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sábado, 22 de outubro de 2011

Deixados para Trás 4

Deixados para Trás 4

A COLHEITA

TIM LAHAYE JERRY B. JENKINS


Traduzido por Maria Emília de Oliveira

UNITED PRESS
4
® 1998 Tim LaHaye e Jerry B. Jenkins
Esta edição é publicada sob contrato com a Tyndale House Publishers, U.S.A. Left Behind é
uma trademark da Tyndale House Publishers Inc. © 2004 Editora Hagnos Ltda Deixados para
Trás® é marca registrada da Editora Hagnos Ltda.
Tradução:
Maria Emília de Oliveira
Adaptação de capa: Atis Design Ltda
V edição - 2000 Reimpressão - maio - 2005
Impressão e acabamento: Imprensa da fé
Todos os direitos reservados para: Editora Hagnos
Rua Belarmino Cardoso de Andrade, 108 04809-270 - São Paulo - SP-Tel (11)5668-5668
hagnos@hagnos.com.br - www.hagnos.com.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, P, Brasil)
LaHaye, Tim
A Colheita / Tim LaHaye e Jerry Jenkins: tradução: Maria Emília de
Oliveira - Editora Hagnos, São Paulo, SP, 2004.
ISBN 85-243-0195-3
Título original: Soul Harvest
1. Ficção norte-americana I. LaHaye, Tim II. Título
99-4076 CDD-813.5
índices para catálogo sistemático:
1. Ficção: Século 20: Literatura norte-americana 813.5
2. Século 20: Ficção: Literatura norte-americana 813.5
5
Aos nossos novos irmãos e irmãs
6
PRÓLOGO
Extraído do final do livro 3 - Nicolae

O coração de Buck comoveu-se quando ele avistou a torre da Igreja Nova Esperança. Faltavam
menos de 600 metros para chegar lá, mas a terra ainda tremia, provocando colisões por todos
os lados. Árvores imensas caíam e arrastavam os fios elétricos pela rua. Quanto mais Buck se
aproximava da igreja, mais aumentava a sensação de vazio em seu coração. A torre da igreja
era a única coisa que estava em pé, com a base assentada no solo. Os faróis do Range Rover
iluminaram os bancos da igreja, dispostos em fileiras tortas. Alguns deles estavam intactos. O
restante do templo, as vigas em arco, os vitrais coloridos, tudo havia desaparecido. O prédio
da administração, as salas de aula e os escritórios estavam no chão, formando um amontoado
de tijolos, vidros e argamassa.
Via-se apenas um carro na cratera que se abrira no terreno do estacionamento. O fundo do
carro estava assentado no chão, com os quatro pneus furados e os eixos das rodas quebrados.
Projetando-se debaixo do carro havia duas pernas humanas desnudas. Buck parou o Range
Rover a cerca de trinta metros do terreno do estacionamento. A porta de seu lado não abria.
Ele soltou o cinto de segurança e desceu pelo lado do passageiro. De repente, o terremoto
cessou. O sol reapareceu na manhã clara e luminosa de uma segunda-feira em Monte Prospect,
Illinois. Buck sentia cada osso de seu corpo. Cambaleando sobre o solo irregular, ele caminhou
na direção do pequeno carro destruído. Ao aproximar-se, avistou um corpo esmagado sem um
dos pés. O outro pé confirmou o que ele temia. Loretta tinha sido esmagada pelo seu próprio
carro.
Buck tropeçou e caiu com o rosto no chão, sentindo alguma coisa cortar sua bochecha. Sem
fazer caso disso, rastejou até o carro de Loretta e empurrou-o com toda força, tentando
remover o corpo. O veículo não se movia. Buck não queria de jeito nenhum deixar o corpo de
Loretta ali. Mas para onde ele o levaria, se conseguisse retirá-lo? Chorando, ele arrastou-se no
meio dos escombros à procura de uma entrada para o abrigo subterrâneo... Finalmente,
encontrou a abertura de ventilação. Com as mãos em formato de concha ao redor da boca, ele
gritou dentro da abertura:
- Tsion! Tsion! Você está aí?
Em seguida, ele encostou o ouvido na abertura, sentindo o ar fresco que vinha do abrigo.
- Estou aqui, Buck!... Como está Loretta?
- Ela morreu!
- Aconteceu o grande terremoto?
- Aconteceu!
- Você pode vir até aqui?
- Vou chegar até aí mesmo que seja a última coisa que eu vá fazer, Tsion! Preciso de sua ajuda
para procurar Chloe!
- Por enquanto eu estou bem, Buck! Vou esperar por você!
Buck virou-se e olhou na direção da casa secreta. As pessoas andavam com passos trôpegos,
roupas esfarrapadas, sangrando. Algumas caíam no chão e pareciam estar morrendo diante
dos olhos de Buck. Ele não sabia quanto tempo ainda levaria para chegar até Chloe. Não
queria ver outra cena igual àquela que estava presenciando, mas não desistiria até encontrála.
Se houvesse uma chance em um milhão de chegar até onde ela estava, de salvá-la, ele iria
até o fim.
O sol voltara a brilhar sobre a Nova Babilónia. Rayford pediu insistentemente a Mac McCullum
que prosseguisse na direção de Bagdá. Por toda parte que Rayford, Mac e Carpathia olhavam só
havia destruição. Crateras produzidas por meteoros. Incêndios. Edifícios desabados. Estradas
devastadas.
7
Ao avistar o aeroporto de Bagdá, Rayford abaixou a cabeça e chorou. Os jumbos estavam
contorcidos, alguns com partes projetando-se das enormes cavidades no solo. O terminal
desabara. A torre não mais existia. Havia corpos espalhados por toda parte.
Rayford fez um sinal para que Mac pousasse o helicóptero. Assim que examinou a área, Rayford
entendeu tudo. Agora ele só podia orar para que Amanda ou Hattie estivessem voando quando
ocorreu o terremoto.
Quando as hélices pararam de girar, Carpathia virou-se para os dois:
- Algum de vocês tem um telefone que esteja funcionando?
Rayford estava tão enojado que passou por Carpathia e abriu a porta com força. Contornou
rapidamente a poltrona de Carpathia e pulou no solo. Em seguida, ele colocou o braço dentro
do helicóptero, soltou o cinto de segurança de Carpathia, agarrou-o pelas lapelas e gritou para
que ele saísse dali. Carpathia caiu no chão e levantou-se rapidamente, como se estivesse
pronto para lutar. Rayford empurrou-o contra o helicóptero.
- Capitão Steele, sei que você está aborrecido, mas...
- Nicolae - disse Rayford, com os dentes cerrados -, você pode explicar o que aconteceu da
maneira que quiser, mas antes me deixe dizer-lhe uma coisa: Você acabou de presenciar a ira
do Cordeiro!
Carpathia deu de ombros. Rayford empurrou-o pela última vez contra o helicóptero e afastou-se
dali cambaleando. Virou o rosto na direção do terminal do aeroporto, a uma distância de pouco
menos de meio quilómetro. Orou para que essa fosse a última vez que ele teria de procurar o
corpo de uma pessoa querida no meio de entulhos.
"Quando o Cordeiro abriu o sétimo selo, houve silêncio no céu cerca de meia hora. Então vi os
sete anjos que se acham em pé diante de Deus, e lhes foram dadas sete trombetas. Veio outro
anjo e ficou de pé junto ao altar, comum incensário de ouro, e foi-lhe dado muito incenso para
oferecê-lo com as orações de todos os santos sobre o altar de ouro que se acha diante do
trono; e da mão do anjo subiu à presença de Deus o fumo do incenso, com as orações dos
santos. E o anjo tomou o incensário, encheu-o do fogo do altar e o atirou à terra. E houve
trovões, vozes, relâmpagos e terremoto. Então, os sete anjos que tinham as sete trombetas
prepararam-se para tocar"
(Apocalipse 8.1-6).
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UM
Rayford Steele estava usando o uniforme do inimigo de sua alma, e odiava a si mesmo por
isso. Caminhou pelas areias do Iraque em direção ao aeroporto de Bagdá trajando seu
uniforme azul, completamente atordoado pela incoerência de tudo aquilo.
Do outro lado da planície árida vinham lamentos e gritos de centenas de pessoas que ele nem
sequer podia começar a ajudar. Qualquer tentativa de encontrar sua mulher com vida dependia
da rapidez com que ele chegasse até ela. Mas pressa era o que não existia ali. Só areia. E o
que teria acontecido a Chloe e Buck nos Estados Unidos? E a Tsion?
Desesperado, agindo impensadamente e louco de frustração, ele rasgou seu colete de debruns
amarelos, pesadas dragonas e insígnias que o identificavam como o piloto mais importante da
Comunidade Global. Sem perder tempo para desabotoar os maciços botões dourados, Rayford
arrancou-os com força, e eles espalharam-se pelo chão do deserto. Ele deixou o paletó cair por
trás dos ombros e segurou a gola com firmeza. Com três, quatro ou cinco
movimentos, tirou o paletó pela cabeça e atirou-o ao chão, fazendo levantar uma onda de
poeira. Seus sapatos de couro ficaram cobertos de areia.
Rayford pensou em abandonar todos os vestígios de sua ligação com o regime de Nicolae
Carpathia, mas sua atenção foi dirigida novamente para as suntuosas insígnias de seu
uniforme. Investiu contra elas na tentativa de arrancá-las, parecendo querer livrar-se do posto
que ocupava a serviço do anticristo. Porém, o alfaiate não deixara um mínimo espaço entre as
costuras, e Rayford atirou outra vez o paletó ao chão. Enquanto o pisoteava e o chutava para
desabafar sua raiva, Rayford finalmente entendeu por que o paletó estava mais pesado que o
normal. Ele havia deixado seu telefone celular no bolso.
Ao ajoelhar-se para recolher o paletó do chão, Rayford voltou a raciocinar com lógica - uma de
suas características principais. Por não ter ideia do que encontraria nas ruínas do condomínio
onde morava, ele não poderia dispensar aquilo que talvez fosse sua única muda de roupas.
Vestiu novamente o paletó e arregaçou as mangas como os meninos costumam fazer em dias
quentes. Sem se importar com a areia grudada no paletó e demonstrando profundo
abatimento, Rayford caminhou em direção aos escombros do aeroporto. Ele podia passar por
um sobrevivente de acidente aéreo, um piloto que perdera o quepe e os botões de seu
uniforme.
Em todos aqueles meses que estava morando no Iraque, Rayford não se lembrava de ter
sentido arrepios de frio durante o dia, antes do pôr-do-sol. Contudo, aquele terremoto talvez
tivesse mudado não apenas a topografia, mas também a temperatura do local. Rayford
acostumara-se a sentir a camisa molhada de suor, grudada na pele como um adesivo. Mas
agora aquele vento inusitado e misterioso provocava-lhe calafrios enquanto ele discava para
Mac McCullum e encostava o fone ao ouvido.
Em questão de segundos, ele ouviu o ruído do motor e das hélices do helicóptero de Mac atrás
de si. Para onde eles estariam se dirigindo?
- Aqui é Mac - soou a voz grave de McCullum.
Rayford girou o corpo e viu a figura do helicóptero passar diante do sol poente.
- Não posso acreditar que este telefone ainda funcione - disse Rayford. Além de tê-lo atirado ao
chão e, depois, o chutado, ele imaginava que o terremoto devia ter destruído
as torres de transmissão da redondeza.
- Assim que eu sair fora da área de alcance, ele não funcionará mais, Ray - disse Mac. - Tudo o
que vejo daqui está destruído. Esses aparelhos funcionam como walkie-talkies quando a
distância é pequena. Quando precisamos que eles funcionem, não conseguimos nada.
- Então qualquer possibilidade de ligar para os Estados Unidos...
- Está fora de cogitação - disse Mac. - Ray, o potentado Carpathia quer falar com você, mas
antes...
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- Eu não quero falar com ele, e você pode dizer-lhe isso.
- Mas, antes de colocar o potentado na linha – prosseguiu Mac -, não se esqueça de que
aquela nossa reunião, sua e minha, continua marcada para esta noite. Certo?
Rayford dimhiuiu os passos e olhou para o chão, passando a mão pelos cabelos.
- O quê? De que reunião você está falando?
- Então está tudo certo, ótimo - disse Mac. - A reunião será esta noite. Agora o potentado...
- Estou entendendo que você deseja conversar comigo mais tarde, Mac, mas, se Carpathia
entrar na linha, juro que...
- Aguarde para falar com o potentado.
Rayford passou o fone para a mão direita, pronto para arremessá-lo ao chão, mas se conteve.
Quando o sistema telefónico voltasse ao normal, ele queria ter condições de comunicar-se com
as pessoas que amava.
- Capitão Steele - soou a voz de Carpathia, sem nenhum traço de emoção.
- Pois não - disse Rayford, demonstrando toda a aversão que sentia. Ele esperava que Deus o
perdoasse por tudo o que diria ao anticristo, mas engoliu as palavras.
- Apesar de nós dois sabermos como eu reagiria à sua terrível insolência e insubordinação -
disse Carpathia -, decidi perdoá-lo.
Rayford continuou a caminhar, cerrando os dentes para não gritar com aquele homem.
- Entendo o quanto você está constrangido por ter de agradecer-me - prosseguiu Carpathia -,
mas preste atenção.
Tenho um local seguro e bem abastecido onde meus assessores e embaixadores internacionais
irão ao meu encontro. Você e eu sabemos que precisamos um do outro, portanto sugiro...
- O senhor não precisa de mim - retrucou Rayford. - E eu não preciso de seu perdão. O senhor
tem um piloto competente a seu lado, por isso é melhor esquecer que eu existo.
- Esteja pronto para subir a bordo quando ele pousar - disse Carpathia, demonstrando pela
primeira vez um tom de frustração na voz.
- Eu só estava precisando de uma carona até o aeroporto - disse Rayford -, mas já estou
quase lá. Não deixe que Mac pouse perto deste caos.
- Capitão Steele - disse Carpathia, voltando a ser condescendente. - Admiro sua teimosia em
pensar que poderá encontrar sua esposa com vida, mas nós dois sabemos que isso é
impossível.
Rayford não retrucou. Temia que Carpathia estivesse certo, mas jamais lhe daria a satisfação de
admitir isso. E Rayford não desistiria de sua busca enquanto não tivesse plena certeza de que
Amanda não sobrevivera.
- Venha nos fazer companhia, capitão Steele. Suba novamente a bordo. Vou agir como se sua
explosão de raiva nunca...
- Não irei a lugar nenhum antes de encontrar minha mulher! Deixe-me falar com Mac.
- O piloto McCullum está ocupado. Posso transmitir-lhe o seu recado.
- Mac é capaz de pilotar essa coisa sem as duas mãos. Agora me deixe falar com ele.
- Se você não quiser passar seu recado, então, capitão Steele...
- Está bem, o senhor venceu. Diga a Mac que...
- O momento não é apropriado para abandonar o protocolo, capitão Steele. Um subordinado
que acabou de ser perdoado deve dirigir-se a seu superior...
- Está bem, potentado Carpathia, diga a Mac para vir me buscar se eu não conseguir sair daqui
até às 22 horas.
- E, se você conseguir sair, o abrigo fica a três quarteirões e meio a noroeste do local onde era a
sede da Comunidade Global. Você precisará desta senha: "Operação Ira".
- O quê? - Carpathia sabia que isso ia acontecer?
- Você entendeu, capitão Steele.
Cameron "Buck" Williams caminhou cuidadosamente por entre os entulhos próximos à
abertura de ventilação onde ouvira a voz clara e forte do rabino Tsion Ben-Judá, que estava preso
no abrigo subterrâneo. Tsion assegurou-lhe que não sofrera nenhum ferimento; só estava assustado
e com uma sensação de claustrofobia. O local era pequeno demais mesmo que a igreja não tivesse
desabado em cima dele. Sem ter condições de sair dali, a não ser que alguém cavasse um túnel até
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ele, em breve o rabino sentir-se-ia como um animal enjaulado.
Se Tsion estivesse em perigo iminente, Buck teria cavado um túnel com as mãos para libertá-lo.
Mas agora ele teria de agir como um médico fazendo uma triagem e decidir quem necessitava
de sua ajuda com mais urgência. Depois de afirmar a Tsion que voltaria, Buck dirigiu-se para a
casa secreta com o objetivo de encontrar sua mulher.
Para atravessar no meio dos escombros da igreja, a única que ele frequentara, Buck teve de
rastejar-se e passar novamente pelos restos mortais da querida Loretta. Que amiga ela havia
sido, primeiro de Bruce Barnes, que estava morto, e depois dos remanescentes do Comando
Tribulação. O grupo começara com quatro pessoas: Rayford, Chloe, Bruce e Buck. Amanda veio
depois. Tsion passou a fazer parte após a morte de Bruce.
Será que agora o grupo estaria reduzido apenas a Buck e Tsion? Buck não queria pensar nisso.
Ele encontrou seu relógio grudado de lama, asfalto e um caco de vidro do pára-brisa do carro.
Ao limpar o mostrador de cristal na perna da calça, aquela mistura de lama, asfalto e caco de
vidro rasgou o tecido e fez um corte em seu joelho. O relógio marcava nove horas da manhã
em Monte Prospect, e Buck ouviu o som de uma sirene aérea, outro de sirene que avisa a
chegada de tornados e um terceiro de sirene de veículos de emergência - um deles estava
próximo; os demais vinham de lugares distantes. Ouviam-se também gritos agudos, berros,
soluços, motores funcionando.
Será que ele conseguiria viver sem Chloe? Buck havia tido uma segunda chance; sua presença
ali tinha um propósito. Ele queria estar perto do amor de sua vida, e orou para que ela não
tivesse ido para o céu antes dele, apesar de saber que essa era uma atitude egoísta.
Ao olhar para baixo, Buck viu um inchaço em sua bochecha esquerda. Como o local não doera
nem sangrara, ele havia entendido que o corte devia ser pequeno, mas agora aquele ferimento
começou a preocupá-lo. Ele enfiou a mão no bolso da camisa e pegou seus óculos de sol de
lentes espelhadas. Uma delas estava esmigalhada. No reflexo da outra, ele viu a figura de um
mendigo de cabelos desgrenhados, olhos aterrorizados e boca aberta como se lhe faltasse o ar.
O corte não estava sangrando, mas parecia profundo. Não havia tempo para cuidar dele.
Buck esvaziou o bolso da camisa e só deixou ali a armação dos óculos - um presente de Chloe.
Dirigiu-se para o Range Rover, passando com cuidado por cima de vidros, pregos e tijolos como
se fosse um homem idoso tentando equilibrar-se.
Passou pelo carro de Loretta e pelo que restara dela, determinado a não voltar a ver aquela
cena. De repente, a terra moveu-se, e ele cambaleou. O carro de Loretta, que ele não
conseguira fazer sair do lugar momentos antes, rolou e desapareceu. O chão do
estacionamento abriu-se. Buck deitou-se de bruços no chão e olhou dentro da fenda recémaberta.
O carro destroçado estava apoiado em cima de uma tubulação de água a cerca de três
metros abaixo da terra. Os pneus furados apontavam para cima como se fossem pés inchados
de um andarilho. Enrolado como uma frágil bola em cima dos escombros do carro estava o
corpo de Loretta, uma santa da tribulação. Provavelmente a terra tremeria novamente.
Alcançar o corpo de Loretta seria uma missão impossível. Se ele também tivesse de encontrar
Chloe morta, seria melhor que Deus o atirasse para baixo da terra junto com o carro de Loretta.
Buck levantou-se devagar, dando-se conta de repente do quanto aquele sobe-e-desce provocado
pelo terremoto afetara suas articulações e músculos. Ele examinou os estragos de seu carro.
Apesar de ter rolado e colidido de todos os lados, o carro parecia estar em boas condições de
rodagem. A porta do lado do motorista não abria. Cacos de vidro do pára-brisa espalhavam-se por
todo o interior do carro, e o banco traseiro estava quebrado de um dos lados. Um pneu tinha
sofrido um corte até as cintas de aço, mas não se esvaziara completamente.
Onde estariam o telefone e o laptop de Buck? Ele os deixara em cima do banco da frente e
torcia para que não tivessem sido atirados para fora do carro no momento da catástrofe. Buck
abriu a porta do lado do passageiro e examinou o chão do carro. Nada. Olhou por baixo dos
bancos traseiros. Nada. Em um canto do carro, aberto e com uma das dobradiças da tela
quebrada, estava o seu laptop.
O telefone foi encontrado dentro da bolsa interna de uma das portas. Buck não esperava que
ele estivesse funcionando em razão dos estragos sofridos pelas torres de transmissão dos
telefones celulares (e tudo o mais que havia sobre a terra). Buck ligou o telefone. Após um
teste automático, o visor indicou raio de distância zero. Mesmo assim, ele tentou fazer uma
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ligação. Discou para a casa de Loretta. Não recebeu nenhum sinal de defeito, nem sequer uma
mensagem da companhia telefónica. O mesmo aconteceu quando ele ligou para a igreja e
depois para o abrigo de Tsion. Parecendo estar fazendo uma brincadeira cruel com Buck, o
telefone emitia ruídos estranhos, como se a ligação estivesse prestes a ser completada.
Depois, nada.
Buck perdera seus pontos de referência. Ainda bem que o Range Rover tinha uma bússola
embutida. Até mesmo a igreja parecia ter mudado de posição. Ele avistou postes, fios elétricos
e semáforos no chão, edifícios desabados, árvores com as raízes expostas e muros destruídos.
Buck acionou a tração nas quatro rodas. Depois de rodar pouco mais de seis metros, ele teve
de pisar fundo no acelerador para passar por cima de uma elevação. Seus olhos estavam
atentos para evitar que o Rover sofresse mais avarias - ele precisava durar até o fim da
Tribulação. Buck imaginava que isso se daria dali a cinco anos.
Enquanto passava por cima de pedaços de asfalto e concreto no local onde um dia existira
uma rua, ele olhou novamente para os escombros da Igreja Nova Esperança. Metade do
edifício estava soterrada. E aquela fileira de bancos, que antes estavam de frente para o
oeste, agora estavam de frente para o norte e brilhavam à luz do sol. Todo o piso do templo
parecia ter dado uma virada de 90 graus.
Ao passar diante da igreja, ele parou para examiná-la. Um raio de luz brilhava entre cada par
de bancos de um conjunto de dez bancos. Apenas um local não recebia essa iluminação. Havia
alguma coisa ali que bloqueava a visão de Buck. Ele engatou a marcha a ré e acelerou
devagar. No chão, diante de um daqueles bancos, ele avistou as solas furadas de um par de
ténis, com os dedos apontados para cima. O principal objetivo de Buck naquele momento era
chegar à casa de Loretta e procurar por Chloe, mas ele não podia deixar uma pessoa no meio
daqueles entulhos. Haveria algum sobrevivente?
Buck puxou o freio de mão, passou por cima do banco de passageiro e desceu, andando por
cima de objetos que poderiam cortar seus pés. Ele queria ser prático, mas não havia tempo
para isso. Perdeu o equilíbrio quando estava a uns três metros do par de ténis e caiu de frente,
aparando a queda com as palmas das mãos e o peito.
Depois de levantar-se, ele ajoelhou-se perto do par de ténis que estava calçado nos pés de um
corpo. As pernas, vestidas com calça jeans de tom azul-escuro, eram finas, e os quadris,
estreitos. A parte da cintura para cima estava sob o banco, com a mão direita oculta debaixo
do corpo, e a esquerda, aberta. Buck não encontrou pulsação, mas percebeu que a mão
grande e ossuda era de homem. No terceiro dedo, havia uma aliança. Buck a retirou
imaginando que uma possível esposa sobrevivente haveria de querê-la.
Arrastando o corpo pelo cinto, Buck conseguiu tirá-lo debaixo do banco. Quando a cabeça ficou
visível, ele reconheceu as sobrancelhas loiras de Donny Moore. O cabelo e as costeletas
estavam empastados de sangue.
Buck não sabia o que fazer com um morto em tempos como aqueles. Onde seriam colocados os
milhões de corpos do mundo inteiro? Resolveu empurrá-lo de volta para baixo do banco, mas
encontrou resistência. Ao passar a mão pelo local, encontrou a maleta robusta e surrada de
Donny. Tentou abri-la, mas o segredo estava acionado. Levou a maleta até o Range Rover e
tentou novamente encontrar um ponto de referência. Ele estava a uns quatro quarteirões da
casa de Loretta, mas será que encontraria a rua?
Rayford muniu-se de coragem para ver o que se passava nos arredores do aeroporto de Bagdá.
Havia mais escombros e corpos estendidos no chão do que gente correndo assustada, mas pelo
menos nem tudo estava perdido.
Uma pequena silhueta escura, andando de modo esquisito, surgiu no horizonte. Rayford olhou
fascinado enquanto o vulto se aproximava e viu que se tratava de um asiático de meia-idade,
trajando terno. O homem caminhou em sua direção, e ele aguardou ansioso, imaginando se
poderia ajudá-lo. Porém, quando o homem chegou mais perto, Rayford percebeu que ele não
tinha noção de direção e caminhava a esmo. Um dos pés estava calçado com um sapato social
de bico fino. O outro estava descalço, e via-se apenas uma meia escorregando pelo tornozelo.
O paletó do terno estava abotoado, e a gravata, afrouxada, pendia por cima de uma das
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lapelas. Da mão esquerda, pingavam algumas gotas de sangue. Ele tinha os cabelos
desgrenhados, mas os óculos pareciam não ter sofrido nenhum impacto, apesar das agruras
pelas quais ele devia ter passado.
- O senhor está bem? - perguntou Rayford. Não houve resposta.- Posso ajudá-lo?
O homem passou por ele resmungando em sua própria língua. Rayford virou-se para abordá-lo
novamente, mas o homem prosseguiu seu caminho e transformou-se em um vulto diante do
sol alaranjado. Não havia nada naquela direção, a não ser o rio Tigre.
- Espere! - gritou Rayford correndo atrás dele. – Volte aqui! Deixe-me ajudá-lo!
O homem não lhe deu atenção. Rayford voltou a ligar para Mac.
- Deixe-me falar com Carpathia.
- Claro - disse Mac. - Nossa reunião continua marcada para hoje à noite, certo?
- Certo. Agora deixe-me falar com ele.
- Eu estou falando da reunião entre mim e você, certo?
- Sim! Não sei o que você quer, mas, sim, já entendi. Agora preciso falar com Carpathia.
- Está bem, desculpe-me. Fale com ele.
- Mudou de ideia, capitão Steele? - perguntou Carpathia.
- Mais ou menos. Diga-me uma coisa. O senhor conhece os idiomas asiáticos?
- Alguns. Por quê?
- 0 que isto significa? - perguntou Rayford, repetindo o que o homem dissera.
- Ah, isso é fácil - respondeu Carpathia. - Significa "Você não pode ajudar-me. Deixe-me em
paz".
- Quero falar de novo com Mac, por favor. Esse homem vai morrer abandonado por aí.
- Pensei que você estivesse procurando sua mulher.
- Não posso deixar um homem andando a esmo até morrer.
- Milhões de pessoas estão mortas ou morrendo. Você não pode salvar todas elas.
- Então o senhor vai permitir que esse homem morra?
- Daqui não posso ver onde ele está, capitão Steele. Se você achar que pode salvá-lo, vá em
frente. Não quero parecer insensível, mas tenho gente demais para cuidar neste momento.
Rayford desligou o telefone e correu na direção do homem que caminhava a esmo balbuciando
algumas palavras. Quando chegou mais perto, entendeu, horrorizado, por que seu modo de
andar era tão esquisito e por que ele deixava um rasto de sangue atrás de si. Espetado em seu
corpo havia um pedaço reluzente de metal, aparentemente um fragmento de fuselagem.
Rayford não entendia como ele ainda continuava vivo, como sobrevivera ou saíra do avião. O
fragmento estava preso desde o quadril até a parte posterior da cabeça. Por pouco, não
atingira os órgãos vitais.
Rayford tocou no ombro do homem, fazendo-o recuar um pouco. Depois disso, o desconhecido
sentou-se pesadamente na areia, deu um suspiro profundo e expirou. Rayford tornou-lhe a
pulsação, mas não se surpreendeu ao não sentir nada. Arrasado, ele ajoelhou-se na areia, de
costas para o homem. Os soluços faziam todo o seu corpo estremecer.
Rayford levantou as mãos para o céu.
- Por que, meu Deus? Por que tenho de ver esta cena? Por que puseste alguém no meu
caminho que não pude sequer ajudar? Poupa a vida de Chloe e Buck! Eu te suplico que
devolvas Amanda viva para mim! Sei que não mereço nada, mas não posso viver sem ela!
Normalmente, quando Buck ia de carro da igreja até a casa de Loretta, ele costumava rodar
dois quarteirões no sentido sul e dois no sentido leste. Mas agora não havia mais quarteirões,
nem calçadas, nem ruas, nem cruzamentos. Até onde sua vista alcançava, todas as casas da
vizinhança haviam desabado. Será que essa catástrofe acontecera no mundo inteiro? Tsion
dissera que um quarto da população mundial seria vitimado pela ira do Cordeiro. Buck, porém,
ficaria surpreso se um quarto da população de Monte Prospect ainda estivesse viva.
Ele dirigiu o Range Rover para a região sudeste. Um pouco acima do horizonte, o dia mostravase
tão lindo como Buck nunca se lembrava de ter visto. O céu, sem nenhuma fumaça ou
poeira, tinha a tonalidade azul de uma roupa de bebé.. Nenhuma nuvem. Apenas o sol
reluzente.
13
Dos hidrantes destroçados, a água subia em forma de chafariz. Uma mulher arrastava-se
tentando sair das ruínas de sua casa. No ombro, onde o braço havia sido arrancado, havia um
coto sangrando. Ela gritou para Buck:
- Mate-me! Mate-me!
- Não! - ele gritou, saindo do Rover.
A mulher curvou-se, pegou um caco de uma vidraça quebrada e passou-o pelo pescoço. Buck
continuou a gritar correndo em sua direção. Ele só esperava que ela não tivesse forças para
fazer um corte muito profundo no pescoço e orou para que o ferimento não atingisse a
carótida.
Quando ele se aproximou mais, ela lançou-lhe um olhar arregalado de medo, de susto. O caco
de vidro caiu no chão. Ela afastou-se cambaleando e bateu a cabeça com força em um pedaço
de concreto. Imediatamente, o sangue parou de jorrar de suas artérias expostas. Os olhos dela
estavam sem vida. Buck forçou para abrir a mandíbula da mulher e fez respiração boca a boca.
O peito dela inflou-se, e as artérias verteram um pouco mais de sangue, mas tudo foi em vão.
Buck olhou ao redor, perguntando a si mesmo se deveria cobrir o corpo da mulher. Do lado
contrário, havia um senhor idoso em pé à beira de uma cratera, parecendo prestes a atirar-se
dentro dela. Buck não podia mais suportar aquilo. Estaria Deus preparando-o para ver outra
cena igual se Chloe não tivesse sobrevivido?
Subindo exausto no Range Rover, ele decidiu que não pararia mais para ajudar outra pessoa
que não quisesse ser ajudada. Por todos os lugares que ele olhava, só via devastação, fogo,
água e sangue.
Contrariando seu modo de ser, Rayford deixou o homem morto na areia do deserto. O que ele
faria se visse outras pessoas nas mesmas condições? Como Carpathia podia ser insensível a
tudo isso? Será que ele não tinha um pingo de humanidade? Mac teria permanecido ali e
ajudado.
Rayford estava desesperado para encontrar Amanda viva. Apesar de saber que seu único
objetivo no momento seria procurá-la, ele desejava ter marcado mais cedo o encontro com
Mac. Já presenciara coisas terríveis na vida, mas a mortandade naquele aeroporto superou a
tudo. Um abrigo, mesmo que fosse do anticristo, parecia melhor do que aquela cena diante
dele.
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DOIS
Buck já fizera coberturas jornalísticas sobre desastres, mas, em sua profissão, nunca se sentira
culpado por não ter dado atenção a um moribundo. Normalmente, quando ele chegava ao
local, a equipe médica já estava em ação. Não havia nada a fazer, a não ser ficar um pouco
afastado. Como jornalista, ele se orgulhava de jamais ter forçado uma situação a fim de não
dificultar o trabalho das equipes de emergência.
Mas agora só havia ele por ali. Sons de sirenes indicavam que outras pessoas estavam
trabalhando em algum lugar, mas com certeza havia pouca gente da equipe de regaste para
atender a todos. Ele poderia trabalhar 24 horas por dia tentando encontrar sobreviventes, mas
isso seria um pingo d'água no oceano diante da magnitude daquela catástrofe. Alguém talvez
estivesse deixando de cuidar de Chloe para atender pessoas da família. Os que haviam
escapado com vida não tinham alternativa, senão aguardar que algum herói amigo ou parente
fosse resgatá-los, apesar de todas as dificuldades para chegar até eles.
Buck nunca acreditara em percepção extra-sensorial ou telepatia, mesmo antes de tornar-se
crente em Cristo. Agora, contudo, diante daquela profunda ansiedade de encontrar Chloe,
daquele desespero pela possibilidade de perdê-la, ele sentia que seu amor transpirava por
todos os poros. Como Chloe podia não sentir que ele estava pensando nela, orando por ela,
tentando chegar até ela a qualquer custo?
Desesperado e com os olhos fixos no caminho à frente, vendo pessoas feridas acenando-lhe ou
gritando por socorro, Buck parou por causa de uma nuvem de poeira. A dois quarteirões do
lado leste da rua principal, havia alguma semelhança com um local que ele conhecia. Nada
estava como antes, mas as faixas de rolamento da rua, levantadas do chão pelo terremoto,
ainda permaneciam visíveis, mais ou menos na mesma configuração de antes. O asfalto da rua
de Loretta encontrava-se na posição vertical, formando uma espécie de muro que impedia a
visão do que restara das casas. Buck saiu do carro e começou a escalar aquele muro de
asfalto. Ele achava que a rua levantada do chão tinha pouco mais de um metro de espessura e
uma camada de pedregulhos e areia do outro lado. Estendeu o braço e cravou os dedos na
parte mais macia, pendurando-se ali e fixando o olhar no quarteirão da casa de Loretta.
Anteriormente, havia quatro casas imponentes naquela parte da rua. A de Loretta era a
segunda a partir da direita. O quarteirão inteiro parecia uma caixa de brinquedos que havia
sido sacudida e atirada ao chão. A casa que estava defronte a Buck, maior ainda que a de
Loretta, havia sido arrancada dos alicerces e desabara completamente sobre a parte da frente.
O telhado estava inteiro, mas na posição invertida, o que devia ter acontecido quando a casa
tombou com força no chão. Buck conseguiu enxergar os caibros, como se estivesse no sótão.
As quatro paredes da casa estavam no chão, com os pisos espalhados. Em dois lugares
diferentes, ele avistou braços e mãos imóveis despontando dos escombros.
Uma árvore alta, com mais de um metro de diâmetro, tinha sido arrancada pela raiz e estava
esmagada no porão. No piso de cimento, havia uma camada de água de mais ou menos meio
metro, cujo nível subia aos poucos. Curiosamente, um cómodo, que se assemelhava a um
quarto de hóspedes, no canto nordeste da casa, estava em ordem, parecendo não ter sido
atingido. Em breve, a água o cobriria.
Buck obrigou-se a olhar para a casa ao lado, a de Loretta. Não havia morado muito tempo ali
com Chloe, mas ele a conhecia muito bem. A casa, agora quase irreconhecível, parecia ter sido
levantada do solo e atirada com força ao chão, fazendo com que o telhado se partisse em dois
e caísse, como um gigantesco jogo de varetas. A parte que circundava o telhado estava a um
metro do chão. Três árvores enormes do jardim tinham tombado na rua, com os galhos
entrelaçados, como se três espadachins tivessem desembainhado suas espadas ao mesmo
tempo.
Entre as duas casas destruídas, via-se um pequeno barracão de zinco, o qual, embora
estivesse inclinado, não sofrera avarias sérias, por mais incrível que pudesse parecer. Como
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seria possível um terremoto sacudir, agitar e fazer rolar duas casas de dois pavimentos com
cinco quartos cada, deixando intacto um pequeno barracão de zinco? Buck só podia deduzir
que a estrutura era tão flexível que não chegou a romper-se quando a terra rolou por baixo
dela.
A casa de Loretta desabara em cima do próprio terreno, deixando o quintal vazio
completamente exposto. Tudo isso, Buck imaginou, havia acontecido em questão de segundos.
Atrás de Buck, surgiu um caminhão do corpo de bombeiros, com alto-falantes improvisados na
traseira, rodando lentamente. Pendurado naquele muro de asfalto, ele ouviu: "Saiam de suas
casas! Não voltem para lá! Se precisarem de ajuda, cheguem até um local aberto onde
possamos encontrá-los!"
No caminhão, que conduzia uma escada muito alta, havia meia dúzia de policiais e bombeiros.
Um policial uniformizado debruçou-se na janela e gritou:
- Tildo bem aí, companheiro?
- Eu estou bem! - gritou Buck.
- Aquele carro é seu?
-Sim!
- Com certeza vamos precisar dele para resgatar feridos!
- Aqui há pessoas conhecidas minhas que estou tentando retirar! - disse Buck.
O policial fez um movimento afirmativo com a cabeça.
- Não tente entrar em nenhuma dessas casas!
Buck soltou as mãos e escorregou até o chão. Caminhou na direção do caminhão, que diminuiu
a marcha até parar.
- Ouvi o aviso de vocês, mas do que estavam falando?
- Estamos preocupados com saqueadores. E também com os perigos que essas casas
representam.
- É claro! - disse Buck. - Mas... saqueadores? Vocês são as únicas pessoas saudáveis que
encontrei até agora. Não sobrou nada de valor, e para onde alguém levaria alguma
coisa, caso a encontrasse?
- Só estamos cumprindo ordens, senhor. Não tente entrar em nenhuma das casas, certo?
- Claro que vou entrar! Vou revolver os escombros daquela casa para saber se uma pessoa que
conheço e amo ainda está viva.
- Acredite em mim, companheiro, você não vai encontrar sobreviventes nesta rua. Afaste-se
daqui.
- Você vai me prender? Será que ainda existe algum presídio em pé?
O policial virou-se para o motorista. Buck queria uma resposta. Aparentemente, o policial
estava pensando com mais sensatez que ele, porque o motorista do caminhão continuou a
dirigi-lo lentamente. Buck escalou o muro de asfalto e escorregou, caindo de bruços do outro
lado e enlameando-se todo. Tentou retirar a lama, mas ela grudara entre seus dedos. Limpou
as mãos na calça e dirigiu-se apressado para a casa desabada, passando por entre as árvores
tombadas.
Para Rayford, parecia que, quanto mais ele se aproximava do aeroporto de Bagdá, menos
conseguia enxergar. Enormes fissuras tinham engolido cada centímetro de pista em todas as
direções, formando montes de sujeira e areia que impediam a visão do terminal. Assim que
Rayford conseguiu chegar lá, ele quase perdeu a respiração. Dois jumbos - um 747 e um DC-
10, aparentemente com a lotação completa e prontos para decolar pela pista leste-oeste -
pareciam estar em fila antes de colidirem e partirem-se ao meio no momento do terremoto.
Pilhas de corpos sem vida amontoavam-se ali. Ele não podia imaginar a força de uma colisão
capaz de matar tantas pessoas sem provocar um incêndio.
De uma cratera do outro lado do terminal, a pelo menos 500 metros de onde Rayford estava,
havia uma fila de sobreviventes de outra aeronave engolida pela terra, que tentavam alcançar
a superfície. Uma fumaça negra subia do interior da terra, e Rayford sabia que, se chegasse
mais perto, poderia ouvir os gritos dos sobreviventes, que não tinham força para chegar à
beira da cratera. Os que conseguiam sair, fugiam do local, ao passo que outros, como o
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asiático, cambaleavam a esmo pelo deserto.
O terminal em si - que antes do terremoto era uma estrutura de aço, madeira e vidro - além
de ter desabado completamente, havia sido sacudido de um lado para o outro como se alguém
o tivesse passado por uma peneira. Os entulhos estavam tão espalhados que nenhuma das
pilhas era mais alta que meio metro. Centenas de corpos estendiam-se em várias posições.
Rayford sentiu como se estivesse no inferno.
Ele sabia o que estava procurando. Amanda estava programada para voar em um 747 da Pan-
Continental, a empresa aérea e o equipamento que ele costumava pilotar. Não lhe causaria
surpresa se ela estivesse em uma das aeronaves que um dia ele pilotara. O vôo estava
programado para pousar em pistas grandes, no sentido do sul para o norte.
Se o avião estivesse em pleno vôo no momento do terremoto, o piloto talvez tivesse tentado
permanecer no ar até o final da catástrofe e depois procurado um terreno plano para pousar.
Se o terremoto tivesse acontecido após a aterrissagem, o avião podia estar em qualquer lugar
daquela pista, que no momento encontrava-se totalmente soterrada e coberta de areia. A pista
era enorme e extensa, mas, se houvesse um avião enterrado ali, Rayford deveria constatar
isso antes do pôr-do-sol.
Será que a aeronave estava de frente para o outro lado, em uma das pistas auxiliares, quando
o piloto já havia começado a taxiar de volta para o terminal? Rayford orava para que houvesse
algo que ele pudesse fazer, caso acontecesse o milagre de Amanda ter sobrevivido. A melhor
das hipóteses, a menos que o piloto tivesse tido tempo suficiente para pousar em algum lugar
seguro, seria a de que o avião estivesse parado sobre a pista - ou rodando muito lentamente -
no momento do terremoto. Se o avião tivesse tido a sorte de estar no meio da pista de
aterrissagem quando a pista de decolagem afundou, havia uma possibilidade de que ele ainda
estivesse na posição normal e intacto. Se estivesse coberto de areia, quem poderia saber por
quanto tempo o suprimento de ar duraria?
Rayford achava que, na região do terminal, apenas uma pessoa entre dez conseguira
sobreviver. Aquelas que haviam escapado deviam estar fora da área do terminal quando
ocorreu o terremoto. Aparentemente, nenhuma das que estavam dentro do terminal tinha
sobrevivido. Os poucos policiais uniformizados da Comunidade Global que patrulhavam a área
com armamentos pesados pareciam tão chocados quanto as demais pessoas. Às vezes, um
policial, ao passar por Rayford, olhava mais atentamente para ele, mas não se virava nem
pedia sua identidade ao ver seu uniforme. Com fios pendurados nos lugares dos botões do
paletó, ele sabia que parecia ser um sobrevivente privilegiado da tripulação de alguma
aeronave acidentada.
Para chegar à pista de decolagem, Rayford teve de cruzar com uma fila de sobreviventes
sangrando e cambaleando, que tinham conseguido sair de uma cratera. Felizmente, nenhum
deles lhe pediu ajuda. A maioria nem se dava conta dele; simplesmente acompanhava o da
frente, como se estivesse confiando em que os primeiros da fila tinham ideia de onde encontrar
ajuda. Do fundo da cratera, vinham sons de lamento e choro que Rayford jamais seria capaz
de esquecer. Se houvesse alguma coisa a fazer, com certeza ele a faria.
Finalmente, ele se aproximou do término da longa pista de decolagem. Ali, bem no meio da
pista, reconheceu a fuselagem abaulada de um 747, totalmente coberta de areia.
Devia faltar meia hora para o pôr-do-sol; a luminosidade já era fraca. Ao passar pela beira do
precipício que a pista afundada formara na areia, Rayford balançou a cabeça e olhou de
soslaio, protegendo os olhos, para tentar entender o que presenciava. Quando chegou a uns 30
metros da parte traseira da gigantesca aeronave, ele entendeu o que acontecera. A aeronave
devia estar perto do meio da pista de decolagem quando a pavimentação afundou pelo menos
15 metros. O peso da pavimentação arrastou a areia na direção da aeronave, que agora
estava apoiada pelas pontas das asas, com a fuselagem equilibrando-se precariamente acima
da fenda.
Alguém tinha tido a presença de espírito de abrir as portas e desenrolar as rampas
deslizadoras, mas as pontas das rampas estavam penduradas no ar acima da pista afundada.
Se a distância entre um lado e outro da cratera fosse um pouco maior, as asas não teriam
suportado o peso da cabina. A fuselagem rangia por causa do peso do avião, que ameaçava
cair na cratera. Rayford acreditava que o avião poderia cair mais uns três metros na cratera
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sem ferir ninguém gravemente, desde que a queda não fosse muito brusca. Centenas de vidas
poderiam ser salvas.
Ele orou desesperadamente para que Amanda tivesse sido salva, que ela estivesse protegida,
que a aeronave tivesse parado antes de a pista ceder. Quanto mais ele se aproximava, mais
claro se tornava que a aeronave devia estar em movimento no instante em que a cratera se
abriu. As asas estavam afundadas cerca de um metro na areia. Foi isso talvez que a impediu
de cair na cratera, mas os passageiros
que estivessem sem o cinto de segurança atado poderiam ter recebido um solavanco mortal.
O coração de Rayford estremeceu quando ele chegou mais perto da aeronave e constatou que
não se tratava de um 747 da Pan-Con, mas de um jato da British Airways. Ele estava chocado
demais com as emoções conflitantes que mal conseguia separar. Seria ele uma criatura fria e
egoísta, obcecada por encontrar a esposa com vida, a ponto de sentir-se desapontado porque
centenas de pessoas daquela aeronave poderiam estar vivas? Ele tinha de enfrentar a terrível
verdade acerca de si mesmo. Estava muito mais preocupado com Amanda. Onde estaria o avião
da Pan-Con?
Rayford virou-se e esquadrinhou o horizonte. Que mortandade! Não havia mais lugar para
procurar o jato da Pan-Con. Enquanto não tivesse certeza, ele não aceitaria que Amanda
estivesse morta. Sem saber mais o que fazer e diante da impossibilidade de antecipar a
reunião com Mac, ele voltou a concentrar-se na aeronave da British Airways. De uma das
portas abertas da cabina, uma comissária de bordo examinava a posição precária da
aeronave, com os olhos arregalados e sem expressão. Rayford colocou as mãos em concha ao
redor da boca e gritou:
- Sou piloto! Tenho algumas ideias!
- A aeronave está em chamas? - ela gritou.
- Não! Parece que o nível de combustível está muito baixo!
Acho que vocês não estão em perigo!
- Esta coisa está balançando! - ela gritou. - Devo mandar todos os passageiros para o fundo a
fim de que a aeronave não afunde de bico?
- Vocês não vão afundar de bico! As asas estão apoiadas na areia! Mande todos os passageiros
para o meio da aeronave e veja se vocês conseguem sair por cima das asas sem quebrá-las!
- Você tem certeza disso?
- Não! Mas vocês não podem esperar até que esse equipamento pesado afunde de vez com
todos dentro! O terremoto foi mundial, e é muito improvável que vocês recebam ajuda nos
próximos dias.
- Os passageiros querem sair daqui agora! Você tem certeza de que isso vai dar certo?
- Não muita! Mas vocês não têm alternativa! Um novo tremor de terra poderá levar a aeronave
para o fundo da cratera!
Pelo que Buck sabia, Chloe estava sozinha na casa de Loretta no momento do terremoto. Para
encontrá-la, ele teria de adivinhar em que cómodo ela estava quando a casa desabou. O
quarto deles no canto sudoeste do pavimento superior estava completamente no chão. Havia
ali um amontoado de tijolos, divisórias, tábuas, vidros, vigas, pisos, pregos, fios e móveis,
cobertos por metade das ruínas do telhado.
Chloe costumava deixar seu computador no porão, que agora estava soterrado sob outros
pavimentos do mesmo lado da casa. Ou talvez ela estivesse na cozinha, na parte da frente da
casa e também do mesmo lado. Aquilo deixava Buck sem opções. Ele precisava livrar-se de
grande parte do telhado e começar a cavar. Se não encontrasse Chloe no quarto ou no porão,
sua última esperança seria a cozinha.
Buck não estava usando botas, luvas, roupas de trabalho, óculos de proteção nem capacete.
Tinha sobre o corpo roupas sujas e de tecido fino. Seus sapatos eram comuns, e suas mãos
estavam desprotegidas. Agora era tarde demais para preocupar-se com tétano. Ele pulou sobre
o telhado em ruínas e pisou na ponta de uma madeira inclinada para ver se ela aguentaria seu
peso. Parecia robusta, embora balançasse um pouco. Ele desceu até o chão e empurrou o
beiral do telhado de baixo para cima. Era impossível fazer aquilo sozinho. Será que haveria um
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machado ou um serrote no barracão de zinco?
A princípio, ele não conseguiu abri-lo. A porta estava emperrada. O barracão parecia ser muito
frágil, mas, com o abalo do terremoto, ele se inclinara e não queria sair do lugar. Buck abaixou
o ombro e investiu contra ele como um jogador de futebol americano, fazendo-o voltar à
posição original. Chutou-o seis vezes e depois abaixou o ombro novamente, afundando o
pescoço no corpo. Finalmente, ele afastou-se uns seis metros e correu na direção do barracão,
mas seus sapatos de sola lisa escorregaram na grama, fazendo-o estatelar-se no chão.
Furioso, ele afastou-se mais ainda, começou a correr mais devagar até ganhar velocidade.
Desta vez, ele bateu com tanta força na lateral do barracão que a folha de zinco despregou de
suas armações e voou sobre as ferramentas lá dentro, levando Buck junto e atirando-o ao
chão. No choque, a ponta de uma telha quebrada atingiu suas costelas, produzindo um corte
profundo. Ele pôs a mão no local e sentiu que sangrava um pouco, mas resolveu que iria em
frente, a menos que o corte tivesse atingido uma artéria.
Buck arrastou pás e machados até à casa e escorou as beiras do telhado com alguns
instrumentos de jardinagem de cibo longo. Quando Buck esbarrou neles, uma das partes do
telhado levantou-se, e alguma coisa passou correndo por baixo das poucas telhas restantes.
Ele golpeou aquela coisa com uma pá, imaginando a situação ridícula em que se encontrava e
o que seu pai diria se o visse usando uma ferramenta errada na função errada.
Porém, o que mais ele podia fazer? Não havia tempo para nada. Ele estava lutando com as
armas que possuía, por mais estranha que fosse a situação. As pessoas podiam permanecer
vivas por alguns dias debaixo de escombros. Mas, se a água se infiltrasse no alicerce da casa
ao lado, o que aconteceria com a de Loretta? E se Chloe estivesse presa no porão? Se ela
tivesse de morrer, Buck orou para que tudo acontecesse de modo rápido e indolor. Não queria
que sua mulher morresse afogada lentamente. Ele também temia eletrocussão quando a água
alcançasse os fios elétricos.
Buck começou a afastar os entulhos menores de sua frente com um pedaço de telha. Os
maiores, ele removia com as mãos. Sentia-se em forma, mas aquela missão fugia de sua
rotina. Seus músculos ardiam quando ele precisava livrar-se de pedaços grandes de paredes e
pisos. O progresso era mínimo, e ele bufava, arfava e transpirava.
Depois de livrar-se de pedaços de cano e gesso do teto, ele finalmente avistou a armação da
cama, que se transformara em lascas de madeira. Esforçou-se para encontrar a pequena
escrivaninha que Chloe costumava usar, mas levou outra meia hora cavando para chegar até
lá, chamando por ela o tempo todo. Todas as vezes que parava para descansar um pouco,
tentava ouvir algum som, por mais fraco que fosse. Será que ele conseguiria ouvir um gemido,
um choro, um suspiro? Se Chloe fizesse o menor ruído, ele a localizaria.
O desespero começou a tomar conta de Buck. Sua busca estava sendo muito lenta. Os pedaços
de madeira do piso eram muito grandes e pesados para sair do lugar. A distância entre as
tábuas do piso do quarto do pavimento superior e o chão de concreto do porão não era grande.
Qualquer pessoa que estivesse nesse meio teria sido esmagada. Mas ele não
desistiria. Se não conseguisse fazer isso sozinho, recorreria a Tsion para ajudá-lo.
Buck arrastou as ferramentas para a frente da casa e atirou-as por cima do muro de asfalto. De
onde ele estava, era mais difícil pular para o outro lado do muro por causa da lama
escorregadia. Ele examinou a rua de um lado a outro e não conseguiu enxergar até onde ela
permanecia na posição vertical. Enfiou os pés na lama e finalmente encontrou um local no topo
do muro de asfalto, onde conseguiu agarrar-se. Deu um impulso com o corpo e pulou o muro,
caindo sobre o cotovelo. Atirou as ferramentas dentro do Range Rover e sentou-se ao volante
com o corpo todo enlameado.
O sol estava se pondo no Iraque quando vários sobreviventes de outras aeronaves juntaram-se
a Rayford para observar a condição ameaçadora do 747 da British Air. Rayford não podia fazer
nada, a não ser esperar. Não queria de modo algum ser responsável por ferimento ou morte
de alguém. Mas ele estava certo de que a saída por sobre as asas da aeronave era a única
esperança daquelas pessoas e orou para que elas conseguissem passar pelos montes de areia.
A princípio, Rayford animou-se ao ver os primeiros passageiros rastejando-se sobre as asas.
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Aparentemente, a comissária de bordo havia reunido o pessoal e conseguido a colaboração de
todos. Mas, em seguida, Rayford assustou-se porque a movimentação exagerada dos
passageiros no interior da aeronave estava comprometendo o frágil local de apoio das asas. A
aeronave se partiria. E o que aconteceria com a fuselagem? Se uma das extremidades
tombasse rápido demais, dezenas de pessoas morreriam. As que não estivessem com o cinto
de segurança atado seriam atiradas para a outra extremidade, caindo umas sobre as outras.
Rayford queria gritar, suplicar para que os passageiros se espalhassem um pouco mais. Eles
precisavam fazer isso com muito cuidado. Mas agora era tarde demais, e ninguém o ouviria. O
barulho dentro da aeronave devia ser ensurdecedor. Os dois que estavam sobre a asa direita
saltaram na areia.
De repente, a asa esquerda cedeu, mas não totalmente. A fuselagem tombou para a esquerda,
e, com certeza, os passageiros também caíram para a esquerda. A parte traseira da aeronave
ia afundar primeiro. Rayford só esperava que a asa direita cedesse um pouco para dar
equilíbrio, o que aconteceu no último instante. Embora a aeronave estivesse perfeitamente
nivelada sobre os pneus, ela afundara demais na cratera. Os passageiros deviam ter colidido
uns com os outros e contra as laterais da aeronave. Quando o pneu dianteiro cedeu, o bico da
aeronave bateu com tanta força no concreto que provocou mais avalanches de areia para
dentro da cratera. Rayford guardou seu telefone no bolso da calça e desvencilhou-se do
paletó.. Com a ajuda de mais algumas pessoas, ele começou a cavar a areia com as mãos
para chegar até a aeronave e desobstruir as entradas de ar e as saídas do avião. Suas roupas
estavam empapadas de suor. Seus sapatos jamais voltariam a brilhar como antes, mas será
que algum dia ele precisaria deles?
Quando ele e alguns colaboradores chegaram finalmente à aeronave, encontraram os
passageiros cavando a areia para sair. O pessoal de resgate que vinha atrás de Rayford abriu
caminho ao ouvir o som do motor de um helicóptero. Rayford e todos os que estavam ali
entenderam que se tratava de um helicóptero de socorro. Foi então que ele se lembrou. Se
fosse Mac, já seriam 22 horas. Rayford gostaria de saber se Mac estava preocupado em salvar
vidas ou com a reunião marcada.
Rayford ligou para Mac de dentro da cratera e disse-lhe que, antes de tudo, queria ter a
certeza de que ninguém havia morrido a bordo do 747. Mac disse que o aguardaria do outro
lado do terminal.
Alguns minutos depois, aliviado porque todos os passageiros tinham sobrevivido, Rayford subiu
à superfície. Não conseguiu encontrar seu paletó. Isso não seria problema. Ele achava que em
breve Carpathia o demitiria.
Rayford dirigiu-se ao terminal desabado e contornou-o. O helicóptero de Mac estava parado a
uns cem metros de distância. Mesmo na escuridão, Rayford avistou um caminho até o
helicóptero e começou a correr. Amanda não estava com ele, e aquele era um lugar de morte.
Ele queria sair com ela do Iraque, mas por ora já se daria por satisfeito se conseguisse sair de
Bagdá. De qualquer forma, teria de suportar o abrigo de Carpathia, mas, assim que pudesse,
se afastaria de Nicolae.
Rayford começou a ganhar velocidade, ainda em forma, apesar de já ter entrado na casa dos
40 anos. Mas, de repente, ele tropeçou no quê? Corpos! Já passara por cima de um e caiu
sobre alguns outros. Levantando-se, ele passou a mão no joelho dolorido, temendo ter
profanado aqueles corpos. Ele diminuiu o ritmo dos passos até o helicóptero.
- Vamos, Mac! - ele disse assim que subiu a bordo.
- Eu não preciso que você me diga isso duas vezes - resmungou Mac, acelerando. - Quero ter
uma conversa muito séria com você.
Já passava do meio-dia na região central dos Estados Unidos quando Buck avistou novamente
os escombros da igreja. Ele estava saindo pela porta do lado do passageiro quando houve um
novo abalo de terra, que chegou a levantar o carro. Buck foi atirado para fora e caiu atrás do
carro. Ele virou-se para ver o que restara da igreja depois do abalo. Os bancos, que haviam
escapado da devastação do terremoto, agora estavam quebrados e tombados. Buck não podia
imaginar o que acontecera com o corpo do pobre Donny Moore. Talvez Deus tivesse se
encarregado de enterrá-lo ali mesmo.
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Buck estava preocupado com Tsion. Será que alguma coisa havia quebrado ou caído no abrigo
subterrâneo? Arrastando-se até a abertura de ventilação, a única fonte de ar de Tsion, ele
gritou:
- Tsion! Você está bem?
- Graças a Deus que você voltou, Cameron! - soou uma voz fraca e ofegante. - Fiquei o tempo
todo aqui com o nariz perto da abertura de ventilação quando ouvi um estrondo e algo se
movendo na minha direção. Saí do caminho a tempo. Há pedaços de tijolos por todos os lados.
Houve um novo abalo?
-Sim!
-Perdoe-me, Cameron, mas já fui corajoso o suficiente. Tire-me daqui!
Buck levou mais de uma hora cavando exaustivamente até a entrada do abrigo subterrâneo.
Enquanto ele girava o botão para desativar o segredo e abrir a porta, Tsion começou a puxá-la
de dentro. Juntos, eles conseguiram abri-la, apesar do peso das lajes de concreto e de outros
materiais. Tsion desviou o olhar da claridade e sorveu o ar com força. Abraçou Buck
fortemente e perguntou:
- E Chloe?
- Preciso de sua ajuda.
- Vamos embora. Alguma notícia dos outros?
- Talvez leve dias para que a comunicação com o Oriente Médio se restabeleça. Amanda deve
estar lá com Rayford, mas não recebi notícias deles.
- De uma coisa você pode ter certeza - disse Tsion com seu acentuado sotaque israelense. - Se
Rayford estiver perto de Nicolae, estará protegido. A Bíblia menciona claramente que o
anticristo só morrerá dentro de pouco mais de um ano a partir de agora.
- Eu não me importaria de dar uma mãozinha para ele morrer - disse Buck.
- Deus cuidará disso. Mas ainda não chegou a hora. Por mais repugnante que seja ficar perto
do demónio, pelo menos o capitão Steele deve estar em segurança.
Já no ar, Mac McCullum enviou uma mensagem de rádio para o abrigo secreto, dizendo ao
operador:
- Estamos cuidando de um resgate, portanto demoraremos mais uma hora ou duas. Câmbio.
- Positivo. Avisarei o potentado. Câmbio.
Rayford gostaria de saber qual seria o motivo tão importante para Mac arriscar-se a mentir para
Nicolae Carpathia. Assim que Rayford colocou os fones de ouvido, Mac perguntou:
- Que droga de coisa está acontecendo? O que Carpathia está pretendendo fazer? O que
significa essa tal de "ira do Cordeiro" e o que foi aquilo que eu vi e imaginei que fosse a
lua? Já presenciei um grande número de acidentes da natureza e muitos fenómenos
atmosféricos estranhos, mas juro pela minha mãe que nunca vi nada capaz de fazer uma lua
cheia transformar-se em sangue. Como um terremoto teria condições de fazer aquilo?
Caramba, pensou Rayford, esse sujeito está preparado. Mas ele também estava perplexo.
- Eu vou lhe contar o que acho, Mac, mas antes diga-me por que imagina que sei a resposta.
- Imagino que você sabe, só isso. Eu não me atreveria a fazer oposição a Carpathia nem daqui
a milhões de anos, apesar de imaginar que ele não é boa coisa. Você não parece ter nenhum
medo dele. Quase botei meu almoço para fora quando vi aquela lua vermelha, e você parecia
saber por que ela estava lá.
Rayford assentiu sem dar explicações.
- Tenho uma pergunta para você, Mac. Você sabia por que motivo fui até o aeroporto de Bagdá.
Por que não me perguntou se encontrei minha mulher ou Hattie Durham?
- Não tenho nada a ver com elas, só isso - respondeu Mac.
- Não me venha com essa. A menos que Carpathia saiba mais do que eu, ele teria perguntado
sobre o paradeiro de Hattie assim que um de nós tivesse alguma notícia.
- Não, Rayford, não é nada disso. Eu só sabia – como qualquer outra pessoa - que seria muito
improvável que sua mulher e a Srta. Durham tivessem sobrevivido a um desastre naquele
aeroporto.
- Mac! Você mesmo viu centenas de pessoas saindo daquele 747. Claro que nove entre dez
pessoas morreram naquele aeroporto, mas muitas sobreviveram. Agora, se você quer que eu
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lhe dê algumas respostas, é melhor começar a explicar-se.
Mac apontou com a cabeça para um local aberto que ele iluminara com o farol do helicóptero.
- Conversaremos lá embaixo.
Tsion carregava apenas seu telefone, seu laptop e algumas mudas de roupas que lhe foram
entregues secretamente. Buck aguardou até estacionar perto da rua destroçada da casa de
Loretta para contar-lhe acerca de Donny Moore.
- Que tragédia! - exclamou Tsion. - Ele era aquele...?
- Aquele de quem lhe falei. O especialista em computadores que montou nossos laptops. Um
daqueles génios calados. Ele havia frequentado a igreja durante anos e nunca conseguiu
entender como um homem com um QI tão elevado pôde ter sido tão cego espiritualmente. Ele
dizia que durante todo aquele tempo não chegou a entender a essência do Evangelho. Dizia
que não podia culpar a igreja nem os pastores. Naquela época, a mulher dele acompanhou-o
raras vezes porque também não entendia o Evangelho. Eles perderam um bebé no
Arrebatamento. Assim que Donny se converteu, sua mulher o acompanhou. Eles tornaram-se
crentes piedosos.
- Que morte triste! - disse Tsion balançando a cabeça. - Mas agora eles estão na companhia do
filho.
- O que você acha que devemos fazer com a maleta dele? - indagou Buck.
- Com a maleta dele?
- Donny deve ter guardado alguma coisa muito importante lá. Ele não largava dela. Mas não sei
as combinações do segredo. Será que devo deixá-la como está?
Tsion parecia estar refletindo. Finalmente, ele disse:
- Em tempos como estes, você deve julgar se existe alguma coisa lá dentro que possa ser útil
para a causa de Cristo. O jovem talvez desejasse que você tivesse acesso a ela. Se você
arrombá-la e encontrar apenas coisas pessoais, o mais certo é resguardar a privacidade dele.
Tsion e Buck saíram com dificuldade do Rover. Assim que atiraram as ferramentas por cima do
muro de asfalto e desceram pelo outro lado, Tsion disse:
- Buck! Onde está o carro de Chloe?
22
TRÊS
Rayford não podia jurar quanto à sinceridade de Mac McCullum. Ele só sabia que aquele
homem sardento e divorciado duas vezes acabara de entrar na casa dos 50 anos e não tinha
filhos. Mac era um aviador cuidadoso e competente, pilotava com facilidade vários tipos de
aeronaves tanto em voos militares como comerciais.
Mac provara ser um bom amigo, ouvia com interesse e falava de modo um pouco ríspido. Fazia
pouco tempo que ambos se conheciam, portanto Rayford não podia esperar que ele fosse mais
acessível. Apesar de Mac ser aparentemente um sujeito inteligente e responsável, o pouco
relacionamento que havia entre eles nunca passara de uma cordialidade superficial. Mac sabia
que Rayford era cristão; Rayford não escondia isso de ninguém. Contudo, Mac nunca
demonstrara o mínimo interesse no assunto. Até aquele momento.
Rayford estava mais preocupado com o que não deveria dizer. Finalmente, Mac expressara sua
frustração a respeito de Carpathia, chegando ao ponto de dizer que ele "não era boa coisa"..
Mas, e se Mac fosse um subversivo, sendo mais que um piloto para Carpathia? Estaria ele
preparando uma armadilha para Rayford? Será que Rayford devia conversar com Mac a respeito
de sua fé e revelar tudo o que ele e o Comando Tribulação sabiam sobre Carpathia? E quanto
àquele dispositivo secreto instalado no Condor 216? Mesmo que Mac demonstrasse interesse em
Cristo, Rayford manteria aquele segredo até estar certo de que o colega não era um traidor.
Mac desligou tudo no helicóptero, exceto a fonte de energia auxiliar que controlava as luzes no
painel e o funcionamento do rádio. Naquela imensidão do deserto escuro, Rayford só conseguia
enxergar a lua e as estrelas. Se não soubesse onde se encontrava, talvez acreditasse que
aquela pequena aeronave estava pousada sobre um porta-aviões que navegava lentamente no
meio do oceano.
- Mac - disse Rayford -, conte-me alguma coisa sobre o abrigo. Como ele é? E como Carpathia sabia
que ia precisar dele?
- Não sei - respondeu Mac. - Talvez por precaução, caso um ou mais de seus embaixadores se
voltassem contra ele novamente. O abrigo é profundo, feito de concreto, e protegerá Carpathia
contra radiação. E vou-lhe dizer mais uma coisa: é grande o suficiente para acomodar o 216.
Rayford estava aturdido.
- O 216? Eu o deixei no final da longa pista de decolagem na Nova Babilónia.
- Fui incumbido de tirá-lo de lá hoje de manhã.
- E para onde o levou?
- Você não me perguntou outro dia sobre aquela estrada que Carpathia tinha construído?
- Aquela estradinha de pista única que parecia servir apenas para alguém chegar até à cerca
na beira da pista de aterrissagem?
- Aquela mesma. Agora existe um portão na cerca onde a estrada termina.
- Quer dizer que basta abrir o portão - disse Rayford - para chegar lá, chegar ao outro lado do
deserto de areia?
- É o que parece - respondeu Mac. - Mas uma grande extensão daquela areia recebeu um
tratamento especial. Sem isso, um avião tão grande quanto o 216 afundaria na areia,
você não acha?
- Você está me dizendo que taxiou o 216 naquela estradinha e atravessou o portão? Que
tamanho tem esse tal portão?
- O tamanho suficiente para a fuselagem passar por ele. As asas são mais altas e passam por
cima da cerca.
- Então você conduziu o Condor por aquela pista, atravessou a areia e foi parar onde?
- A três quarteirões e meio a nordeste da sede da Comunidade Global, conforme Carpathia
disse.
- Esse abrigo não deve estar localizado em uma região muito populosa.
- Não. Duvido que alguém o tenha visto sem o conhecimento de Carpathia. Ele é gigantesco,
23
Ray. Deve ter levado tempo demais para ser construído. Se fossem colocados dois aviões do
tamanho do 216 lá dentro, eles preencheriam somente metade do espaço. Localiza-se a mais
de nove metros abaixo da terra e está muito bem equipado com comida, alojamentos, água,
várias cozinhas e tudo o mais que você possa imaginar.
- Como uma construção subterrânea é capaz de suportar terremotos?
- Em parte, por causa da genialidade de alguém; em parte, por sorte - respondeu Mac. -
Aquela coisa flutua, suspensa por uma espécie de membrana cheia de fluido hidráulico e
apoiada sobre uma plataforma de molas que atuam como gigantescos amortecedores.
- Quer dizer que o resto da Nova Babilónia está em ruínas, mas o Condor e o pequeno refúgio
de Carpathia ou, melhor dizendo, o enorme refúgio de Carpathia escaparam incólumes?
- É aí que entra a genialidade, Ray. O local balançou muito, mas a tecnologia venceu. Eles
ficariam presos lá – e até isso foi previsto - se a entrada principal, o portão imenso que
permitiu que o avião o atravessasse com facilidade, estivesse totalmente coberta de pedras e
areia por causa do terremoto. Eles conseguiram fazer duas entradas menores do outro lado
para passagem do pessoal e, neste momento, as escavadeiras de Carpathia já estão reabrindo
a entrada original.
- Então ele está querendo ir para outro lugar? Não está suportando o calor?
- Não, nada disso. Ele está aguardando companhia.
- Os asseclas dele estão a caminho?
- Carpathia os chama de embaixadores. Ele e Fortunato têm grandes planos.
Rayford balançou a cabeça.
- Fortunato! Eu o vi na sala de Carpathia quando o terremoto começou. Como ele sobreviveu?
- Fiquei tão surpreso quanto você, Ray. Pelo que me lembro, não o vi sair por aquela porta no
teto do edifício.
- Imaginei que as únicas pessoas que tiveram chance de sobreviver ao desabamento daquele
lugar foram aquelas poucas que estavam no teto quando o edifício desmoronou. Estou falando
de uma queda de quase vinte metros, com concreto caindo por todos os lados, havendo,
portanto, poucas possibilidades de alguém sair vivo dali. Mas eu soube de uma notícia
estranha. Li a respeito de um sujeito na Coreia que estava no topo de um hotel que desabou.
Ele disse que teve a sensação de estar surfando sobre uma prancha de concreto. Bateu no
chão e rolou. Só quebrou um braço.
- E qual é a história de Fortunato? Como ele saiu de lá?
- Você não vai acreditar.
- Nesta altura, não duvido mais de nada.
- A história que presenciei foi esta. Levei Carpathia para o abrigo e deixei o helicóptero perto
da entrada onde eu tinha estacionado o Condor. Estava tudo camuflado, como costumo
dizer, e Carpathia me conduziu até o outro lado onde havia uma pequena abertura. Entramos,
e havia ali um grande número de funcionários trabalhando, como se nada tivesse acontecido.
Gente cozinhando, limpando, organizando, essas coisas.
- E a secretária de Carpathia?
Mac balançou a cabeça.
- Acho que ela morreu no desabamento do edifício com a maioria dos funcionários da
administração. Mas ela e os outros que pereceram já foram substituídos por Carpathia.
- Incrível. E Fortunato?
- Ele também não estava lá. Alguém disse a Carpathia que não havia sobreviventes do edifício, e
eu juro, Ray, que vi o homem empalidecer. Foi a primeira vez que o vi agitado, a não ser
quando ele finge ter um acesso de raiva com alguma coisa. Acho que essas atitudes são
sempre planejadas.
- Eu também. O que aconteceu com Leon?
