Alexander Sellers
Um Romance maravilhoso, de rápida e fácil leitura, que compõe um
enredo de , investigação, de fatos passados entre a nobresa real, e
demonstra o que falta em muitos relacionamentos, normais, o diálogo, e o
expor francamente os sentimentos, pois achar que o par entendeu o que
você quis dizer é muito diferente de dizer o que se quer, de forma
franca e objetiva.
Por ser uma boa história, para quem gosta de romance como eu,
chega-se a sentir falta de um desenrolar maior, pois em torno de uma
hora e meia o livro está lido.
PRÓLOGO
Da ampla sacada do palácio, o príncipe Rashid ibn Ahmed Kamal sorria e acenava para a multidão que o aclamava sob o sol ardente. O pátio estava repleto de pessoas
que o saudavam, gritando, rindo, cantando, dançando e beijando umas às outras.
Ele voltara para casa. O belo príncipe, dado como morto, estava de volta. E voltara como herói, após ter dizimado os terroristas sanguinários, os temidos Al Ikhwan.
Os Irmãos.
O perigo de um ataque de armas químicas havia terminado. O laboratório fora encontrado e o estoque de vírus fatais destruído. Não havia necessidade de apregoar onde
teria sido o primeiro ataque, mas um dos súditos não se cansava de tecer louvores ao sheik, deslumbrando um considerável número de pessoas que o ouviam, extasiadas.
Obviamente, o primeiro ataque teria sido aqui, nas ilhas Tamir afirmava o homem com voz tenebrosa, enquanto a audiência emitia murmúrios de indignação e anuía
com a cabeça. Esses monstros querem destruir a integridade e a nobreza, pois sabem muitos bem que o bem e o mal não podem coexistir. Muito provavelmente teriam
começado por aqui mesmo, neste exato local, espalhando seu veneno mortífero com o intuito de destruir a família Kamal! E somente depois que Tamir fosse dizimada
é que o mundo ficaria alerta e tomaria alguma providência prosseguiu ele, convenientemente omitindo o fato de que a missão em que o príncipe Rashid se envolvera
fora articulada em conjunto por vários países. Mas quem precisa do resto do mundo tendo um príncipe como Rashid? Corajoso, intrépido...
Os aplausos se multiplicaram quando a família real se juntou ao príncipe Rashid, na sacada. O rei Ahmed, a encantadora rainha Ãlima, o belo príncipe Hassan e suas
irmãs, a princesa Nádia, conhecida pela força de sua personalidade, a doce e sorridente Samira e a caçula Leila, considerada por muitos a mais adorável de toda a
família.
A lado de Rashid, Nádia sorria e acenava para os cidadãos em delírio. Ela apontou para o homem de turbante que continuava a encantar sua platéia.
Até o final da semana você terá feito tudo sozinho disse ela, rindo. Certamente, montado num pássaro gigante, empunhando a espada dos nossos ancestrais, dizimou
os monstros numa luta mortal e destruiu o terrível veneno.
Rashid riu. Pena que seu pai não a consultasse mais vezes sobre os assuntos de Estado.
Bem, se esses poderes míticos servirem para ganhar a simpatia do povo quando eu apresentar o meu projeto de mudanças na política externa, entre outras coisas,
não vou me importar nem um pouco.
Nédia o encarou e Rashid sabia por quê. Conhecia a irmã suficientemente bem para saber que nenhum detalhe lhe passava despercebido.
Que outras coisas?
Ele meneou a cabeça negativamente e continuou acenando para a multidão. O sol brilhante realçava seus olhos negros e os dentes brancos e perfeitos. A multidão acenou
de volta.
De uma maneira ou de outra, ninguém estava imune ao seu poder de sedução. Rashid era muito mais carismático que o pai, que por sua vez era muito mais severo. Não
fora de estranhar a comoção causada por seu suposto desaparecimento. Para Nádia, era como se lhe tivessem arrancado um braço. Ter seu irmão de volta fora um verdadeiro
milagre, e assim deveria permanecer.
Em que mais você está pensando, além de propor mudanças na política externa? Ele não respondeu. E a criança... ela é mesmo sua? Eu preciso saber.
Rashid sorriu novamente. Os aplausos se intensificaram. Ele se lembrou das lágrimas de Júlia diante do inevitável. "Rashid, eu... eu sou virgem..."
Outras mulheres haviam dito a mesma coisa, provavelmente para acender o fogo da paixão. Mas ela dizia a verdade. A realidade atingiu-o como um soco no estômago:
uma virgem. Depois de tanto tempo, ela ainda era virgem.
Sim, é minha ele respondeu à irmã.
Rashid lembrou-se de Júlia em seus braços, o rosto lindo, os lábios trêmulos de desejo. Por isso perdera o controle.
Quem sabe não terminaria a rixa familiar? sugeriu Nádia. Está pensando em se casar?
- O problema é convencer meu pai, ele não vai gostar nem um pouco.
- Ele faz questão de cultivar essa inimizade.
Uma nova onda de aplausos se ergueu quando o casal real retirou-se para o interior do palácio.
- Não quero brigar com ele, mas tenho que fazer o que achar certo. Se eu soubesse como convence-lo...- Rashid acenou mais uma vez para a multidão enquanto seus irmãos
se retiravam.
- Quer um conselho irmãozinho?
Agora só estavam ele e Nádia no terraço. Depois de um último aceno a multidão entrou em delírio.
- Quero.
- Faço como sua campanha, surpreenda-o.
CAPÍTULO I
A princesa Júlia Sebastiani estava agitada, a sensação de prazer ainda presente em seu corpo. Então respirou aliviada: encontrava-se em seu quarto, no seu palácio
e sozinha. Eram seis e meia da manhã e acabara de sonhar com Rashid Kamal.
Ela se levantou e foi para a janela de onde se descortinava uma aurora esplendorosa sobre as águas do Mediterrâneo. A vista era fantástica. Rashid voltara para casa.
Vivo. Seu filho tinha pai: o filho do maior inimigo de seu pai.
Talvez fosse melhor que estivesse morto. 0 que acontecera entre eles não passara de uma trama muito bem planejada por Rashid kamal para incriminar os Sebastiani:
o encontro inesperado, a paixão arrebatadora, o sumiço dele, tudo fora muito bem arquitetado para incriminar sua família, da mesma maneira que seus pais responsabilizavam
os Kamal pelo desaparecimento de Lucas, o filho caçula. Rashid já devia saber da gravidez. Como teria reagido? Eram tantas as acusações trocadas entre Kamal e Sebastiani
que não seria surpresa se não aceitasse.
0 Montebello Messenger trazia estampado na primeira página: Princesa Júlia e príncipe Rashid subirão ao altar. Numa entrevista exclusiva, o herdeiro do trono de
Tamir e inimigo histórico da família real de Montebello dizia que a velha rixa era "coisa do passado" e devia "ser esquecida". "Um homem e uma mulher que esperam
um filho não podem alimentar uma briga tão antiga", continuava. "O passado não interessa, mas sim o futuro. Temos de seguir em frente e selar a paz entre os dois
países."
A seguir, o príncipe reconhecia a paternidade da criança que a princesa Júlia esperava, assunto que toda a imprensa vinha explorando desde o seu regresso, no início
da semana, depois de ser dado como morto. O palácio de Montebello ainda não se manifestou sobre suas declarações.
Droga! Mil vezes droga! Júlia jogou o jornal no chão, irritada.
Ma... madame! disse uma voz trêmula atrás dela.
Júlia ergueu os olhos e através do espelho encarou sua cabeleireira com uma expressão entre assustada e preocupada.
Oh, Micheline! Não é com você! Desculpe-me. Ela tentou disfarçar.
O jornal caíra com a página virada para cima, com uma foto de rashid sorrindo, a barba por fazer, os cabelos negros caindo sobre a testa. Ele parecia exibir uma
expressão provocante. Tinha um rifle nas mão e, ao fundo, via-se um helicóptero do Exército.
Ele é muito bonito, madame a moça comentou timidamente. Era a primeira vez que Júlia ouvia comentar sobre o assunto que já corria de boca em boca.
Quem? ela retrucou num tom defensivo. Micheline não se intimidou.
Ora, o príncipe, madame. Que heroísmo! Que coragem! Ele derrotou os terroristas, madame! Arriscou a vida para nos livrar do antraz... A moça suspirou. A senhora
deveria estar feliz, madame. Eu ficaria, se fosse amada por um homem como ele.
Júlia mordeu o lábio e não respondeu. Podia ser outro golpe dos Kamal.
Está todo mundo feliz porque a senhora finalmente encontrará a felicidade.
Júlia nada disse, mas refletiu que não era possível ser feliz com alguém que ainda usava uma centenária e dolorosa tragédia para se apoderar injustamente das terras
dos Sebastiani.
E então, madame, gostou? perguntou Micheline sobre o penteado.
Está ótimo, Micheline, obrigada disse a princesa, sorrindo.
Ela se levantou no mesmo instante em que sua secretária particular entrava no quarto com uma pilha de papéis nos braços e uma expressão muito séria.
Valerie, você viu? Júlia mostrou o jornal no chão. Àquela altura toda a população da ilha já devia ter lido o jornal.
E claro que sim disse Valerie.
Diga a Bertrand que quero falar com ele. O mais rápido possível.
Certamente ele também vai querer conversar com você.
Valerie pegou o telefone e discou um número.
Ele já vai nos encontrar disse quando elas já saíam do quarto.
Valerie aproveitou para listar os compromissos daquele dia. Julia tentava se concentrar, mas tudo parecia enevoado. Nos últimos tempos isso vinha lhe acontecendo
com frequência... Devia ser os hormônios da gravidez. Ou talvez fosse efeito das coisas que Rashid Kamal dizia à imprensa. O que pretendia, afinal? Todo mundo sabia
que uma Sebastiani jamais se casaria com um Kamal, com bebê ou sem bebê a caminho. E certamente também não se casaria com um Kamal, ainda que fosse o último homem
sobre a face da Terra.
Bertrand esperava na ante-sala, as mãos enfiadas nos bolsos, já impaciente. Os três entraram no escritório e trancaram a porta. Júlia jogou o jornal dobrado sobre
a mesinha no centro de um conjunto de sofás e poltronas.
Você já leu, Bertrand?
Assim como Valerie, a secretária, ele tinha obrigação de ler tudo o que se publicava, de preferência em primeira mão. Sentado na frente de Júlia, ele estendeu a
mão para pegar o jornal.
Sim. Bem...
Ele não podia ter feito isso! Desminta imediatamente! - O secretário de imprensa se prontificou:
O que devo dizer, princesa?
Negue categoricamente qualquer envolvimento ou possibilidade de casamento.
Mas não é verdade?
Quero que... O quê? Júlia deu um salto na poltrona como se tivesse levado um choque. Claro que não é verdade! Você enlouqueceu, Bertrand?
Perdão, princesa, pensei que vocês dois...
Nós o quê? Só então Júlia se deu conta de que, para Bertrand, ela e Rashid estavam juntos naquela história. Rashid é um Kamal, arquiinimigo da minha família.
Não falei com ele desde que voltou.
Bertrand apenas assentiu em silêncio.
Meu pai já leu? Ele telefonou? Deve estar furioso.
Ele deve ter telefonado, mas não falou comigo respondeu cautelosamente o secretário de imprensa. Mas deixou um número para a senhorita ligar.
Melhor assim. Júlia temia seu pai. Como foi que o Messenger publicou isso sem ouvir a nossa versão? Por que não checaram antes de publicar? ela perguntou,
furiosa.
Porque as declarações do príncipe vendem mais Bertrand explicou friamente. E a nossa resposta, que também será publicada, venderá mais ainda. O Messenger vai
quebrar todos os recordes de venda. E a julgar pelos últimos meses, não será pouca coisa.
Não importa. A nossa versão tem prioridade. E deixe meu pai por minha conta.
Princesa, permite-me dar uma sugestão? Júlia virou-se.
É melhor não fazer nada Bertrand aconselhou.
Você acha melhor não comentar meu casamento com Rashid Kamal? ela perguntou, incrédula. Ficou maluco?
Até o bebê reagiu à descarga de adrenalina. Júlia parou e num gesto automático levou as mãos ao ventre, respirando fundo.
0 que você acha, Valerie?
Como era de se esperar, esta manhã foi uma loucura. Só para o meu celular foram mais de cem jornalistas ligando. Teremos de colocar mais gente para atender a esses
telefonemas.
E isso é só o começo lembrou Bertrand.
Então, quanto antes desmentirmos, melhor.
Estão ligando também de Tamir.
Revoltados, imagino!
Não. Pela primeira vez, Montebello e Tamir estão de acordo. Para falar a verdade, todo mundo está torcendo pelo casamento. Espera-se que o casamento acabe com
essa inimizade de uma vez por todas ele continuou. É uma questão de diplomacia... e não podia ser melhor. Esse Rashid sabe o que faz.
Júlia não se rendeu.
Não sei o que ele pretende, mas não pode ser nada de bom. Não se pode confiar em um Kamal.
Valerie decidiu perguntar timidamente:
Será que ele está mesmo mentindo? Estaria se arriscando muito. Por que não o aceita?
Júlia levou um susto.
Você não pode estar falando a sério! Uma Sebastiani não se casa com um Kamal. É impossível!
Valerie e Bertrand entreolharam-se, sabendo que mais impossível ainda era uma Sebastiani engravidar de um Kamal! Júlia mostrou o jornal:
Este jornal quer transformar Rashid Kamal num herói. Eu estou grávida. Ele quer se casar comigo. Eu o rejeito. E ele sai ileso da história.
No fundo, ela sabia que isso não era verdade, que Rashid era diferente. Não fosse ele um Kamal, já teria lhe telefonado...
Não seria melhor falar com ele antes de fazer alguma coisa? Há pouco tempo temíamos que caísse uma bomba sobre a nossa cabeça ou respirar veneno pelas ruas. Todos
querem que essa briga acabe e que a paz volte a reinar.
Não acho que o povo esteja feliz com o casamento Júlia insistiu. Mas se estiver, serei obrigada a frustrá-lo. E se for para fazer isso, prefiro que seja logo.
Com todo o respeito, princesa, aconselho-a a conversar antes com o príncipe Rashid. Vou telefonar para o meu contato no palácio e tentar negociar.
Não vou falar com ele Júlia recusou, agitada.
Princesa, isso é loucura. Sua Alteza...
Ela se levantou de repente, e os outros dois fizeram o mesmo.
Está bem, Bertrand, ligue para o palácio de Tamir. Diga ao príncipe Rashid que se ele disser qualquer outra coisa a imprensa ou a quem quer que seja sobre esse
tal casamento, eu... ele...
Ela parou quando ouviu uma batida na porta e em seguida abriu-a. O porteiro mal disfarçava a excitação.
Perdão, Alteza, ele está aqui! O príncipe Rashid está no palácio! E quer vê-la!
Bertrand, vá ver o que é isso, por favor Júlia ordenou, num tom de voz quase inaudível. Diga que vamos negar tudo e que esperamos que ele faça o mesmo.
Princesa, não será melhor...
Não, não será! ela decretou. Deixe-me decidir, por favor! Diga a ele o que quiser, mas deixe bem claro que não vou recebê-lo.
Fazer previsões é arriscado disse alguém da porta.
Júlia, Bertrand, Valerie e o porteiro viraram-se ao mesmo tempo. E ali estava a sorridente Rashid Kamal, imponente como um anjo vingador.
Todos ficaram em silêncio, os olhos perdidos na distância, como se o tempo tivesse parado. O sorriso de Rashid foi se desfazendo. Desde quando ela se tornara a razão
de sua vida? Júlia umedeceu os lábios sob uma inesperada onda de calor.
Por favor, precisamos conversar.
Rashid cumprimentou os dois secretários e abriu a porta para que eles saíssem. Com a autorização de Júlia, os dois se afastaram, deixando-a a sós com o inimigo.
Um inimigo perigosamente atraente, por quem ela tinha uma perigosa queda... e com quem já cometera o maior de todos os desatinos.
Os Kamal também vão querer este palácio, como querem as terras de Delia? ela perguntou em tom sarcástico.
Rashid ignorou a provocação e se aproximou.
Como vai, Júlia?
Maldita hora em que nos conhecemos! ela atacou. Rashid se assustou.
Maldita hora, por quê?
Por que disse ao Messenger que estamos noivos? ela perguntou, furiosa.
Quer mesmo saber por quê?
Quero.
Achei que o povo aceitaria com mais facilidade se eu desse uma entrevista exclusiva ao jornal de Montebello. E deu certo.
Não é isso que estou dizendo. Por que disse que vamos nos casar? O que está pretendendo, afinal?
Ele franziu as sobrancelhas.
E você, o que pretende?
O que eu pretendo? Ora... só quero ter meu filho. Com o mínimo possível de intromissão da mídia.
Haverá menos espaço para especulações e insinuações se nos casarmos.
Júlia recuou como se tivesse se queimado.
Casar? O quê? Você... nós não podemos nos casar! - Rashid ficou sério.
Por que não?
Você é um Kamal, e eu, uma Sebastiani.
Mesmo assim fizemos um filho. - Júlia corou diante do fato incontestável.
Todo mundo tem o direito de perder a cabeça uma vez na vida.
Isso é o que foi para você?
E para você, não? ela rebateu, desafiadora.
Eu só perco o que não me serve de nada ele decretou. Aliás, podíamos perder a cabeça mais uma vez.
Júlia não esperava por isso.
Você... ela começou, quase em pânico.
Rashid quis abraçá-la, mas ela tropeçou no sofá e caiu sentada de maneira desgraciosa. Ele continuou olhando para ela, com uma expressão séria e determinada.
O filho que está esperando também é meu. Você já devia esperar por isso.
Que me pedisse em casamento? ela perguntou. Não, acho que não.
Rashid sentou-se ao lado dela, e Júlia encolheu-se no canto do sofá.
Eu sinto muito. Eu só queria dizer a verdade.
Que verdade? Que conseguiu me levar aonde queria?
Ela apertou os lábios, humilhada. Estava se comportando como uma tola, e ele não perdia a chance de se divertir.
Como eu podia adivinhar que você iria engravidar?
Você sabia que partiria naquela noite, não sabia?
Sim, eu sabia.
E planejou muito bem para que eu fosse a última a vê-lo. Eu lhe pergunto se você sabe o que é ter gentis detetives especulando sobre uma briga familiar que dura
há mais de cem anos.
Eu não pretendia incriminar você. É isso que está pensando? Não. Talvez eu tenha errado me deitando com você Rashid estendeu o braço e afastou os cabelos da
testa delicada mas você bem sabe que não pude resistir, Julía.
Eu nunca...
Você estava tão linda que eu perdi a cabeça.
Ela continuou resistindo. Não queria ser enganada outra vez.
Se não fosse pelo desaparecimento de Lucas... Seus olhos se encheram de lágrimas. Está bem, eu me ofereci! Mas se Lucas... se eu não estivesse sofrendo tanto
por meu irmão, não teria permitido que se aproximasse.
Não devia ter acontecido Rashid concordou mas aconteceu e aí está o resultado. Para que discutir? O importante agora...
Precisamos esclarecer muita coisa Julia interrompeu-o.
E o que é que não está claro? ele perguntou, impaciente.
Essa sua ilusão de que vamos nos casar! Esse direito que você acha que tem de me prejudicar anunciando publicamente o nosso compromisso.
Prejudicar? Júlia, quando voltei, encontrei uma montanha de especulações na mídia sobre se eu negaria ser o pai do seu filho. Minha primeira atitude foi afastar
qualquer dúvida sobre a minha paternidade.
Você só quer as terras de Delia ela reagiu para agradar seu pai.
O príncipe Rashid estava perdendo a calma,
Como pode dizer uma coisa dessas? Você sabe que meu pai ficou arrasado com a notícia de que eu estaria morto... estava sofrendo demais para agir racionalmente.
Seu pai também lamentou.
Ao menos meu pai nunca usou isso para querer se apossar de Tamir...
Seu pai acusa o meu pelo desaparecimento de seu irmão ele a interrompeu. E por plantar bombas e planejar o seu seqüestro e o de sua irmã. Para desestabilizar
o governo, afastar os aliados e apoiar os Ikhwan ai Zalaam, ob Filhos das Trevas.
Júlia recebeu essas palavras como uma chicotada.
Ele tinha motivos para desconfiar dos Kamal ela contra-atacou. Um terrorista confessou que trabalhava para seu pai! O que esperava que meu pai pensasse?
O terrorista mentiu, A informação é falsa. Eu esperava que seu pai fosse mais inteligente e reagisse de maneira mais equilibrada diante de uma crise.
Como fez o rei Ahmed, suponho! Meu pai estava desesperado por causa de Lucas.
Eles estavam quase aos gritos. Não era a primeira vez que Rashid tinha dificuldade para se controlar quando estava perto dela. Ele estava exasperado.
Júlia, você não entende que as terras de Delia não seriam mais uma propriedade para meu pai, e sim o fim dessa rixa? Um ato de justiça? Não sei se é verdade, mas
no século passado os Kamal acusaram os Sebastiani de assassinar seu príncipe herdeiro e se acharam no direito de...
Júlia interrompeu-o intempestivamente.
E os Kamal quiseram se apossar das terras depois da morte de Ornar e Delia. Foi uma manobra cínica na época e continua sendo até hoje. Os Sebastiani lamentaram
tanto quanto os Kamal esse assassinato. Sua família deve ter esquecido de que Delia também se matou logo após a morte de Ornar! Os Sebastiani foram tão atingidos
quanto os Kamal. Pior ainda, porque foram acusados de assassinato. Isso era algo terrível cem anos atrás. Quanto a seu pai...
Rashid ergueu a mão para que ela se calasse.
Não sei o que meu pai pensa sobre tudo isso, Júlia, mas não quero que se essa história prolongue.
Ela ficou surpresa. Pela primeira vez ouvia Rashid dizer que não compartilhava daquele litígio centenário entre as famílias.
Por quê?
Porque não serve para nada. Veja bem: se eu pudesse esclarecer a morte de Ornar, já o teria feito. Mas não estou interessado. Somos nós que estamos aqui. Se Ornar
estivesse vivo, eu seria um primo distante do príncipe herdeiro de Tamir, isso se eu existisse. Mas ele morreu. E eu sou o príncipe herdeiro, o Mash'Allah. Não me
interessa como cheguei até aqui, e sim o que farei para que meu povo tenha o que necessita.
Júlia não soube o que responder.
Nós dois podemos trabalhar juntos, Júlia, para que nosso filho herde uma nação pacífica.
Ai, aí! ela suspirou longamente. Então era isso: ele não a amava, mas se via na obrigação de proteger o filho. Mais um casamento político.
Rashid perdeu a paciência.
Quer dizer que prefere ter um filho sem se casar? Você é uma princesa! O público está atento a tudo o que você faz! Já não basta de escândalos?
O fato de ele repetir o que Júlia já vinha dizendo a si mesma não serviu para acalmá-la. Rashid estreitou os olhos.
O que foi que você disse a seu pai sobre a gravidez? perguntou, sério.
O que você disse a todos sobre a gravidez? Que nosso encontro foi um estupro? Que eu a ataquei no casamento de Harry e Mariel?
Júlia controlou-se para não dizer o que não devia.
Eu só disse o que aconteceu.
Como fui cego! E claro que você não pode se casar comigo depois das coisas horríveis que disse a meu respeito. Não admira que esteja tão furiosa. E difícil acreditar
que prefira ser mãe solteira a se casar comigo! Que ego!
Eu não vou me casar com você. Já me casei sem amor uma vez, e foi o suficiente.
Sem amor? Ele estendeu a mão para toca-la. Por que sem amor? Sabemos que nos damos muito bem na cama. Ele segurou a cabeça de Júlia, envolveu-lhe o pescoço
e atraiu-a irresistivelmente para junto de si.
O desejo de abandonar-se nos braços dele e aceitar sua proteção era mais forte que tudo.
De repente, os olhos de Júlia ganharam um brilho estranho e ela se soltou dos braços dele.
Você não me ama disse com uma firmeza extraída da determinação de não fraquejar. E eu não o amo.
CAPÍTULO 2
- Quem é há essa hora? perguntou . uma voz grave e sonolenta.
Júlia criou coragem:
Jack, é Júlia. Posso falar com Christina?
Júlia! Ele tentava acordar. Espere um pouco. A voz sonolenta de Christina soou no telefone.
Tiss? O que aconteceu?
Oi, mana, me desculpe! Nem me lembrei da diferença de horário. É muito tarde aí?
Não, tudo bem disse a outra, já mais calma. Aqui está quase amanhecendo.
Eu ligo mais tarde.
Não, não, já acordei. Espere um pouquinho...
Júlia ouviu o casal conversar, e em seguida o cunhado perguntar:
Aonde você vai?
Vou conversar na outra sala para você poder dormir. Desliga o telefone?
Desligo.
Você está aí, Tiss? Christina perguntou segundos depois.
Sim, estou.
O que houve? Está tudo bem? Ficamos sabendo do seu noivado pelos jornais. Parabéns. Christina parecia decepcionada. Foi um tanto inesperado. Primeiro, achei
que Rashid fosse negar a pat...
Também foi surpresa para mim. Eu soube que vou me casar pelo Messenger. Júlia suspirou do outro lado.
Como assim?
Ele nem se deu ao trabalho de me pedir em casamento. Estava tão seguro da minha gratidão que...
Gratidão! Que absurdo! exclamou Christina, indignada.
Tenho me perguntado se não devo me sentir grata por ser outra vez uma mulher casada.
Achei que ele amasse você. Eu não sei bem o que você sente por ele, mas...
Ele não me ama Júlia decretou.
Então por que quer se casar com você?
Tamir está dando sinais de que quer a paz entre nós. E nós temos que sacrificar a nossa felicidade pelo bem de nossos países.
Santo Deus! Christina ficou em silêncio. Sinto muito, Júlia... juro que pensei que você o amasse.
Não, é só a velha história se repetindo. Vou me casar em interesse do Estado.
Que coisa terrível! O que papai acha disso?
Nossos pais estão fora, graças a Deus. Papai teve um ataque, acho que vai aguentar. Você sabe como ele é: não aceitará a criança nascida fora do casamento. E ainda
por cima...
Christina riu disfarçadamente.
Ainda por cima sendo de um Kamal... Ah, Tiss, que situação! O que você vai fazer?
Júlia sentiu que ia chorar outra vez.
E por isso que estou ligando para você. O que eu faço? Tem alguma idéia?
Silêncio.
Não sei, Tiss. Acho que devia se casar, mas você... tem certeza de que não ama Rashid? Nem um pouquinho, nem para ficarem juntos?
Tenho. Ele quer se casar comigo por razões políticas. Há muito tempo pensa em resolver a rixa entre nossas famílias por meio de um casamento. Chegou a pensar
que eu engravidei de propósito com o mesmo objetivo, acredita?
Não diga! Ninguém pode ser tão calculista. Mas, Júlia, como foi que tudo isso aconteceu?
Acho que perdi a cabeça. Tudo aconteceu na noite em que as buscas de Lucas foram encerradas. Foi... sabe, eu estava desesperada... você sabe o que quero dizer.
Um longo e sofrido silêncio pairou na linha entre as duas irmãs.
Teve mais alguma notícia? Christina perguntou em voz baixa.
Não. Papai não consegue aceitar. E nem eu, para falar a verdade.
Eu também não. Por isso você se entregou a Rashid naquela noite? Não acha que o simples fato de procurar por ele num momento desses é sinal de que...
Não, não é nada disso! - ela repetia como um mantra como que para se convencer - Apenas perdi a cabeça,.
Christina suspirou do outro lado da linha.
Bem, então não se case com ele. Não se sinta obrigada a nada. Não estamos mais na Idade Média, Júlia. Nossos países não precisam de um contrato de casamento, precisam
de um tratado de paz.
Júlia respirou fundo.
É, você tem razão.
Não se case com quem não ama, Tiss. Já sabe o que é um casamento sem amor. Da próxima vez, escolha alguém que você ame e que ame você. Amor a gente só sente uma
vez na vida.
Obrigada, mana. Volte para a cama agora ela disse suavemente.
Você está melhor?
Estou.
Durma bem, então.
Você também. Dê um beijo em Jack.
Darei. Tiss?
O que ê?
Não deixe que a obriguem a fazer o que não quer.
Júlia ficou durante algum tempo com a mão ainda sobre o telefone, sentindo a presença de sua irmã. Imaginou-a voltando para a cama e aconchegando-se ao lado do marido
que a amava... Que sorte a dela! Em plena lua-de-mel, sem auxiliares, guarda-costas ou criados. Apenas duas pessoas se amando.
Mais uma vez as lágrimas vieram e desta vez não foram reprimidas. Júlia chorou por tudo: por Lucas, pelo seu casamento fracassado, pela criança que nasceria sem
pai... ou porque Rashid se casaria com ela por interesse.
Aos dezenove anos de idade, a princesa Júlia viu-se diante de um futuro deslumbrante. Fora aprovada nos exames para a faculdade com excelentes notas e o documentário
que havia feito sobre as famosas feiras de Montebello fora muito elogiado na prestigiosa escola de cinema de Londres. Era esse o futuro a que ela aspirava: ser cineasta.
Mas seu pai tinha outros planos. Queria que Júlia voltasse, se casasse e tivesse filhos, seguindo a velha e ultrapassada tradição raontebelliana. Tinha até um marido
para ela. O belo Luigi di Vi-tale Ferrelli, primogênito de uma das famílias mais ricas e aristocráticas de Montebello, que pertencia ao seu círculo de amigos. Os
di Vitale Ferrelli eram aliados históricos dos Sebastiani. Mas nunca houvera entre eles um casamento para estreitar os vínculos.
Júlia e Luigi ficaram noivos. Ela era uma linda princesa, ele, um milionário encantador... um filho de Montebello! Muito melhor do que um príncipe estrangeiro. Foi
um longo noivado. Luigi, dois anos mais velho que Júlia, cuidava dos negócios da família. Vivia no exterior ou viajando pelo vasto império familiar, tinha uma agenda
imprevisível. E o pai de Júlia não permitia que ela o visitasse em Londres. Ela trabalhava no palácio, mas jamais desempenharia a função de dirigente. Só esperava
que a amizade que tinha por Luigi se transformasse em amor. Metade das suas amigas era apaixonada por ele, um rapaz extremamente agradável, divertido e muito bonito.
Luigi era respeitador, mas surpreendentemente conservador. Para ele, Júlia era intocável.
Não quero forçá-la a nada. Temos todo o tempo do mundo. Quando nos casarmos, tudo se ajeitará ele disse, num dos breves encontros entre uma viagem e outra.
Mas suas amigas estavam se casando, e Júlia começou a desejar um romance em sua vida. Certa vez, numa das raras visitas de Luigi, ela resolveu tocar no assunto.
