, todo bem-disposto.
Entretanto, chegáramos aos escaleres. O médico, com a
picareta,
desfez um deles, e a seguir embarcámos todos no outro para
irmos
pelo mar até à Angra Norte.
Era uma regata de oito a nove milhas. O Silver, embora quase
morto de cansaço, foi colocado ao remo como os restantes, e em
breve deslizávamos com rapidez num mar calmo. Não tardámos
muito
a passar ao largo dos estreitos e a dobrar a ponta sudeste da
ilha, por onde tínhamos rebocado o Hispaniola, havia quatro
dias.
Ao passar pelo monte dos dois picos pudemos avistar a
entrada
escura da caverna do Ben Gunn, assim como um vulto que ao lado
dela se apoiava num mosquete. Era o morgado, e acenámos com um
lenço dando-lhe três vivas, aos quais a voz do Silver se
juntou
com tanto entusiasmo como as outras.
Três milhas adiante, logo ao entrar na foz da Angra Norte,
que
havia de nos aparecer senão o Hispaniola, a navegar à deriva.
A
última maré tinha levantado o navio, e se o vento fosse muito,
ou a corrente da maré tão forte como no ancoradouro do sul,
podíamos não mais o ter encontrado, ou encontrá-lo encalhado
sem
remédio. Entretanto, as avarias não eram grandes, salvo a
perda
da vela grande. Aprontámos outra âncora, que foi lançada em
braça
e meia de água. Voltámos a remar para a enseada do Rum, ponto
mais próximo da casa-forte do Ben Gunn, depois o Gray,
sozinho,
voltou de bote ao Hispaniola, para lá passar a noite de
guarda.
Uma rampa suave subia da costa até à entrada da caverna. Lá
em
cima fomos recebidos pelo morgado. Mostrou-se cordeal e
bondoso
comigo, nada dizendo da minha fuga, quer em tom de censura
quer
de elogio. Mas corou à continência rasgada do Silver.
- John Silver - pronunciou -, és um tratante espantoso e
impostor, um impostor monstruoso. Disseram-me para não te
incomodar. Pronto, então não te incomodo. Mas os teus mortos,
homem, que os tragas ao pescoço como mós de moinho.
- Muito agradecido, senhor - retorquiu o Long John, com
outra
continência.
- Como te atreves a agradecer-me! - bradou o morgado. - Já
faltei de mais ao meu dever. Afasta-te!


183


Entrámos todos na gruta. Era grande e arejada, com uma
pequena
nascente e uma poça de água límpida encimada de fetos. O chão
era
de areia. O capitão Smollett estava estendido em frente a uma
grande fogueira, e a um canto distante, onde mal chegava o
tremeluzir da chama, contemplei grandes montes de moedas e
pilhas
construídas de barras de ouro. Era o tesouro do Flint que tão
longe viéramos procurar, e que já custara a vida a dezassete
tripulantes do Hispaniola. E quantas não teria custado no
conjunto, quanto sangue e tristezas, quantos navios metidos a
pique, homens valentes postos na prancha de olhos vendados,
tiros
de canhão, vergonhas, mentiras e crueldades, tantas que talvez
não haja homem vivo capaz de contar. Aliás ainda restavam três
naquela ilha - o Silver, o velho Morgan e o Ben Gunn -, dos
que
haviam participado naqueles crimes, cada um esperando em vão
ter
a sua parte na recompensa.
- Entra, Jim - disse o capitão. - No teu género és bom moço,
Jim, mas acho que tu e eu não tornamos a embarcar juntos. Para
mim, o que tu tens a mais é vocação para arranjar padrinhos.
És
tu, John Silver? Que te traz por cá, homem?
- Voltei para fazer o meu dever, senhor - respondeu o
Silver.
- Ah! - terminou o capitão, e não acrescentou mais nada.
Que ceia saboreei nessa noite, rodeado de todos os amigos, e
que banquete foi, com a cabra salgada do Ben Gunn, alguns
petiscos e uma garrafa de vinho velho trazida do Hispaniola.
Tenho a certeza de que nunca se viu gente mais alegre e feliz.
E lá estava o Silver, encostado quase fora da luz da fogueira
mas
comendo com apetite, pronto a inclinar-se para servir sempre
que
fosse preciso, e até participando discretamente nos nossos
risos
- o mesmo marinheiro brando, educado e servil de toda a
viagem.