- Carpathia recuperou-se rapidamente e disse: "Vamos cuidar disso." Avisou que voltaria logo, e
perguntei se ele queria que eu o levasse a algum lugar. Ele respondeu que não e saiu. Quando
foi que você viu Carpathia ir a algum lugar sozinho?
- Nunca.
- Acertou. Ele ficou fora por cerca de meia hora e, quando voltou, estava acompanhado de
Fortunato. Fortunato estava coberto de poeira da cabeça aos pés e com o terno em estado
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lastimável. Sua camisa, porém, estava presa dentro da calça, o paletó abotoado e a gravata no
lugar. Não havia um só arranhão nele.
- E o que ele contou?
- A história dele me provocou calafrios, Ray. Um grupo enorme de pessoas reuniu-se ao redor
dele, talvez umas cem. Emocionado, Fortunato pediu ordem no recinto. Ele contou que desceu
chorando e gritando no meio dos entulhos como todos os demais. Disse, de passagem, que
estava pensando na possibilidade de ter a sorte de abrigar-se em algum lugar onde pudesse
respirar e permanecer vivo até que alguém da equipe de resgate o encontrasse. Contou que
estava desprotegido e sendo esmagado por enormes pedaços de concreto do edifício, quando,
de repente, alguma coisa prendeu seu pé, fazendo com que ele caísse de cabeça no
chão. Quando sua cabeça bateu no chão, ele achou que ela havia se partido ao meio. Foi então
que o edifício caiu inteiro em cima dele. Fortunato sentiu todos os seus ossos se quebrando, os
pulmões estourando, e tudo ficou negro. Disse que parecia que alguém havia desligado o fio da
tomada de sua vida. Ele imaginava estar morto.
- E, depois de tudo isso, ele estava lá, com o terno empoeirado e sem nenhum arranhão?
- Eu o vi com meus próprios olhos, Ray. Ele disse que ficou deitado como morto, sem se dar
conta de nada, sem ter tido nenhuma experiência extracorpórea ou coisa parecida. Apenas
uma escuridão, como se estivesse dormindo um sono profundo. Depois, ele acordou da morte,
quando ouviu alguém chamar seu nome. A princípio, pensou que estivesse sonhando. Pensou
que voltara a ser menino e que sua mãe estivesse chamando carinhosamente por ele,
tentando acordá-lo. Mas, de repente, ele disse, ouviu Nicolae gritar: "Leonardo, volte à vida!"
- O quê?
- Foi isso mesmo, Ray, e aquilo me deu calafrios. Nunca fui religioso, mas conheço aquela
história da Bíblia e tenho certeza de que Nicolae estava fingindo ser Jesus ou não sei
quem.
- Você acha que foi uma história mentirosa? – perguntou Rayford. - Você deve saber que a
Bíblia diz que o homem só morre uma vez. Não há uma segunda chance.
- Eu não sabia disso, nem o que pensar quando ele contou aquela história. Carpathia
ressuscitando alguém? Você sabe que, no início, eu gostava muito de Carpathia e não via a
hora de trabalhar para ele. Houve ocasiões em que achei que ele era um homem piedoso,
talvez um tipo de divindade. Mas tudo isso acabou. Imagine só, ele me obrigando a
decolar do topo daquele edifício enquanto havia pessoas penduradas nas vigas e gritando por
socorro. Imagine só, ele censurá-lo porque você queria ajudar aquele sobrevivente no
deserto. Que tipo de homem bom é esse?
- Ele não é um homem bom - disse Rayford. - É o oposto disso.
-Você acha que ele é o anticristo, como muita gente diz?
E assim foi. Mac lhe fizera a pergunta. Rayford sabia que havia se precipitado. Será que acabara
de selar seu destino? Será que ele se revelara completamente a um lacaio de Carpathia, ou
Mac estava sendo sincero? Como ele podia saber ao certo?
Buck andava em círculos. Onde estaria o carro de Chloe? Ela costumava estacioná-lo na entrada
lateral da casa, antes da garagem onde Loretta guardava seus objetos. O carro de Loretta
ficava estacionado em outro lugar. Não faria sentido Chloe ter deixado seu carro no lugar do de
Loretta só porque Loretta havia ido à igreja.
- Ele deve estar jogado em qualquer lugar, Tsion.
- Sim, meu amigo, mas não tão longe a ponto de não conseguirmos enxergá-lo.
- Talvez esteja soterrado.
- Precisamos procurá-lo, Cameron. Se o carro estiver aqui, Chloe também deve estar aqui.
Buck percorreu a rua de cima para baixo, olhando por entre os escombros das casas desabadas
e dentro das enormes crateras. Não havia nenhum carro parecido com o de Chloe. Quando ele
voltou para perto de Tsion, no local em que um dia fora a garagem de Loretta, o rabino estava
tremendo. Apesar de ter pouco mais de 40 anos, de repente Tsion parecia um velho aos olhos de
Buck. Ele começou a andar de maneira esquisita e cambaleou, caindo de joelhos no chão.
- Tsion, você está bem?
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- Você já viu uma coisa parecida com esta? – perguntou Tsion, quase sussurrando. - Já vi
devastação e ruínas, mas isto aqui é demais. Tantas mortes e tanta destruição...
Buck pousou a mão no ombro do rabino, cujos soluços faziam estremecer todo o seu corpo.
- Tsion, não podemos permitir que a monstruosidade disso tudo penetre em nossas mentes.
Eu preciso separar as coisas, de um jeito ou de outro. Sei que não se trata de um sonho.
Sei exatamente o que estamos atravessando, mas não posso pensar muito no assunto. Não
tenho condições. Se eu me desesperar, não será bom para ninguém. Precisamos um do outro.
Precisamos ser fortes. - Buck percebeu que sua voz estava fraca no momento em que ele
disse que ambos precisavam ser fortes.
- Sim - disse Tsion com os olhos marejados, tentando recompor-se. - A glória do Senhor será
a nossa retaguarda. Devemos nos regozijar sempre no Senhor, e Ele nos exaltará.
Depois de proferir essas palavras, Tsion levantou-se e pegou uma pá. Antes que Buck tivesse
tempo de raciocinar, Tsion começou a cavar a garagem da casa.
O rádio do helicóptero fez um ruído de chamada, dando tempo a Rayford de recompor-se,
raciocinar e orar silenciosamente para que Deus o impedisse de dizer alguma tolice. Ele ainda
não sabia se Amanda estava viva ou morta. Não sabia se Chloe, Buck ou Tsion estavam aqui na
terra ou no céu. Sua prioridade era encontrá-los, reunir-se com eles. Será que justo naquele
momento ia pôr tudo a perder?
O funcionário do abrigo subterrâneo pediu que Mac estivesse lá às 22h20.
Mac olhou pesaroso para Rayford.
- É melhor fazermos de conta que estamos no ar – ele disse, acionando os motores.
O barulho era ensurdecedor.
- Continuo resgatando feridos em Bagdá - disse ele ao funcionário. - Demorarei mais uma
hora.
- Positivo.
Mac desligou os motores do helicóptero.
- Ganhamos um pouco mais de tempo - ele disse.
Rayford cobriu os olhos com as mãos por alguns instantes.
"Senhor Deus", ele orou silenciosamente, "não posso fazer nada, a não ser confiar em ti e
seguir meus instintos. Creio que este homem está sendo sincero. Se não estiver, não permitas
que eu diga algo que não deva. Se estiver sendo sincero, não quero deixar de contar-lhe o que
ele precisa saber. Tu tens sido tão claro em tuas respostas a Buck e Tsion. Poderias dar-me um
sinal? Algo que me assegurasse de estar fazendo a coisa certa?"
Terminada a oração, ele olhou de relance para Mac, cujos olhos estavam fracamente
iluminados pelas luzes do painel de controle. Naquele momento, Deus parecia silencioso.
Rayford nunca ouvira Deus falar diretamente com ele, apesar de ter sido agraciado com
respostas às suas orações. Agora não havia mais volta. Ele não recebera nenhum sinal verde
divino, mas também não recebera sinais vermelhos ou amarelos. Conhecendo qual poderia ser
o resultado de sua tolice, achou que não tinha nada a perder.
- Mac, vou lhe contar minha história inteira e tudo o que penso sobre o que aconteceu, sobre
Nicolae e o que ainda virá. Mas, antes de fazer isso, preciso que você me diga o que Carpathia
sabe, se Hattie ou Amanda devem chegar a Bagdá esta noite.
Mac suspirou e desviou o olhar. O coração de Rayford deu um salto. Com certeza, ele ia ouvir
algo que não desejava ouvir.
- Bem, Ray, a verdade é que Carpathia sabe que Hattie continua nos Estados Unidos. Ela
chegou até Boston, mas o pessoal dele o informou que ela embarcou em um vôo direto
para Denver antes do terremoto.
- Para Denver? Pensei que ela estivesse vindo de Denver.
- E estava. É lá que a família dela mora. Ninguém sabe por que ela voltou.
- E Amanda? - perguntou Rayford, com um aperto na garganta.
- O pessoal de Carpathia disse que ela estava em um vôo da Pan-Con partindo de Boston e que
deveria ter pousado em Bagdá antes do terremoto. O avião demorou um pouco mais
de tempo sobre o Atlântico por motivos desconhecidos, mas a última notícia foi a de que ele
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estava sobrevoando o espaço aéreo do Iraque. Rayford abaixou a cabeça e procurou controlarse.
- Então, ele deve estar soterrado em algum lugar – ele disse. - Por que eu não o vi no
aeroporto?
- Não sei - respondeu Mac. - Talvez ele tenha sido completamente engolido pelas areias do
deserto. Mas todos os outros aviões monitorados pela torre de Bagdá foram localizados, e
aquele não.
- Ainda resta uma esperança - disse Rayford. - Talvez, por causa daquele atraso, o avião ainda
estivesse em pleno vôo, e o piloto resolveu permanecer no ar até que a terra parasse de
tremer e ele encontrasse um local para pousar.
- Talvez - disse Mac, mas Rayford notou um tom de ceticismo em sua voz. Evidentemente, Mac
não acreditava nisso.
- Não vou parar enquanto não encontrá-la - disse Rayford. Mac assentiu, e Rayford percebeu
que o colega ainda não dissera tudo. - Mac, o que você está escondendo de mim? -
Mac olhou para baixo e balançou a cabeça. - Preste atenção, Mac. Já dei a entender o que
penso sobre Carpathia. Estou me arriscando demais. Não sei a quem você é leal, mas estou
prestes a lhe dizer mais coisas que eu não diria a alguém em quem não confiasse. Se você
sabe algo sobre Amanda que eu necessite saber, precisa me contar.
Mac deu um suspiro hesitante.
- Você não desejará saber. Confie em mim, você não vai querer saber.
- Ela está morta?
- É provável - ele disse. - Sinceramente, não sei e acho que Carpathia também não sabe.
Mas há uma coisa pior do que isso, Rayford. Pior do que ela estar morta.
Cavar a garagem da casa desabada de Loretta parecia ser uma missão impossível, mesmo
para dois homens adultos. Ela estava unida à casa e aparentemente sofrera menos danos. Não
havia porão debaixo da área da garagem, portanto as lajes de cimento e o alicerce não deviam
estar a uma profundidade muito grande. Quando o telhado desabara, as portas, divididas em
duas partes, foram comprimidas a tal ponto que chegaram a ficar sobrepostas. Uma delas
estava posicionada em ângulo, mais de meio metro fora do trilho, apontando para a direita. A
outra estava pouco mais de vinte centímetros fora do trilho e apontava para a esquerda.
Ambas não saíam do lugar. Tudo o que Buck e Tsion podiam fazer naquelas circunstâncias
seria tentar derrubá-las. Se estivessem na posição normal, as portas de madeira poderiam ser
facilmente arrombadas, mas agora havia uma parte enorme do telhado comprimindo-as contra
o concreto, que estava a cerca de meio metro abaixo da superfície.
Para Buck, cada golpe desferido na madeira com o machado parecia bater em aço. Segurando
na ponta do cabo do machado com as duas mãos, ele investia com toda a força, mas só
conseguia tirar pequenas lascas de madeira por vez. Tratava-se de uma porta de boa
qualidade, muito forte, por ser de madeira maciça.
Buck sentia-se exausto, movido apenas pelo sofrimento. A cada golpe desferido com o
machado, seu desejo de encontrar Chloe aumentava. Ele sabia que estava lutando contra
todas as circunstâncias, mas acreditava que só abandonaria sua busca se tivesse certeza de
que a perdera para sempre. Ele mantinha a esperança e orava para encontrar Chloe viva, mas,
se tivesse acontecido o pior, queria encontrá-la em uma condição que provasse que ela
morrera relativamente sem dor. De qualquer forma, ele achava que não demoraria muito para
encontrá-la.
Tsion Ben-Judá estava em boa forma para sua idade. Até o momento de esconder-se no abrigo,
ele se exercitava todos os dias. Contara a Buck que, apesar de nunca ter sido um atleta, sabia
que a saúde de sua mente erudita dependia da saúde de seu corpo. Tsion estava cumprindo
sua parte na tarefa, golpeando a porta em vários locais, tentando encontrar um ponto fraco
que lhe permitisse destruí-la mais rapidamente. Mesmo transpirando e ofegante, ele ainda
conversava enquanto trabalhava.
- Cameron, você não está querendo encontrar o carro de Chloe aqui, não é mesmo?
-Não.
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- E, se você não encontrá-lo, chegará à conclusão de que ela conseguiu escapar de um modo
ou de outro?
- Essa é a minha esperança.
- Então, estamos trabalhando por processo de eliminação?
- Isso mesmo.
- Assim que constatarmos que o carro dela não está aqui, Cameron, é melhor tentarmos retirar
da casa tudo o que pudermos.
- Tudo o quê?
- Alimentos. Suas roupas. Você não me disse que já vasculhou toda a área onde se encontrava
o seu quarto?
- Sim, mas não encontrei o guarda-roupa nem o que havia dentro. Ele não deve estar muito
longe.
- E a cómoda? Com certeza, você tinha roupas guardadas lá.
- Boa ideia - disse Buck.
Entre um e outro som das machadadas contra a porta da garagem, Buck ouviu um ruído
diferente. Interrompeu o trabalho e levantou uma das mãos para que Tsion também parasse.
Tsion encostou-se no cabo do machado para recobrar o fôlego, e Buck reconheceu o ruído do
motor de um helicóptero. O ruído tornou-se mais próximo e ficou tão forte que Buck imaginou
que fossem dois ou três helicópteros. Mas, quando conseguiu enxergar, surpreendeu-se ao ver
que se tratava de apenas um, tão grande quanto um ônibus. O único semelhante que ele
havia visto foi na Terra Santa durante um ataque aéreo alguns anos antes. Porém, o que
estava pousando a cem metros ou pouco mais se assemelhava apenas em tamanho aos
antigos helicópteros israelenses de cor cinza e preta. Tinha uma tonalidade branca brilhante e
parecia ter acabado de sair da linha de montagem. Estampava o emblema enorme da
Comunidade Global.
- Você acredita no que está vendo? - perguntou Buck.
- O que você pensa a respeito? - disse Tsion.
- Não faço ideia. Só espero que não estejam à sua procura.
- Francamente, Cameron, penso que de repente passei para o fim da lista das prioridades da
CG, você não acha?
- Logo saberemos. Vamos.
Eles abandonaram os machados e rastejaram até o muro de asfalto que, horas antes, havia
sido a rua da casa de Loretta. Através de uma fenda, viram o helicóptero da CG pousar perto
de um poste tombado. Enquanto pelo menos uma dúzia de homens do pelotão de emergência
saía do helicóptero, um fio de alta tensão partiu-se e bateu com força no chão. O líder
comunicou-se com alguém por meio de um walkie-talkie. Em questão de segundos, os fios da
energia elétrica e dos telefones foram desligados na região. O líder pegou uma tesoura especial
para cortar todos os outros fios que estavam ligados ao poste.
Dois empregados uniformizados retiraram uma enorme estrutura circular de metal de dentro
do helicóptero, e os técnicos fizeram uma ligação improvisada em uma das extremidades do
poste. Nesse ínterim, outros funcionários usaram uma imensa máquina perfuradora para cavar
um novo buraco para o poste. Uma betoneira encheu o buraco com uma mistura de concreto
preparada na hora, e uma polia portátil foi fixada sobre os quatro lados por dois funcionários
que puseram todo o seu peso sobre os pés de metal localizados em cada canto. O restante do
pessoal colocou rapidamente o poste na posição correta. Ele foi levantado até ficar em ângulo
de 45 graus, e três funcionários curvaram-se para arrastar a parte inferior do poste para
dentro do buraco. A polia esticou e endireitou o poste, afundando-o com força no buraco e
fazendo espirrar o excesso de concreto para todos os lados.
Em questão de segundos, tudo foi levado de volta para dentro do helicóptero, e a equipe da CG
levantou vôo. Em pouco menos de cinco minutos, um poste que antes servia para conduzir
energia elétrica e linhas telefónicas tinha sido transformado.
Buck virou-se para Tsion.
- Você entendeu o que acabamos de presenciar?
- Incrível - disse Tsion. - Agora ele é uma torre de telefone celular, certo?
- Sim. Ele está um pouco mais baixo do que deveria, mas resolverá o problema. Alguém
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acredita que manter as áreas dos telefones celulares funcionando é mais importante que a
eletricidade e o telefone convencional.
Buck tirou o telefone celular do bolso. O visor marcava capacidade de funcionamento total e
raio de distância total, pelo menos nas proximidades daquela nova torre.
- Eu gostaria de saber - ele disse - quanto tempo vai demorar para que muitas torres como
esta estejam em pé, permitindo que a gente possa falar com qualquer lugar novamente.
Tsion já estava retornando à garagem. Buck apertou o passo para alcançá-lo.
- Não vai demorar muito - disse Tsion. - Carpathia deve ter equipes como esta trabalhando
contra o relógio no mundo inteiro.
- É melhor voltarmos logo - disse Mac.
- Oh, é claro. Quer dizer que vou deixá-lo levar-me até Carpathia e a seu abrigo secreto antes
que você me conte uma coisa sobre minha mulher que é pior do que ela estar morta?
- Ray, não me obrigue a dizer mais nada. Já falei demais. Não tenho meios de provar tudo isso
e não confio em Carpathia.
- Quero que me conte tudo - disse Rayford.
- Mas, se sua reação for a que eu espero, você não vai me dizer o que quero saber.
Rayford já havia quase esquecido. E Mac estava certo. A perspectiva de receber más notícias a
respeito de sua mulher o tornara tão obsessivo que ele se esquecera dos outros assuntos
importantes que precisavam ser discutidos.
- Mac, dou-lhe a minha palavra de que responderei a qualquer pergunta e falarei sobre o que
você quiser. Mas você precisa me dizer o que sabe sobre Amanda.
Mac continuava relutante.
- Bem, uma coisa é certa. Não sei se aquele vôo da Pan-Con teria combustível suficiente para
ficar voando a esmo até encontrar um local de pouso. Se o terremoto aconteceu
antes da aterrissagem e ficou claro para o piloto que não havia condições de pousar em Bagdá,
ele não teria tido a chance de ir muito longe.
- Essa é uma boa hipótese, Mac. Como não encontrei o avião em Bagdá, ele deve estar em
algum lugar próximo. Vou continuar a busca. Nesse meio-tempo, conte-me tudo o que
você sabe.
- Está certo, Ray. Nesta altura dos acontecimentos, acho que não faz sentido escondermos o
jogo. Se tudo o que já lhe contei não serviu para convencê-lo de que não sou um dos
espiões de Carpathia, nada mais o convencerá.. Se ele souber que lhe contei isso, serei um
homem morto. Portanto, independentemente do que você pensa ou de como será sua
reação ou ainda o que vai querer dizer a ele sobre tudo isso, jamais revele a fonte. Entendido?
- Sim, sim! E daí?
Mac respirou fundo, mas não disse nada, o que era de deixar qualquer um furioso. Rayford
estava a ponto de explodir.
- Preciso sair da minha poltrona - disse Mac finalmente, desatando o cinto de segurança. -
Vamos, Rayford. Saia. Não me faça pular sobre você.
Mac ficou em pé entre sua poltrona e a de Rayford, com o corpo curvado para não bater a
cabeça no teto do helicóptero. Rayford desatou seu cinto e abriu a porta, saltando na areia.
Ele estava a ponto de implorar, determinado a não permitir que Mac voltasse ao helicóptero
sem antes lhe contar o que ele precisava saber.
Mac permaneceu do lado de fora do helicóptero, com as mãos enfiadas nos bolsos da calça. O
clarão da lua cheia iluminava seus cabelos loiro-avermelhados, as marcas acentuadas e as
sardas de seu rosto cansado. Ele parecia um homem que ia para a forca.
De repente, Mac deu um passo à frente e colocou as palmas das mãos na lateral do
helicóptero, de cabeça baixa. Por fim, ele levantou a cabeça e virou-se para Rayford.
- Tudo bem, vou contar. Não se esqueça de que foi você quem me forçou... Carpathia fala de
Amanda como se a conhecesse.
Rayford fez um trejeito com a boca, levantou as mãos abertas e deu de ombros.
- Ele a conhece. E daí?
- Não foi isso o que eu disse! Eu disse que ele fala dela como se a conhecesse muito bem.
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- E o que isso significa? Um caso amoroso? Não me venha com essa.
- Ray! Estou dizendo que ele fala dela como se a conhecesse muito antes de você.
Rayford quase caiu sentado na areia.
- Você não está dizendo que...
- Estou dizendo que, a portas fechadas, Carpathia faz comentários sobre Amanda. Ela faz
parte da equipe, ele costuma dizer. Está no lugar certo. Desempenha muito bem seu papel.
Esse tipo de coisa. O que posso deduzir disso?
Rayford não conseguia falar. Não estava acreditando. Não, claro que não. Mas que ideia! Que
atrevimento daquele homem em tirar conclusões sobre o caráter da mulher que Rayford
conhecia tão bem!
- Mal conheço sua mulher, Ray. Não tenho ideia de que isso seja possível. Só estou lhe
contando o que...
- Não é possível - Rayford conseguiu dizer finalmente. - Sei que você não a conhece, mas eu a
conheço.
- Eu não esperava que você acreditasse, Ray. Nem mesmo estou dizendo que tenho alguma
suspeita.
- Você não deve suspeitar de nada. Aquele homem é um mentiroso. Ele trabalha para o pai da
mentira. Ele diria qualquer coisa sobre uma pessoa para tirar algum proveito. Não sei por que
ele precisa manchar a reputação de Amanda, mas...
- Ray, eu não lhe disse que acho que ele está certo. Mas você tem de admitir que ele está
extraindo informações de algum lugar.
- Não me venha insinuar que...
- Não estou insinuando nada. Estou apenas dizendo...
- Mac, não posso dizer que conheço Amanda há muito tempo. Não posso dizer que ela me deu
filhos como minha primeira mulher. Não posso dizer que vivemos juntos há vinte anos como
vivi com Irene. Mas posso dizer que não somos apenas marido e mulher. Somos irmãos em
Cristo. Se eu tivesse compartilhado da fé de Irene, ela e eu teríamos sido companheiros de
alma também, mas foi aí que falhei. Amanda e eu nos encontramos depois de nos
convertermos e nos ligamos um ao outro instantaneamente. Trata-se de um vínculo que
ninguém pode quebrar. Aquela mulher não é mentirosa, nem traidora, nem subversiva, nem
vira-casaca. Ninguém pode ser melhor do que ela. Ninguém pode dormir a meu lado, olhar
fundo nos meus olhos, prometer me amar e ser fiel a mim de maneira tão sincera e, ao
mesmo tempo, ser uma pessoa mentirosa, sem que eu desconfie de nada. De jeito nenhum.
- Para mim, é o suficiente, capitão - disse Mac.
Rayford estava furioso com Carpathia. Se não tivesse
empenhado sua palavra com Mac, seria difícil alguém impedi-lo de acionar o rádio naquele
momento e pedir para falar diretamente com Nicolae. Ele gostaria de saber como encararia o
homem. O que diria ou faria quando estivessem frente a frente?
- Por que eu devia esperar algo diferente de um homem como ele? - disse Rayford.
- Boa pergunta. Agora é melhor irmos embora, você não acha?
Rayford queria dizer a Mac que ainda estava disposto a conversar sobre as perguntas que ele
levantara, mas não tinha ânimo para isso. Se Mac voltasse a lhe fazer perguntas, Rayford as
responderia. Mas, se Mac o deixasse quieto, ele preferiria aguardar um momento mais
adequado.
- Mac - disse Rayford enquanto ambos atavam os cintos de segurança dentro do helicóptero -,
já que estamos supostamente em uma missão de resgate, você se importaria de darmos uma
busca, sobrevoando 40 quilómetros em círculos?
- Com certeza, seria melhor durante o dia – respondeu Mac. - Você quer que eu o traga de
volta aqui amanhã?
- Sim, mas, de qualquer maneira, vamos dar uma volta. Se aquele avião pousou em algum
lugar perto de Bagdá, a única esperança de achar sobreviventes é encontrá-los o mais
rápido possível.
Rayford notou uma expressão de simpatia no rosto de Mac.
- Eu sei - prosseguiu Rayford. - Estou sonhando. Mas não posso voltar para Carpathia e
aproveitar-me do abrigo e de suas instalações enquanto não esgotar todas as tentativas de
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encontrar Amanda.
- Eu estava aqui pensando - disse Mac. - Se houvesse um fundo de verdade no que Carpathia
diz...
- Não há, Mac, e estou certo disso. Vamos esquecer o assunto.
- Estou só dizendo que, se houvesse, você não acha que existiria a possibilidade de Carpathia
ter colocado Amanda em outro avião? Só para protegê-la?
- Oh, já entendi! - disse Rayford. - O lado bom da história de minha mulher trabalhar para o
inimigo é que ela pode estar viva?
- Eu não estava olhando por esse ângulo - disse Mac.
- Então aonde você quer chegar?
- A lugar nenhum. Não devemos mais conversar sobre esse assunto.
- Claro que não.
Porém, assim que Mac começou a rodar com o helicóptero em círculos concêntricos cada vez
maiores, partindo do terminal de Bagdá, Rayford só avistava fendas e areias afundadas no solo.
Agora ele queria encontrar Amanda, não só para tê-la a seu lado, mas também para provar que
ela era uma pessoa de bem.
Quando eles resolveram desistir da busca e Mac prometeu ao funcionário do abrigo que ambos
estavam a caminho, uma ponta de dúvida começou a surgir na cabeça de Rayford. Ele sentiase
culpado por levar adiante essa dúvida, mas não conseguia afastá-la. Temia o estrago que
isso faria ao seu amor e respeito por aquela mulher que completara sua vida e estava
determinado a tirar a dúvida da mente de uma vez por todas.
Seu problema era que, a despeito do quanto ele se tornara romântico depois de conhecê-la, do
quanto se tornara emotivo desde sua conversão (e de ter presenciado mais tragédias do que
qualquer outra pessoa poderia suportar), seu raciocínio ainda era prático, analítico e científico,
o que fizera dele um piloto tão bem conceituado. Rayford detestava ter de simplesmente
abandonar essa dúvida apenas por ela não condizer com o que seu coração sentia. Ele teria de
livrar Amanda dessa acusação provando de uma maneira ou de outra sua lealdade e a
sinceridade de sua fé - com a ajuda dela, se estivesse viva, ou sem ela, se estivesse morta.
A tarde já estava no meio quando finalmente Buck e Tsion conseguiram abrir um buraco em
uma das portas da garagem com tamanho suficiente para que Tsion pudesse atravessar por
ele.
A voz de Tsion era tão rouca e fraca que Buck precisou encostar o ouvido na abertura.
- Cameron, o carro de Chloe está aqui. Consegui abrir um
pouco a porta para acender a luz interna. Dentro do carro
estão apenas o telefone e o computador dela.
- Vamos até os fundos da casa! - gritou Buck. - Rápido, Tsion! Se o carro dela está aqui, é sinal
de que ela ainda está por aqui!
Buck pegou todas as ferramentas que pôde e correu para os fundos da casa. Essa era a
evidência pela qual ele tanto esperara e orara. Se Chloe estivesse debaixo daqueles
escombros, e houvesse uma possibilidade em um milhão de estar viva, ele não desistiria até
encontrá-la.
Buck começou a retirar os escombros com toda a força, precisando lembrar-se de parar por
alguns instantes para recuperar o fôlego. Tsion apareceu e pegou uma pá e um machado.
- Devo começar por outro lugar? - ele perguntou.
- Não! Temos de trabalhar em conjunto, se quisermos ter alguma esperança!
31
QUATRO
- O que aconteceu com as roupas empoeiradas? - Rayford sussurrou quando ele e Mac
atravessaram a porta da entrada auxiliar do gigantesco abrigo subterrâneo de Carpathia,
conduzidos por um segurança. Do outro lado, um pouco adiante do Condor 216 e no meio de
numerosos subordinados e assistentes, lá estava Fortunato, com aparência animada e trajando
outro terno.
- Nicolae providenciou roupas limpas para ele - murmurou Mac.
Rayford não comera nada durante um período de mais de 12 horas, mas não havia pensado
em fome até aquele momento. Os lacaios de Carpathia, demonstrando uma surpreendente
animação, tinham acabado de servir-se em um bufe e estavam sentados equilibrando pratos e
copos sobre os joelhos.
Um grande apetite tomou conta de Rayford quando ele avistou presunto, frango e carne
bovina, além de toda sorte de guloseimas do Oriente Médio. Fortunato cumprimentou-o com um
sorriso e um aperto de mão. Rayford não retribuiu o sorriso e mal apertou a mão do homem.
- O potentado Carpathia pediu que fôssemos ao encontro dele em seu escritório dentro de
alguns instantes. Mas, por favor, coma alguma coisa antes.
- É o que vou fazer - disse Rayford. Apesar de ser um funcionário, ele tinha a sensação de
estar comendo no campo do inimigo. Contudo, seria uma tolice passar fome só para provar
alguma coisa. Ele precisava se fortalecer.
- Enquanto ele e Mac serviam-se no bufe, Mac sussurrou:
- É melhor não deixar transparecer que somos muito amigos.
- Sim - disse Rayford. - Carpathia conhece minha posição, mas talvez ache que você é leal a
ele.
- Não sou, mas não há futuro para quem admitir isso.
- Como eu, por exemplo? - perguntou Rayford.
- Um futuro para você? Ele não será muito longo. Mas o que posso dizer? Carpathia gosta de
você. Talvez se sinta seguro por saber que você não esconde nada dele.
Para Rayford, as iguarias em seu prato assemelhavam-se a escolhas que ele havia feito. Talvez
seja a comida do inimigo, ele pensou, mas serve como alimento.
Quando ele e Mac foram conduzidos ao escritório de Carpathia, Rayford sentia-se bem
alimentado. A presença de Mac ali causou surpresa a Rayford. Ele nunca participara de uma
reunião com Carpathia.
Como sempre acontecia em tempos de crises internacionais e catástrofes, Nicolae mal
conseguia conter um sorriso de satisfação. Ele também havia trocado de roupa e demonstrava
estar bem descansado. Rayford sabia que ele próprio estava com uma aparência horrível.
- Por favor - disse Carpathia efusivamente -, capitão Steele e piloto McCullum. Sentem-se.
- Se o senhor não se importar, prefiro ficar em pé – disse Rayford.
- Não há necessidade. Você parece exausto, e temos assuntos importantes na agenda.
Rayford acomodou-se com relutância em uma poltrona. Ele não entendia aquela gente. Aquele
escritório lindamente decorado competia com o edifício principal de Carpathia, agora
transformado em uma pilha de ruínas a pouco mais de meio quilómetro de distância. Como
aquele homem podia estar preparado para toda e qualquer eventualidade?
Leon Fortunato estava em pé, perto de um dos cantos da mesa de Carpathia. Sentado na beira
da mesa, Carpathia encarava Rayford, o qual decidiu ir direto ao assunto.
- Senhor, minha mulher. Eu...
- Capitão Steele, tenho más notícias para você.
- Oh, não. - A mente de Rayford passou imediatamente para a posição de defesa. A sensação
era a de que Amanda não estava morta, e ponto final. Rayford não se importava com o que
aquele mentiroso - aquele que se atrevera a chamar Amanda de compatriota - tinha a lhe
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contar. Se Carpathia dissesse que ela estava morta, Rayford não sabia se conseguiria manter a
palavra dada a Mac nem se teria condições de conter-se para não agredi-lo e fazê-lo retratar-se
da calúnia que ele dissera sobre Amanda.
- Sua mulher, que sua alma descanse em Deus, foi...
Rayford agarrou o braço da poltrona com tanta força que as pontas de seus dedos pareciam
estar prestes a arrebentar. Ele cerrou os dentes. Que ousadia do anticristo dizer "que sua alma
descanse em Deus" ao se referir à sua mulher! Rayford tremia de raiva. Orou
desesperadamente para que, se isso fosse verdade, se tivesse perdido Amanda para sempre,
que Deus o usasse para matar Nicolae Carpathia. Mas a morte dele só ocorreria depois de três
anos e meio a partir do início da Tribulação, e a Bíblia dizia que o anticristo ressuscitaria e se
transformaria em Satanás. Mesmo assim, Rayford suplicou a Deus que lhe concedesse o
privilégio de matar aquele homem. Mas até que ponto ele se sentiria satisfeito e vingado? Era
essa dúvida que o impedia de tomar uma atitude naquele instante.
- Conforme você sabe, ela estava a bordo de um 747 da Pan-Continental que partiu hoje de
Boston para Bagdá. O terremoto aconteceu momentos antes de o avião pousar. O melhor que
conseguimos apurar foi que aparentemente o piloto viu o caos, entendeu que não tinha
condições de pousar perto do aeroporto, arremeteu e deu meia-volta.
Rayford sabia o que viria a seguir, se a história fosse verdadeira. O piloto não teria conseguido
ganhar altitude por ter arremetido e dado meia-volta com muita rapidez.
- O pessoal da Pan-Con contou-me - prosseguiu Carpathia - que o avião não teve condições
de manter-se no ar naquela velocidade. Testemunhas oculares dizem que ele passou raspando
pela margem do Tigre, bateu com força na água quando estava no meio do rio, afundou de
bico e desapareceu.
O corpo inteiro de Rayford estremecia a cada batida de seu coração. Ele abaixou a cabeça,
encostando o queixo no peito, tentando recompor-se. Depois, ergueu os olhos para Carpathia,
aguardando detalhes, mas não conseguiu abrir a boca, nem mesmo proferir um som qualquer.
- A correnteza é muito forte ali, capitão Steele. O pessoal da Pan-Con me disse que um avião
como aquele afundaria como uma pedra. Nada foi encontrado rio abaixo. Nenhum corpo.
Temos de esperar alguns dias até conseguirmos um equipamento de resgate. Lamento muito.
Rayford não acreditava nos sentimentos pesarosos de Carpathia nem que Amanda estivesse
morta. E acreditava menos ainda que ela agira em conluio com Nicolae Carpathia.
Buck trabalhava como louco. Seus dedos estavam machucados e com bolhas. Chloe tinha de
estar ali. Ele não queria conversar. Só queria cavar. Mas Tsion era um homem detalhista.
- Eu não entendo, Cameron - ele disse - porque o carro de Chloe está na garagem onde Loretta
costumava guardar o dela.
- Eu também não - disse Buck com negligência. - Mas ele está lá, e isso significa que ela está
por aqui.
- Talvez o terremoto tenha arremessado o carro para dentro da garagem - sugeriu Tsion.
- Não creio - disse Buck. - Eu não estou me importando muito com isso. Continuo sem
entender por que não dei falta do carro dela quando cheguei aqui.
- O que você tinha deduzido?
- Que ela havia fugido de carro daqui! Que se salvara.
- Você continua achando isso possível?
Buck endireitou o corpo e comprimiu os nós dos dedos nas costas, tentando aliviar os músculos
doloridos.
- Ela não teria chegado a lugar nenhum a pé. Tudo aconteceu muito rápido. Não houve aviso.
- Houve sim.
Buck encarou o rabino.
- Você estava debaixo da terra, Tsion. Como pode saber?
- Ouvi alguns estrondos minutos antes do início do terremoto.
Quando o terremoto começou, Buck estava no Range Rover. Ele avistara animais na pista, cães
latindo e correndo e bichos que não costumam ser vistos durante o dia. Antes que o céu
escurecesse completamente, ele não observara nenhuma folha se movendo, mas os semáforos
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e as placas de sinalização balançavam para a frente e para trás. Foi então que ele entendeu
que o terremoto estava começando. Tinha havido pelo menos um rápido aviso. Será que Chloe
pressentira alguma coisa? O que ela teria feito? Para onde teria ido?
Buck voltou a cavar.
- O que você disse que encontrou no carro dela, Tsion?
- Só o computador e o telefone.
Buck parou de cavar.
- Será que ela está na garagem?
- Receio que não, Cameron. Revistei tudo. Se ela estava lá quando tudo desabou - disse Tsion
-, acho que você não haveria de querer encontrá-la.
Talvez eu não queira, pensou Buck, mas preciso ter certeza.
O corpo de Rayford retesou-se quando Carpathia tocou em seu ombro. Ele imaginou a cena de
dar um pulo da cadeira e estrangulá-lo. Mas permaneceu sentado, espumando de raiva, olhos
fechados, sentindo-se prestes a explodir.
- Eu me solidarizo com seu sofrimento - disse Nicolae. - Talvez você possa entender como eu
também me sinto ao ver tantas vidas ceifadas por causa desta calamidade. O fenómeno foi
mundial e atingiu todos os continentes. Só a região de Israel foi poupada.
Rayford esquivou-se do toque de Carpathia e recuperou a voz.
- O senhor não acha que isso foi a ira do Cordeiro?
- Rayford, Rayford - disse Carpathia. - Com certeza, você não responsabilizaria algum Ser
Supremo por um ato tão desalmado, tão caprichoso, tão implacável quanto este.
Rayford balançou a cabeça. O que ele estava pensando? O que poderia convencer o anticristo de
que ele estava errado?
Carpathia contornou sua mesa e sentou-se em uma poltrona de couro preto e de espaldar alto.
- Vou lhe contar o que direi ao restante de meus subordinados para que você não precise
participar da reunião e vá para os seus aposentos a fim de descansar um pouco.
- Eu não me importo de ouvir isso com os demais funcionários.
- Quanta generosidade, capitão Steele! No entanto, há algumas coisas que preciso tratar só
com você. Hesitei em levantar este assunto após uma perda tão recente, mas você sabe que
eu poderia mantê-lo preso aqui.
- Claro que poderia - disse Rayford.
- Mas preferi não fazer isso.
Rayford deveria sentir-se agradecido ou desapontado? Alguns dias na prisão, até que não seria
mau. Se ele soubesse que sua filha, seu genro e Tsion estivessem bem, poderia suportar isso.
Carpathia prosseguiu:
- Eu o compreendo mais do que você imagina. Deixaremos de lado nossas desavenças, e você
continuará a trabalhar para mim como tem feito até agora.
- E se eu pedir demissão?
- Você não pode optar por isso. Atravessará esta crise com espírito de nobreza, como tem feito
em outras ocasiões semelhantes. Caso contrário, vou acusá-lo de insubordinação, e você será
preso.
- É isso que significa deixar de lado nossas desavenças? O senhor quer manter um empregado
que prefere ser demitido?
- Com o tempo, vou conquistar sua simpatia – disse Carpathia. - Você já soube que seu
apartamento foi destruído?
- Não posso dizer que isso me surpreende.
- Há equipes trabalhando na tentativa de recuperar tudo o que possa ser útil. Enquanto isso,
providenciamos uniformes e artigos de primeira necessidade para você. Seu novo alojamento é
funcional, apesar de não ser luxuoso. A prioridade de minha administração é reconstruir a
Nova Babilónia. Ela será a nova capital do mundo. Bancos, comércio, religião e governos
iniciarão e terminarão aqui. O maior desafio no restante do mundo é restabelecer os sistemas
de comunicação. Já começamos a restabelecer uma rede internacional que...
- Sistemas de comunicação são mais importantes que pessoas? Mais que limpar áreas que
34
possam causar doenças? Mais que enterrar corpos? Mais que reunir famílias?
- No devido tempo, capitão Steele. Essas providências também dependem dos sistemas de
comunicação. Felizmente, a ocasião de meu projeto mais ambicioso não poderia ter sido mais
propícia. Recentemente, a Comunidade Global comprou todas as empresas de comunicações de
satélites internacionais e telefones celulares. Dentro de alguns meses, teremos a primeira
verdadeira rede mundial de comunicações de telefones celulares, movida por luz solar. Dei a
ela o nome de Celular-Solar. Assim que as torres de celulares forem reerguidas e os satélites
entrarem em órbita em sincronismo com a terra, qualquer pessoa será capaz de comunicar-se
com quem quer que seja, a qualquer hora e em qualquer lugar.
Carpathia parecia ter perdido a capacidade de esconder a alegria que sentia. Se essa tecnologia
funcionasse, solidificaria seu poder sobre a terra. Seu domínio seria completo. Ele possuiria e
controlaria tudo e todos.
- Assim que estiver em condições, capitão Rayford, você e o piloto McCullum deverão trazer
meus embaixadores para cá. Há alguns aeroportos grandes funcionando ao redor do
mundo, mas, com o uso de aeronaves menores, meus homens principais serão levados a um
lugar onde você possa apanhá-los com o Condor 216 e conduzi-los até aqui.
Rayford não conseguia se concentrar.
- Tenho dois pedidos a fazer - ele disse.
- Adoro quando você me pede alguma coisa – disse Carpathia.
- Eu gostaria de ter informações sobre minha família.
- Encarregarei alguém disso. E o que mais?
- Necessito de um ou dois dias para ser treinado por Mac para pilotar helicópteros. Talvez eu
seja chamado para levar alguém onde só um helicóptero tenha condições de chegar.
- Providenciarei tudo o que você necessitar, capitão, você sabe disso.
Rayford olhou de relance para Mac, que parecia atónito. Rayford não devia surpreender-se
diante da reação de Mac. Se Mac não estava em conluio com Carpathia, havia assuntos
importantes que eles deveriam discutir. Não poderiam fazer aquilo dentro do abrigo, onde
todos os cómodos com certeza eram vigiados. Rayford queria atrair Mac para o reino de Deus.
Mac seria uma maravilhosa adição ao Comando Tribulação, principalmente enquanto ambos
desfrutassem da confiança de Carpathia.
- Estou morrendo de fome, Cameron - disse Tsion.
Eles haviam cavado os escombros até a metade, e Buck se desesperava a cada golpe de pá.
Por toda parte, havia evidências de que Chloe morava naquela casa, mas nenhuma de que ela
estivesse ali, viva ou morta.
- Se eu cavar mais uma hora, conseguirei chegar ao porão, Tsion. Comece pela cozinha.
Talvez lá você encontre alguma coisa para comermos. Eu também estou faminto. Mesmo
sabendo que Tsion estava do outro lado da casa, Buck sentiu o peso da solidão. Seus olhos
ardiam e lacrimejavam enquanto ele cavoucava, afastava, levantava e atirava para longe os
entulhos, em um esforço talvez inútil de encontrar sua mulher.
À noitinha, Buck subiu exausto do porão localizado no canto dos fundos da casa. Arrastou sua
pá até a frente, disposto a ajudar Tsion, mas na esperança de que o rabino tivesse encontrado
algo para eles comerem.
Tsion levantou uma escrivaninha toda esmagada, e ela caiu perto dos pés de Buck.
- Oh, Cameron! Não vi que você estava aqui.
- Você está tentando chegar à geladeira?
- Exatamente. A energia elétrica está desligada há horas, mas deve haver alguma coisa lá que
ainda não se estragou.
Duas vigas enormes impediam a passagem até a geladeira. Enquanto Buck tentava afastá-las,
seu pé enroscou-se na ponta da escrivaninha esmagada. Papéis e agendas telefónicas
espalharam-se pelo chão. Uma das agendas continha nomes e endereços dos membros da
Igreja Nova Esperança. É melhor deixar isso à mão, Buck pensou, enrolando-a e colocando-a no
bolso da calça.
Passados alguns minutos, Buck e Tsion estavam sentados de costas para a geladeira,
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mastigando alguma coisa, que serviu para aliviar um pouco a fome de ambos. Buck tinha a
sensação de que, se deitasse, dormiria uma semana inteira. Porém, o mais importante de tudo
era terminar a escavação.
O simples pensamento de encontrar Chloe morta o deixava apavorado. Felizmente, Tsion estava
em silêncio. Buck precisava pensar. Onde eles passariam a noite? O que comeriam no dia
seguinte? Mas, por ora, Buck só queria continuar sentado, comer e envolver-se nas lembranças
de Chloe.
Ele a amava demais. Como seria possível amá-la tanto, se a conhecera havia menos de dois
anos? Quando eles se conheceram, ela parecia uma moça madura para seus vinte anos, mas
agora vinha-se comportando como uma pessoa dez ou quinze anos mais velha. Ela havia sido
uma dádiva de Deus, a mais preciosa que ele recebera, excetuando a salvação. Como teria
sido sua vida após o Arrebatamento, se não tivesse conhecido Chloe? Talvez se sentisse
agradecido e satisfeito por saber que estava com Deus, mas seria um homem muito solitário.
Naquele momento, Buck também sentia-se grato a seu sogro e Amanda. Grato por sua
amizade com Chaim Rosenzweig. Grato por sua amizade com Tsion. Ele e Tsion teriam de
persuadir Chaim, mas o israelense continuava fascinado por Carpathia. Aquilo precisava mudar.
Chaim necessitava de Cristo. O mesmo acontecia com Ken Ritz, o piloto que Buck contratara
tantas vezes. Ele teria de procurar Ken, saber se ele estaria bem, se seus aviões ainda
tivessem condição de voar. Empurrando a comida para o lado, ele abaixou a cabeça e começou
a cochilar.
- Preciso voltar para Israel - disse Tsion.
- Hum? - murmurou Buck.
- Preciso voltar para a minha terra.
Buck ergueu a cabeça e olhou para Tsion.
- Não temos onde morar - ele disse. - Mal temos condição ile chegar até o próximo
quarteirão. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Você é um homem procurado pela
polícia de Israel. Pensa que eles já o esqueceram, agora que estão trabalhando para resgatar
feridos do terremoto?
- É claro que não. Mas entendo que a maioria das 144.000 testemunhas - e eu sou uma delas
- são procedentes de Israel. Nem todas procederão de lá. Muitas virão de tribos espalhadas no
mundo inteiro. Porém, a grande maioria está em Israel. E essa maioria deve ser tão fervorosa
quanto Paulo, mas neófita e destreinada. Sinto que estou sendo chamado para conhecê-las,
saudá-las e doutriná-las. Elas devem ser mobilizadas para sair a campo.
- Digamos que eu o leve até Israel. Como poderei preservar sua vida?
- O quê? Você acha que preservou minha vida em nossa fuga através do Sinai?
- Ajudei.
- Ajudou? Você me faz rir, Cameron. De certa maneira, sim, devo-lhe a vida. Mas você estava
tão a perigo quanto eu. Aquilo foi obra de Deus, e ambos sabemos disso.
Buck levantou-se.
- Está bem, está bem. Mesmo assim, levá-lo de volta a um lugar onde você é considerado um
fugitivo parece loucura.
Buck ajudou Tsion a levantar-se.
- Espalhe a notícia de que morri no terremoto - disse o rabino. - Depois, viajarei disfarçado
com um daqueles nomes que você costuma inventar.
- Não sem antes fazer uma cirurgia plástica - disse Buck. - Você é uma pessoa conhecida,
ainda mais em Israel, onde todos de sua idade são mais ou menos parecidos.
O sol começava a desaparecer no horizonte quando eles terminaram de vasculhar a cozinha.
Tsion encontrou sacos plásticos e alimentos embalados que poderiam ficar guardados no carro.
Buck conseguiu retirar algumas roupas da confusão em que o quarto dele e de Chloe se
transformara. Tsion foi até a garagem e pegou o computador e o telefone de Chloe.
Nenhum dos dois tinha força suficiente para escalar o muro de asfalto diante da casa de
Loretta, portanto resolveram contorná-lo. Quando chegaram ao Range Rover, ambos tiveram de
entrar pela porta do passageiro.
- E então? O que você está pensando agora? – perguntou Tsion. - Se Chloe estivesse viva no
meio daquelas ruínas, teria nos ouvido e gritado nosso nome, você não acha?
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Buck assentiu com profunda tristeza.
- Estou tentando aceitar o fato de que ela está soterrada. Eu estava errado, só isso. Nós não
a encontramos no quarto, nem na cozinha, nem no porão. Talvez ela tenha corrido para uma
outra parte da casa. Nesse caso, precisaríamos de ferramentas maiores e mais adequadas
para arrastar todos aqueles entulhos até encontrá-la. Não posso imaginar deixá-la lá, mas
também não tenho condições de prosseguir a escavação esta noite.
Buck dirigiu o Range Rover rumo à igreja.
- Devemos dormir no abrigo esta noite? - ele perguntou.
- Ele não está firme - respondeu Tsion. - Se houver um novo abalo, poderá cair sobre nós.
Buck continuou rodando. Faltava um quilómetro e meio para chegar à igreja quando ele passou por
um local na vizinhança cujas construções estavam retorcidas e abaladas, mas não haviam
desabado. Apesar de danificadas, muitas estruturas continuavam em pé. Um posto de gasolina,
iluminado por lâmpadas de butano, atendia a uma pequena fila de carros.
- Não somos os únicos cidadãos sobreviventes – disse Tsion.
Buck entrou na fila. O homem que dirigia o posto tinha uma espingarda encostada nas bombas e
gritava acima do ruído de um gerador movido a gasolina:
- Pagamento só em dinheiro! Máximo de 75 litros! Quando acabar, acabou.
Buck completou o tanque do carro e disse:
- Eu lhe pago mil dólares em dinheiro pelo...
- Pelo gerador, sim, eu sei. De jeito nenhum. Posso conseguir dez mil por ele amanhã.
- Você sabe onde posso encontrar um outro?
- Não sei de nada - respondeu o homem, com ar de aborrecimento. - Minha casa desapareceu.
Vou dormir aqui esta noite.
- Está precisando de companhia?
- Para dizer a verdade, não. Se você se sentir desesperado, volte aqui. Não vou mandá-lo
embora.
Buck não podia culpar o homem. Em tempos como esses, até que ponto alguém pode acolher
pessoas desconhecidas?
- Cameron - disse Tsion quando Buck retornou ao carro -, eu estava aqui pensando. Será que
a mulher do técnico do computador sabe que o marido dela morreu?
Buck meneou a cabeça.
- Vi a mulher dele apenas uma vez. Não me lembro do
nome dela. Ei, espere um pouco. - Ele enfiou a mão no bolso e tirou de dentro o livro de
endereços dos membros da igreja.
- Aqui está. Sandy. Vou ligar para ela.
Após discar os números, Buck não se surpreendeu ao ver que a ligação não pôde ser
completada, mas animou-se quando ouviu uma mensagem gravada de que todos os circuitos
estavam ocupados. Pelo menos, já era algum progresso.
- Onde eles moram? - indagou Tsion. - Talvez a casa não esteja em pé, mas poderíamos
verificar.
Buck leu o nome da rua.
- Não sei onde fica - disse ele, avistando, em seguida, um carro da polícia, com as luzes
piscando. - Vou perguntar.
O policial estava encostado no carro, fumando.
- Você está em serviço? - Buck perguntou.
- Descansando um pouco - respondeu o policial. - Já vi coisas demais hoje que não quero ver
pelo resto da minha vida, se é que você me entende.
Buck mostrou-lhe o endereço.
- Não temos mais pontos de referência, mas, ah, siga-me.
- Você está falando sério?
- Não há nada mais que eu possa fazer por alguém esta noite. Para lhe dizer a verdade, não fiz
nada de bom a ninguém. Siga-me. Vou indicar a rua que você procura. Depois vou embora.
Alguns minutos depois, Buck piscou os faróis em sinal de agradecimento ao policial e parou
diante de uma casa geminada. Tsion abriu a porta do passageiro, mas Buck segurou seu braço.
- Deixe-me ver o celular de Chloe.
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Tsion arrastou-se até o fundo do carro e retirou o aparelho dentre uma pilha de objetos que
ele embrulhara em um cobertor. Buck abriu o aparelho e viu que ele havia sido deixado ligado.
Remexeu o porta-luvas e encontrou um adaptador de acendedor de cigarros que se encaixou
ao telefone e o fez funcionar. Buck apertou o botão indicador do último número ligado e deu um
suspiro. Era o dele.
Tsion fez um sinal afirmativo com a cabeça, e ambos desceram do carro. Buck pegou uma
lanterna em sua caixa de ferramentas. A casa geminada do lado esquerdo tinha as janelas
quebradas em toda a sua volta, e um muro de arrimo desmoronara, deixando a frente da
construção inclinada. Buck colocou-se em uma posição onde conseguiu iluminar o local através
das janelas.
- Vazio - ele disse. - Nenhum móvel.
- Veja! - exclamou Tsion, apontando para uma tabuleta na grama onde se lia "Aluga-se".
Buck consultou novamente o livro de endereços.
- A casa de Donny e Sandy é a do lado - ele disse.
O local parecia extraordinariamente intacto. As cortinas estavam abertas. Buck agarrou-se na
grade de ferro do parapeito da janela e iluminou a sala de estar com a lanterna. Parecia uma
sala confortável. Buck girou a maçaneta da porta da frente e encontrou-a destrancada.
Enquanto ele e Tsion caminhavam pela casa nas pontas dos pés, tornou-se evidente que havia
algo errado naquela mesinha no fundo da sala. Buck olhou assustado, e Tsion virou-se de
costas e curvou o corpo.
Sandy Moore estava tomando o café da manhã naquela mesinha, segurando um jornal,
quando um imenso carvalho caiu sobre o telhado com tanta força que a esmagou com a
pesada mesa de madeira. O dedo da jovem senhora continuava enroscado na asa da xícara de
café, e sua face estava encostada na seção do serviço de meteorologia do Chicago Thbune.. Se
o corpo daquela senhora não estivesse completamente esmagado, alguém diria que ela estava
cochilando.
- Ela e o marido devem ter morrido quase que no mesmo instante. - disse Tsion em voz
baixa. - A quilómetros de distância.
Buck fez um movimento afirmativo com a cabeça naquele ambiente fracamente iluminado.
- Precisamos sepultar esta senhora.
- Jamais conseguiremos tirá-la debaixo daquela árvore - disse Tsion.
- Temos de tentar.
Buck encontrou algumas pranchas de madeira no corredor externo da casa, que foram
colocadas por baixo da árvore como alavancas, mas aquele tronco tão grande, com capacidade
para destruir um telhado, uma parede, uma janela, uma mulher e uma mesa, não queria sair
do lugar.
- Precisamos de instrumentos mais pesados - disse Tsion.
- Para quê? - disse Buck. - Ninguém será capaz de enterrar todos os mortos.
- Confesso que não estou pensando muito no que fazer com o corpo desta senhora. Estou
pensando na possibilidade de termos encontrado um lugar para morar. Buck encarou-o,
como se não tivesse ouvido bem.
- - E daí? - prosseguiu Tsion.
- Não é o lugar ideal? É verdade que o pavimento diante da casa quase foi destruído
totalmente. Esta sala, exposta às intempéries, pode ser facilmente reparada. Não sei por
quanto tempo ficaremos sem energia elétrica, mas...
- Já entendi - disse Buck. - Não temos alternativa.
Buck passou com o Range Rover por cima do que restara da casa ao lado. Estacionou-o nos
fundos, fora da vista de curiosos. Ele e Tsion descarregaram o carro. Ao atravessar a porta dos
fundos, Buck percebeu que eles tinham condições de retirar o corpo da Sra. Moore debaixo da
árvore. Os galhos estavam pousados contra um armário enorme no canto da sala. Isso
impediria que a árvore caísse um pouco mais, caso eles pudessem serrar o assoalho por baixo.
- Estou tão cansado que mal consigo ficar em pé, Cameron - disse Tsion enquanto ambos
desciam a escada estreita que dava para o porão.
- Eu também estou a ponto de desmoronar - disse Buck.
Ele apontou a lanterna para o teto do porão e viu que o cotovelo de Sandy atravessara a
38
madeira do assoalho e estava visível. No porão, aparentemente só havia peças de
computadores desmontados, mas, de repente, eles avistaram a caixa de ferramentas de
Donny. Um martelo, alguns formões, um pé-de-cabra e um serrote seriam o suficiente,
pensou Buck, arrastando uma escada portátil até o local. Tsion segurou-a enquanto Buck
enroscava as pernas no último degrau para equilibrar-se. Em seguida, Buck começou a árdua
tarefa de atravessar o pé-de-cabra pelo assoalho do pavimento superior com a ajuda de um
martelo. Seus braços doíam, mas ele não desistiu até conseguir abrir alguns buracos com
tamanho suficiente para encaixar o serrote no lugar. Ele e Tsion começaram a serrar,
revezando-se, a madeira resistente, uma tarefa que parecia não terminar nunca em razão da
lâmina sem corte do serrote.
Eles tomaram o devido cuidado para não atingir o corpo de Sandy Moore com o serrote. O
formato do local serrado fazia lembrar os caixões de pinho nos quais os vaqueiros eram
enterrados no velho oeste. Quando eles serraram o assoalho até a altura da cintura de Sandy,
o peso da parte superior de seu corpo fez a madeira do assoalho ceder, e ela caiu nos braços
de Buck. Ele prendeu a respiração, lutando para manter o equilíbrio. Sua camisa ficou coberta
de sangue pegajoso, e Sandy parecia leve e frágil como uma criança.
Tsion ajudou Buck a descer da escada. Enquanto levava o corpo para o quintal da casa, Buck
pensava que talvez tivesse de fazer o mesmo com o de Chloe na casa de Loretta. Ele deitou
cuidadosamente o corpo sobre a grama umedecida pelo orvalho. Em seguida, Buck e Tsion
começaram a cavar uma sepultura rasa. O trabalho era fácil porque o terremoto remexera a
parte superior do solo. Antes de enterrarem o corpo, Buck enfiou a mão no bolso, pegou a
aliança de Donny, colocou-a na palma da mão de Sandy, e fechou-a. Depois de cobrirem-na
com terra, Tsion ajoelhou-se, e Buck fez o mesmo.
Tsion não conhecera Donny nem sua mulher. Ele não fez um ofício fúnebre. Simplesmente
recitou a letra de um hino antigo, fazendo com que Buck rompesse em soluços tão altos
que podiam ser ouvidos do outro lado do quarteirão. Porém, não havia ninguém por perto, e
ele não conseguia conter os soluços.
"Eu te amarei na vida, e te amarei na morte,
E, enquanto neste mundo eu viver, eu te louvarei;
Quando o frio da morte sobre mim se abater,
Será esse, Jesus, o momento em que mais te amarei."
Buck e Tsion encontraram dois quartos pequenos no pavimento superior, um com uma cama
de casal, o outro com uma cama de solteiro.
- Fique com a cama maior - insistiu Tsion. - Vou orar para que em breve Chloe esteja aqui a
seu lado.
Buck aceitou. Ele entrou no banheiro e tirou as roupas sujas de barro e sangue. Tendo apenas
a lanterna para iluminar o ambiente, ele lavou-se na pia. Encontrou uma toalha grande para
enxugar-se e desabou na cama de Donny e Sandy Moore.
Buck dormiu o sono da morte, orando para que nunca mais precisasse acordar.
Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, Rayford foi despertado por um telefonema
de seu co-piloto. O relógio marcava nove horas da manhã de terça-feira na Nova Babilónia, e
ele tinha de enfrentar um novo dia, quisesse ou não. Pelo menos, contava com a possibilidade
de conversar com Mac sobre Deus.
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CINCO
Rayford estava participando de um farto desjejum ao lado de um bando de gente desnorteada.
Do outro lado, dezenas de asseclas debruçavam-se sobre mapas e tabelas, falavam ao mesmo
tempo ao telefone e aglomeravam-se perto do rádio. Ele comia em completo estado de torpor,
enquanto Mac, sentado a seu lado, tamborilava com os dedos na mesa e balançava um dos
pés. Carpathia estava sentado diante de uma mesa não muito distante da sua sala, na
companhia de Fortunato e outros funcionários graduados. Com o telefone celular colado ao
ouvido, ele conversava animadamente, de costas para o resto do pessoal.
Rayford olhou-o com desinteresse. No momento, estava menos preocupado consigo mesmo,
com sua decisão. Se fosse verdade que Amanda morrera no 747, ele agora só teria de
preocupar-se com Chloe, Buck e Tsion. Ou seria ele o único membro do Comando Tribulação que
sobrevivera?
Rayford não tinha o mínimo interesse em saber com quem Carpathia estava conversando. Se
ele dispusesse de um aparelho de escuta clandestina, não faria o menor gesto para ligá-lo. Ele
havia orado antes de comer, uma oração ambivalente de agradecimento pelo alimento
proporcionado pelo anticristo. Mesmo assim, ele se alimentou. E isso lhe fez bem. Seu estado
de espírito animou-se. Não poderia de jeito nenhum compartilhar sua fé com Mac, se ele
permanecesse atemorizado. A inquietação de Mac o deixava nervoso.
- Ansioso para voar? - perguntou Rayford.
- Ansioso para falar, mas não aqui, onde há muitos ouvidos. Mas você está disposto a
conversar, Rayford? Com tudo o que está sofrendo?
Nunca ninguém parecera estar tão disposto a conversar sobre Deus quanto Mac. Por que tudo
aconteceu desta maneira? Na ocasião em que Rayford estava ansioso demais para falar sobre
Deus, tentou a conversão de seu antigo chefe, o piloto Earl Halliday, que não demonstrara
nenhum interesse e agora estava morto. Tentou sem sucesso falar sobre Deus com Hattie
Durham, e agora ele só podia orar suplicando que ainda houvesse tempo para ela converter-se.
E ali estava Mac, implorando para conhecer a verdade, e Rayford só pensava em voltar para a
cama.
Ele cruzou as pernas e os braços. Precisava esforçar-se para não permanecer parado. Carpathia
deu meia-volta na poltrona giratória e encarou-o, ainda falando ao telefone. Nicolae acenou-lhe
efusivamente, mas em seguida pareceu pensar melhor e desistiu de demonstrar entusiasmo a
um homem que acabara de perder a esposa. Sua expressão tornou-se sombria e seu aceno
esmoreceu. Rayford não esboçou nenhuma reação e manteve o olhar fixo em Carpathia.
Nicolae chamou-o com um gesto.
- Oh, não - disse Mac. - Vamos embora, vamos embora. Mas eles não podiam desprezar
Carpathia.
Rayford estava irritado. Não queria conversar com Carpathia; Carpathia queria conversar com
ele. Carpathia podia prejudicar Rayford. No que eu me tornei?, pensou Rayford. Ele estava
fazendo jogo com o potentado do mundo. Atitude mesquinha. Tola. Imatura. Mas não me
importo.
Carpathia desligou o telefone e colocou-o no bolso. Acenou para Rayford, o qual fingiu não
perceber e deu-lhe as costas. Rayford inclinou-se para Mac e perguntou-lhe:
- Então, o que você vai me ensinar hoje?
- Não olhe agora, mas Carpathia deseja falar com você.
- Ele sabe onde estou.
- Ray! Ele ainda pode mandá-lo para a prisão.
- Eu gostaria que ele me mandasse para lá. Então, o que você vai me ensinar hoje?
- Ensinar você! Você já pilotou helicópteros.
- Isso foi há muito tempo - disse Rayford. - Faz mais de vinte anos.
- Pilotar helicóptero é o mesmo que andar de bicicleta - disse Mac. - Em uma hora, você estará
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tão craque quanto eu.
Mac olhou por cima do ombro de Rayford, levantou-se e estendeu a mão.
- Pois não, potentado Carpathia.
- Preciso falar alguns instantes com o capitão Steele. Você nos daria licença, piloto McCullum?
- Espere-me no hangar, Mac - disse Rayford.
Carpathia arrastou a cadeira de McCullum para perto de Rayford e sentou-se. Desabotoou o
paletó e inclinou-se para a frente com os antebraços apoiados nos joelhos. Rayford continuou de
pernas e braços cruzados.
- Rayford - disse Carpathia demonstrando sinceridade -, espero que você não se importe por
eu chamá-lo pelo primeiro nome. Sei que está sofrendo muito.
Rayford sentiu um gosto amargo na boca. "Senhor", ele orou silenciosamente, "mantém minha
boca fechada." Ele só podia deduzir que aquela incorporação do demónio era o mais repugnante
de todos os mentirosos. Imagine só! Dar a entender que Amanda era espia ele, uma informante
infiltrada no Comando Tribulação a serviço da Comunidade Global, e depois fingir tristeza por sua
morte? Um golpe fatal na cabeça seria bom demais para ele. Rayford imaginou estar torturando
o homem que conduzia as forças do mal contra o Deus do universo.
- Eu gostaria que você tivesse chegado aqui mais cedo, Rayford. De qualquer forma, estou feliz
por você ter conseguido descansar. Mas a maioria de nós ficou entretida com a história que Leon
Fortunato contou ontem à noite.
- Mac me contou por alto.
- Sim, o piloto McCullum ouviu a história duas vezes. Você deveria pedir-lhe que a contasse
novamente. Melhor ainda, marque um encontro com o Sr. Fortunato.
- Conheço a dedicação de Leon ao senhor - foi tudo o que Rayford pôde dizer como homem
civilizado.
- Por eu ser como sou. Mas até eu fiquei comovido e lisonjeado com as palavras dele.
Rayford conhecia a história, mas não pôde resistir à tentação de apoquentar Carpathia.
- Não me causa surpresa o fato de Leon estar agradecido porque o senhor o salvou.
Carpathia endireitou-se na cadeira, com ar divertido.
- McCullum ouviu a história duas vezes e disse isso? Você não ficou sabendo? Eu não salvei
Fortunato! Eu não salvei a vida dele! Conforme ele disse, eu o ressuscitei.
- De fato.
- Não sou eu que estou dizendo isso, Rayford. Estou lhe contando o que Fortunato diz.
- O senhor estava presente. Qual é a sua história?
- Bem, quando soube que meu assessor de confiança e meu confidente pessoal estava no meio
das ruínas de nossa sede, algo tomou conta de mim. Simplesmente, recusei-me a acreditar. Não
queria que fosse verdade. Cada fibra de meu ser dizia que eu devia ir, sozinho, até o local e
trazê-lo de volta.
- Que pena o senhor não ter levado testemunhas.
- Você não acredita em mim?
- Parece história da carochinha.
- Você precisa conversar com o Sr. Fortunato.
- Não estou nem um pouco interessado.
- Rayford, aquela pilha de 15 metros de tijolos, argamassa e escombros tinha sido um edifício de
60 metros de altura. Leon Fortunato estava comigo no último andar quando o edifício começou
a desabar. Apesar de todas as precauções que tomamos contra terremotos, todos os que lá
estavam devem ter morrido. E morreram. Você sabe que não houve sobreviventes.
- O senhor está querendo dizer que, segundo afirmação de Leon e sua, ele morreu na queda.
- Eu chamei por ele no meio daquelas ruínas. Ninguém podia ter sobrevivido.
- Mas ele sobreviveu.
- Ele não sobreviveu. Estava morto. Tinha de estar morto.
- E como o senhor o tirou de lá?
- Eu ordenei que ele voltasse a viver, e assim foi.
Rayford inclinou-se para a frente.
- Isso deve fazer o senhor acreditar na história de Lázaro.
Que pena ela estar escrita em um livro de contos de fadas, hein?
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- Preste atenção, Rayford, tenho sido tolerante demais e nunca menosprezei suas crenças. Nem
tenho escondido que, em minha opinião, você é, no mínimo, um homem mal orientado. Mas
minha resposta é sim. Sua pergunta me fez parar para pensar que este incidente refletiu uma
história que acredito ter sido fantasiosa.
- É verdade que o senhor usou as mesmas palavras que Jesus usou para ressuscitar Lázaro?
- É o que o Sr. Fortunato diz. Não sei exatamente o que eu disse. Saí daqui com plena confiança
de que voltaria com ele, e minha determinação jamais vacilou, nem mesmo quando vi aquela
montanha de ruínas e sabia que as equipes de resgate não haviam encontrado nenhum
sobrevivente.
Rayford sentia vontade de vomitar.
- Então o senhor passou a ser uma espécie de divindade?
- Não sou eu quem deve dizer isso, embora tenha de admitir que ressuscitar um homem é um
ato divino. O Sr. Fortunato acredita que eu possa ser o Messias.
Rayford levantou as sobrancelhas.
- Se eu fosse o senhor, trataria de desmentir isso rapidamente, a não ser que eu tivesse
certeza de ser o Messias.
Carpathia acalmou-se.
- O momento não é apropriado para eu fazer tal afirmação, mas não estou tão certo de que
isso não seja verdade.
Rayford semicerrou os olhos.
- O senhor pensa que talvez seja o Messias.
- Só posso lhe dizer, principalmente depois do que aconteceu ontem à noite, que não descarto
essa possibilidade.
Rayford colocou as mãos nos bolsos e olhou para um ponto distante.
- Vamos, Rayford. Não pense que não estou vendo sua ironia. Não sou cego. Conheço uma
facção por aí, da qual fazem parte muitos dos que vocês chamam de santos da tribulação, que
me classifica como um anticristo, ou como o próprio anticristo. Eu gostaria muito de provar o
contrário.
Rayford inclinou-se para a frente, tirou as mãos dos bolsos e entrelaçou os dedos.
- Deixe-me ver se eu entendi. Existe uma possibilidade de que o senhor seja o Messias, mas o
senhor ainda não sabe ao certo?
Carpathia assentiu solenemente.
- Isso não faz sentido - disse Rayford.
- Os assuntos referentes à fé são misteriosos – prosseguiu Carpathia. - Insisto em que você
converse com o Sr. Fortunato e tire suas conclusões.
Rayford não prometeu nada. Olhou em direção à porta de saída.
- Sei que você precisa ir, capitão Steele. Eu só queria contar-lhe o tremendo progresso já
alcançado quanto às minhas iniciativas de reconstrução. Até amanhã cedo, esperamos ter
condições de nos comunicar com metade do mundo. Nessa ocasião, farei um pronunciamento a
todos os que puderem me ouvir. - Carpathia retirou uma folha de papel do bolso do paletó. -
Nesse ínterim, gostaria que você e o Sr. McCullum equipassem o 216 com tudo o que for
necessário e dessem um giro ao redor do mundo a fim de trazer os embaixadores
internacionais para fazerem companhia aos que já estão aqui.
Rayford examinou a lista. Parecia que ele teria de voar mais de vinte mil milhas.
- Onde o senhor está reconstruindo pistas para aeronaves? - ele indagou.
- As forças da Comunidade Global estão trabalhando contra o relógio em todos os países do
mundo. O sistema Celular-Solar ligará o mundo inteiro dentro de algumas
semanas. Todos os que não estão trabalhando neste projeto estão reconstruindo pistas para
aeronaves, estradas e centros de comércio.