Pela primeira vez ele a beijou. Júlia abriu-se para recebê-lo, mas ele a afastou.
Não, Júlia, vamos esperar. Logo virei trabalhar aqui e então nos casaremos.
Passaram-se dois anos e Luigi não se decidia. Quando dizia que a amava, seu olhar era tão atormentado que dava medo. Ela brincava, provocava-o, tentava seduzi-lo
com a sua juventude, na esperança de derrubar as inexpugnáveis muralhas que o cercavam. Nada dava certo. Aos poucos ela acabou aceitando que Luigi gostava dela,
sim, mas não como mulher. Júlia se envergonhava de ter se exposto tanto.
Pois quando viu que o casamento não daria certo. Decidiu falar com seu pai que desfaria o noivado, mas então estourou o escândalo de sua irmã Christina. Foi publicada
uma foto dela nos jornais com os seios à mostra, vendida por um ex-namorado. O rei Marcus mandou chamar Júlia. Para proteger Christina, ele tinha marcado a data
de seu casamento. Conversara com o pai de Luigi, que resolveu trazer o jovem executivo para casa. O casamento seria no mês seguinte.
Júlia ainda tentou argumentar, mas não foi possível. Ele lhe implorou que não provocasse mais escândalos na família. Pediu-lhe como pai e como rei. Montebello pedia...
O casamento aconteceu logo depois e Júlia repetiu os votos com o coração apertado. Luigi também preferia estar bem longe dali.
Em seguida ela foi surpreendida pela total incapacidade do marido de consumar o casamento. Muito menos ingênua agora, aos vinte e dois anos, tentou ajudá-lo como
pôde, mas no fim só restaram frustração e raiva.
Não demorou para que Luigi a culpasse, pior que isso, caçoasse de seus esforços para estimulá-lo. Dizia que só acontecia com ela, citava o nome de outras, em geral
conhecidas, com quem fazia muito sucesso. Júlia aprendeu a duvidar dessas histórias e também das matérias aparentemente triviais especulando sobre a ausência de
filhos entre o casal real. Luigi tentava e novamente a culpava. Dizia aos amigos que ela era frígida e por isso não tinham filhos. E esses amigos contavam aos jornalistas.
Quando Júlia tentou protestar, ele reagiu furiosamente, acusando-a de não ser feminina, não ter sex appeal...
Júlia mergulhou no trabalho para compensar a infelicidade. Era inteligente e sabia lidar com os assuntos públicos. Seu pai contava cada vez mais com sua opinião
calma e equilibrada sobre as questões políticas. Publicamente, ela e Luigi comportavam-se como um casal normal. Ninguém imaginava que fosse tudo uma fraude. Então
veio o escândalo como uma onda gigantesca que atingiu todo mundo. Um tablóide publicou fotos de Luigi numa posição inegavelmente comprometedora com George Dimano,
o motorista de Júlia.
Isso foi a gota D' agua. Foi horrível ver Luigi exposto daquela maneira, saber quanto ele a odiava. Foi o ponto final. Júlia se recolheu, afastou-se da vida pública
e mergulhou numa depressão que a tirou de circulação por muito tempo. Levou um ano para que ela compreendesse que Luigi odiava a si mesmo. E por rejeitar a própria
sexualidade, rejeitava-a também.
Júlia perdeu todo o interesse pela vida, não tinha vontade para nada. Só se sentia bem sozinha, em sua sala de ginástica. Comia pouco, exercitava-se demais, perdeu
muito peso. Ao menos podia controlar o próprio corpo nesse terrível momento de sua vida.
Um dia ela viu surgir uma luz no final do túnel, a chance de que seus dias difíceis e monótonos iam terminar. Mas não era uma luz no fim do túnel: era Rashid Kamal
em rota de colisão.
Os caminhos do amor não são tão tranqüilos quanto pensava? Nádia perguntou a Rashid enquanto jantavam, Eles estavam sozinhos no palácio de Tamir. Hassan era
o irmão que morava longe, cuidando dos campos de petróleo.
Rashid encostou-se em sua cadeira.
Por que está dizendo isso?
Porque Nargis, a minha camareira, me contou. Os criados estão comentando que você anda esquisito, que não fala com ninguém. E eu sei que foi a Montebello.
Fui mesmo.
Está assim porque a princesa Júlia aceitou o seu pedido ou porque ela o rejeitou? Qual dos dois?
Mas que droga, Nádia!
São raras as mulheres que conseguem deixá-lo nesse estado.
Ela é uma mulher rara. Rashid viu as sobrancelhas de Nádia se erguerem.
Ah, então deve ter recusado a sua proposta.
Acertou! Eu não entendo aquela mulher. Por que está me recusando? Está grávida e os repórteres estão correndo atrás dela como lobos famintos. Será que ela não
percebe que...
Nádia começou a rir.
As mulheres nunca disseram não a você, Rashid?
Nunca pedi ninguém em casamento.
Que eu saiba, nem Júlia.
Como não? Fiz o pedido publicamente. Nádia balançou a cabeça.
Há uma diferença, maninho, entre pedir uma mulher em casamento e dizer que vai se casar com ela sem antes perguntar à interessada.
Foi você quem me incentivou, lembra-se?
A falar com papai, não com Júlia! E ainda mais sendo ela uma princesa! Por que não falou primeiro com ela?
Você sabe como é a imprensa! Será que errei tanto assim? Júlia tem sofrido muito ultimamente e eu quis acabar com esse sofrimento.
Como um príncipe encantado, não?
Rashid lembrou-se do que Júlia dissera: "Não pense que vai entrar na minha vida montado em seu cavalo branco!" '
Se eu demorasse mais tempo, alguém faria isso por mim. Não queria que Júlia soubesse que fiquei surpreso por ser apontado como o pai da criança. Seria muito pior,
não acha? Melhor ser pedida em casamento do que...
Está bem, você me convenceu! Nádia ergueu as mãos, rindo.
Rashid continuou, desanimado:
Mas ela não entendeu.
- Não diga! Acho que vou gostar dessa Júlia. Quando me lembro de todas as que choraram em meu ombro para saber o que fazer para conquistá-lo...
Isso nada tem a ver. Quero o que for melhor para todos.
Muito nobre da sua parte.
Por que está dizendo isso?
Bem, para começar, há uma certa dúvida sobre como ela engravidou.
Foi pura... loucura.
Você já está velho para isso Nádia desafiou-o,
Mas foi o que aconteceu. Júlia dará uma declaração, talvez amanhã, negando o nosso noivado. Irritado, Rashid não notou o garçom que se aproximou com o café.
Preciso impedi-la.
Nádia fez um sinal para que ele se calasse e dirigiu-se ao garçom, em árabe:
Sim, obrigada, Iqbal, quero um pouco mais de café. E como fará isso? ela perguntou, quando Iqbal saiu.
Você tem de jurar segredo, Nádia.
Eu juro.
Precisamos ficar sozinhos. Ela vai entender se não estiver rodeada pela família. - Nádia ficou interessada.
Sim, mas como?
Rashid esfregava queixo, os olhos fixos num ponto distante.
Vou raptá-la.
Júlia só melhorou quando o avião de Lucas foi definitivamente dado como desaparecido. Talvez por ter visto como a vida é preciosa. Fazia um ano que ela não vivia.
Ninguém sabia se Lucas seria encontrado. Ainda restava uma esperança à qual sua família se apegava desesperadamente. Quanto a ela, nunca mais queria ser aquela moça
reprimida e insegura que havia enfrentado a rejeição de Luigi.
Mariel de Vouvray era sua amiga desde os tempos de internato na Suíça. Quando o convite de seu casamento chegou, Júlia desprezou-o. Mas, à medida que a data se aproximava,
acabou mudando de idéia. Mariel havia encontrado seu príncipe, que Júlia não conhecia pessoalmente, mas sabia que Haroun ai Jawadi era irmão do sultão do Bagestan.
Mariel escrevera no convite:
"Será uma cerimônia íntima e discreta. Decididamente, não vamos vender a história para a Hello. Se você vier, prometo que terá privacidade."
Aceitar o convite na última hora certamente causou alguns problemas. Os convidados passariam a noite num pequeno castelo onde se daria a cerimônia, e se vazasse
a informação de que Júlia faria sua primeira aparição pública depois de um ano de reclusão, a imprensa apareceria por lá. Ela decidiu ir incógnita. Viajou discretamente
e hospedou-se num hotelzinbo simpático, onde, se a reconhecessem, não fariam muito alarde.
Na capela, sentou-se entre os convidados da noiva, mas atrás de um pilar para ficar mais escondida. Não via nada, mas também não a viam. Foi só no final da cerimônia
que ela notou que um dos convidados era Rashid Kamal.
Precisamos conversar Rashid disse em seu ouvido. Incomodada, ela se mexeu na poltrona e trocou o fone de mão.
Conversar o quê? Ela não estava preparada para isso.
Que você está esperando um filho meu e vamos nos casar. Precisamos saber o que vamos fazer antes que você negue publicamente o compromisso.
Júlia não disse nada.
Por acaso já fez isso? ele insistiu.
Não, ainda não.
Eu sei que não. Ou teriam ligado para pedir minha opinião.
E qual seria? Júlia não queria declarar uma guerra contra Rashid na mídia, mas não se esquecia de que fora ele quem criara aquela situação.
Qual poderia ser? Que lamento a sua decisão. E não acho que ela seja definitiva.
Mas é! ela retrucou quase em pânico. Farei isso hoje mesmo.
Olhe ele começou com toda a calma vamos conversar primeiro. Depois você faz o que tiver de fazer.
Ela suspirou, sentindo-se estranhamente insegura. Rashid poderia com seu charme convencê-la a se casar. O que nunca mais gostaria de fazer.
Está bem, diga logo ela o desafiou, querendo que Christina estivesse a seu lado.
Ele suspirou exasperado do outro lado da linha.
Não por telefone, Júlia! Temos de ficar frente a frente. E longe do palácio.
Ela entrou em pânico.
Onde? Vão nos reconhecer em qualquer lugar.
Eu conheço um lugar seguro, à prova de repórteres.
Está bem, o que quer fazer?
Não dê nenhuma declaração até conversarmos.
Dou-lhe vinte e quatro horas ela decretou.
É pouco. Ele suspirou.
Vinte e quatro horas Júlia repetiu.
Está bem. Avise seu pai para não abater meu helicóptero quando eu chegar Rashid recuperou o bom humor. Pegarei você dentro de uma hora. Leve um maiô.
A cerimônia foi linda. Mariel estava deslumbrante em seu vestido de modelo medieval, Haroum ai Jawadi era um jovem muito bonito que ficava todo orgulhoso quando
olhava para sua noiva, e uma onda amorosa se espalhava por entre os convidados.
Júlia não sabia por que Rashid Kamal atraíra seu olhar. Quando os convidados se ajoelharam, o pilar deixou de protegê-la e uma criança balbuciou algumas palavras.
Automaticamente, ela virou-se para a ala doa convidados do noivo.
Lá estava ele, diante de um vitral, os cabelos negros contornados pela suave luminosidade do inverno. Júlia ficou olhando com um sorriso nos lábios, até reconhecê-lo.
Então o sorriso se desfez e, envergonhada, ela baixou a cabeça. Não era a primeira vez que se encontravam socialmente, mas nunca numa cerimônia tão íntima e especial.
Não chegava a cem o número de convidados.
Se tivesse confirmado sua presença pelas vias normais, certamente Mariel teria lhe contado que Rashid estaria presente. O príncipe herdeiro de Tamir podia muito
bem estar entre os amigos do noivo. Em vez de sair rapidamente após a cerimônia, ela foi cumprimentar sua amiga.
Ah, Júlia querida, obrigada por ter vindo! Mariel estava exultante. Estou tão feliz! E você está muito melhor.
Então Mariel se lembrou.
Oh, meu Deus! exclamou em voz baixa, os olhos arregalados.
Júlia riu.
Eu já o vi.
Ele é amigo de Harry. Eu ia avisar você, mas não deu tempo.
Vou ficar bem longe dele.
Talvez não a tenha reconhecido! Você está tão diferente, Júlia, mudou totalmente de estilo.
Gostou?
Gostei! Está mais... suave. Tem um brilho nos olhos que eu não conhecia. Adorei seus cabelos! Vai deixá-los crescer?
Júlia não teve dificuldade para manter-se longe de Rashid. Os presentes a reconheceram, mas ninguém prestava atenção nela, até que uma moça ruiva, de quem Júlia
se lembrava vagamente parou a seu lado.
Vocês tiveram notícias? ela perguntou, depois de cumprimentá-la. Astrid saíra algumas vezes com Lucas alguns anos atrás.
Nenhuma disse Júlia com tristeza. Mas não perdemos a esperança.
Era mesmo o avião dele? - Júlia cerrou as sobrancelhas.
O que quer dizer?
O pedaço da fuselagem que encontraram ontem. Eles acham que... Astrid parou de falar quando viu o horror estampado no rosto de Júlia. Meu Deus, você não sabia?
Júlia segurou no braço dela. ,
Encontraram... encontraram o avião? De Lucas? Eles encontraram... ela perguntou atônita.
Ah, sinto muito por ter falado assim. Eu não... Ouvi ontem no noticiário que foi encontrado um pedaço da fuselagem e estão achando que...
Júlia já estava com o telefone na mão.
Eu saí de casa ontem. No hotel não havia televisão e a mãe nada dissera ao telefone. Desculpe, mas preciso telefonar.
Ela procurou um lugar mais afastado, mas não encontrou. Então resolveu subir as escadas que davam num hall escuro, com portas de um lado e janelas do outro. Por
fim encontrou um canto isolado para ligar para casa.
Era a linha particular de sua mãe.
Mãe? É Júlia.
Alô, querida. Está se divertindo? Onde você está?
No castelo. Mãe, alguém disse que...
Ah, Júlia!
Aquilo bastou. Sua esperança de que fosse um engano caiu por terra.
É verdade, então?
Sim, soubemos ontem à noite. Não queria que você estivesse sozinha quando recebesse a notícia, por isso não liguei. Bobagem minha pensar que poderia esperar você
chegar em casa. Sinto muito, querida. Queria que se divertisse com seus amigos. Tem tido tão pouca chance ultimamente....
Não sei os detalhes, mãe. Só sei que... Ela engoliu as lágrimas. É verdade que encontraram o avião?
Um pedaço da fuselagem. Não há nenhuma dúvida... de que é o avião de Lucas.
E ele, há algum sinal do meu irmão?
Não. Parece que o avião explodiu no ar. E o pior... as autoridades decidiram interromper as buscas.
Foi como ouvir a própria sentença de morte.
Não! Júlia protestou, e as lágrimas inundaram seus olhos.
Não! Oh, Lucas!
Anna está muito mal. Seu pai quer que as buscas continuem, mas... sabe como é, à distância não é fácil saber exatamente o que... o que... Oh, Júlia, o que vamos
fazer?
Vai sair com Rashid Kamal? o pai dela perguntou, incrédulo, Por quê? Para onde?
Anna olhava para a irmã com ar de espanto. A rainha continuou bebendo calmamente seu café. Júlia sabia que seria difícil comunicar sua decisão, mas não havia outro
jeito. Gostaria que o pai aceitasse sem muita discussão, para não deixá-la ainda mais constrangida.
Não vou sair com ele, pai. Vamos apenas almoçar em algum lugar onde possamos conversar tranqüilamente.
Onde? ele perguntou, mal-humorado.
Não sei. Onde possamos ficar a sós. Deixei que ele escolhesse.
Você perdeu o juízo, Júlia.
Era sábado e a família tomava o café da manhã. Anna disfarçou um sorriso.
Proíbo-a de ir a qualquer lugar com Kamal! Já se esqueceu do que aconteceu com seu irmão?
Pai, o senhor sabe que os Kamal não foram responsáveis, e sim os Filhos das Trevas. E sabe também que Rashid acabou com eles, lembra-se?
O rei se acalmou.
Ainda assim não é seguro...
Olhe Júlia interrompeu eu também não estou nada feliz com tudo isso. Mas, gostando ou não, Rashid Ramal é o pai do filho que estou esperando. E o pai dele,
pelo que eu soube, quer nomear meu filho seu herdeiro. Perigoso ou não, temos muita coisa para conversar. E como não quero que esses assuntos vazem para a imprensa,
vamos a algum lugar discreto.
Seu argumento venceu.
As hélices do helicóptero desmancharam o penteado de Júlia e ergueram a saia de seu vestido amarelo. Ela segurou o chapéu, Rashid notou o vestido apertado na cintura,
sinal de que a criança se desenvolvia dentro dela. Quando as hélices pararam de girar, ela embarcou e sentou-se no banco traseiro.
Olá! ele a cumprimentou.
Júlia não esperava que ele próprio estivesse pilotando e começou a ficar nervosa.
Olá!
Consegue subir? ele perguntou com tanta tranqüilidade que os temores dela desapareceram. "Ele não vai me assassinar a sangue-frio", pensou.
Rashid estendeu a mão para ajudá-la, mas Júlia não aceitou, Rashid conseguiu ajudá-la a prender o cinto de segurança e mostrou-lhe o fone de ouvido. Júlia tirou
o chapéu e pôs o fone na cabeça. Em seguida, o helicóptero decotou suavemente.
Trouxe maio? Rashid falou no fone de ouvido.
Ouvir a voz dele tão próxima lembrou-lhe a última vez em que estiveram juntos.
Trouxe respondeu, erguendo a sacola.
Ela pós a sacola entre os pés e olhou para fora; eles sobrevoavam o mar e seguiam para o norte. Então o tal lugar discreto não ficava nas ilhas de Tamir. Talvez
a estivesse levando para seu haras em Sira.
Vamos para um iate? ela perguntou, quase para ela mesma, esquecendo-se de que o fone de ouvido possuía também um microfone.
Não, para uma ilha.
Hha? Rashid, eu não trouxe passaporte. Ele riu.
Não se preocupe, Júlia. Outra vez, a mesma voz íntima e sedutora soou em seus ouvidos. Recline a poltrona e relaxe.
CAPÍTULO III
Júlia desligou o telefone e caiu em prantos, pedindo a Deus para que seu irmão estivesse vivo. Lucas, oh, Lucas... Por favor, meu Deus, não permita que ele tenha
morrido...
Ela pensou que estivesse preparada para o pior, mas estava enganada. Encolhida num canto do quarto, chorando e soluçando, só notou que havia alguém ali quando sentiu
uma mão em seu ombro.
Por favor, vá embora ela implorou, escondendo o rosto.
Não vou, não. Não a deixarei assim. Venha. Era uma voz masculina, firme, e talvez por sentir-se tão perdida sem Lucas, que sempre fora sua âncora, precisasse
de conforto.
O homem ajudou-a a levantar-se. Ela não resistiu. Encostando a cabeça no peito forte, deixou que ele afagasse gentilmente seus cabelos.
Meu irmão, meu irmão... soluçava.
Júlia sentiu seus joelhos fraquejarem. Ele a amparou, erguendo-a nos braços como seu pai fazia quando era criança. Então os dois seguiram pelo corredor e pararam
diante de uma porta que se abria para um quarto sob a penumbra. Ele a deitou numa cama macia, e quando ia se levantar, ela o segurou.
Abrace-me implorou. Só mais um pouquinho. - Primeiro ele suspirou, depois enrijeceu, mas logo em seguida relaxou. O homem sentou-se e se debruçou sobre ela.
Os braços a envolveram, as mãos acariciando os cabelos, até Júlia começar a relaxar.
Eu adoro meu irmão explicou. A vida inteira eu... Ela não encontrava palavras para traduzir seu amor por Lucas.
Fale, estou ouvindo.
Ela não reconheceu a voz e talvez por isso sentisse uma certa liberdade. Estava com um estranho. Não sabia quem ele era e nem ele a conhecia. Por isso não precisaria
fingir.
Mesmo que estivesse cometendo uma loucura, que fosse reconhecida quando a luz se acendesse, não importava. Ela enxugou as lágrimas e começou a falar de Lucas, seu
irmão e seu melhor amigo, de como se arrependia por terem ficado tão longe um do outro no último ano...
Eles interromperam as buscas... Por que fizeram isso? Lucas deve estar em algum lugar, com frio, ferido... faz tanto frio naquelas montanhas.... Ela começou
a soluçar. Não quero pensar no que ele possa estar sofrendo... isso sem falar nos animais selvagens! Ursos, linces, lobos... Será que os lobos o atacaram?
Eu não sei.
Ele é meu irmão, meu único irmão... E está lá, esperando que alguém chegue e não estão mais está procurando por ele!
Aos poucos ela foi se acalmando naquela cama desconhecida, nos braços de um estranho. Ele a acariciava e murmurava palavras de conforto em seu ouvido.
Júlia suspirou longamente, sentindo-se melhor.
Obrigada murmurou, os lábios no pescoço dele. Acho que... estou melhor agora!
Ele afastou a cabeça para olhar para ela.
Tem certeza? ele sussurrou.
Estavam tão próximos um do outro que Júlia estremeceu. Então assentiu, o rosto ainda molhado. Foi a coisa mais natural do mundo quando ele inclinou a cabeça e buscou
seus lábios. Ela deixou-se levar por uma deliciosa onda de prazer que inundou seu corpo e abriu os lábios em obediência ao delicado comando da língua que se insinuava.
Quando os braços dela o envolveram, o mundo desapareceu. Subitamente o prazer e a expectativa a entorpeceram.
Ele apertou-a em seus braços e os lábios se tornaram mais exigentes, mais famintos. Júlia vibrava sob uma ânsia jamais imaginada, e a cada expressão do desejo a
paixão se elevava a níveis nunca antes experimentados. Por fim ela conhecia a que era ser desejada por um homem.
Então, de repente, ele afastou os lábios e respirou ruidosamente, como que buscando se acalmar.
Desculpe sussurrou.
Tudo bem ela o tranqüilizou.
E melhor parar.
Por quê? ela perguntou em voz baixa.
Ele virou a cabeça e esticou a mão para acender o abajur. Um facho de luz suave e dourada incidiu em seu bracelete "da sorte".
Um abajur, uma cama de dossel, um quarto do século passado. Uma caixa de lenços de papel sobre a mesa-de-cabeceira. A mão morena ergueu a jarra de água e encheu
um copo.
Beba!
Júlia pegou o copo, olhando por entre os fios de cabelo, e as lágrimas que embaçavam sua visão. Então recuou.
Oh, meu Deus!
Parece que viu o demônio! Ele comentou com ironia.
Rashid Kamal!
Eu sabia que a luz acesa a faria ver tudo sob um outro ângulo.
Ele continuou com o copo na mão.
Por que... por que... você... ela balbuciou.
Porque eu não abandonaria ninguém que estivesse sofrendo. Agora beba... não é veneno. Quer que eu beba primeiro? Ele deu um gole e ofereceu-lhe o copo.
De repente, Júlia sentiu uma forte dor de cabeça, conseqüência das lágrimas. Seu rosto estava quente e pegajoso, os cabelos colados na pele. Ela afastou o cabelo
do rosto e obedientemente começou a beber.
Enquanto isso, Rashid foi até um o lavabo contíguo e abriu a torneira. Em seguida, voltou, ergueu o rosto dela e limpou-o com uma toalha úmida.
Obrigada Júlia tentou sorrir, mas os lábios tremiam.
Esse sorriso quer dizer que está tudo bem, não? ele observou, levando a toalha de volta para o banheiro.
De repente, ela sentiu-se dividida.
Acho melhor voltar para a festa murmurou. Minha bolsa...
Está aqui. Ele aproximou-se da cama ao mesmo tempo em que Júlia viu- o celular ao lado de seus pés. Os dois estenderam a mão para pegá-lo. Ela sentiu o aroma
da colônia pós-barba. Rashid olhou para os lábios dela, que instintivamente ela umedeceu. Ele deixou que ela pegasse a bolsa.
Preciso me recompor. Pode me dar licença?
É claro.
Quando voltou ao quarto, Rashid guardava uma camisa dobrada na maleta. Júlia sentiu o coração disparar. O olhar de Rashid a encontrou. Ela gelou. O ambiente continuava
carregado.
Obrigada por...
Este é meu quarto... ele disse com a voz controlada. Já estou saindo. Se quiser ficar...
Júlia não queria. Também não queria sair. Afinal, era Rashid Kamal.
Obrigada ela sussurrou, lutando consigo mesma. Ah mas...
Ela parou entre ele e um antigo armário de mogno, onde sua roupas estavam penduradas. Rashid levou as mãos para os braços dela. Mais tarde, lembrando-se disso, Júlia
quase morreu de vergonha, pois achava que ele só pretendia tirá-la do caminho. Naquele momento lhe pareceu que ele a tocara movido por um desejo incontrolável.
Júlia pronunciou o nome dele e jogou-se em seus braços, e o que quer que ele estivesse pretendendo, não foi feito. Os braços de Rashid a rodearam, firmes e fortes,
e sua boca apossou-se dos lábios famintos que se ofereciam.
Chegamos Rashid murmurou em seu ouvido.
Júlia acordou muito bem-disposta depois de algumas horas de sono. Ela olhou pela janela e sorriu ao ver que estavam descendo numa pequena ilha. Era uma ilha longa
e estreita, com praias de areia muito branca cercadas por rochas e cavernas e um espetacular rochedo atrás delas. Uma das extremidades da ilha, numa baia bem protegida,
estava a casa. A oeste havia uma mata de pinheiros e mais perto da casa um pomar de árvores frutíferas e oliveiras. Por toda parte espalhavam-se canteiros floridos.
Júlia avistou o terraço e o telhado de terracota em meio ao intenso colorido de flores e plantas, e logo em seguida o helicóptero aterrissou numa área aberta.
Júlia saiu do helicóptero e ficou ouvindo os barulhos ao redor. Ondas tranqüilas lavavam a areia branca, o vento soprava nas folhas e nas flores, os pássaros cantavam.
E mais nada.
Venha disse Rashid.
Ele passou o braço na cintura dela e conduziu-a por entre laranjeiras, oliveiras e limoeiros, depois por um corredor de arbustos floridos antes de entrar no amplo
terraço que Julia vira do alto.
Rashid, que não desviava os olhos dela, notou uma tensão quase física, sinal claro da pressão que vinha sofrendo. Também não fora nada fácil enfrentar seu pai quando
contou que era o pai da criança.
Júlia voltou-se sorrindo.
Quem mais está aqui?
Ninguém. Estamos sós na ilha. - Ela começou a rir.
É mesmo? Nem uma só alma? Nenhum guarda? Nem mesmo um garçom?
Ele riu também e balançou a cabeça negativamente. Ninguém além deles dois. Ninguém para chamá-la de Sua Alteza Real. Ela abriu um sorriso amplo, curvando os lábios
numa tal felicidade que os possíveis temores de Rashid se evaporaram no ar.
Onde estamos? Que lugar é este?
- Estamos perto de Dodecanese. Esta ilha é minha. Eu a comprei. Que eu saiba, ninguém sabe disso. Chama-se Erimos.
O que significa isso? O Paraíso na Terra? Júlia riu.
Mais ou menos. Em grego quer dizer selvagem. Mas também sugere solidão.
Júlia deixou o chapéu e a bolsa na mesinha sob a pérgola e seguiu ao lado de Rashid para a praia. Um navio passava ao largo na Unha do horizonte.
Tem certeza de que não vai aparecer ninguém com uma lente-objetiva?
Esta é uma pequena ilha no meio do nada. Mesmo assim há um barco patrulhando a área para impedir a aproximação de alguém num raio de duas milhas, seja por engano
ou com más intenções.
Júlia suspirou, jogando a tensão na brisa suave.
Não vou mais pensar nisso. Só quero desfrutar estas poucas horas de paz e solidão maravilhosas, preciosas, quase inacreditáveis.
Rashid olhou-a de um modo que ela não entendeu, e em seguida propôs:
Vamos comer alguma coisa?
E quem vai fazer?
Você não sabe cozinhar, Júlia?
Não! Quer dizer... sei, mas muito mal!
Então eu mesmo vou fazer a nossa comida ele disse calmamente. Venha.
A casa não era grande. Do terraço eles entraram num pequeno hall. De um lado e do outro havia duas portas que davam para outras salas. Uma escada larga levava ao
andar de cima.
Quer conhecer a casa enquanto cuido do almoço? ele perguntou.
Júlia concordou. Rashid abriu a porta que ficava ao lado da escada.
Fique à vontade ofereceu, e saiu pela outra.
Quando ela retornou à cozinha, Rashid preparava uma bandeja com pratos e talheres.
Que lugar maravilhoso! ela exclamou.
Que bom que você gostou ele disse. Onde quer comer, no terraço ou na sala de jantar?
Ah, no terraço ela respondeu imediatamente. Essa brisa é deliciosa...
Então leve esta bandeja e ponha a mesa lá fora Rashi pediu com um sorriso. ,
Júlia limpou a mesinha de pérgula e distribuiu pratos e talheres. Enquanto trabalhava, murmurava vima melodia, sem se perguntar o que estava sentindo. Por fim, admirou
a mesa posta pois raramente fazia uma coisa tão comum. Certamente não o fez durante o seu casamento. Luigi não gostava de refeições íntimas. Quando Rashid saiu,
empurrando um carrinho com as travessas de comida, a jarra estava no centro da mesa com algumas flores. Ele olhou para a jarra, depois para Júlia e aprovou.
Muito bonito.
Júlia ficou orgulhosa. Não foi a mesma coisa que receber os cumprimentos de seu pai por uma recepção perfeita ou pela maneira como conduzira a conversa com uma pessoa
difícil... mas não sabia dizer por quê. Talvez por ter feito algo com as próprias mãos e o coração em vez de com a cabeça e as palavras.
CAPÍTULO IV
Eles se sentaram à mesa e Rashid começou a servir a refeição que havia preparado. Era tudo muito simples, saladas variadas, queijo, ervas e pão. Só então Júlia
se deu conta de que estava com fome.
Foi você quem construiu esta casa? ela perguntou, entre uma garfada e outra.
Não, ela já existia quando comprei a ilha. Pertencia a um escritor grego bastante conhecido, que vinha aqui para escrever por quarenta anos. Quando a propriedade
foi posta à venda após sua morte, valia muito mais do que quando ele a comprou. A ilha tem muitas nascentes, uma grande vantagem que nem todas essas ilhotas podem
oferecer.
Você nunca teve vontade de demolir tudo e construir outra casa mais luxuosa? Muita gente faria isso.
Não. Venho aqui para descansar e não quero um exército de criados circulando por aí. A casa é muito bem construída e tem um astral maravilhoso.
Júlia entendeu o que ele quis dizer; a construção visava à comodidade, nada nela destoava ou parecia fora de lugar. Ela olhou ao redor e suspirou:
Não seria maravilhoso poder viver aqui para sempre? Às vezes você não pensa em jogar tudo para o alto e ser uma pessoa comum?