CAPÍTULO XXXIV


Por último


Começámos a trabalhar de manhã cedo, pois o transporte
daquele grande peso de ouro por quase dois quilómetros até à
praia, e daí mais três milhas a remo até ao Hispaniola, era
tarefa de respeito para um número tão reduzido de
trabalhadores.
Os três homens ainda à solta na ilha não nos preocupavam
grande
coisa, bastava uma sentinela no cimo da encosta para nos
prevenir
contra qualquer ataque súbito e pensávamos, além disso, que já
deviam estar fartos de combater.
Por conseguinte, o trabalho foi levado a cabo com rapidez. O
Gray e o Ben Gunn vinham e voltavam no bote, enquanto na
ausência
deles os outros empilhavam na praia o tesouro. Duas das
barras,
suspensas na ponta dum cabo, eram boa carga para um adulto,
carga
que obrigava a andar devagar. Pela minha parte, como os meus
préstimos a fazer carretos de pouco valiam, fui colocado todo
o
dia na gruta a encher de moedas os sacos de pão.
Era uma colecção extraordinária, como o pé-de-meia do Billy
Bones, pela variedade das moedas, mas tão grande em quantidade
e em diversidade que creio bem nunca ter sentido maior
satisfação
do que a que tive em separá-las. Inglesas, francesas,
espanholas,
portuguesas, georges e luíses, dobrões, guinéus, dobres,
moidores
e cequins, as figuras de todos os reis da Europa dos últimos
cem
anos, moedas estranhas do Oriente cunhadas com marcas que
lembravam fios de cordel ou bocados de teias de aranha, peças
redondas e quadradas, peças furádas no meio como se fossem
para
usar ao pescoço, creio que talvez exemplares de todo o
dinheiro
do mundo se encontravam na colecção e, quanto à quantidade,
deviam ser tantas como as folhas do Outono, tantas que me
doíam
as costas de ficar curvado, e os dedos de as separar.
O trabalho arrastou-se de dia para dia, ao cair da tarde
tinha
sido estivada uma fortuna a bordo, mas havia outra fortuna
deixada para o dia seguinte, e entretanto nada sabíamos dos
três
piratas sobreviventes.
Por fim - creio que foi na terceira noite -, o médico e eu
passeávamos na quebrada do monte de onde se avistam as terras
baixas da ilha, quando lá debaixo do escuro o vento nos trouxe
um ruído parecido com gritos ou com vozes a cantar. Aos
ouvidos
chegou-nos só um eco breve, seguido do anterior silêncio.
- Deus lhes perdoe - disse o médico -, são os amotinados!
- Todos bêbedos, senhor - interrompeu a voz do Silver atrás
de
nós.
Devo dizer que ao Silver era permitida toda a liberdade e,
apesar de votado ao desprezo todos os dias, parecia mais uma
vez
considerar-se a si próprio como um servidor privilegiado e
amigável. Era de facto notável o modo como ele aguentava as
humilhações e como continuava, com delicadeza incansável, a
tentar ganhar as boas graças de todos. Creio, no entanto, que
ninguém o tratava melhor do que a um cão, a não ser talvez o
Ben
Gunn, que ainda conservava um medo tremendo do seu antigo
contramestre, ou eu, que tinha realmente algo a agradecer-lhe,
mas acho que na verdade era eu quem tinha dele mais razão de
queixa do que os outros, por o ter visto a tramar nova traição
no planalto.
Assim, foi com maus modos que o médico lhe respondeu:
- Bêbedos, ou a delirar?
- Tem razão, senhor - retorquiu o Silver -, e pouca
diferença
faz, para o senhor doutor ou para mim.
- Acho que não deves esperar que eu te trate como um ser
humano
- tornou o médico, com desprezo -, por isso podes estranhar os
meus sentimentos, mestre Silver. Mas se tivesse a certeza que
estavam a delirar, aliás tenho a certeza moral que pelo menos
um
está com as febres, saía daqui e arriscava a minha carcaça
desse
lá por onde desse para lhes dar assistência médica.
- Perdoe-me, senhor doutor, mas fazia muito mal - atalhou o
Silver. - Ia perder a vida que tanto vale, garanto-lhe. Agora
estou do vosso lado, como uma luva, e não gostava nada de ver
o
grupo mais fraco, muito menos com o senhor, que bem sei quanto
lhe devo. Mas aqueles lá em baixo não são capazes de cumprir a
palavra... não, até mesmo se quisessem... e além do mais, não
iam
acreditar que o senhor a cumpria.
- Pois não - concordou o médico. - Tu é que és aqui o homem
de
palavra, já sabemos disso.
Bem, foi praticamente a última vez que tivemos notícia dos
três
piratas. Só de outra ouvimos um tiro muito ao longe, pensando
que
andariam à caça. Fizemos uma reunião e ficou decidido que
tínhamos de os abandonar na ilha - devo dizer, com imenso
contentamento do Ben Gunn, e com o apoio caloroso do Gray.