- E a minha incumbência é esta - disse Rayford secamente.
- Eu queria que você conhecesse seu itinerário assim que fosse estabelecido. Você observou
que há um nome no verso?
Rayford virou a folha, onde se lia: "Supremo Pontífice Peter Mathews, Fé Mundial Enigma
Babilónia."
- Devo trazê-lo também?
42
- Embora ele esteja em Roma, pegue-o em primeiro lugar.
Eu gostaria que ele estivesse no avião quando os demais embaixadores embarcarem.
Rayford deu de ombros. Ele não sabia ao certo por que Deus o colocara naquela posição, mas,
enquanto não sentisse que chegara o momento de abandonar tudo, iria em frente.
- Mais uma coisa - disse Carpathia. - O Sr. Fortunato irá com você para servir de anfitrião ao
pessoal.
Rayford deu de ombros novamente.
- Agora posso fazer-lhe uma pergunta? - disse Rayford.
Carpathia assentiu, levantando-se. - O senhor poderia me informar quando começará a
operação dragagem?
- Operação o quê?
- A retirada do Pan-Con 747 do rio Tigre – respondeu Rayford, sem demonstrar nenhuma
emoção.
- Ah, sim. Devo dizer-lhe, Rayford, que me informaram que será um trabalho inútil.
- O senhor está pensando em não fazer isso?
- É bem provável que não faremos. A empresa aérea nos passou a lista dos que estavam a
bordo, e sabemos que não houve sobreviventes. Já temos problemas demais com os
corpos de tantas vítimas desta catástrofe. Fui aconselhado a considerar aquela aeronave como
uma cripta funerária sagrada.
Rayford sentiu o rosto arder, e um completo abatimento tomou conta dele.
- O senhor não vai querer provar-me que minha mulher está morta, vai?
- Ora, Rayford, ainda existe alguma dúvida?
- Acho que sim. Não parece que ela está morta, se é que o senhor sabe o que estou querendo
dizer... bem, claro que não sabe.
- Sei que é difícil acreditar que alguém que amamos morreu enquanto não virmos o corpo. Mas
você é um homem inteligente. O tempo se encarrega de curar...
- Quero que o avião seja retirado do rio. Quero saber se minha mulher está viva ou morta.
Carpathia aproximou-se de Rayford por trás e colocou as mãos em seus ombros. Rayford
fechou os olhos, desejando que aquele homem sumisse dali. Carpathia falou em tom de
conforto.
- Agora só falta você me pedir que ressuscite sua mulher.
Rayford retrucou com os dentes cerrados:
- Se o senhor é o que pensa ser, tem o dever de retirar aquele avião do rio para um de seus
funcionários mais confiáveis.
Buck dormira por cima da colcha da cama. Agora, bem depois da meia-noite, ele achava que
seu sono não durara mais de duas horas. Sentou-se na cama e enfiou-se debaixo dos
cobertores, sem querer sair dali. Mas o que o despertara? Será que ele vira luzes tremeluzindo
no corredor?
Só podia ter sido um sonho. Com certeza, a energia elétrica só seria restabelecida em Monte
Prospect dentro de dias, talvez semanas. Buck prendeu a respiração. Agora ele ouvia um ruído
vindo do outro quarto, o som baixo e cadenciado da voz de Tsion Ben-Judá. Será que algum
barulho também o havia despertado? Tsion estava orando em seu idioma. Buck
gostaria de entender hebraico. A oração foi ficando cada vez mais fraca, e Buck ajeitou-se na
cama e virou para o outro lado. Enquanto adormecia, ele lembrou-se de que na manhã
seguinte precisava dar uma última olhada nos arredores da casa de Loretta - em mais uma
tentativa desesperada de encontrar Chloe.
Rayford encontrou Mac sentado na poltrona do piloto do helicóptero, com o motor desligado. Ele
estava lendo.
- Finalmente ele o largou, não? - disse Mac. Rayford sempre ignorava perguntas óbvias. Apenas
meneou a cabeça.
- Não sei como ele consegue isto - prosseguiu Mac.
- Isto o quê?
Mac balançou a revista.
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- A última edição da Modern Avionics [Aviação Moderna].Onde Carpathia conseguiu isto? E como
ele sabia que devia guardá-la no abrigo?
- Quem é capaz de saber? - disse Rayford. - Talvez ele seja o deus que pensa ser.
- Ontem à noite, eu lhe falei sobre a heresia de Leon.
- Carpathia me contou a história de novo.
- O quê? Então ele concorda com Leon que é uma divindade?
- Ele ainda não chegou lá - disse Rayford. - Mas vai chegar. A Bíblia diz que ele vai.
- Caramba! - exclamou Mac. - Você vai ter de começar pelo princípio.
- Está bem, está bem - disse Rayford, desdobrando a folha de papel com a lista dos
passageiros de Carpathia. - Antes de tudo, deixe-me mostrar-lhe isto. Depois de meu
treinamento, quero que você planeje um roteiro para estes países.
Primeiro, pegaremos Mathews em Roma. Depois, iremos para os Estados Unidos e pegaremos
todos os outros embaixadores no caminho de volta. Mac analisou a folha.
- Deve ser fácil. Preciso de uma hora ou pouco mais para planejar esse roteiro. Há locais de pouso
em todos estes lugares?
- Chegaremos o mais perto que pudermos. Como precaução, colocaremos o helicóptero e um
avião no compartimento de carga.
- E quando começaremos a falar do nosso assunto?
- O período de treinamento deve durar até às 17 horas, você não acha?
- Não! Eu já lhe disse que você não precisa ser treinado.
- Faremos uma pausa para almoçar em algum lugar – disse Rayford. - E depois ainda teremos
várias horas para o treinamento, certo?
- Você não está me entendendo, Ray. Você não precisa de um dia inteiro para aprender a
manejar este brinquedo. Você sabe que estas coisas voam sozinhas.
Rayford curvou-se em direção a Mac.
- Quem não está entendendo quem? - ele perguntou. - Você e eu estamos longe do abrigo
hoje, treinando até às 17 horas. Entendido?
Mac sorriu timidamente.
- Oh! Você aprende a pilotar isto até mais ou menos às 13 horas, e ainda teremos tempo até às
17.
- Você entende rápido.
Rayford tomava notas enquanto Mac lhe explicava cada comando, cada botão, cada chave. Com
as hélices funcionando à velocidade máxima, Mac manipulou os controles até o helicóptero
levantar vôo. Continuou a fazer uma série de manobras, virando de um lado para o outro,
descendo e subindo.
- Logo, logo vou passar o comando para você, Ray.
- Antes deixe-me perguntar-lhe uma coisa, Mac. Você está trabalhando há muito tempo nesta
área, não?
- Há muitos anos - respondeu Mac, voando lentamente em direção ao sul.
- Então conhece as pessoas daqui.
- Os locais, é isto o que você quer dizer? Sim. Tenho condições de dizer se algum deles resistiu
ao terremoto. O que você está procurando?
- Equipamento de mergulho.
Mac olhou de relance para Rayford, o qual não o encarou.
- Há um novo para o meio do deserto. Onde você quer mergulhar? No Tigre? - Mac deu um
sorriso irónico, mas Rayford lançou-lhe um olhar sério, e ele empalideceu. - Oh, desculpe-me,
Rayford. Homem, você não está disposto a fazer isso, está?
- É o que mais quero no momento, Mac. Você conhece ou não alguém que tenha esse
equipamento?
- Deixe que eles façam o trabalho, Ray.
- Carpathia diz que vai deixar o avião como está.
Mac meneou a cabeça.
- Não conheço, Ray. Você já mergulhou em algum rio?
- Sou um bom mergulhador. Mas nunca mergulhei em rio.
- Bem, eu já, mas não é a mesma coisa, acredite em mim. A correnteza é igual tanto na
44
superfície como no fundo. A gente passa a metade do tempo tentando não ser levado pela
correnteza. Você pode conseguir um equipamento desses a pouco menos de 500 quilómetros a
sudeste do Golfo Pérsico.
Rayford não estava para brincadeiras.
- Que história é essa, Mac? Você sabe onde posso encontrar um?
- Sim, conheço um sujeito que sempre consegue qualquer coisa que quero. Nunca vi um
equipamento de mergulho por aqui, mas se houver e se o sujeito ainda estiver vivo, ele é capaz
de conseguir.
- Quem é ele e onde podemos encontrá-lo?
- Ele é cidadão daqui. Dirige a torre da pista de aterrissagem em Al Basrah. Fica a noroeste de
Abada, onde o rio Tigre passa a ser chamado de Chatt-el-Arab. Eu não me atreveria a
pronunciar o nome daquele sujeito. Todos os seus clientes o conhecem por Al B. Eu o chamo de
Albie.
- E qual é a dele?
- Ele assume todos os riscos. Cobra o dobro e não quer saber de perguntas. Se você for pego
com material contrabandeado, ele vai dizer que nunca o viu na vida.
- Você tentaria localizá-lo para mim?
- Seu pedido é uma ordem.
- Você sabe do que estou falando, Mac.
- O risco é grande.
- Ser honesto com você já é um risco, Mac.
- Como você sabe que pode confiar em mim?
- Não sei. Não tenho alternativa.
- Muitíssimo obrigado.
- Você sentiria o mesmo se estivesse em meu lugar.
- É verdade - disse Mac. - Só o tempo provará que não sou um vira-casaca.
- Sim - disse Rayford, sentindo-se descuidado como nunca havia sido. - Se você não for um
amigo, não há nada que eu possa fazer no momento.
- Hã, hã. Mas será que um delator faria um mergulho tão perigoso com você?
Rayford encarou Mac.
- Eu não poderia pedir-lhe isso.
- Você não vai me impedir. Se o sujeito conseguir roupas de mergulho e um tanque de oxigénio
para você, poderá conseguir também para mim.
- E por que você faria isso?
- Bem, não é só para me testar. Eu gostaria de ter você por perto por mais uns tempos. Você
merece saber se sua mulher está debaixo d'água. Se aquele mergulho é perigoso para
duas pessoas, imagine para uma só.
- Preciso pensar no assunto.
- Pare de pensar tanto, pelo menos uma vez na vida. Vou com você, e ponto final. Tenho de
encontrar um jeito de manter você vivo o tempo suficiente para me contar o que o demónio
está fazendo desde os desaparecimentos.
- Pouse o helicóptero - disse Rayford -, e eu lhe contarei.
- Aqui? Agora?
-Já.
Mac voou alguns quilómetros até onde Rayford pôde avistar a cidade de Al Hillah. Derivou para
a esquerda e rumou para o deserto, pousando no meio de um lugar qualquer. Desligou o
motor rapidamente para evitar levantamento de areia. Mesmo assim, a areia grudou nas costas
das mãos e nos lábios de Rayford.
- Deixe-me passar para o seu lugar - disse Rayford, desatando o cinto de segurança.
- De jeito nenhum - disse Mac. - A próxima coisa que você vai fazer é tentar ligar o helicóptero
e levantar vôo. Sei que você pode fazer isso e que não é perigoso, mas Deus sabe que
ninguém aqui pode me dar ordens. Agora desça, vamos.
Rayford saltou na areia. Mac fez o mesmo. Caminharam a esmo meia hora debaixo do sol. As
roupas de Rayford estavam encharcadas de suor. Finalmente, Rayford decidiu voltar ao
helicóptero, onde eles se encostaram do lado onde havia sombra.
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Ele contou a Mac a história inteira de sua vida, começando a falar do lar onde cresceu - uma
família decente, trabalhadora, mas sem cultura. Rayford demonstrava inclinação para
matemática e ciências e sentia-se fascinado pela aviação. Tirava boas notas, mas seu pai não
tinha condições de mandá-lo para a faculdade. Uma conselheira do curso secundário disse-lhe
que ele poderia conseguir uma bolsa de estudo, mas precisava incluir algo mais em seu
currículo.
"Por exemplo?", perguntara-lhe Rayford.
"Atividades extracurriculares, cursos em escolas do governo, essas coisas."
"Que tal eu pilotar um avião sozinho antes de me formar?"
"Seria bom demais", ela admitiu.
"Já pilotei."
Aquilo o ajudou a estudar na faculdade e depois a receber treinamento em voos militares e
comerciais. Durante todo o tempo, ele repetia:
- Eu era um sujeito legal. Bom cidadão - você sabe como é, disciplina rigorosa. Bebia pouco,
paquerava pouco. Nunca fazia nada ilegal. Nunca me considerei um malandro. Sempre fui um
patriota. Cheguei a frequentar a igreja. Rayford contou a Mac que se apaixonou por Irene desde
o início.
- Eu a achava muito sentimental - ele admitiu -, mas ela era bonita, carinhosa e altruísta. Ela
me surpreendeu. Eu a pedi em casamento, ela aceitou, e, apesar de gostar muito mais que eu
de frequentar a igreja, eu não queria perdê-la.
Rayford contou como ele quebrou sua promessa de ser um frequentador assíduo da igreja.
- Tivemos nossas brigas, e Irene chorava muito, mas percebi que ela se conformou com o fato
de que, pelo menos na área da religião, eu era um sujeito em quem não se podia confiar. Fui
um marido fiel, abastecia minha casa e respeitava a comunidade. Achei que ela vivia bem com
o que eu lhe proporcionava. De qualquer forma, ela nunca me forçou a nada. Irene jamais
poderia ser feliz, mas eu dizia a mim mesmo que não me importava. E não me importava
mesmo. Quando Chloe nasceu, virei uma página nova da minha vida. Acreditava ser um novo
homem. O nascimento dela me fez acreditar em milagres, forçou-me a reconhecer a presença
de Deus, e desejei ser o melhor pai e marido do mundo. Não fiz nenhuma promessa. Apenas
voltei a frequentar a igreja com Irene.
Rayford prosseguiu explicando como se deu conta de que frequentar a igreja não era tão mau
assim.
- Víamos na igreja as mesmas pessoas que víamos no clube de campo. Comparecíamos,
entregávamos nossas ofertas, cantávamos hinos, fechávamos os olhos na hora das orações e
prestávamos atenção nas pregações. De vez em quando, um sermão ou parte dele me
ofendia. Mas eu não fazia caso. Ninguém estava me controlando. Nossos amigos também se
ofendiam com as mesmas coisas. Eu achava que estavam pisando em meus calos, mas isso
nunca aconteceu duas vezes seguidas.
Rayford disse que nunca parou para pensar em céu ou inferno.
- Eles não falavam muito sobre esses assuntos. Bem, não falavam nunca sobre o inferno. O
céu era um lugar para onde todos iriam. Eu não queria ficar constrangido no céu por ter
praticado muitas coisas más. Eu me comparava com os outros sujeitos e ficava imaginando
que, se eles conseguissem ir para o céu, eu também conseguiria. Uma coisa é certa, Mac, eu
era feliz. Conheço gente que diz sentir um vazio na vida, mas eu não. Para mim, a vida era
assim. O mais interessante de tudo era que Irene dizia sentir-se vazia. Eu discutia com ela. Às
vezes, discutíamos muito. Eu a forçava a lembrar-se de que voltara para a igreja e que ela não
precisava fazer chantagem comigo. Que mais ela poderia desejar?
Rayford prosseguiu contando que Irene desejava algo mais. Algo mais profundo. Suas amigas
falavam-lhe de um relacionamento pessoal com Deus, e isso a intrigava.
- Aquilo me assustava demais - ele disse. - Eu repetia a frase para que ela entendesse que
essa afirmação soava como maluquice de alguém: "Relacionamento pessoal com Deus?"
E ela respondia: "Sim. Por meio de seu Filho, Jesus Cristo." -
Rayford meneou a cabeça. - Bem, você pode imaginar como me senti.
Mac balançou a cabeça afirmativamente.
- Sei o que você deve ter pensado - ele disse.
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- A religião que eu professava era suficiente para me fazer sentir bem. Dizer em voz alta
palavras como Deus ou Jesus Cristo diante de outras pessoas? Aquilo era tarefa para
pastores, sacerdotes e teólogos. Eu concordava com aqueles que diziam que religião é assunto
de foro íntimo. Qualquer um que tentasse me convencer de alguma coisa extraída da Bíblia ou
compartilhar sua fé comigo era considerado direitista, zelote, fundamentalista ou coisa
parecida. Eu me mantinha afastado deles o mais que podia.
- Entendo o que você está dizendo - interrompeu Mac. - Havia sempre alguém por perto
tentando "ganhar almas para Jesus".
Rayford assentiu.
- Bem, agora vou avançar alguns anos. Nasceu Rayford Júnior. A sensação foi a mesma de
quando Chloe nasceu. E devo admitir que sempre quis ter um filho homem. Imaginei que Deus
devia estar satisfeito comigo e abençoou-me com um filho. E agora vou dizer-lhe uma coisa que
pouquíssimas pessoas sabem, Mac. Fui infiel a Irene enquanto ela estava grávida de Raymie.
Bebia, arrumava companhia nas festas de Natal da empresa, e isso foi uma tolice minha. Eu
sentia muita culpa, não por causa de Deus, mas por causa de Irene. Ela não merecia aquilo.
Mas nunca desconfiou de nada, o que era pior ainda. Eu sabia que ela me amava. Cheguei à
conclusão de que eu era um crápula e fazia todos os tipos de barganha com Deus. Em
determinado momento, cheguei a pensar que Ele poderia me castigar. Eu lhe disse que
abandonaria tudo e supliquei que Ele não permitisse que nosso bebé em gestação morresse.
Se tivesse acontecido alguma coisa errada com nosso bebé, não sei o que eu teria feito. Mas o
bebé nasceu perfeito.
Rayford contou que logo a seguir foi promovido e recebeu aumento de salário. A família mudouse
para uma bela casa em um bairro elegante. Ele continuou a frequentar a igreja e voltou a
apreciar a vida.
- Mas...
- Mas? - perguntou Mac. - O que aconteceu depois?
- Irene mudou de igreja - disse Rayford. - Você está com fome?
- O que você disse?
- Você está com fome? Já são quase 13 horas.
- Que belo contador de histórias você é! Deixar-me neste suspense para que você possa
almoçar? Depois de me contar toda essa história, inclusive que Irene mudou de igreja, você
deduziu que eu estou com fome.
- Escolha um lugar para almoçarmos - disse Rayford. – Eu dirijo o helicóptero até lá.
- Você é quem sabe.
47
SEIS
Rayford passou vinte minutos pondo em risco a sua vida e a de Mac. A habilidade para pilotar
um helicóptero nunca termina, mas, com o avanço da tecnologia, ele precisaria acostumar-se
para saber lidar com o que tinha em mãos. Rayford se lembrava de ter pilotado helicópteros
grandes, lentos, pesados. Este voava como uma libélula. O acelerador de mão era tão sensível
quanto um manche, e Rayford constatou que não estava apto a pilotá-lo. Derivou para um
lado - com uma manobra muito forte e muito rápida - e depois para o outro, endireitando o
corpo rapidamente, mas inclinando-se outra vez.
- Estou quase vomitando! - gritou Mac.
- Em meu helicóptero não, de jeito nenhum! – disse Rayford.
Ele diminuiu a altitude quatro vezes; na segunda, a manobra foi forte demais.
- Isso não acontecerá novamente - ele prometeu. – Agora peguei o jeito - disse assim que
ganhou altitude pela última vez. - Agora vai ser fácil manter a direção e o equilíbrio.
- Eu mereço tudo isso - disse Mac. - Você vai querer pilotar o tempo todo, até onde Albie
trabalha?
- Você está dizendo pousar em um aeroporto, diante de pessoas estranhas?
- Um batismo de fogo. - Mac indicou-lhe a rota. - Mantenha o helicóptero naquela direção, e
poderemos tirar uma soneca até enxergarmos a torre de Al Basrah. Alinhe-o, deixe que ele vá
sozinho e me conte a história da nova igreja de Irene.
Rayford passou a viagem terminando sua história. Contou que o fato de Irene sentir-se
frustrada por não encontrar nada profundo, nem substancioso, nem pessoal na igreja que
frequentavam serviu como desculpa para ele comparecer com menos assiduidade. Quando
Irene chamou-lhe a atenção, ele retrucou que ela também não se sentia satisfeita naquela
igreja.
- Quando eu parei de acompanhá-la, ela começou a procurar outra denominação. Conheceu
algumas mulheres simpáticas de uma igreja desconhecida, e elas a convidaram para um estudo
bíblico. Foi lá que Irene ouviu falar alguma coisa sobre Deus que até então nunca soubera
encontrar na Bíblia. Ela descobriu onde ficava a igreja, começou a frequentá-la e conseguiu
arrastar-me até lá.
- O que ela ouviu de diferente?
- Já estou chegando lá.
- Não enrole muito.
Rayford conferiu os controles para ver se estava na altura correta.
- Eu disse para você não enrolar muito a história – disse Mac.
- Bem, eu não entendi a nova mensagem da igreja - prosseguiu Rayford. - Na verdade, nunca
entendi até Irene ser arrebatada. A igreja era completamente diferente da que eu conhecera.
Eu me sentia desconfortável. Quando os crentes não me viam por lá, imaginavam que eu
estivesse trabalhando. Quando eu comparecia, faziam perguntas sobre meu trabalho, e eu me
limitava a sorrir e dizer-lhes que a vida era maravilhosa. Mesmo quando eu estava em casa,
comparecia esporadicamente. Na época, minha filha Chloe era adolescente, e ela seguia meu
exemplo. Se o pai não precisava ir, ela também não precisava. Irene, contudo, gostava demais
da nova igreja. Ela me deixava nervoso quando começava a falar sobre pecado, salvação da
alma, perdão e sangue de Cristo. Dizia que aceitara Cristo e nascera de novo. Ela começou a
me pressionar, mas eu não queria saber de nada. Aquilo me soava como uma esquisitice. Um
fanatismo. As pessoas pareciam satisfeitas, mas eu estava certo de que seria pressionado a
bater nas portas das casas e entregar folhetos ou coisa parecida. Encontrei mais motivos ainda
para não ir à igreja. Um dia, Irene começou a falar que o pastor Billings estava pregando sobre
o fim dos tempos e a volta de Cristo. Ele chamava isso de Arrebatamento. Ela me disse mais ou
menos isto: "Não seria maravilhoso não morrer e ir ao encontro de Jesus no ar?" Eu lhe
respondi: "Ah, sim, isso faria de mim um homem morto." Ela ofendeu-se. Disse-me para ser
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menos petulante e que eu não sabia para onde estava indo. Aquilo me deixou furioso. Eu lhe
disse que me sentia feliz por ela estar tão certa de tudo isso. Disse-lhe que ela iria para o céu,
e eu, direto para o inferno. Ela não gostou nem um pouco daquilo.
- Posso imaginar - disse Mac.
- O assunto sobre a igreja tornou-se tão banal que passamos a evitá-lo. Comecei a ter
novamente meus acessos de paixão e fiquei de olho em minha comissária de bordo.
- Oh! - disse Mac.
- Vou contar-lhe. Saímos para tomar alguns drinques, jantamos juntos, mas tudo não passou
disso. Não que eu não quisesse. Uma noite, decidi que a convidaria para sairmos juntos
quando chegássemos a Londres. De repente, decidi antecipar o convite. Estávamos
sobrevoando o Atlântico no meio da noite num 747 completamente lotado. Liguei o piloto
automático e saí à procura dela.
Rayford fez uma pausa, indignado consigo mesmo por ter afundado tanto. Mac olhou para ele.
- E daí?
- Todos se lembram de onde estavam no momento dos desaparecimentos.
- Você não está dizendo que... - disse Mac.
- Eu estava tentando marcar um encontro quando todas aquelas pessoas desapareceram.
- Caramba!
Rayford respirou fundo.
- Ela queria saber o que estava acontecendo. Íamos morrer? Eu disse a ela que não
morreríamos, mas não sabia o que iria acontecer. Na verdade, eu sabia. Irene estava certa.
Cristo viera para arrebatar sua igreja, e nós havíamos sido deixados para trás.
Rayford tinha muito mais para contar, é claro, mas antes queria que o assunto fosse
compreendido. Mac olhava firme para a frente. De vez em quando, ele virava, suspirava e
depois voltava à posição anterior enquanto ambos se dirigiam para Al Basrah.
Mac verificou sua prancheta de anotações e examinou os relógios do painel.
- Já estamos perto - ele disse. - Vou verificar. - Ele ajustou a frequência e apertou o botão
do microfone. - Golf Charlie Nove Nove para torre Al Basrah. Estática.
- Torre Al Basrah, aqui é Golf Charlie Nove Nove. Estou mudando para canal onze,
câmbio. - Mac fez a mudança e repetiu a chamada.
- Torre Al Basrah - veio a resposta. - Prossiga Nove Nove.
- Albie está aí?
- Permaneça na escuta, nove.
Mac virou-se para Rayford.
- Daqui até lá é um pulinho - ele disse.
- Golf Charlie, Albie falando, câmbio.
- Albie, seu malandro! Aqui é Mac! Você está bem?
- Não muito, meu amigo. Acabamos de levantar uma torre provisória. Perdemos dois
hangares. Estou andando de muletas. Por favor, não traga aeronaves grandes para cá.
Pelo menos nos próximos dois ou três dias.
- Estamos num helicóptero - disse Mac.
- Então sejam bem-vindos - disse Albie. - Precisamos de ajuda. Precisamos de
companhia.
- Não vamos ficar muito tempo aí, Albie. Chegaremos em trinta minutos.
- Positivo, Mac. Acompanharemos seu vôo.
Rayford viu Mac morder os lábios.
- Que alívio! - Mac murmurou, com voz trémula. Verificou os controles, guardou a
prancheta e virou-se para Rayford. - Continue sua história.
Rayford não entendeu por que Mac estava tão preocupado com aquele seu amigo.
Rayford perguntou a si mesmo se leve um amigo assim antes de converter-se. Será que
já havia se preocupado com outro homem a ponto de emocionar-se como Mac?
Rayford olhou para baixo e viu a devastação causada pelo terremoto. Nos lugares das casas
desaparecidas, haviam sido erguidas tendas. Alguns carros fúnebres improvisados chegavam
para retirar os corpos espalhados por toda parte. Grupos de pessoas com pás e picaretas
tentavam recuperar uma estrada pavimentada. Se elas conseguissem ver do alto, como
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Rayford, constatariam que a estrada inteira ainda levaria meses para ser restaurada, mesmo
que passassem dias trabalhando com equipamentos mais pesados naquela pequena faixa de
pavimento retorcido.
Rayford contou a Mac como conseguiu pousar em O'Hare após os desaparecimentos. Caminhou
até o terminal, viu as notícias devastadoras procedentes do mundo inteiro e, mais tarde, ficou
sabendo que seu co-piloto se suicidara. Pegou uma carona até sua casa, e seus temores foram
confirmados.
- Irene e Raymie haviam desaparecido - ele disse. - Chloe estava tentando sair de Stanford
para voltar para casa. Ela era tão cética quanto eu. A culpa foi minha. Ela seguiu meu exemplo.
E nós dois fomos deixados para trás.
Para Rayford, parecia que tudo isso havia acontecido ontem. Ele não se importava de contar a
história porque o final foi bom, mas detestava essa parte, não só pela angústia e pela solidão,
mas pela culpa que sentira. Se Chloe não tivesse aceitado Cristo, talvez ele nunca se
perdoasse.
Rayford não sabia nada a respeito de Mac. Decidiu que contaria a ele o que estava
acontecendo, quem Nicolae Carpathia era de fato, a história toda. Falaria das profecias do
Apocalipse, dos julgamentos que já haviam chegado, revelaria como eles haviam sido
profetizados e por que não poderiam ser contestados. Mas, se Mac fosse um traidor a serviço
de Carpathia já teria passado por uma lavagem cerebral. Ele poderia fingir estar emocionado,
demonstrar interesse. Poderia até mesmo insistir em acompanhar Rayford naquele mergulho
perigoso, só para mostrar-se amigo.
Rayford, porém, não podia mais voltar atrás. Orou silenciosamente mais uma vez suplicando
um sinal de Deus quanto à sinceridade de Mac. Se ele não estivesse sendo sincero, era um dos
melhores atores que Rayford já conhecera. Seria muito difícil confiar em alguém no futuro.
Quando finalmente eles avistaram o campo de aviação em Al Basrah, Mac ensinou Rayford
como fazer um pouso suave. Quando Rayford desligou o motor, Mac disse:
- É ele. Abaixe a escada.
Os dois desceram do helicóptero enquanto um homem de pele escura, nariz alongado,
descalço e usando turbante descia lentamente de uma torre que mais parecia uma guarita de
prisão. Ele havia atirado as muletas lá de cima e, quando chegou ao chão, pegou-as e usou-as
habilmente para ir ao encontro de Mac. Os dois se abraçaram.
- O que houve com você? - perguntou Mac.
- Eu estava no refeitório - respondeu Albie. - Quando tudo começou a desmoronar, entendi
imediatamente o que estava acontecendo. Cometi o erro de correr até a torre. Não havia
ninguém lá. Não estávamos esperando nenhum vôo dentro das próximas duas horas. Não sei
o que fui fazer lá. A torre começou a desabar antes de eu chegar. Consegui correr, mas
um caminhão de combustível foi atirado na minha frente. Eu vi quando ele vinha na minha
direção e tentei saltar por cima da cabina, que estava virada de lado. Quase cheguei ao outro
lado, mas enrosquei o tornozelo no pneu e raspei a canela no parafuso da maçaneta. Mas o pior
não foi isso. Quebrei o pé. Não há material para engessá-lo, e sou um dos últimos na lista de
prioridades. Vou ficar bem. Alá vai me abençoar.
Mac apresentou Rayford a Albie.
- Quero saber a história de vocês - disse Albie. – Onde vocês estavam no momento do
terremoto? Quero que me contem tudo. Mas, antes, se vocês tiverem tempo, poderiam
dar uma mãozinha. Máquinas pesadas já estavam nivelando uma área enorme, preparando-a
para ser asfaltada.
- Seu patrão, ele mesmo, o potentado, ficou satisfeito com nossa cooperação. Estamos
tentando fazer o possível para ajudar a manter a paz mundial. Que tragédia isso ter
acontecido depois de tudo o que ele tem feito.
Rayford permaneceu calado.
- Albie - disse Mac -, podemos ajudar mais tarde, mas agora precisamos comer alguma coisa.
- O refeitório não existe mais - disse Albie. - Não tenho notícias de seu restaurante favorito na
cidade. Vamos ver como ele está?
- Você tem um carro?
- Aquela velha picape - disse Albie. - Rayford e Mac o acompanharam enquanto ele se dirigia
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até a picape de muletas. - Está difícil pisar na embreagem - ele disse. – Você poderia dirigi-la?
Mac sentou-se ao volante. Albie sentou-se no meio, com os joelhos abertos para não atrapalhar
a mudança de marchas. A picape seguiu sacolejando e trepidando sobre estradas de terra até
chegar aos arredores da cidade. O cheiro do local provocava náuseas em Rayford. Ele ainda
achava difícil aceitar que isso fazia parte do plano supremo de Deus. Será que tantas pessoas
como estas teriam de sofrer para que seu plano fosse cumprido? Ele se consolava ao pensar
que esse não era o resultado desejado por Deus. Rayford acreditava que Deus era fiel à sua
palavra, que Ele concedera oportunidades suficientes ao povo, e o que estava acontecendo
agora servia para chamar a atenção da humanidade.
Homens e mulheres chorando e gemendo carregavam corpos sem vida nos ombros ou em
carrinhos de mão pelas ruas apinhadas. Parecia que todos os quarteirões haviam sido
destruídos pelo terremoto. Uma das paredes de concreto do restaurante favorito de Mac tinha
desabado, mas a administração instalara uma cortina improvisada e a casa continuava
funcionando. Por ser um dos poucos estabelecimentos abertos, o local estava lotado e os clientes
comiam em pé. Mac e Rayford abriram caminho com os ombros, atraindo olhares irados, que só
se abrandaram quando viram Albie acompanhando os dois. Os clientes abriram caminho, o
mais que puderam, mas o espaço era mínimo.
Rayford não confiava muito na higiene daquela comida, mas, mesmo assim, sentiu-se
agradecido. Após duas mordidas em um rolo de massa folhada recheado com carne de carneiro
moída e temperos, ele cochichou no ouvido de Mac:
- Depois de ver e cheirar isto, e comer neste lugar, acho que a fome é o melhor tempero.
No caminho de volta, Mac parou à beira de um terreno poeirento e desligou o motor.
- Eu queria saber se você estava bem, Albie - ele disse. - Mas esta é uma visita de negócio.
- Ótimo - disse Albie. - Como posso ajudar?
- Equipamento de mergulho - respondeu Mac.
Albie franziu a testa e mordeu os lábios.
- Mergulho - ele disse simplesmente. - Você precisa de tudo? Roupa, máscara, tubo de
respiração, tanque de oxigénio, nadadeiras?
- Tudo,tudo.
- Pesos? Lastro? Luzes?
- Talvez.
- Pagamento em dinheiro?
- Claro.
- Preciso verificar - disse Albie. - Tenho um fornecedor. Não ouvi notícias dele desde o
terremoto. Se você precisa do material, eu posso arrumar. Vamos combinar assim: se você
não receber notícias minhas, volte daqui a um mês que estará tudo providenciado.
- Não posso esperar tanto tempo assim - disse Rayford impulsivamente.
- Não posso garantir nada antes disso. Nas circunstâncias atuais, esse tempo parece ser pouco
para mim. - Rayford não tinha condições de argumentar. - Pensei que fosse para você, Mac -
complementou Albie.
- Precisamos de dois equipamentos.
- Vocês vão passar a trabalhar como mergulhadores?
- Mais ou menos - respondeu Mac. - Por quê? Você acha que podemos alugar, em vez de
comprar?
- Existe essa possibilidade? - perguntou Rayford.
Albie e Mac olharam para Rayford e caíram na gargalhada.
- No mercado negro, não se aluga nada - disse Albie.
Rayford foi obrigado a rir de sua ingenuidade, mas o riso parecia algo que ficara para trás.
De volta ao aeroporto, Rayford e Mac pegaram uma pá cada um enquanto um caminhão
despejava uma camada de pedregulho para restaurar a pista. Eles se esqueceram do tempo, e
várias horas se passaram. Pediram a uma pessoa que fosse chamar Albie.
- Você pode enviar uma mensagem para a Nova Babilónia? - perguntou Mac.
- Será necessário um relê, mas tanto Qar como Wasit estão no ar desde hoje de manhã. Sim, é
possível.
Mac escreveu a mensagem, pedindo que fosse enviada, via rádio, para a base da Comunidade
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Global informando que Steele e McCullum estavam participando de um trabalho voluntário na
reconstrução de um aeroporto e que retornariam no início da noite.
O relógio marcava perto de nove e meia da manhã de terça-feira, horário da região central dos
Estados Unidos, quando Buck acordou sobressaltado. O dia estava claro e ensolarado, e ele
dormira profundamente após aquele sonho rápido no meio da noite. Um som constante
chegava até seu subconsciente. Mas por quanto tempo? Assim que seus olhos se acostumaram
à claridade, ele entendeu que o barulho não era recente. Parecia vir do quintal da casa, mais
além do Range Rover.
Buck caminhou vagarosamente até a janela e abriu-a, encostando o rosto na vidraça para
enxergar o mais longe que pudesse. Talvez fossem equipes de emergência trabalhando para
restabelecer a energia elétrica na região, e ele e Tsion seriam beneficiados mais cedo do que
imaginavam.
Mas e aquele cheiro? Será que algum caminhão estava trazendo comida para os trabalhadores?
Buck se vestiu e viu luz acesa no corredor. Então não havia sido um sonho? Ele desceu a
escada de dois em dois degraus, descalço.
- Tsion! Temos energia elétrica! O que está havendo?
Tsion apareceu na porta da cozinha com uma frigideira cheia de comida e transferiu-a, com uma
colher, para um prato sobre a mesa.
- Sente-se, sente-se, meu amigo. Você não está orgulhoso de mim?
- Você encontrou comida!
- Encontrei mais que isso, Buck! Descobri um gerador, daqueles grandes!
Buck curvou a cabeça e proferiu uma breve oração.
- Você já comeu, Tsion?
- Sim, sirva-se. Não consegui esperar. Acordei no meio da noite e não dormi mais, por isso fui
pé ante pé até seu quarto e peguei sua lanterna. Espero não ter acordado você.
- Não - disse Buck de boca cheia. - Mas depois pensei estar sonhando quando vi luzes no
corredor.
- Não foi um sonho, Buck! Transportei sozinho aquele gerador da adega até o quintal. Levei
uma eternidade até enchê-lo de gasolina e limpar a vela de ignição para acendê-lo. Mas assim
que eu o conectei ao fio no porão, as luzes se acenderam, a geladeira ligou e tudo começou a
funcionar. Lamento ter incomodado você. Voltei pé ante pé até meu quarto e ajoelhei-me ao
lado da cama para agradecer ao Senhor a nossa sorte.
- Eu ouvi você orando.
- Perdoe-me.
- Sua oração soou-me como uma música - disse Buck. – E esta comida parece um néctar.
- Você precisa alimentar-se. Vai voltar para a casa de Loretta. Eu ficarei aqui para ver se
consigo conectar a Internet. Se não conseguir, vou estudar e escrever mensagens a fim de que
estejam prontas para ser enviadas para os fiéis quando for possível. Porém, antes de você sair,
vai me ajudar a abrir a maleta de Donny, não?
- Você decidiu que vamos abri-la?
- Em outras circunstâncias, não. Mas temos pouquíssimas ferramentas de sobrevivência,
Cameron. Precisamos aproveitar tudo o que estiver por aqui. Felizmente, a caixa d'água da
casa de Donny permanecera intacta, e, após um banho quente alguns minutos depois, Buck
sentiu-se revigorado. Por que será que o conforto pessoal deixava o dia mais brilhante, mesmo
diante de um momento tão crucial? Buck sabia que estava sendo contraditório. Todas as vezes
que seu lado prático e realista de homem da imprensa assumia o controle, ele tinha de lutar
contra isso. Desejava pensar que Chloe escapara da morte, mas o carro dela ainda estava na
casa. Por outro lado, ele não encontrara seu corpo. Toneladas de entulhos cobriam o local, e
ele não havia feito muito progresso em suas escavações. Será que teria de retirar todo aquele
entulho para provar a si mesmo que ela estava lá ou não? Estava disposto a isso. Só esperava
que houvesse um jeito melhor.
Pouco antes de sair da casa, Buck ficou intrigado por Tsion não tê-lo esperado para tirar a
maleta de Donny do Rover. O rabino a colocara em cima da mesa. Seu rosto estampava um ar
estranho, cauteloso. Eles estavam prestes a arrombar uma maleta contendo coisas pessoais de
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alguém, mas ambos tinham-se convencido de que Donny aprovaria essa atitude. Também
estavam preparados para fechá-la e desfazer-se dela caso encontrassem apenas assuntos de
natureza pessoal.
- Há ferramentas de todos os tipos no porão - disse Tsion.
- Eu poderia ser extremamente cuidadoso e abri-la de maneira a não prejudicar sua estrutura.
- O quê!? - exclamou Buck. - Prejudicar sua estrutura? Você não está querendo estragar esta
maleta barata? Que tal eu poupar-lhe tempo e esforço?
Sentado na cadeira da cozinha, Buck virou a maleta de plástico de pouco mais de dez
entímetros de profundidade na posição vertical e prendeu-a entre os joelhos. Virou ambos os
joelhos para a esquerda e deu um tranco na maleta com o punho, forçando-a a cair entre seus
tornozelos e bater com um dos cantos no chão. As fechaduras separaram-se, e a maleta abriuse.
As pernas de Buck impediram que ela se abrisse totalmente e seu conteúdo voasse longe.
Com uma sensação de dever cumprido, ele a colocou em cima da mesa e virou-a de frente para
Tsion.
- Então era isto o que aquele jovem transportava dentro de sua maleta de um lado para o
outro? - disse Tsion.
Buck inclinou-se para olhar. Arrumados em pilhas, estavam dezenas de cadernos espirais, mais
ou menos do tamanho de um bloco de anotações para taquigrafia. Cada um deles tinha uma
etiqueta com datas escritas manualmente. Tsion retirou algumas e Buck pegou outro tanto. Ele
folheou-os e constatou que cada um continha anotações de aproximadamente dois meses.
- Isto aqui parece ser o diário dele - disse Buck.
- Sim - disse Tsion. - Se for, não devemos violar sua privacidade.
Eles se entreolharam. Buck perguntou a si mesmo qual deles examinaria os cadernos para
saber se continham anotações particulares que deveriam ser inutilizadas ou anotações técnicas
que talvez fossem úteis ao Comando Tribulação. Tsion ergueu as sobrancelhas e fez um sinal
afirmativo para Buck. Buck abriu um caderno no meio. Estava escrito o seguinte: "Conversei
com Bruce B. sobre os equipamentos necessários para o abrigo subterrâneo. Ele ainda parece
relutante em mencionar o local. Eu não preciso saber. Apenas sugeri especificações tais como
eletricidade, água, telefone, ventilação, etc."
- Isto não é assunto pessoal - disse Buck. - Vou estudá-los hoje para ver se há alguma coisa
que possamos usar. É estranho o modo como ele os empilhou. Não creio que ele tenha perdido
a sequência das datas, e ele usou todos os espaços possíveis.
- O que é isto? - perguntou Buck, virando as páginas até o fim. - Veja só. Ele desenhou uma
planta à mão.
- É a planta de meu abrigo! - exclamou Tsion. - Foi onde eu fiquei. Então foi ele quem
desenhou a planta do local.
- Mas parece que Bruce nunca lhe contou onde estava construindo o abrigo.
Tsion apontou para um trecho na página seguinte: "A construção de um abrigo duplo em meu
quintal está sendo mais trabalhosa do que eu esperava. Sandy está achando tudo muito
divertido. A tarefa de encher sacos de terra e guardá-los na camioneta dela tem nos ajudado a
superar nossa perda. Ela gosta muito da natureza clandestina desse trabalho. Nós nos
revezamos para descarregar a terra em vários lugares. Hoje, a camioneta ficou tão pesada que
os pneus traseiros pareciam que iam estourar. Foi a primeira vez que eu a vi sorrir depois de
meses."
Buck e Tsion entreolharam-se.
- É possível? - disse Tsion. - Um abrigo no quintal deles?
- Como não vimos esse abrigo? Cavamos lá perto ontem à noite.
Ambos caminharam até a porta dos fundos e examinaram o gramado. A cerca que havia entre
a casa de Donny e os escombros da casa ao lado havia sido arrancada do chão pelo terremoto.
- Talvez eu tenha estacionado acima da entrada – disse Buck.
Ele manobrou o Rover e afastou-o dali.
- Não vejo nada aqui - disse Tsion. - Mas o diário indica que isto não foi um sonho. Eles
estavam tirando terra.
- Tentarei hoje encontrar algumas barras de metal – disse Buck. - Vamos fazê-las atravessar a
grama para ver se encontramos essa coisa.
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- Então vá. Termine sua tarefa na casa de Loretta. Tenho muito o que fazer no computador.
O sol estava se pondo no Iraque.
- É melhor voltarmos - disse Rayford, ofegante.
- O que será que eles vão fazer conosco? - disse Mac. - Demitir-nos?
- Assim que ele souber que você está por perto, Mac, poderá cumprir sua ameaça de me
prender.
- Só um sujeito como ele pode pensar que um homem sozinho é capaz de dar uma volta ao
mundo com aquele Condor e retornar. A propósito, você parou para pensar por que ele chama
aquela coisa de 216? O número de seu escritório também era 216, apesar de estar localizado
no último andar de um edifício de 18 andares.
- Nunca pensei nisso - disse Rayford. - Não vejo motivos para me preocupar. Talvez seja o
número de sorte dele. Enquanto Rayford e Mac marchavam de volta à torre com as pás sobre
os ombros, Albie foi ao encontro deles equilibrando-se nas muletas.
- Não tenho palavras para agradecer a ajuda de vocês, cavalheiros. Vocês são amigos
verdadeiros de Alá e do Iraque. Amigos verdadeiros da Comunidade Global.
- Talvez a Comunidade Global não goste de ouvir você reverenciar Alá - disse Rayford. - Você,
um homem tão leal, ainda não se converteu à Fé Enigma Babilónia?
- Juro sobre o túmulo de minha mãe que nunca vou afrontar Alá com tamanha blasfémia.
Então, pensou Rayford, os cristãos e os judeus não são os únicos que estão contra o novo papa
Peter Mathews.
Albie os conduziu até o local onde eles deveriam deixar as pás. Em voz baixa, ele disse:
- Estou feliz por poder informar-lhes que já fiz alguns contatos iniciais. Acho que não vou ter
problemas em encontrar o equipamento para vocês.
- Completo? - perguntou Mac.
- Completo.
- Quanto? - perguntou Mac.
- Tomei a liberdade de anotar o valor - disse Albie.
Ele tirou um papel do bolso e apoiou-se nas muletas para abri-lo sob uma luz fraca.
- Caramba! - disse Rayford. - Isso é quatro vezes mais o que eu pagaria por dois
equipamentos de mergulho.
Albie guardou o papel no bolso.
- Este é exatamente o dobro do preço no varejo. Nem um centavo a mais. Se vocês não
quiserem a mercadoria, digam já.
- O preço parece alto - disse Mac. - Mas você nunca me passou para trás. Confiaremos em
você.
- É necessário um depósito? - perguntou Rayford, na esperança de sensibilizar o homem.
- Não - ele disse, fixando o olhar em Mac, não em Rayford. - Você confia em mim, eu confio em
você.
Rayford assentiu.
Albie estendeu sua mão ossuda e apertou a de Rayford com força.
- Até daqui a trinta dias, a menos que eu entre em contato com vocês antes.
Mac assumiu os controles para o vôo de volta. - Conseguiu força suficiente para terminar sua
história, Ray?
A caminho da casa de Loretta, Buck parou diante das ruínas da Igreja Nova Esperança e
passou a pé pela cratera onde o carro dela estava caído a mais de seis metros da superfície. O
corpo de Loretta ainda estava lá, mas Buck não teve coragem de olhar. Se alguns animais a
tivessem encontrado, ele não queria ver a cena. Também evitou olhar para o local onde
encontrara Donny Moore. Novos abalos haviam derrubado mais escombros por cima dele.
Buck caminhou cuidadosamente até onde se localizava o abrigo. Havia mais escombros por ali.
Ele escorregou e quase caiu da escada de concreto que conduzia até a porta de entrada.
Talvez houvesse ali alguma coisa que pudesse ser aproveitada. Mas ele poderia voltar em
outro dia. Enquanto se dirigia para o Range Rover, Buck passou os dedos em sua bochecha
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inchada. Por que os machucados pioraram e ficaram mais sensíveis no dia seguinte?
Havia muito trânsito naquela área. Aparentemente, todos os caminhões basculantes,
escavadeiras ou reboques que não haviam desaparecido tinham sido convocados para
trabalhar. Buck não pôde estacionar no local do dia anterior. Equipes de trabalho tentavam pôr
no lugar o asfalto da rua de Loretta. Caminhões de lixo transportavam pedaços enormes de
concreto. Buck não tinha ideia do lugar onde seriam descarregados e que fim teriam. Ele só
sabia que a única coisa que alguém poderia fazer seria começar a reconstruir tudo. Não
conseguia imaginar que essa área voltaria a ser como antes, mas sabia que não demoraria
muito para ser reconstruída.
Buck passou com o Range Rover por cima de um pequeno monte de entulhos e estacionou
perto de uma das árvores tombadas no jardim da casa de Loretta. Os trabalhadores não lhe
deram atenção quando ele começou a rodear lentamente a casa, imaginando se deveria
continuar a escavar o que restara dela.
Um homem com uma prancheta na mão analisava os escombros da casa ao lado. Tirava
fotografias e fazia anotações.
- Acho que não existe cobertura de seguro para um ato de Deus como este - disse Buck.
- Não existe - retrucou o homem. - Não trabalho para nenhuma empresa de seguro. - Ele
virou-se, e Buck viu um crachá preso em sua roupa, onde se lia: "Sunny Kuntz, Supervisor de
Campo, Equipe de Socorro da Comunidade Global."
Buck fez um sinal afirmativo com a cabeça.
- Qual é a próxima etapa? - ele perguntou.
- Vamos enviar fotografias e estatísticas via fax para a sede da CG. Eles mandam o dinheiro.
Nós reconstruímos.
- A sede da CG continua em pé?
- Não. Está sendo reconstruída também. Os que sobreviveram estão em um abrigo
subterrâneo equipado com alta tecnologia.
- Você pode comunicar-se com a Nova Babilónia?
- Desde hoje de manhã.
- Meu sogro trabalha lá. Você acha que eu poderia comunicar-me com ele?
- É claro que pode. - Kuntz consultou seu relógio. – Ainda não são nove horas da noite na Nova
Babilónia. Conversei com uma pessoa de lá cerca de quatro horas atrás. Eu queria que eles
soubessem que pelo menos encontramos um sobrevivente desta área.
- Encontraram? Quem?
- Não estou autorizado a lhe dar esta informação, Sr...
- Oh, desculpe-me. - Buck pegou seu crachá que também o identificava como funcionário da
CG.
- Ah, você é da imprensa - disse Kuntz. Ele destacou duas folhas de sua prancheta. - O nome é
Cavenaugh. Helen. Setenta anos.
- Ela morava aqui?
- Morava. Disse que correu para o porão quando sentiu a casa balançar. Nunca ouvira falar de
um terremoto nesta região, portanto pensou tratar-se de um tornado. Ela teve muita sorte. O
último lugar para estar no momento de um terremoto é onde tudo pode cair sobre a gente.
- Então ela sobreviveu, heín?
Kuntz apontou para um alicerce a cerca de seis metros a leste da casa de Loretta.
- Você está vendo aquelas duas aberturas, uma aqui e a outra nos fundos? - ele perguntou.
Buck balançou a cabeça afirmativamente. - Trata-se de um quarto comprido no porão.
Primeiro ela correu para a frente. Quando a casa inteira balançou e as vidraças daquela janela
estouraram, ela correu para o outro lado. As vidraças já haviam se desprendido da janela,
portanto ela não saiu do lugar e aguardou. Se ela tivesse permanecido na frente, não teria
sobrevivido. Ficou no único canto da casa de onde foi possível escapar com vida.
- Ela lhe contou isso?
-Sim.
- Não disse se viu alguém na casa ao lado?
- A bem da verdade, disse.
Buck quase perdeu o fôlego.
55
- O que ela disse?
- Só disse que viu uma moça saindo correndo da casa. Pouco antes de a janela cair deste
lado, a moça pulou para dentro do carro, mas quando a rua começou a levantar-se,
ela entrou com o carro na garagem.
Buck tremia, tentando desesperadamente manter-se calmo até ouvir a história inteira.
- E depois?
- A Sra. Cavenaugh disse que teve de afastar-se por causa daquela janela, e, quando a outra
casa começou a tombar, ela acha que viu a moça sair pela porta lateral da garagem e
correr para o quintal.
Buck perdera toda a objetividade.
- Aquela moça era minha mulher. Você tem mais detalhes?
- Não me lembro de mais nenhum.
- Onde está a Sra. Cavenaugh?
- Num abrigo a cerca de dez quilómetros a leste. Numa loja de móveis que foi pouco atingida.
Há provavelmente 200 sobreviventes lá, os que sofreram ferimentos leves. Parece mais um
albergue que um hospital.
- Diga-me exatamente onde fica esse lugar. Preciso conversar com ela.
- Está bem, Sr. Williams, mas devo adverti-lo de que não tenha muitas esperanças de encontrar
sua mulher.
- Do que você está falando? Eu não tinha esperanças antes de descobrir que ela fugiu daqui.
Nem sei se tinha esperanças quando tentei cavar estas ruínas. Mas agora não venha dizer que
não devo mais ter esperanças.
- Sinto muito. Só estou tentando ser realista. Trabalhei em equipes de socorro por mais de 15
anos antes de ser admitido na CG. Esta é a pior catástrofe que já vi, e preciso perguntar-lhe se
você chegou a ver o caminho que sua mulher deve ter tomado, caso a Sra. Cavenaugh esteja
certa ao dizer que ela correu para o quintal.
Buck acompanhou Kuntz até o quintal. Kuntz esquadrinhou o horizonte com o braço.
- Para onde você teria ido? - ele perguntou. - Para onde alguém teria ido?
Buck assentiu pesarosamente. Entendeu o recado. Até o ponto onde sua vista alcançava, só
havia montes de entulhos, fendas, crateras, árvores tombadas e postes caídos. Com certeza,
não havia lugar por onde alguém poderia ter fugido.
56
SETE
- Então - disse Mac - sua filha foi o verdadeiro motivo para você descobrir o que aconteceu com
sua mulher e filho. Certo.
- Você tinha ideia do que o levou a isso?
- Você quer dizer culpa? Em parte, talvez. Mas eu me senti culpado, Mac. Eu havia sido
negligente com minha filha. Não queria que isso voltasse a acontecer.
- Você não podia forçá-la a acreditar.
- Não. E por uns tempos achei que ela não acreditaria. Ela era uma pessoa irredutível e
analítica como eu havia sido.
- Bem, Ray, nós, os pilotos, somos mais ou menos parecidos. Levantamos do chão por causa
da aerodinâmica. Não há mágicas nem milagres, nada que possamos ver, sentir ou ouvir.
- Eu sempre pensei assim.
- E o que aconteceu depois? O que fez a diferença?
O sol se punha no horizonte. Do helicóptero, Rayford e Mac viram a bola amarela desaparecer
aos poucos no infinito. Rayford estava concentrado em sua história, tentando sinceramente
convencer Mac acerca da verdade. Rayford sentiu um calor repentino. Embora a temperatura no
deserto do Iraque caísse rapidamente após o pôr-do-sol, ele se desvencilhou do paletó.
- Não há armários nem cabides aqui, Ray. Eu costumo deixar o meu atrás da poltrona.
Depois de acomodar-se novamente, Rayford prosseguiu:
- Ironicamente, tudo aquilo que serviu para convencer-me da verdade eu devia ter aprendido
antes, a tempo de ser arrebatado com Irene quando Cristo voltou. Eu frequentava a
igreja havia anos e já ouvira expressões como "nascer de uma virgem", "expiação de
pecados", essas coisas. Mas nunca parei para pensar no que elas significavam. Eu
conhecia a história de que Jesus nascera de uma mulher que nunca tivera relacionamento
físico com um homem. Eu não sabia dizer se acreditava nisso, nem mesmo se esse fato era
importante. Parecia apenas uma história religiosa e, em minha opinião, explicava por que
muitas pessoas consideravam o sexo um ato pecaminoso.
Rayford contou a Mac como encontrou a Bíblia de Irene, como achou o telefone da igreja que
ela amara tanto, como conheceu Bruce Barnes e viu a fita de vídeo preparada pelo pastor
Billings especialmente para os que seriam deixados para trás.
- Ele já sabia de tudo? - perguntou Mac.
- Oh, sim. Todos os que foram arrebatados sabiam. Não sabiam quando, mas aguardavam o
Arrebatamento com ansiedade. Aquela fita tocou-me realmente, Mac.
- Eu gostaria de vê-la.
- Talvez eu consiga reproduzir uma cópia para você, se a igreja ainda estiver em pé.
Buck pediu a Kuntz que lhe indicasse o caminho até o abrigo improvisado e correu em direção ao
Range Rover. Tentou ligar para Tsion e frustrou-se ao ouvir som de ocupado. Mas aquilo
também era um bom sinal. O som não era o de um telefone com defeito. Era o som de ocupado
mesmo, como se Tsion estivesse falando com alguém. Buck ligou para o número particular de
Rayford. Se funcionasse, por meio da tecnologia celular e fonte de energia solar, eles teriam
condições de conversar em qualquer lugar da terra que estivessem.
O problema era que Rayford não estava em terra. O ronco do motor, o toc-toc-toc das lâminas
da hélice e a estática em seu fone de ouvido produziam uma sinfonia de ruídos. Ele e Mac
ouviram ao mesmo tempo o toque do telefone. Mac enfiou a mão no bolso e retirou o seu.
- Não é o meu - ele disse.
Rayford virou-se para pegar o dele no paletó dobrado, mas, quando conseguiu desvencilhar-se
dos fones de ouvido, abrir o telefone e colocá-lo próximo ao ouvido, só conseguiu ouvir um som
de linha aberta. Talvez as torres de celulares não estivessem próximas o suficiente para enviar
um sinal. Aquele toque devia ter vindo de um satélite. Ele virou-se na poltrona e colocou o
telefone em ângulo, posicionando melhor a antena para tentar receber um sinal mais forte.
- Alô! Fala Rayford Steele. Você está me ouvindo? Se estiver, ligue novamente! Estou em pleno
ar e não consigo ouvir nada. Se for alguém de minha família, ligue de volta dentro de vinte
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segundos para fazer este telefone tocar novamente, mesmo que a gente não consiga se
comunicar. Ou, então, ligue dentro de... - Ele olhou para Mac.
- Noventa minutos.
- Dentro de noventa minutos estaremos em terra. Alô!
Nada.
Buck ouvira o telefone de Rayford tocar. Em seguida, nada, a não ser estáticas. Pelo menos o
som não era de chamada sem resposta. Um outro som de ocupado teria sido um bom sinal.
Mas o que seria aquilo? Um clique, estática, sons incompreensíveis. Ele recolocou o telefone no
bolso.
Buck conhecia a loja de móveis. Localizava-se no caminho do Edens Expressway. Normalmente,
o percurso não levaria mais de dez minutos, mas a topografia do local mudara. Ele teve de
desviar alguns quilómetros para contornar montanhas e montanhas de destroços. Não
existiam mais pontos de referência. Seu restaurante favorito foi identificado apenas por um
imenso letreiro atirado ao chão. A uma distância de cerca de 12 metros, apenas o telhado
despontava de uma cratera que engolira a casa inteira. Equipes de resgate entravam e saíam
da cratera, sem demonstrar nenhuma pressa. Aparentemente, ali só havia corpos para serem
retirados.
Buck discou para a sucursal de Chicago do Semanário Global. Não houve resposta. Ligou para a
sede em Nova York. Logo após o ataque aéreo sobre Nova York, o escritório luxuoso, que
ocupava três andares de um arranha-céu, havia sido reconstruído em um armazém
abandonado. Aquele ataque custara a vida de todos os amigos que Buck conquistara no
Semanário.
Após vários toques, uma voz feminina aflita atendeu:
- O escritório está fechado. Se não for uma emergência, |por favor não congestione as linhas.
- Buck Williams, de Chicago - ele disse.
- Sim, Williams. Já soube da notícia?
- Que notícia?
- Você não entrou em contato com ninguém do escritório de Chicago?
- Nossos telefones acabaram de voltar a funcionar. Liguei, mas ninguém atendeu.
- Ninguém vai atender. O prédio desabou completamente. Quase todos os funcionários estão
mortos.
- Oh, não.
- Sinto muito. Uma secretária e um interno sobreviventes verificaram o que aconteceu com os
demais funcionários. Eles não entraram em contato com você?
- Eu estava fora do circuito.
- É um alívio saber que você está bem. Você está bem?
- Estou à procura de minha mulher, mas estou bem, sim.
- Os dois sobreviventes estão colaborando com o Tnbune e já temos uma página na Web. Digite
um nome qualquer para saber qual é a situação: vivo, morto, em tratamento ou paradeiro
desconhecido. Estou sozinha aqui para atender os telefones. Estamos aniquilados, Williams.
Você sabe que nossas publicações são impressas em dez ou doze lugares ao redor do mundo...
- Quatorze.
- Sim. Pelo que sei, uma no Tennessee e outra no sudeste da Ásia ainda estão em condições de
imprimir alguma coisa. Quem sabe quanto tempo demorará para a situação se normalizar?
- E o que você sabe sobre o pessoal daqui dos Estados Unidos?
- Estou com o computador ligado - ela disse. Tenho a confirmação de que cerca de 50% estão
mortos e 40% ainda não foram encontrados. É o fim, não?
- Fim do quê? Do Semanário7.
- E de que mais eu poderia estar falando?
- Pensei que você estivesse falando de seres humanos.
- Os seres humanos foram muito mais atingidos, você não acha, Williams?
- O quadro é desolador - disse Buck. Mas ainda estamos longe do fim. Talvez possamos
conversar sobre isso em outra ocasião. - Buck ouviu ao fundo o som de telefones tocando.
- Talvez - ela disse. - Preciso atender outras ligações.
Após dirigir por mais de 40 minutos, Buck teve de parar para dar passagem a uma fila de
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veículos de emergência. Havia uma montanha de entulhos sobre uma fissura em uma estrada
que não havia sido danificada pelo terremoto. Ninguém podia atravessá-la enquanto a
máquina de terraplenagem não conseguisse nivelar a pista. Buck pegou seu laptop e ligou-o no
acendedor de cigarros. Procurou o site do Semanário Comuniáade Global para obter
informações. Não estava funcionando. Entrou na página do Tribune e percorreu a lista da qual
a secretária lhe falara. Havia um aviso mencionando que ninguém podia garantir a
autenticidade da informação, uma vez que as notícias sobre mortes só seriam confirmadas dali
a alguns dias.
Buck digitou o nome de Chloe e não se surpreendeu ao verificar que ela estava enquadrada na
categoria "paradeiro desconhecido". O nome dele, bem como os de Loretta, Donny e Sandy
também se encontravam na mesma categoria. Buck atualizou as informações sobre cada um,
mas decidiu não incluir o número de seu telefone particular. Quem necessitasse falar com ele
já tinha esse número. Em seguida, ele digitou o nome de Tsion. Seu paradeiro também era
ignorado.
Com um aperto no coração, Buck digitou "Rayford Steele, Capitão, Administração da
Comunidade Global". Prendeu a respiração até obter a resposta: "Confirmado vivo; sede
temporária da Comunidade Global, Nova Babilónia, Iraque."
Buck jogou a cabeça para trás e deu um suspiro de alívio.
- Obrigado, meu Deus - ele murmurou.
Endireitou o corpo e ajeitou o espelho retrovisor. Havia vários carros atrás dele, e o seu era o
quarto da fila. O serviço na pista ainda demoraria alguns minutos. Ele digitou "Amanda White
Steele".
O computador demorou um pouco para processar a informação e indicou com um asterisco:
"Verificar empresas aéreas domésticas, Pan-Continental, vôo internacional."
Ele clicou nessa linha. "Informação sujeita a confirmação sobre vôo sem escalas de Boston para
a Nova Babilónia; aeronave caiu e submergiu no rio Tigre; não há sobreviventes."
Pobre Rayford!, ele pensou. Buck não chegara a conhecer Amanda como gostaria, mas sabia que
ela era uma pessoa encantadora e uma verdadeira dádiva concedida a Rayford. Agora ele estava
ansioso por falar com seu sogro.
Buck verificou o nome de Chaim Rosenzweig, que foi confirmado vivo e a caminho de Israel
para a Nova Babilónia. Ótimo, ele pensou. Digitou o nome de seu pai e irmão, e eles não
haviam sido localizados. Se não há notícias, Buck pensou, já é um bom sinal.
Em seguida, ele digitou o nome de Hattie Durham. O nome não foi identificado. O nome dela
não devia ser Hattie. Qual seria seu nome verdadeiro? Hilda? Hildegard? Que outros nomes
começam com H? Harriet? Este era o mais parecido com Hattie. Deu certo.
Novamente, ele foi orientado a consultar as empresas aéreas, desta vez para voos domésticos.
Ele encontrou o nome de Hattie confirmado em um vôo sem escalas de Boston para
Denver. "Não há notícias sobre a chegada do vôo."
Então, pensou Buck, se Amanda viajara naquele vôo, está morta. Se Hattie viajam no
outro vôo, talvez esteja morta. Se a Sra. Cavenaugh estivesse certa, e vira Chloe fugir da
casa de Loretta, Chloe poderia estar viva.
Buck não conseguia pensar na possibilidade de Chloe estar morta. Não conjeturaria sobre
aquela hipótese enquanto não tivesse certeza absoluta.
-
Tenho de admitir, Mac, que grande parte daquilo tinha lógica disse Rayford. - O pastor
Billings havia sido arrebatado. Mas, antes, ele preparou aquela fita de vídeo, onde falou
sobre tudo o que acabara de acontecer, o período que estávamos atravessando e o que
poderíamos estar pensando. Ele me deixou aniquilado. Sabia que eu ficaria apavorado,
que sofreria, que me desesperaria. E ele mostrou as profecias da Bíblia que mencionavam
aquele acontecimento. Fez-me lembrar que talvez eu já tivesse ouvido aquilo. Chegou a
falar de coisas que deveríamos observar. Mas, acima de tudo, ele respondeu à minha
pergunta mais importante: Eu ainda teria uma segunda oportunidade? Eu não sabia que
muitas pessoas também tivessem a mesma dúvida. O Arrebatamento seria o fim de tudo?
Os deixados para trás estariam perdidos para sempre, somente porque não creram? Eu
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nunca havia pensado nisso, mas acho que muitos pregadores acreditavam que ninguém
poderia converter-se após o Arrebatamento. Eles usavam esse argumento para assustar
o povo e forçar uma decisão por antecipação. Eu gostaria de ter ouvido isso antes,
porque talvez tivesse acreditado.
Mac lançou um olhar penetrante para Rayford.
- Não, você não teria acreditado. Se tivesse de acreditar antes, teria acreditado em sua mulher.
- Provavelmente. Mas naquele momento eu não podia argumentar. Que outra explicação havia?
Eu estava preparado. Queria dizer a Deus que, se houvesse outra oportunidade, se o
Arrebatamento tivesse sido sua última tentativa para chamar minha atenção, seu plano tinha
dado certo.
- Mas, e daí? Você tinha de fazer alguma coisa? Dizer alguma coisa? Conversar com um pastor?
- Na fita, o pastor Billings discorreu sobre o que ele chamava de plano bíblico de salvação.
Aquela era uma expressão estranha para mim. Eu a ouvira uma ou duas vezes, mas não em
nossa primeira igreja. E, quando eu frequentava a Igreja Nova Esperança, não prestava
atenção em nada. Só estava prestando atenção naquele momento.
- Então, qual é o plano?
- É simples e direto, Mac. - Rayford falou de memória a respeito dos elementos básicos sobre o
pecado do homem que o separava de Deus, e o desejo de Deus de tê-lo de volta.
- Todos nós somos pecadores. Antes, eu não aceitava isso. Mas, ao ver que tudo o que minha
mulher disse tornou-se realidade, constatei quem eu era. Sei que existem pessoas piores.
Muita gente dizia que eu era melhor que a maioria, mas eu me sentia indigno diante de Deus.
- Esse é um problema que eu não tenho, Ray. Tudo o que posso dizer sobre mim é que não
passo de um salafrário.
- Está vendo só? A maioria das pessoas o considera um cara legal.
- Talvez. Mas eu me conheço.
- O pastor Billings salientou que a Bíblia diz: "Não há um só justo", que "somos como ovelhas
perdidas" e que "todas as nossas justiças são semelhantes a trapos de imundícia". Isso não me
fez sentir melhor por saber que não era o único. Eu apenas estava grato por existir um plano
para restabelecer minha ligação com Deus. Quando o pastor explicou por que um Deus santo
tinha de punir o pecado mas não queria que nenhum de seus filhos morresse, eu finalmente
comecei a entender. Jesus, o Filho de Deus, o único homem que viveu na terra sem pecado,
morreu pelos pecados de todos nós. Tudo o que tínhamos a fazer era crer, arrepender de
nossos pecados e receber a dádiva da salvação. Seríamos perdoados e "reconciliados" com
Deus, conforme disse o pastor Billings.
- Quer dizer que, se eu acreditar nisso, estou salvo? - indagou Mac.
- Você também tem de acreditar que Deus ressuscitou Jesus dentre os mortos. Isso
proporcionou a vitória sobre o pecado e a morte e também provou que Jesus era divino.
- Eu acredito em tudo isso, Ray, e daí? Estou salvo? O sangue de Rayford gelou nas veias. O que
o estava afligindo? Ele acreditava, mesmo sem ter nenhuma prova, que Amanda estava viva e
agora também estava acreditando na sinceridade de Mac. Isso era fácil demais. Mac presenciara
o caos de quase dois anos do período da Tribulação. Mas isso seria suficiente para convencê-lo?
Ele parecia sincero. Rayford, porém, não o conhecia muito, não conhecia sua história. Mac
poderia ser um espião de Carpathia. Rayford já se expusera ao perigo mortal, caso Mac
estivesse preparando uma armadilha para ele. Rayford orou silenciosamente: "Senhor, como
poderei saber ao certo?"
- Bruce Barnes, meu primeiro pastor, incentivou-me a memorizar a Bíblia. Não sei se voltarei
a encontrar minha Bíblia, mas lembro-me de muitas passagens. Uma das primeiras que aprendi
está em Romanos 10.9-10: "Se com a tua boca confessares a Jesus como Senhor, e em teu
coração creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo. Porque com o coração se
crê para justiça, e com a boca se confessa a respeito da salvação."
Mac olhava firme para a frente, como se estivesse concentrado no vôo. De repente, ele parecia
menos animado. Falava com mais cautela. Rayford não sabia o que fazer.
- O que significa confessar com a boca? - perguntou Mac.
- Significa isso mesmo que você entendeu. Você precisa falar. Precisa falar a quem quer que
seja. Na verdade, você precisa falar a muita gente.
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- Você pensa que Nicolae Carpathia é o anticristo. A Bíblia menciona que devemos falar a ele?
Rayford balançou a cabeça.
- Que eu saiba, não. Poucas pessoas precisam fazer isso. Carpathia conhece minha posição
porque tem ouvidos em todos os lugares. Sabe que meu genro é crente, apesar de Buck nunca
lhe ter contado. Ele acha conveniente guardar isso só para si. - Rayford não sabia se estava
convencendo Mac ou cavando sua própria sepultura.
Mac permaneceu calado por vários minutos. Por fim, deu um suspiro.
- E como isso funciona? Como ficamos sabendo que fizemos o que Deus queria que fizéssemos?
- O pastor Billings orientou como os espectadores daquela fita deviam orar. Devíamos confessar
a Deus que somos pecadores e que necessitamos de seu perdão. Devíamos dizer a Ele que
acreditamos que Jesus morreu por nossos pecados e que Deus o ressuscitou dentre os mortos.
Depois, devíamos aceitar a salvação que Ele nos oferece e agradecer-lhe por isso.
- Parece fácil demais.
- Acredite que teria sido mais fácil ainda se eu tivesse feito isso antes. Mas naquela época não
era tão fácil assim.
Mac voltou a ficar calado por um longo tempo. Cada vez que isso acontecia, Rayford sentia-se
mais abatido. Estaria entregando-se ao inimigo?
- Mac, isso é algo que você deve fazer por conta própria. Se quiser, posso orar com você ou...
- Não. Isso é algo que devo fazer por conta própria. Você estava sozinho, não?
- Estava - disse Rayford.