Rashid olhou-a com ar sério.
Às vezes. Mas o destino me reservou um tipo de trabalho do qual não posso me esquivar. Não dá para simplesmente dar as costas ao meu país e ao meu povo. Com meu
irmão Hassan é diferente. Ele está livre de grande parte dos deveres e das obrigações dos que nasceram para governar. Só subirá ao trono se eu morrer sem deixar
herdeiros.
Júlia, que comia tranquilamente, parou de repente de mastigar. Então observou:
Assim como eu e minha irmã Christina. Uma tensão na altura do estômago era um aviso de que esteva entrando em terreno perigoso.
Mas Rashid sabia que ainda não era a hora.
Eu viveria muito bem neste lugar... pelo menos no verão. O pomar dá muita fruta e há também uma horta, que precisa ser regada diariamente. O que significa que
eu preciso de alguém para fazer isso.
Já pensou em contratar alguém para morar aqui e cuidar dei tudo?
Sim, há muita gente que necessita de períodos de isolamento. Como os escritores e os religiosos, por exemplo. Mas eles estariam aqui quando eu viesse. Talvez um
dia eu venha a fazer isso, mas no momento não.
De onde veio tudo isso que estamos comendo? De sua horta?
Veio conosco no helicóptero.
Rashid devia estar pensando que tantas perguntes eram uma desculpa para não entrar no assunto delicado que estavam lá para; discutir. Mas não dava sinais disso
e muito menos de impaciência.
A conversa prosseguiu sem tocar no assunto que os levara àquele lugar.
Por fim, Rashid levantou-se e estendeu-lhe a mão.
Venha comigo convidou-a delicadamente, num tom que não admitia recusa.
Júlia obedeceu sem dizer nada.
Vamos andar um pouco.
Rashid pegou o chapéu de Julia e entregou-o a ela. Eles saíram do terraço e foram para a prainha. O sol ainda esteva quente, mas a brisa já estava bem mais fresca.
A água deve estar uma delícia ela comentou.
Era um lugar perfeito: uma pequena baía banhada por um mar cristalino cujas ondas quebravam suavemente na areia. Júlia tirou as sandálias e pisou na água. Uma onda
mais forte obrigou-a a recolher rapidamente a saia para não molhar. Sempre rindo, ela ergueu um pouco mais a saia e entrou na água tépida. A areia branca cedeu e
a desequilibrou. Uma onda inesperada acabou por derrubá-la. Ela ainda tentava se levantar no turbilhão da onda quando a mão de Rashid apareceu para ajudá-la. Júlia
alcançou-a, segurou-se com força e levantou-se, com água escorrendo pelo rosto, o vestido colado ao corpo.
Os sapatos de lona de Rashid ficaram todos molhados, bem como sua calça branca. O chapéu de Júlia rolou pela areia, levado pelo vento.
Minha mãe costumava dizer: "Você começou, agora tem que acabar" disse Júlia, dando um empurrão em Rashid.
Mas seus pés estavam firmes no chão e foi como empurrar uma rocha. Rashid sorriu e balançou a cabeça. Ele a abraçou.
Júlia estava rindo. Os cantos dos lábios curvados eram uma provocação. Os cílios e os cabelos molhados reluziam como gotas de diamante. O vestido colava-se aos seios
pequenos, porém cheios, seios que Rashid já provara, mas não tanto quanto gostaria. O tecido molhado sobre os quadris e as coxas acentuava suas curvas femininas.
Fazia muito tempo que Rashid esperava por aquela chance. Nos meses que passou fora não parou de pensar em Júlia um só momento. Muitas vezes sonhara com ela. Era
quase uma obsessão. E agora a tinha em seus braços.
Você quer me derrubar, Júlia? ele sussurrou no ouvido dela, a voz rouca e apaixonada quando deveria ser gentil Pois já derrubou.
O tempo parou. As ondas levavam a areia de sob os pés e quebravam nas pedras, antes de serem sugadas pela imensidão do mar. A areia cedeu sob os pés de Júlia è uma
conchinha passou raspando na pele delicada do calcanhar. Rashid a abraçava. Ele a olhava no fundo dos olhos como se quisesse arrancar-lhe um segredo. Não queria
magoá-la, mas precisava saber.
Os lábios de Júlia se abriram num sorriso tímido, os cantos da boca levemente erguidos. Rashid enroscou os dedos nos fios molhados e embaraçados do cabelo.
Você sonhava com isto? ele perguntou com a voz rouca.
Com o quê?
Com meus braços ao redor de seu corpo, com meus beijos, com todas as loucuras que vivemos juntos.
Eu... Júlia não sabia o que dizer.
Diga. Eu preciso ouvir.
Ela não apenas sonhara como revivera o primeiro encontro vezes sem conta, dormindo ou acordada. As carícias de Rashid em seu corpo, seus beijos... mas como ia dizer
isso a ele?
Eu sonhei com você ele soprou no ouvido dela com sua voz, seus olhos, seu perfume... seu corpo oferecendo-se a mim como uma rosa se abrindo. Warda, a rosa
perfeita. Perfeição que só conheci quando entrei dentro dele.
Júlia continuou em silêncio.
Houve momentos... em minha missão, que o perigo invisível e assustador estava por toda parte. Podíamos pressentir o perigo, mas não o víamos. Foram os momentos
mais difíceis. Quando o perigo pode ser visto, ser tocado, é fácil. Enfrente-lo é fácil. Mas a espera, a expectativa, o cheiro do perigo, todos os poros do corpo
em alerta para captar a informação, essa é a parte mais difícil. - Júlia murmurou algo incompreensível. E eu sentia seu perfume. Sentia o seu perfume no ar. O
seu corpo. O cheiro de nossos corpos abraçados...
Dos cabelos, a mão de Rashid desceu pelas costas, pelo vestido ainda seco.
Mesmo que não me lembrasse de seu rosto, de sua voz... seu cheiro estava em mim.
O olhar faminto de Rashid foi se aproximando dos lábios de Júlia. Um beijo doce inundou cada célula, cada poro, e mais uma vez Júlia sentiu-se derreter. Sua mão
firme apalpava, apertava, como se quisesse memorizar cada curva. Encostada no peito de Rashid, Julia olhava dentro dos olhos dele enquanto seus cabelos eram acariciados.
Eles sorriam um para o outro. Sentiam-se seguros para esquecer quem eram, ao menos por um momento.
Então uma onda maior ergueu o vestido de Júlia. Junto com a água, Rashid subiu a mão pela coxa, os quadris, até chegar à cintura. Com a outra aproximou os lábios
dela dos seus. Uma boca macia, ansiosa, abriu-se para recebê-lo com tal paixão que arrancou dele um gemido, seus lábios famintos tomaram os dela com a mesma volúpia.
Júlia afastou-se, assustada.
Rashid ela sussurrou em protesto.
Quero fazer amor com você, Júlia. Quero estar dentro de você mais uma vez. Diga-me que também quer. Diga que se lembra de meus carinhos.
Ela nada disse, por temer a verdade, por temer a mentira. Passando a língua pelos lábios quentes, ela ergueu os olhos para ele. Rashid abaixou a cabeça e depositou
um beijo suave na curva do pescoço. Ela estremeceu.
Isso é uma resposta? Devo ouvir seu corpo e não as palavras? 0 olhar profundo queimava como fogo. Júlía fechou os olhos, e Rashid sorriu.
Tire isto. Quero ver você ele ordenou, puxando o vestido pelos braços e a cabeça, deixando Júlia apenas de calcinha.
A pele morena destacava os seios claros. Rashid afastou-se um pouco para admirar as curvas perfeitas, explorando-as com movimentos lentos e firmes: as pernas longas
e roliças, os quadris arredondados, a leve cavidade do abdómen, os seios firmes, os braços graciosos, o pescoço longo, as orelhas perfeitas... Com o polegar, ele
brincava nos lábios úmidos enquanto os outros dedos subiam pela face, a têmpora, contornavam a sobrancelha e finalmente se perdiam nos cabelos.
Júlia estava deitada de lado na areia, a água correndo por baixo de seu corpo, misturando-se às carícias de Rashid, como se ambos estivessem combinados. Os olhos
e aa mãos de Rashid lambiam seu corpo como labaredas. Então uma das mãos penetrou por entre as pernas e fechou-se com firmeza sobre o monte ali existente. Imediatamente
Júlia arqueou as costas oferecendo-se languidamente.
Um poeta de Tamir chamou isto de "um sache de aromas em trouxa de seda" ele sussurrou, tocando-a com uma pressão enlouquecedora.
Nenhum outro homem jamais provou destes aromas, não é?
Júlia mal podia respirar.
Não é mesmo? ele insistiu, abraçando-a possessivamente, o polegar traçando espirais de sensações. Diga, Júlia.
Sim ela sussurrou.
Ela ardia e derretia-se por ele. Rashid tirou as próprias roupas e, sobre o corpo molhado brilhando ao sol, ele a ergueu para torná-la sua.
Depois do ato de amor eles foram nadar. Era a primeira vez que Júlia nadava nua, uma liberdade que a embriagava. Eles saíram da água e recolheram as roupas na areia.
Rashid abraçou-a pela cintura e foram para a casa. O sol já se punha no horizonte.
Hora de jantar ele murmurou, no momento em que Júlia disse "Já é hora de voltar!"
Júlia não queria que aquele dia terminasse. Ali, naquela ilha, ela não era princesa nem ele o inimigo. Quando regressassem ao mundo, tudo seria diferente.
Vamos voar à noite? ela perguntou-
Em meia hora já estará escuro. Não será possível.
Então ela relaxou. Rashid subiu as escadas para o quarto e Júlia o seguiu. Depois de uma rápida chuveirada, ela enrolou-se numa toalha e entrou no quarto. Rashid
estava nu diante da janela, assistindo ao pôr-do-sol. O quarto era iluminado por um lampião ao lado da cama.
Júlia parou e ficou olhando-o: as costas largas faziam uma curva acentuada sobre as nádegas musculosas. As pernas eram fortes, os pés firmemente plantados no chão.
A pele brilhava à luz do lampião.
Sua vez ela disse suavemente.
Rashid sorriu e foi para o banheiro.
Aquele era um tipo de intimidade que Júlia nunca partilhara com Luigi. Ele nunca tirara a roupa na sua frente. Nunca demonstrara qualquer interesse em sua nudez.
Nas poucas vezes em que se despira diante dele, foi como se estivesse invisível. Júlia não sabia que isso a magoara tanto, até agora, quando Rashid voltou do banheiro
e olhou-a de cima a baixo com um desejo evidente. Seus olhos queimavam como dois carvões incandescentes.
Ele abriu o armário e tirou de dentro um kaftan branco, que estendeu sobre a cama.
Vista isto ele disse ou não iremos jantar tão cedo. - Sob a ténue iluminação do lampião, ele notou lágrimas nos olhos de Júlia.
O que foi?
Ela balançou a cabeça e se vestiu.
Nada. Foi só um pensamento.
Vestiu outro kaftan, e por nenhum momento deixou de observá-la.
Que pensamento? Está arrependida? - Júlia sorriu e balançou a cabeça.
É claro que não.
Ele se aproximou. Ela virou-se para a janela. O sol desaparecia no horizonte. Um pássaro desconhecido cantava. As ondas do mar quebravam nas pedras.
E que estou me lembrando dos tempos difíceis, só isso. - Com a voz embargada, ela tentou resumir cinco anos de humilhação e sofrimento em poucas frases.
Só você me faz sentir desejada. Você me deseja, Rashid? Ou está apenas... ela ia dizer "cumprindo o seu dever", como Luigi lhe dissera um dia, mas não teve tempo.
Ele a tomou nos braços e deu-lhe um longo beijo.
Se a desejo? ele perguntou, afastando o rosto. Em seguida erguea-a no colo e levou-a para a cama. Você é capaz de fazer um homem esquecer do próprio nome.
Júlia não saberia dizer quanto tempo dormiu. O pavio do lampião estava muito baixo e um delicioso cheiro de comida envolvia o quarto. Ela espreguiçou-se sob o lençol.
Sentia-se completa. Durante todos os anos em que estivera casada, fora obrigada a reprimir a própria sexualidade para continuar viva. Chegou a acreditar que o celibato
seria permanente.
Um sorriso curvou seus lábios. Bem, não tinha sido permanente. Apenas fechara essa porta de sua vida. E Rashid a abrira com um simples toque de suas experientes
mãos...
Que cheiro delicioso! ela exclamou, entrando na cozinha.
De um lado da cozinha havia uma grelha acesa sobre a qual alguns legumes assavam, à moda grega. Rashid cuidava deles, de avental branco sobre o kaftan. Naquele momento
ele espalhou algumas ervas sobre os legumes e um aroma delicioso espalhou-ae no ar. Limpando as mãos no avental, ele perguntou:
Está com fome?
Júlia corou, mas não desviou o olhar.
Estou faminta.
Ótimo. Ponha a mesa. Está tudo naquele armário.
Tudo isso era muito novo para ela. Não apenas a ausência dos criados, mas a sensação de realizar pequenas tarefas em conjunto. Talvez se fossem feitas diariamente
acabassem por perder a importância que tinham agora.
Júlia encontrou dois globos de vidro com velas e levou-os para a mesa, para iluminá-la. O barulho do mar ficava mais forte à noite. Ela parou para ouvir e olhar
as estrelas. Não havia lua. O céu parecia diferente naquele lugar. No palácio de San Sebastian as luzes ficavam sempre acesas, música tocando, gente circulando.
Muita gente.
Rashid chegou trazendo uma bandeja com a comida extremamente cheirosa. Pôs as travessas sobre a mesa, entrou outra vez para a cozinha e voltou com uma lanterna.
A luz era muito mais forte que as chamas das velaa, e ele a pendurou bem distante da mesa.
Para que isso? Júlia perguntou.
E para atrair os insetos. Nós jantamos à luz de velas enquanto eles se divertem com a luz mais forte.
Júlia riu. Depois desse dia, podia acontecer qualquer coisa em sua vida que ela teria algo maravilhoso para se lembrar. Quando eles se sentaram para comer, ela perguntou:
Quando vamos voltar?
Vamos ficar esta noite. Eu me esqueci de que não haveria lua. E está muito escuro. O helicóptero poderia voar à noite, mas...
Ela não discutiu. Havia alguns iates ancorados que provavelmente seriam equipados com heliporto, e ninguém mais estaria sóbrio a uma hora dessas. Acidentes costumam
acontecer durante a noite.
Está bem ela concordou e o deixou aliviado. Só tenho que telefonar para meu pai.
Ele assentiu e em seguida cortou o peixe grelhado que parecia delicioso. Júlia comeu com gosto. Pelo jeito, o sexo abria o apetite.
É apenas o ar deste lugar ou você é um cozinheiro de mãoo cheia? ela perguntou. Há muito tempo não como tão bem.
O olhar de Rashid pousou sobre ela.
É que despertamos o nosso apetite.
Júlia passou a língua pelos lábios e tentou disfarçar o leve rubor provocado pela resposta. O barulho do mar misturava-se à brisa que soprava na folhagem. As estrelas
refletiam-se na água e faziam sua própria música. Pequenas criaturas dançavam pela vegetação.
Eles falavam em voz baixa em meio à intimidade criada pela luz de velas. Mais tarde, Júlia não se lembraria de uma única palavra do que haviam conversado. Estava
completamente enfetiçada pela magia daquele momento.
Rashid contou-lhe histórias, mas também ouviu. O mais perto que chegaram de um assunto desagradável foi quando ela contou que Christina havia passado mel no chapéu
do embaixador inglês.
Meu pai ficou furioso Júlia lembrou em meio a muita risada Nunca o tinha visto daquele jeito até... ela parou de repente!
Até você revelar que estava grávida? Rashid adiantou. Júlia não respondeu. Não queria que temas polémicos pudessem estragar a melhor de suas noites. Esse momento
era seu. Não havia ninguém para vê-la, ninguém para recordar. Apenas os dois. Ela não era a princesa Júlia Sebastiani di Vitale Ferrelli. Era simplesmente Júlia.
Uma mulher que passaria a noite com seu amor. Provavelmente havia milhares de mulheres fazendo a mesma coisa naquele momento, em várias partes do mundo, mas nenhuma
mais feliz do que ela se sentia agora.
Quando terminaram de comer, ela disse num impulso:
Vamos até a praia? Rashid concordou imediatamente.
A baía não ficava longe. Ela ergueu o kaftan e deixou a água correr em seus pés, enquanto erguia a cabeça para o céu forrado de estrelas cristalinas.
Em seu peito havia uma sensação, estranha, desconhecida, que logo foi identificada como felicidade. Depois de um noivado de dois anos, seguidos de cinco anos de
um casamento infeliz, mais um ano para o divórcio e seis meses com Lucas desaparecido, ela experimentava uma coisa da qual já havia se esquecido. Na verdade, quase
se esquecera de que existia.
Seu corpo estava vivo. Ela esticou os braços, ergueu as palmas para o alto para alcançar o céu.
Então é isto que chamam de liberdade murmurou.
É a primeira vez que você a sente? Rashid perguntou.
Não... mais ou menos. Senti quando fui aceita na escola de cinema em Londres. Eu tinha dezenove anos e tinha o mundo aos meus pés.
Mas Júlia não estava disposta a permitir que sua noite magica fosse destruída pela discussão que o tema poderia gerar.
Vamos entrar, Rashid. Estou cansada.
Está bem ele concordou, meio a contragosto.
No céu, um satélite cruzou o firmamento de um lado ao outro. Um navio iluminado passou no horizonte, onde céu e mar se misturavam. A luz do terraço funcionou como
um farol guiando-os.
CAPÍTULO V
Eles tomaram o desjejum no terraço. A manhã estava linda. Depois de lavar os pratos, Rashid pôs o chapéu na cabeça de Júlia e os dois foram até outra praia, um pouco
maior que a outra, e lá eles andaram descalços na beira do mar.
Isto é um paraíso Júlia murmurou.
Podemos vir aqui sempre que quisermos. Meu pai depende cada vez mais de mim, mas estamos muito perto para voltar quando for necessário. Já fiquei aqui trabalhando
algumas vezes. Posso fazer outras.
Júlia virou-se de repente.
O que está dizendo? Rashid, isto não pode continuar. Não podemos nos ver mais.
O quê? Ele balançou a cabeça, tentando entender.
Ela baixou os olhos. Não queria entrar naquela discussão. Não naquele momento. Mas Rashid não devia pensar que algo fosse possível entre eles. O sexo não tinha mudado
nada.
"Mentirosa!", uma voz sussurrou em seu ouvido. "Mudou, sim."
Que horas são? Júlia perguntou bruscamente. Rashid deu de ombros.
Por volta de dez, eu acho.
Eu tinha um compromisso esta manhã. Preciso telefonar.
Eu já falei com seu pai. - Júlia foi pega de surpresa.
Falou? E o que você disse?
Que tínhamos muita coisa para conversar e que não voltaríamos imediatamente.
Como assim? Vamos voltar hoje mesmo.
Pode ser. Isso depende.
Por alguma razão Júlia preferia não discutir aquele assunto.
– E o que meu pai disse?
Eu sou o pai dessa criança, Júlia Rashid lembrou-a. - Nós somos dois adultos.
E daí?
E daí que você não sairá desta ilha até aceitar se casar comigo.
Júlia ergueu o roato para o sol.
Você deve estar brincando!
Não estou, não.
Vai me manter presa aqui até eu concordar? Agora sou sua refém? Sua prisioneira? Foi por isso que me trouxe aqui? Júlia estava amedrontada.
Não exatamente. Achei que nos entenderíamos melhor se você estivesse longe de seus conselheiros.
Não diga!
Achei que se você pensasse com calma, veria que o casamento é a melhor saída para nós.
Ninguém me convencerá disso. Ficou maluco? - Ele não disse nada.
Quanto tempo pretende manter-me aqui, contra a minha vontade?
Não é nada disso, Júlia...
É claro que é ela reagiu, furiosa. Quanto tempo? Responda à minha pergunta.
O chapéu de palha amarrado com um lenço escorregou da cabeça de Júlia e ficou pendurado nas costas.
Quero conversar como homem e mulher, sem ficar lembrando do passado. Não acha que já é hora de esquecer essa rixa ridícula entre nossas famílias?
Quanto tempo? ela insistiu. Rashid ficou sério.
Até você concordar, pelo menos, em não negar o nosso compromisso publicamente.
Você quer que eu faça o que não quero. Primeiro, porque não tenho vontade, e segundo, por uma questão de princípio não vou concordar. Até quando vai continuar
insistindo? Quer me matar de fome até eu ceder? Quer me bater? Ou quer me manter isolada até eu enlouquecer?
Pare de dizer bobagens, Júlia. Você sabe que não é nada disso ele reagiu. Por que está fazendo isso?
O chapéu finalmente se soltou e saiu rolando pela areia, até ser apanhado por uma onda e levado para o mar.
Você está esperando um filho meu. Acha que não tenho nada a ver com isso?
0 que eu acho é que você devia ser mais civilizado.
Seria impossível conversar em Montebello. Trouxe você por ser um território neutro.
Neutro?
Você vai ser minha esposa, Júlia Rashid afirmou.
Nunca! ela rebateu.
Por que resiste à única solução possível para o nosso problema?
Que problema?
Os olhos dele ganharam um brilho perigoso.
A sua gravidez!
E quem disse que minha gravidez é um problema? ela o desafiou.
Você é uma princesa. Não deve ter filhos fora do casamento.
Em que século você vive, Rashid? O mundo inteiro sabe que estou grávida. Ninguém vai se surpreender quando o bebê nascer!
Toda criança precisa de um pai. E você precisa de um marido.
Júlia ficou furiosa.
Eu já disse que não vou permitir que você entre na minha vida montado em seu cavalo branco! Posso viver muito bem sem você, obrigada!
Por que está fazendo isso?
Nós somos inimigos! ela gritou, enraivecida. Minha gravidez não muda isso.
Mais é aí que você se engana. Não é uma gravidez qualquer, Júlia. É meu filho. E isso muda tudo, porque os filhos mudam a vida das pessoas. Eu não sou seu inimigo,
por mais absurdas e antiquadas que sejam as pessoas que vivem no seu palácio. Ou você acha que vou permitir que transmitam a meu filho um preconceito ignorante contra
a família do pai dele?
O rosto de Júlia estava muito pálido. Ela agia como uma mulher forte, de defesas sólidas, mas só disfarçava uma fragilidade básica. Rashid sentiu uma vontade imensa
de protegê-la ao mesmo tempo que ela só queria proteger-se dele.
Venha, o sol está muito forte disse Rashid. Onde está seu chapéu? Vamos para a sombra.
Só então Júlia levou a mão à cabeça e percebeu que estava sem chapéu. Ela olhou em volta. O chapéu de palha subia e descia nas ondas como um pequeno barco levado
pelo vento.
O helicóptero aterrissou na plataforma do palácio algumas horas mais tarde. Júlia saltou e correu para ganhar distância, pensando que a aeronave fosse decolar novamente.
Mas, para a sua surpresa o motor foi desligado. Ela virou-se.
Rashid havia desembarcado e vinha na sua direção. Ela deu os ombros.
Você vai entrar?
Já é hora de conversar com seu pai.
O que ele tem a ver com isso?
Seu pai sabe se cuidar, Júlia. Não precisa que você o proteja Rashid disse calmamente.
Júlia estava furiosa com ele por colocá-la em tal posição.
Ah, você sabe de tudo!
O palácio estava lindo àquela hora do dia, com seus pilares e altas paredes brancas erguendo-a de um imeso gramado verde, os raios de sol refletindo-se nas imensas
janelas douradas.
Olhem! É Sua Alteza! A princesa Júlia!
Júlia e Bashid víraram-se. Atrás, do outro lado dos imensos portões de ferro do palácio, os turistas acenavam e sorriam.
Veja! Eles estão juntos! É o príncipe Rashid! gritou uma mulher. Vocês ficam muito bem juntos!
Parabéns! gritou uma voz mais grossa, logo seguida pelas demais. Parabéns!
Sorridente, Rashid fez um gesto de agradecimento.
Obrigado! ele acenou, para o delírio das mulheres.
Quer parar de flertar? Júlia murmurou. Vamos entrar logo, já que insiste. Devíamos ter aterrissado na parte de trás. Eles atravessaram o gramado e deram
a volta no prédio.
Vocês não usam a entrada principal?
Só em ocasiões oficiais.
Será que a nossa primeira entrada juntos não valeria essa distinção?
Júlia olhou-o de alto a baixo.
Espero que seja também a última. - Rashid riu.
Ah, Júlia, você não devia desafiar o destino. Devia dizer Insh'Allah, se estiver falando a sério. Significa "se Deus quiser". Ou quem sabe...
Insh'Allah ela repetiu mal-humorada. Se Deus quiser, estamos atravessando este gramado juntos pela primeira e última vez.
Estou certo de que não é o que Ele quer Rashid retrucou. A porta se abriu antes que Júlia respondesse.
Boa tarde, Alteza. Boa tarde, Alteza.
Boa tarde, Graham. Júlia passou pelo mordomo e entrou numa saleta. Onde está meu pai?
Graham esforçava-se para seguir o modelo de mordomo de cinema e televisão, mas não conseguiu disfarçar a emoção de receber o príncipe herdeiro de Tamir no Palácio
de San Sebastian.
No Salão Branco, madame. Com sua licença... Júlia olhou para ele. Peço licença para lhe dizer que os criados estão encantados, madame. E ao senhor também,
Alteza. O homem se curvou. Todos nós lhes desejamos imensa felicidade.
Você não devia acreditar em tudo o que lê nos jornais, Graham disse Júlia, irritada.
Obrigado, Graham. Diga a todos que agradecemos Rashid falou.
Júlia levou Rashid ao lugar favorito da família, uma grande sala de paredes claras, toda mobiliada em branco e creme. Era um ambiente tranquilo e confortável, com
grandes janelas voltadas para o sul e o amplo gramado que se estendia até os rochedos à beira-mar. Os pais dela liam os jornais de domingo, uma típica cena familiar.
Mas, para Júlia, um dia e meio bastaram para que tudo parecesse pertencer a um outro mundo. Talvez estivesse mesmo chegando de um outro mundo. Muita coisa havia
mudado, era como se não falasse maia a mesma língua de seus pais.
Pai? Mãe?
Eles ergueram a cabeça sobressaltados. Imediatamente se levantaram.
O príncipe Rashid está aqui.
Meu pai vai gostar dessa idéia Rashid comentou quando se sentaram para comer, meia hora mais tarde.
Qualquer um teria estranhado a cena. A bela e graciosa rainha, como sempre muito gentil e cativante, em nenhum momento pareceu aborrecida com sua presença. 0 pai,
adotando o modelo que a família chamava de "Sua Majestade", estava mais ranzinza.
Gwendolyn insistira para que ele ficasse para o almoço, apesar de o rei Marcus não parecer nem um pouco satisfeito de dividir uma refeição com um Kamal. E para piorar,
a rainha mandara servir o almoço, não na sala de jantar formal, nem na sala de jantar da família, mas na saleta íntima e aconchegante em que a casal real fazia suas
refeições íntimas havia trinta e seis anos.
Tenho certeza disso resmungou o rei Marcus, olhando para o nada.
Sabendo que é inevitável, não tenho nenhuma dúvida.
Mas antes você terá de convencer minha filha!
Rashid sorriu.
É verdade. Isso é fundamental.
Júlia baixou os olhos, balançando a cabeça.
E como pretende conseguir, meu senhor?
Marcus só chamava alguém de "meu senhor" quando estava muito aborrecido. Júlia ergueu o canto da boca num meio sorriso. A menos ele estava do seu lado. Que Rashid
o enfrentasse, então.
Pensarei em alguma coisa ele prometeu.
Júlia sentiu um ligeiro frémito de prazer. Se não soubesse que ele apenas visava uma aliança política, poderia pensar até que estivesse apaixonado.
CAPÍTULO VI
O helicóptero decolou levando Rashid. A bandeira branca, preta e dourada de Montebello balançou alegremente ao vento, como que também troçando de suas esperanças
frustradas. Mas algo o intrigava. O rei Marcus parecia estar do seu lado quando saíram caminhando pelos jardins do palácio para fumar um charuto, entenderam-se muito
bem, embora nada garantisse que o aceitaria como seu futuro genro. Marcus nada disse contra o casamento, mas enquanto seu pai continuasse reivindicando Delia, não
se podia esperar outra coisa. O que mais o perturbava era a rejeição de Júlia.
Talvez aquele primeiro encontro no castelo tivesse sido um sinal. A apaixonada loucura que os acometera ainda não fora bem explicada. O que os teria possuído naquela
noite? Certamente nada o impediria de partir para a missão mais importante da historia moderna de seu país. Muito menos fazer sexo com a princesa Júlia Sebastiani.
Ao menos pudera conhecer a profundidade do preconceito que ela tinha contra os Kamal. E também saber que ela era virgem. Agora Júlia teria todos os motivos do mundo
para repudiá-lo.
Quando avistou as três ilhas de Tamir, Rashid mudou de rota e rumou para Siraj, a ilha que ficava mais a leste. Precisava urgentemente pôr os pensamentos em ordem.
Todas as mulheres que lhe juravam amor eterno estavam muito mais apaixonadas pelo seu dinheiro e sua posição. Era um absurdo que aquela linda mulher, com quem vivera
uma paixão tão ardente e estava grávida de seu filho, declarasse friamente que não aceitava se casar porque não o amava.
Rashid se sentia muito incomodado com isso. Quem diria que ela não se apaixonaria por ele? Haviam passado muito pouco tempo juntos. Júlia quisera ir embora de Erimos,
e ele não a obrigara a ficar. Se tivessem tido mais tempo... Mas tudo era tão contraditório.... Júlia o estava deixando louco.
Rashid aterrissou no heliporto da fazenda e foi direto para os estábulos. Lá, ordenou ao cavalariço que selasse seu fiel cavalo Araby para uma cavalgada terapêutica:
precisava se acalmar. Um leve toque nas rédeas e o veloz Araby partiu a galope.
Maldita rixa familiar! Baseada numa crença sem qualquer fundamento. Não seria surpresa que os Sebastiani tivessem uma versão dos fatos totalmente diferente, mas
isso pouco importava. Que diferença fazia quem tinha matado Ornar? Por que não podiam esquecer essa história?
Rashid balançou a cabeça. A absurda fixação de seu pai pelas terras de Delia era outro problema que deveria ser enfrentado. Mas talvez existisse outra saída. Que
também passava pela rixa e não se desviava dela. O rei Marcus e seu pai alimentavam essa briga desde pequenos, assim como Júlia. Era impossível esperar que fosse
esquecida. Se Júlia aceitasse se casar, enfrentariam juntos o problema. Mas assim...