186


Deixámos boa provisão de pólvora e chumbo, quase toda a cabra
salgada, alguns remédios e várias outras utilidades,
ferramentas,
roupas, uma vela sobressalente, uma ou duas braças de cabo e,
por
desejo expresso do médico, um brinde generoso de tabaco.
Foram as últimas actividades que tivemos na ilha. Já
havíamos
embarcado o tesouro juntamente com água suficiente e o resto
da
carne salgada, para atender a qualquer problema, e por fim,
numa
bela manhã, levantámos ferro, que era quase tudo o que nos
restava fazer, e saímos da Angra Norte, desfraldada a mesma
bandeira que o capitão içara e sob a qual lutara na paliçada.
Os três homens deviam ter-nos vigiado mais de perto do que
pensáramos, como em breve se provou. Como ao passar os
estreitos
tínhamos de seguir até muito próximo da ponta sul, lá os fomos
encontrar ajoelhados juntos numa ponta de areia, com os braços
erguidos em súplica. Penso que nos comoveu a todos ter de os
deixar naquele estado lastimoso, mas não podíamos correr o
risco
de nova revolta, e levá-los de regresso para os entregar ao
garrote seria uma espécie de bondade bem cruel. O médico
gritou-lhes para dizer que deixáramos os mantimentos, e onde
se
encontravam, mas continuaram a chamar-nos pelos nomes e a
suplicar que nos apiedássemos pelo amor de Deus e não os
deixássemos morrer em tal lugar.
Enfim, ao ver o navio prosseguir o curso e afastar-se com
rapidez do alcance das vozes, um deles - não sei qual - pôs-se
em pé gritando, levou o mosquete ao ombro e disparou um tiro
que
veio assobiar rente à cabeça do Silver e furou a vela grande.
Depois disso abrigámo-nos nas amuras e, quando voltei a
olhar,
tinham já desaparecido da ponta e a própria areia já mal se
via,
cada vez mais longe. Era o fim, pelo menos daquele episódio, e
antes de chegar o meio-dia, para meu contentamento indizível,
o
penhasco mais alto da Ilha do Tesouro havia mergulhado na
esfera
azul do oceano.
Éramos tão poucos que todos tínhamos de acorrer ao trabalho
de
bordo - só o comandante dava as ordens estendido num colchão à
ré, pois embora já muito recomposto ainda precisava de
repouso.
Foi fixada a rota para o mais próximo porto da América
Espanhola,
pois não podíamos arriscar a viagem de regresso sem novos
tripulantes, e naquela situação, ainda por cima com alguns
ventos
contrários e dois temporais fortes, estávamos completamente
esgotados antes de voltarmos a ver terra.


187


Era sol-posto quando lançámos ferro numa lindíssima baía bem
abrigada, onde fomos logo cercados por canoas cheias de
pretos,
índios mexicanos e crioulos a vender frutas e legumes e a
oferecerem-se para mergulhar a troco de algumas moedas. O
espectáculo de tantas caras bem-dispostas (em especial as dos
pretos), o sabor da fruta tropical e, acima de tudo, as luzes
que
começavam a brilhar na cidade, faziam um contraste estupendo
com
a nossa estadia obscura e sangrenta na ilha, e o médico e o
morgado levaram-me com eles a terra para passar o princípio da
noite. Ali encontraram o comandante dum navio de guerra
inglês,
travaram conhecimento com ele, fomos a bordo do seu navio e,
em
resumo, passámos tão bem o tempo que clareava o dia quando
atracámos ao Hispaniola.
O Ben Gunn estava sozinho no tombadilho e logo que
embarcámos
começou, cheio de contorções dignas de se ver, a fazer-nos uma
confissão. O Silver fora-se embora. O desterrado fora cúmplice
da fuga num barco de terra havia algumas horas, e queria agora
garantir-nos que o fizera só para nos proteger, pois era mais
que
certo termos as vidas em perigo se aquele homem duma perna só
tivesse ficado a bordo,. Mas não era tudo. O cozinheiro não
partira de mãos vazias. Tinha-se esgueirado sem ser visto por
uma
escotilha do porão para se apossar de um dos sacos de moedas,
valendo talvez uns trezentos a quatrocentos guinéus, como
ajuda
para continuar a vida errante.
Penso que todos ficámos satisfeitos por nos livrarmos dele
por
preço tão baixo.
Bom, para encurtar uma história já longa, arranjámos alguns
tripulantes, fizemos uma excelente viagem de regresso e o
Hispaniola aproou a Bristol no momento em que o senhor Blandy
começara a pensar em aparelhar o barco de socorro. Só cinco
dos
homens que haviam embarcado estavam de volta. Os outros
levou-os
o vinho e o diabo como por vingança, embora, por certo, o
nosso
caso não fosse tão grave como o daquele outro navio cuja
cantiga
dizia:


"No mar só um escapou com vida,
Dos setenta e cinco da partida."