Mac parecia nervoso. Perturbado. Não olhava para Rayford. Rayford não sabia se devia
pressioná-lo e ainda não tinha certeza se Mac era um futuro convertido ou se estava apenas
fingindo. Se a primeira hipótese fosse verdadeira, ele não queria deixar de convencer Mac só
para demonstrar cortesia.
- O que você acha, Mac? O que vai fazer a esse respeito?
Rayford sentiu o coração estremecer ao ver que Mac não respondia e olhava para o outro lado.
Rayford gostaria de ser clarividente. Também gostaria de saber se havia sido contundente
demais ou se Mac revelaria ser um farsante.
Mac inspirou profundamente e prendeu a respiração. Depois de soltá-la, ele balançou a cabeça.
- Ray, estou satisfeito por você ter-me contado isso. É uma bela história. Impressionante. Estou
comovido. Entendo por que você se converteu, e, com certeza, isso lhe está fazendo bem.
Então era isso? pensou Rayford. Mac o estava dispensando com estas palavras corriqueiras?
- Trata-se de um assunto pessoal e particular, não é mesmo? - prosseguiu Mac. - Quero tomar
muito cuidado para não fingir nem tomar uma atitude precipitada, movido pela emoção do
momento.
- Eu entendo - disse Rayford, querendo desesperadamente saber o que se passava no coração
de Mac.
- Você não vai se ofender se eu lhe disser que preciso de tempo para pensar?
- De jeito nenhum - respondeu Rayford. - Espero que não haja mais nenhum tremor de terra
ou guerra que possa vitimá-lo fatalmente antes de você ter a certeza de que vai para o céu,
mas...
- Tenho de pensar que Deus sabe o quanto estou perto de me decidir e que Ele não permitiria
que isso acontecesse.
- Não posso afirmar que conheço os pensamentos de Deus - disse Rayford. - Só quero lhe
dizer que eu não contaria tanto com a sorte.
- Você está me pressionando?
- Sinto muito. Você está certo. Ninguém pode obrigar ninguém.
Rayford temia ter ofendido Mac. Mac estava fazendo uso da técnica de protelação. Por outro
lado, se Mac fosse um subversivo, seria até capaz de simular uma experiência de salvação só
para agradá-lo. Rayford perguntou a si mesmo quando teria certeza de poder confiar em Mac.
Quando finalmente Buck chegou à loja de móveis, constatou que se tratava de uma construção
precária. Não havia nem sinal de ruas ou estradas por ali, e os veículos de emergência
congestionavam o local, sem deixar espaço ou caminho para pessoas estranhas chegarem até
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a porta da loja. As forças pacificadoras de emergência da Comunidade Global entravam e saíam
transportando alimentos e pacientes.
Buck só conseguiu entrar por causa do nível de autorização que constava em seu crachá de
identificação da Comunidade Global. Ele perguntou pela Sra. Cavenaugh e indicaram-lhe uma
fileira de uma dúzia de catres de madeira e lona encostados em uma parede. Estavam tão
próximos um do outro que não havia condição de caminhar entre eles.
Buck sentiu o odor de madeira recém-cortada e ficou surpreso ao ver duas tábuas sendo
pregadas juntas para fazer um tapume. Os fundos da construção haviam afundado cerca de
um metro, forçando o piso de concreto a partir-se ao meio. Quando Buck chegou perto da
fenda, teve de apoiar-se nas tábuas porque a inclinação era muito acentuada. Blocos de
madeira sustentavam o piso para impedir que os catres deslizassem. O pessoal da emergência
dava passos curtos, prestando muita atenção para não tropeçar em alguma coisa.
Cada catre tinha uma tira de papel presa na parte dos pés, onde constava um nome escrito à
mão ou produzido por computador. Enquanto Buck passava ali, os feridos conscientes viravamse,
apoiando-se nos cotovelos, para ver se era alguém da família, e voltavam à posição anterior
ao constatarem que não o conheciam.
No papel preso ao terceiro catre, lia-se "Cavenaugh, Helen".
Ela estava dormindo. Buck avistou dois homens, um de cada lado dela. Um deles, que parecia
não ter casa para morar, estava sentado de costas para a parede, segurando firme uma sacola
de papel cheia de roupas. Ele lançou um olhar desconfiado para Buck e retirou da sacola um
catálogo de loja de departamentos, ao qual fingia ler com grande interesse.
Do outro lado de Helen Cavenaugh estava um jovem franzino com pouco mais de vinte anos.
Seus olhos moviam-se com rapidez e ele passava as mãos pelos cabelos.
- Preciso de uma tragada - ele disse. - Você tem cigarros?
Buck meneou a cabeça. O homem virou-se de lado, encostou os joelhos no peito e começou a
balançar o corpo. Buck não teria se surpreendido se o visse chupando o polegar.
Cada minuto era crucial, mas que trauma a Sra. Cavenaugh teria sofrido a ponto de dormir
tanto? Ela quase morrera e viu o que restara da casa dela quando a retiraram de lá. Buck
pegou uma cadeira de plástico e sentou-se aos pés do catre. Não a acordaria, mas conversaria
com ela após o primeiro sinal de consciência.
Rayford não sabia desde quando se tornara pessimista. E por que esse pessimismo não
influenciara sua fé inabalável de que Amanda estava viva? Ele não acreditava na insinuação de
Carpathia de que ela vinha trabalhando para a Comunidade Global. Ou seria apenas uma história
inventada por Mac?
Desde que se convertera, Rayford sempre procurou ver o lado bom da situação, apesar de todo
aquele caos. Mas, agora, uma terrível e sombria sensação de mau presságio tomava conta
dele enquanto Mac, ainda em silêncio, pousava o helicóptero. Eles guardaram o helicóptero e
conferiram a lista pós-vôo. Antes de passarem pela guarita para entrarem no abrigo, Mac
disse:
- Isso tudo torna-se ainda mais complicado, capitão, pelo fato de você ser meu chefe.
Tal fato não exercera nenhuma influência durante aquele dia. Eles voaram mais como
companheiros do que como chefe e subordinado. Rayford não teria nenhum problema em
manter o decoro, mas talvez Mac tivesse.
Rayford desejava terminar a conversa de maneira concreta, mas não quis dar um ultimato a
Mac nem cobrar-lhe uma resposta posterior.
- Até amanhã - ele disse.
Mac assentiu. Enquanto ambos dirigiam-se para os seus alojamentos, um funcionário
uniformizado interpelou-os.
- Capitão Steele e piloto McCullum? Dirijam-se ao setor de comando central. - O funcionário
entregou um cartão a cada um deles.
Rayford leu o seu em silêncio: "Compareça ao meu escritório o mais breve possível. Leonardo
Fortunato." Desde quando Leon começara a usar seu primeiro nome por inteiro?
- O que Leon desejaria a esta hora da noite? – ele perguntou.
Mac olhou para o cartão de Rayford.
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- Leon? Estou sendo chamado para uma reunião com Carpathia - ele disse, mostrando seu
cartão a Rayford.
Rayford perguntou a si mesmo se aquilo causara surpresa a Mac ou se seria uma grande
encenação? Os dois não haviam discutido por que Rayford e o restante do Comando Tribulação
acreditavam que Carpathia estampava as características do anticristo. Mesmo assim, Mac
possuía informações suficientes para aniquilar Rayford. E, aparentemente, ele ia conversar com
a pessoa certa.
Buck estava inquieto. A Sra. Cavenaugh parecia saudável, mas continuava deitada imóvel, e
ele mal conseguia ver o tórax dela movimentar-se para cima e para baixo dando sinais de
respiração. Ele foi tentado a cruzar as pernas e dar um leve pontapé por baixo do catre, mas
qual seria a reação de uma senhora idosa? Talvez ela rolasse do catre. Impaciente, Buck ligou
para Tsion. Quando a ligação foi completada, Buck contou-lhe entusiasmado que tinha motivos
para acreditar que Chloe estava viva.
- Que maravilha, Cameron! Eu também estou me saindo bem aqui. Consegui conectar a
Internet e tenho motivos suficientes para voltar para Israel.
- Temos de conversar sobre isso - disse Buck. – Continuo achando muito perigoso e não sei
como faremos para você chegar lá.
- Cameron, há notícias espalhadas por toda a Internet de que a prioridade de Carpathia é
restabelecer os sistemas de transporte.
Buck começou a falar mais alto do que precisava, na esperança de despertar a Sra. Cavenaugh.
- Voltarei o mais rápido que puder e pretendo levar Chloe comigo.
- Orarei por isso - disse Tsion.
Buck acionou o botão de ligação rápida para o número de Rayford.
Rayford surpreendeu-se ao ver que o escritório de Leon era apenas um pouco menor que o de
Nicolae e decorado de maneira tão primorosa quanto o dele. Tudo no abrigo era luxuoso, mas
a opulência começava e terminava naqueles dois escritórios.
Fortunato demonstrava uma expressão carrancuda. Apertou a mão de Rayford, curvou a
cabeça com mesura, gesticulou apontando para uma cadeira e sentou-se atrás de sua mesa.
Rayford sempre olhou com curiosidade para aquele homem de tez e olhos escuros, baixo e
atarracado. Ao sentar-se, Fortunato não desabotoou o paletó, que ficou apertado em seu
peito, pondo a perder toda e qualquer formalidade que ele estava tentando demonstrar.
- Capitão Steele - Fortunato começou a falar, mas, antes de prosseguir, o telefone de Rayford
tocou. Fortunato levantou a mão e abaixou-a logo em seguida, demonstrando não acreditar que
Rayford atenderia uma ligação naquele momento.
- Com licença, Leon, deve ser alguém de minha família.
- Você não pode atender ligações aqui - disse Leon.
- Mas vou atender - disse Rayford. - Ainda não recebi notícias de minha filha e meu genro.
- Estou dizendo que não há condições técnicas de receber ligações aqui - disse Leon. Rayford só
ouviu ruídos de estática. - Estamos abaixo do solo e cercados de concreto. Pense um pouco,
homem.
Rayford sabia que as linhas procedentes do centro estavam ligadas a painéis solares e antenas
parabólicas na superfície. Claro que seu telefone celular não funcionaria ali. Mesmo assim, ele
continuava esperançoso. Poucas pessoas conheciam seu número, e as que conheciam eram as
mais importantes do mundo para ele.
- Sou todo ouvidos, Leon.
- Deduzo que não por vontade própria - disse Leon.
Rayford deu de ombros.
- Chamei-o aqui por alguns motivos - ele prosseguiu.
Rayford perguntou a si mesmo se aquela gente tinha tempo para dormir.
- Recebemos informações sobre sua família, pelo menos sobre parte dela.
- Sério? - perguntou Rayford, inclinando-se para a frente. - Que notícias? De quem? De minha
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filha?
- Não, sinto muito. Sua filha está desaparecida. No entanto, seu genro foi localizado em um
bairro de Chicago.
- São e salvo?
- Pelo que sabemos, sim.
- E como estão as comunicações entre aqui e lá?
Fortunato deu um sorriso condescendente.
- Creio que as linhas estão abertas - ele disse -, mas é claro que não aqui embaixo, a menos que
você use nosso equipamento. Ponto para Fortunato, pensou Rayford.
- Eu gostaria de ligar para ele o mais rápido possível para saber notícias de minha filha.
- Claro. Mas antes deixe-me dizer-lhe mais algumas coisas. As equipes de resgate estão
trabalhando contra o relógio no conjunto onde você morava. Você precisa nos entregar uma
lista detalhada de seus objetos de valor, caso eles consigam encontrar algum. Qualquer objeto
de valor sem prévia identificação será confiscado.
- Isso não faz sentido - disse Rayford.
- Não obstante... - disse Fortunato sem levar em conta a observação de Rayford.
- Mais alguma coisa? - perguntou Rayford, demonstrando ansiedade para sair dali.
- Sim - respondeu Fortunato lentamente. Rayford teve a impressão de que Fortunato estava
protelando para deixá-lo atormentado antes de ligar para Buck. - Um dos conselheiros
internacionais mais confiáveis de Sua Excelência acaba de chegar de Israel. Estou certo de que
você conhece o Dr. Chaim Rosenzweig.
- Claro - disse Rayford. Mas Sua Excelência7. A princípio pensei que você estivesse se referindo a
Mathews.
- Capitão Steele, estou querendo conversar com você sobre protocolo. Você tem-se referido a
mim pelo primeiro nome, o que não é correto. Às vezes, você se refere ao potentado pelo
primeiro nome. Todos nós sabemos que você não demonstra simpatia pela crença do Sumo
Pontífice Peter Mathews; no entanto, é falta de respeito referir-se a ele apenas pelo último
nome.
- Apesar disso, você está usando um título, que há muito tempo tem sido restrito a líderes
religiosos e a realeza, para referir-se a Carpat... hã, Nicolae Carpat... ao potentado Carpathia.
- Sim, e creio que já é tempo de nos referirmos a ele dessa maneira. O potentado tem dado sua
contribuição à união mundial mais que qualquer outra pessoa. Ele é amado pelos cidadãos de
todos os países. E, agora que demonstrou poderes sobrenaturais, Excelência é um título mais
que merecido.
- Demonstrou poderes para quem?
- Ele pediu-me que lhe contasse o que aconteceu comigo.
- Já ouvi a história.
- De mim?
- De outras pessoas.
- Então não vou aborrecê-lo com detalhes, capitão Steele.
Só deixe-me dizer-lhe que, apesar de nossas divergências de ideias, estou disposto a uma
reconciliação após a experiência pela qual passei. Quando alguém é literalmente trazido de
volta à vida, seu modo de pensar muda. Você verá que passarei a respeitá-lo, quer seja
merecedor ou não. E minha atitude será sincera.
- Mal posso esperar. E quanto a Rosen...
- Capitão Steele! Você está sendo sarcástico, e eu fui sincero. E lá vem você de novo. Diga Dr.
Rosenzweig. Esse homem é um dos botânicos mais importantes da História.
- Está bem, Leon. Isto é, Dr. Fortunato...
- Não sou doutor! Você deve referir-se a mim como comandante Fortunato.
- Não sei se vou ser capaz de chamá-lo assim - disse Rayford com um suspiro. - Quando você
conseguiu esse título?
- A bem da verdade, meu título mudou recentemente para supremo comandante. Foi concedido a
mim por Sua Excelência.
- Isso tudo parece uma loucura - disse Rayford. - Você não achava mais divertido quando
éramos apenas Rayford e Leon?
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- Parece que você não consegue levar nada a sério – disse Fortunato fazendo uma careta.
- Vou levar a sério qualquer coisa que você tenha a me dizer sobre Rosenzweig, isto é, Dr.
Rosenzweig.
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OITO
Enquanto aguardava a Sra. Cavenaugh despertar, Buck pensou em dar uma chegada até o
Range Roger para verificar o número do telefone de Ken Ritz em seu computador. Se Ken
pudesse levá-lo com Tsion para Israel, ele também levaria Chloe. Não queria perdê-la de vista
nunca mais.
Buck estava prestes a sair dali quando finalmente a Sra. Cavenaugh remexeu-se no catre. Ele
não queria assustá-la. Limitou-se a observá-la. Quando ela abriu os olhos, ele sorriu. Ela
parecia confusa. Sentou-se e apontou para ele.
- Vocês estão arruinados, moço, não é verdade?
- Arruinados?
- Você e sua mulher. Vocês moravam com Loretta, certo?
- Sim, senhora.
- Mas você não estava lá ontem de manhã.
-Não.
- E sua mulher? Eu a vi! Ela está bem?
- É sobre isso que quero conversar com a senhora. A senhora está em condições?
- Oh, eu estou muito bem! Só não tenho mais onde morar. Aquele inferno me afugentou de lá,
e não quero ver o que restou de minha casa, mas estou muito bem.
- A senhora gostaria de caminhar um pouco?
- É tudo o que quero, mas não irei a lugar nenhum com um homem cujo nome não sei.
Buck desculpou-se e apresentou-se.
- Eu já sabia - ela disse. - Nunca fomos apresentados, mas eu o vi por lá, e Loretta falou-me
sobre você. Conheci sua esposa. Qual é mesmo o nome dela?
- Chloe.
- Ah, é claro! Eu deveria me lembrar, porque gosto muito desse nome. Então, vamos. Ajude-me.
O homem com o polegar na boca não fazia nada, a não ser balançar o corpo. O sem-teto
parecia circunspecto e segurava com força a sacola de roupas. Buck pensou em pedir ajuda a
um deles para levantar a Sra. Cavenaugh do catre. Mas ele não queria provocar uma cena.
Posicionou-se aos pés do catre e estendeu a mão para ela. Assim que ela se sentou em uma
das extremidades daquele frágil leito, a outra começou a dobrar e ficou na posição vertical,
ameaçando cair sobre a cabeça da Sra. Cavenaugh. Buck segurou o catre com a mão e bateu
com tanta força para fazê-lo voltar à posição normal que o sem-teto gritou e o outro deu um
salto e ficou em pé. Buck abriu o catre novamente e empurrou-o para longe. O sem-teto
abaixou a cabeça e encostou-a na sacola de roupas, e Buck não entendeu se ele estava rindo
ou chorando. O outro homem parecia estar pensando que Buck fizera aquilo de propósito. A
Sra. Cavenaugh, que não vira a cena, enroscou o braço no de Buck, e ambos caminharam para
um lugar onde poderiam conversar em particular.
- Eu já disse isto a um jovem da equipe de socorro, mas pensei que toda essa confusão tivesse
sido causada por um tornado. Quem já ouviu falar de terremoto no Meio-Oeste? Já houve
pequenos abalos um pouco mais abaixo, mas não um terremoto dessas proporções que derruba
prédios e mata pessoas. Pensei que fosse esperta, mas fui uma tola. Corri para o porão. Claro
que corri não é o termo certo. Significa que eu não desci um degrau por vez, como costumo
fazer. Desci aquela escada como se fosse uma menina. A única dor que sinto agora é nos
joelhos. Fui até a janela para tentar enxergar a aproximação do tornado. O dia estava claro e
ensolarado, mas o barulho foi ficando cada vez mais alto, e a casa começou a balançar em volta
de mim. Eu continuava achando que se tratava de um tornado. Foi aí que vi sua mulher.
- Onde, exatamente?
- Aquela janela era muito alta para eu enxergar alguma coisa. Eu só via o céu e as árvores.
Tudo balançava. Meu falecido marido tinha deixado uma escada portátil no porão.
Subi por ela para conseguir enxergar a rua. Foi então que sua mulher, Chloe, saiu correndo da
casa. Ela estava carregando alguma coisa. Essa coisa devia ser mais importante do que
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calçar sapatos. Ela estava descalça.
- E para onde ela correu?
- Para o carro. Foi uma estupidez minha, mas gritei para ela. Sua mulher tentava abrir o carro
com a mão que estava
livre, e eu continuei a gritar: "Não fique aí fora, moça!" Eu esperava que ela se desvencilhasse
do que estava carregando e entrasse no carro antes que o tornado chegasse, mas ela nem
sequer olhou para cima. Finalmente, conseguiu abrir o carro e dar partida, e foi então que
tudo começou a tremer. Juro que uma das paredes do porão saiu do lugar. Nunca vi coisa
semelhante em minha vida. O carro começou a rodar, e a árvore enorme da casa de Loretta foi
levantada do chão com raiz e tudo, levando junto metade do jardim. A árvore caiu na rua,
provocando um estrondo, bem na frente do carro de sua mulher. Ela deu marcha à ré, e a
árvore do outro lado do jardim de Loretta começou a tombar. Continuei gritando para a moça
como se ela pudesse me ouvir de dentro do carro. Eu tinha certeza de que a segunda árvore
cairia bem em cima do carro. Ela fez uma manobra para a esquerda, e o asfalto inteiro subiu e
ficou na posição vertical. Se ela tivesse manobrado o carro em direção ao asfalto um segundo
antes, a rua teria caído por cima dela. Sua mulher deve ter levado um tremendo susto, imagine
só, uma árvore obstruindo sua passagem, a outra, ameaçando tombar sobre ela, e a rua inteira
levantando-se do chão. Ela contornou rapidamente a primeira árvore e entrou na garagem. Eu
estava torcendo por ela. Esperava que ela se lembrasse de descer ao porão. Mesmo sem ver o
tornado, eu não acreditava que ele pudesse causar tamanho estrago. Quando ouvi tudo caindo
no chão como se a casa inteira estivesse se despedaçando - bem, é claro que estava - minha
cabeça dura entendeu que não se tratava de um tornado. As duas outras árvores do jardim de
Loretta tombaram, e os vidros da janela do porão espatifaram-se. Desci da escada e corri para o
outro lado. Quando os móveis da sala da frente despencaram bem no lugar onde eu havia
estado, passei por cima da bomba da fossa e me aproximei de um vão aberto na parede. Eu
estava completamente confusa. Só esperava que Chloe pudesse me ouvir. Gritei como louca
naquele vão. Ela apareceu na porta lateral da casa, branca como um fantasma, ainda descalça
e sem nada na mão. Correu para o quintal o mais rápido que pôde. Foi a última vez que a vi. O
resto de minha casa desabou, e a tubulação inclinou-se um pouco, deixando apenas um
pequeno espaço, onde fiquei até alguém me encontrar.
- Fico satisfeito ao ver que a senhora está bem.
- A cena foi terrível. Espero que você encontre Chloe.
- A senhora se lembra da roupa que ela estava usando?
- Claro. Um daqueles vestidos soltos, de cor creme.
- Obrigado, Sra. Cavenaugh. Ela fixou o olhar em um ponto distante e balançou a cabeça
vagarosamente. Chloe ainda está viva, pensou Buck.
- A primeira coisa que o Dr. Rosenzweig perguntou foi se você estava bem, capitão Steele.
- Mal conheço esse homem, Supremo Comandante Fortunato - disse Rayford, acentuando bem
as palavras.
- Comandante é suficiente, capitão.
- Pode me chamar de Ray.
Fortunato ficou zangado.
- Eu poderia chamá-lo de recruta - ele disse.
- Oh, um ótimo título, comandante.
- Você não vai conseguir me tirar do sério, capitão. Já lhe disse que sou um novo homem.
- Novinho em folha - disse Rayford -, se for verdade que estava morto ontem e está vivo hoje.
- A verdade é que o Dr. Rosenzweig também perguntou por seu genro, por sua filha e por Tsion
Ben-Judá.
Rayford gelou. Rosenzweig não podia ter sido tão estúpido assim. Por outro lado, Buck sempre
disse que Rosenzweig estava fascinado por Carpathia. Ele não sabia que Carpathia era tão
inimigo de Ben-Judá quanto o Estado de Israel. Rayford não desviou os olhos de Fortunato,
cujo semblante demonstrava ter certeza de que Rayford estava com a corda no pescoço.
Rayford orou silenciosamente.
- Eu o coloquei a par de tudo e contei que sua filha está desaparecida - disse Leon. Ele parou
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de repente, deixando o assunto no ar. Rayford não esboçou nenhuma reação. - E o que você
tem para nos contar a respeito de Tsion Ben-Judá?
- O que eu tenho para contar? - disse Rayford. - Não faço ideia de seu paradeiro.
- Então, por que o Dr. Rosenzweig perguntou sobre ele logo após ter mencionado sua filha e seu
genro?
- Por que você não faz essa pergunta a ele?
- Por que estou fazendo a pergunta a você, capitão! Você pensa que não estamos sabendo que
Cameron Williams ajudou e incentivou a fuga dele do Estado de Israel?
- Você acredita em tudo o que ouve?
- Sabemos que é verdade - disse Fortunato.
- Então, por que vocês precisam que eu lhes forneça mais detalhes?
- Queremos saber onde Tsion Ben-Judá se encontra. O Dr. Rosenzweig acha importante que Sua
Excelência socorra o Dr. Ben-Judá.
Rayford estava na escuta na ocasião em que aquele pedido fora feito a Carpathia. Nicolae caíra
na gargalhada, dizendo a seu pessoal que deixaria transparecer que estava ajudando Ben-
Judá, mas que, na verdade, estaria informando os inimigos do rabino sobre seu paradeiro.
- Mesmo que eu soubesse onde Tsion Ben-Judá está - disse Rayford - não revelaria a você.
Antes, eu precisaria pedir autorização a ele.
Fortunato levantou-se. Aparentemente, a reunião chegara ao fim. Ele conduziu Rayford até a
porta.
- Capitão Steele, sua deslealdade não vai levá-lo a lugar algum. Vou dizer-lhe novamente que
agora sou um homem de paz. Peço-lhe o favor de não dar a entender ao Dr. Rosenzweig que
Sua Excelência está tão ansioso quanto ele para saber do paradeiro do Dr. Ben-Judá.
- E por que eu lhe faria um favor?
Fortunato levantou as mãos e balançou a cabeça.
- Eu desisto - ele disse. - Nicolae, o poten... Sua Excelência tem mais paciência que eu. Você
nunca seria meu piloto.
- Concordo plenamente, Supremo Comandante. No entanto, na próxima semana serei o piloto
do avião que vai buscar o restante da rapaziada da Comunidade Global.
- Entendo que você está se referindo aos outros líderes mundiais.
- E a Peter Mathews.
- O Sumo Pontífice, sim. Mas ele não pertence à CG.
- Mas tem muito poder - disse Rayford.
- Sim, porém mais no âmbito popular que no diplomático.
Ele não tem nenhuma autoridade política.
- Você é que está dizendo.
Buck conduziu a Sra. Cavenaugh de volta a seu catre, mas, antes de ajudá-la a acomodar-se,
aproximou-se de uma mulher encarregada de supervisionar aquela área e perguntou-lhe:
- Ela precisa ficar no meio destes dois malucos?
- Você pode colocá-la em qualquer catre vazio – respondeu a mulher. Só não se esqueça de
levar junto o adesivo com o
nome dela.
Buck levou a Sra. Cavenaugh até um catre perto de outras pessoas idosas. A caminho da porta,
ele abordou a mulher novamente.
- Que providências vocês estão tomando a respeito de pessoas desaparecidas?
- Pergunte a Ernie - ela respondeu, apontando para um homem de baixa estatura e meiaidade
que demarcava algo em um mapa pendurado na parede. - Ele trabalha para a CG
e é o encarregado da transferência de pacientes de um abrigo para outro.
Ernie não lhe deu muita atenção.
- Pessoas desaparecidas? - ele repetiu, continuando a demarcar o mapa, sem olhar para
Buck. - De modo geral, quase todas serão encontradas mortas. São tantas que não
sabemos por onde começar.
Buck retirou uma foto de Chloe da carteira.
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- Comece por aqui - ele disse.
Finalmente, Ernie lhe deu atenção. Analisou a foto, virando-a em direção à iluminação gerada
por bateria. -Caramba! - ele exclamou. - Sua filha?
- Ela tem 22 anos. Para ser seu pai, eu precisaria ter pelo menos 40.
- E daí?
- Tenho 32 - ele disse, atónito por demonstrar tanta vaidade em um momento como aquele. -
É minha mulher, e fiquei sabendo que ela conseguiu fugir de nossa casa antes de ter sido
destruída pelo terremoto.
- Mostre-me onde fica sua casa - disse Ernie, virando-se para o mapa. Buck apontou o
quarteirão onde Loretta morava. - Hummm. Não é um bom lugar. O terremoto foi mundial,
mas a CG detectou vários epicentros. Aquela parte de Monte Prospect estava muito perto do
epicentro ocorrido na zona norte de Illinois.
- Então foi pior ali?
- Não houve nenhum lugar bom, mas este foi o pior deste Estado. - disse Ernie, apontando para
uma faixa de mais de um quilómetro partindo em linha reta dos fundos da casa de Loretta até o
lugar onde eles se encontravam. - Foi o lugar mais devastado. Ela não teria sido capaz de
atravessar por ali.
- Para onde ela teria ido?
- Não sei dizer. Mas posso fazer alguma coisa. Vou tirar uma cópia ampliada da fotografia dela e
enviá-la por fax para os outros abrigos. É tudo o que posso fazer.
- Eu lhe seria muito grato.
Ernie fez todo aquele trabalho sozinho. Buck ficou impressionado com a nitidez da cópia
ampliada.
- Só conseguimos fazer esta máquina funcionar há cerca de uma hora - disse Ernie. -
Evidentemente, ela funciona por sistema celular. Você já ouviu falar da empresa de
comunicações do potentado?
- Não - disse Buck com um suspiro. - Mas não ficarei surpreso se você me contar que ele
monopolizou o mercado.
- E isso é bom - disse Ernie. - A empresa chama-se Celular-Solar, e o mundo inteiro será ligado
novamente em um piscar de olhos. A sede da Comunidade Global abreviou o nome para Cel-Sol.
Ernie escreveu o seguinte na foto ampliada: "Pessoa Desaparecida: Chloe Irene Steele Williams.
22 anos. 1,68 de altura. 57 kg. Cabelos loiros. Olhos verdes. Nenhuma cicatriz ou sinal
característico." Ele acrescentou seu nome e número de telefone.
- Diga-me onde posso encontrá-lo, Williams. Não tenha muitas esperanças.
- Tarde demais para me dizer isso, Ernie - disse Buck, escrevendo o número de seu telefone.
Ele agradeceu e virou-se para sair. De repente, voltou.
- Você disse que o pessoal da sede chama o sistema de comunicações do potentado de Cel-Sol?
- Sim. É a abreviação de...
- Celular-Solar, eu sei. - Buck saiu, balançando a cabeça.
Enquanto entrava no Range Rover, ele sentiu um completo desânimo. Mas não podia
abandonar aquela sensação de que Chloe estava por ali. Resolveu seguir para a casa de Loretta
por outro caminho. Continuaria a procurá-la. Sempre.
Já era tarde, e Rayford estava cansado. O escritório de Carpathia estava fechado, mas por
baixo da porta via-se luz acesa. Ele supôs que Mac ainda estivesse lá. Sempre cauteloso,
Rayford não confiava que Mac fosse leal a ele. Naquele momento, Mac devia estar revelando
tudo o que ouvira durante o dia.
Sua prioridade antes de dormir era tentar ligar para Buck. Um funcionário do posto de
comando das comunicações lhe informou que ele teria de pedir permissão a um superior para
usar uma linha externa. Rayford surpreendeu-se.
- Veja o nível de minha credencial - ele disse.
- Lamento, senhor. Estou cumprindo ordens.
- Quanto tempo você vai ficar aqui? - perguntou Rayford.
- Mais vinte minutos, senhor.
69
Rayford sentiu-se inclinado a interromper a reunião de Carpathia com Mac. Sabia que Nicolae
lhe daria permissão para usar o telefone, e, se entrasse na sala sem ser anunciado,
demonstraria que não tinha nada a temer sobre a reunião de Sua Excelência o Potentado com
seu subordinado. Porém, pensou melhor quando viu Fortunato desligar a luz de seu escritório e
trancar a porta.
Rayford interpelou-o animadamente, dizendo sem nenhum traço de sarcasmo:
- Senhor comandante Fortunato, tenho um pedido a lhe fazer.
- Pois não, capitão Steele.
- Necessito da permissão de um superior para usar uma linha telefónica externa.
- E você vai ligar para...?
- Meu genro nos Estados Unidos.
Fortunato encostou-se na parede com as pernas separadas e cruzou os braços.
- Que interessante, capitão Steele! Você acha que o Leonardo Fortunato da semana passada teria
atendido a esse pedido?
- Não sei. Provavelmente, não.
- Se eu lhe desse permissão, a despeito da maneira como você me tratou esta noite, isso lhe
serviria como prova de que mudei?
- Bem, já seria um bom sinal.
- Sinta-se à vontade para usar o telefone, capitão. Fale o tempo que precisar, e faço votos que
você encontre tudo bem em casa.
- Obrigado - disse Rayford.
Enquanto dirigia, Buck orava por Chloe, imaginando que ela estava em lugar seguro e que
simplesmente aguardava notícias dele. Ele ligou para Tsion a fim de contar-lhe as novidades,
mas não ocupou a linha por muito tempo. Tsion parecia abatido, perturbado. Algo o
atormentava, mas Buck não quis prosseguir a conversa, para manter a linha desocupada.
Ele abriu seu laptop e verificou o número de Ken Ritz. Alguns instantes depois, atendeu uma
secretária eletrônica: "Estou voando, comendo, dormindo ou falando na outra linha. Deixe seu
recado."
Os curtos bips que indicavam as mensagens já recebidas por Ken Ritz pareciam intermináveis.
Buck começou a impacientar-se, não querendo ocupar sua linha por muito tempo. Finalmente,
soou um bip mais longo. "Ken", ele disse. "Aqui é Buck Williams. Os dois que você ajudou a
retirar de Israel com seu avião precisam retornar brevemente para lá. Ligue para mim."
Rayford não podia acreditar que o telefone de Buck estivesse ocupado. Fechou o telefone com
força e aguardou alguns minutos para discar novamente. Ocupado de novo! Rayford deu um
soco na mesa. O jovem supervisor do sistema de comunicações disse:
- Temos um dispositivo que continua a discar o número automaticamente e deixa um recado.
- Se eu deixar um recado para a pessoa me chamar neste número você me acordaria?
- Infelizmente, não. Mas o senhor pode pedir que a pessoa ligue às sete horas da manhã, no
início do expediente.
Buck estava em dúvida quanto à secretária eletrônica de Ritz. E se ele tivesse morrido no
terremoto? Ritz morava sozinho, e a secretária poderia gravar recados até preencher todo o
espaço.
Quando ele estava a meia hora de distância da casa de Donny e Sandy, seu telefone tocou.
"Meu Deus, tomara que seja Ernie", ele suplicou.
- Buck falando.
"Buck, esta é uma mensagem gravada de Rayford. Lamento muito não ter conseguido falar com
você. Por favor, ligue para mim neste número às sete horas da manhã, meu horário. Aí deverá
ser 22 horas, se você estiver na região central dos Estados Unidos. Estou orando para que Chloe
esteja bem. E orando também por você e pelo nosso amigo, claro. Quero saber tudo o que
aconteceu. Continuo à procura de Amanda. Meu coração diz que ela ainda está viva. Ligue para
mim."
70
Buck olhou para o seu relógio. Por que ele não poderia ligar para Rayford naquele momento?
Buck pensou em ligar para Ernie, mas não queria irritá-lo. Resolveu ir ao encontro de Tsion.
Assim que entrou na casa, Buck percebeu algo estranho. Tsion não o fitava nos olhos.
- Não encontrei nenhuma barra de metal para espetar o quintal. - disse Buck. Você localizou o
abrigo?
- Sim - disse Tsion secamente. - Trata-se de uma duplicata do abrigo da igreja onde morei.
Você quer vê-lo?
- O que há de errado, Tsion?
- Precisamos conversar. Você quer ver o abrigo?
- Isso pode esperar. Só quero saber como você o localizou.
- Você não vai acreditar que estivemos muito perto dele ontem à noite quando realizamos
aquela tarefa desagradável. A porta que parece ser de uma despensa conduz a outra bem
maior. O abrigo fica depois dessa porta. Vamos orar para que nunca precisemos usá-lo.
- Devíamos agradecer a Deus sua existência, caso precisarmos usá-lo - disse Buck. - Mas o que
está havendo? Já passamos por muitas situações juntos para você começar a esconder coisas
de mim.
- Não estou escondendo de você para proveito meu – disse Tsion. - Se eu fosse você, não
gostaria de ouvir o que tenho a lhe dizer.
Buck afundou-se numa cadeira.
- Tsion! Não venha me dizer que o assunto tem a ver com Chloe!
- Não, não. Lamento muito, Cameron. Não é nada disso. Continuo orando por ela. A verdade é
que os diários encontrados na maleta de Donny me fizeram tomar conhecimento de uma coisa
que eu não desejava saber.
Tsion sentou-se com o mesmo semblante abatido de quando sua família foi trucidada. Buck
pousou a mão no braço do rabino.
- Tsion, o que está havendo?
Tsion levantou-se, olhou pela janela por cima da pia e depois virou-se encarando Buck. Com as
mãos nos bolsos, ele caminhou até a porta corrediça que separava a cozinha da saleta
reservada para o café da manhã. Buck esperava que ele não abrisse a porta. Não queria
lembrar-se do momento em que retirou o corpo de Sandy Moore de sob a árvore. Tsion abriu a
porta e caminhou até o ponto em que o assoalho havia sido serrado.
Buck estava chocado com a excentricidade do local em que se encontrava e com o que via à
sua frente. Como ele chegara àquela situação? Havia estudado em uma das melhores
faculdades dos Estados Unidos e mudara-se para Nova York no auge de sua profissão. Agora
estava vivendo em uma pequena casa geminada de um bairro de Chicago, que pertencera a
um casal falecido que ele mal conheceu. Em menos de dois anos, ele viu milhões de pessoas
desaparecerem do planeta, tornou-se crente em Cristo, conheceu o anticristo e passou a
trabalhar para ele, apaixonou-se e casou-se, conquistou a amizade de um famoso conhecedor
da Bíblia e sobreviveu a um terremoto.
Tsion fechou a porta e caminhou de volta com passos arrastados. Sentou-se exausto com os
cotovelos apoiados na mesa e cobriu o rosto angustiado com as mãos. Finalmente, ele disse:
- Donny era um génio, Cameron, e isso não é nenhuma novidade. Fiquei intrigado com seus
diários, mas não tive tempo de ler todos. Depois de descobrir o abrigo, resolvi examiná-lo.
Impressionante. Em seguida, passei algumas horas dando alguns toques finais em um dos
estudos muito bem elaborados de Bruce Barnes. Acrescentei alguns estilos de linguagem que,
em minha modesta opinião, darão mais clareza ao texto, e depois tentei conectar a Internet.
Você vai gostar de saber que fui bem-sucedido em minhas tentativas.
- Espero que você tenha ocultado seu endereço eletrônico.
- Assimilei bem suas orientações. Enviei a mensagem para uma central divulgadora de boletins.
Espero e oro para que a maioria das 144.000 testemunhas leia a mensagem, tire proveito dela
e me mande comentários. Vou verificar isso amanhã. Há muitas informações de péssima
qualidade na Internet, Cameron. Espero que os crentes não se deixem levar por elas. Buck
assentiu.
- Mas estou me desviando do assunto - prosseguiu Tsion. - Quando terminei meu trabalho, voltei
a examinar os diários de Donny desde o início. Até agora, só consegui ler um quarto do total.
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Quero terminar a leitura, mas estou muito triste.
- Por quê?
- Antes de tudo, quero dizer-lhe que Donny era um crente verdadeiro. Ele fez um relato
eloquente de seu remorso por ter perdido sua primeira chance de aceitar a Cristo. Contou
sobre a perda do bebé e como sua mulher encontrou Deus. Ele descreveu de maneira muito
triste e comovente como ambos voltaram a sentir um pouco de alegria diante da possibilidade
do reencontro que teriam com o filho. Peço a Deus que tenha sido assim. - A voz de Tsion
começou a tremer. - Mas, Cameron, encontrei por acaso uma informação que não gostaria de
ter descoberto. Talvez eu não devesse ter lido. Donny ensinou Bruce a escrever mensagens
cifradas que não poderiam ser lidas sem uma senha. Você deve lembrar-se de que ninguém
conhecia aquela senha. Nem Loretta. Nem mesmo Donny.
- É verdade - disse Buck. - Cheguei a perguntar a Donny.
- Donny devia estar protegendo a privacidade de Bruce quando lhe disse que não a conhecia.
- E Donny conhecia a senha de Bruce? Poderíamos tê-la usado. Havia informações de cerca de
um gigabyte às quais nunca conseguimos ter acesso no computador de Bruce.
- Donny não conhecia a senha - disse Tsion -, mas criou seu próprio programa de
decodificação e incluiu-o em todos os computadores que lhe vendeu. Conforme você sabe,
durante o tempo em que estive no abrigo, transferi para o meu computador - que tinha uma
capacidade imensa de armazenamento de dados - tudo o que havia no de Bruce. Tínhamos
também aqueles milhares e milhares de páginas impressas, que muito me ajudaram quando
meus olhos se cansavam de ficar diante da tela. No entanto, achei que seria bom fazer um
backup eletrônico daquele material.
- Você não foi o único a fazer isso - disse Buck. – Esse material deve estar no computador de
Chloe e talvez no de Amanda.
- Não deixamos nada de fora. Até os arquivos cifrados foram copiados porque, se fôssemos
escolher, teríamos retardado o processo. Mas nunca tivemos acesso a eles.
- Até hoje, certo? - disse Buck fitando o teto. - É sobre isso que você deseja me falar?
- Infelizmente, sim - disse Tsion.
Buck levantou-se.
- Se você está prestes a contar-me alguma coisa que vai prejudicar minha estima por Bruce e
sua memória - ele disse -, tome muito cuidado. Ele foi o homem que me conduziu a Cristo,
que me ajudou a crescer espiritualmente e...
- Fique tranquilo, Cameron. Minha estima pelo pastor Barnes só aumentou depois do que li.
Encontrei os arquivos decodificadores em meu computador. Apliquei-os aos arquivos de Bruce
e, após alguns minutos, tudo pôde ser lido em minha tela. Os arquivos não estavam
bloqueados. Confesso que dei uma olhada e percebi que muitos eram de natureza pessoal. Na
maior parte, lembranças de sua mulher e filhos. Ele escreveu sobre seu remorso de tê-los
perdido, de não ter ido com eles, esse tipo de coisa. Senti-me culpado e não li tudo. Mas meu
antigo modo de ser me atraiu para ler outros arquivos particulares. Cameron, confesso que isso
me deixou extremamente alvoroçado. Pensei ter encontrado outros estudos preciosos de Bruce,
mas achei melhor não me atrever a imprimir o que vi. Está no computador em meu quarto. Por
mais doloroso que seja, você precisa ver.
Buck queria dar uma olhada no que Tsion encontrara. Mas ele subiu a escada com a mesma
relutância que sentira ao cavar os escombros da casa de Loretta. Tsion acompanhou Buck até o
quarto e sentou-se na beira de uma cama alta que rangia quando ele se movimentava. Havia
uma cadeira de plástico dobrável diante do toucador sobre o qual estava o laptop de Tsion. O
descanso de tela exibia a mensagem "Eu Sei Que Meu Redentor Vive".
Buck sentou-se e limpou o teclado com os dedos. A data do arquivo indicava que havia sido
iniciado duas semanas depois que ele oficiara a dupla cerimónia de casamento de Buck com
Chloe e de Rayford com Amanda.
Buck falou ao microfone do computador: "Abrir documento."
Na tela, lia-se o seguinte:
Diário de oração pessoal. 6h35 da manhã: Minha pergunta desta manhã, Pai, é o que devo
fazer com esta informação? Não sei se é verdadeira, mas não posso ignorá-la. Sinto o peso de
minha responsabilidade como pastor e mentor do Comando Tribulação. Se uma pessoa intrusa
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está comprometendo nosso trabalho, preciso enfrentar a questão.
Será possível? Será verdade? Não me vanglorio de ter poderes especiais de discernimento,
contudo gostei muito dessa mulher, confiei e acreditei nela desde o momento em que a
conheci. Considerei-a perfeita para Rayford, e ela pareceu ser uma mulher muito dedicada
espiritualmente.
Buck levantou-se com tanta força que a cadeira tombou no chão. Ele curvou-se sobre o laptop
com as palmas da mão apoiadas sobre o toucador. Não pode ser Amanda! ele pensou. Por
favor! Que mal ela poderia ter causado?
O diário de Bruce prosseguia:
"Eles estão planejando visitar-me em breve. Buck e Chloe virão de Nova York, e Rayford e
Amanda, de Washington. Nessa época, estarei retornando de uma viagem internacional.
Precisarei ter uma conversa reservada com Rayford e mostrar-lhe o que encontrei. Nesse
ínterim, não posso fazer nada, uma vez que eles estão muito próximos da Carolina do Norte.
Senhor, dá-me sabedoria."
O coração de Buck batia acelerado, e ele ofegava.
- E onde está o tal arquivo? - ele perguntou. - O que ele soube e de quem conseguiu a
informação?
- Está anexo ao diário do dia anterior.
- Seja o que for que esteja lá, não vou acreditar.
- Sinto a mesma coisa, Cameron, bem no fundo de meu coração. E, apesar disso, aqui
estamos, em completo desespero.
Buck falou ao microfone: "Dia anterior. Abrir documento."
Ele leu:
"Meu Deus, sinto-me igual a Davi quando recusaste a dar-lhe uma resposta. Davi suplicou que
tu não desses as costas para ele. A minha súplica de hoje é a mesma. Sinto-me
completamente desolado. Como devo proceder?"
"Abrir anexo", disse Buck.
A mensagem tinha sido enviada da Europa. Estava endereçada a Bruce, mas seu sobrenome
tinha sido escrito erroneamente. Barns. O remetente era "um amigo interessado".
"Rolar o texto", disse Buck, sentindo o estômago embrulhar. Quando o computador respondeu,
o telefone tocou em seu bolso.
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NOVE
Ele atendeu ao telefone.
- Buck falando.
- Estou tentando falar com Cameron Williams, da Revista Semanário Global.
- Sou eu mesmo.
- Aqui fala o tenente Ernest Kivisto. Conversamos hoje de manhã.
- Sim, Ernie. Que notícias você conseguiu?
- Em primeiro lugar, preciso dizer-lhe que o pessoal da sede está à sua procura.
- O pessoal da sede?
- O chefão. Ou pelo menos alguém próximo a ele. Na tentativa de ampliar a busca, enviei
aquela fotografia, via fax, para todos os Estados vizinhos. Nunca se sabe, pensei.
Se ela estiver ferida ou conseguiu escapar, deve ter procurado abrigo em algum lugar. Deu
certo, porque alguém reconheceu o nome. Um homem chamado Kuntz disse que o conhecia.
Não sei explicar como, mas seu nome foi parar no centro de processamento de informações, e
soubemos que a sede está à sua procura.
- Obrigado. Vou me apresentar.
- Sei que não sou seu chefe e que não posso obrigá-lo a nada, mas, como fui a última pessoa a
vê-lo, vou ser repreendido se você não se apresentar.
- Eu disse que vou me apresentar.
- Não estou pressionando você. Só estou dizendo que...
Buck estava cansado de precisar submeter-se a essa espécie de vigilância militar. Mas esse era
o homem a quem ele teria de recorrer se Chloe fosse localizada.
- Ernie, agradeço tudo o que você está fazendo por mim e fique tranquilo que ligarei para a
sede e mencionarei que foi você quem me deu o recado. Você poderia soletrar seu
sobrenome?
Ernie soletrou seu sobrenome.
- Agora vou lhe dar uma boa notícia. Um funcionário do Cel-Sol recebeu o fax. Ele me criticou
por eu ter enviado a fotografia para todos os lugares. Disse que eu não devia ter
congestionado a rede inteira da CG para transmitir o boletim de uma pessoa desaparecida. Mas
disse também que eles viram uma moça com as características de sua mulher sendo colocada
em uma daquelas ambulâncias tipo furgão no fim da tarde de ontem.
- Onde?
- Não sei exatamente, mas foi entre aquele quarteirão que você me indicou e o local onde me
encontro neste momento.
- A área é muito grande, Ernie. Você não tem mais nenhum detalhe?
- Sinto muito, gostaria de ter.
- Posso falar com esse funcionário?
- Duvido. Ele disse que estava acordado deste o começo do terremoto. Agora deve estar
dormindo em um dos abrigos.
- Não vi nenhuma ambulância tipo furgão no abrigo que você toma conta.
- Estamos aceitando apenas pessoas com ferimentos leves.
- A moça estava muito machucada?
- Aparentemente, não. Se estivesse em estado grave, teria sido levada para... espere um
pouco... Kenosha. Dentro dos limites da cidade, há dois hotéis muito próximos um do outro
que se transformaram em hospitais.
Ernie forneceu a Buck o número do telefone do centro médico de Kenosha. Buck agradeceu-lhe
e perguntou:
- Se eu não conseguir completar a ligação, existe alguma possibilidade de chegar lá de carro?
- Seu carro tem tração nas quatro rodas?
- Sim.
- Você vai precisar disso. Todas as pontes da 1-94 foram destruídas daqui até Madison. Há dois
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lugares por onde você poderá passar, mas antes de chegar à ponte seguinte, terá de rodar por
estradas de pista única, cidadezinhas ou campos abertos e torcer para que tudo dê certo.
Milhares de pessoas estão tentando. A situação está caótica. Não há alternativa, uma vez que
não possuo um helicóptero.
- Ligue antes para mim. Não faz sentido tentar uma aventura como essa por nada.
Buck tinha a sensação de que Chloe estava por perto. Talvez estivesse ferida, mas pelo menos
estava viva. O que ela pensaria sobre o caso de Amanda?
Buck voltou a rolar o texto do diário de Bruce e encontrou o e-mail que o pastor havia recebido.
A mensagem do "amigo interessado" dizia o seguinte:
"Suspeite da senhora "root beer" (N. da T: Bebida sem álcool feita de raízes). Investigue seu
nome de solteira e tome cuidado porque ela é espia da Nova Babilónia. Forças militares
especiais não são nada quando comparadas às fontes de informações que eles possuem.
Insurreição começa em casa. Batalhas são perdidas no campo, mas guerras são perdidas
dentro de casa." Buck virou-se e encarou Tsion.
- O que você deduziu disto?
- Alguém estava avisando Bruce sobre um dos componentes do Comando Tribulação. Temos
apenas duas mulheres. A única cujo nome de solteira Bruce desconhecia só poderia ser
Amanda. Continuo não entendendo por que essa pessoa se referiu a ela como "root beer".
- Por causa das iniciais dela.
- A.W. - disse Tsion em voz baixa enquanto endireitava a cadeira de Buck. - Não estou
entendendo.
- A&W é uma antiga marca de bebida sem álcool feita de raízes, produzida neste país - disse
Buck. - Como Amanda pode ser considerada espia de Carpathia? É isso que devemos entender
quando a tal pessoa falou em Nova Babilónia? O segredo está no nome de solteira - disse
Tsion. – Eu pretendia buscar algumas informações, mas Bruce já tinha feito isso. O sobrenome
de solteira de Amanda era Recus, o que não significava nada para Bruce e o deixou atordoado
por alguns instantes.
- Para mim também não significa nada - disse Buck.
- Bruce foi mais fundo. Aparentemente, o sobrenome de solteira da mãe de Amanda, antes de
casar-se com Recus, era Fortunato.
Buck empalideceu e afundou-se na cadeira novamente.
- Bruce deve ter tido a mesma reação - disse Tsion. – Ele escreveu aqui: "Por favor, Senhor,
não permitas que seja verdade. O que significa aquele nome?"
- O homem de confiança de Carpathia, que não passa de um parasita - disse Buck com um
suspiro -, chama-se Leonardo Fortunato.
Buck voltou a concentrar-se no computador de Tsion.
"Fechar arquivos. Recodificar. Abrir ferramenta de busca. Encontrar Chicago Tnbune. Abrir busca
por nome. Ken ou Kenneth Ritz, Illinois, E.U.A."
- O nosso piloto! - disse Tsion. - Finalmente, você me levará para casa!
- Só quero saber se o sujeito ainda está vivo.
Ritz estava relacionado "entre pacientes em condição estável, Arthur Young Memorial Hospital,
Palatine, Illinois".
- Por que todas as notícias boas só se referem a outras pessoas?
Buck discou o número de Kenosha que Ernie lhe fornecera. Estava ocupado. E continuou
ocupado por mais 15 minutos.
- Continuarei tentando enquanto estivermos na estrada - ele disse.
- Estrada?
- É só modo de falar - disse Buck, consultando seu relógio, que marcava pouco mais de 19
horas de terça-feira.
Duas horas depois, ele e Tsion ainda estavam em Illinois. O Rover sacolejava lentamente ao
lado de centenas de outros carros que ziguezagueavam rumo ao norte. A mesma quantidade
de carros vinha em sentido contrário, a uma distância de 15 a 30 metros da 1-94, onde
anteriormente os veículos corriam a 130 quilómetros por hora ou mais em ambas as direções.
Enquanto Buck procurava caminhos alternativos ou tentava ultrapassar os veículos mais lentos,
Tsion manejava o telefone. Eles o haviam ligado no acendedor de cigarros para economizar
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bateria, e a cada minuto ou pouco mais Tsion apertava o botão de rediscagem. Ou o número
de Kenosha estava congestionado ou não estava funcionando.
Pelo segundo dia consecutivo, Rayford foi despertado por Mac McCullum, seu co-piloto. Pouco
depois das 6h30 da manhã de quarta-feira na Nova Babilónia, Rayford ouviu uma batida na
porta, leve mas insistente. Ele sentou-se na cama, enrolado no lençol e cobertores.
- Só um minuto - ele resmungou, imaginando que fosse a ligação de Buck. Abriu a porta e, ao
ver que era Mac, desabou na cama. - É muito cedo ainda. O que houve?
Mac acendeu a luz, fazendo com que Rayford escondesse o rosto no travesseiro.
- Eu consegui, capitão. Eu consegui!
- Conseguiu o quê? - disse Rayford, com a voz abafada pelo travesseiro.
- Eu orei. Consegui orar.
Rayford virou-se, cobrindo o olho esquerdo com a mão e olhando para Mac com o direito
semicerrado.
- Sério?
- Sou um crente, rapaz. Você acredita?
Ainda protegendo os olhos da claridade, Rayford estendeu a mão livre para apertar a de Mac.
Mac sentou-se na beira da cama de Rayford.
- Rapaz, isso é maravilhoso! - ele disse. - Acordei há poucos minutos e resolvi deixar de
pensar e tomei uma decisão.
Rayford sentou-se de costas para Mac, esfregando os olhos. Passou as mãos pelos cabelos
caídos na testa, quase cobrindo as sobrancelhas.
Poucas pessoas tiveram a oportunidade de vê-lo naquelas condições.
Como Rayford devia proceder? Ele nem sequer perguntara a Mac como havia transcorrido sua
reunião com Carpathia na noite anterior. Como seria bom se Mac estivesse falando a verdade.
Mas, e se tudo não passasse de uma grande encenação, um conluio para enredá-lo e deixá-lo
sem ação? Só podia ser um plano de Carpathia a longo prazo - deixar pelo menos um membro
da oposição fora de combate.
Enquanto não tivesse absoluta certeza, tudo o que Rayford podia fazer naquele momento era
fingir que acreditava. Se Mac tinha capacidade para simular uma conversão e encenar uma
emoção tão grande, Rayford também tinha capacidade de fingir estar comovido. Depois que
seus olhos acostumaram-se à claridade, ele virou-se e encarou Mac. Elegante como sempre, o
co-piloto trajava seu uniforme. Rayford nunca o vira mal vestido. Mas o que seria aquilo?
- Você já tomou banho hoje, Mac?
- Sim, como sempre. Por quê?
- Porque você está com uma mancha na testa.
Mac passou os dedos logo abaixo da linha dos cabelos.
- Não saiu - disse Rayford. - A mancha parece aquilo que os católicos usam na quarta-feira de
cinzas.
Mac levantou-se e foi olhar no espelho pendurado na parede do quarto de Rayford. Aproximouse
bem do espelho, virou de um lado e de outro.
- Do que você está falando, Ray? Não vejo nada.
- Talvez tenha sido alguma sombra - disse Rayford.
- Eu tenho sardas, você sabe.
Quando Mac virou-se, Rayford viu nitidamente a mancha de novo. Sentiu-se um tolo por estar
fazendo tanto alarde a respeito disso, mas sabia que Mac era muito cuidadoso com a aparência.
- Você não consegue vê-la? - perguntou Rayford levantando-se, segurando Mac pelos ombros
e forçando-o a olhar no espelho novamente.
Mac olhou de novo e balançou a cabeça negativamente. Rayford empurrou-o mais para perto
do espelho e inclinou-se até seus rostos ficarem lado a lado.
- Está bem ali! - ele disse, apontando para o espelho. Mac continuava olhando, sem enxergar
nada. Rayford virou o rosto de Mac de frente para ele, colocou um dedo no local e
o fez olhar novamente no espelho. - Aqui. A mancha, que parece ter sido produzida por
carvão, tem o tamanho da impressão digital de um polegar.
Mac curvou os ombros e meneou a cabeça.
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- Ou você está vendo coisas ou estou cego - ele disse.
- Espere um pouco - disse Rayford lentamente. Um arrepio percorreu sua espinha. - Deixe-me
ver essa mancha novamente.
Mac parecia desconfortável por ter Rayford muito perto de seu rosto, quase encostando seu
nariz no dele.
- O que você está procurando? - Mac perguntou.
- Não diga nada!
Segurando Mac pelos ombros, Rayford prosseguiu:
- Mac - disse ele solenemente -, você conhece aquelas imagens em 3-D que parecem borradas
até conseguirmos vê-las com nitidez?
- Ah, sim, e você vai me dizer que está vendo isso.
- Sim! Ela está aí! Posso ver!
- O quê?!
- Uma cruz! Oh, palavra de honra! É uma cruz, Mac!
Mac soltou-se dele e voltou a se olhar no espelho. Inclinou-se até quase encostar no vidro e
afastou o cabelo da testa.
- Por que eu não consigo ver nada?
Rayford aproximou-se do espelho e afastou o cabelo da testa.
- Espere! Será que tenho uma também? Não, não vejo nada.
Mac empalideceu.
- Tem, sim - ele disse. - Deixe-me chegar mais perto.
Rayford mal conseguia respirar enquanto Mac o observava.
- Incrível! - disse Mac. - É uma cruz. Eu posso ver a sua, e você, a minha; mas você não vê
a sua, tampouco eu vejo a minha.
Buck sentia o pescoço e os ombros tensos e doloridos.
- Acho que você nunca dirigiu um veículo como este, Tsion - ele disse.
- Não, irmão, mas estou disposto a dirigi-lo.
- Não, eu estou bem - disse Buck, olhando para o relógio.
- Falta menos de meia hora para eu ligar para Rayford.
A fila de carros sem destino finalmente cruzou os limites de Wisconsin, e o tráfego desviou
para o oeste da via expressa. Milhares começaram a desbravar novos caminhos. A velocidade
máxima permitida era de 50 a 55 quilómetros por hora, mas sempre havia motoristas malucos
que se aproveitavam da situação porque as leis haviam deixado de existir. Quando entrou no
perímetro urbano de Kenosha, Buck pediu orientações de direção a uma funcionária da Força
Pacificadora da Comunidade Global.
- Siga mais ou menos cinco quilómetros no sentido leste - disse-lhe a moça. - O local não
parece um hospital. São dois...
- Hotéis, sim, eu sei.
O tráfego dentro de Kenosha era mais livre que o anterior rumo ao norte, mas em breve
congestionou-se também. Buck chegou até um quilómetro e meio de distância do hospital. As
forças da CG estavam desviando o trânsito, deixando claro que o acesso aos hotéis só poderia
ser feito a pé. Buck estacionou o Range Rover e dirigiu-se para o leste na
companhia de Tsion.
Quando eles avistaram os hotéis, já estava na hora de ligar para Rayford.
- Mac - disse Rayford, tentando conter as lágrimas. - Mal posso acreditar nisto. Orei pedindo
um sinal, e Deus respondeu. Eu precisava de um sinal. Como podemos saber em quem confiar
nesta época?
- Eu imaginei - disse Mac. - Estava ansioso à procura de Deus e sabia que você tinha o que eu
necessitava, mas fiquei com medo de você desconfiar de mim.
- De fato, achei que você estivesse a serviço de Carpathia, mas já havia falado demais.
Mac olhava fixamente para o espelho enquanto Rayford se vestia. De repente, a porta do
quarto abriu-se após uma rápida batida. Um jovem assistente do centro de comunicações
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disse:
- Com licença, senhores, há uma ligação para o capitão Steele.
- Já estou indo - disse Rayford. - Mas, antes, diga-me uma coisa. Eu tenho uma mancha na
testa, bem aqui?
O jovem examinou a testa de Rayford e disse:
- Não, senhor. Acho que não.
Rayford olhou para Mac. Em seguida, vestiu uma camiseta, enfiando-a por dentro da calça, e
seguiu pelo corredor de meias. Alguém como Fortunato - ou, pior ainda, Carpathia -poderia
levá-lo à corte marcial por aparecer vestido daquela maneira diante de seus subordinados. Ele
sabia que não poderia continuar a trabalhar para o anticristo por muito tempo.
Em pé e em silêncio nas terras devastadas de Wisconsin, Buck segurava com força o telefone
colado ao ouvido. Por fim, Rayford atendeu dizendo rapidamente:
- Buck, responda apenas sim ou não. É você que está na linha?
-Sim.
- Este telefone não é confiável; portanto, diga-me como
está o pessoal sem mencionar nomes, por favor.
- Eu estou bem - disse Buck. - O mentor está bem e em lugar seguro. Acreditamos que ela
escapou. Estou perto de me encontrar com ela.
- E os outros?
- A secretária morreu. O técnico do computador e a esposa também.
- Isso é muito triste.
- Eu sei. E você?
- Fui informado de que Amanda afundou no Tigre com o avião da Pan-Con em que ela voava -
disse Rayford.
- Pelas informações recebidas da Internet, ela está relacionada na lista de passageiros, mas
você não está acreditando nisso, certo?
- Não. Só vou acreditar quando a vir com meus próprios olhos.
- Entendo. Rapaz, que bom ouvir sua voz!
- Que bom ouvir a sua também! E sua família?
- Na lista dos desaparecidos, mas é o que acontece com quase todas as pessoas.
- E quanto ao prédio e à casa?
- Desabaram.
- Você tem onde morar? - perguntou Rayford.
- Sim. Estou tentando não aparecer muito.
Eles combinaram de trocar e-mails e desligaram. Buck virou-se para Tsion:
- Ela não poderia ser tão dissimulada. Ele é muito perspicaz, muito atento.
- Talvez estivesse cego de amor - disse Tsion. Buck lançou-lhe um olhar penetrante. - Cameron,
eu não quero acreditar nisso tanto quanto você. Mas, aparentemente, Bruce tinha fortes
suspeitas.
Buck balançou a cabeça.
- É melhor você ficar por aqui, meio escondido, Tsion.
- Por quê? No momento, ninguém vai querer se preocupar comigo.
- Talvez, mas, com o sistema de comunicações da CG, o mundo passou a ser pequeno. Se
Chloe estiver aqui, eles sabem que vou aparecer mais cedo ou mais tarde. E, se ainda
estiverem à sua procura e se Verna Zee quebrou nosso acordo e me delatou a Carpathia, é
provável que eles esperem encontrar você comigo.
- Você tem uma mente criativa, Buck. E paranóica também.
- Talvez. Mas é melhor não arriscar. Se eu estiver sendo seguido quando sair já tendo Chloe ao
meu lado, assim espero -, não se aproxime. Vou pegá-lo a cerca de 200 metros a oeste de onde
estacionei o carro.
Buck caminhou no meio do caos. Além do som ensurdecedor de equipamentos e vozerio de
funcionários competindo para provar quem tinha mais autoridade, ouvia-se também muitos
gritos. Tudo tinha de ser rápido, e não havia tempo para gentilezas.
Buck levou tempo para atrair a atenção de uma mulher da recepção. Ela parecia estar
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cuidando da admissão de pacientes, fazendo também uma espécie de triagem. Ele conseguiu
chegar perto da mulher depois de abrir caminho entre duas macas, cada uma delas com
pacientes ensanguentados que pareciam sem vida.
- Com licença, senhora, estou à procura desta mulher - disse ele, mostrando-lhe uma cópia do
fax que Ernie divulgara.
- Pelo que vejo, ela não deve estar aqui - resmungou a mulher. - Ela tem nome?
- O nome está na fotografia - disse Buck. - Será que vou precisar ler o nome dela em voz alta?
- Não me venha com sarcasmo, companheiro. Para dizer a verdade, eu preciso que você leia o
nome dela para mim.
Buck atendeu ao pedido dela.
- Não reconheço o nome, mas dei entrada a centenas de pacientes hoje.
- Quantos sem nome?
- Talvez um quarto. A maioria estava dentro ou debaixo de suas casas, e tivemos muito
trabalho para verificar os endereços. Quase todos os que estavam fora de casa portavam
documento de identidade.
- Digamos que ela estava fora de casa, não portava nenhum documento e não tinha condições
de falar.
- Então nós dois teremos de adivinhar. Não temos alas especiais para pessoas não-identificadas.
- Eu posso dar uma olhada por aí?
- O que você pretende fazer? Verificar cada paciente?
- Se for necessário, sim.
- Não pode, a menos que seja funcionário da CG e...
- Eu sou - disse Buck exibindo sua credencial.
- ... não obstrua o caminho.
Buck percorreu o primeiro hotel inteiro, parando diante do leito de cada paciente nãoidentificado.
Passou direto por pacientes de grande estatura e não perdeu tempo com pessoas
de cabelos grisalhos ou brancos. Quando ele via uma mulher franzina como Chloe, parava e a
examinava atentamente.
Ele já estava a caminho do outro hotel quando um homem negro e alto saiu de uma sala,
trancando a porta. Buck cumprimentou-o com um movimento de cabeça e continuou a andar,
mas o homem notou o fax em sua mão.
- Procurando alguém?
- Minha mulher - respondeu Buck, exibindo a fotografia.
- Eu não a vi, mas talvez você queira verificar aqui.
- Mais pacientes?
- Aqui é o nosso necrotério, senhor. Não precisa entrar, se não quiser, mas eu tenho a chave.
- Talvez seja melhor - Buck disse, mordendo os lábios.
Buck postou-se atrás do homem enquanto ele destrancava a porta. No entanto, quando a
porta foi empurrada, não abriu completamente, e Buck foi de encontro ao homem. Ele
desculpou-se. O homem virou-se para trás.
- Não foi n... - ele disse, parando e olhando fixamente para o rosto de Buck. - Você está bem?
Sou médico.
- Oh, a minha bochecha. Está tudo bem. Levei um tombo.
Parece que está tudo bem, não?
O médico aprumou a cabeça para examinar melhor.
- Parece ser superficial. Pensei ter visto um hematoma em sua testa, logo abaixo da linha dos
cabelos.
- Não há nada. Não me lembro de ter batido a testa em lugar nenhum.
- Algumas pancadas podem causar hemorragia subcutânea. Não é perigoso, mas, depois de
um ou dois dias a pessoa fica com aparência de guaxinim. Você se importaria se eu examinasse
mais atentamente?
Buck deu de ombros.
- Estou com um pouco de pressa. Mas vá em frente.
O médico retirou um par de luvas de borracha sem uso de dentro de uma caixa em seu bolso e
calçou-as.
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- Oh, por favor, não perca muito tempo com isto – disse Buck. - Não sofro de doença
nenhuma.
- Talvez não - disse o médico, afastando os cabelos de Buck da testa. - Não posso dizer o
mesmo a respeito de todos aqueles corpos com os quais tenho de lidar. - Eles se encontravam
dentro de uma sala enorme, cujo piso estava abarrotado de corpos cobertos por lençóis.
- Você tem uma marca aqui - disse o médico, apalpando o local. - Dói?
- Não. E sabe de uma coisa? - disse Buck. - Você também tem uma coisa diferente na testa.
Parece uma mancha.
O médico passou a mão enluvada na testa e disse:
- Talvez eu tenha segurado algum jornal.
O médico ensinou a Buck como cobrir novamente a cabeça de cada corpo com o lençol. Ele
deveria examinar atentamente o rosto e deixar o lençol cair novamente.
- Não perca tempo com esta fileira. É só de homens.
Buck sobressaltou-se ao ver o primeiro corpo. Era o de uma mulher idosa, sem dentes e com os
olhos arregalados.
- Sinto muito - disse o médico. - Não manipulei os corpos. Alguns parecem estar dormindo.
Outros ficaram deste jeito. Desculpe-me, eu não queria assustá-lo.
Buck tornou-se mais cauteloso e murmurava uma oração desesperada antes de levantar cada
lençol. Sentia-se horrorizado ao ver tantos mortos, mas agradecia a Deus todas as vezes que
constatava que o corpo não era o de Chloe. Quando terminou a verificação, Buck agradeceu ao
médico e dirigiu-se para a porta. O médico olhou-o com curiosidade e, depois de pedir licença,
esfregou a "mancha" de Buck mais uma vez com o polegar, como se pudesse removê-la dali.
- Desculpe-me - ele disse, dando de ombros.
Buck abriu a porta.
- A sua também continua aí, doutor.
No primeiro quarto do outro hotel, Buck avistou duas senhoras de meia-idade que pareciam
ter fugido de uma guerra. Quando estava saindo do quarto, ele viu sua imagem num espelho.
Afastou o cabelo da testa. Não havia nada ali.
O elevador demorou tanto que Buck pensou em subir pelas escadas. Mas, finalmente, o
elevador chegou, e ele conseguiu entrar, balançando a fotografia de Chloe na ponta dos dedos.
Um médico corpulento e mais velho que o outro tomou o elevador no terceiro andar e olhou
firme para a fotografia. Buck levantou-a até o nível dos olhos.
- Com licença - disse o médico, estendendo a mão para pegar a fotografia. - Parente sua?
- Minha mulher.
- Eu a vi.
Buck sentiu um nó na garganta.
- Onde ela está?
- Você não gostaria de saber como ela está?
- Ela está bem?
- Quando eu a vi pela última vez, estava viva. Vamos descer no quarto andar para conversar.
Buck tentava conter sua euforia. Chloe estava viva, e isso era o mais importante de tudo.
Ambos desceram do elevador, e o médico grandalhão fez um gesto chamando-o a um canto.
- Eu sugeri que ela fosse submetida a uma cirurgia, mas não temos condições de operar
ninguém aqui. Se eles seguiram meus conselhos, devem tê-la levado para Milwaukee, Madison
ou Mineápolis.
- O que houve com ela?
- A princípio, pensei que tivesse sido atropelada. O lado direito estava muito machucado desde
o tornozelo até a cabeça. Parece que pedaços de asfalto penetraram naquele lado do corpo;
ela quebrou alguns ossos e talvez tenha fraturado o crânio, tudo do mesmo lado. Mas, se ela
tivesse sido atropelada no asfalto, apresentaria lesões também do outro lado. E não havia
nada lá, a não ser uma leve escoriação no quadril.
- Ela vai sobreviver?
- Não sei. Não temos raio X nem aparelhos de ressonância magnética aqui. Não faço ideia se os
ferimentos atingiram os ossos ou alguns órgãos internos. No entanto, posso imaginar o que
aconteceu com sua mulher. Acho que ela foi atingida por uma parte do telhado, que a
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derrubou no chão, causando aquele ferimento. Ela foi trazida até aqui numa ambulância
tipo furgão. Creio que estava inconsciente, e ninguém sabe quanto tempo levou para ser
atendida.
- Ela recuperou a consciência?
- Sim, mas não foi capaz de comunicar-se.
- Ela não conseguiu falar?
- Não. E também não apertou minha mão, nem piscou os olhos, nem balançou a cabeça.
- Você tem certeza de que ela não está aqui?
- Não seria bom se ela estivesse aqui. Estamos enviando todos os casos graves para
Milwaukee, Madison ou Mineápolis, conforme eu já lhe disse.
- Quem pode me informar para onde ela foi transportada?
O médico apontou para o fim do corredor.
- Pergunte àquele homem ali o que foi feito da Mãe Coelha.