Era a primeira vez que vivia uma situação como essa. Fazia muito tempo que pensava em se casar com Júlia Sebastiani e estabelecer a paz. Mas o anúncio do casamento
dela tomou-o de surpresa e o longo noivado fora uma verdadeira tortura que ele sofrera calado. Se ia se casar, por que não casava logo? Se não, por que não rompia
logo o compromisso para que tivesse uma chance?
Mas ela se casara. E Rashid quase morrera de remorso. Devia ter agido, com ou sem noivado. Levou tempo para ele conseguir se perdoar.
Um movimento da cabeça do cavalo trouxe Rashid de volta ao presente. Júlia se sentia muito atraída por ele. Era impossível fingir tanta paixão. Ele se lembrou dela
pela manhã, a suavidade de sua pele, e no mesmo instante sentiu o membro enrijecer dolorosamente contra a sela. Rashid riu. Não, Júlia não estava fingindo. Tudo
só dependia dele mesmo. Tinha de encontrar um jeito de convencê-la a se casar. Era inevitável.
Dizia o Messenger:
"Júlia Diz Não!"
A princesa Júlia desmente as declarações do príncipe herdeiro Rashid Kamal e nega que vá se casar com ele. Ela diz que não tem planos de voltar a se casar. Sabe-se
que os herdeiros se encontraram, apesar da oposição dos pais, os reis Marcus e Ahmed. Os monarcas rivais alimentam uma disputa ferrenha pela propriedade do rico
território pertencente a Montebello conhecido como "Terras de Delia". "E evidente que Júlia e Rashid estão enamorados, mas nada é capaz de comover seus pais", informou
uma fonte.
Júlia e Rashid estiveram no palácio de San Sebastian no domingo, mas parece que a visita não surtiu resultados. É provável que o rei Ahmed tenha desaprovado a união.
Ê óbvio que uma oposição tão forte pode destruir as esperanças do casal por uma rápida solução para esse dilema romântico.
Agora somos Romeu e Julieta? Rashid murmurou num tom divertido quando ela veio ao telefone.
Não foi essa a informação que demos Júlia protestou, sem entusiasmo. Não devia explicação nenhuma a Rashid, sobre a imprensa ou qualquer outra coisa.
Você não devia ter dito nada.
O nome Erimos significa alguma coisa para você?
Rashid ficou em silêncio.
Não quis criar problemas para você por ter me feito prisioneira outra vez ela informou docemente. Achei que afastaria a tentação. Está feito e ponto final.
Júlia estava mais irritada do que imaginava. Sem motivo nenhum. Tinha vontade de bater em alguém. De gritar. De chorar.
Não podia esperar até...
Até o quê? Até se transformar num fato por nunca ter sido contestado?
"Até eu encontrar uma maneira de contornar a situação", ele queria dizer.
Há uma solução.
Júlia riu.
Você está vendo por um ângulo errado, Rashid. Não há solução porque não existe nenhum problema!
Alima Kamal sentiu pena de seu filho.
O que quer que eu diga, Rashid? Você quer uma mulher que não o quer. Não é o primeiro a ser rejeitado e nem será o último.
Não se trata de amar sem ser correspondido, mãe. Não se trata de eu lamber minhas próprias feridas e depois procurar alguém que as cure. Todos os meus planos
para Tamir dependem desse casamento. Não posso desistir assim, sem mais nem menos!
Você disse isso a Júlia? sua mãe perguntou.
Claro! Várias vezes. - Ela sorriu.
Júlia gostava do ex-marido?
Que eu saiba, não. Não sei se foi um casamento importante politicamente, mas ela deixou claro que foi contra a sua vontade.
E ela gosta de alguém?
Não Rashid apressou-se em responder. Apesar da prontidão da resposta, ele não podia provar. Ela era virgem, mas isso não queria dizer que não gostasse de alguém.
Eu duvido. Se gostasse, teria usado como motivo para não se casar comigo, não acha?
Talvez sim, talvez não. Espere um pouco que eu já volto. - Rashid permaneceu no pátio sombreado, esperando pela mãe.
A água jorrava da fonte iluminada pelos últimos raios de sol. Será que Júlia gostava de outra pessoa? Nesse caso, seus planos iam todos , por água abaixo. A menos
que por alguma razão ela não pudesse se casar com essa pessoa. Por ser casado, talvez? Essa era uma idéia que não lhe agradava tanto quanto imaginar que ela pensasse
em outra pessoa quando fizeram amor. Talvez isso explicasse seu comportamento selvagem, como se desejasse um amor impossível...
"Mas seu amor por mim também foi proibido, e ela não resistiu", ele disse a si mesmo, um pouco irritado.
Sua mãe voltou trazendo uma caixinha de jóias.
Você já viu isto? Acho que não.
Ele abriu a caixa. Dentro, havia um anel de rubi e diamantes.
Que anel é este?
É o anel de noivado de Delia Sebastiani. - Rashid franziu a testa.
Como veio parar em suas mãos?
Os Sebastiani o devolveram depois da trágica morte de Delia. Quando o rei Mukhtar exigiu a devolução das terras do dote após a morte de seu filho, o rei Augustus
mandou o anel com a mensagem de que era tudo que os Kamal tinham direito. Imagino que a mãe de Ornar tenha querido ficar com ele. Desde então ele passou a pertencer
a esposa do príncipe herdeiro.
Ornar deu este anel a Delia? Achei que ele dera uma das jóias da família. Esse anel não parece ser...
Essa foi a história que ouvi de sua avó, quando o anel me foi passado. O rubi se chama Lágrima de Fátima.
Rashid examinou o anel. Era uma montagem um tanto tosca, seis pequenos diamantes de um quarto de quilate e dois diamantes de um quilate rodeando um rubi sangue de
pomba. O rubi era maior e destacava-se no conjunto. Os diamantes também eram muito grandes para o tamanho do rubi. Não era um trabalho típico dos joalheiros da corte
de Tamir. Rashid examinou a caixa. No forro de cetim lia-se em letras douradas: "Barratt e Runyon, Joalheiros, Londres".
Ele comprou outro anel para ela em Londres? E o que aconteceu ao Lágrima de Fátima?
Desconfio que seja este rubi. Por alguma razão ele foi remontado sobre os diamantes em Londres.
Rashid estava surpreso.
Por que será?
A rainha Alima ergueu os ombros.
Pela história que sua avó me contou, o Lágrima de Fátima já era um anel de noivado antes de Ornar conhecer Delia Sebastiani. Ele se apaixonou loucamente por ela
a primeira vez que a viu. Deu a ela o rubi, mas me pergunto se não achou pouco para expressar o que sentia.
As sobrancelhas de Rashid se ergueram.
Ou, talvez, quando ele chegou a Londres, viu que as noivas inglesas recebiam mais diamantes ou algo do género. Seja o que for, o anel... ela o pegou da mão de
Rashid e ergueu-o na altura dos olhos me parece um símbolo de amor eterno e duradouro.
Ela pôs a jóia de volta na mão do filho e olhou nos olhos dele.
Toda mulher quer sentir esse amor no homem com quem se casa. E quer amá-lo do mesmo jeito. Tenho certeza de que os homens querem a mesma coisa.
Rashid girava o anel nos dedos, olhando-o atentamente. Tanto os diamantes quanto o rubi tinham o brilho intenso. Não das pedras preciosas.
Se Júlia se recusa a casar com você por causa da inimizade entre nossas famílias, Rashid, talvez seja porque ainda esteja esperando esse amor. Afinal, ela só tem
vinte e nove anos. É natural que seja assim.
Ele continuou em silêncio, olhando para a pedra. O anel pesava em seus dedos. Sua mãe tinha razão. Aquela peça tinha um apelo emocional e uma beleza intrínseca,
apesar da estranha combinação de pedras.
O que quer dizer? Que ela pode encontrar esse amor em outra pessoa?
Nem sobre o meu cadáver, ele pensou involuntariamente.
Sua mãe sorriu.
Não sei o que você deve fazer, meu filho. A tradição manda passar este anel a sua mulher, seja ela quem for, quando você se casar. O amor é uma força poderosa,
Rashid, e um casamento sem amor é muito mais difícil do que se pode imaginar. Por que você não encontra alguém para amar como Ornar amou Delia?
Sua mãe afastou-se, deixando-o só com o anel. O sol já se punha no horizonte. Rashid continuou onde estava, girando o anel entre os dedos, pensando no que acabara
de ouvir.
Amar. Encontrar alguém para amar... ,
Ele voltou a se concentrar no anel, que pesava como um anel; masculino. Delia Sebastiani era uma mulher miúda e delicada. Como Júlia, talvez. Omar escolhera um
anel bastante inadequado : para ela, será que a amara tanto assim? Certamente não seria esse o anel que ele escolheria para Júlia.
Iqbal aproximou-se em silêncio empurrando um carrinho de bebidas. Abriu a tampa, acendeu algumas luzes suaves, inclusive o abajur ao lado de Rashid. Em seguida,
dispôs várias cumbucas com aperitivos e ervas frescas e esperou.
Rashid saiu de seu transe.
Apenas água, por favor. Ele deixou o anel de lado e pegou um raminho de manjericão, que levou a boca e ficou mastigando pensativo.
Então pegou novamente o anel e aproximou-o da lâmpada do abajur. Era um belo rubi. Em geral, os rubis eram montados com diamantes, mas o Lágrima de Fátima podia
muito bem estar sozinho.
Iqbal trouxe um copo de água com gelo e uma fatia de limão.
O que acha deste anel, Iqbal?
O criado inclinou-se para ver de perto.
Uma bela jóia, Alteza. É rara?
Bastante. Acha que ficaria bem numa mulher? - Iqbal sorriu involuntariamente e pegou o anel.
A princesa? Ela...
A expressão severa de Rashid o fez parar. "Ele ainda fica perturbado", pensou Iqbal com tristeza. Não dava para entender a princesa. O que mais ela queria? Seu senhor
era um bom patrão. 0 melhor. E todos sabem que os bons patrões são homens bons. Mas ele estava muito triste e Iqbal suspirou.
E um bonito rubi. Iqbal examinou-o e devolveu-o a Rashid.
E esse brasão?
Brasão? Rashid aproximou o anel da luz. Iqbal tinha razão. Dentro do aro havia algo gravado. Uma espécie de insígnia.
Não é a marca dos Kamal ele murmurou para si mesmo.
Será um brasão de armas?
Iqbal viu que não era mais necessário ali e se retirou, deixando Rashid entretido na observação do anel.
Se for, não é o brasão dos Sebastiani Rashid disse para si mesmo, aproximando o anel da lâmpada para ver melhor. Parece pertencer à aristocracia europeia.
Ele ergueu a cabeça para o céu.
O que será que a amada de Omar fazia com um brasão de armas estrangeiro em seu anel de noivado? Isso não faz sentido!
Rashid se levantou e foi até a fonte. A água jorrando ajudava-o a pensar. Ele olhava fixo para o anel e mil coisas passavam por sua cabeça...
Filho? Não vem jantar?
Rashid estava tão concentrado que se levou um susto.
Irei em um minuto.
Tinha de haver alguma história por trás daquele anel. Talvez uma história muito interessante. E se até agora era desconhecida, era porque ninguém havia investigado.
Talvez escondesse algum fato sobre o assassinato de Omar. Uma investigação mais aprofundada poderia revelar que as duas versões familiares contraditórias estavam
erradas e havia uma terceira.
A recusa de Júlia talvez tivesse a ver com isso. Os pais dela culpavam sua família por um crime do qual ela se dizia inocente. E usava essa desculpa para querer
as terras de volta.
E se descobrisse toda a verdade? Certamente haveria uma. Se conseguisse provar, de uma maneira ou de outra... Poderia pôr um fim na rixa entre as duas famflias...
E então se casar com Júlia...
CAPÍTULO VII
- Você ficou maluco? Júlia explodiu.
Maluco por você Rashid provocou-a. Vendo-a agora com novos olhos, ele a queria ainda mais do que antes. Sabe que o prazer vicia?
Ele abriu uni sorriso malicioso e incrivelmente sensual. Júlia apertou os lábios.
Não sei!
Mentirosa.
Rashid afastou os cabelos dela do rosto. Os dois conversavam no jardim das roseiras de San Sebastian, sentados sob a sombra de uma pérgola florida. Ao lado havia
um pequeno lago. Tudo ali seguia um estilo inglês. Ou a rainha Gwendolyn tinha mandado construir ou eram remanescentes do período em que Montebello pertencera à
Inglaterra.
Vamos conversar sobre Delia e Ornar, por favor? Como você pretende desvendar a história verdadeira?
Sempre sorrindo, ele se levantou, enfiou a mão no bolso e tirou de dentro a caixa do anel, que abriu na frente dela. Automaticamente, Júlia estendeu a mão para pegá-lo.
Oh! ela exclamou, como se o anel a queimasse. O que é isto?
Isto respondeu Rashid, que continuava em pé com a caixa na mão é o anel de noivado de Delia.
Júlia levou um susto. Lentamente, ele tirou o anel da caixa, pegou a mão de Júlia e pôs o anel no dedo de sua mão direita. A jóia ajustou-se perfeitamente, como
se já lhe pertencesse.
É mesmo? Fascinada, ela ergueu a mão na altura dos olhos. Como o conseguiu?
Rashid contou-lhe a história que ouvira de sua mãe. Júlia ficou interessada. Quando ele terminou, ela tirou o anel para ver a gravação no interior do aro.
O que será que aconteceu? perguntou.
Vejamos: uma jovem princesa fica noiva do príncipe de um país vizinho. Seu dote é uma vasta extensão de terra que pertencia a seu pai. E recebe dele uma jóia de
família para selar o acordo. A princesa ama tanto seu noivo que, mais tarde, quando ele morre, ela também quer morrer. Mas em vez de o casamento se realizar, a princesa
vai para Londres, para ser oficialmente apresentada à corte e à sociedade. Nesse meio tempo uma mina milionária é encontrada nas terras que ela levou como dote,
e o noivo suspeita que ela foi afastada para que o compromisso fosse desfeito e o dote devolvido. Concorda até aqui?
Sim. Só que o noivado não foi rompido.
Certo. O príncipe, desesperado, vai atrás dela em Londres. E manda remontar o anel de família sobre uma estranha base de diamantes. Um brasão é gravado no anel.
O príncipe escreve ao pai contando sobre uma visita que os dois irmãos da princesa lhe fizeram, querendo que ele rompesse o noivado. O príncipe diz que se recusou
a fazê-lo. Em poucos dias, seu corpo é encontrado numa estrada, perfurado por duas balas saídas de armas diferentes. A polícia diz que foram ladrões de estrada.
Logo depois, a princesa se mata.
Rashid inclinou-se para frente.
Nada disso faz sentido. Nada nessa história se encaixa. - Júlia olhava absorta para o anel.
Você tem certeza do que está dizendo? Não seria possível que o anel tivesse chegado a família de Kamal assim como é, já com a gravação... talvez um presente de
algum rei estrangeiro... O que não impediria que fosse chamado de Lágrima de Fátima, não?
Rashid balançou a cabeça.
Descobri que ele foi catalogado em mil oitocentos e dezessete. O Lágrima de Fátima é descrito como um solitário de rubi, sem diamantes. E também não há menção
a nenhum brasão.
Júlia perguntou para si mesma:
Que brasão será este?
Estou certo de que é possível descobrir. - Ela se ajeitou na cadeira:
Você tem razão. E não teremos de ir muito longe. Há um livro de heráldica na biblioteca.
Meia hora depois, o bibliotecário do palácio pôs na frente deles um livro grande com encadernação de couro.
Este volume cobre até mil oitocentos e cinquenta disse Arthur, ofegante sob o peso do livro. Se quiserem títulos mais recentes, há outros como este aqui.
Ele mostrou outro livro bem menor. Mas acho que vão preferir o mais antigo.
O título era Brasões da Nobreza da Inglaterra, Escócia, Pais de Gales e Irlanda. Havia um brasão em cada página, desenhados a mão nos mínimos detalhes, protegidos
por uma folha transparente de casca de cebola. À esquerda de cada um havia um texto explicativo.
É incrível! Júlia exclamou, folheando cuidadosamente o livro. Mas como vamos conseguir identificar o brasão nesta gravação tão pequenina? Todos são muito
parecidos.
Rashid estudava atentamente a gravação no anel.
Este animal parece ser um veado sugeriu.
Os olhos de Arthur brilharam quando viram o anel.
Vocês estão tentando identificar algum brasão? ele perguntou, como se a vida não pudesse lhe oferecer nada mais excitante. Posso?
Rashid deu o anel na mão dele, que o ergueu contra um facho de luz que entrava por uma das janelas sobre as estantes.
Pedra magnífica Arthur murmurou, e foi para a sua mesa. Então pegou uma lupa iluminada e aproximou-a do anel. O timbre parece ser um leão encravado numa coroa...
as armas em quartos... base difícil de se saber... talvez, como você disse, um veado a sinistra... humm. Bem, isso já nos dá uma pista. Vamos procurar por estes
primeiro.
Rashid riu.
Que língua você está falando? - Arthur ergueu a cabeça.
Os termos heráldicos são simples depois que os conhecemos. Eu explico. O timbre, este pedacinho aqui no alto, parece ser um leão... um leão em pé. Ele está sobre
o que parece ser uma tiara; ducal...
Seria o brasão de um duque, Arthur? Júlia perguntou.
É bem provável. Depois, sob a coroa, um elmo e, embaixo dele, as armas, no caso, um escudo dividido em quatro seções ou quartos. Estão vendo? Em cada lado das
armas estão os suportes, que são esses animais sentados nas patas traseiras. Um deles, vejam... ele segurou o anel e a lupa num ângulo tal que ambos podiam enxergar
...o da esquerda, sinistra em latim, parece, pelos chifres, ser um veado. O outro não está tão claro. Agora, podemos resumir nossas buscas aos brasões que contêm
esses itens. Se tivermos sorte, encontraremos um só.
Uma hora depois, eles tiveram certeza. Arthur abriu o livro numa página, e Júlia e Rashid estavam diante do elaborado brasão pintado a mão dos Worthington, duques
de Rochester.
O que significa a frase em latim? Rashid perguntou.
"Possuo aquilo que possuo" traduziu Arthur, com um suspiro de nostalgia por dias gloriosos que não conhecera.
Há uma pequena descrição do título aqui disse Júlia, correndo os olhos pela página. "Primeiro Barão de Spellbridge, sir Fiztoy Worthington, 1426, primeiro
Duque de Worthington, 1679, primeiro Duque, 1713",
Não entendo mais nada. Ela voltou-se para Rashid. Sua família tem alguma ligação com a aristocracia inglesa?
Em mil oitocentos e noventa? Isso faz muito tempo, e muitos aristocratas ingleses visitavam Tamir na época do Império Britânico. Ele voltou-se para Arthur.
Este livro cobre até mil oitocentos e cinquenta. Quem era o duque em mil oitocentos e noventa?
Arthur pôs a mão sobre o livro menor.
Este foi publicado em mil novecentos e quarenta. Agora que já temos nosso homem, vamos procurá-lo aqui. Ele folheou o livro e parou na página em que uma versão
reduzida do mesmo brasão aparecia ao lado de um texto mais longo. Ah, o título está extinto desde mil oitocentos e noventa e dois, com a morte do nono duque.
Júlia estalou os dedos.
Espere... Delia fez amizade na escola com uma moça que era filha de um duque! Por que nãoo começamos por aí? Ela voltou-se para Arthur. Gostaria de ver a correspondência
da família entre mil oitocentos e noventa e um e mil oitocentos e noventa e dois. Ela deve mencionar o nome da família nas cartas que escreveu a lady Elizabeth.
O bibliotecário voltou logo depois com vários fichários que Júlia ja conhecia. Ele os deixou sobre a mesa.
Aqui está toda a correspondência pessoal de noventa e um e noventa e dois, inclusive cartas trocadas entre Delia, Ugo e Julius, enquanto estavam na Inglaterra.
E aqui estão os títulos de propriedade e as cartas comerciais desses mesmos anos. A família tomou muito cuidado com a preservação dessa correspondência, um hábito
que deve ter sido transmitido a cada nova geração. Mas, infelizmente, não tiveram tanto cuidado em datar essas cartas.
Agora elas estão todas no computador.
Júlia sorriu, calçando as luvas cirúrgicas que Arthur providenciara, para evitar que o suor prejudicasse os papéis antigos. Primeiro, puxou uma caixa com o rótulo
"Correspondência Familiar 1890-95" para perto e tirou um maço de cartas. Procurou as de Delia, que logo reconheceu de suas pesquisas anteriores.
Enquanto isso, Rashid concentrava-se na correspondência agrupada sob o selo "Cartas de Estado 1890-93".
Ela sentia muita saudade de casa disse Júlia após alguns minutos, depois de separar algumas cartas que Delia escrevera para casa quando estava na Inglaterra.
E morria de frio em Londres. Parece que Delia não se acostumava com invernos rigorosos. "Todos os cómodos são invadidos pelo que eles chamam de draughts, um vento
gelado que vem do norte..." Julia leu e franziu as sobrancelhas. Norte? Não, não é isso... "que parece vir não se sabe de onde, enregelando nossas pernas e congelando
nosso coração". Essa era de janeiro de mil oitocentos e noventa e um.
Coitada Rashid comentou. Sair do calor de Montebello para o gelado inverno inglês deve ter sido um choque.
Halstead House Júlia leu em voz alta. Ela deve ter visitado alguém... Oh! Ouça isto. "Sua Graça é um homem muito fino, tem lindos cabelos e expressivos olhos
azuis. Todos concordam que foi talhado para a sua nobre posição".
Rashid parou atrás dela e ficou ouvindo a leitura:
Ele foi muito gentil comigo e se disse honrado por receber a princesa de Montebello, embora os convidados dessem muito mais importância ao duque de Rochester do
que à princesa de Montebello! Espero que meu querido pai não se ofenda. Os ingleses são muito arrogantes, por isso a gentileza de Sua Graça foi especialmente notável.
Uma jovem convidada zangou-se comigo, mas, sinceramente, nada fiz por merecer.
Ah! Aí está ele Júlia observou o duque de Rochester. Mas o duque era amigo do pai dela ou de quem? Ela voltou a ler. "Quinta-feira"... esta é a única data.
Quanto tempo ela ficou na Inglaterra? Rashid perguntou.
Me disseram que ficou um ano estudando, depois voltou para uma visita e só então retornou para ser apresentada à sociedade.
Júlia pegou outro gracioso envelope verde e exclamou:
É este! Dezoito de fevereiro de mil oitocentos e noventa e um, logo que ela chegou à escola.
Júlia ergueu os olhos do papel.
Pronto. Esta é a ligação. O pai da amiga Elizabeth era o duque de Rochester.
Do outro lado da mesa, Rashid olhava pensativo para seu maço de cartas.
Uma ligação, mas sem nenhuma lógica. Por que o brasão do pai de sua amiga estaria no anel de noivado de Delia?
Seria mesmo um anel de noivado? Talvez tenha ido parar por engano nas mãos da família depois que ela morreu. E se as duas moças trocaram os anéis? Deve existir
mais que um rubi deste tamanho em todo mundo... e quem mais poderia possuí-lo senão a filha de um duque?
Trocar um anel de noivado? Rashid não acreditava nisso. Júlia riu.
Tem razão. Eu tinha me esquecido de que era um anel de noivado.
Espero que não seja tão distraída quando estiver usando o anel de noivado que eu lhe der!
Júlia mudou de página e balançou a cabeça.
Não acho que ela tenha se comprometido com a Casa de Halstead! Por quem será que eles guardavam luto? Não seria pelo duque, que só morreu no ano seguinte.
Estas são as cartas trocadas entre os dois pombinhos durante o noivado Rashid interrompeu-a.
Júlia levantou-se e foi se sentar ao lado dele. Um grande folha de papel coberta com a bela caligrafia árabe estava dobrada e fechada com um elaborado selo de cera
vermelha.
O que diz aí?
Em linguagem formal, reconhece o oferecimento do rei Augustus da possibilidade de laços diplomáticos entre os dois países e sugere que um casamento entre as duas
famílias selaria o acordo entre as famílias reais.
Fez-se um longo silêncio, que Júlia tinha dificuldade de romper.
Como será que nossos países se relacionariam hoje em dia se esse acordo tivesse se efetivado? Rashid questionou, passando o polegar sobre o selo de cera vermelha.
Meu pai ainda usa um selo como este. Há mais de cem anos. As iniciativas sábias levam tempo para se realizar.
Pouco tempo depois, eles pararam de trabalhar. O sol já se punha, e Júlia e Rashid saíram para caminhar pelos jardins até a hora do jantar.
Por que estamos fazendo isto? ela perguntou. Por que reabrir essa antiga e dolorosa ferida?
Porque é importante conhecer a verdade. Já descobrimos que existem duas versões diferentes para explicar essa velha inimizade.
Talvez fosse melhor deixar as coisas como estão.
Júlia, você me deu suas razões para não querer se casar comigo. Uma delas é que sou um Kamal e você é uma Sebastiani, e entre nós existem barreiras intransponíveis.
A outra é que você não quer se casar outra vez por razões diplomáticas. Ou seja, você não me ama.
Ela inclinou a cabeça. "E você também não me ama", concluiu em silêncio.
Nesta vida, aprendemos que algumas coisas não podem ser mudadas. Por exemplo, que eu sou um Kamal, e você, uma Sebastiani. Mas podemos mudar o sentimento entre
nossas famílias, acabar com todo esse ódio. É somente isso que se interpõe entre nós, e mais nada. Talvez, se encontrarmos o motivo, possamos acabar com essa hostilidade.
Ou aguçá-la ainda mais ela observou. Rashid balançou negativamente a cabeça.
O que poderia ser pior do que a acusação de um assassinato a sangue-frio? Se provarmos que o crime foi cometido por seus antepassados, ao menos teremos a certeza
de que a acusação é justa. Mas se descobrirmos qualquer outra coisa, meu pai terá de se desculpar por um século de mal-entendido.
Júlia suspirou.
Bem que eu gostaria de esclarecer tudo isso ela admitiu. Seria muito bom saber o que realmente aconteceu, não? Mas nada me fará mudar de ideia sobre o casamento,
Rashid.
As estrelas já brilhavam no céu. Rashid parou e ergueu o rosto dela.
Eu avisei, Júlia, que vou derrubar as suas objeções, uma por uma. E quando nada mais nos impedir?
Você não vai conseguir!
Não?
Os olhos dele brilhavam por trás do sorriso. Júlia sentiu o coração bater mais forte.
Quantas vezes seu pai pediu sua mãe em casamento? - Ela virou a cabeça.
Isso nada tem a ver conosco!
Quantas?
Cinco! ela respondeu de má vontade.
E quantas vezes eu já lhe pedi?
Duas. E espero que não pense que... Júlia calou-se ao ver que ele ria.
Ah, então você contou! Isso é excelente! Rashid segurou o queixo dela até seus olhares se encontrarem. Uma a uma...
CAPÍTULO VIII
Você está investigando a morte do príncipe Ornar? o rei repetiu, surpreso.
Sabe, pai, os Kamal têm uma versão diferente do que aconteceu. Isso naturalmente contribui para todos esses mal-entendidos.
A expressão do rei Marcus endureceu.
Não é nenhuma novidade que sua família tenha uma noção equivocada dos acontecimentos, Rashid, mas seria uma surpresa e tanto saber que a nossa versão dos fatos,
como diz Júlia, não é a correia.
Rashid assentiu.
Por isso preciso de uma prova para convencer meu pai. Na minha opinião, já é hora de acabar com essa rixa entre nossas famílias. Ninguém se beneficia com ela.
Duvido que desenterrar novas provas vá comover seu pai, Rashid. Ele tem muito interesse em manter sua posição.
Com todo o respeito, o senhor está subestimando meu pai. Ele não vai ignorar as evidências escritas de que a princesa Delia foi para Londres contra a vontade,
por exemplo.
Júlia notou que seu pai respeitava Rashid e começava a gostar dele... contra a vontade.
E aonde isso o levará?
Espero que ao meu casamento Rashid respondeu calmamente. Júlia não se casará comigo enquanto achar que está traindo sua família. É mais fácil eliminar as causas
desse impedimento do que tentar convencê-la do contrário.
Os pais nada disseram diante do evidente constrangimento de Júlia e da tranquilidade de Rashid. Anna estava encantada com o príncipe.
E você acha que vai conseguir? - Ele sorriu.
Espero que sim.
Mesmo que consiga mudar os sentimentos de Júlia, acha que vai convencer seu pai a desistir das terras de Delia? perguntou o rei.
Entre outras coisas. Se conseguirmos provar que o avô dele, Ugo, e seu tio Julius estavam envolvidos na morte de Ornar, espero que esses ressentimentos centenários
desapareçam.
Não importa o que você consiga provar, eu não vou abrir mão das terras. Sempre foi uma reivindicação absurda, apesar da morte de Ornar.
Aceito a sua palavra sobre como as coisas aconteceram na sua tradição. Na tradição Tamir, contudo, a reação do rei Muklitar foi muito controlada. Meu ancestral
poderia ter se vingado e exigido a morte de Ugo e de Julius. Em vez disso, optou por algo mais ameno, exigindo uma indenização em dinheiro. Muita gente deve ter
considerado como um sinal de fraqueza. Seu reino deve ter sido ameaçado por isso.
Marcus concordava com essa possibilidade.
De fato... ele murmurou.
Existe uma carta do rei Mukhtar em seus arquivos, na qual ele diz ao rei Augustus que uma indenização em dinheiro era o mínimo que deveria receber por sua honra
ultrajada, e pede que ele reconheça essa reivindicação como justa para que o incidente seja superado.
Marcus não teve palavras diante do que ouviu. Foi Gwendolyn quem perguntou:
Quem traduziu isso?
Rashid encostou-se na cadeira e ergueu a mão. Secretamente, Júlia encantou-se com aquele gesto.
Pelo que pude ver, foi um inglês contratado por Augustus, um tal de Arnold Chowndea-Hartley. Mas era um tradutor ruim. A tradução que ele fez para o árabe das
reivindicações de Muktar a Augustus foi responsável por quase ter estourado uma guerra entre os dois países. Se fosse um bom tradutor, nada disso teria acontecido.
Estou abismada! Gwendolyn suspirou. Nunca imaginei que uma simples tradução inexata pudesse causar um estrago tão grande.
Chowndes-Hartley devia saber que não daria conta do recado Rashid continuou. Ele não fez nenhuma cópia das traduções para o árabe que foram enviadas a Mukhtar,
apenas dos originais. E parece que destruiu muitas de suas traduções para o inglês das cartas para Tamir. Certamente para proteger sua reputação das críticas futuras.
Quer dizer que tudo o que temos nos arquivos são os originais em árabe dos documentos de Tamir e os rascunhos em inglês das cartas enviadas a Mukhtar? Anna perguntou.
Parece que sim.