Todos tivemos uma boa parte do tesouro, para dela fazer uso
prudente ou impensado, conforme a natureza de cada um. O
capitão
Smollet está agora reformado. O Gray não só poupou o dinheiro
mas
também, num desejo repentino de progredir, estudou o seu
ofício
e é hoje imediato e sócio de um belo navio de quatro mastros.


188


Além disso está casado e é pai de família. Quanto ao Ben Gunn
levou mil libras, que gastou ou perdeu em três semanas ou,
para
ser mais preciso, em dezanove dias, pois no vigésimo já andava
outra vez a pedir esmola. Depois arranjaram-Lhe um lugar de
porteiro, tal como havia receado enquanto estava na ilha, e
ainda
vive, em grand simpatia, ainda que por vezes tratado como bobo
pelos rapazes do campo, e faz-se valer como cantor de igreja
aos
domingos e dias santos.
Do Silver não tivemos mais notícias. Esse fabuloso homem do
mar
de uma só perna finalmente desapareceu de vez da minha vida,
mas
até acredito que tenha voltado para junto da sua velha negra,
em
cuja companhia talvez ainda viva em conforto, com ela e com o
Capitão Flint. É o menos que se pode desejar, assim creio,
pois
tem fracas possibilidades de encontrar conforto no outro
mundo.
A prata em barra e as armas ainda estão, tanto quanto sei,
onde
o Flint as enterrou, e por mim certamente que lá podem ficar
para
sempre. Nunca seria capaz de voltar àquela ilha maldita, nem
que
fosse amarrado e arrastado, e os piores pesadelos que tenho
são
quando oiço o trovejar da ressaca naquela costa ou me sento na
cama em sobressalto, com a voz aguda do Capitão Flint ainda a
retinir-me nos ouvidos:


"Peças de oito! Peças de oito!"

NOTA BIOBIBLIOGRÁFICA


ROBeRT LOUIS STevenson nasceu em 1858 em Edimburgo, no
seio
de uma família próspera. Robert Louis Balfour estudou Direito
na
Universidade de Edimburgo contra a vontade do pai, que teria
preferido que o filho seguisse engenharia. Aos 20 anos, teve
uma
grave doença respiratória, que o atormentaria toda a vida. Em
1873, motivado por problemas familiares e decidido a
dedicar-se
à literatura, instala-se na Riviera francesa. Ali escreveu os
seus primeiros livros. Durante uma estadia em Fontainebleau,
em
1876, conheceu Fanny Vandergrift Osbourne, uma californiana
mais
veLha do que ele, prestes a divorciar-se, que em 1878
regressou
aos Estados Unidos. Stevenson seguiu-a no ano seguinte e, uma
vez
nos Estados Unidos, sobreviveu em difíceis condições enquanto
esperava pelo divórcio de Fanny. Em Agosto de 1880, já casado,
viaja até à Escócia com a mulher e reconcilia-se com a
família,
embora, por conselho médico, só pudesse permanecer em
Edimburgo
durante as épocas de Verão. Nos anos seguintes, residiu em
Davos,
depois em Hyères e em Barnemouth, onde conheceu Henry James.
Em
Agosto de 1887 abandonou a Inglaterra pela última vez para
viajar
primeiro aos Estados Unidos, onde viveu durante 2 anos, e
depois
para os mares do Sul, até se instalar definitivamente em
Samoa.
Ali construiu uma casa e viveu com a mulher e outros
familiares
até morrer aos 44 anos. Personagem completa e atormentada,
cujo
optimismo proverbial aparece como uma aceitação irónica do
inevitável, é autor de uma copiosa obra.
Stevenson morreu na ilha de Samoa em 1894.


Algumas obras:


An Inland Voyage (1878),
O Clube dos Suicidas (1878),
Travels with a Donkey (1879),
A Ilha do Tesouro (1883),
The Silverado Squatters (1883),
Odisseia de Um Príncipe (1885),
A Childs Garden of Verses (poesia) (1885),
O Médico e o Monstruo (1886),
Kidnapped (1886),
A Flecha Negra (1887),
The Merry Men (1887),
The Master of Ballantrae (1889),
Father Damien (1890),
Catriona (1893),
Island's Night's Entertainments (1893).

Scannerização e Arranjo


Amadora, Setembro de 2000

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