- Muito obrigado - disse Buck, andando apressado em direção ao corredor. De repente, ele
parou e deu meia-volta.
- Mãe Coelha?
- Percorremos o alfabeto várias vezes para dar um nome às mães não-identificadas. No
momento em que sua mulher chegou, não havia tempo para encontrarmos uma palavra
mais apropriada.
- Mas ela não é.
- Não é o quê?
- Mãe.
- Bem, se sua mulher e o bebé sobreviverem, ela será mãe dentro de mais ou menos sete
meses.
O médico afastou-se dali a passos largos. Buck quase perdeu os sentidos.
Sentados diante da mesa do café da manhã, Rayford e Mac planejavam o extenso roteiro que
fariam com o condor 216 a partir de sexta-feira.
- O que Sua Excelência queria ontem à noite? – perguntou Rayford.
- Sua Excelência?
- Ainda não lhe informaram que é assim que devemos chamá-lo de agora em diante?
- Oh, irmão!
- Recebi essas instruções diretamente de Leon, ou, melhor dizendo, do "Supremo Comandante
Leonardo Fortunato".
- Então, esse é o novo título dele? - perguntou Mac.
Rayford assentiu. Mac balançou a cabeça. - Esses caras estão cada vez mais partidários da
linha-dura. Carpathia só queria saber por quanto tempo eu achava que você continuaria a
trabalhar para ele. Eu disse a ele que isso não era da minha conta, mas ele acha que você
anda muito agitado. Eu também disse a Carpathia que ele deveria passar por cima daquele
pequeno incidente perto do aeroporto. Ele já se esqueceu do assunto. Mencionou que poderia
ter sido muito rígido com você, mas, como não foi, esperava que você continuasse trabalhando
para ele por mais uns tempos.
- Quem sabe? - disse Rayford. - E o que mais?
- Ele queria saber se eu conhecia seu genro. Eu respondi que sabia quem ele era mas que não
o conheço pessoalmente.
- Por que você acha que ele lhe fez essa pergunta?
- Não sei. Ele estava tentando ser bonzinho comigo por algum motivo. Talvez quisesse extrair
mais informações sobre você. Disse que achava estranho ter recebido um relatório confidencial
mencionando que o Sr. Williams, conforme ele gosta de chamar seu genro, tinha sobrevivido,
mas ainda não dera notícias. Contou-me que o Sr. Williams era editor do Semanário
Comuniáade Global, como se isso fosse novidade para mim.
- Buck ligou-me hoje cedo. Tenho certeza de que a ligação foi grampeada ou até mesmo
gravada. Se eles queriam tanto falar com Buck, por que não interceptaram a ligação e
resolveram o problema na hora?
- Talvez estejam dando corda para ele se enforcar. Por quanto tempo você acha que Carpathia
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continuará confiando num crente que ocupa essa posição?
- A lua-de-mel já terminou. Você precisa tomar suas próprias decisões, Mac, mas, se eu fosse
você, não me precipitaria em declarar que sou um recém-convertido.
Ninguém pode ver estas marcas, a não ser nossos companheiros de fé.
- Sim, mas e quanto àquele versículo que manda "confessar com a boca"?
- Não faço ideia. Será que as regras prevalecem em tempos como estes? Você acha que deve
confessar sua fé ao anticristo? Eu não sei responder.
- Bem, já confessei minha fé a você. Não sei se basta, mas, por enquanto, você está certo.
Serei mais útil a você dessa maneira. Se eles não souberem, não ficarão ofendidos, e isso
só poderá nos ajudar.
82
DEZ
Com um nó na garganta, Buck orou silenciosamente enquanto caminhava em direção ao
médico no fim do corredor: "Senhor, permite que ela esteja viva. Não faço questão de saber
onde Chloe está, desde que tomes conta dela e de nosso bebé." Alguns instantes depois, ele
estava dizendo:
- Mineápolis! Fica a quase 500 quilómetros daqui.
- Levei seis horas de carro para chegar lá na semana passada - disse o médico. - Mas penso
que as montanhas tão lindas que fazem parte do cenário do lado oeste de Wisconsin e que
contornam Tomah devem ter-se transformado em montinhos depois do terremoto.
Rayford e Mac estavam a caminho do Condor 216 para verificar as condições de vôo da
aeronave. Rayford passou o braço ao redor do ombro de Mac e puxou-o para perto de si.
- Há uma coisa que quero lhe mostrar quando estivermos a bordo - ele cochichou. - Foi
instalada para mim por um amigo que não está mais entre nós.
Rayford ouviu passos atrás de si. Era um jovem uniformizado trazendo uma mensagem que
dizia o seguinte: "Capitão Steele: Favor comparecer imediatamente ao meu escritório para uma
breve reunião comigo e com o Dr. Chaim Rosenzweig, de Israel. Não o segurarei por muito
tempo. Assinado: Supremo Comandante Leonardo Fortunato."
- Obrigado - disse Rayford. - Diga-lhe que já estou indo. - Ele virou-se para Mac e deu de
ombros.
- Existe alguma possibilidade de ir de carro a Minnesota? -perguntou Buck.
- Claro, mas você levaria a vida inteira - respondeu o médico.
- Quais seriam minhas chances de pegar uma carona em um daqueles aviões Medivac?
- Isso está fora de cogitação.
Buck mostrou-lhe sua credencial.
- Trabalho para a Comunidade Global - ele disse.
- Não é o que a maioria faz?
- Como posso descobrir se ela foi transportada para lá?
- Se ela não tivesse ido para lá, teríamos sido informados. Ela está lá.
- E se aconteceu o pior, ou se ela... você sabe...
- Também seríamos informados. A informação está no computador para que todos possam
tomar conhecimento.
Buck desceu quatro lances de escada e saiu do outro lado do segundo hotel. Esquadrinhou o
estacionamento e avistou Ben-Judá no lugar onde o deixara. Dois oficiais uniformizados da CG
conversavam com ele. Buck prendeu a respiração. Por um motivo ou outro, a conversa não
parecia hostil. Dava a impressão de uma brincadeira entre amigos.
Tsion virou-se e começou a afastar-se dos oficiais. Depois de dar alguns passos, virou-se
novamente e lhes acenou timidamente. Ambos responderam ao aceno e Tsion continuou a
caminhar. Buck perguntou a si mesmo para onde Tsion estava indo. Diretamente para o Rover
ou para o local combinado?
Buck permaneceu nas sombras enquanto Ben-Judá passava serenamente diante dos hotéis e
dirigia-se para um terreno pedregoso, devastado pelo terremoto. Quando Ben-Judá já estava
quase fora de visão, os homens da CG começaram a segui-lo. Buck suspirou e orou para que
Tsion fosse esperto o suficiente para não conduzi-los até o Range Rover. Vá para o
local combinado, amigo, ele pensou, e pare a uns 200 metros adiante desses bobocas.
Buck movimentou o corpo de um lado para o outro a fim de descontrair-se e acelerar a
corrente sanguínea. Passou lentamente pelos fundos do segundo hotel, contornou os fundos
do primeiro, e saiu no estacionamento, mantendo uma distância de 50 metros à esquerda dos
oficiais da CG. Andava com passos lentos e firmes como se estivesse fazendo uma caminhada
noturna. Se os oficiais o viram, não prestaram atenção. Eles estavam concentrados no homem
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idoso de estatura baixa. Buck esperava que, se Tsion tivesse notado sua presença, não o
chamasse nem o seguisse.
Havia muito tempo que Buck não fazia esse tipo de caminhada de mais de um quilómetro e
meio, principalmente assustado como estava. Quando chegou ao local onde estacionara o
Range Rover, ele estava ofegante. Havia uma fila de carros estacionados ali, e ele teve de
procurar o seu.
Tsion caminhava com passos arrastados, tentando encontrar caminho no meio dos escombros.
Os homens da CG continuavam a 100 metros ou pouco mais atrás dele. Buck imaginou que
Tsion sabia que estava sendo seguido. Ele não se dirigiu para o carro, mas para o local
combinado. Quando Buck deu a partida e acendeu os faróis, Tsion tocou o nariz com a mão e
acelerou o passo. Buck passou com o Ranger por alguns caminhos livres, sacolejando de um
lado para o outro, mas na velocidade certa para interceptar Tsion. O rabino apertou o passo, e
os homens da CG começaram a correr. Buck rodava a cerca de 50 quilómetros por hora, uma
velocidade inadequada para aquele terreno irregular. Sacudindo-se no banco e preso apenas
pelo cinto de segurança, Buck inclinou o corpo para a direita e levantou a maçaneta da porta
do passageiro. Quando ele parou na frente de Tsion, a porta abriu-se. Tsion agarrou-se na
maçaneta interna e Buck pisou fundo no acelerador. A porta voltou a fechar com força e bateu
no traseiro de Tsion, atirando-o de atravessado no banco, perto do colo de Buck. Tsion ria
histericamente.
Atordoado, Buck olhou para ele, deu uma guinada para a esquerda e acelerou o carro tão
rapidamente que os homens da CG não tiveram tempo de ver a cor do veículo, e muito menos
o número da chapa.
- O que há de tão engraçado? - ele perguntou a Tsion, que gargalhava tanto a ponto de verter
lágrimas.
- Eu me chamo José Padeiro - disse Tsion, com um sotaque americano ridiculamente
elaborado. – Sou proprietário de uma padaria e asso pães para você, e por isso meu nome é
José Padeiro! - Ele não conseguia parar de rir e cobriu o rosto, deixando que as lágrimas
corressem.
- Você ficou louco? - perguntou Buck. - O que houve?
- Aqueles oficiais! - disse Tsion, apontando para trás por cima dos ombros. - Aqueles cães de
caça espertos e muito bem treinados! - Ele ria tanto que mal conseguia respirar.
Buck também foi forçado a rir. Ele havia pensado que jamais voltaria a sorrir.
Tsion continuava cobrindo os olhos com uma das mãos. Com a outra, ele fez um gesto dando a
entender a Buck que precisava de um tempo para acalmar-se antes de contar a história.
Finalmente, ele conseguiu falar.
- Eles me cumprimentaram de maneira cordial. Tomei muito cuidado. Camuflei meu sotaque
hebraico e não falei muito, esperando que eles se cansassem e fossem embora. Mas os dois
continuaram a me encarar sob a luz fraca do local. Por fim, perguntaram quem eu era. - Tsion
começou a rir novamente e teve de recompor-se. - Foi aí que eu disse: "Meu nome é José
Padeiro. Sou padeiro e tenho uma padaria."
- Não acredito! - exclamou Buck, caindo na gargalhada.
- Eles me perguntaram de onde eu era, e eu lhes pedi que adivinhassem. Um dos oficiais disse
que eu era da Lituânia, e eu apontei para ele, sorri e disse: "Sim! Sim, sou José Padeiro, da
Lituânia!"
- Você é louco!
- Sim - disse Tsion. - Mas não sou um bom ator?
-É.
- Eles me perguntaram se eu tinha documentos. Eu lhes disse que estavam na padaria. Contei
que tinha saído para dar um passeio a fim de ver os estragos. Minha padaria não sofreu
nenhum dano, você sabe.
- Fiquei sabendo.
- Eu os convidei para visitarem minha padaria e comerem umas rosquinhas grátis. Eles
disseram que talvez fossem e pediram o endereço da Padaria do José. Eu lhes disse que
seguissem no sentido oeste, onde encontrariam o único estabelecimento da Rota 50 que
continuava em pé. Eu disse também que Deus deve gostar de rosquinhas, e eles riram.
84
Quando decidi ir embora, despedi-me deles com um aceno, mas os dois começaram a me
seguir. Eu tinha certeza de que você saberia onde me encontrar se eu não estivesse no local
combinado. Mas me preocupei, porque, se você demorasse mais tempo nos hotéis, eles teriam
me alcançado. Como sempre, Deus estava cuidando de nós.
- Você já conhece o Dr. Rosenzweig, tenho certeza - disse Fortunato.
- Claro, comandante - disse Rayford cumprimentando Chaim com um aperto de mão.
Como sempre, Rosenzweig deixava transparecer todo o seu entusiasmo. Ele era um
septuagenário franzino como um duende, de feição afável, rosto marcado por linhas
acentuadas e tufos de cabelos brancos encaracolados que teimavam em parecer sempre
despenteados.
- Capitão Steele! - ele disse. - Que prazer vê-lo novamente! Eu estou aqui para saber notícias
de Cameron, seu genro.
- Conversei com ele esta manhã, e ele está bem. – Rayford olhava Rosenzweig diretamente
nos olhos, na esperança de fazê-lo lembrar-se do assunto confidencial. - Todos estão bem,
doutor - ele disse.
- E o Dr. Ben-Judá? - indagou Rosenzweig.
Rayford sentiu o olhar de Fortunato cravado nele.
- O Dr. Ben-Judá?
- Claro que você o conhece. Ele é um antigo protegido meu. Cameron ajudou-o a livrar-se dos
zelotes de Israel, com a ajuda do poten..., isto é, de Sua Excelência Carpathia.
Leon pareceu gostar de ver Rosenzweig empregar o título correto, e disse:
- Sua Excelência tem o senhor em alto conceito, doutor. E o senhor sabe disso. Prometemos
fazer tudo o que estiver a nosso alcance.
- E para onde Cameron o levou? - perguntou Rosenzweig.
- E por que ele não comunicou o fato à Comunidade Global?
Rayford lutava para manter o controle.
- Se o que o senhor está dizendo for verdade, Dr. Rosenzweig, não tive participação nisso.
Acompanhei a notícia da tragédia que se abateu sobre o rabino e de sua fuga, mas eu estava
aqui.
- Com certeza, o seu genro lhe contou...
- Conforme eu já lhe disse, doutor, não tive conhecimento nenhum desse fato. Eu nem sequer
sabia que a Comunidade Global estava envolvida.
- Então ele não levou Tsion para os Estados Unidos?
- Não tenho ideia do paradeiro do rabino. Meu genro está nos Estados Unidos, mas não tenho
condições de dizer se está com o Dr. Ben-Judá.
Rosenzweig curvou os ombros e cruzou os braços.
- Oh, isso é terrível! - ele disse. - Eu tinha muita esperança de saber que ele está em lugar
seguro. A Comunidade Global poderia dar-lhe uma tremenda ajuda e protegê-lo. Cameron
duvidava do quanto Sua Excelência Carpathia preocupava-se com Tsion, mas ele provou isso
quando ajudou a tirá-lo do país!
Que história Fortunato e Carpathia teriam contado ao Dr. Rosenzweig? Fortunato resolveu falar.
- Conforme eu lhe disse, doutor, nós providenciamos homens treinados e equipamentos para
escoltar o Sr. Williams e o rabino Ben-Judá até a fronteira de Israel com o Egito. A partir dali,
eles fugiram, aparentemente de avião, saindo de Al Arish e sobrevoando o Mediterrâneo.
Evidentemente, esperávamos ser informados o mais rápido possível, mesmo que fosse apenas
para uma simples manifestação de agradecimento. Se o Sr. Williams acha que o Dr. Ben-Judá
está em lugar seguro, mesmo que seja ele quem o tenha escondido, não temos nada contra.
Simplesmente queremos colaborar até o senhor nos dizer que não será mais necessário.
Rosenzweig inclinou-se para a frente e disse gesticulando:
- Esta é a questão! Eu não gostaria de deixar o assunto nas mãos de Cameron. Ele é um
homem muito ocupado, importante para a Comunidade Global. Sei que quando Sua Excelência
pede sua ajuda, ele atende. E depois da história pessoal que você acaba de me contar,
comandante Fortunato, bem... esse assunto é muito mais complicado para o meu jovem amigo
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Nicolae... perdoe minha familiaridade com ele... do que aparenta à primeira vista!
Passava da meia-noite no Meio-Oeste. Buck já contara a Tsion as novidades sobre Chloe. Agora
ele estava falando ao telefone com o Arthur Young Memorial Hospital de Palatine.
- Já entendi. Diga-lhe que é seu velho amigo, Buck.
- Senhor, o estado do paciente não é grave, mas ele está dormindo. Não posso dizer-lhe nada
esta noite.
- Tenho urgência de falar com ele.
- O senhor já disse isso. Por favor, tente de novo amanhã.
- Eu só...
Cliqne.
Buck não percebeu que havia uma estrada em reconstrução à sua frente e freou o carro quase
em cima de uma barreira. Um guarda de trânsito aproximou-se.
- Sinto muito, senhor, mas vou ter de segurá-lo aqui por alguns minutos. Estamos
preenchendo uma fissura.
Buck deixou o carro na posição de estacionar e encostou a cabeça no espaldar do banco.
- Então, o que você acha, Zé Padeiro? Devemos fazer um teste com Ritz até Minneapolis antes
que ele nos leve para Israel?
Tsion sorriu ao ouvir Buck chamá-lo de Zé Padeiro, mas de repente seu semblante voltou a ficar
sério.
- O que houve? - perguntou Buck.
- Espere um pouco - disse Tsion.
Uma escavadeira a poucos metros de distância tinha virado na direção deles e seus faróis
iluminaram o Range Rover.
- Eu não notei que você também tinha machucado a testa - disse Tsion.
Buck endireitou o corpo rapidamente e olhou no espelho retrovisor.
- Não vejo nada. Você é a segunda pessoa esta noite que disse ter visto alguma coisa em
minha testa. - Ele afastou os cabelos. - Onde? O que é?
- Olhe para mim - disse Tsion, apontando para a testa de Buck.
- Ei, olhe para você! - disse Buck. - Há alguma coisa em sua testa também.
Tsion ajeitou o espelho retrovisor.
- Não há nada - ele resmungou. - Você está brincando comigo.
- Tudo bem - disse Buck, frustrado. - Deixe-me ver novamente. De fato, a sua continua aí. E a
minha?
Tsion balançou a cabeça afirmativamente.
- A sua se parece com aquelas imagens em 3-D – disse Buck. - A minha também é assim?
- A mesma coisa. Parece uma sombra ou um machucado ou... o que mais pode ser? Uma
saliência?
- Sim - disse Buck. - Ei! É igual a um daqueles quebra-cabeças que parecem um punhado de
varetas até a gente inverter a imagem na mente e conseguir enxergar o segundo plano como
se fosse o primeiro, e vice-versa. Há uma cruz em sua testa.
Tsion olhava com ar de ansiedade para Buck. De repente, ele disse:
- Sim, Cameron! Nós temos o selo que só os outros crentes conseguem enxergar.
- Do que você está falando?
- O capítulo 7 de Apocalipse menciona que "os servos de nosso Deus" receberão um selo na
testa. Deve ser isso!
Buck não havia percebido que alguém estava acenando para ele prosseguir. O guarda
aproximou-se do carro.
- O que há com vocês? O caminho está livre!
Buck e Tsion entreolharam-se, com um sorriso amarelo. Depois, caíram na gargalhada e
prosseguiram a viagem. De repente, Buck deu uma freada brusca.
- O que foi? - indagou Tsion.
- Encontrei um outro crente lá!
- Lá onde?
- No hospital! O médico negro, responsável pelo necrotério, também tinha o mesmo sinal. Ele
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viu o meu, e eu, o dele, mas nenhum de nós sabia do que se tratava. Preciso ligar para ele.
Tsion procurou o número e informou Buck.
- Ele vai ficar entusiasmado, Cameron.
- Espero conseguir falar com ele. Talvez seja necessário voltarmos para encontrá-lo.
- Não! E se aqueles dois homens da CG descobriram quem eu sou? Mesmo que pensem que sou
o tal José Padeiro, vão querer saber por que saí de lá correndo.
- Está tocando! - disse Buck.
- Hospital Comunidade Global, Kenosha.
- Quero falar com o médico responsável pelo necrotério.
- Ele tem um telefone celular, senhor. Anote o número.
Buck anotou o número e discou.
- Necrotério. Fala Floyd Charles.
- Doutor Charles! Foi você quem me autorizou a entrar no necrotério para procurar minha
mulher esta noite?
- Sim, conseguiu alguma coisa?
- Penso que já sei onde ela está, mas...
- Que bom. Estou feliz por...
- Mas não é por causa disso que estou ligando. Você se lembra daquela mancha em minha
testa?
- Sim - disse o doutor Charles lentamente.
- É o sinal dos servos selados de Deus! Você também tem um e é crente. Certo?
- Louvado seja Deus! - disse o médico. - Sou, mas acho que não tenho esse sinal.
- A gente não consegue ver o próprio. Só os outros.
- Puxa! Ei, deixe-me perguntar-lhe uma coisa! Sua mulher é a Mãe Coelha?
Buck teve um sobressalto.
- É. Por quê?
- Então eu sei quem você é. E eles também sabem. Você está seguindo para Mineápolis. Isso vai
dar tempo para eles tirarem sua mulher de lá.
- Por que eles querem fazer isso?
- Porque você tem algo ou alguém que eles querem... Você continua na linha?
- Sim. De irmão para irmão, diga-me o que você sabe. Quando eles vão tirá-la de lá e para
onde vão levá-la?
- Não sei. Mas ouvi alguma coisa sobre levar alguém de avião partindo do Posto Aéreo Naval de
Glenview... você sabe, aquela antiga base aérea inativa que...
- Eu sei.
- Amanhã, no fim do dia.
- Você tem certeza?
- Foi o que ouvi.
- Vou dar-lhe meu número de telefone particular, doutor. Se você souber de qualquer novidade,
telefone-me, por favor.
- E se você precisar de alguma coisa, a qualquer hora e em quaisquer circunstâncias, entre em
contato comigo. - Obrigado, Sr. Coelho.
Rayford mostrou a Mac McCullum o botão secreto que ligava os fones de ouvido do piloto ao
compartimento dos passageiros. McCullum sussurrou entre os dentes:
- Ray, quando eles descobrirem isto e afastarem você daqui para sempre, vou negar tudo.
- Faz parte de nosso trato. Mas caso alguma coisa me aconteça antes que eles descubram o
botão, você sabe onde está.
- Não, não sei - disse Mac, sorrindo.
- Invente alguma coisa para sairmos daqui. Preciso fazer uma ligação para Buck em meu
telefone.
- Podemos verificar se os ganchos aéreos daquele helicóptero têm alguma utilidade para nós -
disse Mac.
- Ganchos o quê?
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- Os ganchos aéreos. Aqueles que costumo prender no céu, que levantam o helicóptero do chão
e não o deixam cair.
- Oh, aqueles ganchos aéreos! Sim, vamos verificá-los.
Já passava muito da meia-noite quando Buck e Tsion entraram exaustos na casa onde estavam
morando.
- Não sei o que vou encontrar em Mineápolis - disse Buck-, mas tenho de chegar lá em melhor
forma do que estou agora. Ore para que Ken Ritz esteja apto a pilotar um avião.
Não sei se devo ter esperanças quanto a isso.
- Nós não vivemos de esperança - disse Tsion. – Nós oramos.
- Então ore pelo seguinte: Primeiro, que Ritz esteja em boas condições de saúde. Segundo, que
ele tenha um avião que funcione. Terceiro, que exista um aeroporto para ele decolar.
Buck estava no topo da escada quando seu telefone tocou.
- Rayford! - ele disse.
Rayford contou rapidamente a Buck sobre o fiasco com Rosenzweig.
- Adoro aquele velho safado - disse Buck -, mas ele é muito ingénuo. Eu disse várias vezes
para ele não confiar em Carpathia. Mas ele adora o cara.
- Ele faz mais que adorar Carpathia, Buck. Acha que ele é divino.
- Oh, não.
Rayford e Buck contaram um ao outro rapidamente tudo o que acontecera naquele dia.
- Não vejo a hora de conhecer Mac - disse Buck.
- Se você está tão enrolado como parece, Buck, talvez nunca tenha oportunidade de conhecêlo.
- Bem, talvez não aqui, deste lado do céu.
Rayford levantou o assunto de Amanda.
- Você acredita que Carpathia tentou convencer Mac de que ela estava trabalhando para ele?
Buck não sabia o que dizer.
- Trabalhando para Carpathia? - ele disse, vacilante.
- Imagine só! Eu a conheço tanto quanto me conheço e vou lhe dizer mais uma coisa. Estou
convencido de que ela está viva. Estou orando para que você encontre Chloe antes do pessoal
da CG. Ore para que eu encontre Amanda.
- Ela não estava no avião que afundou no rio?
- É tudo o que ouvi até agora - disse Rayford. - Se viajou naquele avião, está morta. Mas vou
verificar isso também.
- Como?
- Depois eu lhe conto. Não quero saber onde Tsion está, mas só me diga uma coisa. Você não
vai levá-lo junto para Minnesota, vai? Se alguma coisa der errado, talvez queiram obrigar você a
trocá-lo por Chloe.
- De jeito nenhum. Tsion acha que vou levá-lo comigo, mas ele entenderá. Acho que ninguém
sabe onde estamos, e há aquele abrigo do qual eu lhe falei.
- Perfeito.
Na quarta-feira de manhã, Buck teve de contar a Tsion que não o levaria nem mesmo até
Palatine. O rabino compreendeu o perigo de ir a Minnesota, mas insistiu que poderia ajudar
Buck a tirar Ken Ritz do hospital.
- Se você precisar desviar a atenção de alguém, poderei ser o José Padeiro novamente.
- Eu gostaria muito de ver essa cena, Tsion, mas não sei quem está atrás de nós. Nem mesmo
sei se alguém descobriu que foi Ken Ritz quem me levou a Israel e nos trouxe de volta. Quem
sabe se aquele hospital não está sendo vigiado?
Talvez Ken não esteja lá. Tudo isso pode ter sido uma cilada.
- Cameron! Já não temos preocupações suficientes para você começar a inventar outras?
Tsion concordou, com relutância, em ficar. Buck insistiu para que ele preparasse o abrigo, caso
as coisas não dessem certo em Mineápolis e as forças da Comunidade Global começassem a
segui-lo para valer. Eles combinaram que Tsion divulgaria, via Internet, os ensinamentos e
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transmitiria ânimo às 144.000 testemunhas e outros crentes clandestinos do mundo inteiro.
Aquilo irritaria Carpathia - sem mencionar Peter Mathews - e ninguém sabia dizer quando a
tecnologia chegaria a um ponto tão avançado de poder rastrear essas mensagens.
A viagem normalmente curta entre Monte Prospect e Palatine agora era uma jornada árdua de
duas horas. O prédio do Arthur Young Memorial Hospital não havia sido seriamente atingido. O
restante de Palatine, com poucas exceções, tinha desabado. Parecia estar nas mesmas
condições de Monte Prospect. Buck estacionou perto de algumas árvores tombadas a cerca de
50 metros da entrada do hospital. Como não avistou nada suspeito, ele seguiu diretamente
para lá. O hospital estava cheio e movimentado. Pelo fato de ser um hospital de verdade e não
um improvisado como os da noite anterior, o atendimento parecia ser mais eficiente.
- Estou aqui para visitar Ken Ritz - ele disse.
- Seu nome? - perguntou uma funcionária de roupa listrada.
Buck hesitou.
- Herb Katz - ele disse, usando um cognome que Ken Ritz reconheceria.
- Posso ver seus documentos?
- Não, não pode.
- Como assim?
- Minha identidade foi perdida com minha casa em Monte Prospect, que agora não passa de um
monte de resíduos de terremoto, está bem?
- Monte Prospect? Perdi uma irmã e um cunhado lá. Acho que foi o local mais atingido.
- Palatine não está em melhores condições.
- Estamos com poucos funcionários, mas muitos de nós tiveram sorte - ela disse batendo na
madeira.
- Bem, e daí? Posso ver Ken?
- Vou tentar. Mas minha supervisora é muito mais durona que eu. Ela não deixa ninguém entrar
sem carteira de identidade. Vou contar a ela qual é a sua situação.
A moça afastou-se da mesa e enfiou a cabeça no vão de uma porta atrás dela. Buck foi
tentado a entrar sem autorização no hospital e encontrar Ritz, principalmente ao ouvir o
diálogo entre as duas.
- Absolutamente não. Você conhece as regras.
- Mas ele perdeu a casa e a identidade e...
- Se você não quiser dizer a ele, eu mesma vou fazer isso.
A funcionária virou-se, fez um gesto dando a entender que sentia muito e sentou-se. De
repente, sua supervisora, uma mulher atraente, de cabelos pretos e beirando os trinta anos,
apareceu na porta. Buck viu o sinal na testa dela e sorriu, perguntando a si mesmo se ela já
sabia disso. Ela sorriu timidamente, mas voltou a ficar séria quando a funcionária virou-se para
olhar.
- Quem o senhor gostaria de visitar?
- Ken Ritz.
- Tiffany, por favor, conduza este cavalheiro até o quarto de Ken Ritz. - ela disse, fitando Buck
nos olhos. Depois virou-se e entrou em sua sala.
Tiffany meneou a cabeça.
- Ela sempre teve preferência por loiros - ela disse, conduzindo Buck até a ala dos pacientes. -
Preciso ter a certeza de que o paciente quer receber visitas.
Buck aguardou no corredor enquanto Tiffany batia na porta e entrava no quarto de Ken Ritz.
- Sr. Ritz, o senhor está em condições de receber visitas?
- Não muito - soou uma voz grave, mas fraca, que Buck logo reconheceu. - Quem é?
- Um tal de Herb Katz.
- Herb Katz, Herb Katz. - Ritz parecia querer lembrar-se do nome. - Herb Katz! Mande-o entrar
e feche a porta.
Quando eles ficaram a sós, Ken sentou-se trémulo na cama. Estendeu a mão que estava ligada
ao soro e apertou levemente a de Buck.
- Herb Katz, você ainda está vivo?
- Eu ia lhe fazer a mesma pergunta. Você está com uma aparência horrível.
- Muito obrigado por me dizer isso. Fui ferido da maneira mais estúpida possível, mas, por
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favor, diga que você tem um serviço para mim. Preciso sair daqui e fazer alguma
coisa, senão vou enlouquecer. Eu queria ligar para você, mas perdi minha agenda telefónica. É
muito difícil encontrar você.
- Tenho dois serviços para você, Ken, mas você acha que está em condições?
- Estarei novinho em folha amanhã - ele respondeu. – Só levei uma pancada na cabeça com
um de meus pequenos aviões.
- O quê?
- O danado do terremoto aconteceu quando eu estava no ar. Fiquei rodando em círculos
aguardando que aquela coisa parasse e quase despenquei quando o sol sumiu. Com muito
custo, consegui pousar em Palwaukee. Não enxerguei a cratera. Na verdade, eu nem sabia que
ela estava ali enquanto não cheguei ao chão. Eu já estava quase parado, apenas rodando
lentamente na pista, quando o avião caiu dentro daquela cratera. Eu não sofri nada, mas o
avião não caiu do jeito que eu imaginava. A minha preocupação era com o combustível e com
outras coisas mais, e eu queria saber como estava meu outro avião e o que havia acontecido
com as outras pessoas. Pulei para fora do avião e corri pela asa para sair do buraco. Pouco
antes de dar o último passo, meu peso fez aquele pequeno Piper inclinar-se, e a outra asa
bateu com força na parte de trás da minha cabeça. Fiquei pendurado na beira da cratera,
tentando de todo jeito sair dali. Eu sabia que tinha um corte profundo na cabeça. Consegui me
segurar com a mão, sentindo uma parte do couro cabeludo pendurada, e comecei a perder os
sentidos. Soltei a mão e escorreguei para baixo do avião. Eu estava apavorado pensando que
ele ia cair em cima de mim. Não me mexi do lugar até que alguém apareceu e tirou-me dali.
Perdi tanto sangue que quase morri.
- Você está um pouco pálido.
- Você não está animado nem um pouco hoje.
- Desculpe.
- Você quer ver?
- Ver o quê?
- Meu ferimento!
- Acho que sim.
Ritz virou-se para que Buck pudesse ver a parte de trás de sua cabeça. Buck fez uma careta. O
ferimento era muito feio. A parte do couro cabeludo que havia sido arrancada e depois suturada
estava raspada, inclusive toda a área ao redor.
- Disseram que o ferimento não atingiu o cérebro, por isso não tenho desculpas para parecer
maluco.
Buck contou seu dilema a Ritz, dizendo que precisava chegar a Mineápolis antes que o pessoal
da CG fizesse alguma coisa com Chloe.
- Quero que você me recomende um piloto, Ken. Não posso aguardar até amanhã.
- Nem pense que eu vou recomendar alguém - disse Ken, desligando o soro e arrancando o
esparadrapo.
- Calma, Ken. Não posso permitir que você faça isso. Você precisa receber alta antes de...
- Esqueça disso, está bem? Talvez eu tenha de fazer as coisas devagar, mas nós dois sabemos
que, se não houve trauma no cérebro, não haverá perigo de acontecer coisa pior. Vou sentir um
pouco de desconforto, só isso. Agora vamos, ajude-me a vestir uma roupa e sair daqui.
- Agradeço muito, mas...
- Williams, se você não me deixar fazer isso, vou odiá-lo pelo resto da vida.
- Só não quero ser responsável pelo que você está fazendo.
Não houve jeito de convencê-lo. Buck passou o braço ao redor de Ken e segurou-o por baixo da
axila. Eles estavam agindo o mais rápido possível, mas um enfermeiro entrou no quarto.
- Ei! Ele não pode sair da cama! Socorro! Alguém me ajude! Chamem o médico dele!
- Isto aqui não é uma prisão - gritou Ken. – Assinei quando entrei aqui e agora estou saindo!
Buck e Ken estavam sendo conduzidos até o saguão quando um médico correu na direção
deles. A moça da recepção chamou sua supervisora. Buck fez um apelo a ela com os olhos. A
supervisora olhou firme para ele e postou-se na frente do médico. Ele tentou afastá-la do
caminho.
- Deixe que eu cuido disso - ela disse.
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O médico afastou-se com olhar desconfiado, e a supervisora ordenou que a moça da recepção
fosse até a farmácia para pegar os remédios receitados para Ken. A supervisora sussurrou:
- Ser crente não significa ser idiota. Estou dando um jeito nisso, mas espero que seja por uma
causa justa.
Buck assentiu e agradeceu.
Sentado dentro do Rover, Ken não se movia, segurando com cuidado a parte de trás da cabeça.
- Você está bem? - perguntou Buck.
Ritz assentiu.
- Leve-me até Palwaukee - ele disse. - Deixei algumas coisas numa sacola que eles estão
guardando para mim. E precisamos ir a Waukegan.
- Waukegan?
- Sim. Meu Learjet voou pelos ares lá, mas está em boas condições. O único problema é que os
hangares foram destruídos. Dizem que os tanques de combustível estão em ordem. Mas há um
outro problema.
- Diga logo.
- As pistas de decolagem.
- O que houve com elas?
- Acho que desapareceram.
Buck estava cortando caminho o mais rápido que podia. Uma das vantagens de não haver mais
estradas era que se podia rodar de um lugar a outro livremente.
- Você pode fazer o Learjet decolar sem pista pavimentada?
- Nunca tive de me preocupar com isso antes. Mas vamos dar um jeito, não?
- Ritz, você é mais louco que eu.
- É o que você pensa. Todas as vezes que estou com você, tenho certeza de que vou morrer. -
Ritz calou-se por alguns momentos. Depois, prosseguiu. - Por falar em morrer, eu não
estava querendo ligar para você só porque precisava de serviço.
- Não?
- Li seu artigo. Aquela história sobre a "ira do Cordeiro" em sua revista.
- O que você achou?
- A pergunta está errada. Você não deveria perguntar o que achei quando li a história, porque,
francamente, não achei muita coisa. Estou dizendo que sempre fico impressionado com o que
você escreve.
- Eu não sabia disso.
- Pode me censurar, se quiser, mas eu não queria que você ficasse muito convencido. De
qualquer forma, eu não gostava de suas teorias. E não acreditava que íamos sofrer
ira do Cordeiro. Mas você devia me perguntar o que penso disso agora.
- Tudo bem. Diga.
- Acho que um sujeito teria de ser muito tolo para pensar que o primeiro terremoto mundial na
história da humanidade foi uma coincidência, principalmente depois do que você profetizou em
seu artigo.
- Ei, eu não profetizei nada. Fui totalmente objetivo.
- Eu sei. Mas nós dois conversamos sobre esse assunto antes, e eu sabia o que você pensava a
respeito. Você escreveu igual a todos aqueles estudiosos da Bíblia, que emitem uma opinião
atrás da outra contra os seres extraterrestres e alguns conspiradores malucos. Mas, de
repente, paft, puft, minha cabeça partiu-se ao meio, e um sujeito mais louco que eu foi quem
descobriu o que ia acontecer.
- Então, quer dizer que você queria me encontrar. Aqui estou.
- Ótimo. Eu imaginei que, se tudo o que aconteceu no mundo foi por causa da ira do Cordeiro,
seria melhor ser amigo desse Cordeiro.
Buck sempre achou que Ritz era esperto demais para não ter visto todos os sinais.
- Posso ajudá-lo nisso - ele disse.
- Achei que você poderia.
Já era perto de meio-dia quando Buck saiu do caminho esburacado onde antes existia a
rodovia Green Bay e rodou lentamente sobre um tapume desabado e contornou as lâmpadas
esmigalhadas no solo do aeroporto de Waukegan. As pistas de decolagem estavam afundadas
91
ou retorcidas, com enormes pedaços de concreto que se estendiam de uma extremidade a
outra.
Ali, em um dos poucos espaços livre, estava o Learjet de Ken Ritz, aparentemente em condições
de uso.
Ritz movimentava-se com lentidão, mas conseguiu taxiar cuidadosamente o Learjet por entre
os entulhos até a bomba de combustível.
- Este aqui faz uma viagem ou mais de ida e volta a Mineápolis com um tanque de combustível
- ele disse.
- A questão é o tempo de vôo - disse Buck.
- Menos de uma hora.
Buck consultou seu relógio.
- De onde você vai decolar?
- O local está inclinado, mas da cabina eu vi um caminho sobre um campo de golfe, do outro
lado da Wadsworth, que parece ser a nossa salvação.
- Como você vai atravessar a estrada e passar por aquele mato?
- Oh, vou conseguir. Porém vai levar um pouco mais de tempo do que voar direto para
Minneapolis. Você fará a maior parte do serviço. Eu dirijo o Learjet, e você limpa o
caminho. Não será nada fácil.
- Se for necessário, abrirei um caminho com as mãos até Minneapolis - disse Buck.
92
ONZE
Rayford estava aprendendo a sentir alegria em meio à tristeza. Seu coração dizia que Amanda
estava viva. A razão dizia que ela estava morta. E quanto à traição dela em relação a ele, ao
Comando Tribulação e principalmente a Deus, nem o coração nem a razão de Rayford
aceitavam esse fato.
Apesar dessas emoções conflitantes e confusão de espírito, Rayford sentia-se agradecido pela
conversão de Mac, bem como pela sua, de Chloe e de Buck. E pelo momento certo que Deus
escolheu quando colocou seu sinal nele! Rayford estava ansioso para saber a opinião de Ben-
Judá sobre isso.
Já era tarde da noite de quarta-feira na Nova Babilónia. Rayford e Mac haviam trabalhado lado
a lado o dia inteiro. Rayford lhe contara toda a história do Comando Tribulação e sobre como foi
a conversão de cada um deles. Mac parecia intrigado pelo fato de Deus ter-lhes proporcionado
um pastor/professor/mentor desde o início, na pessoa de Bruce Barnes. E por que, após a
morte de Bruce, Deus lhes enviou um novo líder espiritual com mais conhecimentos bíblicos
ainda.
- Deus tem-se revelado a cada um de nós - disse Rayford.
- Nem sempre Ele responde às nossas orações da maneira como pensamos, mas aprendemos
a conhecê-lo melhor. Temos de ser cuidadosos para não pensar que tudo o que sentimos no
fundo do coração é necessariamente verdadeiro.
- Não estou entendendo - disse Mac.
- Por exemplo, não posso abandonar a sensação de que Amanda está viva. E não posso jurar
que esse sentimento provém de Deus. - Rayford hesitou, subitamente emocionado. - Se eu
estiver errado, quero ter a certeza de que não vou culpar Deus por isso.
Mac assentiu.
- Não posso imaginar alguém culpar Deus por alguma coisa, mas entendo o que você quer
dizer.
Rayford estava emocionado ao ver o quanto Mac desejava aprender. Mostrou-lhe onde procurar
na Internet os ensinamentos de Tsion, seus sermões, seus comentários sobre as mensagens
de Bruce Barnes, e principalmente o quadro em que, de acordo com os estudos dele, a igreja
estava posicionada na sequência dos sete anos de tribulação.
Mac mostrava-se fascinado pelas evidências que apontavam Nicolae Carpathia como o
anticristo.
- Se a ira do Cordeiro e a lua se transformando em sangue não serviram para me convencer,
homem, com certeza me convenci de que Carpathia é o anticristo. Assim que suas rotas foram
definidas, Rayford enviou um e-mail para Buck sobre seu itinerário. Depois de pegarem Peter
Mathews em Roma, ele e Mac levariam o papa e Leon para Dallas a fim de pegarem um exsenador
pelo Estado do Texas, recentemente empossado embaixador da Comunidade Global dos
Estados Unidos da América do Norte.
- Imagine só, Mac, se esse sujeito, quando resolveu seguir a carreira política, chegou a sonhar
que um dia seria um dos dez reis profetizados na Bíblia.
Um pouco mais da metade do aeroporto Dallas/Fort Worth tinha condições de funcionar, e o
restante estava sendo rapidamente recuperado. Para Rayford, a reconstrução ao redor do
mundo já se iniciara a um ritmo coordenado. Dava a impressão de que Carpathia havia
estudado as profecias e, apesar de insistir que os acontecimentos não foram tão trágicos como
diziam, ele parecia ter-se preparado para começar a reconstruir tudo imediatamente.
Rayford sabia que Carpathia era mortal. Mesmo assim, gostaria de saber se aquele homem
dormia. Ele via Nicolae circulando o tempo todo, sempre de terno e gravata, sapatos lustrosos,
rosto barbeado, cabelo bem aparado. Era um homem surpreendente. Em geral, vivia cercado
de pessoas, com ar sorridente e confiante. Apesar de tantas horas de trabalho, ele apenas se
descontrolava quando lhe convinha. No momento apropriado, fingia sofrimento e empatia. Por
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ser um homem bonito e charmoso, era fácil saber por que ele iludia tanta gente.
No começo daquela noite, Carpathia fizera um pronunciamento ao vivo ao mundo inteiro pela
TV e pelo rádio, dizendo o seguinte: "Irmãos e irmãs da Comunidade Global, estou falando da
Nova Babilónia. Assim como vocês, meus caros amigos, perdi muitos entes queridos e
colaboradores leais nessa tragédia. Quero que aceitem meus mais profundos e sinceros pesares
em nome da administração da Comunidade Global. "Ninguém poderia ter previsto esse ato
fortuito da natureza, o pior da História, que abalou o mundo inteiro. Estávamos nas fases finais
de nossos trabalhos de reconstrução após a guerra contra uma minoria resistente. Agora,
conforme vocês podem testemunhar em qualquer lugar que estiverem, a reconstrução foi
reiniciada.
"Em pouco tempo, a Nova Babilónia se transformará na cidade mais deslumbrante que o mundo
já conheceu. Esta nova capital mundial será o centro bancário e comercial, o quartel-general de
todas as agências governamentais da Comunidade Global e, conseqiientemente, a nova Cidade
Santa, para onde a Fé Mundial Enigma Babilónia será transferida.
"Terei imensa alegria em acolher todos vocês neste lugar maravilhoso. Aguardem alguns meses
até terminarmos a reconstrução e, depois, planejem suas viagens. Cada cidadão deve ter como
objetivo viver esta nova utopia e ver o protótipo para todas as demais cidades."
Rayford e Mac assistiram ao pronunciamento em um aparelho de TV instalado no alto de um
dos cantos do refeitório, na companhia de cerca de 200 funcionários da CG. Nicolae, em um
pequeno estúdio no fim do corredor, manipulava um disco de realidade virtual que exibia ao
telespectador toda a cidade reconstruída, reluzente, como se já estivesse pronta, o que
deixava qualquer um boquiaberto e impressionado.
Carpathia mostrava todas as tecnologias avançadas, cuja finalidade era proporcionar maior
conforto ao homem, que se mesclavam com a maravilha da nova metrópole. Mac cochichou ao
ouvido de Rayford:
- Essas torres de ouro me fazem lembrar os antigos quadros do céu que eu via na Escola
Dominical.
Rayford assentiu.
- Bruce e Tsion disseram que o antícristo simula o que Deus faz.
Carpathia terminou o pronunciamento de maneira animada.
"Vocês sobreviveram, e tenho a confiança inabalável em sua diligência, determinação e
compromisso de trabalhar em conjunto, jamais esmorecer e, de mãos dadas, reconstruir nosso
mundo.
"Estou humildemente a serviço de vocês e me comprometo a fazer tudo o que estiver a meu
alcance, desde que me concedam esse privilégio. Gostaria também de dizer-lhes que, em razão
de uma reportagem especulativa divulgada em uma de nossas publicações da Comunidade
Global, tomei conhecimento de que muitas pessoas estão confusas quanto aos recentes
acontecimentos. Embora o terremoto mundial pareça ter coincidido com a chamada ira do
Cordeiro, preciso fazer alguns esclarecimentos. Aqueles que acreditam que essa catástrofe foi
um ato de Deus são os mesmos que acreditam que, por ocasião dos desaparecimentos
ocorridos há quase dois anos, as pessoas foram arrebatadas para o céu.
"Evidentemente, cada cidadão da Comunidade Global é livre para acreditar no que quiser e
exercitar sua fé, desde que não prejudique a liberdade dos outros. O ponto fundamental da Fé
Mundial Enigma Babilónia é tolerância e liberdade religiosa.
"Por esse motivo, não desejo criticar a crença de outras pessoas. No entanto, apelo para o
bom senso. Não tenho nada contra o direito de se acreditar em um deus pessoal. Contudo,
não entendo como um deus que é descrito como justo e amoroso pode ser tão caprichoso a
ponto de decidir quem é e quem não é digno do céu e tomar essa decisão em 'um piscar de
olhos', conforme eles dizem.
"Será que o mesmo deus amoroso voltou dois anos depois para nos impingir mais desgraças?
Será que ele manifesta sua ira àqueles infelizes que foram deixados para trás, devastando o
mundo em que vivem e matando uma enorme porcentagem deles?" Carpathia sorriu de modo
condescendente. "Peço humildemente aos que acreditam nesse Ser Supremo que me perdoem
se eu retratei erroneamente o seu deus. Mas qualquer cidadão que raciocine com clareza
percebe que essa crença não leva a nada.
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"Portanto, meus irmãos e irmãs, não culpem Deus pelo que estamos sofrendo. Vejam isso
como parte das provações da vida, um teste para nosso espírito e determinação, uma
oportunidade para fazermos um exame introspectivo e extrair de dentro de nós aquela fonte
inesgotável de bondade que nos abastece desde o nascimento. Vamos trabalhar juntos para
fazer de nosso mundo uma fénix, renascendo das cinzas da tragédia para transformar-se na
maior comunidade que já existiu na face da terra. Despeço-me carinhosamente, aguardando
uma próxima oportunidade para voltar a me dirigir a vocês."
Quando os funcionários da Comunidade Global levantaram-se para aplaudir, Rayford e Mac
também fizeram o mesmo para não dar na vista. Rayford notou que Mac olhava firmemente
para a esquerda.
- O que houve? - ele perguntou.
- Espere um minuto - disse Mac. Rayford estava prestes a sair depois que todos voltaram a
sentar-se, ainda com os olhos pregados na TV. - Percebi que outra pessoa também demorou
um pouco mais para levantar-se - cochichou Mac.
- Um jovem. Trabalha no setor de comunicações, acho.
Todos já estavam acomodados no lugar, porque na tela lia-se a seguinte mensagem: "Por favor,
aguardem o pronunciamento do Supremo Comandante Leonardo Fortunato."
Fortunato não ostentava a mesma figura imponente de Carpathia, mas tinha uma postura
dinâmica diante das câmeras. Era simpático, comunicativo, humilde, porém direto, parecendo
olhar o telespectador nos olhos. Contou a história de sua morte no terremoto e como Nicolae o
ressuscitou.
"Só lamento", ele complementou, "o fato de não ter havido testemunhas. Mas passei por essa
experiência e acredito de todo o coração que nosso Supremo Potentado possui esse dom e que
o usará em público no futuro. Um homem investido desse poder é digno de um novo título.
Estou sugerindo que, daqui em diante, ele seja chamado de Sua Excelência Nicolae Carpathia.
Já estabeleci essa política dentro da administração da Comunidade Global e peço
encarecidamente a todos os cidadãos, que respeitam e amam nosso líder, que sigam esse
exemplo.
"Conforme vocês devem saber, Sua Excelência nunca exigiu nem sequer solicitou esse título.
Apesar de ter-se tornado líder com relutância, ele tem manifestado a disposição de dar a sua
vida pela dos cidadãos que o apoiam. Embora ele nunca tenha insistido em receber uma
consideração especial, conto com a colaboração de vocês.
"Não consultei Sua Excelência a respeito do que vou dizer-lhes, e espero que ele compreenda o
significado de minhas palavras e não se sinta constrangido. Talvez muitos de vocês não saibam
que ele está atravessando um período de grande sofrimento pessoal.
- Mal posso acreditar aonde isso vai chegar - murmurou Rayford.
"Nosso líder e sua noiva, o amor da vida dele, têm a satisfação de comunicar antecipadamente
o nascimento de um bebé dentro de alguns meses. Porém, a futura Sra. Carpathia está
desaparecida. Ela planejava retornar dos Estados Unidos da América do Norte, após uma visita
à sua família, quando o terremoto tornou impossível qualquer viagem internacional. Se alguém
souber do paradeiro da Srta. Hattie Durham, informe, por favor, ao representante da
Comunidade Global de sua cidade o mais rápido possível. Obrigado."
Mac caminhou na direção do jovem que ele observara. Rayford dirigiu-se para o Condor 216 e já
estava perto da escada quando Mac o alcançou.
- Rayford, aquele rapaz tem o sinal na testa. Quando eu disse que sabia que ele era crente, o
jovem empalideceu.
Mostrei-lhe o meu sinal, falei de você e de mim, e ele quase chorou. Seu nome é David Hassid.
Ele é um judeu da Europa Oriental que passou a trabalhar na CG por ter ficado impressionado
com Carpathia. Começou a fazer pesquisas na Internet há seis meses e passou a considerar
Tsion Ben-Judá seu mentor espiritual.
- Quando ele se converteu?
- Faz apenas algumas semanas, mas ele ainda não está preparado para tornar isso público.
Achava que era o único aqui. Ele diz que Tsion divulgou um estudo pela Internet chamado
"Estrada dos Romanos" para a salvação. Acho que todos os versículos encontram-se em
Romanos. Ele quer conhecer você. Não consegue acreditar que você conhece Ben-Judá
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pessoalmente.
- Como não? Talvez eu dê um autógrafo ao rapaz.
Fazer o Learjet de Ken Ritz atravessar o devastado aeroporto de Waukegan até a confusão do
local onde antes existia a rodovia Wadsworth foi fácil. Buck permanecia sentado ao lado de Ken
enquanto ele taxiava lentamente até encontrar pela frente um monte de entulhos e pedaços de
concreto que precisavam ser removidos ou destruídos, além de fissuras que teriam de ser
preenchidas. As ferramentas de que Buck dispunha não eram apropriadas para esse serviço,
mas seus músculos doloridos e os calos nas mãos provavam que ele estava fazendo algum
progresso.
A parte mais complicada seria atravessar a rodovia Wadsworth até o campo de golfe. Em
primeiro lugar, havia uma vala para ser ultrapassada.
- Não é a melhor coisa para se fazer com um Learjet - disse Ken -, mas acho que terei de
passar por dentro da vala, subir e sair. Será necessário aproveitar o momento certo, e
vou ter de parar a uma distância de alguns metros. O pavimento tinha formado uma curva
saliente de cerca de 2,5 metros, uma altura que até mesmo um automóvel teria dificuldade
para transpor.
- De lá, para onde vamos? - perguntou Buck.
- Cada ação tem uma reação, certo? - disse Ritz de forma enigmática. - Se existe uma
elevação, deve existir uma depressão em seguida. Eu só não sei até que ponto precisarei
ir para conseguir atravessar.
Buck andou cerca de 200 metros até avistar uma trinca enorme no pavimento. Se Ritz
pudesse conduzir o avião até aquela distância, mantendo a asa esquerda sem tocar o
pavimento elevado e a roda direita afastada da vala, teria condições de manobrar para a
esquerda e cruzar a estrada. Depois de guiar Ken para não cair na vala daquele lado, Buck
ainda teria de remover uma cerca e alguns arbustos que cercavam o campo de golfe.
Ritz transpôs a primeira vala com facilidade, mas calculou mal o momento de parar antes da
elevação do pavimento, e o Learjet rolou para trás. Com as rodas dentro da vala, Ritz não
podia recuar e, depois de muitas tentativas, ele conseguiu avançar. Finalmente, ele saiu da
vala, mas constatou que a parte frontal do trem de pouso havia sido amassada.
- Isso nao vai afetar muita coisa, mas eu não gostaria de fazer muitas aterrissagens nestas
condições - ele disse.
Buck estava preocupado. Caminhou na frente enquanto Ritz taxiava no sentido leste. Ken
mantinha os olhos fixos na asa esquerda, que passava rente à elevação do pavimento. Buck
tomava conta da roda direita para que ele não caísse na vala.
Depois de atravessar a estrada e transpor outra vala, Ken pisou fundo no freio para não bater
na cerca. Ele desceu e começou a ajudar Buck a remover a cerca, mas, quando chegou o
momento de afastar os arbustos, ele precisou sentar-se.
- Economize suas forças - disse Buck. - Posso fazer isso sozinho.
Rítz consultou seu relógio.
- É melhor você se apressar. A que horas você quer chegar a Minneapolis?
- Não muito depois das 15 horas. Disseram-me que os homens da CG chegarão de Glenview no
fim do dia.
Quando Rayford e Mac terminaram a verificação no Condor, Rayford disse:
- Eu vou sair primeiro. Não devemos ser vistos sempre juntos. Você precisa continuar a ser um
homem de confiança da chefia.
Rayford estava cansado e ao mesmo tempo ansioso para cumprir sua obrigação naquela longa
viagem e voltar logo para iniciar a aventura no fundo do rio. Ele orava para que sua intuição
estivesse certa e que não encontraria Amanda no avião submerso. Depois disso, ele exigiria
saber o que Carpathia fizera com ela. Se Amanda estivesse viva e fosse encontrada, ele não
levaria em conta as ridículas afirmações de que ela era uma espia.
Um funcionário cumprimentou Rayford assim que ele chegou à porta de seus aposentos.
- Sua Excelência gostaria de vê-lo, senhor.
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Rayford agradeceu-lhe e disfarçou sua revolta. O dia havia sido ótimo sem Carpathia. Sua
decepção duplicou quando ele avistou Fortunato na sala de Carpathia. Aparentemente, eles não
sentiram necessidade de saudá-lo com a costumeira cordialidade bajuladora. Nenhum dos dois
levantou-se para cumprimentá-lo nem lhe estendeu a mão. Carpathia apontou para uma
cadeira e referiu-se a uma cópia do itinerário de Rayford que ele havia recebido.
- Vejo que você programou uma escala de 24 horas na América do Norte.
- O avião e os pilotos necessitam de um período de descanso.
- Você vai encontrar-se com sua filha e seu genro?
- Por quê?
- Não estou insinuando que seu tempo gasto com assuntos pessoais seja de meu interesse -
disse Carpathia. – Mas preciso de um favor.
- Pois não.
- Trata-se do mesmo assunto sobre o qual conversamos antes do terremoto.
- Hattie.
- Sim.
- O senhor sabe onde ela está? - perguntou Rayford.
- Não, mas imagino que você saiba.
- Se o senhor não sabe, como eu posso saber?
Carpathia levantou-se.
- Você não acha que chegou a hora de acabarmos com essa cerimónia, capitão Steele? Você
pensa que eu seria capaz de dirigir um governo internacional sem ter olhos e ouvidos por toda
parte? Tenho fontes de informações onde você nem sequer imagina. Pensa que não sei que
você e a Srta. Durham viajaram no mesmo vôo na última vez que foram para os Estados
Unidos?
- Não a vi mais desde então, senhor.
- Mas ela conversou com seu pessoal. Quem sabe o que aquela gente colocou na cabeça dela?
Ela devia ter voltado muito tempo antes. Você tinha obrigações a cumprir. Seja lá o que for que
ela estava fazendo, perdeu o avião, e sabemos que ela viajou com sua mulher.
- Também entendi isso.
- Ela não entrou naquele avião, capitão Steele. Se tivesse entrado, conforme você sabe, não
seria mais problema.
- Ela voltou a ser problema? - perguntou Rayford.
Carpathia não respondeu. Rayford prosseguiu.
- Vi seu pronunciamento. Tive a impressão de que o senhor estava desesperado à procura de
sua noiva.
- Eu não disse isso.
- Eu disse - interveio Fortunato. - Falei o que pensava.
- Oh - disse Rayford -, agora entendi. Sua Excelência não tinha ideia de que você ia falar dos
dons divinos dele e depois exagerar seu sofrimento por causa do sumiço da noiva.
- Não seja ingénuo, capitão Steele - disse Carpathia. – Só quero saber se você vai ter aquela
conversa com a Srta. Durham.
- A conversa na qual eu devo dizer que ela pode ficar com a aliança, morar na Nova Babilónia
e, depois... o que ela deve fazer mesmo com o bebé?
- Estou entendendo que ela já tomou a decisão certa, e você pode garantir-lhe que arcarei com
todas as despesas.
- Com as despesas da criança pelo resto da vida?
- Não é disso que estou falando - disse Carpathia.
- Só estou querendo entender. Então o senhor pagará para alguém matar o bebé?
- Não seja sentimental, Rayford. Trata-se de um procedimento simples e seguro. Só quero que
você dê a ela este recado. Ela entenderá.
- Quer o senhor acredite ou não, não sei onde ela está. Mas, se eu der a ela este recado, não
posso garantir que ela fará o que o senhor deseja. E se ela decidir ter o bebé?
Carpathia balançou a cabeça.
- Preciso terminar esse relacionamento, porém será mais complicado se houver uma criança.
- Compreendo - disse Rayford.
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- Então, estamos combinados.
- Eu não disse isso. Só disse que compreendia.
- Mas você vai conversar com ela?
- Não tenho ideia de seu paradeiro nem se ela está bem.
- Será que ela desapareceu no terremoto? – perguntou Carpathia, com um brilho nos olhos.
- Não seria a melhor solução? - sugeriu Rayford com um sentimento de revolta.
- A bem da verdade, sim - disse Carpathia. - Porém meus contatos acreditam que ela esteja
escondida.
- E o senhor pensa que sei onde ela se escondeu.
- Ela não é a única pessoa no exílio com quem você mantém contato, capitão Steele. É por isso
que você ainda não foi preso.
Rayford estava se divertindo. Carpathia o havia superestimado. Se Rayford tivesse imaginado
que levaria alguma vantagem por dar abrigo a Hattie e Tsion, teria feito isso de propósito. Mas
Hattie estava agindo por conta própria. E Tsion era assunto de Buck.
No entanto, saiu da sala de Carpathia naquela noite com uma vantagem temporária, de acordo
com o próprio inimigo.
Buck transpirava e estava exausto quando finalmente sentou-se ao lado de Ken Ritz e atou o
cinto de segurança. O avião estava pousado na extremidade sul do campo de golfe, que havia
sido destruído pelo terremoto. Adiante deles, havia uma longa tira de grama em bom estado.
- Você precisaria ir até lá para ver se ela é tão firme quanto parece - disse Ken - mas não
temos tempo.
Mesmo sem concordar, Buck não protestou. Ken continuava parado, analisando o local.
- Não estou gostando - ele disse finalmente. - Parece bem longa, e saberemos imediatamente
se é resistente. A pergunta é a seguinte: será que consigo ganhar velocidade para subir?
- É possível interromper, caso você não consiga?
- Posso tentar.
Quando Ken Ritz dizia que podia tentar, era melhor que uma outra pessoa qualquer prometer.
- Vamos fazer isso - disse Buck.
Ritz acelerou e aumentou gradativamente a velocidade. Buck sentiu sua pulsação bater mais
forte enquanto eles subiam e desciam as elevações do gramado, como se estivessem em uma
montanha-russa. Os motores do Learjet produziam um som estridente. Ken chegou a uma
superfície plana e acelerou ao máximo. A força motriz grudou Buck na poltrona, mas, enquanto
ele passava os braços ao redor de si para a decolagem, Ritz reduziu a velocidade.
- Tenho de acelerar mais forte na superfície plana – ele disse, depois de balançar a cabeça. -
Só retrocedi três quartos. - Ele fez uma manobra e retrocedeu o mais que pôde. - Basta
acelerar mais rápido no início. É como pisar na embreagem. Se você rodopiar, não pode
acelerar muito. Se você fizer tudo certo, tem chances de se sair bem.
O processo recomeçou lento, mas desta vez Ken acelerou o mais rápido que pôde. Eles quase
levantaram do chão enquanto passavam rente a depressões e transpunham pequenas
elevações. Chegaram à superfície plana no dobro da velocidade anterior. Ken gritou:
- Agora estamos falando a mesma língua, neném!
O Learjet levantou vôo como um foguete, e Ken manobrou-o de tal forma que parecia que eles
estavam subindo na vertical. Grudado no encosto de sua poltrona, Buck não podia se mexer.
Ele mal podia respirar, mas, quando conseguiu, soltou um gemido, e Ritz riu.
- Se eu não morrer desta vez - disse Buck -, vou levá-lo para a igreja!
O telefone de Buck estava tocando. Ele teve de forçar a mão para retirá-lo do bolso por causa
da força da gravidade.
- Buck falando! - ele gritou.
Era Tsion.
- Você ainda está no avião? - ele perguntou.
- Acabamos de decolar. Mas vamos chegar a tempo.
Buck contou a Tsion sobre o ferimento de Ken e como o tirara do hospital.
- Ele é um homem surpreendente - disse Tsion. - Ouça, Cameron, acabei de receber um e98
mail de Rayford. Ele e seu co-piloto descobriram que uma das testemunhas judaicas trabalha lá
no abrigo. É um jovem. Vou mandar um e-mail para ele. Enviei há poucos instantes para uma
central de divulgação de boletins o resultado de vários dias de estudo.
Dê uma olhada quando você tiver oportunidade. Dei ao estudo o nome de "A Colheita de Almas
Está Próxima", e tem a ver com as 144.000 testemunhas, os milhões de almas que vão ganhar
para Cristo, o selo visível e o que podemos esperar dos julgamentos que ocorrerão no próximo
ano ou pouco depois.
- O que podemos esperar?
- Leia o que está na Internet quando você voltar. E, por favor, pergunte a Ken se ele pode nos
levar a Israel.
- No momento, isso parece impossível - disse Buck. - Rayford não lhe contou que o pessoal de
Carpathia anda dizendo que ajudou você a fugir para poderem encontrá-lo novamente?
- Cameron! Deus não permitirá que aconteça alguma coisa comigo por uns tempos. Sinto uma
enorme responsabilidade em relação ao restante das testemunhas. Leve-me para Israel e deixe
minha segurança nas mãos do Senhor!
- Você tem mais fé que eu, Tsion - disse Buck.
- Então comece a cultivar a sua, meu irmão!
- Ore por Chloe! - disse Buck.
- Tenho orado sempre. Por todos vocês.
Menos de uma hora depois, Ritz comunicou-se por rádio com Minneapolis para obter instruções
de pouso e pediu para entrar em contato com uma locadora de automóveis. Em razão do
número reduzido de funcionários e veículos, os preços haviam duplicado. No entanto, havia
carros disponíveis, e Ritz recebeu orientações de como chegar ao hospital da Comunidade
Global.
Buck não tinha ideia do que encontraria no hospital. Sabia que não seria fácil ter acesso a
Chloe e tirá-la de lá. O pessoal da CG só chegaria para pegá-la no fim do dia, mas com certeza
ela estava sendo vigiada. Ele gostaria de ter alguma pista sobre o estado de Chloe. Seria
prudente removê-la? Haveria condições de sequestrá-la?
- Ken, se você concordar, eu gostaria de usar você e seu ferimento na cabeça para desviar a
atenção. Talvez estejam à minha procura, e espero que não seja tão logo assim, mas acho que
ninguém vai relacionar seu nome com o meu.
- Espero que você esteja falando sério, Buck, porque adoro ação. E mais, você é um bom
sujeito. Alguém está vigiando você e seus amigos. Já nos arredores de Mineápolis, Ritz foi
informado de que o tráfego aéreo estava mais congestionado do que o normal, e ele teria de
aguardar mais dez minutos para pousar.
- Positivo - ele disse. - Tenho uma emergência aqui. Não é caso de vida ou morte, mas um
passageiro deste avião tem um ferimento grave na cabeça.
- Positivo, Lear. Veremos se será possível transferir você para uma outra pista. Informe-nos se
houver qualquer outro problema.
- Gostei da astúcia - disse Buck.
Quando finalmente Ritz recebeu autorização para pousar, ele inclinou o Learjet e sobrevoou o
terminal, que havia sido muito atingido pelo terremoto. A reconstrução já havia começado, mas
os serviços essenciais, desde balcões de vendas de passagens até agências locadoras de
automóveis, estavam instalados em unidades móveis. Buck surpreendeu-se diante da
movimentação que havia naquele aeroporto, com apenas duas pistas funcionando
normalmente.
O aflito gerente de controle de solo desculpou-se por não ter um hangar disponível para abrigar
o Learjet. Ken prometeu-lhe que não deixaria o avião ali por mais de 24 horas.
- Espero que não - sussurrou Buck.
Ritz taxiou até perto de uma das antigas pistas onde máquinas pesadas estavam removendo
grandes quantidades de terra. Ele estacionou o Learjet próximo a aeronaves de todos os tipos,
desde monomotores Piper até Boeings 727. As agências locadoras de automóveis ficavam
distantes dali.
Tremendo, respirando com dificuldade e caminhando lentamente, Ken insistia para que Buck se
apressasse. Buck temia que ele não aguentasse.
99
- Não finja que vai desmaiar por causa de seu ferimento - disse Buck, em tom de brincadeira. -
Pelo menos, espere até chegarmos ao hospital.
- Se você me conhecesse - disse Ritz -, saberia que não é fingimento.
- Não acredito no que estou vendo - disse Buck, quando finalmente eles chegaram ao setor de
locação de automóveis e pararam no fim de uma longa fila.
- Parece que as pessoas precisam pegar o carro do outro lado do estacionamento.
Ken, que era bem mais alto que Buck, ficou na ponta dos pés e olhou à distância.
- Você tem razão - ele disse. - Talvez você tenha de pegar o carro e vir me buscar. Não estou
em condições de caminhar até lá.
Quando já estava chegando a sua vez de ser atendido, Buck pediu a Ritz que usasse o cartão
de crédito dele para alugar o carro e disse que o reembolsaria depois.
- Não quero que meu nome apareça neste Estado, caso a CG pense em fazer investigações.
Ritz jogou seu cartão em cima do balcão. Uma jovem funcionária começou a examiná-lo.
- Só sobraram carros pequenos. Pode ser?
- E se eu não aceitar, meu bem? - ele perguntou.
- É o que temos - ela disse, com uma cara feia.
- Então que diferença faz eu aceitar ou não?
- O senhor vai querer?
- Não tenho escolha. Que tamanho tem essa coisa?
A funcionária arrastou um cartaz brilhante sobre o balcão e apontou para a fotografia de um
carro minúsculo.
- Que coisa! - disse Ritz. - Acho que não há espaço nem para mim, e muito menos para o meu
filho, aqui.
Buck conteve-se para não rir. A funcionária, visivelmente entediada diante dos gracejos de Ritz,
começou a preencher os formulários.
- Essa coisa tem banco traseiro?
- Não. Mas há um pequeno espaço atrás dos bancos da frente, onde você pode colocar a
bagagem.
Ritz olhou para Buck. Buck sabia o que ele estava pensando. Os dois teriam de se espremer
dentro daquele carro. E Buck não podia sequer imaginar como incluiriam ali uma mulher adulta
em estado debilitado.
- O senhor tem preferência de cor? - perguntou a moça.
- Posso escolher? - disse Ritz. - Você só tem um modelo disponível, mas de diversas cores?
- Normalmente, sim - ela disse. - Mas agora só temos na cor vermelha.
- E eu preciso escolher?
- Só se for de cor vermelha.
- Está bem. Aguarde um minuto. Sabe qual é a minha cor preferida? Você tem um carro
vermelho?
- Sim.
- Então vou levar um vermelho. Espere um pouco. Filho, você gosta de carro vermelho?
Buck fechou os olhos e balançou a cabeça afirmativamente. Assim que Ritz lhe deu as chaves,
ele correu para pegar o carro. Atirou sua sacola e a de Ritz atrás dos bancos, empurrou-os para
trás até onde pôde, espremeu-se entre o volante e o banco, e acelerou em direção à saída
onde Ritz o aguardava. Buck levara poucos minutos para chegar, mas Ritz não aguentou
esperá-lo em pé. Ele estava sentado, com os braços passados ao redor dos joelhos dobrados.
Ritz esforçou-se para levantar e cobriu os olhos, parecendo estar zonzo. Buck abriu a porta do
lado dele, mas Ken disse:
- Pode deixar. Eu estou bem.
100
DOZE
Ele se espremeu para entrar no carro, ficando com os joelhos encostados no painel e a cabeça
raspando o teto.
- Rapaz, tenho de me abaixar para ver alguma coisa – ele disse, rindo.
- Não há muita coisa para ser vista - disse Buck. – Tente relaxar.
Ritz esbravejou.
- Acho que nunca levou uma pancada de avião na cabeça.
- Claro que não - disse Buck, desviando pelo acostamento e ultrapassando vários carros.
- A palavra certa não é relaxar. É sobreviver. Por que você me fez sair daquele hospital? Eu
precisava ficar mais um ou dois dias lá.
- Não jogue a culpa em cima de mim. Tentei fazer você mudar de ideia.
- Eu sei. Só me ajude a encontrar meu analgésico, por favor. Onde está minha sacola?
As vias expressas das Cidades Gémeas Saint Paul e Minneapolis estavam relativamente em
boas condições, comparadas às da região de Chicago. Serpenteando por entre becos e desvios,
Buck rodava a uma velocidade regular. Com os olhos na estrada e uma das mãos ao volante,
ele passou a outra por trás de Ken e pegou sua sacola grande de couro. Puxou-a com força
para passá-la por trás do banco de Ken. Quando ele fez esse movimento, a sacola bateu com
força na cabeça de Ken, fazendo-o dar um grito de dor.
- Oh, Ken! Desculpe-me! Você está bem?
Ken colocou a sacola no colo. Lágrimas corriam por seu rosto, e ele fez uma careta tão feia que
seus dentes ficaram à mostra.
- Se eu soubesse que você fez isso de propósito - ele disse, gemendo -, você seria um
homem morto.