Então não temos como saber o que se disse realmente!
Vou checar meus arquivos em casa quando terminarmos aqui disse Rashid. Se esses documentos ainda existirem, poderemos compará-los.
Marcus pigarreou.
Bem, acho melhor você ficar por aqui enquanto estiver envolvido nessa tarefa.
Rashid sorriu e assentiu em agradecimento.
O senhor vai me desejar boa sorte em minha missão, sir?
Você vai precisar mais do que sorte quando chegar a hora de convencer o seu pai o rei contra-atacou.
Mais tarde, Júlia e Rashid estavam na saleta de estar dos aposentos da princesa. A mãe dela sugerira que Rashid ocupasse um dos quartos de sua suíte, e Júlia estava
dividida demais para argumentar. Ao mesmo tempo, ela o queria e não o queria lá, mas não podia explicar isso à mãe. O quarto de Rashid tinha comunicação com a saleta
de estar, e ninguém duvidava, inclusive os pais dela, que ele a usasse. Júlia também não sabia o que achava disso.
Rashid aceitou a proposta de bom grado, e quando eles entraram no cómodo suavemente iluminado, ela se sentiu tensa. O que acontecera em Erimos fora algo fora da
realidade. Ela conseguira fingir que não era uma Sebastiani e que Rashid não era um Kamal. Mas agora era a vida real. Ninguém podia fingir que era outra coisa. Tudo
o que os rodeava, desde seus livros prediletos até os objetos adquiridos nas suas muitas viagens ao exterior ou recebidos de presente, evidenciava o fato de ela
ser Sua Alteza Real, a princesa Júlia Sebastiani.
Não fique nervosa por minha causa disse Rashid, interrompendo seus pensamentos.
Ela levou um susto.
Não, não estou.
Ela foi para a janela que se abria para o sul... para Tamir. Então se lembrou do que dizia sua babá, quando não se comportava: "O rei Ahmed Kamal está chegando!
Ele virá pelo mar e entrará por esta janela para pegar você!"
Acredite, Júlia, eu entendo.
Ela se virou. Rashid estava parado no meio do quarto e parecia muito à vontade.
Entende o quê?
Que não vamos fazer amor aqui no palácio. Que estamos no mundo real.
A respiração dela podia ser ouvida no silêncio. Júlia inclinou a cabeça.
Ainda bem.
Também acho que é melhor ficarmos longe um do outro. Posso ver em seus olhos que, aqui, sou seu inimigo. E eu não gostaria de me deitar com uma inimiga.
Você já se deitou.
Júlia não entendia muito bem o que ele queria dizer.
Não. No château cheguei a pensar que você sentia por mim o mesmo que eu por você. E em Erimos você estava muito diferente... era uma mulher, e não uma Sebastíani.
Agora tudo mudou. Talvez eu conseguisse seduzi-la com caricias e beijos, mas não quero fazer isso. Quero apenas... o prelúdio de uma vida juntos.
Dito isso, ele entrou no quarto para dormir.
Acho que, devagar, estamos chegando lá disse Júlia, folheando e comparando dezenas de cartas de Delia espalhadas sobre a mesa da biblioteca. Eles tentavam estabelecer
uma cronologia, mas faltavam algumas cartas, em outras não havia data e em outras ainda era difícil decifrar o que estava escrito.
Vamos tentar entender: Delia chega em Londres em janeiro de mil oitocentos e noventa e um. Conhece lady Elizabeth Worthington. E convidada para passar a Páscoa
em Halstead, onde conhece o duque e a duquesa. E imediatamente se afeiçoa ao duque, e ele a ela. Ela escreve algumas cartas ao irmão Julius, mas a maioria é para
seus pais. Em dado momento Julius vai a Londres para encontrar-se com o outro irmão, Ugo, em Sandhurst. Ela continua escrevendo para ele. Delia foi a Halstead outras
vezes naquele ano, a última talvez em novembro. Parece que o duque a toma sob sua proteçãoo. Ele visita as meninas na escola, leva-as para tomar chá, mas sem a duquesa.
Há também duas visitas de Ugo e Julius, ambas em Sandhurst.
Júlia folheou mais algumas cartas sob o olhar amoroso de Rashid.
Mais adiante. Delia pede permissão para retribuir tanta gentileza convidando Elizabeth para passar as festas de fim de ano em Montebello. A mãe de Elizabeth pretendia
apresentar a filha à sociedade na primavera. A duquesa convida Delia a debutar junto com sua filha. Delia exulta de felicidade. Ela pede permissão aos pais, a princípio
eles relutam mas acabam permitindo. Isso tudo acontece no final de mil oitocentos e noventa e um, creio eu.
Júlia pegou mais algumas cartas de outro maço.
De volta a Montebello, Delia passa a escrever a Julius, que ainda está em Londres, com muito mais regularidade. Deve ter sido quando ela soube de seu compromisso
com Ornar. Acho, então, que agora temos que ler as cartas que ela escreveu a Julius.
Eles separaram as cartas de Delia para Julius, escritas em Montebello.
Mãos à obra, então disse Júlia, respirando fundo. Talvez precisassem de um especialista em caligrafia do século dezenove, porque muita coisa era indecifrável
e a informação estava sendo prejudicada. A princípio, eles se alternaram na leitura em voz alta, Júlia teve mais sucesso que Rashid, talvez pelo fato de o inglês
ser sua língua materna.
San Sebastian.
Querido Julius.
Como eu gostaria que você estivesse aqui para as festas! Tenho certeza de que gostaria muito de lady Elizabeth, se a conhecesse.
Será que ela está tentando bancar o Cupido?Júlia comentou.
Ela é linda, tem os mesmos cabelos encaracolados e os olhos azuis do irmão...
Não, acho que está escrito "mãe" Júlia corrigiu-se.
..e está adorando Montebello. Ontem fomos passear no desfiladeiro no lombo de mulas...
Por acha que é "mãe"? Rashid interrompeu-a.
Porque Elizabeth não tinha irmãos. O duque morreu em mil oitocentos e noventa e dois sem realizar esse sonho, lembra-se?
Júlia pôs a carta de lado e pegou outra.
San Sebastian.
Querido Julius.
Meu pai acaba de me dar uma notícia muito estranha. Será que você já sabe? Ornar, o príncipe herdeiro de Tamir, pediu minha mão em casamento. Melhor dizendo, o rei,
seu pai, fez isso em nome dele. Papai e o rei Mukhtar acreditam que o casamento criará um vínculo entre nossos dois países. É claro que devo obedecer a vontade de
meu pai, mas é muito estranho que eu deva me casar com um homem que não conheço. Papai disse que vou viver no palácio de Tamir e que eu devia ficar feliz por um
dia me tornar rainha. Mas sei que não serei feliz por isso. Sei também que posso abrir meu coração para você, querido irmão. Eu não quero me tornar rainha de lugar
nenhum.
Júlia olhou para Rashid.
Aqui tem um borrão que parece ter sido feito por uma lágrima. Não é interessante que ela tenha se negado tanto, a princípio?
Será? Rashid questionou.
Bem, você acha que ela tinha alguma curiosidade em relação ao noivo. E também esperança. Mas Delia declarou claramente que não gosta da ideia. Não quer saber de
aventura. Por outro lado, ela saiu de Londres por vontade própria.
Talvez porque já estivesse apaixonada sugeriu Rashid.
Por quem? Ela não menciona ninguém em suas cartas. O único homem de quem ela parece gostar é o pai de Elizabeth. Mas acabou se apaixonando por Ornar quando o
conheceu, não é? Será que ela escreveu ao irmão depois desse encontro?
San Sebastian, 4 de janeiro de 1892.
Querido Julius.
Papai acabou concordando que eu vá para Londres nas ferias. O noivado não será anunciado até eu voltar, embora eu deva me encontrar com o príncipe uma noite dessas.
Sou tão agradecida a ele! Tenho um pai maravilhoso e jamais devo pensar em magoá-lo. Viajaremos dentro de três semanas...
Está vendo? Júlia interrompeu a leitura. Ninguém a obrigou a ir a Londres... Ela estava louca para ir. Veja, aqui está a mancha da lágrima.
Estou tão feliz que mal consigo escrever. A carta já está toda borrada, Julius, mas são lágrimas de felicidade.
Júlia estava radiante.
Vamos levar uma cópia desta carta a seu pai? Acha que ele se convenceria?
Rashid pegou a carta da mão dela e examinou-a com cuidado.
Sim, acho que ela pode provar alguma coisa. Mas ainda não encontramos nada de depois que ela conheceu Ornar. Talvez ela tenha mudado de ideia.
Júlia decidiu continuar.
Tudo bem, ela disse que eles iam se encontrar. Vamos então procurar uma carta escrita uns quinze dias adiante. Se ela escrevia a Julius praticamente toda semana,
então...
San Sebastian, 15 de janeiro.
Querido Julius.
Eu o conheci. O príncipe Ornar e seu pai desembarcaram no cais de San Sebastian pouco antes da terrível tempestade. Nem quero pensar no que teria acontecido se fossem
apanhados em alto-mar. Foi uma visita oficial, com banda e tudo.
Você quer saber o que senti pelo príncipe. Tentei escrever "meu futuro marido", mas minha mão tremeu. Ele é moreno, tem olhos pretos, rosto nobre e altivo. Não é
muito alto... talvez tenha a sua altura. Eu diria que é bonito, mas uma beleza um tanto selvagem.
Ele apertou minha mão com força e olhou-me de uma maneira que me assustou. O príncipe deu-me um anel e disse que quer se casar logo. Ele não fala inglês muito bem.
Apesar da dificuldade para entendê-lo e do nervosismo em que me encontrava, consegui dizer que nos casaríamos depois que eu voltasse de Londres. Papai já havia dito
isso a ele, mas Sua Alteza mostrou-se ansioso e declarou que o casamento devia acontecer logo, apertando minha mão a ponto de machucá-la.
Senti uma pontada no coração. O que será de mim naquele palácio estranho, sem meu pai e minha mãe, sem você? Oh, Julius, como eu queria que fosse diferente!
Não foi um bom começo Júlia murmurou. Quanto tempo será que levou para ela mudar de ideia?
Será que mudou?
Para se apaixonar por ele? Já sabemos que sim.
Eu a vejo afastando-se dele, o que acirrou seu instinto predador e deixou-a ainda mais assustada.
Mas ele era bonito, com olhos pretos, era nobre e estava apaixonado por ela.
Mas será que ela gostava de olhos pretos?
Bem, ela parece descrever um príncipe de conto de fadas, não?
Será?
Júlia deu de ombros.
É como eu sempre o imaginei: cabelos cacheados, olhos escuros, capaz de derrotar o génio do mal e o cavaleiro negro com um único golpe de sua espada brilhante.
Rashid riu.
Ela estava acostumada a uma cultura que era muito britânica. E eu sei que Ornar era árabe da cabeça aos pés.
Ainda acho que, no fim, ela se apaixonou por ele. Esta carta não o acusa de nada sinistro. Apenas paixão.
Júlia, ela praticamente admite que desejou que o navio afundasse na tempestade.
Mas as pessoas podem se apaixonar depois da hostilidade inicial, não?
Rashid riu e seus olhos brilharam, Júlia corou diante de sua própria realidade.
Estamos falando de Delia ela lembrou.
Sim ele concordou. Mas fico contente que o príncipe que você imaginou em seu conto de fadas tivesse cabelos e olhos negros.
CAPÍTULO IX
Nem Júlia nem Rashid podiam se afastar de seus compromissos oficiais por muito tempo. Naquela noite ela deveria comparecer ao Gala Artes.
Posso acompanhá-la? Rashid se ofereceu. Júlia riu. Imagine a comoção que não causariam!
A mídia toda estará presente! É a abertura do Festival de Cinema de San Sebastian. Não seria bom aparecermos juntos depois de eu ter desmentido o nosso noivado.
Rashid deu de ombros.
Quem se importa?
Júlia pensou melhor e concluiu que seria bom ir acompanhada do belo e perigosamente atraente Rashid. "Pelo menos vão parar de insinuar que sou frígida quando virem
como Rashid me olha", ela pensou.
Rashid foi como um relâmpago até sua casa no final da tarde e voltou ainda mais maravilhoso num elegante smoking preto. Júlia usou um lindo vestido longo decotado
azul-acinzentado, com uma abertura do lado que deixava entrever boa parte de uma das pernas. Ajustado à cintura, o vestido em nada contribuía para esconder a gravidez.
Os cabelos estavam presos ao redor de uma tiara de brilhantes, num desalinho natural que obrigara Micheline a passar algumas horas em pé. E como jóias estava usando
o bracelete "da sorte", brincos e colar de diamantes.
Quero ver me chamarem agora de "A Donzela de Gelo" ela brincou.
Quem tiver olhos para ver jamais dirá isso. Talvez a chamem de Feiticeira do Fogo. Você está linda, Júlia Rashid acrescentou num tom de voz cálido e sedutor
que parecia fazer o sangue dela derreter.
A festa de gala acontecia nos suntuosos salões do cinema de San Sebastian, uma construção vitoriana que passara por uma grande reforma nos anos sessenta. Apesar
da presença de celebridades de todo o mundo, o organizador quase desmaiou ao ver quem estava ao lado de Júlia.
Sua Alteza Real, quanta honra! ele exclamou, enquanto seu assistente fazia uma desajeitada mesura, girava sobre os calcanhares e desaparecia pela escadaria
que dava acesso ao auditório, atordoado pela inesperada presença.
Eles fazem mais sucesso que Charles e Camilla Júlia ouviu. alguém comentar, quando se juntaram aos outros convidados na sala de espera.
Quem diria que eles apareceriam juntos depois daquela entrevista!
As mulheres estão sempre mudando de ideia um homem retrucou.
Júlia não pôde evitar olhar para Rashid. Ele estava sorrindo e seus olhos brilharam ao cruzar com os dela.
No final, a cerimônia foi linda, muito mais do que qualquer evento a que ela comparecera nos últimos anos.
Júlia se casará comigo!
Júlia e o príncipe herdeiro de Tamir, Rashid Kamal, estão "destinados um ao outro" e vão acabar se casando. O príncipe apareceu de surpresa na abertura do Festival
de Cinema de San Sebastian, ontem à noite, e disse que Júlia apenas exercia seu direito de ser "cortejada" antes de dar o sim.
O que você acha que está fazendo? Júlia gritou, furiosa. Ela estava sozinha na varanda do Jardim das Rosas, tomando o café da manhã. E quase engasgou lendo o
Messenger. Imediatamente pediu o telefone.
Na noite anterior, Rashid fora para Tamir após a recepção.
Alô? Rashid atendeu preguiçosamente.
Você não podia ter feito isso!
É claro que podia ele disse sem se alterar. E acrescentou, antes que ela respondesse. Vale tudo no amor e na guerra, lembra-se?
Júlia estava furiosa.
Não é amor, lembra-se?
Isso é o que você diz.
Mas logo se tomará uma guerra se você não parar com isso!
Está bem. Tentarei chegar mais cedo amanhã, para a entrevista coletiva.
Chegar aonde? ela perguntou, sem entender.
Estou transferindo todos os meus compromissos menos importantes. Já tenho gente para trabalhar nos nossos arquivos. É claro que os seus são mais importantes. Amanhã
tomaremos juntos o café da manhã.
Você...
O que acha de passarmos o dia em Erimos?
O quê?
Eu adoraria passar mais alguns daqueles momentos adoráveis. Vai ser melhor do que ficar aí.
Eu não pretendo ir outra vez a Erimos.
Está recusando meu convite? Rashid perguntou desapontado.
Sim, estou Júlia disse com mais firmeza do que esperava. As lembranças de Erimos a enchiam de saudade por inúmeras razões. Era impressionante como uma simples
palavra a deixava intoxicada da liberdade, da paixão que lá tinham vivido.
Está bem Rashid desistiu eu sinto muito, Júlia. Não vou mais insistir.
Bom.
Mas posso raptá-la ele brincou, antes de desligar. Júlia estava segura de que fizera a melhor escolha. Mas...
14 Rajab, 1309
De Ornar ibn Mukktar ibn Wasim ai Sadiq ai Kamal a seu honorável pai, o rei Mukhtar ibn Wasim ai Sadiq ai Kamal
Em nome do Único Deus, o Compassivo, o Misericordioso,
Que Paz e Bênçãos se derramem sobre Vós!
Honorável pai,
Deus sela louvado. Estou bem depois da difícil jornada. Faz frio, o ar está muito úmido, e a neve é mesmo um fenómeno admirável, como disse Ibn Batuti, Mais ainda
é a neblina. Imagine o ar transformando-se numa nuvem diante de você, uma nuvem espessa e sufocante. Mas faz frio e não tem areia. Orar é difícil. Comprei uma pequena
bússola para localizar o Leste quando o dia é como a noite. Os campos são ricamente férteis, embora seja inverno e muito pouco cresça nesta estação...
Quatorze Rajab é uma data do calendário islâmico? perguntou Júlia.
Rashid assentiu.
Temos de ver qual é o seu correspondente no calendário ocidental.
18 Rajab
..lady Delia não está na capital, mas na casa do duque de Rochester, a uns vinte quilómetros daqui. Comprei cavalos e um veículo, e pretendo ir buscá-la. Soubemos
que esse mesmo duque esteve na casa do rei Augustas em Montebello, uma semana antes de a princesa Delia partir da casa de seu pai, para trazê-la de volta a seu país...
O duque em Montebello? Júlia exclamou. O que ele veio fazer aqui?
O duque e a duquesa devem ter ido visitar a filha.
10 Sha'ban, 1309
..os irmãos da princesa me procuraram esta manhã no hotel em Londres. Vieram com a incumbência de avisar que a princesa não quer mais se casar. Eles pediram que,
"como um cavalheiro", eu retirasse meu pedido... Eu empurrei um deles pela escada do hotel.
Júlia visualizou a cena.
É a última carta?
É. Há mais um telegrama informando o rei da morte de seu filho.
Júlia lembrou-se imediatamente de Lucas, da reação de seu pai ao saber por telefone que o avião havia desaparecido. Existe tragédia maior para um homem do que perder
seu filho primogênito?
Não estou entendendo. Por que os irmãos de Delia foram enviados com uma missão tão delicada? Se Augustus mudou de ideia e desistiu das terras com as minas de
cobre recém-descobertas, por que não usou os canais diplomáticos? Por que não enviou embaixadores ao rei Mukhtar?
Rashid balançou a cabeça afirmativamente.
E por que culpar Delia? ele acrescentou. Naquela época, a opinião de uma mulher era totalmente irrelevante. O pai dela ofereceu-a em casamento. O noivo a quis.
Ela era propriedade do pai e como tal foi formalmente vendida.
É uma conclusão óbvia Júlia murmurou pensativa.
Sim Rashid concordou. Delia quis se ver livre dele. Seus irmãos procuraram Ornar em nome dela, para dar a notícia.
Mas por quê? Se ela o amava, por que fez isso? E se não o amava, por que se matou quando ele morreu?
Não foi possível encontrar nenhuma carta de Delia a seu irmão Julius após o encontro com Ornar. O que era muito estranho.
Você acha que Julius deu cabo dessas cartas? Júlia perguntou. Ele recebeu as cartas dela em Londres, mas levou apenas algumas para casa quando voltou... a
menos que...
Júlia levantou-se e foi falar com Arthur, que estava no alto da escada procurando os volumes.
Arthur, é possível que algumas cartas de Delia para Julius tenham sido guardadas em outro lugar? Entre os papéis oficiais, talvez?
Limpando a poeira das mãos, Arthur desceu com cuidado. Já não era mais um homem jovem. Na verdade, estava para se aposentar. Arthur era bibliotecário do palácio
desde que Júlia se conhecia por gente. Era uma valiosa fonte de informações para quem quisesse pesquisar sobre a família ou a história de Montebello.
Arthur, você está precisando de um assistente ela sugeriu delicadamente.
Ele concordou.
Há um ano estou querendo falar sobre isso com seu pai. Quero treinar alguém antes de me aposentar e preciso de tempo.
Vou falar com papai.
A que cartas Vossa Alteza se referia?
Não há nenhuma carta de Delia para Julius depois da metade de janeiro de mil oitocentos e noventa e dois. É possível que Julius as tenha guardado em outro lugar
para não irem parar nos arquivos da correspondência da família após sua morte?
Arthur pensou por um momento, enquanto limpava as mãos com um lenço.
Julius foi Secretário de Assuntos Estrangeiros durante o reinado de seu irmão Ugo. É possível que alguma correspondência pessoal tenha se misturado aos arquivos
oficiais. Isso seria, vejamos... talvez de mil novecentos e doze a mil novecentos e trinta e nove. Julius renunciou em favor de alguém mais jovem quando Montebello
apoiou a Inglaterra na Segunda Guerra Mundial. Isso foi por volta de outubro de 1939.
Júlia sorriu admirada.
Arthur, ninguém jamais poderá substituir você! - Ele inclinou a cabeça.
Obrigado, princesa. São trinta anos neste ofício. Vocês terão de ser pacientes com meu sucessor por um bom tempo.
Os dois riram.
Começarei a pesquisar as pastas oficiais de Julius esta tarde. - Quando Júlia voltou para sua mesa, Rashid perguntou:
Você tem algum compromisso esta tarde?
Não. Pedi a Valerie que não marcasse nada para os próximos dias.
Estou pensando em almoçar em San Sebastian. Quer vir comigo?
Júlia adorava ir à cidade na semana do festival de cinema. Havia sempre uma excitante vibração no ar.
Deve estar lotado de fotógrafos ela avisou.
Encontraremos um lugar onde eles sejam proibidos de entrar Rashid prometeu.
O palácio de San Sebastian ficava no alto da colina de onde se descortinava a enseada e o porto. Muros altos circundavam o palácio sobre a face do rochedo que descia
até o mar. Eles saíram por uma porta lateral e deram a volta nas garagens. O motorista de uma pequena van de entregas estava fechando as portas do veículo.
Espere disse Rashid, quando o motorista já ia em direção a cabine. Que tal levar dois passageiros?
Assim, um minuto depois Rashid e Júlia, agachados atrás de um motorista perplexo, atravessaram os portões sem ser vistos. A van passou despercebida pelos fotógrafos
que ali estavam de sentinela e, rindo como duas crianças fugindo da escola, eles chegaram rapidamente à cidade.
O passeio principal, que margeava a baía de San Sebastian, tinha do outro lado elegantes construções pintadas de branco da era colonial, protegidas pela sombra de
duas fileiras de ciprestes altos. Do outro lado ficavam ancorados os iates e os barcos a vela, cujos cascos balançavam suavemente à brisa.
Eles desceram da van numa rua lateral e seguiram por uma ruela estreita em direção à baía. O sol brilhava e estava quente, mas havia uma brisa constante que ajudava
a refrescar. Júlia, de vestido azul estampado, estava usando um chapéu Panamá muito elegante, amarrado com uma fita azul, e óculos escuros. Rashid também estava
de óculos e chapéu, mas não demoraria muito para que um dos inúmeros caçadores de celebridades que rondavam por ali descobrisse a dupla real.
Mas por algum tempo eles se mantiveram anónimos. Caminharam pela movimentada rua de comércio onde frutas e verduras eram oferecidas juntamente com belas peças de
artesanato, roupas infantis e fitas de vídeo, e depois pelo deque de madeira, ao lado dos pequenos barcos ancorados, admirando a bela paisagem.
Júlia sempre gostara de momentos como aquele, em que podia andar "invisível", quando as pessoas nas ruas ou não a reconheciam ou a deixavam em paz, respeitando sua
privacidade. Mas dessa
vez estava especialmente agradável. E ela não queria saber por quê.
Prefere ir a algum lugar? Rashid perguntou.
Em geral almoço no clube. Mas Júlia não queria encontrar amigos ou pessoas conhecidas.
Que tal este? Rashid parou ao lado de uma placa esculpida em madeira e fixada no deque: "The Seafarer Restaurant. Almoce a bordo de um elegante iate na baía
de San Sebastian, com vista para os rochedos".
Vamos experimentar? Ele olhou ao redor.
Ah, isto é novidade. Nunca havia visto... Júlia começou.
Se formos rápido, talvez não nos vejam. Imediatamente, Rashid tomou a mão de Júlia e ajudou-a a embarcar na pequena lancha ali ancorada.
Não parece que eles tenham muito movimento Júlia comentou, quando já se afastavam da baía. Somos os únicos clientes.
Rashid deu de ombros.
Podemos ir a outro lugar se não gostarmos do cardápio.
A lancha logo se aproximou de um espetacular iate azul e branco. Rashid saltou para a plataforma de desembarque e estendeu a mão para Júlia. Ela subiu a escada na
frente e no alto um garçom negro vestido com uma jaqueta impecavelmente branca esperava para recebê-la. Ele sorriu, e Júlia desconfiou que eram os primeiros a chegar
naquele dia.
Seja bem-vinda. Sua Alteza Real disse o garçom, curvando-se e sorrindo. Ahlan wa sahlan wa marhaba!
Obrigada ela respondeu automaticamente.
Rashid subiu logo atrás e pôs a mão na cintura dela enquanto acompanhavam o garçom que os conduziu a um deque fabulosamente decorado sob um toldo listrado azul e
branco. Júlia parou para olhar ao redor. Era muito mais luxuoso do que qualquer outro restaurante flutuante que ela conhecia.
Ela se sentou numa confortável poltrona estofada, apoiou os pés na amurada e aceitou um coquetel oferecido por um garçom. Outro homem se aproximou, curvou-se e disse
alguma coisa em árabe. Ela deixou que Rashid escolhesse os pratos.
Rashid acomodou-se no sofá ao lado dela. Júlia suspirou.
Quanta paz!
Ao longe, San Sebastian se estendia ao longo da curvatura da baía, a longa avenida com os ciprestes verdes à frente dos prédios baixos, e, atrás, a cidade se erguia
em níveis sucessivos como um anfiteatro grego. Nos rochedos à esquerda, visível a distância, ficava o palácio. Mais abaixo, à direita, o clube náutico e ao lado
a rua de comércio por onde eles haviam passado.
Rashid e Júlia conversaram muito enquanto bebiam, e Júlia apontava para vários pontos importantes da cidade, entre eles o cinema onde eles estiveram e o San Simeon
Hotel, o mais luxuoso de San Sebastian, só para milionários e famosos, onde a maioria das celebridades que vieram para o festival de cinema estava hospedada.
Júlia se levantou para acompanhar Rashid e o garçom até a mesa. Também não havia outros clientes a bordo quando entraram no salão com ar condicionado. Eles foram
conduzidos a uma mesa posta para dois, com rica prataria e cristais, toalha de linho e guardanapos brancos. A mesa grande para oito pessoas continuava vazia.
Quando as entradas foram servidas e ela provou a salada, suspirou:
Perfeita! Estou realmente surpresa que ainda não tenham descoberto este lugar. Esperava que metade das celebridades do festival estivesse aqui. Elas adoram ambientes
requintados.
Quase não se ouviu o escaler ser erguido, o ronco sutil dos motores ligados. Um leve balanço indicava que a âncora fora erguida. Eram sons tão comuns que Júlia mal
os notava.
Quando o garçom se afastou, ela se inclinou sobre a mesa e disse:
Estive pensando...
Os olhos de Rashid se abriram.
Mudou de ideia?
O quê? Não. Não é nada sobre nós. Estou falando de Delia.
Que pena!
O problema é que, se ela não amava Ornar, por que se matou quando ele morreu?
O problema é convencer você a...
Rashid, você pode falar sério por um instante?
Eu estou falando sério.
O olhar dele fez seu coração saltar, apesar da determinação de permanecer imóvel. Ela pressionou os lábios e balançou a cabeça.
Você está dificultando!
Ótimo disse Rashid.
Quer me ouvir por um momento?
Quanto você quiser. Diga.
Ornar procurou-a por toda a Inglaterra, certo? Talvez com medo que ela fugisse do casamento.
Sem dúvida.
Bem, a minha ideia é... talvez Ornar tenha encontrado Delia sozinha e a tenha violentado. Ela procurou os irmãos e contou tudo. Eles o procuraram em Londres e
o ameaçaram. Houve luta e um dos irmãos acabou rolando pela escada. Ornar temia que a notícia chegasse a seu pai, então escreveu uma carta contando uma história
completamente falsa. Ugo e Julius o seguiram quando ele saiu do palácio, prepararam uma emboscada numa estrada deserta e o mataram. Delia, por sua vez, pressentindo
sua ruína, talvez até temendo estar grávida, se matou.
Júlia comeu mais um pouco de salada, encostou-se na cadeira e esperou.
O que acha da minha teoria? perguntou. Rashid continuou comendo e pensando no que ouvira.
E onde entra o anel de noivado nessa teoria? - Júlia ergueu os ombros.
Tem razão, esse é um elo frágil. A menos que ela tenha se matado numa crise de desespero após ter sido violentada. Para tentar destruí-lo, mas sem se desfazer
de um rubi muito valioso...
E perspicaz, Júlia, mas isso explica o fato de as armas de Worthington estarem no anel?
Talvez Elizabeth tenha dado a ela um anel de diamante como prova de amizade, e Delia tenha resolvido pôr um rubi no meio dele.
As sobrancelhas de Rashid se ergueram.
Ah! Isso faz sentido. Isso explica a montagem estranha... o rubi foi colocado sobre um anel já existente. Será possível fazer isso? Vou levá-lo a um joalheiro
para saber a opinião de um especialista.
Temos de checar as datas da morte dos dois, também Júlia disse. Quanto tempo depois do corpo de Ornar ser encontrado Delia morreu? Será que Arthur vai conseguir
localizar essas datas quando voltarmos do almoço?
Rashid estava com a cabeça abaixada. Ele a ergueu e seus olhos se fixaram nela com uma expressão desconhecida.
Acho que não vamos voltar depois do almoço. - Júlia riu involuntariamente.
Não? E aonde vamos?
Onde você quiser. Podemos navegar até Erimos ou ir para o Egito... qualquer lugar.
Júlia suspirou e olhou em torno. Já devia saber. E claro que sabia. Só não queria admitir.
Este iate é seu! ela constatou.
CAPITULO X
Rashid sorriu.
Eu avisei que ia raptar você novamente.
Sim, avisou, eu é que fui tola de não acreditar! O que está pretendendo? Espero que o serviço secreto não apareça por aqui para disparar contra o barco!
Eles só aparecerão se você acionar o sinal de emergência. - Júlia sorriu.
Bem que eu deveria. Talvez você aprendesse alguma coisa se o seu lindo iate ficasse destruído. Eles não são muito gentis em casos de rapto.
Por que está tão zangada? Rashid perguntou delicadamente. Quando achou que estávamos apenas num restaurante, você relaxou. Por que o fato de o iate ser meu
muda tudo?
Porque você me enganou!
Nem tanto. Você sabe que está segura comigo. Não tenha medo. Nada de mal lhe acontecerá.