Rayford Steele sentia grande necessidade de ler a Palavra de Deus desde o dia em que aceitara
a Cristo. No entanto, à medida que o mundo voltava lentamente à normalidade após os
desaparecimentos, suas tarefas e responsabilidades aumentavam dia a dia. Tornava-se cada
vez mais difícil dedicar-se à leitura da Bíblia o quanto ele desejava.
Seu pastor, o falecido Bruce Barnes, havia convencido os membros do Comando Tribulação
sobre a importância de "examinar as Escrituras" diariamente. Rayford procurava seguir essas
instruções, mas nas últimas semanas sentiu-se frustrado por não ter conseguido. Tentava sair
da cama, mas vivia envolvido em tantas discussões e atividades até tarde da noite que o
estudo da Palavra de Deus se tornou impraticável. Às vezes, lia a Bíblia nos intervalos dos
voos, porém isso causava animosidade entre ele e seus co-pilotos.
Finalmente, ele encontrou uma solução. Independente do lugar em que estivesse no mundo e
do que houvesse feito durante o dia ou à noite, chegaria o momento em que ele teria de
deitar-se para dormir. Independentemente do local ou da situação, antes de apagar a luz, ele
faria seu estudo bíblico.
A princípio, Bruce havia sido categórico, insistindo para que ele dedicasse a Deus os primeiros
minutos do dia e não os últimos.
- Você precisa levantar-se mais cedo - Bruce dissera. - Não seria melhor dedicar a Deus os
momentos em que você está descansado e nos quais dispõe de mais energia?
Rayford considerava sábio esse conselho, mas quando parecia não funcionar, ele voltava ao
antigo método. Sim, muitas vezes ele dormira enquanto lia a Bíblia ou orava, mas em geral
permanecia acordado, e Deus sempre tinha algo a lhe mostrar.
Depois de perder sua Bíblia no terremoto, Rayford começou a sentir-se frustrado. Agora, nas
horas vagas, ele queria conectar a Internet, ler uma boa versão da Bíblia e ver se Tsion Ben-
Judá enviara alguma mensagem por meio da central de boletins. Rayford sentiu-se agradecido
por ter guardado seu laptop na sacola de viagem. Se ele tivesse guardado sua Bíblia ali, não
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estaria achando falta dela agora.
Trajando apenas camiseta, calça e meias, Rayford carregou o laptop até o centro de
comunicações. As secretárias eletrônicas estavam ligadas, mas não havia ninguém por perto.
Ele encontrou uma tomada de telefone livre, ligou o fio e sentou-se num local onde podia ver a
porta de seu quarto no fim do corredor.
Quando as informações começaram a aparecer na tela, seus ouvidos captaram o som de
passos. Ele abaixou a tela e olhou para o fim do corredor. Um moço de cabelos escuros, parado
diante de seu quarto, batia levemente na porta. Como ninguém atendeu, ele tentou girar a
maçaneta. Rayford imaginou que alguém tinha sido incumbido de roubá-lo ou
de procurar pistas para saber o paradeiro de Hattie Durham ou Tsion Ben-Judá.
Depois de bater novamente, o rapaz afastou-se com ar de desânimo. De repente, algo ocorreu a
Rayford. Seria Hassid? Ele chamou-o com um "psiu!" bem alto.
O moço parou e olhou na direção do som. Rayford estava na penumbra e levantou a tela do
laptop para clarear o local em que estava. O moço parou, querendo certificar-se de que a
pessoa diante do computador era quem ele esperava ver. Rayford imaginou que história ele
inventaria caso um de seus superiores passasse ali.
Rayford chamou-o com um gesto, e o moço aproximou-se. Em seu crachá, lia-se David Hassid.
- Posso ver seu sinal? - Hassid sussurrou. Rayford aproximou o rosto da tela e afastou os
cabelos. - Isso é muito legal, conforme os norte-americanos costumam dizer.
- Você estava à minha procura? - perguntou Rayford.
- Eu queria conhecê-lo - respondeu Hassid. - A propósito, eu trabalho no setor de
comunicações. - Rayford fez um movimento de cabeça confirmando que já sabia. - Apesar de
não termos telefones nos quartos, temos tomadas para telefones.
- No meu não há. Já procurei.
- Elas estão cobertas com placas de aço inoxidável.
- Não vi isso - disse Rayford.
- O senhor não precisa arriscar-se a ser visto aqui, capitão Steele.
- É bom saber disso. Eu não ficaria surpreso se eles descobrissem em que página da Web eu
entrei.
- Eles têm condições de saber. Podem rastrear as linhas de seu quarto também, mas o que
encontrariam?
- Estou tentando encontrar o que meu amigo Tsion Ben-Judá está dizendo estes dias.
- Eu posso lhe contar tudo - disse Hassid. - Ele é meu pai espiritual.
- O meu também.
- Foi ele quem o conduziu a Cristo?
- Não - admitiu Rayford. - Foi o antecessor dele. Mas considero o rabino meu pastor e mentor.
- Vou anotar para o senhor o endereço da central de boletins onde encontrei a mensagem dele
para hoje. É bem longa, mas é ótima. Ele e um irmão de fé descobriram seus respectivos sinais
ontem. Estou muito empolgado. O senhor sabia que talvez eu seja uma das 144.000
testemunhas?
- Bem, isso seria muito bom, não? - disse Rayford.
- Não vejo a hora de saber qual é a minha atribuição. Sinto-me muito novato, muito ignorante
acerca da verdade.
Conheço o Evangelho, mas preciso conhecer muito mais ainda, se quiser ser um evangelista
arrojado, que pregue como o apóstolo Paulo.
- Se você pensar bem, David, somos todos novatos nesse assunto. Mas eu sou o mais novato de
todos. Espere até ver todas as mensagens na central de boletins. Milhares e milhares de
crentes já responderam. Não sei como o Dr. Ben-Judá vai encontrar tempo para ler tudo. Eles
estão querendo muito que ele visite seus países a fim de ensiná-los e treiná-los pessoalmente.
Eu daria tudo para ter esse privilégio.
- Você sabe, é claro, que o Dr. Ben-Judá é um fugitivo.
- Sei, mas ele acredita ser uma das 144.000 testemunhas. Está ensinando que teremos um selo
na testa, pelo menos por uns tempos, e que as forças do mal não se insurgirão contra nós.
- Sério?
- Sim. Aparentemente, essa proteção não é para todos os que possuem o selo. É só para os
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judeus convertidos.
- Em outras palavras, eu posso estar correndo perigo, mas você não, pelo menos por uns
tempos.
- Acho que é isso que ele está ensinando. Estou ansioso para saber qual será a sua reação,
capitão.
- Não vejo a hora de conectar a Internet.
Rayford desligou o laptop da tomada, e os dois caminharam pelo corredor conversando em voz
baixa. Rayford descobriu que Hassid tinha apenas 22 anos, era formado por uma faculdade de
aspirantes a militares na Polónia.
- Eu estava fascinado por Carpathia - ele contou – e candidatei-me imediatamente para
trabalhar na Comunidade Global. Não demorou muito tempo para eu descobrir a verdade pela
Internet. Agora me encontro-me em oposição às linhas inimigas, mas eu não planejava que
isso acontecesse dessa maneira.
Rayford aconselhou o jovem que não seria prudente declarar-se antes do momento certo.
- Será muito perigoso declarar-se crente, e neste momento você será muito útil à causa se
permanecer em silêncio, como o piloto McCullum está fazendo.
Quando chegaram à porta do quarto de Rayford, Hassid deu-lhe um forte aperto de mão.
- É bom demais saber que não estou só - ele disse. – O senhor gostaria de ver o meu sinal?
- Claro - respondeu Rayford, sorrindo.
Ainda segurando a mão de Rayford, Hassid afastou o cabelo da testa.
- Com certeza você é um dos nossos - disse Rayford. - Bem-vindo à família.
Na opinião de Buck, o estacionamento do hospital era semelhante ao do aeroporto. O
pavimento havia afundado, e na parte frontal foi aberto um desvio no meio dos entulhos.
Porém as pessoas estacionavam a esmo, e o único lugar que Buck encontrou ficava a centenas
de metros da entrada. Ele deixou Ken na porta do hospital com sua sacola e pediu-lhe que o
aguardasse ali.
- Só se você prometer não dar uma pancada em minha cabeça de novo - disse Ken. - Rapaz,
sair deste carro é igual a um parto.
Buck estacionou em linha com outros veículos e retirou da sacola alguns artigos de toalete.
Enquanto se dirigia para o hospital, ele ajeitou a camisa dentro da calça, passou uma escova
na roupa, penteou o cabelo e borrifou um pouco de desodorante nas axilas. Quando chegou
perto da entrada, ele avistou Ken deitado no chão, usando a sacola como travesseiro. Buck
perguntou a si mesmo se havia sido uma boa ideia forçá-lo a trabalhar. Algumas pessoas
olhavam para Ken, que parecia estar em coma. Oh, não!, pensou Buck.
- Você está bem? - ele perguntou, ajoelhando-se ao lado de
Ken. - Deixe-me ajudá-lo a levantar-se.
Ken falou sem abrir os olhos.
- Oh, rapaz! Buck, fiz uma grande bobagem.
- O quê?
- Você se lembra de quando me deu aquele remédio? – A voz de Ken era pastosa. - Eu engoli
sem água, certo?
- Eu perguntei se você precisava de água.
- O problema não é este. Eu devia tomar um comprimido de um frasco e três do outro, a cada
quatro horas. Eu me esqueci da última dose e resolvi tomar dois de um e seis do
outro.
- E daí?
- Eu misturei os frascos.
- Quais são?
Ritz deu de ombros e começou a respirar como se estivesse ressonando.
- Não caia dormindo em cima de mim, Ken. Preciso levar você para dentro.
Buck vasculhou a sacola de Ken e encontrou os frascos. A dose maior recomendada era para
dor local. A menor parecia ser uma combinação de morfina, Demerol e Prozac.
- Você tomou seis deste7.
- Hummm, hummm.
103
- Vamos, Ken. Levante-se. Já.
- Oh, Buck. Deixe-me dormir.
- De jeito nenhum. Temos de sair daqui já.
Buck não acreditava que Ken estivesse muito mal nem que precisasse ser submetido a uma
lavagem estomacal, mas se não o levasse para dentro, Ken seria um empecilho e não o
ajudaria em nada. E pior, ele talvez fosse arrastado dali para um outro lugar.
Buck levantou uma das mãos de Ken e enfiou a cabeça debaixo de seu braço. Quando ele
tentou endireitar-se, Ken soltou o corpo e voltou à posição anterior.
- Vamos, rapaz. Você precisa me ajudar
Ken apenas resmungava.
Buck segurou a cabeça de Ken com cuidado e retirou a sacola debaixo dele.
- Vamos, vamos!
- Você hummm, hummm.
Buck receava que a cabeça de Ken fosse o único lugar que ainda possuía sensibilidade e que
poderia tornar-se insensível repentinamente. Em vez de arriscar-se a contaminar o ferimento
na cabeça, Buck resolveu tocar em um ponto inflamado em outro local, um pouco abaixo da
linha dos cabelos, que estava muito vermelho. Buck afastou uma perna da outra, equilibrou-se
e apertou o local. Ritz levantou-se com um pulo como se tivesse recebido um tiro. Ele virou-se
para dar um tapa em Buck, mas este se esquivou, passou um braço ao redor das costas de
Ken, segurou a sacola com o outro e conduziu-o para a entrada do hospital.
Ken parecia estar delirando por causa do ferimento e agia como tal. As pessoas afastavam-se
do caminho.
Dentro do hospital, a situação era pior. Tudo o que Buck podia fazer era segurar Ken para que
ele não caísse. As filas diante da recepção eram imensas. Buck arrastou Ken até a sala de
espera, onde todas as cadeiras estavam ocupadas, e havia várias pessoas em pé. Buck olhou
para ver se alguém poderia ceder o lugar. Finalmente, uma senhora robusta de meia-idade
levantou-se. Buck agradeceu-lhe e fez Ken sentar-se. Ken curvou o corpo de lado, levantou os
joelhos, segurou o rosto com as duas mãos e deixou a cabeça cair sobre o ombro de um
senhor idoso a seu lado. O homem notou o ferimento, retraiu-se, mas depois resolveu
resignar-se e servir de travesseiro para Ken.
Buck enfiou a sacola de Ken debaixo da cadeira, desculpou-se com o senhor idoso e prometeu
voltar o mais rápido possível. Quando ele tentou aproximar-se do balcão da recepção, as
pessoas que formavam duas filas reclamaram.
- Lamento muito - ele gritou -, mas tenho um caso de emergência!
- Todos nós temos - gritou alguém.
Ele permaneceu na fila por alguns minutos, mais preocupado com Chloe que com Ken. Ken
estava dormindo. O único problema era que Buck estava sem ação. A menos que...
Ele saiu da fila e dirigiu-se apressado a um banheiro público. Lavou o rosto, umedeceu e
penteou o cabelo e ajeitou a roupa o melhor que pôde. Tirou a carteira de identidade do bolso
e prendeu-a na camisa, virando-a para que sua fotografia e seu nome não ficassem visíveis.
Retirou a lente que sobrara de seus óculos de sol quebrados, mas a armação estava tão
horrível que ele a levantou e a ajeitou por cima do cabelo. Olhou-se no espelho, fez uma
careta e disse a si mesmo:
- Você é médico. Um médico de verdade, mandão e faz-tudo.
Ele saiu do banheiro como se soubesse onde estava indo. Precisava encontrar uma pessoa
simplória. Os dois médicos que passaram por ele pareciam ser muito maduros e experientes
para cair em sua lábia. De repente, surgiu um jovem médico, magro, de olhos arregalados
como se não pertencesse àquele hospital. Buck parou na frente dele.
- Doutor, eu não lhe disse para verificar aquele trauma na emergência dois?
O jovem médico perdeu a fala.
- E então? - perguntou Buck, com voz autoritária.
- Não! Não, doutor. O senhor deve ter pedido a outro médico.
- Está bem! Mas preste atenção! Preciso de um estetoscópio - desta vez um esterilizado! - um
avental grande recém-saído da lavanderia e o prontuário da Mãe Coelha. Você entendeu?
O residente fechou os olhos e repetiu:
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- Estetoscópio, avental, prontuário.
Buck continuou a gritar:
- Esterilizado, grande, Mãe Coelha.
- Vou buscar imediatamente, doutor.
- Vou esperar perto dos elevadores.
- Sim, senhor.
O residente virou-se e afastou-se. Buck gritou para ele:
- É para hoje, doutor! - O residente começou a correr.
Agora, Buck precisava encontrar os elevadores. Voltou à sala de espera e viu que Ken
continuava cochilando na mesma posição. O senhor a seu lado parecia constrangido. Buck
perguntou a uma mulher hispânica se ela sabia onde se localizavam os elevadores. Ela apontou
para o fim do corredor. Enquanto ele corria naquela direção, ouviu o interno atrás do balcão,
apressando as recepcionistas.
- Façam o que estou mandando! - ele dizia.
Alguns minutos depois, o jovem médico dirigiu-se apressado a Buck, trazendo tudo o que ele
pedira. Segurou o avental aberto, e Buck vestiu-o rapidamente, pendurou o estetoscópio no
pescoço e pegou o prontuário.
- Obrigado, doutor. De onde você é?
- Daqui mesmo! - respondeu o residente. - Deste hospital.
- Oh, que bom! Muito bom! Eu sou do... - Buck hesitou
por um segundo. - Young Memorial. Obrigado pela ajuda.
O residente parecia atordoado, como se estivesse pensando onde se localizava o Young
Memorial.
- De nada - ele disse.
Buck afastou-se dos elevadores e correu para o banheiro. Trancou-se em um dos
compartimentos e abriu o prontuário de Chloe. As fotografias o levaram às lágrimas. Ele
depositou a prancheta com o prontuário no chão e orou silenciosamente: "Senhor, como
permitiste que isso acontecesse?"
Com os dentes cerrados e tremendo, ele fazia um esforço enorme para acalmar-se. Não queria
que ninguém o ouvisse. Após mais ou menos um minuto, ele abriu o prontuário novamente. Na
fotografia, com o rosto quase irreconhecível, sua mulher olhava para ele. Se ela estivesse tão
inchada assim quando foi transportada para Kenosha, nenhum médico a teria reconhecido
mediante a fotografia que Buck exibira.
Conforme o médico de Kenosha dissera, aparentemente o lado direito do corpo de Chloe tinha
sido atingido com violência por uma parte do telhado. Sua pele, normalmente lisa e clara,
apresentava manchas vermelhas e amareladas e cortes onde haviam penetrado piche e
pedregulhos. O pé direito parecia ter sido forçado a dobrar-se ao meio. Um osso despontava de
sua canela. Os ferimentos começavam do lado de fora do joelho e atingiam a rótula, que
estava muito machucada. Na posição em que ela se encontrava, dava a impressão que o lado
direito de seu quadril havia saído do lugar. As contusões e os hematomas no tórax
evidenciavam costelas quebradas. O cotovelo tinha sinais de fratura e o ombro direito parecia
ter-se deslocado, com a clavícula direita pressionada contra a pele. O lado direito do rosto
estava achatado, comprometendo a mandíbula, os dentes, o osso malar e o olho. O rosto
estava tão desfigurado que Buck mal conseguia olhar para ele. O olho, inchado demais, estava
fechado. O único ferimento no lado esquerdo era uma escoriação perto do quadril; portanto, o
médico devia ter razão quando deduziu que ela havia levado uma pancada do lado direito.
Buck decidiu que não se assustaria quando a visse. Evidentemente, queria que Chloe
sobrevivesse. Mas isso seria o melhor para ela? Será que ela conseguiria comunicar-se? Seria
capaz de reconhecê-lo? Ele folheou o restante do prontuário, tentando interpretar as
anotações. Aparentemente, os órgãos internos não haviam sido atingidos. Ela sofrera várias
fraturas, inclusive três no pé, uma no tornozelo, na rótula, no cotovelo e em duas costelas, e
luxações no quadril e ombros. Havia também fraturas na mandíbula, osso malar e crânio.
Buck analisou o restante rapidamente, procurando uma palavra-chave. Lá estava. Detectados
batimentos fetais. Oh, Deus! Permite que ela e o bebé se salvem.
Buck não entendia nada de medicina, mas os sinais vitais de Chloe pareciam bons para uma
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pessoa que sofrera um trauma daquelas proporções. Apesar de ela não ter recuperado a
consciência até o momento da elaboração do relatório médico, seu pulso, respiração, pressão
arterial e ondas cerebrais apresentavam normalidade.
Buck consultou seu relógio. O contingente da CG chegaria em breve. Ele necessitava de tempo
para pensar e recompor-se. Não seria bom para Chloe se ele agisse com precipitação. Depois de
memorizar o maior número possível de informações do prontuário e verificar que ela se
encontrava no quarto 335A, ele colocou a prancheta debaixo do braço. Saiu do banheiro com
os joelhos trémulos, mas aprumou-se assim que chegou ao corredor. Enquanto refletia sobre
suas opções, ele voltou à sala de espera da recepção. O senhor idoso havia ido embora. Ken
Ritz não tinha onde apoiar a cabeça, mas seu corpanzil estava curvado em posição fetal, como
uma criança crescida, com a parte sã da cabeça pousada no encosto da cadeira. Parecia que
ele teria condições de dormir por uma semana.
Buck pegou o elevador e desceu no terceiro andar para fazer o reconhecimento do terreno.
Abriu novamente o prontuário. "335A." Ela estava num quarto com outra paciente. E se ele
simulasse ser o médico da outra paciente? Mesmo que não constasse da lista dos médicos do
hospital, eles não barrariam sua entrada, certo? Talvez precisasse gritar e esbravejar, mas
entraria no quarto.
Dois policiais uniformizados da CG, um moço e uma mulher de mais idade, postavam-se de
cada lado da porta do quarto 335. Coladas na porta, havia duas fitas adesivas brancas, escritas
com tinta preta. A de cima dizia: "A: Mãe Coelha, Proibidas Visitas." Na outra, lia-se: "B: A.
Ashton."
Buck estava ansioso por ver Chloe. Com o relógio trabalhando contra ele, seria necessário
entrar ali antes dos oficiais da CG. Ele passou pelo quarto, foi até o fim do corredor, deu meiavolta
e caminhou na direção do 335.
Rayford não estava preparado para o que encontrou na Internet. Tsion se superara. Conforme
David Hassid dissera, milhares e milhares de pessoas já haviam respondido. Muitas enviavam
mensagens por meio da central de boletins identificando-se como membros das 144.000
testemunhas. Rayford examinou as mensagens por mais de uma hora, sem conseguir chegar
ao fim. Centenas de pessoas afirmavam que aceitaram a Cristo depois de lerem a mensagem de
Tsion e os versículos de Romanos que comprovavam a necessidade da presença de Deus.
Já era tarde, e os olhos de Rayford estavam cansados. Ele tinha a intenção de passar uma
hora na Internet, mas ficara muito mais tempo lendo a mensagem de Tsion. "A Colheita de
Almas Está Próxima" era um estudo fascinante das profecias bíblicas. Tsion elaborara o estudo
de maneira tão compreensível e pessoal que Rayford não se surpreendeu com o fato de
milhares de pessoas se considerarem afilhadas do rabino, apesar de nunca o terem conhecido.
No entanto, pelo que se deduzia das mensagens enviadas por meio da central de boletins, a
situação teria de modificar-se. O povo clamava para que Tsion visitasse seus países para
poderem aprender diretamente com ele.
Tsion respondeu aos pedidos contando a história de sua vida e como foi indicado pelo Estado
de Israel para estudar as afirmativas sobre a vinda do Messias por ser um profundo conhecedor
da Bíblia. Ele explicou, que pouco antes do arrebatamento da Igreja, tinha chegado à
conclusão de que Jesus de Nazaré preenchia todos os requisitos do Messias profetizado no
Antigo Testamento. Mas só aceitou a Cristo como seu salvador quando presenciou o
Arrebatamento.
Ele não revelou isso a ninguém até o dia em que foi convidado a aparecer em um programa de
TV de âmbito internacional a fim de divulgar os resultados de seu extenso estudo.
Surpreendeu-se ao constatar que os judeus ainda se recusavam a acreditar quem Jesus era,
segundo a Bíblia. Tsion revelou suas descobertas no final do programa, provocando um
tremendo tumulto, principalmente entre os ortodoxos. Em seguida, sua esposa e dois filhos
adolescentes foram trucidados, e ele mal teve tempo de fugir. Tsion contou também que, no
momento, estava escondido, mas que "continuaria a ensinar e a proclamar que Jesus Cristo é
o único nome debaixo do céu, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos".
Rayford forçou-se a permanecer acordado, meditando sobre os ensinamentos de Tsion. Uma
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contagem exibida na tela mostrava o número de respostas que estavam sendo compiladas pela
central de boletins. Parecia que o sistema de contagem estava com defeito. Os números
mudavam com tanta velocidade que Rayford não conseguia enxergá-los um a um. Ele separou
algumas respostas ao acaso. Muitos judeus convertidos afirmavam estar entre as 144.000
testemunhas. Além disso, muitos judeus e gentios diziam que passaram a acreditar em Cristo.
Outros milhares incentivavam uns aos outros no sentido de fazerem uma petição à
Comunidade Global solicitando proteção e asilo para esse grande estudioso.
Rayford sentiu um formigamento atrás dos joelhos que se estendeu até a cabeça. Uma parte
do poder de Carpathia dependia do julgamento do povo. Ele não teria condições de assassinar
Tsion Ben-Judá ou matá-lo "acidentalmente", e deixar transparecer que isso havia sido obra de
outras forças. Em razão do apelo dos milhares de pessoas do mundo inteiro em favor de Tsion,
Nicolae seria forçado a provar que podia resgatá-lo. Rayford desejava que também houvesse
um jeito de forçá-lo a fazer a coisa certa no caso de Hattie Durham.
A principal mensagem de Tsion para o dia baseava-se nos capítulos 8 e 9 de Apocalipse. Esses
capítulos davam sustentação a seus argumentos de que após o terremoto - a profecia da ira
do Cordeiro - viriam os segundos 21 meses da Tribulação.
O período todo é de sete anos ou 84 meses. Portanto, meus caros amigos, vocês podem ver
que estamos vivendo a primeira quarta parte. Lamentavelmente, os terríveis acontecimentos
que estamos presenciando tornar-se-ão progressivamente piores à medida que nos
aproximarmos do fim, do glorioso aparecimento de Cristo.
O que virá a seguir? Em Apocalipse 8.5 um anjo pega um incensário, enche-o do fogo do altar
de Deus e atira-o à terra, provocando trovões, vozes, relâmpagos e terremoto.
O mesmo capítulo prossegue dizendo que sete anjos com sete trombetas preparam-se para
tocar. É neste ponto que estamos. Em algum momento dos próximos 21 meses, o primeiro
anjo tocará a trombeta e haverá chuva de granizo e fogo, misturados com sangue, e atirados à
terra. Isso queimará um terço das árvores e toda a vegetação da terra.
Depois, um segundo anjo tocará a segunda trombeta, e a Bíblia diz que uma grande montanha
ardendo em chamas será atirada ao mar, cuja terça parte se transformará em
sangue, matando um terço de todos os seres viventes do mar e afundando um terço dos
navios.
Quando o terceiro anjo tocar a trombeta cairá do céu uma grande estrela, ardendo como tocha,
sobre a terça parte dos rios e nascentes. A Bíblia dá um nome a essa estrela. O livro de
Apocalipse a chama de Absinto. Onde ela cai, a água se torna amarga e quem a beber, morre.
Como pode uma pessoa que tem o poder de raciocínio ver tudo o que aconteceu e não temer o
que está por vir? Se ainda houver incrédulos após o terceiro Julgamento das Trombetas, o
quarto deverá convencer a todos. Qualquer pessoa que resistir às admoestações de Deus
naquela época, provavelmente já decidiu servir ao inimigo. No quarto Julgamento das
Trombetas, o sol, a lua e as estrelas serão golpeados, de modo que a terça parte do sol, a
terça parte da lua e a terça parte das estrelas escurecerão. Nunca mais veremos o sol brilhar
tão intensamente quanto antes. O dia de verão mais claro, com o sol a pino, terá apenas dois
terços da luminosidade que possuía antes. Que explicação haverá para isso?
No meio desses acontecimentos, o autor do livro de Apocalipse diz que viu e ouviu um anjo
voando pelo meio do céu e dizendo em alta voz: "Ai, ai, ai dos que moram na terra, por causa
das restantes vozes da trombeta dos três anjos que ainda têm de tocar."
Em meu próximo estudo, cobrirei os três últimos Julgamentos das Trombetas do segundo
período de 21 meses da Tribulação. Porém, meus amados irmãos e irmãs em Cristo, a vitória
também se aproxima. Permitam-me recordar-lhes algumas passagens da Bíblia, cujo desfecho
já está determinado. Nós vencemos! Mas precisamos compartilhar a verdade, falar da escuridão
e levar o maior número possível de almas para Cristo nestes últimos dias.
Quero que saibam por que acredito que uma grande colheita de almas se aproxima. Mas,
antes, reflitam sobre estas afirmações e promessas:
No livro de Joel 2.28-32, que se encontra no Antigo Testamento, Deus diz o seguinte: "E
acontecerá depois que derramarei o meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas
filhas profetizarão, vossos velhos sonharão, e vossos jovens terão visões; até sobre os servos e
sobre as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias.
107
"Mostrarei prodígios no céu e na terra; sangue, fogo, e colunas de fumo.
"O sol se converterá em trevas, e a lua em sangue, antes que venha o grande e terrível dia do
Senhor.
"E acontecerá que todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo; porque no monte
Sião e em Jerusalém estarão os que forem salvos, assim como o Senhor prometeu, e entre os
sobreviventes aqueles que o Senhor chamar."
Vocês não acham que essa é uma promessa maravilhosa e abençoada? Apocalipse 7 indica que
os julgamentos das trombetas que acabo de mencionar não virão enquanto os servos de Deus
não receberem o selo na testa. Não haverá mais nenhuma dúvida sobre quem são os
verdadeiros crentes. Aos primeiros quatro anjos, a quem foram entregues os quatro primeiros
Julgamentos das Trombetas, foi instruído que: "Não danifiqueis nem a terra, nem o mar, nem
as árvores, até selarmos em suas frontes os servos do nosso Deus." Portanto, está claro que
esse selo vem antes. Nas últimas horas tornou-se evidente para mim e para outros irmãos e
irmãs em Cristo que o selo na testa dos verdadeiros crentes já está visível, mas
aparentemente só os crentes podem vê-lo. Trata-se de uma descoberta emocionante, e eu
gostaria muito que vocês me informassem se já viram tal sinal uns nos outros.
A palavra servos, que se origina da palavra grega doulos, é a mesma que os apóstolos Paulo e
Tiago usaram quando se referiram a si mesmos como prisioneiros de Jesus Cristo. A principal
função de um servo de Cristo é divulgar o Evangelho da graça de Deus. Seremos inspirados
porque podemos compreender o livro de Apocalipse, que foi dado por Deus "para mostrar aos
seus servos as coisas que em breve devem acontecer", de acordo com o primeiro versículo do
primeiro capítulo. O terceiro versículo diz: "Bem-aventurados aqueles que lêem e aqueles que
ouvem as palavras da profecia e guardam as coisas nela escritas, pois o tempo está próximo."
Embora ainda tenhamos de sofrer grandes perseguições, podemos nos sentir confortados
porque durante a Tribulação estaremos aguardando eventos extraordinários mencionados em
Apocalipse, o último livro no qual Deus revela seu plano ao homem.
Agora, permitam-me mencionar mais um versículo do capítulo 7 de Apocalipse, e explicarei por
que motivo resolvi falar desta grande colheita de almas.
Em Apocalipse 7.9, João, a quem as profecias foram reveladas, diz: "Depois destas coisas vi, e
eis grande multidão que ninguém podia enumerar, de todas as nações, tribos, povos e línguas,
em pé diante do trono e diante do Cordeiro, vestidos de vestiduras brancas, com palmas nas
mãos."
Estes são os santos da tribulação. Agora, acompanhem atentamente meu raciocínio. Em um
versículo posterior, Apocalipse 9.16, o autor diz que o número dos exércitos da cavalaria era
de duzentos milhões. Se um exército tão imenso pode ser enumerado, o que a Bíblia queria
dizer quando se refere aos santos da tribulação - aqueles que aceitarão a
Cristo durante esse período - como uma "grande multidão que ninguém podia enumerar" [grifo
meu]?
Vocês entendem por que acredito que devemos levar a Deus mais de um bilhão de almas
durante este período? Vamos orar por esta grande colheita. Todo aquele que aceitar a Cristo
como seu Redentor terá parte nisso, a maior incumbência que já foi dada à humanidade.
Aguardo comunicar-me com vocês em breve.
Com amor, no nome incomparável do Senhor Jesus Cristo, nosso Salvador,
- Tsion Ben-Judá
Rayford mal conseguia manter os olhos abertos, mas estava comovido com o entusiasmo
ilimitado de Tsion e seus maravilhosos ensinamentos. Ele voltou a olhar para a contagem
exibida na tela e piscou, parecendo não acreditar no que via. O número já estava em dezenas
de milhares e aumentava assustadoramente. Rayford queria ser mais um naquela lista, mas
estava exausto.
Nicolae Carpathia havia feito um pronunciamento ao mundo inteiro via rádio e TV. Sem dúvida,
a reação seria monumental. Mas será que competiria com a reação demonstrada a esse rabino
convertido, que se comunicava do exílio com uma nova família cujo número era cada vez
maior?
108
Buck decidiu que naquele momento ele não era apenas um médico, mas também um ególatra.
Aproximou-se do quarto 335 e limitou-se a fazer um movimento com a cabeça para os dois
policiais da Comunidade Global. Quando ele tentou abrir a porta, ambos barraram-lhe a
entrada.
- Com licença! - ele disse com ar zangado. - A campainha de alarme da Srta. Ashton tocou.
Se vocês não quiserem ser responsáveis pela morte de minha paciente, saiam da frente.
Os policiais se entreolharam, parecendo estar em dúvida. A mulher tentou pegar o crachá de
Buck. Ele afastou a mão dela com força, entrou no quarto e trancou a porta. Parou por alguns
instantes e deu meia-volta, preparado para responder, caso começassem a esmurrar a porta.
Eles não tomaram nenhuma atitude.
Os leitos das duas pacientes estavam rodeados de cortina. Buck afastou a primeira e avistou
Chloe. Ele prendeu a respiração enquanto seus olhos percorriam o corpo dela coberto com um
lençol desde os pés até o pescoço. Parecia que seu coração ia explodir. A pobre e meiga Chloe
não tinha ideia de onde estava se metendo quando concordou em se casar com ele. Buck
mordeu os lábios com força. Não havia tempo para emoções. Ele ficou feliz por ela estar
dormindo tranquilamente. Seu braço direito estava engessado desde o pulso até o ombro. O
braço esquerdo estendia-se ao lado do corpo, e havia uma agulha intravenosa espetada no
dorso de sua mão.
Buck deixou a prancheta sobre a cama e colocou a mão debaixo da dela. Ao tocar aquela pele
macia, que ele gostava de acariciar, Buck sentiu vontade de segurá-la nos braços, confortá-la,
levar embora sua dor. Ele curvou-se e encostou os lábios na mão de Chloe, deixando que as
lágrimas caíssem por entre os dedos. Ele teve um sobressalto ao sentir um leve aperto na mão
e olhou para ela. Chloe estava com os olhos fixos nele.
- Eu estou aqui! - ele sussurrou desesperado, aproximando-se para acariciar o rosto dela. -
Chloe, meu bem, é Buck.
Ele chegou mais perto. Ela o acompanhava com o olhar. Buck não queria olhar para o lado
direito dela. Ali estava sua esposa, com a aparência meiga e inocente de um lado e
monstruosa do outro. Ele segurou a mão dela novamente.
- Você está me ouvindo? Chloe, aperte minha mão outra vez.
Nenhuma reação.
Buck correu até o outro lado do quarto e afastou a cortina para olhar a outra paciente. A.
Ashton era uma senhora beirando os 60 anos e parecia estar em coma. Buck voltou, pegou a
prancheta e analisou o rosto de Chloe. Ela o acompanhava com o olhar. Será que podia ouvir?
Estaria consciente?
Ele destrancou a porta e saiu no corredor.
- No momento, ela está fora de perigo - ele disse - mas há um problema. Quem disse que a
Srta. Ashton estava no leito B?
- Desculpe-me, doutor - disse a policial - mas não temos nada a ver com as pacientes. Nossa
responsabilidade é vigiar a porta.
- Então, vocês não são responsáveis por esta confusão de nomes?
- Absolutamente - respondeu a policial.
Buck arrancou as fitas adesivas da porta e inverteu as posições.
- A senhora pode tomar conta deste quarto sozinha enquanto este jovem vai buscar uma
caneta para mim?
- Certamente, senhor. Craig, vá buscar uma caneta para ele.
109
TREZE
Buck voltou a entrar no quarto, desesperado para que Chloe soubesse que ele estava ali para
protegê-la.
Ele não suportava olhar para aquele rosto com marcas escuras e roxas e um grande inchaço no
olho. Segurou delicadamente a mão de Chloe e aproximou-se de seu rosto.
- Chloe, estou aqui, e não vou permitir que nada lhe aconteça. Mas preciso de sua ajuda.
Aperte minha mão. Pisque. Dê um sinal de que está me ouvindo.
Nenhuma reação. Buck encostou o rosto no travesseiro dela, com os lábios bem próximos de
seu ouvido. "Oh, Deus", ele orou, "por que permitiste que isto acontecesse? Por que ela?
Ajuda-me a tirá-la daqui, Senhor, eu te suplico!"
Buck sentiu a mão de Chloe leve como uma pluma, e ela parecia frágil como uma criança
recém-nascida. Que contraste com a mulher forte que um dia ele conhecera e que amava
tanto. Além de ser destemida, ela era muito inteligente. Como ele gostaria que ela estivesse
em condições de ajudá-lo.
A respiração de Chloe acelerou, e Buck viu uma lágrima escorrendo pela orelha dela. Ele olhou
firme para o rosto de Chloe e ela começou a piscar rapidamente. Buck perguntou a si mesmo se
ela estava tentando comunicar-se.
- Estou aqui - disse ele repetidas vezes. - Chloe, é Buck.
O policial da CG já devia estar voltando. Buck orou para que ele estivesse do lado de fora,
aguardando para entregar-lhe a caneta, mas com receio de bater na porta. Por outro lado,
talvez trouxesse alguém com ele e isso eliminaria qualquer possibilidade de Buck tirar Chloe
dali.
- Meu bem - ele disse rapidamente -, não sei se você pode me ouvir, mas tente concentrarse.
Estou trocando o seu nome pelo da mulher do leito ao lado. O nome dela é Ashton. Estou
fingindo ser seu médico. Está certo? Você entendeu?
Buck aguardou, cheio de esperança. Finalmente, ela fez um leve movimento.
- Eu comprei para você - ela balbuciou.
- O quê? Chloe, o quê? Sou eu, Buck. Você comprou para mim o quê?
Ela passou a língua pelos lábios e engoliu saliva.
- Eu comprei para você, e você quebrou.
Buck imaginou que ela estivesse delirando ou com a língua enrolada. Balançou a cabeça e
sorriu para ela.
- Confie em mim, criança, que tudo vai dar certo.
- Doutor Buck - ela resmungou, esboçando um sorriso.
- Sim! Chloe! Você me reconheceu.
Ela entreabriu os olhos e fechou-os vagarosamente, como se estivesse fazendo esforço para
permanecer acordada.
- Você devia ser mais cuidadoso com os presentes.
- Não sei do que você está falando, meu amor, e talvez você também não saiba. Não sei o que
fiz de errado, mas me desculpe.
Pela primeira vez, ela virou-se para olhar para ele.
- Você quebrou seus óculos, Dr. Buck.
A armação dos óculos de sol de Buck estava presa na parte de cima de sua cabeça.
- Sim! Chloe, preste atenção. Estou tentando protegê-la. Troquei os nomes que estão na porta.
Seu nome é...
- Ashton - ela conseguiu dizer com muito esforço.
- Isso mesmo! E seu primeiro nome começa com a letra A. Que nome bonito começa com A?
- Annie - ela disse. - Sou Annie Ashton.
- Perfeito. E quem eu sou?
110
Chloe apertou os lábios e começou a pronunciar a letra B, mas parou.
- Meu médico - ela disse.
Buck virou-se para ver se Craig, o policial, havia trazido a caneta.
- Doutor - Chloe disse em voz alta. - As pulseiras de identificação.
Ela estava raciocinando! Como ele pôde esquecer que alguém talvez tivesse a ideia de conferir
as pulseiras de identificação do hospital?
Buck arrancou a pulseira de Chloe, tomando o cuidado para não deslocar a agulha intravenosa,
e afastou a cortina do leito de A. Ashton. Ela parecia estar dormindo profundamente. Buck
retirou a pulseira da mulher com cuidado, percebendo que ela nem sequer dava sinais de estar
respirando. Ele aproximou-se um pouco mais, porém não ouviu nem sentiu nada. Também não
havia pulsação. Ele trocou as pulseiras.
Buck sabia que estava apenas ganhando tempo. Não demoraria muito para alguém descobrir
que o corpo dessa mulher idosa não era o de uma grávida de 22 anos. Mas, por enquanto, ela
era a Mãe Coelha.
Quando Buck saiu do quarto, os policiais estavam conversando com um médico mais velho.
Craig, com uma caneta preta na mão, estava dizendo:
- ...não sabíamos exatamente o que fazer.
O médico, um homem de óculos, alto e de cabelos grisalhos, segurava três prontuários. Ele fez
uma carranca para Buck.
Buck olhou furtivamente para o nome costurado no bolso de seu avental.
- Dr. Loyd! - ele exclamou, estendendo a mão.
O médico apertou-a com relutância.
- Não me lembro de...
- Claro que sim! Não nos vemos desde, hã, aquele...
- Simpósio?
- Isso mesmo, aquele em, hã...
- Bemidji?
- Sim, você foi brilhante.
O médico pareceu lisonjeado, como se estivesse tentando lembrar-se de Buck. Mesmo assim,
gostou do elogio e disse:
- Bem, eu...
- Um de seus filhos estava prestes a fazer alguma coisa. O que era mesmo?
- Oh, devo ter mencionado meu filho, que ia começar a fazer residência.
- Certo! E como ele está indo?
- Maravilhosamente. Estamos muito orgulhosos dele. Agora, doutor...
- Tenho certeza disso - interrompeu Buck. - Só uma pergunta, doutor - ele disse, tirando do
bolso o frasco de comprimidos de Ken Ritz. - Você poderia me ajudar a...
- Posso tentar.
- Obrigado, Dr. Lloyd. - Buck levantou o frasco de tranquilizantes. - Prescrevi este remédio a
um paciente com um ferimento grave na cabeça, e ele exagerou a dose inadvertidamente. Qual
é o melhor antídoto? O Dr. Lloyd examinou o frasco.
- A consequência não é muito grave. Ele vai dormir por algumas horas até o efeito passar.
Trauma na cabeça, foi o que você disse?
- Sim, é por isso que eu não queria que ele continuasse dormindo.
- Claro. O melhor antídoto é uma injeção de Benzedrina.
- Como não faço parte do corpo médico deste hospital - disse Buck -, não posso pegar nenhum
remédio na farmácia...
O Dr. Lloyd rabiscou uma receita.
- Agora, com sua licença, Dr...
- Cameron - disse Buck sem pensar.
- Prazer em vê-lo novamente, Dr. Cameron.
- O prazer foi meu, Dr. Lloyd, e obrigado.
Buck pegou a caneta das mãos do desapontado Craig e alterou as fitas adesivas da porta de B
para A e de A para B.
- Volto logo, Craig - ele disse, colocando a caneta na palma da mão do policial.
111
Buck caminhou apressado, fingindo saber aonde estava indo, mas observando atentamente as
placas indicativas. Não houve problemas com a receita do Dr. Lloyd na farmácia. Em seguida,
Buck dirigiu-se ao saguão à procura de Ken Ritz. No caminho, apropriou-se de uma cadeira de
rodas.
Ken estava curvado para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos, segurando o queixo
com as duas mãos e roncando. Graças ao treinamento que recebera quando precisou aplicar
injeções de insulina em sua mãe, Buck abriu com facilidade o invólucro, levantou a manga da
camisa de Ken sem inclinar o corpo dele, desinfetou o local e arrancou a tampa da agulha
hipodérmica com os dentes. Quando ele apontou a agulha para o bíceps de Ken, a tampa caiu
de sua boca e rolou no chão.
- Ele não devia estar usando luvas? - alguém resmungou.
Buck encontrou a tampa, substituiu-a e colocou tudo no bolso. De frente para Ken, ele colocou
as mãos nas axilas do companheiro e levantou-o da cadeira. Girou o corpo 45 graus e ajeitou-o
na cadeira de rodas, esquecendo-se de acionar o freio. Quando o corpo de Ken despencou na
cadeira, ela começou a rodar para trás, e Buck não teve tempo de soltar as mãos. Sentado em
cima das longas pernas de Ritz, com a cabeça de frente para o peito dele, Buck atravessou a
sala de espera, com passos trôpegos, enquanto as pessoas abriam caminho, assustadas.
Quando a cadeira começou a ganhar velocidade, a única opção de Buck era firmar os pés no
chão para impedi-la de continuar a rodar, mas acabou caindo estatelado em cima do piloto
combalido, que despertou por alguns instantes e gritou:
- Charlie Bravo Alfa chamando base!
Buck conseguiu equilibrar-se, abaixou os apoios para pés e levantou os joelhos de Ritz para
colocar os pés dele no lugar. Buck só esperava que a Benzedrina agisse rápido para que Ritz
pudesse ajudá-lo a transportar o corpo da Srta. Ashton, com a pulseira de identificação da Mãe
Coelha, até o necrotério. Se ele conseguisse convencer temporariamente o pessoal da
Comunidade Global de que sua refém estava morta, ganharia um pouco mais de tempo.
Enquanto Buck empurrava Ken até os elevadores, os braços do piloto penderam do lado de fora
da cadeira, impedindo que ela rodasse. Buck colocou os braços de Ken no lugar, mas eles se
soltaram novamente. Buck só conseguiu firmá-los no lugar quando o elevador chegou, mas,
assim que entraram, Ritz abaixou a cabeça e encostou o queixo no peito, deixando seu
ferimento na cabeça visível a todos os que estavam no elevador.
Quando Ritz começou a sair de seu estado de torpor, Buck conseguiu tirá-lo da cadeira de rodas
e colocá-lo em uma maca que encontrou no caminho. Esse movimento provocou tonturas em
Ken. Ele caiu de costas na maca, esbarrando o ferimento no lençol.
- Está tudo bem! - ele gritou, com a voz pastosa.
Depois de ajeitá-lo na maca, Buck cobriu-o com o lençol até o pescoço, empurrou a maca e
encostou-a perto de uma parede, aguardando que Ritz despertasse completamente. Enquanto
um grande número de pessoas transitava por ali, Ritz sentou-se duas vezes na maca, olhou ao
redor e voltou a deitar-se.
Finalmente, ele teve condições de ficar em pé sem sentir tontura, mas continuava
desorientado.
- Rapaz, dormi um bom sono. Poderia até ter dormido mais um pouco.
Buck explicou que precisava encontrar mais um avental, de modo que Ken pudesse ser
confundido com um atendente ajudando o Dr. Cameron. Buck precisou explicar várias vezes até
convencer-se de que Ken havia compreendido tudo.
- Espere um pouco. Não saia daqui - disse Buck.
Perto do centro cirúrgico, Buck avistou um médico pendurar um avental em um cabide e
afastar-se dali. O avental parecia limpo. Buck pegou-o e levou-o para Ken. Mas Ken saíra do
local combinado e estava no saguão do elevador.
- O que você está fazendo? - perguntou Buck.
- Vou pegar minha sacola - respondeu Ken. - Deixei-a do lado de fora do hospital.
- Ela está debaixo da cadeira na sala de espera. Vamos pegá-la depois. Agora vista este
avental.
As mangas eram dez centímetros mais curtas que os braços de Ken, que parecia ter
encontrado a última peça disponível numa loja de roupas.
112
Empurrando a maca, eles caminharam o mais rápido que puderam até o 335.
- Doutor - disse a policial -, nossos superiores nos informaram que há uma comitiva vindo do
aeroporto e...
- Sinto muito - disse Buck -, mas a paciente que você está vigiando morreu.
- Morreu? - ela repetiu. - Bem, a culpa não foi nossa. Nós...
- Ninguém está dizendo que a culpa é de vocês. Preciso transportar o corpo para o necrotério.
Informem a comitiva, ou a quem quer que seja, onde o corpo se encontra.
- Então não há mais necessidade de permanecermos aqui, certo?
- Claro que não. Obrigado por tudo.
Quando eles entraram no quarto, Craig viu o ferimento na cabeça de Ritz.
- Você é um atendente ou um paciente?
Ken deu meia-volta.
- Você tem algum preconceito contra deficientes?
- Não senhor, desculpe-me. Eu só...
- Todo mundo precisa de emprego! - disse Ken.
Chloe esboçou um sorriso ao avistar Ken. Ela o conhecera em Palwaukee depois que Buck e
Tsion voltaram do Egito. Buck apontou para Ritz.
- Esta é Annie Ashton - ele disse. - Sou o médico dela.
- O Dr. Buck - disse Chloe em voz baixa - quebrou os óculos.
Ritz sorriu.
- Parece que tomamos o mesmo remédio.
Buck cobriu a cabeça da mulher morta com o lençol, tirou a cama com rodas do lugar e
substituiu-a pela maca. Conduziu a cama em direção à porta e pediu a Ken que permanecesse
ao lado de Chloe.
- Só por medida de precaução - ele disse.
- Medida de precaução?
- O pessoal da CG pode chegar nesse meio tempo.
- Devo fingir que sou médico?
- De certa forma, sim. Se nós pudermos convencê-los de que a mulher que eles procuram está
no necrotério, talvez tenhamos tempo de esconder Chloe.
- Você não vai querer amarrá-la em cima do carro alugado, vai?
Buck empurrou a cama pelo corredor na direção dos elevadores. De um deles desceram quatro
pessoas. Três eram homens, trajando ternos escuros. As credenciais em seus paletós os
identificavam como funcionários da Comunidade Global.
- Que número estamos procurando? - perguntou um deles.
- O 335 - respondeu um outro.
Buck desviou o rosto. Talvez sua fotografia já estivesse circulando. Assim que ele entrou com a
cama no elevador, um médico apertou o botão de parada de emergência. Dentro do elevador
havia seis pessoas, além de Buck e a cama com o corpo.
- Desculpem-me, senhoras e senhores - disse o médico. - Só um momento, por favor.
- Você não é médico residente daqui, é? - ele cochichou perto do ouvido de Buck.
-Não.
- Temos regras rígidas que proíbem transporte de corpos em elevadores que não sejam de
serviço.
- Eu não sabia.
O médico virou-se para as outras pessoas e disse:
- Sinto muito, mas vocês precisam pegar outro elevador.
- Felizmente - disse alguém.
O médico apertou o botão para abrir a porta, e todos desceram. Em seguida, ele apertou o
botão do subsolo.
- É a primeira vez que você trabalha neste hospital?
-Sim.
- Siga à esquerda até o fim do corredor.
Ao chegar ao necrotério, Buck pensou èm deixar o corpo do lado de fora da porta na esperança
de que fosse identificado temporariamente como Mãe Coelha. Porém, ele foi visto por um
113
homem sentado atrás de uma mesa, que lhe disse:
- Você não pode trazer camas para cá. Não sou responsável por esse tipo de coisa. Você terá de
levá-la de volta.
- Estou com muita pressa.
- O problema é seu. Não temos nada a ver com camas deixadas aqui.
Dois atendentes transferiram o corpo para uma maca, e o funcionário disse:
- Papéis?
- Como assim?
- Papéis! Atestado de óbito. Autorização do médico.
- Na pulseira de identificação está escrito Mãe Coelha. Fui encarregado de trazê-la para cá. É só
isso o que eu sei.
- Quem é o médico dela?
- Não faço ideia?
- Qual é o quarto?
-335.
- Vou verificar. Agora leve embora esta cama daqui.
Buck caminhou apressado até o elevador, orando para que a artimanha tivesse dado certo e
que o contingente da CG estivesse dirigindo-se para o necrotério a fim de constatar que Mãe
Coelha estava morta. Ainda bem que não cruzou com eles no caminho.
Quando se aproximava do 335, Buck avistou o grupo. Ele olhou para o outro lado e continuou a
caminhar.
Um deles disse:
- Onde está Charles?
- Devíamos ter esperado - respondeu a mulher. – Ele estava estacionando o carro. Como vai
conseguir nos encontrar?
- Ele não deve estar longe. Quando chegar aqui, vamos resolver esse assunto.
Depois que eles se afastaram, Buck voltou a colocar a cama no 335.
- Sou eu - disse ele ao passar pela cortina ao redor da cama de Chloe. Ela estava mais pálida e
tremia. Sentado ao lado da cama, Ken segurava delicadamente a cabeça de Chloe.
- Você está com frio, querida? - perguntou Buck. Chloe meneou a cabeça. As manchas de seu
rosto haviam se espalhado. As marcas escuras causadas por hemorragia subcutânea
estendiam-se até as têmporas.
- Ela está um pouco assustada, só isso - disse Ritz. – Eu também. Acho que mereço um Oscar.
- Doutor Aeroplano - disse Chloe, e Ritz riu.
- Ela só disse isso. Eles não conseguiram extrair mais nada dela, a não ser o nome.
- Annie Ashton - ela sussurrou.
- Foi muito difícil tapear aqueles sujeitos. Eles entraram aqui reclamando, principalmente a
mulher, por não haver vigilância na porta, conforme haviam pedido. "Nós não pedimos", disse
Ken, imitando a voz dela. "Recebemos ordens."
Chloe balançou a cabeça afirmativamente. Ken prosseguiu:
- Eles passaram por mim e puxaram com força a cortina, dizendo que ela devia estar no leito B,
orgulhosos por terem conseguido ler a fita adesiva na porta. Eu gritei: "Dois visitantes por vez,
por favor, e não se aproximem muito. Minha paciente está com intoxicação." Eu queria dizer
infecção, mas é a mesma coisa, não? Eles viram imediatamente que havia uma maca vazia ali.
Um deles enfiou a cabeça no vão da cortina. Eu fiquei na ponta dos pés, com pose de médico,
e disse: "Se você não quiser pegar febre tifóide, é melhor tirar o rosto daqui."
- Febre tifóide?
- Soou legal para mim. E funcionou.
- Eles fugiram assustados?
- Quase. O sujeito fechou a cortina e disse: "Doutor, por favor, podemos falar com o senhor em
particular?" Eu respondi: "Não posso deixar minha paciente sozinha. E preciso me desinfetar
antes de conversar com alguém. Estou imunizado, mas posso transmitir a doença."
Buck ergueu as sobrancelhas.
- E eles? Acreditaram?
Chloe balançou a cabeça, parecendo estar se divertindo.
114
- Eu é que fui bom demais - disse Ken. - Eles perguntaram quem era a minha paciente. Eu
poderia ter dito Annie Ashton, mas achei que a cena seria mais real se me sentisse
ofendido pela pergunta. Eu disse: "O nome dela não é tão importante quanto seu diagnóstico.
Se quiserem saber o nome, ele está escrito na porta." Eles cochicharam entre si e um me
perguntou: "Ela está consciente?" Eu respondi: "Se você não é médico, não é da sua conta." A
mulher disse alguma coisa sobre chamar um médico com o qual eles ainda não haviam
conversado, mas eu disse: "Podem me perguntar tudo o que desejam saber." Um deles disse:
"Vimos o que está escrito na porta, mas fomos informados que a Mãe Coelha estava naquele
leito." Eu disse: "Não vou ficar em pé aqui argumentando. Minha paciente não é a Mãe Coelha."
Um outro perguntou: "Você se importaria se eu perguntasse a ela qual é o seu nome?" Eu
respondi: "Para ser franco, eu me importo sim. Ela precisa descansar para melhorar." O sujeito
disse: "Madame, se a senhora estiver me ouvindo, diga-me qual é o seu nome." Eu fiz um sinal
de autorização para Chloe, mas me aproximei da cortina como se estivesse furioso. Ela
hesitou, sem saber o que eu ia fazer, mas finalmente disse com voz fraca: "Annie Ashton."
Chloe levantou a mão.
- Falando sério - ela disse -, por que eles me deram o nome de Mãe Coelha?
- Você não sabe? - perguntou Buck, segurando a mão dela.
Chloe balançou a cabeça negativamente.
- Deixem-me terminar minha história - disse Ritz. – Acho que eles estão voltando. Abri com
força a cortina e olhei firme para eles. Acho que ficaram assustados com o meu tamanho. Eu
disse: "E então? Estão satisfeitos? Vocês perturbaram minha paciente e eu." A mulher disse:
"Pedimos desculpas, doutor, hã...", e Chloe complementou:
"Doutor Aeroplano." Eu tive de me conter, mas disse: "O remédio está mexendo com a cabeça
dela. Sou o Doutor Lalaine, mas, nestas circunstâncias, é melhor não nos cumprimentarmos
com aperto de mão." O restante do grupo ficou perto da porta. A mulher enfiou o rosto no vão
da cortina e perguntou: "O senhor sabe o que aconteceu com a Mãe Coelha?" Eu respondi: "A
outra paciente deste quarto foi levada para o necrotério." Ela disse: "Oh, será verdade?" como
se não estivesse acreditando nem um pouco, e prosseguiu em tom sarcástico: "Qual foi a
causa dos ferimentos desta jovem senhora? Febre tifóide?" Eu não estava preparado para isso,
e enquanto tentava encontrar uma resposta à altura de um médico, ela disse: "Vou pedir ao
nosso médico que a examine." Eu lhe disse: "Não sei qual é o procedimento na terra de vocês,
mas neste hospital só o médico atendente ou o paciente pode solicitar um segundo
diagnóstico." Embora fosse um pouco mais baixa que eu, ela pareceu olhar de cima para mim,
e disse: "Somos da Comunidade Global e estamos aqui por ordem de Sua Excelência, e você
vai se arrepender." Eu perguntei então: "E quem é esse tal de Sua Excelência?" Ela respondeu:
"Por onde você tem estado, debaixo de uma pedra?" Bem, eu não podia dizer que isso era
verdade, porque tinha tomado uma dose exagerada de tranquilizantes e não sabia muito bem
onde estava. Resolvi dizer: "Servindo à humanidade, tentando salvar vidas, madame." Ela saiu
daqui ofendida, e, depois de alguns minutos, você chegou. Agora já conhece toda a história.
- Eles devem estar trazendo um médico - disse Buck. - Isso é terrível. É melhor escondermos
Chloe em algum lugar e ver se podemos misturá-la a outros pacientes.
- Quero saber uma coisa - murmurou Chloe.
- O quê?
- Buck, eu estou grávida?
- Está.
- O bebé está bem?
- Até agora, sim.
-E eu?
- Você está muito machucada, mas não corre perigo.
- Sua febre tifóide quase desapareceu - disse Ritz.
- Dr. Aeroplano! - ralhou Chloe, com a testa franzida. - Buck, eu preciso melhorar depressa. O
que essa gente deseja?
- É uma longa história. Basicamente, eles querem trocar você por Tsion ou Hattie, ou pelos dois.
- Não - ela disse, com voz mais forte.
- Não se preocupe - disse Buck. - Mas é melhor nos apressarmos. Não vamos representar um
115
médico verdadeiro por muito tempo, apesar do Dr. Ator aqui presente.
- Sou o Dr. Aeroplano - disse Ken.
Ao ouvir vozes perto da porta, Buck abaixou-se no chão e arrastou-se por baixo das cortinas,
ficando agachado no local apertado onde já havia uma cama e uma maca.
- Dr. Lalaine - disse um dos homens -, este é o nosso médico de Kenosha. Estamos pedindo
sua permissão para que ele examine esta paciente.
- Não estou entendendo - disse Ritz.
- Claro que não - disse o médico -, mas ontem ajudei a tratar de uma paciente nãoidentificada
que tem as mesmas características desta. É por isso que estou aqui.
Buck fechou os olhos. A voz lhe era familiar. Se fosse o último médico com quem ele conversara
em Kenosha, aquele que tirara fotografias de Chloe, tudo havia ido por água abaixo. Mesmo
que Buck passasse por ele rapidamente para não ser reconhecido, não haveria jeito de tirar
Chloe daquele lugar.
- Eu já contei a esse pessoal quem é a minha paciente - disse Ritz.
- E nós já sabemos que sua história é mentirosa, doutor - disse a mulher. - Perguntamos pela
Mãe Coelha no necrotério. Não demorou muito para sabermos quem era a verdadeira Sra.
Ashton.
Buck ouviu o som de um envelope sendo aberto e algo sendo retirado de dentro.
- Veja estas fotografias - disse a mulher. - Ela talvez não seja igualzinha, mas é muito
parecida. Acho que é ela.
- Existe um jeito de sabermos - disse o médico. – Minha paciente tinha três cicatrizes pequenas
no joelho esquerdo, provenientes de uma cirurgia nas articulações quando era adolescente, e
também uma cicatriz por ter extraído o apêndice.
Buck raciocinava rapidamente. Chloe não tinha nada disso. O que estaria acontecendo? Buck
ouviu o farfalhar de cobertor, lençol e camisola.
- Agora estou entendendo - disse o médico. - O rosto desta moça é um pouco mais redondo e
os ferimentos muito mais profundos.
- Mesmo que esta moça não seja quem estamos procurando - disse a mulher -, também não é
Annie Ashton e, com certeza, não está com febre tifóide.
- Ninguém neste hospital está com febre tifóide – interveio Ken. - Eu disse que não queria
ninguém bisbilhotando meus pacientes.
- Quero que este homem seja repreendido - disse a mulher. - Como ele não sabe o nome de
sua paciente?
- Há muitas pacientes aqui neste hospital - disse Ken. - Fiquei sabendo que o nome dela era
Annie Ashton. É o que está escrito na porta.
- Vou conversar com o administrador do hospital sobre o Dr. Lalaine - disse o médico. - Sugiro
que vocês verifiquem novamente na recepção sobre o caso da Mãe Coelha.
- Doutor? - disse Chloe com voz fraca. - O senhor tem alguma coisa na testa.
- Tenho? - ele perguntou.
- Não estou vendo nada - disse a mulher. - Essa moça está dopada.
- Não estou, não - disse Chloe. - O senhor tem alguma coisa ali, doutor.
- Bem - ele disse em tom de voz agradável, mas disfarçando -, talvez você também vai ter
alguma coisa na testa depois que sarar.
- Vamos embora - disse um dos homens.
- Irei ao encontro de vocês depois de conversar com o administrador do hospital - disse o
médico.
O pessoal da CG saiu. Assim que a porta foi fechada, o médico disse:
- Eu sei quem ela é. Quem é vocêl
- Sou o Dr...
- Nós dois sabemos que você não é médico.
- Ele é, sim - balbuciou Chloe. - Ele é o Dr. Aeroplano.
Buck saiu detrás da cortina.
- Dr. Charles, este é Ken Ritz, meu piloto. O senhor já teve a oportunidade de receber resposta
a uma oração?
- Não foi fácil pegar este caso - disse Floyd Charles. – Mas achei que podia ser útil.
116
- Não sei se um dia poderei agradecer-lhe - disse Buck.
- Mantenha contato comigo - disse o médico. - Talvez eu venha a precisar de você algum dia.
Sugiro que você transfira sua mulher daqui. Eles voltarão para se certificar quando não
encontrarem a Mãe Coelha.
- O senhor tem condições de providenciar transporte para o aeroporto e tudo o que
necessitarmos para cuidar dela? - perguntou Buck.
- Claro. Assim que conseguir cassar a licença do Dr. Aeroplano.
- Já brinquei muito de médico hoje - disse Ken, tirando o avental. - Prefiro fazer minhas
brincadeiras no céu.
- O senhor acha que poderei cuidar dela em casa? - perguntou Buck.
- Ela vai sentir muitas dores por um longo tempo que talvez não cessem definitivamente, mas
não corre perigo de morte. Até o momento, o bebé também está bem.
- Eu só soube disto hoje - disse Chloe. – Estava suspeitando, mas não tinha certeza.
- Você quase estragou tudo quando fez aquela observação a respeito de minha testa - disse o
Dr. Charles.
- Ah, sim - disse Ken. - O que significa isso?
- Vou contar-lhe no avião - disse Buck.
Na quinta-feira, logo que o dia clareou na Nova Babilónia, Nicolae Carpathia e Leon Fortunato
reuniram-se com Rayford.
- Já comunicamos seu itinerário aos dignitários – disse Carpathia. - Eles providenciaram
acomodações para o Supremo Comandante, mas você e seu co-piloto precisam cuidar das
suas.
Rayford assentiu. Essa reunião, como tantas outras, era desnecessária.
- Agora quero falar de um assunto seu, capitão Steele - complementou Carpathia. - Apesar
de compreendermos sua situação, ficou decidido que não vamos retirar do rio Tigre os
destroços do avião da Pan-Con. Lamento muito, mas foi confirmado que sua mulher estava a
bordo. Decidimos que o corpo dela deve descansar lá, com os outros passageiros.
No íntimo, Rayford sabia que tudo não passava de uma mentira de Carpathia. Amanda estava
viva e jamais traíra a causa de Cristo. Os equipamentos de mergulho dele e de Mac estavam
chegando. Apesar de não ter ideia de onde Amanda estava, ele queria provar, antes de tudo,
que ela não estava a bordo do 747 submerso.
Na sexta-feira, duas horas antes do horário do vôo, Mac contou a Rayford que substituíra a
aeronave que estava no compartimento de carga.
- Já estamos levando o helicóptero - ele disse. – Aquele pequeno bimotor era supérfluo. Foi
substituído pelo Challenger 3.
- Onde você descobriu isso? - O Challenger era mais ou menos do tamanho de um Learjet mas
quase duas vezes mais rápido. Tinha sido fabricado nos últimos seis meses.
- Pensei que tivéssemos perdido todas as aeronaves, com exceção do helicóptero, do bimotor e
do Condor. Mas encontrei o Challenger um pouco mais adiante de uma pista de decolagem que
se levantou do solo. Tive de instalar outra antena e um novo conjunto do leme da cauda, mas
agora ele está novinho em folha.
- Eu gostaria de saber pilotar esse avião - disse Rayford. - Talvez eu pudesse visitar minha
família enquanto Fortunato faz uma parada no Texas.
- Sua filha foi encontrada?
- Acabei de receber notícias. Ela está machucada, mas não foi nada grave. E eu vou ser vovô.
Que bom, Ray! - disse Mac, dando um tapinha no ombro de Rayford. - Vou ensinar você a
pilotar o Challenger. Em pouco tempo, estará craque.
Preciso terminar de arrumar minha mala e enviar um e-mail para Buck - disse Rayford.
- Você não está recebendo e enviando mensagens pelo sistema daqui, está?
- Não. Recebi um e-mail codificado de Buck, informando-me quando ele ia ligar para o meu
telefone particular. Tomei cuidado de estar fora daqui naquele momento.
- Precisamos conversar com Hassid para saber até que ponto eles controlam a Internet. Você,
ele e eu temos usado muito a Internet para saber notícias de nosso amigo Tsion.
Estou preocupado, porque a chefia talvez tenha condições de saber quem está conectando a
117
Internet. Carpathia deve estar furioso com Tsion. Poderemos nos meter em encrencas.
- David me disse que, se usarmos a central de boletins, eles não conseguirão rastrear nossas
ligações.
- Você deve estar sabendo que ele gostaria muito de viajar conosco - disse Mac.
- O David? Eu sei. Mas precisamos dele aqui, exatamente onde ele está.
118
OUATORZE
O vôo até Waukegan havia sido muito cansativo para Chloe. O percurso de carro de Waukegan a
Palatine para deixar Ken Ritz, e depois para Monte Prospect, foi pior ainda. Ela dormira
praticamente durante todo o vôo nos braços de Buck, mas a viagem dentro do Range Rover
tinha sido uma tortura.
O melhor que Buck pôde fazer foi deitá-la no banco traseiro, mas um dos parafusos que
prendiam o banco no assoalho do carro se soltara durante o terremoto, portanto Buck teve de
dirigir em velocidade mais lenta que o normal. Mesmo assim, Chloe parecia estar sendo atirada
de um lado para o outro. Finalmente, Ken ajoelhou-se de frente para ela e segurou o banco
com as mãos.
Quando eles chegaram ao aeroporto de Palwaukee, Buck conduziu Ken até um abrigo onde
alguém lhe dera um lugar para ficar.
- Como sempre, uma aventura - disse Ken exausto. - Qualquer dia você vai me matar.
- Foi uma loucura pedir que você pilotasse um avião tão pouco tempo depois de uma cirurgia,
Ken, mas você salvou uma vida. Vou enviar-lhe um cheque.
- Você nunca falha. Mas eu também gostaria de saber mais alguma coisa de vocês, de suas
crenças, de tudo.
- Ken, já conversamos sobre isso antes. Está ficando cada vez mais claro, não é mesmo? Este
período da História já é uma explicação. Dentro de pouco mais de cinco anos, tudo estará
terminado. Posso até entender por que as pessoas não compreenderam o que estava
acontecendo antes do Arrebatamento. Eu fui uma delas. Mas chegou a hora da gigantesca
contagem regressiva. A questão principal é de que lado você está. Ou você está servindo a
Deus ou está servindo ao anticristo. Você tem colaborado com o lado bom. Já é tempo de
juntar-se ao nosso time.
- Eu sei, Buck. Nunca vi ninguém cuidar de uma outra pessoa como vocês fazem entre si. Seria
bom se eu pudesse analisar a situação em branco e preto, isto é, como numa folha de papel,
todos os prós e os contras. É assim que eu sou. Antes de me decidir, eu preciso ter uma ideia
da situação.
- Posso conseguir-lhe uma Bíblia.
- Eu tenho uma em algum lugar. Será que existe uma ou duas páginas na Bíblia que expliquem
claramente tudo isso?
- Leia João. E depois Romanos. Lá você vai encontrar o assunto sobre o qual conversamos. Nós
somos pecadores. Nós nos separamos de Deus. Ele nos quer de volta e ensinou o caminho.
Ken parecia estar sentindo um certo desconforto. Buck sabia que ele estava confuso e sentindo
dores.
- Você tem computador? - perguntou Buck.
- Sim, e também tenho um endereço eletrônico.
- Diga-me qual é. Eu vou lhe passar um endereço para correspondência em grupo. O homem
que você trouxe do Egito comigo está causando furor na Internet. Ele é craque em colocar em
apenas uma página tudo o que você deseja saber.
- Quer dizer que assim que eu me juntar ao grupo receberei o sinal secreto na testa?
- Com certeza.
Buck reclinou o banco do passageiro e transferiu Chloe para lá. Mas o banco não ficou
totalmente na posição horizontal e ela precisou voltar para o banco traseiro.
Quando, finalmente, Buck entrou com o carro no quintal de Donny, Tsion apressou-se para
cumprimentar Chloe. Assim que a viu, ele rompeu em pranto.
- Oh, pobre menina. Bem-vinda ao novo lar. Você está em segurança.
Tsion ajudou a retirá-la do banco traseiro e abriu a porta a fim de que Buck pudesse carregá-la
para dentro de casa. Buck dirigiu-se para a escada, mas Tsion o fez parar.
- Por aqui, Cameron. Você está vendo? - Tsion trouxera sua cama para Chloe. - Ela ainda não
119
pode subir e descer escadas.
- Imagino que a próxima coisa será uma sopa de galinha - disse Buck, balançando a cabeça.
Tsion sorriu e apertou um botão no microondas.
- Aguarde 60 segundos.
Chloe, porém, não quis comer nada. Dormiu a noite inteira e todo o dia seguinte.
- Você precisa ter um objetivo - disse-lhe Tsion. – Aonde gostaria de ir no primeiro dia que
puder sair de casa?
- Quero ver a igreja. E a casa de Loretta.
- Talvez seja muito...
- Será muito penoso. Mas Buck diz que se eu não tivesse corrido, jamais teria sobrevivido. Eu
preciso ver por quê. Quero também ver o local onde Loretta e Donny morreram.
Quando conseguiu caminhar mancando até a mesa da cozinha e sentar-se sem a ajuda de
ninguém, Chloe só quis saber onde estava seu computador.
Buck sofreu ao vê-la comer com uma só mão, mas quando tentou ajudar, ela o impediu. Ele
demonstrou descontentamento.
- Meu bem, eu sei que você está querendo ajudar – ela disse. - Você me procurou até me
encontrar, e fez tudo o que podia por mim. Mas, por favor, não tente me ajudar, a menos
que eu lhe peça.
- Você nunca pede nada.
- Não sou uma pessoa dependente, Buck. Não quero ser paparicada. Estamos em guerra, e não
temos muitos dias pela frente para desperdiçar. Assim que eu puder trabalhar com esta mão,
vou tirar um pouco da carga das costas de Tsion. Ele está trabalhando dia e noite no
computador.