Naquele momento, o prato principal chegou,
Relaxe, Júlia, e coma ele ordenou. Mas se fizer muita questão, podemos voltar imediatamente.
Quando a posta de atum grelhado com molho de salsa foi colocada na frente dela, a fome falou mais alto.
Por que fez isso, afinal? Júlia perguntou, pegando o garfo e a faca para comer.
Você sabe por quê ele disse secamente. Preciso estar com você, Júlia. Quero você na minha cama.
Uma onda de calor a envolveu. Júlia cortou um pedaço de atum e pôs na boca.
O que me diz? Rashid exigiu. Ainda não tinha começado a comer. Suas mãos estavam sobre a mesa, uma a cada lado do prato.
Sobre o quê?
Ele pegou na mão dela.
Vai se deitar comigo quando acabarmos de comer?
Você não disse que não faria amor comigo enquanto eu o visse como um inimigo?
No palácio, quando você olha para mim, vejo algo em seus olhos de que não gosto. É uma Sebastiani me vendo como um Kamal. Aqui não é assim. Não vejo esse olhar
agora.
É mesmo? Qual é a diferença?
Aqui, Júlia, você me olha como o pai da criança que está aí dentro. E me permite ver... a verdadeira Júlia.
Aquilo a deixou nervosa. O que ele queria dizer, afinal?
Me leve de volta depois do almoço.
Rashid assentiu. Então chamou o garçom, murmurou alguma coisa em árabe, e em seguida eles mudaram de assunto. Júlia concentrou-se na comida deliciosa. E a maior
parte do tempo a conversa girou sobre Delia.
O que seu pai diria se provarmos que Ornar violentou Delia? ela perguntou.
Vai achar justo que os irmãos dela o tenham matado Rashid afirmou sem titubear.
É mesmo? Ela se surpreendeu.
E claro que sim. Rashid ergueu as mãos. Como poderia ser diferente? Ele entenderia que os irmãos dela a defenderam e se viram no dever de vingá-la. Apenas
uma acusação pesaria contra vocês. Até mil novecentos e sessenta e sete, existia uma lei em Tamir que permitia à família aplicar uma justiça particular para esse
tipo de crime. Se ficar provado que Ornar violentou Delia, meu pai renunciará à reivindicação das Terras de Delia.
Não acredito que possamos fazer isso.
A menos que Delia tenha escrito alguma coisa para o irmão, numa dessas cartas perdidas.
Depois de comer, eles voltaram ao deque, rodeados pelo silêncio do Mediterrâneo. A uma hora da costa, estavam longe da vista de qualquer outro barco.
Quer conhecer o iate?
Júlia concordou, e Rashid conduziu-a pelo deque. Passaram pelas janelas da sala de jantar que haviam deixado havia pouco e cruzaram a porta da sala contígua. Havia
poltronas e sofás ao redor de algumas mesinhas baixas, um bar com banquinhos altos e uma escada que subia para o convés superior.
A decoração era no estilo oriental, desde as lâmpadas aos tapetes persas, incluindo o tecido dos estofados. Numa das paredes havia uma belíssima tapeçaria bordada.
Lembra a tenda de um sultão Júlia murmurou, sem saber se estava gostando.
Rashid mostrou a sala de jantar mais formal, e em seguida entraram num corredor com portas de ambos os lados que se abriam para os quartos de hóspedes, e na extremidade
desse corredor, a suíte principal.
Agora é mesmo a tenda de um sultão! Júlia exclamou, parada na porta.
Lanternas marroquinas, almofadas e tapetes do Bagestão, prataria de Parvani, um tapete persa de seda de beleza indescritível, tudo em tons de azul, marfim, marrom
e dourado. Era o oposto de Erimos. Júlia sentiu curiosidade de saber por que Rashid ficava tão à vontade entre mundos tão diferentes.
É o iate oficial de Tamir? ela perguntou.
Não, aquele é maior. Este é o meu iate particular, não é usado em ocasiões oficiais.
Como se chama? Júlia perguntou.
Fitnah, que significa "tentação". Venha.
Ele a levou de volta para o deque. Atrás da casa das máquinas ficava uma piscina com hidromassagem e um bar. Guarda-sóis azuis e brancos sobre as mesas faziam sombra
para cadeiras e espreguiçadeiras. Uma brisa refrescante soprava do mar.
Vamos tomar alguma coisa aqui? Rashid perguntou. Júlia debruçou-se na amurada, olhando para a vasta extensão azul de céu e mar. Ao longe, avistava-se uma vela
branca solitária nas águas escuras do mar.
Aceito ela murmurpu por fim.
Rashid indicou as duas espreguiçadeiras sob o guarda-sol, uma no sol, a outra na sombra. Júlia deitou-se na sombra e tirou as sandálias. Quando o garçom apareceu,
eles pediram água mineral com gás.
Traga uma garrafa com gelo, por favor Rashid pediu.
O garçom trouxe as bebidas e alguns salgadinhos, deixou na pequena mesa sob o guarda-sol e se retirou.
Rashid mudou de posição para ficar do lado de Júlia. Então sua mão morena e forte pousou no ventre dela. A sensação da mão quente em sua pele a fez sorrir.
Meu filho ele murmurou. Sei que é um menino.
Também acho. Tenho essa intuição desde que percebi que estava grávida. Antes mesmo de fazer o teste. Claro que eu estava torcendo para o resultado ser negativo.
Mas depois...
Depois que fizemos amor no castelo Rashid completou.
Acordei no meio da noite, soube que estava grávida e que era um menino.
E que iria criá-lo longe do pai. - Ela suspirou.
Você não estava presente. Assim como Lucas, podia não voltar. Não foi tanto uma decisão que tomei quanto a constatação de um fato.
Sinto por ter feito o que fiz naquele momento. Se eu não tivesse que partir... Se eu tivesse ficado a seu lado naquela noite, você não teria de encarar a necessidade
de criar seu filho sozinha. Teria sido mais fácil convencê-la a me deixar ficar com você.
Rashid tinha razão num ponto. Ter de enfrentar o pai sozinha, sentindo-se tão desamparada, de alguma maneira a isolara. Ela fora forçada a recorrer a reservas de
auto-suficiência que não sabia que possuía.
Mas você ainda está remando contra a maré, Rashid. Quando Luigi e eu nos separamos, prometi a mim mesma que não me casaria novamente, acontecesse o que acontecesse.
Depois, achei que se amasse alguém de verdade, talvez houvesse uma possibilidade. Dificilmente me casarei em nome da paz entre Montebello e Tamir. Ou para dar um
pai a meu filho.
E para fazer amor com seu marido em longas e quentes tardes em alto-mar?
Um tom rosado imediatamente coloriu o rosto dela. Outros barcos surgiram ao longe. O iate se aproximava de San Sebastian.
Você sabe quanto eu a quero, não, Júlia? Ela fechou os olhos e apertou os lábios.
Sonhei várias vezes com você depois daquela noite no castelo. Você está presente em todos os meus sonhos, seu corpo delicioso, suas costas que se curvam sob minhas
mãos, seus olhos, seus lábios... Você me deixa louco. Quero sentir isso outra vez. Quero ouvir seus gemidos suaves, famintos. Quero provar o sabor do seu desejo.
E você, Júlia? Sonha com minhas carícias, sonha que me deseja?
Ela apertou os lábios para não gritar. Por detrás das lentes escuras, olhava para aquele rosto moreno, tentador... e desviou rapidamente os olhos. Já estavam bem
mais perto da floresta de mastros que marcavam a marina.
A pele macia, o corpo despertando... Também sonho com você na água, nua, com areia na pele, os cabelos molhados. Sonho com tudo isso, Júlia. E então seus cabelos
se enchem de botões de flores. Beijo cada botão como beijo seu corpo, e as pétalas se abrem em minha boca como seu corpo se abre para mim, e você estremece de paixão.
Meus sonhos a perturbam, Júlia?
O que você quer? ela implorou.
Quero saber se você sonha comigo, se seu corpo ferve de desejo enquanto dorme. Você sonha com minhas mãos? Com minha boca? Sonha com meu corpo dentro do seu, fazendo-a
tremer de paixão?
Ele já não a tocava, tinha afastado a mão do ventre dela. O vento e a voz dele a acariciavam. O sangue correndo em suas veias era um rio de incríveis sensações.
Júlia dobrou um joelho e escorregou o pé pelo tecido quente da almofada. Só isso bastou para excitá-la.
Você me deixa louco. Quero fazer amor aqui, agora, a céu aberto, como fizemos em Erimos. Você também não deseja isso? Bastou o que já tivemos?
Ela não respondeu.
Para mim, não ele continuou com a voz rouca. Mesmo que nos amemos dia e noite por toda a eternidade, sempre haverá alguma coisa que eu queira de você. Acha
que conheceu todos os segredos do meu corpo e o que ele pode fazer por você em apenas um dia?
Rashid...
Isso, diga o meu nome. Diga que me quer. Mande-me virar este barco e perder-me no mar com você. Diga que quer ir para a minha cama e que eu lhe dê mais e mais
prazer. Diga, Júlia.
Alguém gritou ao longe, e em seguida ouviram-se o barulho de correntes e a âncora mergulhando nas águas escuras. Um marujo desceu da casa de máquinas e passou por
eles. Houve mais gritos e passos apressados enquanto o iate era manobrado até finalmente parar.
Eles continuaram sentados até os motores serem desligados.
Arthur esperava por Júlia na biblioteca. Seus olhos cansados brilhavam como nunca.
O que foi? ela perguntou. Encontrou as cartas, Arthur?
As cartas, não. Ele a levou até a mesa, onde outra caixa a esperava. O bibliotecário tocou na caixa com reverência. Mas espero que os diários da princesa forneçam
alguma pista.
Fez-se um súbito e profundo silêncio. Arthur sorria como se tivesse acabado de tirar um coelho da cartola.
Os diários de Delia? Júlia sussurrou.
Desde ontem estou empenhado em descobrir o que mais haveria desse período. Encontrei a caixa esta tarde. A princesa Delia mantinha um diário desde os onze anos
de idade, até morrer aos dezoito.
Está tudo aí?
Acho que sim. O último diário veio de Londres com outros pertences, após a morte dela. Há um comentário escrito por John Dale, que foi bibliotecário aqui após
a Primeira Guerra Mundial. Durante a década de vinte ele fez uma excelente catalogação dos papéis reais particulares. Lembro-me de ter lido algo sobre os diários
logo que comecei neste emprego.
Ele puxou o clipe que mantinha a caixa fechada e abriu a tampa. Dentro, havia dezenas de livros, de diferentes modelos e tamanhos.
Agora vamos conhecer a verdade. Júlia suspirou. E só então se deu conta de que temia conhecê-la.
Júlia virava as páginas com o coração apertado. Aquela menina teria apenas mais alguns anos de vida após escrever aquelas palavras.
Princesa? Júlia ergueu a cabeça das páginas amareladas pelo tempo. Vou embora. Quer que deixe a porta destrancada?
Oh! ela exclamou, voltando ao presente. Não, não, Arthur, cumpra a sua rotina. Pegarei uns dois volumes, se você achar que estarão seguros comigo.
Ele sorriu como se tivesse ouvido uma anedota, e Júlia procurou na caixa os volumes que mais a interessavam. Um deles começava em janeiro de mil oitocentos e noventa
e um, quando Delia fora estudar em Londres, e o outro em mil oitocentos e noventa e dois. Os últimos dois diários. Júlia despediu-se de Arthur e foi para seu quarto.
Rashid tinha ido para Tamir após o almoço no iate e só voltaria no dia seguinte. De sua janela, Júlia olhava na direção de Tamir, invisível além do horizonte, e
se esforçava para não sentir saudade. Sabia que Rashid tinha cancelado seus compromissos para os dias seguintes, portanto só precisava afastar-se dela por um tempo.
Ou seja, ele dormiria em Tamir naquela noite. Mas seu corpo ardia por ele. Rashid devia saber que ela seria incapaz de recusá-lo.
De repente o telefone tocou.
É Valerie, princesa. Lembre-se de que seu pai a espera para jantar.
Oh, eu estava planejando uma noite tranquila na companhia destes diários.
Na companhia de quê?
De nada. Quem virá jantar?
A embaixadora britânica e seu marido.
Já era tarde quando Júlia voltou aos seus aposentos, e mais ainda quando se livrou do traje formal e da maquiagem e acomodou-se na cama para começar a ler.
Ela pretendia começar devagar, entrar na vida de Delia pelo primeiro diário, e depois seguir cronologicamente pelos outros dois. O primeiro cobria o ano que Delia
passara na Inglaterra, inclusive sua volta a San Sebastian, no Natal de mil oitocentos e noventa e um, em companhia de lady Elizabeth.
Mas pelo adiantado da hora, ela quis saber apenas o que havia acontecido com Delia. Pegou então o último diário e abriu na primeira página.
5 de março. Halstead.
Qu ml 3 4t vi? Hut ml 3 4t 4d? 6m rht lil rbq. Brtr iss ht snrw s3 is. 2h iss 3 smt rmir mh. Htt 2você M Itlpp ht ríhr...
Imediatamente virou a página.
27 de janeiro, a bordo do Rainha de Montebetlo. Nossa viagem não tem sido fácil, mas não mais do que o esperado nesta época do ano. Elizabeth está passando muito
mal e não sai da cabine. Como não me sinto mal em viagens por mar, e o duque também não, fazemos companhia um ao outro...
28 de janeiro.
Rainha de Montebello. Uh sedrhgt 3 ml. 6m rht rbk n3 1 htsdn cps.
Júlia folheou rapidamente o diário. Praticamente a metade dele era indecifrável. Delia escrevera seus segredos em código.
CAPITULO XI
- Códigos e cifras eram muito usados no final do período vitoriano Arthur explicou na manhã seguinte. Em parte por causa da popularização do telégrafo. Para
enviar um telegrama, a mensagem era lida pelo menos por dois estranhos, ou o que era pior, por duas pessoas nem tão estranhas. Geralmente, pelas funcionárias do
correio local. Se vocês olharem as colunas pessoais do The Times da época, verão que havia mensagens criptografadas de vários tipos.
Quais eram os códigos usados? Rashid apontava um exemplo do código de Delia. Ele acabara de chegar, trazendo uma pilha de cópias dos arquivos reais dos Kamal,
mas os deixara de lado quando Júlia lhe mostrou os diários.
Principalmente dois. A cifra é usada quando uma carta é substituída por outra. Júlio César, por exemplo, usou uma simples substituição de cifra. Já o código tecnicamente
significa que as palavras foram substituídas. Os serviços secretos provavelmente usam códigos para referir-se a vocês, por exemplo. Como eles a chamam, princesa?
Júlia sorriu.
Acho que é Bailarina. Ela então voltou-se para Rashid. Há pouco tempo trocaram o seu para Cupido.
O deus grego do amor? ele perguntou.
Sim, e minhas irmãs são chamadas pelos nomes das renas do Papai Noel: Anna é Prancer e Christina é Dasher. E os seus, como nos chamam?
Até pouco tempo atrás eu soube que você era Warda, e eu, Bulbul. O bulbul é um pássaro noturno da Inglaterra, conhecido por sua paixão não correspondida por todas
as wardas... as rosas.
Fez-se um breve e significativo silêncio, providencialmente quebrado por Arthur.
Bem, esses são alguns exemplos de código. Mas há muitos outros tipos de mensagens cifradas. Delia parece ter usado vários. Não sei por quê. Algumas cifras se
baseiam em palavras-chave, e a menos que elas sejam descobertas, é pouco provável que o código seja decifrado. Vocês vão precisar de um criptologista. Eis aqui um
exemplo de como funciona uma palavra-chave cifrada. Arthur abriu um livro de referência sobre o assunto.
A pessoa define uma palavra-chave, embaixo dela lista o alfabeto, até preencher todas as colunas...
Júlia e Rashid acompanhavam a explicação.
Um tanto complicado Júlia murmurou, convencida de que jamais decifrariam o código de Delia. Como vamos encontrar a palavra-chave que ela usou?
Ela deve tê-la escrito em algum lugar. Rashid pegou o último diário e folheou-o de trás para frente. Na guarda do livro não havia nada escrito além do nome
de Delia Sebastiani e os algarismos 2/6. É o preço. O diário deve ter custado dois shillings e seis pence. Meia coroa.
Depois da última anotação, em catorze de março, o dia anterior, à morte de Ornar e cinco dias antes da morte de Delia, as páginas estavam em branco. Rashid folheou
novamente, de frente para trás. E de repente parou.
Esta não é a guarda original murmurou alarmado. É a última página que foi colada sobre a capa do livro.
Júlia e o bibliotecário se surpreenderam.
Deixe-me ver ela pediu.
Rashid estava certo. A última página do diário tinha sido colada sobre a capa.
Será que ela escreveu a palavra-chave na guarda e colou a última página para escondê-la?
Arthur franziu as sobrancelhas.
Nesse caso, como teria acesso a ela, caso precisasse?
É verdade! Júlia concordou, decepcionada. De que serviria? Mesmo assim...
Rashid continuava concentrado no diário.
A capa também foi mexida ele disse em voz baixa, apertando a capa. Aqui, sinta.
Era um diário comum com lombada de couro. A capa era de papelão grosso com borda de couro. Entre o couro e o papelão havia algum tipo de material almofadado. Quando
Júlia apertou a capa da frente e a de trás, teve certeza de que esta última era diferente. O papelão cedera um pouco e o recheio era mais firme que o da capa da
frente.
Temos que descolar esta última página ela disse animada.
Mas com muito cuidado para não danificar nada que esteja escrito.
Talvez no vapor Arthur sugeriu.
Os três se dirigiram à pequena cozinha contígua à biblioteca.
Já fiz isso outras vezes ele explicou, enchendo a chaleira de água e acendendo o fogo. Se um livro precisa ser reencadernado, temos de tirar a encadernação
anterior sem danificá-lo.
Por alguns minutos ele segurou o diário aberto sobre o vapor da chaleira, tentando de tempos em tempos erguer o papel. Por fim, Arthur levou o livro para sua mesa
de trabalho e examinou-o sob uma lâmpada forte. O que se seguiu parecia sair de uma história de detetive. Os três se debruçaram sobre o diário, a respiração quase
ofegante. Em silêncio, Arthur pegou uma ferramenta e cuidadosamente descolou a página da capa. Os três suspiraram em uníssono. Então surgiu um corte na capa, cujo
papelão fora erguido e colocado de volta no lugar. Arthur pegou outra ferramenta e delicadamente ergueu as extremidades do corte. Dentro havia um papel dobrado.
O código de Delia Júlia murmurou.
O papel tinha manchas marrom nas bordas. Rashid estava tenso e alerta.
Eu acho que não discordou.
Com um delicado par de pinças, Arthur extraiu o papel e colocou-o sobre a mesa. Depois, empurrou-o sob o facho de luz e, com toda a delicadeza, muito lentamente,
para impedir que algum documento centenário fosse danificado, começou a abri-lo.
Não eram os códigos, e sim uma amarelada e manchada licença Especial de Casamento, lavrada pelo Arcebispado de Canterbury, autorizando o casamento de Robert Worthington,
duque de Rochester, com Delia Isabella Sebastiani.
Ah, aqui está disse Arthur. Robert, o oitavo duque, morto em mil oitocentos e noventa, deixou o título e as propriedades a seu filho, também chamado Robert.
Os três estavam ao redor da mesa da biblioteca, cercados por vários livros de referência.
E foi com o jovem Robert, o nono duque, morto em mil oitocentos e noventa e dois, sem herdeiros, que o título se extinguiu.
Oh! Júlia lamentou, tendo esquecido essa parte da historia.
Temos a data exata da morte dele? Rashid perguntou.
Não nesta referência. Não sei bem onde buscar essa informação, a não ser na Central de Registros de Família, em Londres, onde todos os registros de nascimentos,
casamentos e mortes estão arquivados. Talvez nos arquivos da família Worthington, se é que existem. Aqui não há nenhuma menção ao que aconteceu com a propriedade.
Ou como foi que ele morreu. - Arthur recostou-se na cadeira.
Essa informação deve estar... Ele pegou outro grosso volume de referência, debruçou-se sobre ele e leu: "O título foi extinto quando o nono duque foi morto
num trágico acidente de caça aos vinte e seis anos de idade."
Rashid voltou à licença de casamento e examinou-a atentamente.
Será que o duque de Rochester estava com sua licença de casamento quando foi caçar? ele murmurou, meio que para si mesmo. Porque estas manchas são de sangue.
Agora tudo começa a fazer sentido Júlia recapitulou. Halstead estava de luto quando Delia lá esteve... era pelo pai de Elizabeth. E o duque tão nobre e tão
belo, por quem Delia se encantou... era o irmão de Elizabeth. O novo duque! Não admira que todos comentassem a nobreza com que ele sustentava o título com apenas
vinte e poucos anos de idade.
Ela olhou para Rashid com respeito renovado.
Você tinha razão. Delia não se animou com a proposta de Ornar porque já estava apaixonada. Pelo novo e jovem duque de Rochester.
Por mais meia hora eles se debruçaram sobre todas as cartas de Londres e Halstead, lendo-as agora sob um novo ponto de vista, acompanhando o caso de amor entre Delia
e o irmão de sua amiga.
Por isso ela queria tanto voltar a Londres. Não só para debutar na sociedade, mas na esperança de que algo acontecesse que pudesse impedir seu casamento com Ornar
Júlia concluiu. Ou, talvez, para viver um último momento de felicidade antes que seu destino fosse selado.
Do Comissário de Polícia Metropolitana, Coronel Sir Ed-ward Bradford, Bt. GCB. GCVO. KVSI. 28 de setembro de 1892.
A Sua Majestade, o Rei Mukhtar ibn Wasin ai Sadiq ai Kamal
Corte Real de Tamir.
Caro Senhor.
Depois de nossa longa correspondência e sua mais recente carta do dia 5 deste, venho repetir o que já lhe disse em ocasiões anteriores. A Polícia Metropolitana investigou
suas alegações contra os príncipes Ugo Sebastiani e Julius Sebastiani e não encontrou indícios que sustentem qualquer suspeita de que um deles ou ambos estejam implicados
na trágica morte de seu filho. Após minuciosa investigação, o comandante-em-chefe, responsável pelos jovens príncipes no Colégio Real Militar em Sandhurst, cavalheiro
e oficial da mais ilibada integridade, testemunhou que esses jovens oficiais faziam exercícios de campo nos dias 14 e 15 de março, a muitos quilometros de distância
da cena do crime, os quais foram por ele vistos inúmeras vezes no decorrer desse período.
Parece definitivo disse Júlia.
Sim Rashid confirmou. Não imaginei que as investigações naquele tempo fossem tão precisas. É pena que Mukhtar não tenha se convencido dos fatos, apesar das
muitas cartas provando que ele estava errado.
Júlia recostou-se relaxadamente na cadeira.
E agora, para onde vamos?
Para a Inglaterra disse Rashid. Tentar rastrear os registros da família Worthington e ver o que ainda existe. Tenho negócios a tratar lá. Posso antecipar minha
viagem. Você vem comigo?
Júlia suspirou, pensativa.
Preciso pensar. Quando você vai?
Amanhã, talvez, já que estou com a agenda livre.
Eu vou pensar.
Júlia levou Rashid para a Grande Galeria, onde ficavam os retratos da família, e mostrou-lhe uma foto emoldurada da infeliz princesa. Ele se viu diante de uma menina
bonita, com dezesseis anos de idade, rosto oval, a pele clara e luminosa, um olhar profundo. Os cabelos longos e escuros chegavam-lhe à cintura. Usava uma boina
branca na cabeça e um vestido branco sobre o busto jovem.
Ela tinha o nariz delicado das Sebastiani, as sobrancelhas arqueadas. Seus olhos traduziam um desejo profundamente perturbador. A boca parecia-se com a de Júlia,
tinha os lábios cheios, promessa de uma natureza apaixonada.
Acho que esta foto foi tirada pouco antes de ela ir para a Inglaterra. Parece estar saindo da adolescência, não? Júlia murmurou. Acho que ela amadureceu muito
no ano que passou na Inglaterra.
Delia teria sido uma linda mulher disse Rashid.
Ele se impressionou especialmente com o rosto, talvez por saber que ela não viveria para realizar seus sonhos. Que a tragédia a esperava.
Os dois gostavam dela disse Júlia.
Sim. Não é de surpreender que Ornar tenha se apaixonado assim que a viu.
Acho que com o duque também foi paixão à primeira vista.
Certamente ele já estava apaixonado antes de ela voltar a Montebello. Por isso veio até aqui para acompanhá-la de volta à Inglaterra.
Será?
Rashid olhou para Júlia.
Ele queria que ela voltasse com ele. Certamente temia que outro homem a visse e tentasse conquistá-la enquanto estava em casa.
Júlia perguntou-se como Rashid reagiria se outro homem a quisesse. Tomaria como uma afronta pessoal ou apenas acharia que seus planos de paz estariam ameaçados?
Sim, é verdade. Será que ele se declarou antes de ela sair de Londres? Acha que eles ficaram noivos secretamente?
Ela teria contado ao pai quando Ornar a pediu em casamento?
Talvez Júlia respondeu. Devia estar muito assustada. Ou sentindo-se no dever. O dever estava em alta naquela época. Especialmente o dever para com a família.
Rashid riu alto.
E hoje não está?
O que você quer dizer?
Não é o dever para com sua família que a impede de se casar comigo?
Júlia engoliu em seco.
Não! Do que é que você está falando? - Ele balançou a cabeça, pacientemente.
O que é o "tempo fora do tempo" para você, Júlia? Não seriam aqueles momentos em que você não é uma Sebastiani e eu não sou um Kamal? E o que isso significa? Que
você está fazendo um sacrifício e que só você sabe de que tamanho, no altar dos deveres familiares.
Isso é absurdo! ela rebateu.
CAPÍTULO XII
Rashid fora para Londres sozinho. Júlia sabia que quanto mais frequentemente aparecesse em público com ele, maior seria a expectativa em relação ao casamento. Com
medo de fraquejar, ela chamou um jornalista e esperava, nervosa, a matéria ser publicada.
Enquanto isso, dividia seu tempo entre ler as partes legíveis do último diário e tentar decifrar o restante. Conseguiu um livro sobre códigos e tentava os vários
métodos de cripto-análise ali citados. Passava a maior parte da manhã separando as cartas e aplicando a escala de número de frequência em inglês, e nada acontecia.
Mas até onde sabia, a linguagem original poderia ser francês, alemão ou italiano, todas elas línguas nas quais Delia era versada. E a escala de frequência era diferente
para cada uma.
Uma coisa peculiar nas passagens codificadas é que todas eram compostas de grupos de duas, três e quatro de letras. O teste corrido de Delia não tinha um vocabulário
tão limitado, o que sugeria que o agrupamento fazia parte do próprio código. Mas isso era puramente ao acaso. Não havia nenhum padrão de dois, três ou quatro caracteres
que indicasse algum significado. E a mistura de algarismos também era incomum, de acordo com os códigos que o livro descrevia.
Juba tentou uma cifra baseada na palavra-chave "Julius" e não chegou a lugar nenhum. Em seguida tentou "Graça", o nome da égua de Delia. O trabalho era cansativo
e frustrante, e não era possível saber se todas as possibilidades haviam sido eliminadas, o que transformava a busca de outra palavra-chave nos diários e naa cartas
algo completamente inútil.
Talvez você esteja procurando na direção errada Rashid disse ao telefone. Ele havia ligado para contar o que estava acontecendo. As terras de Worthington pertencem
hoje a lorde Devere. A casa e os jardins estão abertos ao público. Marquei uma visita particular à casa e pedi para examinar os arquivos da família Worthington.
Isso será na segunda-feira.
Enquanto isso ele visitou o centro de registros e conseguiu saber a data da morte de Robert Worthington: vinte de março de mil oitocentos e noventa e dois.
Um dia depois que Delia se suicidou Júlia disse no mesmo instante. Mas isso não faz nenhum sentido! Por que ela se matou, então?
Não é o que esperávamos Rashid concordou. Mas chequei duas vezes a data da morte dela.
E foi mesmo em dezenove de março?
Sim, o registro da família está correto.
E Omar foi morto no dia quinze. Não faz sentido. A menos que Delia estivesse definitivamente apaixonada por Omar. Suponhamos... suponhamos que Robert tenha matado
Omar para ficar com Delia e depois ela descobriu que Omar era seu verdadeiro amor, sentiu-se culpada e acabou se matando. Em seguida Robert se matou de remorso.
E se ela ajudou Robert a se matar?
Você acha que Delia era lady Macbeth?
Não parece muito provável. Vou tentar checar os arquivos do jornal The Times para ver o que foi noticiado na época. É bem possível que a morte do segundo duque
de Rochester dentro desse período de tempo tenha causado certa comoção.
Os jornais! Nunca havia pensado nisso Júlia admitiu. Também devem ter noticiado a morte do príncipe Omar, não acha? E da princesa de Montebello.
Eu vou conferir.
Em seguida eles conversaram sobre o que ela estava conseguindo levantar nos diários e sua batalha com os códigos. E Rashid disse:
Talvez você esteja procurando na direção errada. Tente por outro caminho.
Por exemplo? Júlia perguntou, subitamente desapontada.
Estava pensando em quanto Rashid vinha se esforçando para acabar com a rixa familiar. Era o primeiro em quatro gerações a se erguer contra a estúpida lavagem cerebral
perpetrada pelas famílias, passando esse ódio a cada nova geração. Isso fazia dele um homem verdadeiramente independente. E um espécime bastante raro.
A própria Júlia aceitara a rixa sem questionar. Absorvera a história já no leite materno, uma animosidade limitadora que não servia para nada senão alimentar a discórdia
e a miséria no mundo. E então lhe ocorreu que se não houvesse rixa familiar entre os Kamal e os Sebastiani, também não existiria o grupo auto-intitulado Filhos das
Trevas. Como eles conseguiam sobreviver? Convencendo os Sebastiani de que suas bombas e os sequestros eram ar-quitetados pelos Kamal.
O ódio alimentando um ódio ainda maior.
Como todos tinham se comportado como tolos nos últimos dez anos! Todos menos Rashid. Não era de admirar que tivesse se apaixonado por ele. Rashid tinha todas as
qualidades que um homem deveria ter: era nobre, dedicado, carinhoso e, sobretudo, alguém que pensava por si meamo. Era inteligente, tinha senso de humor e estava
determinado a fazer do mundo um lugar melhor para se viver. O mistério era nunca ter enxergado nada disso.
Mesmo assim não podia se casar com ele.
O que foi? Rashid perguntou, percebendo que algo acontecia do outro lado da linha.
Só estava pensando disse Júlia.
Em quê, posso saber?
Em nada.
Júlia preferia que ele não soubesse. Não queria falar em casamento, não naquela hora. Rashid riu.
Nada? Duvido. O que é que a está perturbando, Júlia? - Ela suspirou.
Estava pensando em um século de... de estupidez, de ignorância. Não há nada a dizer sobre isso. A não ser... que desperdício!
Isso quer dizer que você deixou de pensar em mim como um Kamal? Rashid perguntou, num tom ansioso.
Acho que sim. De repente aconteceu. É tudo uma grande tolice. Cem de anos de brigas para quê? Porque uma garota se apaixonou pelo rapaz errado. Porque ela queria
ser feliz, queria amar por si mesma, e não ser tratada como uma peça de um grande jogo. Não é pedir muito, é? Júlia perguntou, sem perceber quanta angústia havia
em sua voz. Por que ela não podia ser tratada como um ser humano em vez de uma portadora de um título?
Isso quer dizer que vai se casar comigo? Rashid insistiu.
Não disse Júlia, com tristeza, mas firme. Não, não é nada disso. É exatamente o oposto, Rashid. Sinto muito.
Depois disso eles não voltaram a discutir o diário codificado de Delia. Mas o que Rashid dissera levou Júlia a tentar outra vez, com outra abordagem. Talvez estivesse
complicando demais. Delia era uma garota de dezoito anos que escrevia um diário, não uma espiã registrando segredos. Ela não precisava temer que o departamento de
códigos da Secretaria de Assuntos Estrangeiros tentasse decifrar seu código, apenas queria proteger seus pensamentos de olhares curiosos.
E provavelmente nunca tivera acesso a um livro sofisticado de códigos e cifras como o que Júlia estava usando. O ponto mais importante, ela de repente se deu conta,
era que Delia tinha escrito seu código na maior parte das vezes em letra cursiva. Qualquer espião que usasse as complicadas palavras-chaves codificadas teria usado
letra de imprensa, porque cada uma devia ser analisada separadamente. Mas o código de Delia tinha que ser fácil de se memorizar para fluir facilmente de sua pena.
Eram apenas seis os algarismos usados. Júlia havia pesquisado todo o diário e estava quase certa disso. E dois deles sempre apareciam juntos: 1 e 3. O primeiro palpite
foi de que seis números corresponderiam às vogais a, e, i, o u e y. Mas ela abandonou essa hipótese porque, nesse caso, cada palavra teria pelo menos algarismos.
E muito poucos grupos de letras continham algarismos. Mas ela decidiu testar essa hipótese outra vez. Escreveu uma frase em código.
Reescreveu em seguida, substituindo as vogais por números.
À primeira vista não pareceu muito promissor.
De repente Júlia percebeu que estava tensa. Essa não era melhor maneira de deixar a intuição fluir. Ela relaxou por alguns momentos, respirou devagar e profundamente.
Depois deixou olhos correrem pela linha de código.
"Delia", ela pensou, "vamos lá, conte-me o seu segredo".
E então seus olhos detectaram o óbvio. Se ela trocasse todas as palavras de duas letras, substituindo uma letra por um número, todas seriam palavras em inglês: WE,
TO, MY, DO e MY, ou seja, nós, para, meu, fazer e meu.
Muito bem ela disse em voz alta. Estamos chegando a algum lugar.
Meu marido é descendente indireto do último duque de Rochester, Alteza disse lady Úrsula enquanto subia com Rashid uma escada de carvalho maciço. A bisavó
dele, Elizabeth, era irmã de Robert Worthington. Ela herdou a propriedade por vontade de Robert. E casou-se com lorde Henry Devere, que era irmão caçula, em mil
oitocentos e noventa e cinco.
Ela parou num largo patamar da escada. Ali, como em toda parte, as paredes eram cobertas por retratos de família.
Este é Robert. Seu retrato foi feito imediatamente após ele receber o título, felizmente, pois ele viveu menos de um ano, até o acidente. Há uma ou duas fotografias,
mas nenhuma tão boa quanto este retrato.
Rashid e lady Úrsula pararam para olhar o retrato pendurado na parede. Era um jovem bonito, com cabelos bem-tratados, olhos azuis e um sorriso charmoso.
Ele tinha vinte e cinco anos quando morreu. Uma pena que não tenha se casado ela murmurou.
Há algum documento na história familiar de que na época da morte ele estivesse pretendendo se casar?
Ela voltou-se para Rashid surpresa.
Não. Eu estudei muito sobre a família de meu marido. - Lady Úrsula fez um gesto indicando uma corda atravessada na passagem para a ala privada. Como muitas casas
nobres da Inglaterra, Halstead tinha de ser aberta ao público ou vender suas terras para pagar dívidas.
As pessoas querem saber a história do lugar e da família e eu mesma escrevi a maioria dos guias e brochuras. Mas nunca ouvi nada semelhante. O senhor tem alguma
razão particular para ter feito essa pergunta?
Eu vi uma licença de casamento no nome do duque disse Rashid.
Lady Úrsula, uma mulher esbelta e elegante, com pouco mais de cinquenta anos, olhou para ele. O misto de surpresa e incredulidade em seu rosto fez Rashid rir.
O senhor viu? Onde? E quem era a moça?
Estava escondido no diário da princesa Delia de Montebello. Nos arquivos reais de San Sebastian. É um registro do casamento de Delia com Robert.
Princesa Delia de Montebello! Ela ia se casar com Robert? Mas... espere um minuto, estou me lembrando da pessoa certa? Não pode... Ela se virou e foi até uma
escrivaninha onde havia uma grande pasta preta. Temos estes pacotes de informação para nossos guias, sabe, caso os visitantes façam perguntas sobre os retratos.
Rapidamente ela procurou entre as várias páginas plastificadas até encontrar o que estava procurando.
Aqui está. E leu em voz alta: "O jovem no retrato que está no centro da parede é Robert Charles Fitzroy Mountlan Worthington, o nono e último duque de Rochester.
Robert herdou o título de seu pai em novembro de mil oitocentos e noventa. Na primavera de mil oitocentos e noventa e dois, o cavalo de Robert voltou para casa com
a sela vazia. Pessoas saíram imediatamente a sua procura, mas Robert voltou sozinho. Estava seriamente ferido. Caiu do cavalo sobre a própria arma. Viveu por tempo
suficiente para fazer um testamento em nome de sua irmã, Elizabeth, bisavó do atual proprietário."
Úrsula olhou para Rashid.
Não, não há nada aqui. Sei que temos alguma informação sobre a princesa Delia. É claro que o suicídio foi completamente abafado. Acredito que tenha acontecido
na época em que ela escorregou de uma pequena ponte e caiu no rio durante uma tempestade... Ela franziu a testa tentando se lembrar. Mas o motivo do suicídio
não foi a morte do noivo?
É o que se acreditava até agora. A licença de casamento só foi descoberta recentemente.
Lady Úrsula ergueu as sobrancelhas num súbito interesse.
Está me dizendo que há ligação entre as mortes? - Rashid fez um movimento com o queixo.
Como o noivo dela morreu?
Foi morto na estrada entre este castelo e Londres. A polícia nunca encontrou o responsável e concluiu que ele foi mais uma vítima dos salteadores de estrada, apesar
do fato de nada ter sido roubado quando o corpo do príncipe Ornar foi encontrado.
Príncipe Ornar! Sim, agora percebo a ligação! Ornar era seu...
Meu tio-bisavó. Assim como Robert, eu também não teria herdado nada se Ornar tivesse vivido.
E está em todos os jornais que você vai se casar com a princesa Júlia. Desculpe-me se é muito pessoal, mas isso é verdade ou não passa de mais um boato publicado
por tablóides?
É a mais pura verdade. Pretendo me casar com ela.
E está tentando esclarecer esse velho mistério... Algo a ver com o casamento?
Rashid sorriu.
Acertou. Estou decidido a terminar com a rixa entre nossas famílias. E acho que estou perto de conseguir.
Você acha que a morte de Robert pode ser relevante? Bem, deve ser, se, como você diz, existe uma licença de casamento! Ela fez uma pausa, batendo no lábio com
a ponta do dedo. Você sabia que o lorde Henry Devere, bisavô de meu marido, era o melhor amigo de Robert na época de sua morte?
As sobrancelhas de Rashid se ergueram.
Não sabia disso.
Harry morreu em mil novecentos e quarenta e um. Só há um membro da família ainda vivo que o conheceu bem. Elizabeth morreu na epidemia de gripe em mil novecentos
e dezenove, e Harry casou-se novamente. A filha desse segundo casamento ainda está viva.
Será que ela pode nos dizer alguma coisa?
Brtr sh ds ktt WE smt psk TO MY pp, tb, l rd tn. I vh Itd brtr htt smt DO MY tdy.
Se essas palavras eram simplesmente letras invertidas, talvez todas elas também fossem. Então Júlia escreveu:rtrb hs sd tth WE tms ksp To MT pp. bt I dr nt. I hv
dtl rtrb tth I tms DO MY ydt.
Em seguida ela procurou pistas. To my pp.
A meu papai! ela exclamou em voz alta. Tem de ser! Você tirou as vogais das palavras maiores, Delia, e colocou-as numericamente nas palavras menores. E todas
as consoantes foram invertidas!
Júlia escreveu a frase novamente com espaços entre as consoantes, depois tentou levantar significados.
Algumas palavras fazem sentido dessa maneira Júlia disse a Rashid quando ele telefonou à noite. Ela já tinha se deitado e estava lendo quando ele ligou. Então
pôs o livro de lado e pegou o caderno de anotações que deixara perto da cama caso ele ligasse.
Mas há algumas combinações que não fazem nenhum sentido. Como ksp e ydt. Não há nenhuma combinação de letras desse tipo na língua inglesa. Tentei francês e italiano,
caso ela usasse palavras estrangeiras, mas também não consegui encontrar nada.
Me parece árabe.
O quê?
O sistema de escrita arábico deixa fora todas as vogais, como Delia fez.
E mesmo? Júlia ficou intrigada.
E mesmo o truque de inserir uma vogal onde existe apenas uma consoante, tal como em to e my, se repete em árabe, para evitar que uma palavra tenha uma única consoante.
Júlia franziu a testa, pensativa.
Ela era uma linguista e tanto. Conhecia quatro idiomas. Você acha que... ksp significa alguma coisa em árabe?
Não existe p no alfabeto árabe.
Então vamos deixar de fora!
Se isso a deixa feliz...
Era verdade: Júlia não podia disfarçar a satisfação em seu tom de voz. Ela queria decifrar, o código, e se metade estivesse em árabe, teria de esperar que Rashid
voltasse.
Bem, você não pode fazer todo o trabalho de detetive. Posso continuar sozinha.
Não tenha pressa.
Júlia consultou suas anotações.
Ydt. Faz parte de uma frase. Vem depois de do my. - Rashid caiu na risada.
Você não consegue, Júlia? Ora, vamos lá!
O que quer dizer?
Estou desapontado. Sem dúvida, você e Delia têm muito em comum, se é que consegue perceber.
Júlia ficou calada.
- Já pegou, não pegou?
Duty... dever! Oh, Rashid, só pode ser isso. Ela embaralhou as letras ou qualquer outra coisa. Vou trabalhar nisso.
Não hoje. Já é tarde.
Não, já estou na cama.
Está doente? ele perguntou, preocupado.
Eu estava lendo. Vou apagar a luz agora mesmo. Ela aconchegou-se nos travesseiros, o fone encostado no ouvido.
Apague a luz enquanto estou falando com você.
Ela obedeceu em silêncio. Rashid esperou até ouvir o dique do interruptor.
Está escuro, Júlia? Você está deitada?
Estou.
Gostaria de estar aí com você ele sussurrou. Deitado ao seu lado. Queria estar amando você. Se eu estivesse aí, você faria amor comigo?
CAPITULO XIII
Júlia mordeu o lábio, sentindo um frio dentro do ventre.
Quero ver você. Quero imaginar você. O que está usando, Júlia? Rashid perguntou numa lentidão sedutora.
De repente seu corpo ficou quente. Ela mordeu o lábio mais uma vez.
Diga-me.
Uma camisola azul.
Ah, combina com seus olhos? - Júlia engoliu.
É azul-marinho.
O que deixa seus olhos mais escuros. Como o céu noturno. Como safiras. Seus olhos são duas safiras esta noite, Júlia?
Nem imagino. Ela tentava resistir.
Sei que são. Esta é uma noite de luar. Consegue ver isso de sua cama?
Estou vendo as estrelas.
Elas estão refletindo seus olhos. Gosto mais das estrelas quando as vejo em seus olhos, Júlia. De que tecido é sua camisola?
De seda.
Seda... Ele pronunciou a palavra como se provasse a maciez da seda, como algo delicioso. Há algum laço para ser desamarrado?
Alguns.
Sobre os seios, Júlia? Há um laço repousando sobre a curva dos seios?
Ela não resistiu. De repente inspirou quando uma sensação deliciosa atravessou seu corpo. Um leve gemido foi ouvido por ele.
Diga-me.
Sim ela murmurou.
Seus seios estão encostados na seda. Imagine que estou aí, Júlia, na cama ao seu lado. Olhando para você sob a luz das estrelas, tocando você. Consegue me ver?
Rashid...
Não, não proteste. Eu abro seus braços e lá estão seus seios sob o laço azul-marinho, dois botões perfeitos cobertos pela seda.
Júlia sentiu a pele arrepiar.
Ponha a mão em seus seios, Júlia, e imagine que são minhas mãos neles, tocando você.
Oh... ela sussurrou, indefesa.
Meu polegar acaricia gentilmente o botão, muito delicadamente, está sentindo? A seda faz um leve ruído ao mover-se sobre os seios, como um sussurro de protesto,
e um perfume exala de sua pele. Consegue sentir o seu perfume, Júlia?
Ela não conseguia dizer nada.
Eu o sinto e fico embriagado. Estou beijando você, Júlia, nas têmporas, onde o coração pulsa delicadamente, nos olhos, no nariz, no rosto, nas orelhas, e volto
a beijar o pescoço. Minha mão está em seus cabelos, afastando-os para que meus lábios passeiem por onde quiserem. O cabelo é perfumado, Júlia, cada mecha é uma flor.
E cada flor exala seu perfume em meu nariz. Está sentindo? Eu sinto você, Júlia. Minha mão está em meus lábios, mas é você que eu beijo. Consegue sentir minha boca?
Rashid...
Diga que sente meus lábios em seu pescoço, bem ali onde bate o coração. Sente o meu beijo Júlia?
Ah, meu Deus! ela sussurrou. As sensações fluíam pelo corpo todo. Ela sentia-se derreter.
E seus ombros, também os estou beijando ele sussurrou. Minhas mãos acariciou pele suave dos seus braços. Eles são fortes, Júlia, mas as curvas são bem femininas.
Sabia disso?
Júlia sentia o sangue como ouro derretido correndo por todo o corpo, levado pelas palavras dele.
Sente minhas mãos em seus ombros e nos seus braços? Estou segurando com força porque você é minha, querida. Porque jamais a deixarei ir. Sabia disso? Não vou permitir
que se afaste de mim.
Ela engoliu e umedeceu os lábios, numa tentativa de protestar. Mas a voz não saiu.
Agora meus lábios encontraram seus seios na escuridão. Surpresa que eu possa vê-la sob a luz das estrelas? Ah, Júlia... sempre será possível encontrá-la na escuridão.
Como o poema. Se não por seu rosto claro, ao menos pela melodia dos seus ornamentos, se não por eles, então pelo seu perfume. Pela essência que é somente você.
Rashid... ela protestou mais uma vez.
Minha boca está em seus seios ele continuou, impaciente. Você a sente, quente e faminta. Minha língua busca o botão perfeito através da seda, a vontade de
prová-lo molha o tecido. E minhas mãos acariciam seu corpo, seus braços e ombros, suas costas, a cintura, as pernas... meus lábios se fecham em seus mamilos, eu
os sinto agora, Júlia, um sabor que é só seu. Você está me sentindo, faminto de seus seios, precisando de você, Júlia, querendo você?
Ela emitiu um gemido abafado.
Agora estou afastando o lençol, e lá estão suas pernas, a camisola de seda azul enroscada em suas coxas. Minha mão segura seus quadris... suas nádegas... seu
joelho... suas coxas.
Ela podia ouvir a respiração forte.
E desce novamente pelos quadris, atraída como que por um imã para o sache de aromas. Estou erguendo a seda agora, Júlia, olhando o seu corpo nu meu coração bate
com tanta força que você pode ouvi-lo. E o que a visão de seu corpo faz comigo. Meus dedos se enroscam nos pêlos sedosos, em ondas de mirra e âmbar-cinza. Abra suas
pernas para mim, Júlia. Sinta minhas mãos em suas coxas, separando-as, para que eu possa alcançar o que desejo. Meu corpo está rijo. Consegue senti-lo? E meus lábios
estão lá agora, Júlia, buscando o seu sabor. Sente meus lábios em suas coxas, em seu ventre, Júlia? Diga, consegue sentir-me ali?
Sim ela sussurrou, a voz entrecortada.
Quanto mais provo mais quero você, Júlia. Sente minha língua firme em sua pele? Consegue sentir minha língua inquieta? Eu a amo, Júlia, seu corpo é como o mais
doce dos frutos proibidos. Agora vou abrir suas pernas... mais um pouco, Júlia, abra-as ao máximo para mim. E meus dedos estão lá agora, nas dobras macias e doces,
e minha língua. Seu corpo gosta disso? Diga-me.
Sim ela gemeu impotente. Sim..
Diga de novo. Diga "Eu gosto, Rashid. Gosto do que você faz comigo".
Oh, Rashid!
A voz dele em seus ouvidos lembrava-lhe os momentos em que o ouviu tão perto.
Diga, Júlia. Diga para mim. - Ela não resistiu.
Eu gosto, Rashid.
Gosto do que você faz comigo.
Gosto do que você faz comigo, Rashid!
E com essas palavras, seu corpo explodiu num arco-íris de prazeres e delícias, e ele bebeu o néctar de seu gozo.
Pela manhã Júlia despertou num preguiçoso bom humor, sorrindo para si mesma e derretendo-se novamente ao se lembrar da voz de Rashid. Ela sonhara com ele. No sonho
ele disse que a amava. Com isso, Júlia caiu de volta no mundo real. Lembrou-se do que ela e Rashid tinham descoberto, vestiu-se rapidamente e desceu ansiosa para
decifrar o código de Delia. Agora tinha certeza de que conseguiria.
Mas era domingo, e a família costumava se reunir para o café da manhã. Ainda mais agora, que Lucas se fora. Todos precisavam da confirmação dos laços familiares,
e justo nessa manhã Anna não estava presente. Então Júlia desceu para a saleta de café, onde o rei e a rainha já a esperavam.
O Messenger de domingo estava sobre a mesa.
"Ainda é NÃO!", Júlia gritava na manchete. Ela leu e foi sentar-se à mesa no lugar de sempre.
Querida, você andou dando mais entrevistas? sua mãe perguntou.
Apenas uma ela murmurou. Por favor, Amélia, quero café.
A princesa Júlia Sebastiani repudia, qualquer sugestão de que ela e o príncipe Rashid de Tamir, o pai do filho que ela espera, venham a se casar.
"Não está nos meus planos", a princesa confidenciou a amigos próximos. "Não me casarei só para dar um pai a meu filho. Tenho certeza de que o povo de Montebello
vai compreender que da próxima vez quero me casar por amor."
Sabe-se que a rainha Qwendolyn, mãe da princesa, recusou Marcus Sebastiani cinco vezes antes de finalmente aceitá-lo, mas Júlia afirma que não está fazendo nenhum
tipo de jogo...
Existe algum motivo particular para você e Rashid manterem essa briga pelos jornais? o pai perguntou, mastigando uma torrada com mel.
Júlia pegou um pêssego e mordeu-o. O sumo espalhou-se em sua boca. La fora, os sprinklers espalhavam pequenos diamantes por todo o gramado. Tudo parecia brilhar
naquela manhã.
Pergunte isso a Rashid. É ele que fica dizendo que vamos nos casar. Só o que faço é negar, quando ligam para Bertrand para confirmar.
A mãe apontou o jornal.
Isso não parece ter sido dito por Bertrand, querida.
Não, não foi. Fiquei muito brava depois do comentário que Rashid fez na abertura do festival, e eu mesma chamei Antônio. Ele disse que publicaria no domingo.
E uma pena que você e Rashid não estejam se entendendo. Mesmo assim, ele tem passado muito tempo aqui Gwendolyn comentou, e Júlia corou involuntariamente. Jamais
poderia dizer à mãe que chamara Antônio porque temia não resistir. O que ele pensa sobre tudo isso?
Duvido que Rashid tenha visto. Ele está em Londres neste momento.
E o que está fazendo lá? a mãe quis saber.
Faz parte da nossa investigação da história de Delia, mas acho que ele tem negócios a tratar também. Estou quase decifrando o código nos diários dela. Espero concluir
isso hoje.
É mesmo? Querida, como foi que você conseguiu isso? - Seus pais apenas balançaram a cabeça diante dos códigos complexos no livro que Júlia lhes mostrara.
É na verdade um código muito simples. O que ela fez foi eliminar as vogais e inverter ou embaralhar as letras. Talvez haja algum tipo de padrão nesse embaralhamento,
mas se não houver, espero que não me tome muito tempo tentar todas as combinações de letras até que algo apareça.
E quando conseguir, Júlia disse o rei será capaz de convencer o rei Ahmed a desistir de reivindicar as terras de Delia?
Esperamos que sim.
Isso inclui Rashid?
Sim.
Mas você disse que não vai se casar com ele.
Não. Não... isto é, não.
Tenho que dizer, Júlia ele começou, mas parou de repente e pigarreou. Está bem, está bem, não direi nada! murmurou.
Júlia virou-se a tempo de interceptar o olhar de sua mãe.
Eu acho, meu amor, que devemos deixar Júlia e Rashid cuidar de seus próprios assuntos observou Gwendolyn.
Brtr sh ds htt WE smt psk TO MY pp, tb I re tn. I vh Hd brtr htt I smt DO MY tdy.
Se Rashid estivesse certo, e tdy fosse duty, "dever", as primeiras duas consoantes tinham sido trocadas. Júlia tentou isso primeiro.
lrbtr hs sd tht WE mst spk TO MY PAPA, bt 1 dr nt. I hv tld rbtr tht 1 mst DO MY DUTY.
Era tão fácil quanto fazer palavras-cruzadas.
r-b-t-r has said that we must speak to my papa, but I dare not. I have told r-b-t-r that I must do my duty... r-b-t-r disse que precisamos conversar com meu pai,
mas não tenho coragem. Eu disse a r-b-t-r que devo cumprir meu dever.
Júlia deu um grito de alegria, r-b-t-r só podia ser Robert. Se o padrão se mantivesse, e as primeiras duas consoantes estivessem invertidas, as duas últimas também
estavam. Mas como havia dois erres na palavra, ela não tinha certeza. Júlia abriu o diário ao acaso e escolheu outra frase para testar a hipótese.
Júlia copiou, completando as palavras com algarismos no lugar das vogais e invertendo cada par de consoantes.
Eureca! Júlia gritou.
Sei que devia ter me recusado a ouvi-lo. Não devia ter confessado quanto o amava e há quanto tempo. Mas meu coração não me permitiu disfarçar quando ele me abraçou.
Por um momento, as estrelas ficaram muito próximas!
Júlia encostou-se na cadeira em que estava. Era doloroso assistir ao nascimento de uma tragédia, mesmo tendo se passado cento e dez anos. Seu coração batia forte
por antecipação. Ela queria gritar aos jovens amantes, "peguem um barco e fujam para onde ninguém os encontre!"
Decodificar todo o diário daria trabalho. Por ora, ela se contentou com o que já conseguira e passou a ler as páginas ao acaso. Agora que sabia como fazer, era possível
ler com mais fluência.
A medida que o fim de Delia se aproximava, Júlia foi se sentindo profundamente abalada. Ela vivera a mesma coisa. Sentira o que Delia sentira, com a diferença de
que não tinha um belo duque para lhe apontar uma saída. Queria simplesmente cair fora, e não tinha coragem de fazê-lo.
Pela primeira vez, desde que tudo acontecera, ela encontrou forças para enfrentar seu pai. Primeiro contou a ele a historia de Delia, até onde conseguira decifrar.
Depois leu algumas partes do diário, passagens em que Delia registrará os conflitos com sua consciência, seu sermão de dever para com o pai, seu sofrimento por ter
de submeter a um casamento sem qualquer promessa de felicidade.
O pai ouviu em silêncio. Estava sério, como se pressentisse o que vinha peta frente.
Pai Júlia disse gentilmente foi assim que me senti às vésperas do meu casamento há sete anos. Você acha certo que uma jovem se sinta assim antes de se comprometer
com um homem por toda a vida?
Fez-se um longo e significativo silêncio.
Não, Júlia, não acho que seja certo.
Então, por que o senhor fez tanta questão que eu me casasse com Luigi? Qual era o seu interesse nisso? Tenho o direito de perguntar, não tenho?
O pai abaixou a cabeça.
Tem todo o direito. Gostaria de poder lhe dar uma resposta objetiva, mas não a tenho. Se esperava ouvir que Mário di Vitale Ferrelli tinha algum domínio sobre
mim ou algo semelhante, não tinha. Achei que estivesse fazendo o melhor para você. Você é uma moça linda e apaixonada, Júlia. É uma princesa. Estava começando a
se expor aos olhos do público aos dezenove anos, e eu sabia que não demoraria muito tempo para que... Ele não terminou a frase. Tive medo de que você viesse
a sofrer. Como aconteceu com Christina mais tarde, por causa de um jovem com menos escrúpulos do que se imaginava. Achei que seria terrível se algum pretendente
revelasse detalhes do relacionamento de vocês à imprensa. Quis protegê-la disso.
Júlia olhou para o pai com tristeza.
Não digo que o senhor estivesse errado. Talvez algum tipo de escândalo fosse inevitável. Se ao menos tivesse me permitido escolher meu próprio caminho para o inferno,
talvez eu tivesse conhecido um pouco de felicidade. Da maneira como aconteceu, pai, vivi cinco anos insuportáveis e o escândalo aconteceu do mesmo jeito. Tudo o
que Luigi disse a meu respeito naquela maldita entrevista era mentira. Eu preferia que tivesse sido diferente.
Veja como fui tolo. Pior que isso. Sua mãe me disse que não devia fazer o que fiz, que você tinha o direito de cometer seus próprios erros. Mas, para meu eterno
arrependimento, não lhe dei ouvidos.
Júlia ficou em silêncio, pensando no que acabara de ouvir.
Por que Luigi? perguntou por fim.
Escolhi Luigi porque ele era de boa família e eu sabia que vocês se gostavam. Ele também era muito bem-apessoado. Foram esses os critérios usados na minha escolha.
Você parecia pensar que existiam outras razões, e eu deixei que pensasse porque... nem me lembro mais por quê.
E depois, pai, quando implorei para que me livrasse do compromisso? Antes de nos casarmos oficialmente. Quando expliquei que jamais teríamos um bom relacionamento.
Quais foram os seus motivos?
Não tenho resposta, Júlia. Foi um momento de fraqueza do qual ainda me arrependo. Foi uma idéia fixa. Sei agora que você tentou me alertar, mas as ideias fixas
são assim, ninguém consegue afastá-las. Espero que o seu casamento não tenha sido sempre tão terrível como foram os últimos meses.
Júlia passou a língua pelos lábios, debatendo-se consigo mesma. Então disse:
O senhor se surpreenderia se eu lhe dissesse que até passar aquela noite com Rashid Kamal eu era virgem?
Marcus fechou os olhos e ficou em silêncio.
Eu desconfiava... mas tinha esperança de que o casamento tivesse apenas degenerado. Que Luigi fosse capaz de amar tanto homens como mulheres.
Nunca foi um casamento de verdade. Pela primeira vez Júlia via seu pai tremer. Não havia nada entre nós além da fachada que exibíamos em público.
Fez-se um longo silêncio entre pai e filha. Então o rei Marcus deu um longo suspiro e ergueu a cabeça.
Júlia, se existe uma coisa de que me arrependo muito mais foi ter usado o seu amor por mim contra você. Esse foi meu grande pecado. Eu usei o seu amor e o seu
senso de dever. Usei o fato de você querer fazer o que era certo. Isso foi um erro grave pelo qual eu me arrependo profundamente.
Os olhos de Júlia se encheram de lágrimas. Era aquilo que ela queria ouvir.
Obrigada, pai.
Hoje eu sei, embora não soubesse antes, que nesses casos os filhos não deveriam ceder à chantagem emocional, porque não passa disso.
Júlia sorriu por detrás das lágrimas.
Eu deveria ter fugido, como Delia fez.
Ela fugiu?
Ainda não tenho certeza, mas acho que sim. Quando acabarmos de traduzir tudo vamos ficar sabendo. Ou talvez não. Ela não escreveu em seu diário nos últimos dias.
Rashid deve descobrir alguma coisa.
Isso me faz lembrar de lhe dizer uma coisa. Se a sua escolha for Rashid Kamal, Júlia, se você o ama, não deve pensar nem em mim nem na situação política. Faça
o que achar melhor para você e seu filho.
Eu não... não posso me casar com ele, pai.
Não? Mesmo assim, o que eu ouço em sua voz quando você fala nele ou com ele, me parece muito semelhante a amor.
Ele não me ama. Como Luigi não me amou. Não farei isso de novo por dinheiro nenhum deste mundo, pai. O senhor não imagina como... como isso é destrutivo. Não deixa
a gente ser o que é.
Rashid não ama você? Então por que ele está tendo tanto trabalho para desenterrar o motivo da nossa rixa, se não estivesse determinado a se casar com você?
Ele quer... quer um casamento para pôr fim à disputa e estabelecer a paz. E acho que também quer o filho dele. Sou apenas uma parte necessária de um pacote maior.
Júlia começou a chorar de verdade. Seu pai se levantou e tomou-a nos braços, deixando que ela chorasse em seu ombro.
Quem está aí, Úrsula?
Trouxe um jovem que quer vê-la, Alice. O nome dele é Rashid Kamal. E o príncipe herdeiro de Tamir. Rashid, esta é lady Alice Devere.
Rashid Kamal. A velha dama estendeu a mão e procurou a dele, que Rashid ofereceu num firme cumprimento. Temia que você não chegasse antes da minha morte.
CAPITULO XIV
- Fiquei arrepiado Rashid disse a Júlia na noite seguinte. Ele embarcara num vôo direto para San Sebastião, e agora eles estavam caminhando no alto dos rochedos
sobre o mar.
Ela disse alguma coisa interessante?
Muito. Mas me diga antes o que mais você encontrou nos diários. As informações que consegui são posteriores ao ponto em que o diário parou, e quero saber como
tudo se encaixa.
Júlía tomou fôlego.
Bem... eu li a maior parte dos últimos dois diários, e muita coisa nós já tínhamos mais ou menos previsto.