Buck pegou seu laptop e enviou uma mensagem para Ritz a respeito de uma possível viagem a
Israel. Ele imaginava que não haveria segurança para Tsion naquele país, mas o rabino estava
tão determinado a ir, que Buck achou que não tinha escolha. Seu outro assunto com Ken,
evidentemente, era saber se ele tomara uma decisão espiritual. Enquanto ele transmitia a
mensagem, Chloe chamou-o da cozinha.
- Oh, veja só, Buck! Venha ver isto!
Buck correu até a cozinha e olhou por cima dos ombros de Chloe. A mensagem que estava na
tela tinha sido enviada vários dias atrás. Era de Hattie Durham.
Rayford receava que Leon Fortunato se entediasse durante a viagem até Roma e resolvesse
importuná-los na cabina de comando. Todas as vezes que Rayford acionava o botão secreto
para ouvir o que se passava no compartimento dos passageiros, Leon estava assobiando,
cantarolando, falando ao telefone ou se remexendo na poltrona.
Quando Mac assumiu o comando da aeronave, Rayford encontrou uma desculpa para dar um
passeio pelo compartimento dos passageiros. Leon estava arrumando a mesa de mogno onde
ele, o Supremo Pontífice Peter Mathews e os dez embaixadores se reuniriam antes do encontro
com Carpathia.
Leon parecia estar explodindo de entusiasmo.
- Você voltará para a cabina assim que nossos convidados entrarem, certo?
- Claro - disse Rayford, percebendo que Leon precisava de companhia.
Rayford não esperava ouvir nenhum segredo durante a conversa de Leon com Mathews, mas
gostaria muito de saber como o assessor de Carpathia se comportaria. Fortunato era tão
apegado a Carpathia e Mathews tão condescendente e independente que os dois eram como
óleo e água. Mathews estava acostumado a receber tratamento aristocrático. Fortunato
tratava Carpathia como o rei do mundo, mas era moroso para servir outra pessoa e
geralmente áspero com quem o servia.
Quando Peter Mathews subiu a bordo em Roma, tratou Fortunato como um de seus criados. Ele
já possuía dois. Um moço e uma moça entraram carregando as malas e permaneceram em pé,
conversando com ele. Pelo que Rayford conseguiu ouvir, Fortunato estava novamente exposto
às provocações de Mathews. Todas as vezes que Fortunato sugeria que era hora de começarem
a tratar de assuntos importantes, Mathews interrompia.
- Você poderia providenciar uma bebida gelada para mim, Leon? - disse Mathews.
120
Após uma longa pausa, Fortunato disse secamente:
- Pois não. - Em seguida, prosseguiu com sarcasmo. – Para seus criados também?
- Sim, para eles também.
- Tudo bem, pontífice Mathews. Acho que depois poderíamos...
- E alguma coisa para mastigar. Obrigado, Leon.
Depois desse duelo de palavras, Fortunato permaneceu calado. Finalmente ele disse:
- Pontífice Mathews, penso que já é hora de...
- Por quanto tempo vamos ficar parados aqui, Leon? Que tal iniciarmos a viagem?
- Não podemos decolar tendo pessoas não-autorizadas a bordo.
- Quem não tem autorização?
- Os dois que estão com o senhor.
- Eu os apresentei a você, Leon. Eles são meus auxiliares.
- O senhor entendeu que eles foram convidados?
- Não vou a lugar nenhum sem eles.
- Vou ter de verificar isso com Sua Excelência.
- Como assim?
- Vou ter de verificar isso com Nicolae Carpathia.
- Você disse Sua Excelência.
- Eu planejava falar desse assunto no decorrer da viagem.
- Pois fale agora, Leon.
- Pontífice, eu gostaria que o senhor me chamasse pelo meu título. Seria pedir muito?
- É de títulos que estamos falando neste momento. Por que Carpathia está usando o título de
Excelência7.
- Não foi escolha dele. Eu...
- Sim, suponho que potentado também não foi escolha dele. Secretário-geral nunca foi um título
ideal para ele, não?
- Conforme eu já lhe disse, eu gostaria de falar do novo título no decorrer da viagem.
- Então vamos decolar!
- Não estou autorizado a transportar pessoas que não foram convidadas.
- Sr. Fortunato, essas pessoas foram convidadas. Eu as convidei.
- Meu título não é senhor.
- Oh, o potentado passou a ser Sua Excelência e você é o quê, potentado? Não, deixe-me
adivinhar. Você é o Supremo Alguma Coisa ou Outra. Acertei?
- Preciso verificar isso com Sua Excelência.
- Então se apresse. E diga a "Sua Excelência" que o Supremo Pontífice considera uma audácia
mudar um título aristocrático - que já é um exagero - para um título sagrado.
Pela escuta clandestina, Rayford ouviu apenas o fim da conversa de Fortunato com Nicolae, mas
Leon teve de humilhar-se.
- Pontífice - ele disse após a conversa com Nicolae – Sua Excelência pediu-me que transmitisse
as boas-vindas a seus convidados e assegurou que é uma honra ter a bordo quaisquer
pessoas que possam tornar seu vôo mais confortável.
- Verdade? - disse Mathews. - Então diga a ele que desejo uma tripulação a bordo para me
servir. - Fortunato riu. - Estou falando sério, Leon... ou... qual é mesmo o seu título, homem?
- Estou enquadrado na categoria de comandante.
- Comandante? Diga-me a verdade, comandante, seu título é Supremo Comandante? -
Fortunato não respondeu, porém Mathews devia ter notado algo em seu semblante. - É ou não
é? Bem, mesmo que não seja, vou insistir. Se eu tiver de chamá-lo de comandante, devo dar
preferência a Supremo Comandante. Está bem assim? Fortunato deu um suspiro profundo.
- O título correto é Supremo Comandante. O senhor pode me chamar de uma forma ou outra.
- Oh, não posso não. É Supremo Comandante e ponto final. Agora, Supremo Comandante
Fortunato, estou falando muito sério a respeito da tripulação em um vôo tão longo como este,
e estou abismado com sua falta de previsão por não ter providenciado isso.
- Temos tudo o que necessitamos, Pontífice. Achamos mais conveniente ter um serviço completo
quando os embaixadores regionais estiverem a bordo.
- Você está enganado. Eu não gostaria de decolar enquanto não houver uma tripulação
121
completa a bordo. Se você tiver de verificar isso com Sua Excelência, sinta-se à vontade.
Houve um longo silêncio, e Rayford supôs que os dois estavam se encarando.
- O senhor está falando sério? - perguntou Fortunato.
- Tão sério quanto o terremoto.
A campainha soou na cabina de comando.
- Cabina de comando - disse Mac. - Prossiga.
- Cavalheiros, decidi que devemos ter uma tripulação para atender os passageiros daqui até
Dallas. Vou contratar o pessoal de uma das linhas aéreas daqui. Por favor, comuniquem à torre
que retardaremos a decolagem por duas ou três horas. Obrigado.
- Desculpe-me, senhor - disse Mac - mas nossa demora aqui já retardou nossa decolagem em
quatro lugares consecutivos. Eles estão sendo compreensivos por saberem quem somos, mas...
- Você não entendeu o que eu disse? - perguntou Leon.
- Entendi perfeitamente, senhor. Positivo, retardaremos o vôo.
O e-mail de Hattie dizia o seguinte:
Querida CW, eu não sabia mais a quem recorrer. Tentei falar com AS no número particular que
ela me deu, mas não obtive resposta. Ela disse que carrega o telefone o tempo todo, e estou
preocupada com o que possa ter acontecido.
Necessito de sua ajuda. Menti para meu ex-chefe dizendo que minha família era de Denver.
Quando mudei meu itinerário e voei de Boston para oeste em vez de leste, esperava que ele
imaginasse que eu fosse visitar minha família. Mas minha família mora em Santa Monica. Estou
em Denver por um outro motivo.
Estou em uma clínica daqui. Não fique escandalizada. Sim, eles fazem abortos, e estão me
pressionando nesse sentido. Na verdade, é o que eles mais fazem aqui. Porém, perguntam à
mãe se ela já refletiu sobre sua opção, e, em alguns casos, a gravidez é levada até o fim.
Algumas crianças são enviadas para adoção; outras, criadas pela própria mãe. Há ainda as
que são criadas pela clínica.
Este lugar também está servindo para me proteger, pois estou aqui anonimamente. Cortei meu
cabelo e o tingi de preto, e estou usando lentes de contato de cor diferente dos meus olhos.
Tenho certeza de que ninguém pode me reconhecer.
Eles permitem que as pacientes usem computadores durante algumas horas por semana. Em
outras ocasiões escrevemos, desenhamos e fazemos exercícios físicos. Eles também nos
incentivam a escrever para dar satisfações a pessoas amigas e da família. Às vezes insistem
dizendo que devemos escrever para os pais de nossos filhos.
Eu não poderia fazer isso. Mas preciso conversar com você. Tenho um telefone celular só meu.
Você também tem um como AS? Estou assustada. Estou confusa. Há dias em que o aborto
parece ser a solução mais fácil.
Porém, já estou ficando muito ligada a esta criança. Eu poderia me desfazer dela, mas acho
que não posso tirar sua vida. Contei a uma conselheira que me sentia culpada por ter
engravidado sem estar casada. Ela nunca ouviu isso na vida. Disse que eu devia parar de ficar
ruminando sobre o que é certo e errado, e começar a pensar no que é melhor para mim.
Sinto-me mais culpada em considerar a possibilidade de um aborto do que na imoralidade do
fato, conforme vocês costumam dizer. Eu não quero cometer um erro. E não quero continuar a
ter uma vida como esta. Sinto inveja de você e de seus amigos. Espero que todos tenham
sobrevivido ao terremoto. Penso que seu pai e seu marido acham que o terremoto foi causado
pela ira do Cordeiro. Talvez tenha sido. Eu não ficaria surpresa.
Se você não me der notícias, vou imaginar o pior, por isso peço que me responda o mais breve
possível. Recomendações a todos. Um abraço para L. Carinhosamente, H.
xxx- Agora, Buck - disse Chloe - eu gostaria que você me ajudasse. Responda o mais rápido que
puder. Diga que fui ferida e que fiquei longe de meu computador, que vou sarar e informe o
número de meu telefone. Está bem? Antes de Chloe terminar de falar, Buck já estava
digitando.
122
Rayford tirou seu laptop da sacola e saiu da aeronave. No caminho, passou pelos dois criados
cujos semblantes estampavam aborrecimento, pelo irado Leon que transpirava e falava ao
telefone, e por Mathews. O Supremo Pontífice da Fé Mundial Enigma Babilónia olhou de relance
para Rayford e desviou o olhar. Um sacerdote que não demonstra nenhum interesse, pensou
Rayford. Para homens como aquele, os pilotos não passavam de adereços.
Rayford sentou-se perto de uma janela do terminal. Com seu incrível computador, movido a
luz solar e conectado por zonas de celular, ele podia comunicar-se de qualquer lugar. Ele
verificou a central de boletins na qual Tsion mantinha contato com os crentes em número cada
vez maior. Em questão de dias, centenas de milhares de pessoas haviam respondido às suas
mensagens. Os e-mails abertos enviados a Nicolae Carpathia pediam a anistia de Tsion Ben-
Judá. Uma mensagem comovente mostrava aquilo que já era um consenso: "Certamente um
homem amante da paz como o senhor, potentado Carpathia, que ajudou o rabino Ben-Judá a
fugir dos zelotes ortodoxos de sua terra natal, tem o poder de fazê-lo retornar são e salvo a
Israel, onde ele poderá comunicar-se com um número tão grande de pessoas que o amam
como eu. Confiamos no senhor."
Rayford sorriu. Muitos eram tão novatos na fé que não conheciam a verdadeira identidade de
Carpathia. Quando Tsion teria condições de falar abertamente o que pensava sobre Carpathia?
Quando leu seus e-mails, Rayford ficou estarrecido ao saber que Hattie havia feito contato. Ele
sentiu uma estranha mistura de emoções. Ficou feliz porque ela e o bebé estavam protegidos,
mas sentiu uma certa inveja por não ter recebido uma mensagem de Amanda. Ele se ressentiu
pelo fato de Chloe ter recebido notícias de Hattie antes que ele soubesse do paradeiro de
Amanda. "Meu Deus, perdoa-me", ele orou silenciosamente.
Algumas horas depois, o Condor 216 finalmente decolou de Roma com uma tripulação completa,
cortesia da Alitalia Airlines.
Nos momentos em que não estava pensando no mergulho no rio Tigre, Rayford escutava
clandestinamente a conversa no compartimento de passageiros.
- Agora sim, Supremo Comandante Fortunato – Mathews estava dizendo -, não é melhor do
que ter um bufe a bordo conforme você planejou? Admita isso.
- Todo mundo gosta de ser bem servido - disse Fortunato. - Agora há alguns assuntos que Sua
Excelência pediu-me que tratasse com o senhor.
- Pare de chamá-lo assim! Isso me tira do sério! Eu ia manter segredo disso, mas, pensando
bem, acho que posso contar-lhe agora. O índice de aceitação à minha posição tem sido tão
grande que meu pessoal planejou uma festa de uma semana para comemorar minha posse no
mês que vem. Embora eu não atue mais na Igreja Católica, que se fundiu com nossa religião,
alguém achou conveniente mudar meu título também. Creio que haverá um impacto maior e
serei mais compreendido pelas massas se eu passar a ser chamado simplesmente de Peter
Segundo.
- Parece nome de papa - disse Fortunato.
- Claro que é. Apesar de algumas pessoas considerar-me papa, eu acho sinceramente que meu
título deveria ser mais suntuoso.
- O senhor prefere Peter Segundo a Supremo Pontífice ou até mesmo Supremo Papa?
- Quanto mais simples, melhor. Ele soa melhor, não?
- Veremos o que Sua... hã, o Potentado Carpathia pensa disto.
- O que o potentado da Comunidade Global tem a ver com a Fé Mundial?
- Oh, ele se sente responsável pela ideia e por sua elevação a esse posto.
- Ele precisa lembrar-se de que a democracia não é tão má assim. Pelo menos ela faz
separação entre Igreja e Estado.
- Pontífice, o senhor perguntou o que Sua Excelência tem a ver com a Fé Mundial. Agora eu lhe
pergunto: o que seria da Enigma Babilónia sem a ajuda financeira da Comunidade
Global?
- Eu poderia inverter a pergunta. O povo precisa acreditar em alguma coisa. Precisa de fé.
Precisa de tolerância. Nós devemos permanecer unidos e livrar o mundo dos semeadores da
discórdia. Os desaparecimentos levaram embora os fundamentalistas tacanhos e os fanáticos
intolerantes. Você já viu o que está acontecendo na Internet? Aquele rabino que blasfemou sua
123
religião em seu próprio país está agora conseguindo uma legião de seguidores. Minha
responsabilidade é competir com isso. Tenho um pedido aqui... - Rayford ouviu o farfalhar de
papéis - ...para uma ajuda financeira maior por parte da Comunidade Global.
- Sua Excelência estava temendo isso.
- Que bobagem! Eu nunca vi Carpathia ter medo de nada. Ele sabe que temos despesas
enormes. Estamos vivendo de acordo com o nome que ostentamos. Somos uma religião
mundial. Exercemos influência em todos os continentes em prol da paz, da união e da
tolerância. Todos os embaixadores devem ser instruídos a aumentar sua quota de contribuição
para a Enigma Babilónia.
- Pontífice, ninguém jamais enfrentou os problemas fiscais que Sua Excelência está enfrentando.
O centro do poder foi transferido para o Oriente Médio. A Nova Babilónia é a capital do mundo.
Tudo será centralizado. A reconstrução daquela cidade forçou o potentado a propor um
significativo aumento de impostos em todas as áreas. E ele também está reconstruindo o
mundo inteiro. As forças da Comunidade Global estão trabalhando em todos os continentes,
restabelecendo sistemas de comunicação e de transporte e cuidando da limpeza, resgate,
socorro, vigilância sanitária, etc. e etc. Cada líder de região será convocado a exigir um
sacrifício de seu povo.
- E foi você quem fez aquele trabalho sujo, não, Supremo Comandante?
- Eu não considero um trabalho sujo, pontífice. Sinto-me honrado por poder auxiliar Sua
Excelência a enxergar melhor as coisas.
- Lá vem você de novo com esse negócio de excelência.
- Permita-me contar-lhe uma história pessoal que levarei ao conhecimento de todos os
embaixadores durante esta viagem. Seja tolerante comigo, e o senhor verá que o potentado é
um homem profundamente espiritual e possui uma chama divina.
- Era só isso o que me faltava - disse Mathews, rindo. - Carpathia um sacerdote. Não consigo
imaginar.
- Juro que cada palavra que vou dizer é verdadeira. Minha história mudará a opinião que o
senhor tem de nosso potentado.
Rayford desligou o botão secreto.
- Leon está contando a Mathews sua história parecida com a de Lázaro - ele murmurou.
- Oh, não - disse Mac.
O Condor sobrevoava o Atlântico no meio da noite, e Rayford estava cochilando. O som do
interfone o despertou.
- Quando você puder, capitão Steele - disse Fortunato -, precisamos conversar um pouco.
- Detesto bajular alguém - disse Rayford a Mac -, mas prefiro tirar esse assunto da frente. -
Ele apertou o botão. - Pode ser agora?
Fortunato foi ao encontro de Rayford no meio da aeronave e fez um gesto para que ele o
acompanhasse, ficando bem longe de onde Mathews e seus dois criados estavam dormindo.
- Sua Excelência pediu-me que lhe falasse sobre um assunto delicado. Está se tornando cada
vez mais embaraçoso para ele não conseguir apresentar em público o rabino Tsion Ben-Judá,
de Israel, para seus seguidores.
-Oh!
- Sua Excelência sabe que você é um homem de palavra. Se você está nos dizendo que não
sabe onde Ben-Judá se encontra, aceitamos isso como verdade. A pergunta é esta: você
conhece alguém que saiba onde ele está?
- Por quê?
- Sua Excelência está preparado para cuidar pessoalmente da segurança do rabino. Ele não fará
nenhuma ameaça à segurança de Ben-Judá simplesmente porque não vale a pena.
- Então, por que não tornar isso público e aguardar que Ben-Judá se aproxime de vocês?
- Seria muito arriscado. Talvez você saiba qual é a opinião que Sua Excelência tem a seu
respeito. No entanto, como sou uma pessoa que o conhece melhor que ninguém, sei que ele
confia em você. Admira sua integridade.
- E ele está convencido de que sei onde Ben-Judá se encontra.
- Vamos parar com este joguinho, capitão Steele. A Comunidade Global passou a ter um
alcance muito grande.
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Além do indiscreto Dr. Rosenzweig, recebemos informações de que o seu genro ajudou o rabino
a fugir.
- Rosenzweig é um dos maiores admiradores de Carpathia, mais leal do que Nicolae merece.
Não foi Chaim quem buscou a ajuda de Carpathia no assunto Ben-Judá quando Nicolae
começou a ficar famoso?
- Fizemos tudo o que pudemos...
- Não é verdade. Se você espera que eu seja um homem de palavra, não insulte minha
inteligência. Se o meu genro tivesse ajudado Ben-Judá a fugir de Israel, eu não poderia
pensar que ele contou com a colaboração da Comunidade Global?
Fortunato não respondeu.
Rayford precisava tomar cuidado para não revelar o que ouvira pelo sistema de escuta
clandestina. Ele jamais se esqueceria do momento em que Fortunato transmitira a Carpathia o
pedido de Rosenzweig para ajudar seu amigo em apuros. A família de Ben-Judá fora trucidada e
ele estava escondido. Mesmo assim, Carpathia rira e dissera, com todas as letras, que talvez
devolvesse Ben-Judá aos fanáticos.
- Aqueles que estão próximos da situação conhecem a verdade, Leon. A afirmação de
Carpathia de que ele se preocupa com o bem-estar de Tsion Ben-Judá não passa de um boato.
Não tenho dúvida nenhuma de que ele podia proteger o rabino e que teve condições de fazer
isso na época, mas não o fez.
- Talvez você tenha razão, capitão Steele. Eu não tinha conhecimento da situação.
- Leon, você conhece cada detalhe de tudo o que se passa. Leon demonstrou ter gostado do
que ouviu. Não argumentou.
- Apesar de tudo, seria contraproducente em relação à opinião pública se mudássemos de
posição agora. O povo acredita que ajudamos o rabino a fugir, e perderíamos a credibilidade se
admitíssemos que não tivemos nenhuma participação nisso.
- Mas como eu estou a par - disse Rayford - não mereço alguma condescendência?
Leon sentou-se e juntou as mãos, tocando as pontas dos dedos, e soltou a respiração.
- Está bem - ele disse. - Sua Excelência autorizou-me a perguntar-lhe o que você deseja em
troca para fazer este favor.
- Que favor?
- Resgatar Tsion Ben-Judá.
- E levá-lo para onde?
- Israel.
O que Rayford mais queria era limpar o nome de sua mulher, mas não podia trair a confiança
de Mac.
- Então, quer dizer que posso estabelecer meu preço agora em vez de trocar o rabino por
minha filha?
Leon pareceu não se surpreender por Rayford estar sabendo do fiasco em Mineápolis.
- Houve um mal-entendido nas comunicações - ele disse. - Você tem a palavra de Sua
Excelência que ele pretendia que a mulher de um de seus funcionários reencontrasse o marido
e recebesse os melhores cuidados.
Rayford sentiu vontade de dar uma gargalhada ou cuspir no rosto de Fortunato, sem saber o
que seria melhor.
- Preciso pensar no assunto - ele disse.
- De quanto tempo você necessita? Sua Excelência está sendo pressionado a fazer alguma coisa
em relação a Ben-Judá. Ele estará nos Estados Unidos amanhã. Podemos tomar algumas
providências?
- Você quer que eu leve o rabino a bordo do Condor com todos os embaixadores?
- Claro que não. Mas já que vamos estar naquela região, seria melhor começarmos a agir desde
já.
- Desde que Tsion Ben-Judá esteja lá.
- Acreditamos que se pudermos localizar Cameron Williams, localizaremos Tsion Ben-Judá.
- Você está sabendo mais que eu.
Rayford começou a levantar-se, mas Fortunato ergueu a mão.
- Só mais uma coisa - ele disse.
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- Deixe-me ver se adivinho. As iniciais dela são H.D.?
- Sim. Sua Excelência considera importante que o relacionamento seja encerrado pacificamente.
- Apesar do que ele disse ao mundo?
- Quem disse fui eu. Ele não deu seu aval.
- Não acredito.
- Acredite se quiser. Você conhece muito bem como o público fica atento a tudo. Sua Excelência
está determinado a não se sentir constrangido por causa da Srta. Durham. Você deve lembrarse
de que eles foram apresentados um ao outro por seu genro.
- Eu ainda não o conhecia naquela época - disse Rayford.
- Certo. O desaparecimento dela causou um transtorno. Fez Sua Excelência parecer incapaz de
controlar o que se passava em sua casa. O terremoto forneceu uma explicação plausível para a
separação deles. É importante que, enquanto estiver agindo por conta própria, a Srta. Durham
não diga nada nem faça nada que possa constrangê-lo.
- E você quer que eu faça o quê? Que eu diga a ela como deve comportar-se?
- Francamente, capitão, você não estaria exagerando se dissesse a ela que acidentes
acontecem. Ela não pode permanecer escondida por muito tempo. Se for necessário eliminar o
risco, temos condições de fazer isso com facilidade e de maneira que a imagem de Sua
Excelência não fique manchada. Ao contrário, ele conquistaria ainda mais a simpatia do povo.
- Posso repetir o que acabei de ouvir, só para que tudo fique bem claro?
- Claro.
- Você quer que eu diga a Hattie Durham para ficar com a boca fechada, se não você vai matála
e depois negar tudo.
Fortunato pareceu ter ficado abalado. Em seguida, ele se controlou e olhou para o teto.
- Estamos nos entendendo - ele disse.
- Fique sossegado. Se eu fizer contato com a Srta. Durham, transmitirei seu recado.
- Suponho que você também lhe dirá que, se ela repetir o que ouviu, sofrerá as consequências.
- Oh!, entendi. Trata-se de uma ameaça velada.
- Você vai cuidar dos dois assuntos?
- Vê que ironia? Vou transmitir uma ameaça de morte à Srta. Durham e, apesar disso, devo
confiar que você vai proteger Tsion Ben-Judá.
- Correto.
- Bem, talvez esteja correto, mas não é certo.
Rayford marchou de volta para a cabina de comando. O olhar de Mac deixava transparecer que
ele já sabia de tudo.
- Você escutou a conversa?
- Escutei - disse Mac. - Gostaria de tê-la gravado.
- Para quem você a reproduziria?
- Aos nossos companheiros crentes.
- Esse trabalho seria em vão. Nos velhos tempos, você poderia entregar uma fita dessas às
autoridades. Mas você sabe quem são as autoridades.
- O que você vai exigir, Ray?
- Como assim?
- Ben-Judá pertence a Israel. E Carpathia tem de cuidar da segurança dele, não é mesmo?
- Você ouviu o que Fortunato disse. Eles podem provocar um acidente e Carpathia ganhará a
simpatia do povo.
- Mas se ele prometer uma garantia pessoal, Ray, vai ter de proteger Tsion.
- Não se esqueça do que Tsion deseja fazer em Israel. Ele não vai apenas conversar com as
duas testemunhas ou rever velhos amigos. Vai treinar os 144.000 evangelistas ou o maior
número que puder assim que chegar lá. Ele será um terrível pesadelo para Nicolae.
- Mas, o que você vai pedir em troca?
- Qual é a diferença? Você espera que o anticristo cumpra uma promessa? Eu não daria um
centavo pelo futuro de Hattie Durham, quer ela siga as instruções ou não. Talvez se eu levar
isso um pouco mais adiante poderei extrair algo de Fortunato sobre Amanda. Estou lhe
dizendo, Mac, que ela está viva em algum lugar.
- Se ela está viva, Ray, por que não faz contato? Não quero ofendê-lo, mas não existe a
126
possibilidade de ela ser o que dizem que ela é?
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QUINZE
Buck despertou um depois da meia-noite com o toque do telefone de Chloe no pavimento
inferior. Embora ela houvesse deixado o telefone ao alcance da mão, ele continuou a tocar.
Buck sentou-se na cama, confuso. Em seguida, desceu a escada correndo, imaginando que
talvez Chloe estivesse dormindo profundamente por causa do remédio.
Só as pessoas muito ligadas ao Comando Tribulação conheciam os números dos telefones
celulares de seus membros. Qualquer chamada era muito significativa. Buck não conseguiu
enxergar o telefone no escuro, mas não queria acender a luz. Acompanhou o som até a beira
da cama de Chloe, debruçou-se cuidadosamente por cima dela, tentando não despertá-la.
Pegou o telefone e sentou-se em uma cadeira perto da cama.
- Telefone de Chloe - ele sussurrou.
Do outro lado da linha alguém chorava.
- É você, Hattie?
- Buck! - ela disse.
- Chloe não ouviu o telefone tocar, Hattíe. Eu não quero despertá-la.
- Eu também não - ela disse com a voz entrecortada por soluços. - Desculpe-me por ligar a
esta hora.
- Ela queria muito conversar com você, Hattie. Há alguma coisa que eu possa fazer por você?
- Oh, Buck! - ela disse, descontrolando-se novamente.
- Hattie, sei que você não imagina onde estamos, mas a distância é muito grande para
podermos ajudá-la caso esteja em perigo. Você quer que eu avise alguém?
-Não!
- Então fale com calma. Posso esperar. Não tenho compromisso nenhum a esta hora.
- Obrigada - ela conseguiu dizer.
Enquanto Buck aguardava, seus olhos começaram a acostumar-se à escuridão. Pela primeira
vez desde que chegara, Chloe não estava deitada do lado esquerdo para proteger o semnúmero
de fraturas, hematomas, cortes, torções e arranhões do lado direito. Todas as manhãs
ela passava meia hora massageando as partes dormentes do corpo. Ele orou para que em
breve ela pudesse desfrutar uma boa noite de sono. Talvez isso estivesse acontecendo naquele
momento. Mas será que alguém conseguiria dormir um sono tão profundo a ponto de não
ouvir o toque de um telefone tão próximo? Ele esperava que o sono fosse benéfico tanto ao
corpo como ao espírito de Chloe. Ela continuava deitada de costas, com o braço esquerdo ao
longo do corpo. O pé direito machucado, que ficara com os dedos virados para dentro, estava
tombado para a esquerda, e o braço engessado repousava sobre o estômago.
- Seja paciente comigo - Hattie conseguiu dizer.
- Não tenha pressa - disse Buck, passando a mão pela cabeça e espreguiçando-se. Ele estava
surpreso por ver sua mulher dormindo de modo tão sereno. Chloe era uma dádiva de Deus, e
Buck sentia-se imensamente agradecido por ela ter sobrevivido. O lençol e o cobertor que a
cobriam estavam amontoados. Ela costumava dormir sem cobertas e só puxava o cobertor
mais tarde.
Buck acariciou o rosto dela com o dorso da mão. A pele estava fria. Ainda aguardando que
Hattie conseguisse falar, ele cobriu Chloe até o pescoço com o lençol e o cobertor, preocupado
por talvez ter esbarrado as cobertas em seu pé machucado, o local mais sensível. Mas ela não
se mexeu.
- Hattie, você continua na linha?
- Buck, informaram-me esta noite que minha mãe e minhas irmãs morreram no terremoto.
- Oh, Hattie. Sinto muito.
- A devastação tem sido enorme - ela disse. - Quando Los Angeles e San Francisco foram
bombardeadas, Nicolae e eu ainda estávamos juntos. Ele me avisou que precisaríamos
128
sair daquela área e me fez jurar segredo. O serviço secreto dele temia um ataque por parte da
milícia, e foi o que aconteceu.
Buck não disse nada. Rayford lhe contara que ouvira, por meio do botão secreto instalado no
Condor 216, o próprio Carpathia dar ordens para bombardear San Francisco e Los Angeles.
- Hattie, de onde você está ligando?
- Eu já informei isso pelo e-mail - ela disse.
- Eu sei, mas você não está usando o telefone deles, está?
- Não! É por isso que estou ligando tão tarde. Tive de esperar até poder sair furtivamente.
- E quanto às notícias sobre sua família? Como chegaram até você?
- Eu tive de informar as autoridades de Santa Monica onde poderiam me encontrar. Dei-lhes o
número de meu telefone particular e o da clínica.
- Lamento muito dizer isto num momento tão difícil para você, Hattie, mas não foi uma boa
ideia.
- Eu não tive escolha. Levei muito tempo para chegar a Santa Monica, e quando cheguei,
minha família estava desaparecida. Fui obrigada a deixar o número dos telefones. Agora estou
muito preocupada.
- Talvez a informação tenha sido passada ao pessoal da CG.
- Eu não me importo mais.
- Não diga isso.
- Não quero voltar para Nicolae, mas quero que ele assuma a responsabilidade por nosso filho.
Não tenho emprego, nem renda e, agora, nem família.
- Nós nos preocupamos com você e a amamos, Hattie. Não se esqueça disto.
Ela rompeu em pranto novamente.
- Hattie, você já parou para pensar que as notícias sobre sua família podem ser falsas?
- O quê?
- Eu não subestimo o pessoal da CG. Sabendo onde você está, talvez queiram ter um motivo
para você não sair daí. Se você achar que sua família está morta, não haveria razão
para ir até a Califórnia.
- Mas eu disse a Nicolae que minha família tinha se mudado depois do bombardeio.
- Ele não deve ter levado muito tempo para descobrir que isso era mentira.
- Por que ele há de querer que eu não saia daqui?
- Talvez suponha que quanto mais tempo você ficar aí, maiores serão as chances de fazer um
aborto.
- Isso é uma realidade.
- Não fale assim.
- Não tenho alternativa, Buck. Não posso criar um filho em um mundo como este e sem
nenhuma perspectiva.
- Não quero fazê-la sentir-se pior, Hattie, mas acho que você não está segura aí.
- O que você está insinuando?
Buck gostaria que Chloe despertasse e o ajudasse a conversar com Hattie. Ele tinha uma ideia,
mas queria consultar sua mulher antes.
- Hattie, eu conheço essa gente. Eles preferem eliminá-la a fazer um acordo com você.
- Eu não represento mais nada. Não posso prejudicá-los.
- Se alguma coisa lhe acontecer, Carpathia poderá
conquistar uma grande simpatia por parte do povo. O que ele mais deseja é chamar a atenção
para si, e tanto faz se essa atenção venha em forma de medo, respeito, admiração ou
piedade.
- Vou lhe contar uma coisa. Farei o aborto antes que ele faça algum mal a mim ou a meu filho.
- Você não está sendo sensata. Vai matar seu filho antes que ele o mate?
- Você está falando igual ao Rayford.
- Nós concordamos neste ponto - disse Buck. - Por favor, não faça isso. Pelo menos, vá para
um lugar onde você não corra perigo e possa refletir sobre o assunto.
- Eu não tenho para onde ir!
- Se eu for buscá-la, você ficaria aqui conosco?
Silêncio.
129
- Chloe precisa de você. Podemos contar com a ajuda dela. E ela poderia ser útil para você
durante sua gravidez. Ela também está grávida.
- Verdade? Oh, Buck, não quero ser uma preocupação a mais para vocês. Eu me sentiria
constrangida, uma intrusa.
- Ei, a ideia foi minha.
- Não sei se daria certo.
- Hattie, diga-me onde você está. Chegarei aí até ao meio-dia de amanhã para buscá-la.
- Que tal até ao meio-dia de hoje?
Buck consultou seu relógio.
- Acho que vou conseguir - ele disse.
- Você não deveria conversar antes com Chloe?
- Não quero importuná-la agora. Se houver algum problema, ligarei para você. Caso contrário,
esteja pronta para vir comigo.
Nenhum comentário.
- Hattie?
- Continuo na linha, Buck. Estava só pensando. Você se lembra como nos conhecemos?
- Claro. Foi numa ocasião muito significativa.
- No 747 que Rayford pilotava na noite dos desaparecimentos.
- Do Arrebatamento - corrigiu Buck.
- Que seja. Já passamos por muita coisa desde então.
- Ligarei para você quando faltar uma hora para chegar aí.
- Nunca poderei pagar-lhe por isso.
- Quem disse alguma coisa sobre pagamento?
Buck desligou o telefone, arrumou as cobertas de Chloe e ajoelhou-se ao lado da cama para
beijá-la. Ela ainda estava fria. Ele resolveu pegar mais um cobertor, mas parou no meio do
caminho. Chloe estava imóvel. Estaria respirando? Ele voltou e colocou o ouvido perto do nariz
dela. Ficou em dúvida. Colocou o polegar e o indicador debaixo das mandíbulas para sentir a
pulsação. Ela retraiu-se. Estava viva. Buck ajoelhou-se no chão. "Obrigado, meu Deus!"
Chloe balbuciava alguma coisa. Ele segurou a mao dela e colocou-a entre as suas.
- O que foi, meu amor? O que você quer?
- Buck? - ela disse, esforçando-se para abrir os olhos.
- Estou aqui.
- O que houve?
- Acabei de receber um telefonema de Hattie. Volte a dormir.
- Estou com frio.
- Vou buscar mais um cobertor.
- Quero falar com Hattie. O que ela disse?
- Eu lhe contarei amanhã.
- Hummm, hummm.
Buck encontrou uma manta e estendeu-a sobre ela.
- Agora está melhor?
Ela não respondeu. Quando ele começou a afastar-se nas pontas dos pés, ela resmungou algo.
Ele voltou.
- O que é, meu bem?
- Hattie.
- Amanhã cedo - ele disse.
- Ela está com o meu coelhinho.
- Coelhinho? - perguntou Buck sorrindo.
- Meu cobertor.
- Está bem.
- Obrigada pelo cobertor.
Buck imaginou se ela se lembraria do que disse.
Mac estava na cabina de comando e Rayford dormia em seus aposentos quando seu telefone
tocou. Era Buck. Rayford sentou-se na cama. - Que horas são aí? - ele perguntou.
130
- Se eu lhe disser, qualquer pessoa que estiver na escuta saberá em que região estou.
- Donny nos assegurou que estes telefones eram seguros.
- Isso foi no mês passado - disse Buck. - Agora eles já estão quase obsoletos.
Os dois contaram as últimas novidades um ao outro.
- Você tem razão de querer tirar Hattie de lá. Depois que lhe contei o que Leon me disse, você
não concorda que ela está em perigo?
- Sem dúvida nenhuma - disse Buck.
- E Tsion? Está querendo ir para Israel?
- Querendo? Tive de amarrá-lo na cadeira para impedir que ele fosse a pé até lá. No entanto,
ele vai desconfiar de alguma coisa, caso o chefão queira assumir o mérito de levá-lo para lá.
- Acho que ele não deve ir, Buck. A vida dele estaria por um fio.
- Tsion busca conforto nas profecias que dizem que ele e o restante das 144.000 testemunhas
estão selados e protegidos, pelo menos por ora. Ele acha que pode entrar na toca do inimigo e
sair ileso.
- Ele é o especialista no assunto.
- Eu quero ir com ele. O encontro de Tsion com as duas testemunhas no Muro das Lamentações
fará explodir essa colheita de almas que ele tem profetizado.
- Buck, você já consultou a sede da CG? Tudo o que eu ouvi até agora da chefia é que você está
em terreno perigoso. Você não pode esconder mais nada de ninguém.
- Foi interessante essa sua pergunta. Acabei de transmitir uma longa mensagem ao chefão.
- E isso vai trazer-lhe algum benefício?
- Você sobreviveu até agora por causa de sua franqueza, Rayford. Estou fazendo o mesmo. Eu
disse a eles que ando muito atarefado resgatando amigos e enterrando mortos, e não estou
tendo tempo para me preocupar com meu trabalho. Além disso, 90% dos funcionários
morreram e todas as publicações estão praticamente paradas. Estou propondo continuar a
editar a revista pela Internet até que Carpathia decida se vai reconstruir as gráficas.
- Que criatividade!
- É isso aí. O fato é que talvez apareçam duas revistas na Internet simultaneamente, se é que
você está me entendendo.
- Já existem dezenas.
- Eu disse que talvez apareçam duas simultaneamente, editadas pela mesma pessoa.
- Mas apenas uma será financiada e autorizada pelo rei do mundo?
- Correto. A outra não receberá nenhum financiamento. Divulgará a verdade. E ninguém poderá
saber de onde ela se origina.
- Estou gostando de seu modo de pensar, Buck. Que bom você fazer parte de minha família.
- Minha vida não tem sido nem um pouco maçante, é o que eu posso dizer.
- E o que eu devo dizer a Leon sobre Hattie e Tsion?
- Diga que você vai fazer o recado chegar até a moça. Quanto a Tsion, negocie o que você
quiser. Ele será levado para Israel dentro de um mês.
- Você pensa que o pessoal do leste é tão paciente assim?
- É importante ganhar o maior tempo possível. Aumente as dificuldades. Controle o tempo
gasto. Isso deixará Tsion furioso, mas nos dará oportunidade para fazer um comunicado a
todos pela Internet para que possam estar presentes.
- Conforme eu já lhe disse, gosto de seu modo de pensar. Você devia ser editor de revista.
- Daqui a pouco não passaremos de fugitivos.
Buck estava certo. Quando o dia amanheceu, Chloe não se lembrava de nada do que se
passara durante a noite.
- Eu acordei com calor e descobri que alguém me cobriu com um cobertor - ela disse. - Acho
que foi obra de um dos sujeitos que dormem no pavimento superior.
Ela pegou o telefone e caminhou até a cozinha apoiando-se numa bengala.
- Vou ligar para ela agora mesmo - disse Chloe discando os números com a mão direita
inchada. - Vou dizer a ela que não vejo a hora de ter uma companhia feminina por aqui.
Chloe aguardou alguns momentos com o fone colado ao ouvido.
- Ninguém está atendendo? - perguntou Buck. - É melhor você desligar, meu bem. Se ela
estiver em algum lugar de onde não possa falar, deve ter programado o telefone para
131
desligar após o primeiro toque. Tente mais tarde, mas tome cuidado para não comprometê-la.
Do pavimento superior, veio o som de uma risada de Tsion.
- Vocês não vão acreditar nisto! - ele gritou, e Buck ouviu seus passos. Chloe fechou o telefone
e olhou para cima com curiosidade.
- Ele se diverte facilmente - ela disse. - Que alegria! Aprendo alguma coisa com ele todos os
dias.
Buck assentiu, e Tsion desceu a escada e sentou-se à mesa com o semblante demonstrando
vivacidade.
- Estou lendo algumas dos milhares de mensagens deixadas para mim na central de boletins -
ele disse. – Não sei quantas deixo de ler por dia. Acho que estou conseguindo ler apenas 10 %
do total, porque o número cresce assustadoramente. Fico triste por não poder responder a cada
uma delas, mas vocês sabem que isso é impossível. Esta manhã recebi uma mensagem de
alguém que assinou "Sei de Tudo". Claro que não posso ter certeza se essa pessoa sabe de
tudo, mas talvez saiba. Trata-se de um enigma interessante, não? Correspondência anónima
pode ser um embuste. Alguém pode usar meu nome e espalhar ensinamentos falsos. Eu
preciso inventar alguma coisa que prove minha autenticidade, não?
- Tsion! - disse Chloe. - O que esse "Sei de Tudo" escreveu de tão engraçado?
- Ah, sim. Foi por isso que vim até aqui, não? Perdoe-me. Eu imprimi a mensagem. - Tsion
olhou para a mesa e depois enfiou a mão no bolso da camisa. - Oh! - ele disse vasculhando os
bolsos da calça. - Ainda está na impressora. Não saia daqui.
- Tsion? - Chloe o chamou ao vê-lo afastar-se. - Só quero que você saiba que não vou sair
daqui enquanto você não voltar.
Ele olhou para ela com ar atordoado.
- Oh, bem, sim. Claro.
- Ele ficará emocionado quando souber que vai para casa - disse Buck.
- E você vai com ele?
- Eu não perderia isso por nada - disse Buck. – Essa história vai dar o que falar.
- Vou com vocês.
- Oh, não vai não! - disse Buck, mas Tsion já estava voltando.
Ele estendeu a folha de papel sobre a mesa e leu: "Rabino, sinto-me na obrigação de contarlhe
que a pessoa encarregada de vigiar todas as suas transmissões é um conselheiro militar
graduado da Comunidade Global. Isso talvez não signifique muito para o senhor, mas ele está
particularmente interessado em sua interpretação das profecias sobre o que estará caindo na
terra daqui a alguns meses e que causará grandes devastações. Sabendo que o senhor leva
essas profecias a sério, ele resolveu desenvolver defesas nucleares contra essas catástrofes.
Assinado, "Sei de Tudo".
- Isto é muito engraçado - disse Tsion olhando para cima, com um brilho nos olhos -, porque
deve ser verdade! Carpathia, que está sempre tentando explicar que tudo o que tem amparo
nas profecias bíblicas é um fenómeno da natureza, incumbiu seu conselheiro militar graduado
de planejar um contra-ataque a... o quê? Desferir um ataque a uma montanha incandescente
vinda do céu? Seria como um mosquito ameaçando um elefante. De qualquer forma, não
poderíamos considerar que ele está admitindo que existe fundamento nessas profecias?
Buck imaginou que o "Sei de TUdo" poderia ser o novo irmão de Rayford e Mac que trabalhava
dentro da sede da CG.
- Que coisa intrigante! - disse Buck. - Agora você está preparado para receber boas notícias?
Tsion pousou a mão no ombro de Chloe.
- O progresso diário desta garotinha aqui já é uma boa notícia para mim. - ele disse. - A
menos que o assunto seja Israel.
- Perdoarei sua observação condescendente, Tsion, porque tenho certeza de que você não teve
a intenção de ofender-me - disse Chloe.
Tsion demonstrou estar confuso.
- Perdoe Chloe - disse Buck a Tsion. - Faz 22 anos que ela está tentando ser politicamente
correta.
Chloe olhou firme para Buck.
- Sinto muito ter de dizer isto na frente de Tsion, Cameron, mas agora você me ofendeu de
132
verdade.
- Está bem - disse Buck rapidamente. - Considero-me culpado. Desculpe-me. Mas eu ia contar
a Tsion que ele vai ter seu desejo...
- Sim! - Tsion gritou exultante.
- E, Chloe, não estou disposto a discutir se você vai ou não.
- Então não vamos discutir. Eu vou.
- Oh, não! - disse Tsion. - Você não pode ir! Não está em condições.
- Tsion! Ainda temos um mês pela frente. Até lá eu...
- Um mês? - disse Tsion. - Por que tanto tempo? Eu já estou pronto. Preciso ir logo. O povo está
implorando por isso, e acredito que Deus quer que eu esteja lá.
- Estamos preocupados com a questão da segurança, Tsion - disse Buck. - Um mês dará tempo
para reunirmos o maior número possível de testemunhas do mundo inteiro em Israel.
- Um mês é demais!
- Será bom para mim - disse Chloe. - Até lá já estarei andando sem a ajuda de ninguém.
Buck balançou a cabeça.
- Você não precisa preocupar-se com segurança, Cameron - disse Tsion, já de volta a seu
mundo. - Deus me protegerá.
Ele protegerá as testemunhas. Quanto aos outros crentes, não sei. Só sei que eles receberam o
selo na testa, mas não tenho certeza se estarão protegidos durante a época da colheita.
- Se Deus pode proteger você - disse Chloe - pode me proteger também.
- Chloe - disse Buck - você sabe que só desejo o seu bem-estar. Eu adoraria que você fosse.
Nunca senti tanto a sua falta como quando estive em Jerusalém sem você.
- Então me diga por que não posso ir.
- Eu jamais me perdoaria se alguma coisa acontecesse com você. Não posso arriscar.
- Eu também estou vulnerável aqui, Buck. Cada dia é um risco. Por que você quer arriscar sua
vida e não a minha?
Buck não sabia o que dizer, e tentou encontrar uma resposta.
- Hattie estará mais perto de dar à luz. Ela vai precisar de você. E quanto ao nosso filho?
- Ninguém perceberá nada, Buck. Nessa época, estarei no terceiro mês de gravidez. E você vai
precisar de mim. Quem vai cuidar da parte logística? Vou me comunicar com milhares de
pessoas pela Internet, marcar reuniões. Preciso estar presente.
- Você não levou em conta o assunto de Hattie.
- Hattie é mais independente do que eu. Ela gostaria que eu fosse. Pode tomar conta de si
mesma.
Buck estava perdendo e sabia disso. Desviou o olhar, relutando em ceder tão depressa. Sim, ele
estava agindo como protetor de Chloe.
- É que há poucos dias eu quase perdi você.
- Pense um pouco, Buck. Eu fui capaz de sair daquela casa antes que ela me esmagasse.
Ninguém tem culpa de o telhado ter caído em cima de mim.
- Vamos ver em que condições você estará daqui a algumas semanas.
- Vou começar a ajuntar minhas coisas.
- Não seja precipitada.
- Pare de me tratar como uma criança, Buck. Eu não tenho problema de ser submissa a você
porque sei o quanto você me ama. Estou disposta a obedecer mesmo que você esteja errado.
Mas não seja insensato. E não erre quando não há motivos para errar. Eu vou fazer o que você
quer, e posso até me conformar, mesmo que você me obrigue a perder um dos maiores
acontecimentos da história da humanidade. Porém não me venha com essas ideias
antiquadas, querendo proteger sua mulherzinha. Vou aceitar a piedade e a ajuda de vocês por
alguns tempos, e depois quero voltar a trabalhar para valer. Pensei que essa tivesse sido uma
das virtudes que você apreciou em mim.
E era. O orgulho impediu que Buck concordasse tão depressa. Ele aguardaria um dia ou dois
para contar a ela que chegara a uma conclusão. Os olhos de Chloe estavam fixos nos dele.
Estava claro que ela queria vencer essa batalha. Ele tentou fazê-la abaixar o olhar mas não
conseguiu. Olhou, então, para Tsion.
- Dê ouvidos a ela - disse Tsion.
133
- Fique fora disto - disse Buck, sorrindo. - Eu não preciso de nenhum aliado. Pensei que você
estivesse do meu lado. Pensei que você concordaria comigo que aquele lugar não era
apropriado para...
- Para quem? - disse Chloe. - Para uma menina? Para uma "mulherzinha"? Para uma mulher
grávida e ferida? Será que ainda sou membro do Comando Tribulação ou fui rebaixada a
mascote?
As entrevistas de Buck com chefes de Estado tinham sido muito mais fáceis que esta discussão
com Chloe.
- Você não pode concordar com isto, Buck – ela complementou.
- Você está querendo me obrigar a aceitar a derrota – disse Buck.
- Não vou dizer mais nenhuma palavra - ela disse.
- Basta por hoje - disse Buck, rindo.
- Agora peço licença aos dois "senhores" - disse Chloe. - Vou tentar ligar novamente para
Hattie. Nós, da "liga das mulheres indefesas", vamos fazer uma reunião por telefone.
- Ei! Você não ia dizer mais nenhuma palavra! - O tom de voz de Buck era de retaliação.
- Então vá embora daqui para não ter de ouvir.
- Preciso ligar para Ritz. Quando você falar com Hattie, descubra sob que nome ela foi internada
na clínica.
Buck acompanhou Tsion em direção à escada, mas Chloe o chamou.
- Venha até aqui, garotão. - Buck a encarou. Ela fez um gesto para que ele se aproximasse. -
Vamos - ela disse levantando o braço engessado desde o ombro até o pulso e
passando-o ao redor do pescoço dele. Em seguida, ela puxou-o para perto de si e deu-lhe um
longo beijo. Ele afastou-se e sorriu timidamente. - Você é tão ingénuo - ela sussurrou.
- Mas amo você, neném - disse ele -, dirigindo-se para a escada.
- Ei - gritou ela - se você encontrar meu marido aí em cima, diga a ele que já estou cansada de
dormir sozinha.
Rayford permaneceu com o botão secreto ligado enquanto Peter Mathews e Leon Fortunato
passaram mais de uma hora e meia de vôo discutindo sobre o protocolo da chegada deles a
Dálias. Mathews, evidentemente, prevaleceu quase o tempo todo.
O embaixador regional - ex-senador dos Estados Unidos pelo Texas - providenciara limusines,
tapete vermelho estendido no chão, saudação oficial e até mesmo uma banda de música.
Fortunato passou meia hora conversando por telefone com o pessoal do embaixador, tomando
conhecimento da apresentação dos convidados de honra que seria lida quando ele e Mathews
desembarcassem. Embora Rayford só conseguisse escutar o que Fortunato dizia, ficou claro que
o pessoal do embaixador estava simplesmente tolerando essa presunção.
Depois que Fortunato e Mathews se aprumaram para a cerimónia, Leon chamou a cabina de
comando pelo interfone.
- Eu gostaria que vocês, cavalheiros, auxiliassem a tripulação de solo descendo a escada de
saída assim que pararmos no aeroporto.
- Antes da verificação pós-vôo? - perguntou Mac, dando a entender a Rayford que isso era a
coisa mais estúpida que ele já ouvira. Rayford deu de ombros.
- Sim, antes da verificação pós-vôo - respondeu Leon. - Vejam se tudo está em ordem, digam à
tripulação de bordo para aguardar na aeronave até que a cerimónia de boas-vindas termine.
Vocês dois serão os últimos a descer.
Mac desligou o interfone.
- Se vamos adiar a verificação pós-vôo, com certeza seremos os últimos a descer. Você não
acha que a prioridade seria fazer a verificação para sabermos se esta aeronave está em
condições de fazer a viagem de volta?
- Como temos 36 horas pela frente, ele acha que podemos fazer isso a qualquer momento.
- Fui treinado para verificar os itens importantes enquanto ainda estão quentes.
- Eu também - disse Rayford. - Mas devemos fazer o que nos mandam, e você sabe por quê?
- Diga-me, ó Excelência Supremo Piloto.
- Porque o tapete vermelho não é para nós.
134
- Você não vai ficar ressentido com isso?
Rayford comunicou-se com o controle de solo enquanto Mac seguia as direções do sinalizador
rumo à pista de macadame e depois para perto de um pequeno palanque onde o público, a
banda de música e os dignitários aguardavam. Rayford espiou pela janela pessoas diferentes
vestidas de músicos.
- Onde será que eles foram buscar essas criaturas? – ele disse. - Sabe-se lá em quantos elas
eram antes do terremoto.
O sinalizador dirigiu Mac até a extremidade do tapete e cruzou no ar as lanternas em formato
de cone para indicar parada lenta.
- Veja só - disse Mac.
- Tome cuidado, seu malandro - disse Rayford.
No momento de frear, Mac parou um pouco além da extremidade do tapete vermelho.
- Eu fiz isso? - ele perguntou.
- Você é um garoto mau.
- Assim que a escada foi descida, a banda de música terminou de tocar. Os dignitários se
perfilaram e o embaixador da Comunidade Global pegou o microfone.
- Senhoras e senhores - ele anunciou com grande solenidade - representando Sua Excelência,
o Potentado da Comunidade Global Nicolae Carpathia, o Supremo Comandante Leonardo
Fortunato!
O grupo de pessoas irrompeu em aplausos enquanto Leon descia a escada acenando para
todos.
- Senhoras e senhores, os assistentes pessoais do escritório do Supremo Pontífice da Fé
Mundial Enigma Babilónia!
A reação foi mais branda porque as pessoas presentes talvez quisessem saber se aqueles dois
tinham nomes, e se tinham, por que não foram mencionados.
Após uma pausa, longa o suficiente para que todos ficassem curiosos de saber quem mais
estava a bordo, Mathews caminhou até perto da porta de saída, mas ficou fora da visão do
povo. Em pé na porta da cabina de comando, Rayford aguardava o início da verificação pós-vôo
quando toda aquela bobagem terminasse.
- Estou aguardando - resmungou Mathews. - Não vou aparecer enquanto não me anunciarem.
Rayford sentiu vontade de colocar a cabeça para fora e gritar: "Anunciem o Peter!", mas
conteve-se. Fortunato voltou a subir a escada apressado. De onde ele parou, não conseguia
enxergar Mathews, que estava um pouco afastado da porta. Ao avistar Rayford, ele gritou:
- Ele está pronto?
Rayford assentiu. Leon desceu a escada e cochichou ao ouvido do embaixador.
- Senhoras e senhores, o Supremo Papa Peter Segundo, da Fé Mundial Enigma Babilónia!
A banda de música começou a tocar, o povo se alvoroçou, e Mathews apareceu na porta,
aguardando os aplausos e aparentando humildade diante de uma reação tão generosa. Desceu
a escada solenemente, estendendo sua bênção a todos.
Assim que os discursos de boas-vindas foram iniciados, Rayford pegou sua prancheta e instalouse
novamente na cabina de comando.
- Senhoras e senhores! - disse Mac. - O Piloto Comandante do Condor 216, com uma vida
inteira repleta de...
Rayford bateu com a prancheta no ombro dele e disse:
- Pare com isso, seu boboca.
- Como você está, Ken - perguntou Buck pelo telefone.
- Melhor. Houve dias em que eu preferia estar no hospital. Mas estou bem melhor do que na
última vez que você me viu. Acho que vou tirar os pontos na segunda-feira.
- Tenho um outro serviço, se você estiver em condições.
- Estou sempre pronto. Para onde vamos?
- Denver.
- Hummm. Fiquei sabendo que o antigo aeroporto de lá está aberto. Acho que o novo nunca
mais voltará a funcionar.
135
- Temos uma hora pela frente. Eu disse à minha cliente que a pegaria até ao meio-dia.
- Outra garota com problemas?
- A bem da verdade, sim. Você tem carro?
- Sim.
- Desta vez, quero que você venha me pegar. Meu carro precisa ficar aqui.
- Quero saber notícias de Chloe - disse Ken. - Como ela está?
- Venha ver com seus próprios olhos.
- É melhor eu me apressar para que você não chegue atrasado ao compromisso. Você nunca
tem tempo para um pouco de lazer, não?
- Sinto muito. Ei, Ken, você entrou naquele site da Internet do qual eu lhe falei?
- Entrei. Passei um bom tempo lendo tudo.
- E chegou a alguma conclusão?
- Preciso conversar com você sobre esse assunto.
- Faremos isso quando estivermos a bordo.
- Estou muito agradecido por você ter permitido que eu pilotasse grande parte desta viagem -
disse Mac enquanto ele e Rayford desciam da aeronave.
- Eu tinha um outro motivo. Sei que as regras da FAA (órgão dos Estados Unidos que controla o
sistema de aviação) deixaram de prevalecer, uma vez que Carpathia passou a ser a própria lei,
mas ainda sigo o máximo que posso as regras de horas de vôo.
- Eu também. Você vai a algum lugar?
- Assim que você me ensinar a voar por aí com o Challenger. Eu gostaria de fazer uma visita de
surpresa para minha filha. Buck me disse como chegar lá.
- Isso será muito bom para você.
- O que você vai fazer, Mac?
- Vou ficar aqui. Tenho alguns amigos que moram a uns 300 quilómetros a oeste. Se eu
descobrir onde estão, usarei o helicóptero.
O carro velho de Ken Ritz entrou sacolejando no quintal da casa pouco antes das nove horas.
- Alguém gostaria de vê-la depois de você ter recobrado a consciência - disse Buck a Chloe.
- Pergunte se ele topa uma queda-de-braço comigo – disse Chloe.
- Você não acha que está muito brincalhona?
Tsion estava descendo a escada quando Buck foi ao encontro de Ken na porta dos fundos. Ken
usava botas e chapéu tipo caubói, calça jeans e camisa caqui de mangas compridas.
- Sei que você está com pressa - ele disse - mas onde está a paciente?
- Estou aqui, Dr. Aeroplano - disse Chloe mancando até a porta da cozinha. Ken tirou o chapéu
para cumprimentá-la.
- Faça mais que isso, caubói - ela disse, estendendo o braço em bom estado para dar-lhe um
abraço. Ken aproximou-se dela.
- Você está bem melhor do que na última vez que a vi - ele disse.
- Obrigada. Você também.
- Estou muito melhor - ele disse, rindo. - Vocês notaram alguma diferença em mim?
- Um pouco mais corado, acho - disse Buck. - E você deve ter engordado meio quilo nos
últimos dois dias.
- Não dá para perceber por causa de minha estatura - disse Ritz.
- Faz tanto tempo que não nos vemos, Sr. Ritz – disse Tsion.
Ritz apertou a mão do rabino.
- Todos nós estamos com aparência melhor que da última vez, não? - disse Ritz.
- É melhor nos apressarmos - disse Buck.
- Quer dizer que ninguém notou nenhuma diferença em mim, hein? - perguntou Ken. - Vocês
não estão vendo nada? Ainda não está aparecendo?
- O quê? - perguntou Buck. - Você também está "grávido"?
Enquanto todos riam, Ken tirou o chapéu e passou a mão pelos cabelos. - É a primeira vez que
coloco chapéu nesta cabeça machucada.
- E daí? O que há de diferente? - perguntou Buck.
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- Isto aqui. - Ken passou novamente a mão pelos cabelos, e desta vez segurou-os no alto da
cabeça. - Talvez a diferença esteja em minha testa. Eu posso ver o de vocês. Vocês podem ver
o meu?
137
DEZESSEIS
Rayford fez mais uma manobra de aterrissagem com o Challenger 3.
- Eles já estão cansados de me ver fazendo barbeiragens nesta pista. Se eu não acertar desta
vez, talvez seja melhor você me levar até Illinois.
- Torre de Dallas para Charlie, Tango, câmbio.
Rayford franziu a testa.
- Eu não falei que isso ia acontecer? - ele disse.
- Pode deixar que eu atendo - disse Mac. - Aqui é Charlie, Tango, câmbio.
- Mensagem recebida via rádio para o capitão do Condor 216, câmbio.
- Prossiga, torre, câmbio.
- Mensagem diz para ele ligar para o Supremo Comandante no seguinte número... Mac anotou
o número.
- E agora? - Rayford disse para si mesmo em voz alta, fazendo uma manobra de pouso, a mais
suave daquela manhã.
- Não há necessidade de pousar - disse Mac. - Deixe que eu tomo conta do Challenger
enquanto você liga para o capitão Canguru.
- Diga Supremo Comandante Canguru, companheiro - corrigiu Rayford. Ele arremeteu o
Challenger à velocidade de 480 km por hora. Assim que Rayford nivelou o avião no ar,
Mac assumiu os controles.
Rayford ligou para Fortunato, que estava na residência do embaixador.
- Eu esperava que você me ligasse imediatamente - disse Leon.
- Estou no meio de um treinamento.
- Tenho um serviço para você.
- Planejei algumas coisas para hoje, senhor. Tenho alguma opção?
- A instrução partiu de cima.
- Minha pergunta permanece no ar.
- Não, você não tem opção. Sua Excelência quer que você voe até Denver hoje. Se isto retardar
nossa volta, informaremos os respectivos embaixadores.
- Denver?
- Ainda não estou apto a pilotar este avião sozinho – disse Rayford. - Meu co-piloto não poderia
encarregar-se disso?
- O serviço secreto localizou a pessoa com que você deveria entrar em contato. Entendeu?
- Entendi.
- Sua Excelência gostaria que seu recado fosse transmitido pessoalmente, o mais rápido
possível.
- Por que tanta pressa?
- A pessoa encontra-se em um local de propriedade da Comunidade Global, que pode ajudar a
resolver o assunto, dependendo da resposta.
- Ela está em uma clínica de aborto?
- Capitão Steele! Esta ligação pode ser ouvida por alguém.
- Talvez eu deva pegar um vôo comercial.
- Você precisa chegar lá ainda hoje. Os homens da CG estão vigiando a pessoa.
- Antes de você partir, Cameron - disse Tsion - devemos render graças ao Senhor por nosso
novo irmão.
Buck, Chloe, Tsion e Ken abraçaram-se em círculo na cozinha. Tsion colocou a mão nas costas
de Ken e olhou para cima. "Senhor Deus Todo-Poderoso, a tua Palavra nos diz que os anjos
estão rejubilando conosco pela conversão de Ken Ritz. Acreditamos na profecia de uma grande
138
colheita de almas, e te agradecemos porque Ken passou a ser mais um dentre os muitos
milhões que habitarão em teu reino daqui a poucos anos. Sabemos que muitas pessoas vão
sofrer e morrer nas mãos do anticristo, mas o destino delas já está selado na eternidade.
Oramos especialmente para que nosso novo irmão passe a sentir sede de tua Palavra e que
possua a intrepidez de Cristo diante das perseguições, e que ele seja usado para trazer outros
para a família. Que o Deus de paz nos santifique completamente, e que nosso espírito, alma e
corpo permaneçam irrepreensíveis até a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo. Cremos que
aquele que nos chamou é fiel e cumprirá sua palavra. Oramos no nome incomparável de Jesus,
o Messias e nosso Redentor."
Ken enxugou as lágrimas do rosto, colocou o chapéu e abaixou-o até os olhos.
- Caramba! Isso é o que eu chamo de oração!
Tsion subiu rapidamente a escada e voltou trazendo um livro de bolso, cujas folhas estavam
marcadas com dobras, chamado Como iniciar a vida cristã. Ele o entregou a Ken, que parecia
emocionado.
- O senhor poderia autografá-lo para mim?
- Oh, não - disse Tsion - eu não sou o autor do livro. Peguei-o da biblioteca do pastor Bruce
Barnes. Sei que ele gostaria que o livro fosse entregue a você. Devo esclarecer que a Bíblia não
se refere a nós, que nos convertemos após o Arrebatamento, como cristãos. Somos chamados de
santos da tribulação. Mas as verdades contidas neste livro ainda prevalecem.
Ken segurou o livro com as duas mãos como se fosse um tesouro.
Tsion, que era quase 30 centímetros mais baixo que Ken, passou o braço ao redor da cintura
dele.
- Como novo mentor deste pequeno grupo, permita-me dar-lhe as boas-vindas ao Comando
Tribulação. Agora somos seis, cuja terça parte é composta de pilotos.
Ritz caminhou na direção de seu carro para dar a partida. Tsion desejou boa viagem a Buck e
que Deus o acompanhasse, e subiu a escada novamente. Buck puxou Chloe para perto de si e
abraçou-a como se ela fosse uma frágil boneca de porcelana.
- Você conseguiu falar com Hattie? Você sabe por qual nome ela é conhecida na clínica?
- Não. Vou continuar tentando.
- Continue também seguindo as ordens do Dr. Tsion, está bem?
Ela assentiu.
- Sei que você vai voltar logo, Buck, mas não gosto de despedidas. Na última vez que nos
despedimos você me encontrou em Minnesota.
- Na semana que vem daremos um jeito de trazer o Dr. Charles até aqui para ele tirar seus
pontos.
- Estou aguardando o dia em que não terei mais pontos nem gesso, e não precisarei mais usar
bengala nem andar mancando. Não sei como você aguenta olhar para mim.
Buck segurou o rosto de Chloe com as duas mãos. A região do olho direito ainda estava preta e
arroxeada, e a testa muito vermelha. A face direita afundara pela falta de alguns dentes, e o
osso malar estava fraturado.
- Chloe - ele disse baixinho - quando olho para você vejo o amor de minha vida. - Ela
começou a protestar mas ele a fez calar. - Quando imaginei que havia perdido você, teria
dado qualquer coisa para tê-la de volta nem que fosse por um minuto. Eu poderia ficar
olhando para você até Jesus voltar e continuaria a querer viver a seu lado na eternidade.
Depois de ajudá-la a sentar-se, Buck curvou o corpo e beijou-a na testa. Em seguida, suas
bocas se uniram.
- Eu gostaria muito que você fosse comigo - ele sussurrou.
- Quando eu sarar, você vai querer que eu fique em casa de vez em quando.
Rayford estava voando o mais lento que podia, pois queria adaptar-se ao Challenger 3 e
também ter certeza de que Buck e Ken Ritz chegariam até Hattie antes dele. Rayford gostaria
de poder dizer a Fortunato que ela já havia partido quando ele chegou lá. Em breve ele ligaria
para Buck a fim de avisá-lo que o pessoal da CG estava tentando mantê-la prisioneira.
Rayford não gostou das instruções recebidas. Fortunato não especificara o local. Dissera que o
139
pessoal da CG lhe forneceria aquela informação. Para Rayford, o local para onde eles queriam
levá-la não era importante. Se tudo desse certo, ela voaria de volta para a região de Chicago
com Buck e Ken, e as ordens de Fortunato seriam discutíveis.
Buck teria de voar cerca de 1.600 quilómetros até Denver, ao passo que o percurso de Rayford
seria de menos de 1.300 quilómetros. Ele reduziu a velocidade do jato até onde era possível.
Uma hora depois, estava ao telefone conversando com Buck. Enquanto ambos conversavam, o
rádio de Rayford recebeu duas chamadas, mas, como ele não ouviu seus nomes nem suas
iniciais, resolveu ignorá-las.
- Pretendemos estar em Stapleton ao meio-dia – disse Buck. - Ken diz que fui muito
pretensioso por ter prometido a ela que chegaríamos a esta hora. Ela ainda vai ter de nos
dizer como chegar lá, e até agora não conseguimos completar a ligação. Não sei sequer o
nome que ela deu quando se internou na clínica.
Rayford contou-lhe qual era sua missão.
- Não gosto disto - disse Buck. - Não confio em ninguém que esteja com ela.
- Essa história toda é uma loucura.
O rádio produziu uma estática. - Albie para Escafandro, câmbio. Rayford não deu atenção.
- Estou voando atrás de você, Buck. Vou fazer o possível para não chegar lá antes das duas
horas.
- Albie para Escafandro, câmbio - repetiu o rádio.
- Isso será razoável para Leon - prosseguiu Rayford. – Ele não pode pretender que eu chegue
lá antes disso.
- Albie para Escafandro, está me ouvindo, câmbio?
Finalmente, Rayford entendeu do que se tratava.
- Espere um momento, Buck.
Ao segurar o microfone, Rayford sentiu um arrepio. - Aqui é Escafandro. Prossiga, Albie.
- Preciso saber sua posição, Escafandro, câmbio.
- Um momento.
- Buck, vou ligar para você depois. Está havendo alguma coisa com Mac.
Rayford verificou seus instrumentos.
- Wichita Falis, Albie, câmbio.
- Pouse em Liberal. Câmbio e desligo.
- Albie, espere. Eu...
- Pouse que eu o encontrarei. Câmbio e desligo.
Por que Mac usara nomes em código? Rayford desviou a rota para Liberal, no Estado de Kansas,
e entrou em contato com a torre de lá para obter instruções de pouso. Com certeza Mac não
estava voando para Liberal no Condor. E a viagem no helicóptero duraria horas.
Rayford voltou a falar pelo rádio. - Escafandro para Albie, câmbio.
- Estou na escuta, Escafandro.
- Estou pensando em voltar e encontrar-me com você em sua rota, câmbio.
- Negativo, Escafandro. Câmbio e desligo.
Rayford ligou para Buck e contou-lhe o que sucedera.
- Estranho - disse Buck. - Mantenha-me informado.
- Positivo.
- Você quer ouvir uma boa notícia?
- Claro que sim.
- Ken Ritz é o membro mais novo do Comando Tribulação.
Pouco antes do meio-dia, horário MST (terceiro fuso horário dos Estados Unidos, que inclui o
Estado de Colorado), Ritz pousou o Learjet no aeroporto Stapleton, em Denver. Buck ainda não
tinha recebido notícias de Chloe. Ligou para ela.
- Nada, Buck. Sinto muito. Continuarei tentando. Liguei para várias clínicas de lá, mas todas me
informaram que as pacientes não ficam internadas. Perguntei se faziam partos. Disseram que
não. Não sei mais o que fazer, Buck.
- Nós dois não sabemos. Continue tentando.
140
Rayford completou o tanque de combustível para não levantar suspeitas dos funcionários da
torre do pequenino aeroporto de Liberal. Eles se surpreenderam com a pequena quantidade que
precisou ser adicionada ao tanque.
Parado na pista de macadame, Rayford ajeitou seu laptop perto da janela da cabina de
comando e conectou a Internet. Localizou a central de boletins de Tsion, que se tornara o
assunto do momento no mundo inteiro. Centenas de milhares de respostas acumulavam-se dia
a dia. Tsion continuava a concentrar a atenção de seu crescente rebanho em Deus. Incluía em
suas mensagens pessoais diárias um estudo bíblico dirigido às 144.000 testemunhas. Rayford
animava-se ao ler essas mensagens, e impressionava-se com o fato de um homem erudito ser
tão sensível a seu público. Além das testemunhas, seus leitores compunham-se de pessoas
interessadas, assustadas, cheias de dúvidas e recém-convertidas. Tsion tinha uma palavra para
cada uma delas, porém o mais impressionante de tudo era sua habilidade de "colocar os
biscoitos na prateleira mais baixa", conforme Bruce Barnes costumava dizer. A mensagem de
Tsion tinha o mesmo efeito das que Rayford ouvia pessoalmente quando o Comando Tribulação
se reunia com Tsion para discutir o que ele chamava de "as insondáveis riquezas de Jesus
Cristo". Rayford sabia que a habilidade de Tsion com a Bíblia ia muito além de sua facilidade de
lidar com idiomas e textos.