Me conte desde o começo.
Pelo que pude ver, Delia e Robert se apaixonaram desde a primeira vez em que ela foi a Halstead. Delia era obrigada a guardar segredo do seu amor, tanto que não
sabia se o escondia ou se o revelava ao amado, como faria se fosse mais experiente. Robert sabia que ela o amava, mas não achava certo declarar-se, estando ela oficialmente
comprometida. Mas quando Delia viajou para Montebello, ele teve medo de perdê-la. Temia que as circunstâncias a impedissem de voltar a Londres, mesmo ela tendo prometido
fazer isso. Então ele viajou, hospedou-se nas proximidades de Montebello e mandou um telegrama para Elisabeth dizendo que a acompanharia de volta a Londres. Isso
foi no final de janeiro. Eles foram para a França pegaram um trem, um barco e o trem novamente, e finalmente chegaram a Londres. A bordo do Rainha de Montebello,
na travessia Montebello-Marselha, Delia e Robert puderam ficar a sós, porque Elisabeth e a dama de companhia passaram mal e ficaram no camarote. Foi quando Robert
não aguentou e pediu-a em casamento. Delia contou que estava noiva do príncipe Omar e mostrou-lhe o anel. Mas também confessou que o amava. Por pouco ele não atirou
aquele rubi nas águas do Mediterrâneo. Ele queria
que Delia se livrasse do compromisso e aceitasse o seu pedido. Seu plano era esperar a apresentação à corte para depois pedir Delia em casamento. E tirou o anel
do próprio dedo para dar a ela. Delia prometeu usá-lo num cordão pendurado ao pescoço, por baixo da roupa.
Júlia fez uma pausa para tomar fôlego.
Eles chegaram a Halstead quando os preparativos da apresentação das meninas à corte seguiam a pleno vapor. Então, no final de fevereiro, tudo foi adiado porque
Elisabeth pegou sarampo. Nesse meio tempo, Ornar apareceu de surpresa na Inglaterra. Ele viera atrás de Delia porque achava que ela havia viajado contra a vontade.
Acreditava que ela o amava, mas que seu pai, depois de concordar com o casamento e o dote, resolvera voltar atrás para manter na família a lucrativa mina de cobre
recém-descoberta. Delia não soube como agir nesse encontro. Ficou muito aborrecida, principalmente porque Ornar quis ver o anel e não gostou do que ela havia feito
com a jóia. E ela também não soube explicar.
E o que foi que ela fez? Rashid perguntou.
Foi nessa ocasião, imagino, que Delia contou a Julius sobre Robert. Acho que não encontramos essas cartas porque Julius prudentemente as queimou. Por fim, Delia
implorou ao irmão que procurasse Ornar e desfizesse o compromisso. Já sabemos que ele foi com Ugo, que Ornar rolou pela escada. Delia ficou desesperada e contou
a Robert, que propôs fugir com ela para casar. Mas Delia se negou.
Também sinto por Robert.
A última entrada no diário, infelizmente, foi em catorze de março, e diz apenas que Elisabeth, que ainda estava doente, pediu a Delia que visitasse a família de
um pobre tenente, com a qual ela estava particularmente preocupada porque a jovem mãe estava para dar à luz. Delia escreveu que iria no dia seguinte, quinze de março,
levando panos limpos para o parto e também um pouco de sopa.
Júlia terminou de falar e por um momento eles ficaram em silêncio olhando os barcos iluminados e a lua refíetindo no azul profundo do mar.
Ela esteve aqui Júlia murmurou. Na noite anterior ao seu primeiro encontro com o príncipe Omar, Delia veio aqui para tentar acalmar seu coração e cumprir seu
dever. E implorou para ser liberada desse dever, se fosse possível.
Ela fez isso? Rashid perguntou suavemente. Sua voz era um murmúrio ao vento.
Sim. Ela escreveu isso. Veio aqui e rezou. E havia um navio passando ao lado, todo iluminado. Júlia riu baixinho. Deve haver alguma coisa especial neste lugar.
Eu fiz exatamente a mesma coisa antes de me casar com Luigj.
Você rezou?
Ela fez que sim com a cabeça.
Nas semanas que antecederam o seu casamento, lutei para não vir até aqui falar com seu pai. Eu sabia que se o seu casamento fosse por amor, você e Luigi já teriam
se casado há muito tempo. Para mim, um noivado que dura mais de dois anos não tem muito amor envolvido. E pensei comigo mesmo: se ela vai se casar com quem não ama,
por que não se casa comigo?
Júlia riu.
É mesmo? Eu não sabia disso.
Mas não tive coragem. Tive medo de passar por tolo. Ou ser acusado de sabotador...
O que será que meu pai teria feito se você tivesse vindo?
E você, Júlia, o que teria feito? Rashid murmurou.
Não sei. Jogar-me nos seus braços, talvez? Júlia lembrou-se da primeira vez em que ele a tocou no castelo. Se a química já funcionava sete anos atrás, em vez
de se controlar tanto... Júlia sentiu que estava entrando em terreno perigoso, e continuou, num outro tom de voz: Agora é sua vez. Me conte o que disse lady Alice.
A senhora estava esperando por mim? Rashid havia perguntado à velha senhora.
Por muito tempo esperei por seu pai ou um dos irmãos dele. Mas o tempo passou e isso não aconteceu disse lady Alice. Era uma mulher delicada, quase frágil. Estava
sentada num divã, ereta, de costas para uma grande janela. Os olhos muito azuis não se afastavam do rosto de Rashid. Eu sabia que ou viria você ou não viria ninguém.
O que tem a me dizer?
Sente-se meu jovem. Deixe-nos a sós, Ursula. Em seguida a senhora voltou-se para o príncipe. Até onde você já sabe?
Pouca coisa. Apenas que Robert Worthington e Delia Sebastiani se amavam.
Sim, é verdade. Harry Devere era o melhor amigo de Robert Worthigton e sabia desse segredo. Meu pai casou-se pela segunda vez com idade avançada. Minha mãe viu
todos os seus pretendentes morrerem na guerra. Acho que ela se animou quando lorde Harry Devere a pediu em casamento, embora ele fosse bem mais velho. Tinha sido
muito bonito na juventude e sua reputação se manteve.
Ela achou que faria um bom negócio. Sou sua única filha. Ela morreu quando eu ainda era pequena. Meu noivo morreu logo no inicio da Segunda Guerra. Eu vivia aqui
com meu pai, antes de a propriedade ser confiscada pelo exército. Todo mundo tinha ido para a guerra e só voltava de vez em quando. Harry estava doente e não tinha
ninguém para cuidar dele... a maioria dos criados havia se alistado. Então fiquei cuidando dele e, juntos, acompanhávamos o progresso da guerra pelo rádio. O médico
disse que ele não se recuperaria. A guerra não permite que se minta sobre essas coisas e Harry tinha de saber. Meu pai começou a relembrar o passado. Havia um fato
da sua juventude que o perturbava especialmente. Ele quis deixar tudo registrado antes de morrer, contando-me em detalhes como o príncipe Ornar de Tamir foi morto.
Rashid preparou-se para ouvir.
Sim assentiu a velha senhora eu escrevi o relato e ele assinou. Você pode ficar com esse documento. Não conheço mais ninguém que tenha direito a ele. Mas,
se quiser, posso lhe contar a história tal como ele me contou.
Por favor, faça isso Rashid pediu.
Uma tempestade começava a se formar lá fora e os primeiros pingos já batiam no vidro da janela. A sala de repente ficou escura.
Vai chover, não vai? perguntou lady Alice. Ainda consigo enxergar luz e sombra.
Sim, as nuvens estão bem escuras.
Harry Devere e Robert Worthington eram amigos desde que estudaram juntos em Eton. Não era uma boa época para se frequentar as escolas públicas na Inglaterra, havia
muita violência, mas Harry contava que os dois conseguiriam se safar dos perigos. Robert era o mais velho e defendia Harry, que sempre lhe foi grato por isso. Por
isso fazia tudo o que Robert Worthington lhe pedia. Então, quando Robert precisou da sua ajuda, Harry não recusou. Robert conseguiu uma licença especial para se
casar com Delia Sebastiani. Ela estava noiva do príncipe Ornar, mas o noivado ainda não era oficial, só entre a família. Todos viam que ela tinha uma queda pelo
duque e Harry se dispôs a ajudá-los.
Lady Alice suspirou.
Bem, eles esperaram uma oportunidade continuou. Um dia, Robert soube que Delia visitaria uma família pobre nos arredores, a pedido de Elisabeth. Ela entrou
na carruagem e nem olhou para o cocheiro, que era Harry, vestido de cocheiro, o chapéu cobrindo o rosto. Delia fez a visita, entrou na carruagem para retornar e
Harry tocou os cavalos. Já na estrada, de repente encontram Robert, que vinha em seu cavalo na direção oposta. Harry parou.
Robert explicou que seu cavalo tinha se ferido durante uma caçada, amarrou o animal atrás da carruagem e seguiu viagem ao lado dela. Harry virou na direção de Londres.
Ele não soube dizer se Delia percebera a mudança de rumo, mas sabia que Robert estava com a licença de casamento no bolso e sabia que ela não se recusaria a ser
sua prisioneira e se casar com ele. A tarefa de Harry era levá-los até Hanover Square, em St. George, sem parar. - Ela fez mais uma breve pausa antes de prosseguir:
Já estavam perto de Londres quando a tragédia aconteceu. Vinha uma carruagem na direção oposta que parou para deixá-los passar. Harry não imaginava que o condutor
fosse o príncipe Ornar, mas este deve ter notado o brasão dos Worthington no painel da carruagem e certamente viu Delia pela janela. Ele virou os cavalos para segui-los
e os ultrapassou. Então ficou atravessado da estrada e obrigou Harry a parar. Omar ficou enfurecido ao ver Delia sozinha com Robert no coche. Mandou-a sair imediatamente
e entrar na sua carruagem, mas Robert não permitiu. Na época, estava havendo uma onda de assaltos em Londres e todo mundo andava armado pelas estradas. Ornar sacou
a pistola, apontou para a cabeça de Robert e ordenou que Delia descesse. No mesmo instante, Harry pegou a espingarda que estava no banco e antes que Omar se desse
conta, apontou a arma para ele. Robert então sacou sua arma. E assim eles ficaram: Ornar sob a mira de Robert e Harry, Robert sob a mira de Ornar. Robert e Ornar
começaram a discutir, e Delia não disse uma única palavra. Eles estavam numa pequena estrada. Harry lembra-se de ter rezado para aparecer um fazendeiro conduzindo
numa carroça e desarmasse a bomba antes que explodisse. Mas uma raposa passou por entre as pernas dos cavalos de Ornar, assustando-os, e sua arma disparou. Robert
e Harry atiraram automaticamente. Ornar foi atingido na cabeça e no peito e caiu morto em sua carruagem. Os cavalos saíram em disparada, os de Harry para um lado,
os de Ornar para outro. Harry conseguiu controlar os seus e finalmente os fez parar. Chamou pelos passageiros para saber se estavam bem, mas a única resposta foi
de Delia pedindo ajuda. Ele saltou e abriu a porta. Encontrou Robert caído inconsciente e Delia, que tinha rasgado um pedaço de sua roupa, tentava estancar o sangue
que escorria pelo peito dele. Harry disse que outra mulher teria ficado histérica, mas Delia não. Ela disse calmamente: "Ele foi atingido, Harry. Vamos para Halstead,
por favor".
Lady Alice ficou em silêncio. Lá fora, lufadas de chuva batiam no vidro da janela. Mais além via-se outra ala da velha casa. Provavelmente nada havia mudado desde
a época de Delia.
Harry disse que Robert parecia bem e quis evitar perguntas incómodas de um médico desconhecido. Ele ajudou Delia a amarrar a bandagem em Robert, fez a volta com
a carruagem e rumou para Halstead. Foi uma viagem de mais ou menos uma hora. No caminho, Harry foi pensando que seria um escândalo se soubessem que o príncipe Ornar
fora morto numa troca de tiros com o duque de Rochester. Então arquitetou um plano. Quando chegaram perto de Halstead, ele contou-o a Delia. Em seguida, soltou o
cavalo de Robert pelos campos. Quando eles chegaram, Delia cobriu o vestido sujo de sangue com uma capa e entrou em casa como se nada tivesse acontecido. Harry disse
que nunca vira mulher mais corajosa. Ele foi para os estábulos, onde o mordomo já os esperava, instruído por Delia. Era quase noite. Os dois homens carregaram Robert
para dentro da casa e sem que ninguém percebesse colocaram-no na cama. Quando tiraram a roupa de Robert viram que o ferimento era muito mais sério do que imaginavam.
O médico de família chegaria logo para ver Elisabeth, que ainda estava na cama.
Ela estava com sarampo Rashid lembrou.
Exatamente. O médico que viu Robert era muito leal à família. Elisabeth e sua mãe certamente ficaram sabendo do acontecido, mas nenhum dos criados foi chamado
a ajudar. Só depois de muito tempo, quando o cavalo de Robert apareceu sozinho nos estábulos é que o alarme foi dado. Como era de praxe, os homens saíram para procurá-lo.
Uma hora ou duas depois foram chamados de volta. Disseram que Robert voltara mancando para casa, ferido, mas ainda conseguia andar. Eles chamaram o médico outra
vez. A história que se conta é que o cavalo de Robert empinou e o jogou no chão sobre sua própria arma, que disparou, ferindo-o. Quando a notícia de que o príncipe
Ornar fora encontrado morto numa vala perto de Londres se espalhou, ninguém ligou os dois fatos. E certamente não havia nenhuma prova. Os cavalos de Omar o haviam
levado para longe da cena do crime. Robert ficou de cama por vários dias. Quando ele recobrou a consciência, a família achou que ele se recuperaria. Sabendo que
era impossível se recuperar, Robert fez um testamento deixando a propriedade para Elisabeth. Ele falou com a mãe, a irmã e depois com Harry. Meu pai não contou o
que Robert disse nessa conversa. Mas eu desconfio que ele tenha abençoado o casamento de Harry com Elisabeth. Afinal, como filho caçula, Harry não tinha posses.
E Elisabeth era uma herdeira. Por último, ele falou com Delia e em seguida mergulhou na inconsciência. O médico disse que ele tinha poucas horas de vida. A princesa
Delia deve ter saído da casa nessa noite. Seu corpo foi encontrado na manhã seguinte, no rio que banha a propriedade. Houve uma tempestade durante a noite e a ponte
estava quebrada. Supõe-se que ela tenha escorregado na ponte quando saiu para caminhar. Robert morreu no dia seguinte. E o segredo foi guardado até hoje.
Júlia continuava com olhos perdidos na noite quando Rashid chegou ao final de sua narrativa.
Pobre Delia... ela disse por fim. Imagino como se sentiu, naquela carruagem, quando Robert a pediu em casamento. Deve ter ficado tão feliz. Então, minutos
depois...
Eles ficaram quietos, vendo um navio passar ao lado.
Eu visitei os túmulos Rashid disse. Ela está enterrada perto de Robert, num pequeno cemitério de aldeia.
É mesmo?Júlia murmurou. Que bom que eles acabaram ficando juntos.
E nós dois solucionamos juntos o mistério, Júlia. Vamos acabar com essa guerra familiar que já dura um século.
Você contou a seu pai?
Sim, por telefone. Ele está me esperando voltar com os documentos. Vamos dar uma declaração à imprensa na semana que vem. Meu pai retirará a acusação pela morte
de Ornar e abrirá mão da indenizaçào pelas terras de Delia. Ele pretende convidar seu pai para essa coletiva.
Então está terminado Júlia disse rapidamente, sem querer pensar no que viria a seguir.
E quanto a nós, Júlia? Será que vamos poder ficar juntos finalmente?
O coração dela bateu forte de ansiedade. Se ele soubesse... mas o que Rashid disse em seguida provou que em nada mudara a sua posição inicial.
Vamos também participar dessa coletiva e anunciar o acordo de paz com o nosso próximo casamento? Esta é a quarta vez que lhe peço em casamento, Júlia. Meu pai
me contou de sua última declaração aos jornais, rejeitando-me. Espero que seja a última. Sei que não me ama, mas acho que podemos fazer um bom casamento. Muita gente
começou com muito menos do que nós e o casamento deu certo.
E o que é que nós temos?
Nós gostamos de estar na companhia um do outro, não? Nós nos divertimos juntos e trabalhamos muito bem juntos. E fizemos um filho juntos. Também temos dois países
que pretendem viver em paz. Meu pai espera que nosso filho herde o trono dos nossos países, para que daqui a cinquenta anos Tamir e Montebello venham a se tornar
uma só nação. Temos todos os motivos para nos casarmos, Júlia. Então eu lhe peço, pela quarta vez, quer se casar comigo?
Ela respirou fundo, lutando contra a tentação. Ele ainda não entendera.
Júlia amava Rashid. Amava-o com uma intensidade que não imaginava existir. Amava-o de corpo e alma. Era o homem mais honrado que já conhecera. Mesmo que ele nunca
viesse a amá-la verdadeiramente, certamente seria muito bem tratada.
Sinto muito Rashid, mas não acredito que um casamento sem amor possa dar certo. Se eu já não tivesse me casado antes, talvez ainda tivesse esperança. Mas sei que
assim... só corrói a alma.
Ele tentou falar, mas a voz falhou. Rashid tossiu.
Tem certeza de que não vai conseguir me amar? Apesar de tudo o que já vivemos juntos, acha impossível?
A opressão que Júlia sentia no peito era quase insuportável. Uma risada amarga escapou de sua garganta e tudo veio à tona.
Rashid, você não percebe? Não pode entender? Eu já amo você! E por amá-lo que não posso aceitar um casamento político e não o contrário. Não percebe que a rejeição...
Ela parou porque ele pegou seu braço e a puxou para junto de si.
O quê? O que você disse? Que me ama?
Sim! Júlia não acreditava no alivio que sentia ao dizer isso. Sim, é claro que o amo! Eu me apaixonei por você naquela noite no castelo, quando você me abraçou
e eu não sabia quem era. Seus braços eram tão... tão seguros... tão protetores!
E por que não quer casar comigo? Porque me ama? Estou maluco ou é você quem está?
A lua se erguia no meio do mar, as estrelas se refletiam nos olhos dele.
Você não entende... Ela preferia não ter dite nada, porque estava a ponto de chorar e temia não conseguir dizer tudo o que precisava. Você não me ama, portanto
não sabe...
Não amo você? O que está dizendo? É claro que a amo! Você sabe que há dez anos tento me casar com você. Por que diz um absurdo desses?
Os joelhos de Júlia fraquejaram. Ela teria caído se não estivesse nos braços de Rashid.
Você... o quê? ela sussurrou.
Não a amo? Eu sou louco de amor por você. Acha que pus todos os nossos projetos em risco naquele castelo, projetos envolvendo dois países e meses de planejamento...
acha que arrisquei tudo isso por... por... Ele não tinha palavras. Me diga o que está pensando.
Eu não sei ela conseguiu sussurrar.
Não sabe? Acabei de lhe contar a tortura por que passei nas semanas que antecederam o seu casamento, que pensei em procurar seu pai, acabar com tudo... o que um
homem tem de dizer a uma mulher?
Mas por que não me disse nada?
Dizer o quê? Que a amava? Por que acha que movi céus e terra para solucionar o mistério da morte de Ornar? Desde o momento em que percebi que a história era outra,
quando vi que talvez conseguisse esclarecer o absurdo que alimentava o seu ódio pelos Kamal para começar a enxergar o Rashid... dediquei-me a essa tarefa! Que tipo
de declaração você ainda precisa?
Mas... você não parava de dizer que era por razões políticas.
Eu expus as razões que achei que pudessem convencê-la, apesar da sua repulsa instintiva aos Kamal. Eu nunca disse que eram os meus motivos! Cada palavra que eu
disse a você, cada vez que abri os braços para abraçá-la, para beijá-la... desde o início era amor. Você não percebeu? Você... Allah, quero ouvir outra vez! Você
me ama? Diga! Diga a verdade, Júlia!
A emoção era tanta que Júlia mal se segurava em pé.
Eu o amo, Rashid...
Ele a abraçou com força, seus lábios se fundiram nos dela e a noite explodiu numa imensa profusão de estrelas.
EPÍLOGO
De madrugada, acordados na cama de Júlia, no palácio de San Sebastian, estavam um Kamal e uma Sebastiani, enroscados um no outro, de corpo e alma. As estrelas brilhavam
num céu negro aveludado. Um abajur iluminava suavemente o interior do quarto.
Por que não disse que amava há mais tempo? ela perguntou outra vez, seus dedos brincando na orelha dele, descendo pelo maxilar e segurando o queixo.
No início, nem eu mesmo sabia. Rashid prendeu a mão de Júlia entre os lábios e passou a língua na ponta dos dedos. Depois, pensei que tivesse dito. Quantas
vezes um homem tem de pedir uma mulher em casamento antes de saber que a ama?
Mas você disse que só queria se casar para estabelecer a paz. - Rashid deitou-se de costas, arrastando Júlia consigo.
Um homem pode se enganar, não pode?
Júlia olhou no fundo dos penetrantes olhos negros.
E quando você soube que me amava? ela quis saber.
As mãos de Rashid deslizavam suavemente pelas costas dela, para cima e para baixo.
Acho que tive certeza em Erimos. Tivemos momentos tão maravilhosos, tão íntimos, e mesmo assim você me disse que jamais se casaria comigo. Senti meu sangue queimar,
uma sensação que nunca havia sentido antes, na vida. Quando finalmente consegui me acalmar, eu soube.
Então aconteceu o casamento de Muriel no castelo...
Naquela ocasião cheguei a me perguntar o que estava acontecendo, porque foi irresistível. Você adormeceu, e eu tive de partir. Tive de deixá-la sem dizer uma só
palavra. Nada podia atrapalhar a minha missão. Mas fiquei ali, olhando você dormir. Você era virgem. Não sei como consegui esconder que o que eu sentia era amor.
Lembro-me de ter ficado profundamente agradecido pelo fato de, apesar de tudo, você ser minha, só minha. E depois, quando soube da gravidez, longe e sem poder ligar
para você nem mandar uma mensagem... Júlia, meu coração ficou despedaçado. Imaginei você sozinha enfrentando seu pai, talvez pensando que eu a abandonara. E meu
pai fazendo exigências absurdas, alimentando uma rixa que eu tanto queria terminar. Tive medo do que você pudesse fazer. Como meu pai continuasse agindo daquela
forma, tive medo que você interrompesse a gravidez.
Eu jamais faria uma coisa dessas!
Durante muito tempo convivi com o medo de não conhecer meu filho. Então fiquei sabendo que você faria uma viagem aos Estados Unidos, e pensei, como podem pedir
isso a ela? Ela está grávida, será um alvo fácil para os Ikhwan, os Irmãos das Trevas. Porque eu sabia, e você não, que não eram os Kamal que estavam por detrás
da tentativa de sequestro. Fiquei enlouquecido, imaginando o que poderia acontecer se os sequestradores a atacassem outra vez e conseguissem êxito.
Júlia sorriu.
Sabe de uma coisa? Não...
Não era você. Eu sei. - Júlia abriu a boca, surpresa.
Como sabia? - Rashid riu.
Como eu sabia? Acha que sou cego? Eu tive você em meus braços! A moça era parecida, mas não era você. Como explicar? A mulher que vi nos noticiários era muito
bonita, mas não me impressionava. Apenas me fazia lembrar de você. Voltei para casa determinado a agir. Eu tinha uma boa desculpa para pedi-la em casamento. Você
estava grávida. Precisava de mim. Mas no fundo, quem precisava de você era eu.
Ela não escondeu um sorriso. Rashid viu seus lábios tremerem e se curvarem, e não aguentou... beijou-a apaixonadamente. E então continuou:
Minha irmã até tentou me mostrar o que eu estava sentindo, mas eu não acreditei. Mas aos poucos esse sentimento foi tomando conta de mim. Uma noite minha mãe me
disse que eu devia deixar você encontrar alguém para amar. E que eu devia amar uma mulher como Ornar amou Delia. Então tive certeza, e não me surpreendi, do que
sempre soube. Meu coração me dizia que eu já tinha encontrado o meu amor. Eu não podia permitir que ela encontrasse outro homem, porque isso me mataria. Ela tinha
de ser minha.
E foi quando você resolveu acabar com a briga familiar de uma vez por todas.
Eu sabia que tinha de fazer meu pai enxergar, fazê-lo desistir daquela exigência absurda de uma indenização pela morte de Ornar. E só tinha uma chance. O estranho
anel renovou minha esperança de que houvesse algo mais na história de Delia e Ornar que valesse a pena ser descoberto.
Você tinha toda a razão! Pobre Delia! Mas, sabe, desconfio de que se ela não estivesse apaixonada por Robert, poderia gostar de Ornar. Mesmo nos piores momentos
não deixou de achá-lo um homem atraente.
Que bom que você pensa assim Rashid murmurou, atraindo-a para si. Agora, meu amor, vou pedir mais uma vez. A quinta. Case-se comigo...
Júlia quis brincar, mas o olhar de Rashid arrancou todo o ar de seus pulmões. Ela passou a língua pelos lábios.
Me responda ele exigiu.
Júlia sorriu, com todo o amor que tinha no coração brilhando em seus olhos, e disse o que ele queria ouvir.
Finalmente Júlia diz sim!
A princesa Júlia e o príncipe herdeiro Rashid de Tamir vão se casar. A união anunciada hoje encerra com chave de ouro um dos mais tumultuados namoros da realeza
da atualidade. Depois de recusar várias vezes o pedido de casamento do príncipe Rashid, a princesa Júlia finalmente se rendeu à corte e aceitou subir ao altar.
As duas famílias estão exultantes. E tudo se tornou possível graças à solução do mistério que rondava as mortes, um século atrás, do príncipe Ornar Kamal e da princesa
Delia Sebastiani. A história será adaptada para o cinema, o primeiro projeto conjunto entre Montebello e Tamir.
O matrimonio será ministrado numa cerimônia particular. A família real prefere não realizar uma celebração formal enquanto algumas questões envolvendo o destino
do príncipe Lucas não forem completamente definidos.
Os sinos repicavam alegremente por toda a Montebello quando Júlia e Rashid saíram da catedral para o dia claro. Milhares de pessoas os saudavam com gritos e aplausos.
De algum ponto uma nuvem de balões brancos se espalhou pelo céu azul. As sirenes tocaram, os trompetes soaram.
0 casal real parou sob o arco da entrada da igreja, enquanto os flashes espocavam, as cámeras zuniam e a multidão aplaudia.
O príncipe estava encantador em seu tradicional traje de gala de Tamir: casaca de seda azul, de gola alta e bordada a ouro, e um shalwar branco, preso com cordões
de pérolas no peito. Na cintura ele trazia uma adaga curva dentro de uma bainha ricamente adornada com jóias. Nas mãos, vários anéis de ouro e pedras preciosas.
Os cabelos negros estavam sob um turbante de seda azul, bordado com pérolas e um imenso diamante no centro.
Mas nenhuma jóia se comparava ao brilho de seus olhos, quando ele olhou para a princesa a seu lado.
Júlia estava mais linda que nunca. Com um vestido de brocado de seda e um véu trançado com fios de pérolas e diamantes, parecia envolta num halo de luz. O buque
era de flores azuis, vermelhas e brancas. No pescoço ela trazia um delicado colar de safiras e nas orelhas magníficos brincos também de safira, presentes do rei
Ahmed a sua nora.
Os olhos de Júlia brilhavam como duas pedras preciosas, e quando sorriu para seu marido, a multidão parou de respirar. Ele pegou na mão dela.
Minha esposa Rashid murmurou, levando a mão aos lábios e beijando-a.
Em seguida o cortejo nupcial juntou-se ao casal real. As quatro damas de honra da noiva, Nádia, Samira e Leila Kamal e Anna Sebastiani, foram as primeiras a sair
da igreja, todas coro vestidos em tons de azul, seguidas por Christina Sebastiani Dalton e Hassam, o casal de padrinhos.
O rei Marcus e a rainha Gwendolyn, ao lado do rei Ahmed e da rainha Alima, saíram pela porta da igreja conversando, e receberam uma nova onda de aplausos e acenos
de bandeirinhas da multidão, que via com seus próprios olhos a prova de que as tensões entre os dois países estavam desfeitas. Todos sabiam que os dois monarcas
logo iniciariam conversações no sentido de estreitar os laços e estabelecer a paz entre Tamir e Montebello. Por alguns minutos, enquanto os demais convidados deixavam
a igreja, os Sebastiani e os Kamal ficaram no gramado, conversando como famílias comuns em dia de festa.
Quando as mulheres se envolveram numa conversa particular, para comentar a cerimônia que acabara de acontecer para selar a união de duas tradições, o rei Ahmed e
o rei Marcus se viram sozinhos. Ficaram um diante do outro em silêncio, e num gesto espontâneo, apertaram-se as mãos. Os aplausos quase arrancaram aa folhas das
árvores.
Os dois monarcas se voltaram e ficaram lado a lado assistindo às famílias conversando e rindo tranquilamente na manhã esolarada. A gravidez de Júlia já se tornava
evidente sob o vestido de seda.
Eles formam um casal lindo disse Ahmed. Insh'Allah, essa criança herdará o trono de Tamir no devido tempo.
Espero que esse dia ainda demore a chegar respondeu Marcus, diplomaticamente.
Ahmed curvou a cabeça em agradecimento.
E quanto a você... também fará dele o seu herdeiro? O menino vai se sentar no trono unido de Tamir e Montebello, quando chegar a hora?
Os lábios de Marcus se apertaram.
Até agora não tomei nenhuma decisão sobre o herdeiro. Como sabe, ainda não temos uma palavra final sobre o destino de Lucas. Milagres podem acontecer e minha esposa
ainda espera por isso.
Que Alá atenda suas preces.
No gramado, Júlia e Rashid tinham se juntado ao animado grupo de Nádia, Christina e seu marido Hassan.
Fiquem sabendo que vocês devem essa felicidade a Christina e a mim disse Nádia. Onde estariam agora sem os sábios conselhos de suas irmãs?
Concordo disse Christina solenemente. Rashid riu para a irmã.
Eu a recompensarei por isso um dia desses.
Todos riram. Rashid voltou-se para sua esposa e passou o braço pela cintura dela.
Vamos?
O jovem casal seguiu seu caminho para a fila de limusines estacionadas e entrou em uma delas, enquanto os aplausos e os gritos da multidão enchiam o ar. Um por um,
os carros foram recebendo seus passageiros e partiram para percorrer o curto trajeto até o palácio de San Sebastian, onde haveria uma recepção íntima.
Então a multidão e as equipes de televisão começaram a se dispersar, e a praça da catedral retornou ao silêncio de séculos e séculos.
Fim
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