Ele era ungido por Deus, com o dom de ensinar e evangelizar. Naquela manhã, ele enviara a
seguinte "chamada às armas" pela Internet:
Bom-dia para todos vocês, meus queridos irmãos e irmãs no Senhor. Dirijo-me a vocês com o
coração pesaroso, mas também repleto de alegria. Choro a perda de minha querida esposa e
de meus filhos adolescentes. Choro por muitas pessoas que morreram depois que Cristo veio
para arrebatar sua Igreja. Choro pelas mães do mundo inteiro que perderam seus filhos. Choro
pelo mundo que perdeu uma geração inteira.
É muito triste não ver os rostos sorridentes nem ouvir as gargalhadas de crianças. Por mais
que tivéssemos desfrutado a companhia delas, não soubemos avaliar o quanto elas nos
ensinaram e o quanto foram úteis à nossa vida até o momento em que partiram.
Também estou triste esta manhã por causa das consequências da ira do Cordeiro. Deve ter ficado
claro a qualquer pessoa que saiba raciocinar, até mesmo os idólatras, que a profecia foi cumprida.
O grande terremoto parece ter extinguido 25% da população restante. Durante muitas gerações o
povo tem se referido às catástrofes da natureza como "atos de Deus". Essa é uma designação
incorreta. Séculos e séculos atrás, Deus o Pai concedeu o controle dos fenómenos atmosféricos ao
próprio Satanás. Deus permitiu destruição e morte por meio de fenómenos naturais, sim, por
causa do pecado do homem. E, sem dúvida, de vez em quando Deus interveio contra essas ações
do demónio por causa das orações fervorosas de seu povo.
No entanto, este terremoto recente foi com certeza um ato de Deus, infelizmente necessário.
Escolhi o dia de hoje para abordar um assunto específico em razão de um fato que ocorreu no
lugar onde vivo exilado. Trata-se do mais bizarro e mais impressionante acontecimento, que
pode ser creditado à incrível capacidade de organização, motivação e empreendimento da
Comunidade Global. Sempre deixei claro que a ideia de um governo mundial, de uma moeda
mundial ou, especificamente, de uma fé mundial (que considero tudo menos fé) originam-se
das profundezas do inferno. Com isso não estou dizendo que tudo o que resulta dessas
alianças pagãs seja necessariamente obra do demónio.
Hoje, no local secreto em que vivo, fiquei sabendo por meio do rádio que a incrível rede
Celular-Solar já possibilitou que a televisão fosse restabelecida em determinadas regiões.
Um amigo e eu, curiosos, ligamos o aparelho de TV. Ficamos estarrecidos. Esperávamos
ver um canal de notícias ou talvez uma emissora de emergência desta localidade. Mas
tenho certeza de que todos vocês já sabem que, nos locais onde a TV foi restabelecida,
ela voltou com força total.
Nosso aparelho de TV tem acesso a centenas de canais do mundo inteiro, que chegam até
aqui por meio de satélite. As imagens de todos os canais, representados por emissoras e
redes disponíveis, são recebidas em nossa casa de forma tão nítida e clara que temos a
impressão de poder entrar na tela e tocá-las. Mais uma das maravilhas da tecnologia!
Isto, porém, não me emociona nem um pouco. Admito que nunca fui um telespectador
141
tão assíduo como agora. Antigamente eu aborrecia as outras pessoas com minha
insistência para que elas assistissem apenas a noticiários e programas educativos e,
mesmo assim, eu criticava o que a TV exibia na tela. De tempos em tempos, eu
manifestava minha insatisfação pela queda gradativa na programação da TV.
De agora em diante, não vou mais apresentar justificativas por minha aversão a esse meio
de comunicação e lazer, que conseguiu piorar mais ainda. Hoje, enquanto meu amigo e eu
percorríamos as centenas de canais, não fui capaz nem sequer de fazer uma pausa para
ver a maioria das cenas que estavam diante de meus olhos, tal era a permissividade
apresentada na tela. Mesmo que eu tivesse visto as cenas só para poder criticá-las depois,
estaria sujeitando minha mente ao veneno da perversidade. Apenas 5 % da programação
exibiam cenas inofensivas referentes a noticiários. (Evidentemente, até mesmo os canais que
transmitem notícias são de propriedade da Comunidade Global e controlados por ela, e
apresentam seus pontos de vista. Mas pelo menos eu não fiquei exposto a linguagem obscena ou
imagens lascivas.) No entanto, em todos os outros canais que vi - naquela fração de segundo
enquanto eu percorria todas as emissoras - constatei que a sociedade chegou ao fundo do poço.
Não sou ingénuo nem puritano. Mas hoje vi coisas que nunca pensei que veria. Todas as
restrições, todas as regras, todos os limites foram erradicados. Isso foi apenas um dos motivos
ínfimos para que a ira do Cordeiro se manifestasse. A sexualidade, a sensualidade e a nudez
têm estado presentes há muitos anos em numerosos ramos de atividade. Porém, mesmo
aqueles que costumavam justificar essa prática como liberdade de expressão - ou que se
posicionavam contra a censura -pelo menos tomavam o cuidado de fazer essas imagens
chegarem apenas a quem optava por vê-las.
Talvez a perda de nossos filhos tenha nos forçado a nos lembrar de Deus, porém da pior
maneira possível, porque lhe demos as costas, protestamos contra Ele e cuspimos em seu
rosto. A simples visão dessa perversão simulada, um retrato vivo de todos os pecados
mencionados na Bíblia, nos fez sentir impuros.
Meu amigo e eu saímos da sala. Eu chorei. Não me causa surpresa saber que muitas pessoas
se voltaram contra Deus. Mas ver o povo exposto às terríveis consequências por ter
abandonado o Criador é uma coisa muito triste e deprimente para mim. Cenas de violência,
torturas e assassinatos são arrogantemente anunciadas em alguns canais que exibem tais
programações 24 horas por dia. Feitiçaria, magia negra, clarividência, adivinhação, bruxaria,
necromancia e encantamentos são apresentados como fatos normais e até mesmo positivos.
Existe algum equilíbrio nisto? Por acaso há uma só emissora que leve ao ar histórias, comédias,
programas de variedades, musicais e educativos ou que aborde assuntos religiosos que não se
refiram apenas à Fé Mundial Enigma Babilónia? Todo esse alarde feito pela Comunidade Global,
dizendo que a liberdade de expressão chegou para ficar, deve ser repudiado por nós que
conhecemos e acreditamos na verdade de Deus.
Perguntem a si mesmos se a mensagem que escrevo hoje teria permissão para ser exibida em
apenas uma das centenas de emissoras que enviam suas imagens às TVs do mundo inteiro.
Claro que não. Receio que a tecnologia fará com que a Comunidade Global silencie até mesmo
esta forma de expressão, que, sem dúvida, em breve será considerada crime contra o Estado.
Nossa mensagem bate de frente com a fé mundial que nega a crença no único e verdadeiro
Deus, um Deus de justiça e de discernimento.
Sou considerado um dissidente da mesma forma que vocês, que fazem parte da família de
Deus. Acreditar em Jesus Cristo como o unigénito Filho de Deus Pai, Criador do céu e da terra, e
confiar naquele que ofereceu sua vida como sacrifício pelo pecado do mundo passou a ser
antiético a tudo o que vem sendo ensinado pela Enigma Babilónia. Aqueles que se orgulham de
ser tolerantes e que nos chamam de exclusivistas, julgadores, desalmados e insistentes estão
sendo ilógicos e agindo de forma absurda. A Enigma Babilónia acolhe todas as religiões
existentes em suas fileiras, com o argumento de que todas devem ser aceitas e que nenhuma
deve ser discriminada.
Apesar disso, os dogmas de muitas dessas religiões não concordam com o princípio imposto
pela Enigma Babilónia. Quando tudo é tolerado, não existem limites.
Por que não cooperar? perguntam alguns. Por que não amar e aceitar? Nós amamos. Só que
não aceitamos. Parece que a Enigma Babilónia é a religião "única e verdadeira". Talvez muitas
142
dessas crenças tenham abandonado suas doutrinas de exclusividade porque elas nunca tiveram
nenhum sentido.
A fé em Jesus Cristo, contudo, é única e, sim, exclusiva. Não passam de tolos aqueles que se
orgulham de "aceitar" Jesus Cristo como um grande homem, talvez um deus, um grande
mestre ou um dos profetas. Sinto-me gratificado ao ler os vários tipos de comentários sobre
meus ensinamentos. Agradeço a Deus esse privilégio e oro para que eu sempre possa buscar
sua orientação e expor sua verdade com diligência. Porém, imaginem vocês se eu lhes dissesse
que, além de ser crente, sou também Deus. Isso não anularia todas as coisas positivas que
lhes ensinei? É certo dizer que devemos amar uns aos outros e viver em paz. Que devemos
praticar atos de bondade. Que devemos fazer aos outros aquilo que queremos que eles nos
façam. Estes princípios são profundos, mas será que este mestre continuaria a ser admirado e
aceito se ele também afirmasse ser Deus?
Jesus foi homem e também Deus. Bem, vocês dirão, é este o ponto de divergência. Alguém
pode considerá-lo apenas homem. E se, como homem, fez tudo aquilo, então Ele foi um
egocêntrico, um demente ou um mentiroso. E alguém pode afirmar em voz alta, sem atentar
para a estupidez do que está dizendo, que Jesus foi um grande mestre, mas não acreditar que
Ele é o Filho de Deus, o único caminho até o Pai?
Um dos argumentos contra um compromisso de fé profundo e sincero era que as
diversas religiões tinham tanta semelhança entre si que não fazia diferença qual delas a
pessoa escolhesse. Para termos uma vida digna, tanto do ponto de vista moral como
espiritual, deveríamos assumir a responsabilidade de fazer o bem, tratar os outros com
bondade e esperar que nossas boas ações superassem as más.
Na verdade, essas doutrinas são comuns a várias religiões que se uniram para formar a Fé
Mundial. A título de colaboração, seus membros deixaram de lado todas as diferenças e
começaram a desfrutar a harmonia da tolerância.
Francamente, isso esclarece o assunto. Eu não devo mais comparar a fé em Cristo com
qualquer outra crença. Todas elas passaram a ser uma só, e a diferença entre a Enigma
Babilónia e o Caminho, a Verdade e a Vida é tão evidente que a escolha se tornou fácil.
A Enigma Babilónia, sancionada pela Comunidade Global, não acredita em um único Deus
verdadeiro. Acredita em qualquer deus, em nenhum deus ou em um conceito de deus.
Não existe nem o certo nem o errado; existe apenas o relativismo. O "eu" é o centro
dessa religião feita por homens, e o ato de dedicar a vida para a glória de Deus fica em
segundo plano.
Meu desafio de hoje é que cada um de vocês tome uma posição. Junte-se a um grupo. Se
um deles estiver do lado certo, o outro estará do lado errado. Os dois lados não podem
estar certos. Procure ler as passagens bíblicas que esclarecem a condição do homem.
Descubra que você é um pecador, que foi separado de Deus, mas que pode reconciliar-se
com Ele desde que aceite o dom da salvação que Ele lhe oferece. Conforme já mencionei
antes, a Bíblia prediz que haverá um exército de 200 milhões de cavaleiros, mas que haverá
também uma multidão de santos da tribulação - aqueles que se tornaram crentes durante este
período - cujo número é impossível de ser contado.
Embora essa profecia indique que haverá centenas de milhões de pessoas como nós, eu lhes
digo que nossa vida não será fácil. Durante os próximos cinco anos que antecedem a gloriosa
volta de Cristo para estabelecer seu reino na terra, três quartos da população que não foi
levada por ocasião do Arrebatamento morrerá. Nesse ínterim, devemos dedicar nossa vida à
causa de Cristo. Atribui-se ao grande missionário Jim Elliot, mártir do século 20, um dos
textos mais pungentes que alguém já escreveu sobre o compromisso com Cristo: "Não pode
ser chamado de tolo aquele que abre mão do que não pode manter [sua vida na terra] para
ganhar o que não pode perder [a vida eterna com Cristo]."
Dirijo agora uma palavra a meus companheiros judeus convertidos que procedem de cada uma
das 12 tribos: Planejem uma concentração em Jerusalém daqui a um mês na qual haverá
confraternização, ensinamentos e unção para que vocês possam evangelizar com a veemência
do apóstolo Paulo e realizar a grande colheita de almas, obra esta que nos foi destinada.
E a Ele, que é capaz de impedir que vocês tropecem e caiam, a Cristo, o grande pastor das
ovelhas, seja dado o poder, o domínio e a glória hoje e para sempre, até o final dos séculos,
143
Amém. Seu servo, Tsion Ben-Judá.
Rayford sempre gostou muito de ler, na companhia de Amanda, essas cartas de Bruce Barnes e
depois de Tsion. Se ela estivesse escondida em algum lugar, teria condições de ler esta
mensagem? Será que eles estariam lendo ao mesmo tempo? Será que algum dia ele receberia
uma mensagem de Amanda na tela de seu computador? A cada dia sem notícias, as dúvidas de
Rayford aumentavam, e, mesmo assim, ele não conseguia aceitar que ela estava morta.
Continuaria a procurá-la. Ele não via a hora de receber o equipamento que lhe possibilitaria
mergulhar no rio e provar que Amanda não estava naquele avião.
- Albie para Escafandro, câmbio.
- Aqui é Escafandro, prossiga - disse Rayford.
- Devo pousar em três minutos. Esteja alerta. Câmbio e desligo.
Buck e Chloe concordaram que ele continuaria discando para o número de Hattie enquanto ela
cuidaria de ligar para os hospitais e clínicas de Denver. Buck sentiu na pele a mesma frustração
de Chloe quando começou a apertar seguidamente o botão de rediscagem do número de
Hattie. Até mesmo um sinal de ocupado seria mais animador.
- Não posso aguardar sentado aqui - disse Buck. – Sinto vontade de sair a pé para procurá-la.
- Você trouxe seu laptopl - perguntou Ritz.
- Estou sempre com ele - respondeu Buck. Já fazia algum tempo que Ken estava com os olhos
cravados no seu.
- Tsion está na Internet, convocando as tropas. Ele deve estar irritando Carpathia. Sei que há
muito mais gente que ainda ama Carpathia do que pessoas como nós que conseguiram
enxergar a luz, mas veja isto aqui.
Ritz virou seu computador de modo que Buck pudesse ver os números mostrados na tela,
indicando quantas respostas chegavam à central de boletins a cada minuto. Depois da última
mensagem de Tsion, o total começou a multiplicar-se novamente.
Ritz está certo, pensou Buck. Carpathia devia estar furioso diante das respostas às mensagens
de Tsion. Não era de admirar que ele queria receber o mérito por ter ajudado o rabino a fugir e,
posteriormente, apresentá-lo ao público. Mas por quanto tempo isso deixaria Carpathia satisfeito?
Quanto tempo ainda demoraria para ele começar a invejar Tsion?
- Se for verdade, Buck, que a Comunidade Global quer apoiar o retorno de Tsion a Israel, essa
gente devia ler o que ele está dizendo sobre a Enigma Babilónia.
- Carpathia incumbiu Mathews de cuidar da Enigma Babilónia - disse Buck - e agora está
arrependido. Mathews se considera maior e mais importante até mesmo que a CG. De acordo
com Tsion, a Bíblia diz que Mathews não vai durar muito.
O telefone tocou. Era Chloe.
- Buck, onde você está?
- Continuo aqui na pista.
- Você e Ken precisam apressar-se para alugar o carro. Vou explicar tudo enquanto vocês
tratam isso.
- O que houve? - perguntou Buck, descendo e fazendo um sinal para que Ken o acompanhasse.
- Consegui ligar para um pequeno hospital particular. Uma funcionária me disse que eles vão
fechar as portas dentro de três semanas porque é melhor vendê-lo à Comunidade Global que
pagar impostos altíssimos.
Buck caminhava apressado em direção ao terminal, mas reduziu a velocidade ao perceber que
Ken estava andando com dificuldade.
- É lá que Hattie se encontra? - ele perguntou a Chloe.
- Não, mas a funcionária me disse que existe um grande laboratório de testes da CG em Littleton.
Ele funciona em uma igreja enorme que passou a ser de propriedade da Enigma Babilónia e depois
vendida a Carpathia quando a frequência diminuiu. Há uma clínica instalada em uma das antigas
alas educacionais da igreja que cuida de pacientes grávidas prestes a dar à luz. A funcionária não
estava gostando muito dessa história. A clínica e o laboratório trabalham em conjunto, e
aparentemente realizam clonagens e pesquisas de tecidos fetais.
- Hattie está lá?
144
- Acho que sim. Eu fiz uma descrição de Hattie, e a recepcionista desconfiou quando eu disse
que não sabia o nome que ela estava usando. A recepcionista me disse que se alguém estava
usando nome falso era porque não queria ser encontrada. Eu disse que o assunto era muito
importante, mas ela não acreditou. Perguntei se ela poderia avisar cada paciente que havia
um recado de CW, mas tenho certeza de que ela não me deu ouvidos. Liguei um pouco mais
tarde e disfarcei a voz. Disse que meu tio era zelador de lá e pedi que alguém o chamasse ao
telefone. Quando ele entrou na linha, eu disse que tinha uma amiga internada que se
esquecera de me fornecer seu pseudónimo. Contei que meu marido estava a caminho para
levar um presente para essa minha amiga, mas ele precisava saber sob que nome ela
havia sido internada. O zelador não demonstrou disposição em ajudar até eu dizer que meu
marido lhe daria cem dólares. Ele ficou tão entusiasmado que me disse seu nome e, depois, os
nomes das quatro mulheres que estão internadas lá.
Buck aproximou-se do balcão da locadora de carros e Ken, que já conhecia a artimanha,
apresentou sua carta de motorista e o cartão de crédito à recepcionista.
- Você já está me devendo um monte de dinheiro - ele disse.
- Espero que eles tenham um carro de tamanho decente.
- Passe-me os nomes, meu bem - disse Buck a Chloe, pegando uma caneta.
- Vou lhe passar os quatro - disse Chloe - mas você vai saber imediatamente qual é o dela.
- Não vá me dizer que ela escolheu um nome parecido com Fulana de Tal.
- Nada tão criativo assim. Tivemos sorte, porque cada nome tem ligação com a nacionalidade
da mulher. Conchita Fernandez, Suzie Ng, Mary Johnson e Li Yamamoto.
- Passe-me o endereço e peça ao zelador que diga a Mary que estamos a caminho.
Mac pousou o helicóptero perto do Challenger e subiu no avião para conversar com Rayford.
- Eu não sei o que está acontecendo, Ray, mas não retardaria seu vôo tanto assim se não
houvesse um motivo importante. Sinto calafrios só em pensar que poderíamos nos
desencontrar, mas, depois que você me deixou, taxiei o Condor até aquele hangar do lado sul,
conforme você disse. Eu já estava saindo de lá e me dirigindo para a fila de táxi quando
Fortunato me ligou da casa do embaixador. Ele me pediu que eu o levasse de volta até o
Condor porque precisava fazer uma ligação confidencial, e o único telefone seguro estava a
bordo. Eu não contestei, mas disse que precisava destrancar a aeronave e acionar o botão de
energia para ele poder fazer a ligação e depois teria de trancá-la novamente por dentro. Ele
concordou desde que eu ficasse nos aposentos do piloto ou na cabina de comando para não
ouvir a conversa. Eu disse a ele que tinha algumas coisas para fazer na cabina de comando.
Veja isto, Ray.
Mac retirou uma máquina de ditados do bolso.
- Veja só como fui esperto. Entrei na cabina, coloquei os fones de ouvido e liguei o botão.
Encaixei a máquina dentro de um dos fones e liguei-a. Escute só.
Rayford ouviu o som de discagem e, em seguida, a voz de Fortunato.
"Está bem, Sua Excelência, estou no Condor, o telefone é seguro... Sim, estou sozinho... O copiloto
McCullum abriu a porta... Está na cabina de comando. Não há problema... Ele está a
caminho de Denver... Eles vão fazer isso lá?... Não poderia haver lugar melhor. Mas isso vai
alterar nossa viagem de volta... Um único piloto não tem condições de fazer esta viagem
inteira sozinho. Eu não me sentiria seguro... Sim, direi aos embaixadores que precisaremos de
mais tempo para voltar. O senhor quer que eu tente contratar um piloto daqui de Dallas?...
Entendo. Falarei com o senhor mais tarde."
- O que você está deduzindo disto, Mac?
- Está tudo muito claro, Ray. Eles querem pegar vocês dois de uma só vez. Fiquei impressionado
quando ele caminhou apressado até a cabina e bateu rapidamente na porta. Ele parecia agitado
e trémulo. Pediu-me que o acompanhasse até o compartimento de passageiros e que me
sentasse. Parecia nervoso. Passava a mão na boca e olhava para os lados, totalmente diferente
de seu modo de ser, você sabe. Ele me disse: "Acabei de receber notícias do capitão Steele, e
talvez ele se atrase um pouco. Eu gostaria que você fizesse o roteiro de nossa viagem de volta
com algumas paradas para você descansar, caso seja necessário pilotar o percurso inteiro. Eu
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perguntei: "O percurso inteiro? Todo o caminho de volta e todas as escalas programadas?" Ele
respondeu que eu devia fazer o roteiro da viagem de volta de modo que eu tivesse tempo de
descansar, que eles tinham plena confiança em mim.
E complementou: "Sua Excelência lhe será muito grato."
Rayford não gostou nada da história.
- Isso quer dizer que você passou a ser o novo capitão.
- Estou prestes a ser.
- E que eu vou me atrasar um pouco. Bem, não é uma maneira cortês de dizer que vou ser
eliminado.
146
DEZESSETE
Depois que Buck e Ken entraram no carro - com mais espaço do que necessitavam - e foram
informados sobre os desvios por causa da destruição, levaram quase 45 minutos para chegar a
Littleton. Foi fácil encontrar uma igreja que tinha sido transformada em laboratório de testes e
clínica de reprodução humana. Localizava-se na única rua transitável dentro de um raio de 25
quilómetros. Todos os veículos que passavam por eles estavam empoeirados e enlameados.
Buck entrou sozinho na esperança de conseguir tirar Hattie do local, sem que ninguém visse.
Ken aguardava do lado de fora com o motor do carro ligado, cuidando do telefone de Buck.
Buck aproximou-se da recepcionista.
- Oi! - disse ele alegremente. - Vim visitar Mary.
- Mary?
- Johnson. Ela está me aguardando.
- Quem gostaria de visitá-la?
- Diga-lhe que é B.
- Você é parente dela?
- Em breve vou ser. Assim espero.
- Um momento.
Buck sentou-se e começou a folhear uma revista como se tivesse todo o tempo do mundo. A
recepcionista pegou o telefone.
- Sra. Johnson, a senhora está esperando uma visita?... Não?... Há um moço aqui que diz
chamar-se B... Vou verificar.
A recepcionista chamou Buck com um gesto.
- Ela quer saber de onde você a conhece.
Buck deu um sorriso nervoso.
- Diga-lhe que nos conhecemos num avião.
- Ele diz que a conheceu num avião... Muito bem.
A telefonista desligou o telefone.
- Lamento muito, mas ela acha que o senhor a confundiu com outra pessoa.
- Você pode me dizer se ela está sozinha?
- Por quê?
- Talvez seja por isso que ela está negando que me conhece. Talvez precise de ajuda e não
sabe como me dizer.
- Senhor, ela está convalescendo de um tratamento médico. Tenho certeza de que está sozinha
e bem cuidada. Não posso contar-lhe mais nada sem a permissão dela.
Buck observou, pelo canto do olho, passar por ele uma figura pequena, de tez escura, trajando
um roupão. A mulher franzina, de cabelos compridos e traços asiáticos, olhou com curiosidade
para Buck. Em seguida, desviou os olhos e desapareceu no corredor.
O telefone da recepcionista tocou. Ela disse em voz baixa:
- Pois não, Mary... Você tem certeza de que não sabe quem ele é? Obrigada.
- Então, Mac, será que estou paranóico ou isso quer dizer que eles estão usando Hattie como
isca para nos pegarem de uma só vez?
- A última hipótese parece ser a verdadeira - disse Mac. - E nenhum dos dois conseguirá
escapar.
Rayford pegou seu telefone.
- Acho melhor avisar Buck sobre o que ele vai encontrar antes que eu decida o que vou fazer.
Buck entendeu que a recepcionista estava chamando o serviço de segurança. Não seria nada
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bom ser conduzido para fora pelos guardas, ou pior ainda, ser detido por eles. Seu primeiro
impulso foi o de sair às pressas dali. Mas havia ainda uma possibilidade de ludibriar a
recepcionista. Talvez Ken conseguisse distraí-la. Ou, então, Buck poderia convencê-la de que
não sabia o nome que sua amiga estava usando e tentara adivinhar.
A recepcionista, no entanto, deixou-o surpreso ao dizer, depois de desligar o telefone:
- Você trabalha para a Comunidade Global?
A recepcionista não sabia que a resposta àquela pergunta era mais complicada que Hattie usar
um nome de origem asiática ou uma moça asiática chamar-se Mary Johnson ou ter escolhido
esse nome como pseudónimo. Se Buck negasse que trabalhava para a Comunidade Global,
talvez nunca descobrisse o motivo da pergunta.
- Hã, sim, a bem da verdade, trabalho - ele disse. A porta de entrada abriu-se atrás dele. Ken
estava ali, com o telefone de Buck na mão.
- Seu nome é Rayford Steele? - perguntou a telefonista.
-Hã...
- Senhor? - gritou Ken. - Aquele carro lá fora com os faróis acesos é seu?
Buck sabia que não havia tempo para hesitação. Virou-se na direção da porta e disse por cima
dos ombros:
- Já volto.
- Mas, senhor! Capitão Steele!
Buck e Ken desceram a escada e seguiram até o carro.
- Eles imaginaram que eu fosse Rayford! Quase entrei nessa!
- Você não deve ficar lá dentro, Buck. Rayford foi enganado. Ele acreditava que ia cair numa
emboscada.
Ken tentou sair com o carro, mas ele não se mexia do lugar.
- Tenho certeza de que deixei o motor funcionando. – As chaves haviam sumido.
Um policial uniformizado da CG surgiu, como que por encanto, na janela do carro.
- Aqui estão, senhor - ele disse, entregando as chaves a
Ken. - Qual de vocês é o capitão Steele?
Buck tinha certeza de que Ken queria fugir correndo dali. Ele debruçou sobre o colo de Ken e
disse:
- Talvez seja eu. Vocês estavam à minha espera?
- Sim, estávamos. Quando seu motorista saiu do carro, achei melhor trancá-lo e levar as chaves
para ele. Capitão Steele, sua encomenda está lá dentro. Queira me acompanhar. - Em seguida,
ele virou-se para Ken. – Você também trabalha para a CG?
- Eu? Não. Trabalho para uma locadora de carros. O capitão aqui não tinha certeza se poderia
retornar com o carro, por isso eu o trouxe. É claro que ele vai pagar uma viagem de ida e
volta.
- Claro. E se não houver nada no carro que o senhor necessite, capitão, queira me acompanhar
- disse o policial para Buck, e depois para Ken. - Providenciaremos condução para ele. Você
pode levar o carro embora.
- Preciso acertar as contas com ele - disse Buck. – É rápido. Só preciso de um minuto.
Ken fechou a janela de seu lado.
- Decida que devemos fugir daqui, Buck, e eles jamais nos alcançarão. Se você entrar lá como
Rayford Steele, nem você nem Hattie conseguirão sair.
Buck fez uma encenação, tirando algumas notas do bolso para entregar a Ken.
- Preciso entrar - disse ele. - Se eles acham que sou Rayford e que estou desconfiado de
alguma coisa, a vida de Hattie não valerá mais nada. Ela está carregando um filho no ventre, e
ainda não se converteu. Não estou disposto a entregá-la nas mãos da CG. - Buck olhou de
relance para o policial na calçada. - Agora preciso ir.
- Vou ficar por aqui - disse Ritz. - Se você não sair logo, vou entrar.
- Estou propenso a voar direto para Bagdá porque quero provar a mim mesmo que Amanda
não está no fundo do rio Tigre. O que Carpathia vai fazer quando me vir? Dizer que me
ressuscitou?
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- Você sabe onde sua filha está, não? Se ela encontrou um lugar para se esconder, é para lá
que você deve ir. Quando Carpathia souber que você não apareceu em Denver, você
estará escondido.
- Não sou homem de me esconder, Mac. Eu sabia que este emprego com Carpathia era
temporário, mas acho estranho ser um alvo para ele. Possivelmente, nenhum de nós vai
sobreviver até o dia do Glorioso Aparecimento, mas este tem sido o meu objetivo desde o início.
Agora, quais são as probabilidades?
Mac meneou a cabeça.
O telefone de Rayford tocou. Ritz contou-lhe o que estava acontecendo.
- Oh, não! - disse Rayford. - Você não podia ter permitido que Buck entrasse lá novamente.
Talvez eles só descubram que não sou eu depois de matá-lo. Tire-o de lá!
- Não consegui impedi-lo, Rayford. Ele acha que se tomarmos alguma atitude suspeita, Hattie
morrerá. Confie em mim. Se ele não sair dentro de alguns minutos, vou entrar.
- Aquela gente tem armas muito poderosas – disse Rayford. - Você está armado?
- Sim, mas eles não vão correr o risco de atirar lá dentro, será?
- Por que não? Esse pessoal não preza a vida de ninguém a não ser a deles. Que arma você
tem?
- Buck não sabe, e eu nunca tive de usá-la, mas carrego uma Beretta sempre que estou a
serviço dele.
Buck e o policial da CG foram ao encontro da recepcionista, que demonstrava aborrecimento.
- Se o senhor tivesse me dito quem era, capitão Steele, e mencionado o nome correto da
paciente, eu poderia tê-lo encaminhado até ela sem problemas.
Buck sorriu e deu de ombros. Um policial mais jovem aproximou-se.
- Ela poderá recebê-lo agora - ele disse. – Depois preencheremos alguns papéis e
conduziremos os dois até Stapleton.
- Oh - disse Buck - nós não pousamos em Stapleton. Os policiais entreolharam-se.
- Não pousaram?
- Fomos informados de que o percurso de Stapleton até aqui estava em piores condições do que
do Aeroporto Internacional de Denver, por isso...
- Pensei que o Aeroporto Internacional de Denver estivesse fechado.
- Fechado só para voos comerciais - disse Buck, com cautela. - Se você nos conduzirem até lá,
seguiremos nosso destino.
- Que destino? Ainda não lhe demos nenhuma instrução.
- Oh, sim. Eu sei. Entendi que íamos para a Nova Babilónia.
- Ei - disse o policial mais jovem - se o Aeroporto Internacional de Denver está fechado para
voos comerciais, onde você alugou o carro?
- Só uma loja permanecia aberta - disse Buck. - Deve estar a serviço das forças militares da
CG.
O policial mais velho olhou de relance para a recepcionista.
- Diga a ela que já estamos indo.
Assim que a recepcionista estendeu a mão para pegar o telefone, os policiais pediram que
Buck os acompanhasse pelo corredor. Eles entraram em um quarto em cuja porta estava
escrito "Yamamoto". Buck receava que Hattie pronunciasse seu nome assim que o visse. Ela
estava deitada de lado, com o rosto virado para a parede. Buck não sabia se ela estava
acordada.
- Ela vai ficar surpresa ao ver seu antigo capitão – disse Buck. - Ela costumava me chamar de
Buck. Mas na frente da tripulação e dos passageiros, sempre se dirigia a mim como capitão
Steele. Ah, sim, ela foi minha comissária de bordo na Pan-Con durante muitos anos. Sempre
muito competente.
O policial mais velho pôs a mão no ombro dela.
- Está na hora de ir, minha cara.
Hattie virou-se com ar de perplexidade, protegendo os olhos da luz.
- Para onde estamos indo? - ela perguntou.
- O capitão Steele está aqui, madame. Ele vai levá-la até um local intermediário e, depois, de
149
volta à Nova Babilónia.
- Oh, oi, capitão Steele - ela disse com voz pastosa. – Não quero ir para a Nova Babilónia.
- Estou apenas cumprindo ordens, Srta. Durham – disse Buck. - Você conhece isso muito bem.
- Eu não quero ir para tão longe - ela disse.
- Faremos a viagem em etapas. Tudo vai dar certo.
- Mas eu...
- Vamos, madame - disse o policial mais velho. – Temos horário a cumprir.
Hattie sentou-se. Sua gravidez estava começando a aparecer.
- Eu gostaria que os cavalheiros me dessem licença. Preciso me vestir.
Buck acompanhou os policiais até o corredor. O mais jovem perguntou-lhe:
- Como você voou até aqui?
- Oh, em um daqueles jatinhos que não foram destruídos pelo terremoto.
O outro perguntou:
- Como foi o vôo que saiu de Bagdá?
Buck não tinha certeza se Rayford havia lhe contado que o aeroporto de Bagdá estava sem
condições de uso. Aliviado por eles não terem feito mais perguntas sobre o avião, ele imaginou
que estava sendo testado.
- Decolamos da Nova Babilónia - ele disse. - Vocês não podem acreditar na rapidez com que
estão reconstruindo tudo.
- Vôo longo?
- Muito. Mas fizemos algumas escalas de tempos em tempos para pegar cada um dos
dignitários. - Buck não fazia ideia de quantos, quando ou onde, e esperava que eles não
perguntassem.
- E como foi viajar com todos aqueles manda-chuvas grosseiros no mesmo avião?
- Ossos do ofício - disse Buck. - Mas os pilotos ficam na cabina de comando ou em aposentos
particulares. Não participamos das pompas dos passageiros.
Buck sabia que sua demora devia estar preocupando Ken. Aqueles sujeitos não iam levá-los a
nenhum aeroporto, apesar de toda aquela encenação. Buck ficou surpreso por eles não lhe
terem oferecido uma bebida envenenada. Aparentemente, tinham ordens de fazer um serviço
limpo e silencioso. Não poderia haver testemunhas.
Quando o policial mais velho bateu na porta do quarto de Hattie, Buck avistou Ken caminhando
pelo corredor ao lado de um funcionário da limpeza, ambos carregando vassouras. Buck
começou a conversar com os policiais na esperança de que Ken se afastasse rapidamente dali.
Apesar de Ken estar usando um boné da clínica igual ao do funcionário, suas feições eram
visíveis.
- Que tipo de carro vocês providenciaram para nós? - indagou Buck. - Um que atravesse estas
ruas esburacadas mais rápido que um seda alugado?
- Nem tanto assim. Conseguimos uma perua pequena com tração nas rodas traseiras,
infelizmente. Mas podemos levar vocês até o Aeroporto Internacional de Denver sem problemas.
- E para onde eles vão nos levar depois?
O policial mais jovem retirou um papel do bolso.
- Vou lhe dar esta informação no outro quarto dentro de alguns minutos, mas aqui diz Dulles
- Washington.
Buck olhou firme para o policial. De uma coisa ele tinha certeza: não havia planos para
reconstruir o aeroporto de Dulles. Ele tinha sido devastado pela guerra, e o terremoto destruíra
completamente o National Reagan, destinado a voos domésticos. Rayford lhe contara que o
Reagan tinha uma ou duas pistas funcionando, mas Dulles transformara-se em uma pilha de
escombros.
- Só mais um minuto - gritou Hattie. O policial deu um longo suspiro.
- O que vamos fazer no outro quarto? - perguntou Buck.
- É lá que vocês receberão as instruções e tudo o que vão necessitar. Depois seguiremos para o
aeroporto.
Buck não gostou da ideia de precisar ir para outro quarto. Ele queria conversar com Ritz. Buck
não sabia dizer se os homens da CG estavam portando pistolas, mas com certeza tinham Uzis
presas nas costas. Ele perguntou a si mesmo se ia morrer tentando salvar Hattie Durham.
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Rayford não queria que Fortunato soubesse que ele ainda não estava em Denver, caso os
homens da CG de lá tivessem passado adiante a informação sobre sua chegada. Se o aeroporto
de Denver tivesse sido avisado que o verdadeiro Rayford ainda não chegara, Buck estaria em
perigo. Nem ele nem Hattie teriam condições de escapar. Aguardando na pista do aeroporto,
Rayford foi tomado de um completo desânimo.
- É melhor você voltar, Mac. Fortunato acha que você está visitando amigos, certo?
- E não estou?
- Como ele faz contato com você?
- Ele dá uma ordem para que a torre me chame, e depois ligamos a chave na frequência 11
para conversarmos particularmente.
Rayford assentiu.
- Boa viagem - ele disse.
- Tudo certo, madame? - perguntou o policial aproximando-se da porta do quarto de Hattie. -
Tempo esgotado. Vamos.
Buck não ouviu nenhum som vindo de dentro. Os policiais entreolharam-se. O mais velho girou
a maçaneta. Estava trancada. Ele proferiu um palavrão. Ambos sacaram armas de suas
jaquetas e esmurraram a porta, ordenando que Hattie saísse. As outras mulheres apareceram
nas portas dos quartos. O policial mais jovem apontou-lhes sua Uzi, e elas entraram e
fecharam as portas novamente. O policial mais velho deu quatro tiros na porta de Hattie,
estourando o ferrolho e a trava. Alguém gritou. A recepcionista correu para ver o que estava
acontecendo. Quando ela surgiu no corredor, o policial mais jovem fuzilou-a com uma rajada
de balas, que dilacerou seu corpo desde a cintura até o rosto. Ela caiu pesadamente no piso de
mármore.
O policial mais velho precipitou-se para dentro do quarto de Hattie enquanto o mais novo
virava-se para acompanhá-lo. Buck estava entre os dois. Ele gostaria de ter feito um curso de
defesa pessoal. Devia haver algum golpe estratégico para dominar, frente a frente, um homem
com uma Uzi nas mãos.
Sem saber muito o que fazer, ele firmou-se no pé direito, colocou o esquerdo um pouco à
frente e deu um soco no nariz do policial mais jovem, com toda a força que conseguiu reunir
naquele momento. Ele sentiu a cartilagem afundar quebrando alguns dentes, e viu sangue
jorrando de um corte.
O policial pareceu'ter sido pego de surpresa quando Buck o golpeou, porque caiu de costas
batendo a cabeça no chão.
A Uzi caiu no piso de mármore. A tira que a prendia no corpo do policial enrolou-se debaixo
dele. Buck correu na direção do último quarto à sua esquerda, onde, momentos antes, ele vira
um rosto em pânico olhar pela fresta da porta. Em sua mente passavam imagens em câmera
lenta das cortinas voando para fora da janela aberta do quarto de Hattie, do corpo dilacerado
da recepcionista e do branco dos olhos do policial quando Buck afundou seu nariz com um soco
tão forte que quase o nivelou com o rosto.
Sangue pingava da mão de Buck enquanto ele corria. Antes de entrar no último quarto do
corredor, ele olhou de relance para trás. Nenhum sinal do policial mais velho. Uma mulher
grávida hispânica soltou um grito agudo quando Buck invadiu seu quarto. Ele sabia que estava
com a aparência horrível. O machucado em sua bochecha continuava inflamado, e sua mão e
camisa estavam sujas do sangue que espirrara do rosto do policial. A mulher cobriu os olhos e
começou a tremer.
- Tranque a porta e esconda-se debaixo da cama! - disse Buck. A princípio, ela não saiu do
lugar. - Faça isso já ou vai morrer!
Buck abriu a janela e percebeu que teria de virar-se de lado para sair. A tela de proteção não se
movia do lugar. Ele afastou-se, correu na direção da tela e arrebentou-a com um pontapé. O
impulso o arremessou para fora, e ele caiu em cima de alguns arbustos. Enquanto tentava ficar
em pé, as balas traspassavam a porta do quarto, e ele avistou a mulher escondida debaixo da
cama. Correu pela lateral da clínica e passou pela janela aberta do quarto de Hattie. Ao longe,
151
Ken Ritz a ajudava a entrar no carro pela porta traseira. Entre Buck e o seda estava estacionada
a perua da Comunidade Global.
Buck parecia estar no meio de um pesadelo, incapaz de movimentar-se mais rápido. Ele
cometera o erro de prender a respiração enquanto corria e o ar começou a faltar-lhe nos
pulmões. Seu coração batia acelerado contra as costelas. Assim que se aproximou da perua,
ele olhou de relance para trás e avistou o policial saltando da janela pela qual ele havia fugido.
Buck escondeu-se do outro lado da perua enquanto as balas perfuravam a lataria. A um
quarteirão de distância, Ritz aguardava sentado ao volante. As alternativas de Buck eram
limitadas: ser fuzilado, ser levado preso ou arriscar-se a correr para o carro.
Decidiu correr. A cada passo, ele temia que o próximo projétil esfacelaria sua cabeça. Hattie
devia estar deitada no banco ou no chão do carro. Ken tombara o corpo para a direita para não
ser visto. A porta do lado do passageiro abriu-se e o atraía como uma nascente no deserto.
Quanto mais Buck corria, mais vulnerável se sentia, mas ele não ousava olhar para trás.
De repente, ele ouviu um barulho, mas não de arma de fogo. Uma pancada seca na porta da
perua. O policial pulara para dentro da perua. Buck estava a cerca de 50 metros do carro.
Rayford ligou para Buck. O telefone tocou várias vezes, mas Rayford não queria desligar. Se
alguém da CG atendesse, ele inventaria uma história até descobrir o que desejava saber. Se
Buck atendesse, Rayford conversaria em código, caso ele estivesse na frente de pessoas que
não soubessem de onde partira a ligação. O telefone continuava a tocar.
Rayford detestava essa sensação de abandono e imobilidade. Estava cansado de fazer jogo
com Nicolae Carpathia e com á Comunidade Global. A hipocrisia dessa gente o deixava
enfurecido. "Senhor", ele orou silenciosamente, "permita que eu me torne um inimigo ferrenho
de Carpathia". Uma voz feminina aterrorizada atendeu ao telefone.
- Alô! - ela gritou.
- Hattie? Não deixe ninguém perceber que estou na linha.
É Rayford.
- Rayford! O piloto de Buck apareceu do lado de fora de minha janela e me deu um susto
danado, mas me ajudou a sair! Estamos aguardando Buck! Eles querem nos matar!
Estamos morrendo de medo!
- Dê-me este telefone! - Rayford ouviu alguém dizer. Era Ritz. - Ray, ele está bem, mas há um
sujeito atirando nele. Assim que ele entrar no carro, vou dar no pé. Talvez eu deixe você
falando sozinho.
- Tome conta deles! - gritou Rayford.
A poucos passos do carro, esperando ser morto a qualquer momento, Buck não ouvia mais
nenhum ruído. Nem de tiros, nem do motor da perua. Ao olhar de relance para trás, ele viu o
policial da CG descer da perua. O homem agachou-se e começou a atirar. Buck ouviu o
estampido de um tiro, que passou raspando por ele, e o pneu direito do carro estourando. Ele
correu na direção da porta aberta, agarrando-se à maçaneta e tentando colocar um dos pés
dentro. O vidro traseiro foi estilhaçado, e os cacos espalharam-se no interior do carro.
Buck tentava equilibrar-se, tendo o pé esquerdo no chão do carro e o direito no asfalto, a mão
esquerda agarrada na lataria e a direita na maçaneta da porta. Ken debruçara-se
novamente por cima do banco do passageiro para proteger-se das balas. Antes que Buck
conseguisse entrar com o corpo inteiro no carro, Ken pisou às cegas no acelerador. A porta
abriu-se completamente. Para não ser atirado para fora, Buck girou o corpo e sentou-se em
cima da cabeça de Ken, que deu um grito enquanto o carro rodava com o pneu furado e em
frangalhos e os outros deixando um rasto de borracha no asfalto. Buck também tentava
desviar-se da linha de fogo, mas precisava sair de cima da cabeça machucada de Ken.
Ken soltou o volante e usou as duas mãos para tentar sair debaixo de Buck. Conseguiu sentarse
para ver onde estava e deu uma guinada para a esquerda, mas não teve tempo de impedir
que o carro batesse na quina de um edifício. O canto direito do painel rasgou-se e ficou todo
enrugado. Ken controlou a direção do carro e tentou manter uma certa distância entre eles e o
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atirador.
O carro não estava colaborando. Balas e mais balas passavam zunindo perto de Ritz. Buck
observou o comportamento de seu amigo mudar, repentinamente, de assustado para furioso.
- Chega! - Ritz gritou. - É a última vez que ele atira em mim!
Horrorizado, Buck viu Ken dar um rodopio com o carro e acelerar na direção do policial. Em
seguida, ele sacou a Beretta 9mm de um coldre amarrado no tornozelo, firmou o braço
esquerdo entre o espelho externo e a lataria, e atirou.
O policial escondeu-se do outro lado da perua.
- Agora não tem mais jeito! - gritou Ken. - Deixe esse cara comigo!
Ele freou a cerca de 15 metros da perua e saltou do carro. Agachou-se, segurou a arma com as
duas mãos e começou a atirar um pouco acima do nível do chão.
Ao ver o policial da CG virar-se e correr na direção do edifício, Buck gritou pedindo que Ritz
voltasse para o carro. Ritz atirou mais três vezes, e um projétil atingiu o pé do policial. O
impacto fez a perna dele levantar-se instintivamente. Ele caiu de costas no chão e gritou:
- Vou acabar com você, seu...
Buck pulou para fora do carro e agarrou Ritz, arrastando-o de volta.
- Ele não está sozinho! - disse Buck. - Precisamos sair daqui!
Os dois entraram no carro novamente, e Ken girou o volante com o pé afundado no acelerador.
Uma imensa nuvem de poeira levantou-se atrás deles enquanto o carro atravessava as ruas
destruídas pelo terremoto, sacolejando em direção a Stapleton.
- Se eles nos perderem de vista - disse Buck - vão pensar que estamos indo para o Aeroporto
Internacional de Denver.
Por que ele não conseguiu dar partida na perua?
Ritz passou a mão debaixo do banco e pegou uma tampa de distribuidor com os fios
pendurados.
- Acho que foi por causa disto - ele disse.
O motor do carro roncava forte. Buck colocou a mão no teto para proteger a cabeça enquanto o
carro trepidava pelas ruas esburacadas. Com a outra mão ele atou o cinto de segurança de
Ritz. Depois de atar o seu, ele avistou o telefone no assoalho do carro. Havia alguém na linha.
- Alô! - ele disse.
- Buck! É Ray! Você conseguiu escapar?
- Estamos a caminho do aeroporto! O pneu traseiro estourou, mas não temos alternativa a não
ser rodar até onde for possível.
- O tanque de combustível está vazando! - gritou Ritz. – O nível está descendo rápido!
- Como está Hattie? - perguntou Rayford.
- Aguentando firme para sobreviver! - respondeu Buck.
Ele queria atar o cinto de segurança dela, mas naquelas condições seria impossível,
principalmente porque o carro balançava de um lado para outro. Ela estava deitada no banco
traseiro, com os pés firmados contra a porta, uma das mãos segurando o estômago e a outra
agarrada ao encosto do banco. Seu rosto estava pálido.
- Segurem firme! - gritou Ritz.
Buck olhou para a frente a tempo de ver uma montanha de lixo da qual eles não podiam
desviar. Ritz não reduziu a marcha nem parou. Acelerou até o fim e arremessou o carro bem no
meio do lixo. Buck encolheu-se no banco, passou um dos braços ao redor do corpo e com o
outro tentava impedir que Hattie rolasse do banco no momento do impacto. Quando o carro se
chocou com o lixo, Hattie foi atirada de encontro ao encosto do banco da frente. Ela agarrou-se a
Buck com tanta força que quase deslocou seu ombro. O telefone voou da mão dele, bateu com
força no painel e caiu no assoalho.
- Ligue para mim quando puder! - gritou Rayford. Ele desligou o telefone e taxiou o Challenger até
a extremidade da pista.
- Escafandro para Albie - ele disse. - Albie, você está me ouvindo?
- Prossiga, Escafandro.
- Volte à base e descubra o que eles estão sabendo. A carga está protegida temporariamente,
mas vou precisar inventar uma história quando me encontrar com eles.
- Positivo, Escafandro. Pense no que aconteceu em Minot.
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Rayford fez uma pausa.
- Boa lembrança, Albie. Vou seguir seu conselho. Preciso da informação que lhe pedi o mais
rápido possível.
- Positivo.
Que ideia brilhante! pensou Rayford. Tempos atrás ele contara uma experiência a Mac que
ocorreu enquanto estava estacionado em Minot, no Estado de Dakota do Norte. O avião de
caça que ele pilotava apresentou um problema, e ele teve de interromper uma missão de
treinamento. Agora ele contaria a Fortunato a mesma história em relação ao Challenger, e
Leon não perceberia nada. Mac confirmaria tudo o que Rayford dissesse. O maior problema
seria no momento de reencontrar Leon. Ele já deveria ter tomado conhecimento do fracasso em
Denver e suspeitaria da participação de Rayford.
No momento, ele só necessitava de equilíbrio para manter-se vivo. Seria Hattie tão importante
para Carpathia a ponto de ele envolver Rayford na história até descobrir onde ela estava?
Rayford tinha de voltar para Bagdá a fim de saber o que sucedera com Amanda. Carpathia
poderia matá-lo para dar uma mostra de seu poder ao restante do Comando Tribulação.
O carro está fervendo! - gritou Ritz.
- E eu também! - gemeu Hattie. Ela sentou-se e firmou as duas mãos nos apoios para cabeça
dos bancos da frente. Seu rosto estava vermelho, e a testa molhada de suor.
- Não temos alternativa a não ser continuar a rodar – disse Buck. Ele e Ken tentavam
equilibrar-se em razão da violenta trepidação do carro amassado. O ponteiro da temperatura já
alcançara a faixa vermelha, a fumaça começava a subir pelo capo e o marcador de combustível
descia rapidamente. Buck viu que o pneu traseiro furado estava pegando fogo.
- Se você parar, as chamas atingirão a gasolina. Se conseguirmos chegar ao aeroporto, só pare
o carro se tiver certeza de que o tanque está vazio! - disse Buck.
- E se o fogo do pneu atingir o carro? - gritou Hattie.
- Você estará nos braços de Deus, assim espero! – disse Ritz.
- Você tirou as palavras de minha boca! - disse Buck.
Voando rumo a Dálias no Challenger, Rayford receava chegar antes do helicóptero de Mac. Ele
teria de programar o horário de sua chegada. Alguns minutos depois, ele ouviu a voz de
Fortunato tentando falar com Mac.
- Torre de Dallas para Golf, Charlie, Nono, Nono, câmbio.
- Aqui é Golf, Charlie. Prossiga, torre.
- Ajuste a chave na frequência alternada para falar com seu superior, câmbio.
- Positivo.
Rayford mudou a chave para a frequência 11 a fim de ouvir a conversa.
- Mac, aqui fala o Supremo Comandante.
- Prossiga, senhor.
- Qual é a sua posição?
- Duas horas a oeste do senhor. Retornando de uma visita.
- Você está vindo diretamente para cá?
- Não, senhor. Mas posso ir.
- Então venha, por favor. Houve um contratempo ao norte de onde estamos, você está me
entendendo?
- O que aconteceu?
- Ainda não sabemos ao certo. Precisamos contatar nosso pessoal. Voltaremos à programação
estabelecida assim que for possível.
- Já estou a caminho, senhor.
Buck orava para que o combustível do carro se esgotasse logo, mas não sabia como
conseguiriam fazer Hattie caminhar por aquele chão completamente esburacado. As chamas
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atingiam o lado direito da traseira do carro, que só não explodira ainda porque ele continuava
a rodar.
O fogo estava muito perto de Hattie, e, mesmo com o carro pulando de um lado para o outro,
ela conseguiu arrastar-se até os bancos da frente e ficou espremida entre os dois homens.
- O motor vai explodir antes que o combustível acabe! - gritou Ken. - Acho que vamos ter de
pular!
- Falar é mais fácil que fazer! - disse Hattie.
Buck teve uma ideia. Pegou seu telefone e discou um código de emergência.
- Avisem a torre de Stapleton! - ele gritou. - Uma pequena aeronave em chamas está se
aproximando!
A pessoa do outro lado da linha tentou perguntar alguma coisa, mas Buck desligou. O motor
zumbia e a traseira do carro estava em chamas quando Ken conseguiu ultrapassar uma última
elevação perto da extremidade mais afastada da pista. Um caminhão do corpo de bombeiros,
carregado de espuma, preparou-se para entrar em ação.
- Continue rodando, Ken! - disse Buck.
Finalmente, o motor parou. Ken deixou o carro no ponto morto, e os dois homens agarraram-se
às maçanetas das portas. Hattie segurou-se no braço de Buck com as duas mãos. O carro
ainda rodava lentamente quando o caminhão o alcançou, arremessando um jato de espuma
que cobriu o veículo e apagou o fogo. Ken pulou para fora e Buck fez o mesmo, seguido por
Hattie. Com a vista turvada por causa da espuma, Buck carregou Hattie nos braços e ficou
surpreso diante dos quilos que ela engordara. Exausto, ele acompanhou Ken até o Learjet. Ken
desceu a escada do jato, tirou Hattie dos braços de Buck e entrou, conduzindo-a até uma
poltrona. Buck a ajudou a sentar. Em menos de um minuto, Ken fechou a porta e ligou os
motores, e o Learjet começou a rodar na pista.
Enquanto eles levantavam vôo, a equipe do corpo de bombeiros terminou de cuidar do carro e
viu o avião desaparecer no céu.
Buck afastou um joelho do outro e pendurou as mãos entre as pernas. Os nós dos dedos
estavam machucados. Ele não conseguia tirar da mente as imagens da recepcionista, que
morreu antes de cair no chão, do policial atingido por um tiro no pé, e da mulher tremendo
enquanto trancava a porta.
- Ken, se eles descobrirem quem somos, você e eu passaremos a ser fugitivos.
- Por que vocês não chegaram ao meio-dia? – perguntou Hattie, com voz fraca.
- O que houve com seu telefone? - retrucou Buck. – Chloe e eu tentamos ligar para você a
manhã inteira.
- Eles o tomaram de mim - ela disse. - Falaram que precisavam dele para saber o resultado de
um diagnóstico ou coisa parecida.
- Você está bem de saúde? - perguntou Buck. - Excetuando seu estado, é claro.
- Tenho passado bem - ela disse. - Continuo grávida, se é isto o que você quer saber.
- Eu percebi enquanto carregava você.
- Sinto muito ter-lhe dado este trabalho.
- Vamos ter de ficar num esconderijo - disse Buck. – Você está preparada?
- Quem mais está lá?
Buck lhe contou.
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xxxDEZOITO
- E quanto a cuidados médicos? - ela perguntou.
- Eu tenho uma ideia - disse Buck. - Não é nenhuma promessa, mas acho que poderemos fazer
alguma coisa.
Ken continuava ligado aos acontecimentos anteriores.
- Não pude acreditar na sorte que tive quando dei dinheiro àquele funcionário e ele me levou
para fora, de onde pude ver o quarto através da janela.
- Quando você me contou que estava com Buck – disse Hattie -, tive de confiar em você.
- E como você conseguiu sair de lá,-Buck? – perguntou Ken.
- Nem eu mesmo sei. O policial matou a recepcionista.
- Claire? - perguntou Hattie, abalada. - Claire Blackburn está morta?
- Eu não sabia o nome dela - disse Buck -, mas ela está morta.
- Era isso o que eles queriam fazer comigo - disse Hattie.
- Você adivinhou - disse Ken.
- Cavalheiros, vou ficar com vocês dois enquanto não me mandarem embora.
Buck pegou o telefone e ligou para Rayford e Chloe, e contou-lhes tudo o que acontecera. Em
seguida, ligou para o Dr. Floyd Charles em Kenosha.
Rayford inventou uma história que acreditava ser convincente. O único problema agora seria
quando eles soubessem que Buck os enganara usando seu nome.
Antes de retornar a Dálias, Rayford esperava descobrir o que Leon sabia sobre o que se passara
em Denver. Porém, ele não conseguia falar com Mac. Será que Buck havia sido reconhecido?
Ninguém acreditaria que Rayford não participara da fuga de Hattie se soubesse que seu genro
esteve lá. Rayford aceitaria as consequências de seus atos naquilo que ele considerava uma
guerra santa. No entanto, antes de ser preso, ele desejava encontrar Amanda e limpar o nome
dela.
Se Tsion estivesse certo, as 144.000 testemunhas permaneceriam protegidas por Deus de
todos os perigos durante um determinado tempo. Embora não fosse uma das testemunhas,
Rayford era crente; tinha o selo de Deus na testa, e confiava que Ele o protegeria. Se isso não
acontecesse, ele consideraria a morte como "lucro", de acordo com as palavras do apóstolo
Paulo.
Rayford não recebera notícias de Mac e não tinha meios de falar com ele. Ou Mac não
conseguira livrar-se de Leon a tempo de entrar em contato ou alguma coisa errada havia
sucedido em terra. Rayford precisava tomar uma atitude. Se contasse que cancelara sua
missão, essa história só faria sentido se ele se comunicasse, via rádio, com Leon antes de
aparecer novamente em Dálias.
Buck estava preocupado, imaginando que talvez tivesse matado uma pessoa. Quando o Dr.
Charles foi ao encontro deles no aeroporto de Waukegan, antes de seguirem para Monte
Prospect, Buck cochichou ao ouvido do médico:
- Preciso saber se machuquei muito aquele policial.
- Conheço uma pessoa que trabalha em uma das unidades de pronto- socorro da CG nos
arredores de Littleton - disse o Dr. Charles. - Posso verificar.
Ao chegarem a Monte Prospect, Ken entrou com seu velho carro no quintal da casa. O Dr.
Charles permaneceu dentro do seu, falando ao telefone. Chloe e Tsion queriam ouvir todos os
detalhes. Chloe insistiu para que Hattie, exausta da viagem, ficasse com a cama do pavimento
térreo, e subiu a escada para tomar uma ducha, apoiando-se na bengala e contando com a
ajuda de Ken e Tsion. Assim que terminasse, ela deveria avisá-los para que eles a ajudassem a
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descer.
Buck e Chloe conversaram em particular.
- Você poderia ter sido morto - ela disse.
- Não sei como não morri. Tenho quase certeza de que matei aquele policial. Não posso
acreditar. Ele tinha acabado de fuzilar a recepcionista, e eu sabia que faria o mesmo conosco.
Reagi instintivamente. Se houvesse tempo para pensar, eu teria ficado paralisado de medo.
- Você não tinha alternativa, Buck. Mas será que você seria capaz de matar um homem com um
soco?
- Espero que não. Ele estava se virando para apontar a arma para mim, quando eu o atingi.
Não estou exagerando, querida. Acho que eu não teria conseguido atingi-lo com tanta força se
tivesse corrido em sua direção. Senti meu punho afundando na cabeça dele, esmigalhando
tudo. Ele caiu de costas e bateu a cabeça com força no chão. O baque soou como uma bomba.
- Foi autodefesa, Buck.
- Não sei o que vou fazer se souber que ele está morto.
- O que a Comunidade Global fará se descobrir que foi você?
Buck gostaria de saber quanto tempo levaria para eles descobrirem. O policial mais jovem teve
tempo suficiente para gravar suas feições, mas provavelmente estava morto. O outro achava
que ele era Rayford Steele. Enquanto alguém não lhe mostrasse uma fotografia de Rayford, ele
continuaria a acreditar nisso. Mas teria condições de descrever os traços de Buck?
Buck caminhou até um espelho no corredor. Seu rosto estava sujo, e as faces apresentavam
manchas vermelhas e roxas até perto do nariz. O cabelo estava desgrenhado e molhado de
suor. Ele necessitava de uma ducha. Mas qual teria sido a sua aparência na clínica? O que o
policial sobrevivente diria sobre ele?
- Charlie, Tango para torre de Dálias, câmbio.
- Torre, prossiga, Charlie, Tango.
- Mensagem urgente para o Supremo Comandante da Comunidade Global. Missão suspensa por
falha mecânica. Verificando equipamento antes de retornar à base. Chegada prevista daqui a
duas horas, câmbio.
- Positivo, Charlie, Tango.
Rayford aterrissou em uma pista aparentemente abandonada a leste de Amarillo e aguardou a
chamada de Fortunato.
Buck sentiu uma certa inquietação quando o Dr. Charles entrou na casa sem olhar para ele. O
médico concordara em examinar Chloe, Ken e Hattie antes de voltar para Kenosha. Ele
demonstrou preocupação com o estado de Hattie e do bebé. Ela devia permanecer em repouso
absoluto.
Depois de instruir os outros como cuidar de Hattie e monitorar os sintomas, ele retirou os
pontos de Ken e recomendou que ele não fizesse nenhum esforço durante alguns dias.
- O quê? Nada de tiroteios? Acho que não vou poder trabalhar para Buck por uns tempos.
O médico disse a Chloe que o tempo seria seu aliado. O gesso que cobria seu braço e pé ainda
não podia ser retirado, mas ele prescreveu um tratamento que a ajudaria a melhorar
rapidamente.
Buck aguardou, observando. Se o Dr. Charles não lhe dissesse nada, significava que Buck
matara um homem e o médico não sabia como lhe contar.
- Você poderia examinar minha bochecha? – Buck perguntou.
O Dr. Charles aproximou-se sem dizer nenhuma palavra. Segurou o rosto de Buck e virou-o na
direção da claridade.
- Eu preciso desinfetar este ferimento - ele disse. - Se não passarmos um pouco de álcool aqui,
ele poderá infeccionar.
Os outros saíram do local enquanto o médico cuidava de Buck.
- Você se sentirá melhor depois de tomar uma ducha – ele disse.
- Eu vou me sentir melhor depois que você me contar o que descobriu. Você levou muito tempo
falando ao telefone.
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- O homem está morto - disse o Dr. Charles.
Buck olhou assustado para ele.
- Você não tinha alternativa, Buck.
- Eles virão atrás de mim. Havia câmeras instaladas por toda parte.
- Se seu rosto estava como está agora, mesmo as pessoas que o conhecem não teriam
condições de identificá-lo.
- Acho que devo me apresentar.
O Dr. Charles afastou-se um pouco.
- Se você tivesse baleado um soldado inimigo no campo de batalha, teria de apresentar-se
como culpado?
- Eu não tinha a intenção de matá-lo.
- Se você não tivesse feito isso, ele o mataria. Ele matou uma pessoa na sua frente. A missão
dele era tirar você e Hattie dali.
- Não entendo como um soco pode matar alguém.
O médico aplicou um curativo e sentou-se na beira da mesa.
- Meu colega de Littleton disse que uma das duas pancadas - o soco no rosto ou o baque da
cabeça no chão - poderia ter matado o policial. Mas as duas juntas foram fatais. Ele sofreu
trauma facial e esmagamento da cartilagem e dos ossos ao redor do nariz. Algumas partículas
de osso penetraram em seu crânio. Os dois nervos ópticos sofreram danos irreversíveis. Vários
dentes foram quebrados, e o maxilar superior partiu-se ao meio. Sua morte poderia ter sido
causada por todos esses traumatismos.
- Como assim?
- Meu colega tende a acreditar que a morte foi causada pelo baque da parte posterior da
cabeça no chão. Foi esse baque que fez o crânio dele esmigalhar-se como casca de ovo. Vários
fragmentos do tecido craniano penetraram no cérebro. A morte foi instantânea.
Buck abaixou a cabeça. Que espécie de soldado ele era? Como poderia participar dessa batalha
cósmica do bem contra o mal sem aceitar a ideia de ter matado o inimigo?
- Nunca conheci alguém que tivesse causado a morte de outra pessoa e não se sentisse
culpado por uns tempos - disse o médico, começando a guardar suas coisas. – Já conversei
com pais que foram forçados a matar para proteger seus filhos, mas eles também se sentiram
atormentados pelo remorso. Pergunte a si mesmo onde Hattie estaria agora? Onde você
estaria?
- Eu estaria no céu. Hattie estaria no inferno.
- Então você lhe deu um pouco mais de tempo para converter-se.
Finalmente, Rayford recebeu uma chamada da torre de Dálias pedindo que ele entrasse em
contato novamente meia hora antes de aterrissar naquele aeroporto.
- O Supremo Comandante aguarda sua chegada.
Rayford disse que estava a caminho. Quando faltava meia hora para chegar a Dálias, ele
informou a torre, e 40 minutos depois estava taxiando em direção ao hangar que também
abrigava o Condor 216. Ao descer da aeronave, ele avistou Leon Fortunato, cujo semblante
demonstrava indignação. Mac McCullum estava um pouco atrás, com ar de quem sabia de
tudo. Rayford não via a hora de conversar em particular com Mac.
- O que aconteceu, capitão Steele?
- A aeronave estava voando lento, comandante, e achei prudente verificar o que estava
havendo. Consegui reparar o problema, mas como me atrasei demais para o compromisso,
achei melhor voltar.
- Então você não sabe o que aconteceu?
- Com a aeronave? Mais ou menos. Ela começou a balançar e...
- Eu estou falando do que aconteceu em Denver!
Rayford olhou de relance para Mac, que fez um leve movimento negativo com a cabeça.
- Em Denver?
- Eu já lhe contei como foi, comandante - interveio Mac. - Não consegui contato com ele.
- Acompanhem-me - disse Fortunato. Ele conduziu Rayford e Mac a um escritório e ligou um
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computador, que exibiu um vídeo e um e-mail vindos do escritório da Comunidade Global de
Denver.
Os três debruçaram-se diante do monitor e passaram a acompanhar a narrativa de Fortunato.
- Sabíamos que a Srta. Durham não queria retornar à Nova Babilónia, mas Sua Excelência
acreditava estar agindo no melhor interesse dela e da segurança mundial. Com a finalidade de
proteger sua noiva e seu filho, encarregamos dois policiais de encontrarem-se com você e com
ela para transmitir-lhes instruções. A prioridade deles era entregar a Srta. Durham a seus
cuidados para que você a transportasse para o Oriente Médio. Eles tinham de mantê-la em
Denver até você chegar. Apesar de o laboratório e a clínica terem sido pouco atingidos pelo
terremoto, imaginamos que o sistema de vigilância estivesse avariado. Ao inspecionar o
sistema, o responsável pelo serviço de segurança constatou a presença do impostor.
- Impostor? - disse Rayford.
- O homem que afirmou ser você.
Rayford ergueu as sobrancelhas.
- Eles eram profissionais, capitão Steele.
- Eles?
- Pelo menos dois. Talvez mais. As câmeras instaladas na frente do edifício e na recepção não
estavam funcionando.
No entanto, havia uma câmera no fim do corredor principal e outra no meio. A ação que vocês
vão ver agora aconteceu no meio, mas a única câmera que funcionava estava instalada na
extremidade norte do corredor. As imagens do impostor foram prejudicadas, porque ora ele
está atrás de um dos policiais, ora de costas para a câmera. A fita começa aqui quando os
policiais e o impostor saem do quarto da Srta. Durham enquanto ela se veste para a viagem.
Não havia dúvida de que era Buck quem estava entre os dois policiais, mas seu rosto não
aparecia com nitidez. Seus cabelos estavam despenteados, e ele tinha um ferimento feio na
bochecha.
- Prestem atenção agora, cavalheiros. Quando o policial mais velho bate na porta do quarto da
Srta. Durham, o outro também se vira para a porta, e o impostor olha de relance
para o fim do corredor. Esta é a imagem mais nítida que conseguimos do rosto dele.
Novamente, Rayford sentiu-se aliviado porque a imagem não era clara.
- O policial mais velho acredita que a atenção do impostor foi distraída por dois funcionários da
limpeza que aparecem um pouco antes na fita. Ele terá uma conversa com os dois ainda hoje.
Vejam esta cena aqui. Ele perde a paciência com a Srta. Durham e a chama. Os dois policiais
esmurram a porta. Aqui o policial mais novo ordena às pacientes curiosas que voltem para seus
quartos. O impostor dá alguns passos para trás quando o policial mais velho estoura a
fechadura da porta. A recepcionista aparece. Enquanto o policial mais novo vira-se para ver a
recepcionista, o impostor consegue desarmá-lo. Prestem atenção. Vocês conseguem ver os tiros
sendo disparados? Ele mata a recepcionista no lugar em que ela está. Quando o policial mais
novo tenta desarmá-lo, o impostor dá-lhe um golpe tão forte no rosto com a ponta mais
pesada da Uzi que ele cai morto no chão.
Mac e Rayford entreolharam-se e aproximaram-se mais ainda para analisar o vídeo. Rayford
perguntou a si mesmo se Fortunato imaginava ter os mesmos poderes de Carpathia para
convencer as pessoas de que elas tinham visto algo que não viram. Rayford não deixou por
menos.
- Não foi bem assim, Leon.
Leon lançou-lhe um olhar sarcástico.
- O que você está dizendo?
- Quem atirou foi o policial mais jovem.
Fortunato voltou a fita.
- Está vendo? - prosseguiu Rayford. - Ali! Ele está atirando. O impostor está se afastando. O
policial vira-se para trás e o impostor dá alguns passos à frente enquanto ele parece estar
guardando as cápsulas das balas disparadas.
Está vendo? Ele perde o pé de apoio, e é por isso que o soco o faz bater com a cabeça no chão.
Fortunato parecia zangado. Reproduziu várias vezes a imagem.
- O impostor nem sequer tentou pegar a arma - disse Mac.
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- Digam o que quiserem, cavalheiros, mas aquele impostor matou a recepcionista e o policial.
- O policial? - disse Rayford. - Ele ia cair e bater com a cabeça no chão mesmo sem ter recebido
o soco.
- De qualquer forma - prosseguiu Fortunato - o cúmplice retirou a Srta. Durham pela janela e
levou-a até o carro no qual eles fugiram. Assim que o policial mais velho abriu a porta, o
cúmplice atirou nele.
Evidentemente, esta não era a história que Rayford ouvira.
- E ele não morreu?
- Escapou por um triz. Foi ferido gravemente no calcanhar.
- Entendi o senhor dizer que ele estava entrando no quarto quando recebeu o tiro.
- Correto.
- Se ele recebeu um tiro no calcanhar é porque estava saindo.
O computador deu um sinal, e Fortunato pediu ajuda a um assessor.
- Está chegando outra mensagem - ele disse. - Abra-a para mim.
O assessor apertou alguns botões, e uma nova mensagem apareceu na tela. Era do policial
mais velho, e dizia o seguinte: "Ferimento no pé sendo tratado. Será necessária uma cirurgia.
O cúmplice é o falso funcionário que aparece no início da fita. O verdadeiro foi encontrado com
uma bolada de dinheiro. Diz que o cúmplice o forçou a aceitar o dinheiro para que parecesse
suborno. Disse que o cúmplice colocou uma faca em sua garganta até obter a informação."
O assessor de Fortunato voltou a fita até o ponto em que os dois funcionários estavam
entrando no corredor e caminhando em direção à câmera. Rayford, que não conhecia Ritz
pessoalmente, percebeu logo qual dos dois ele era ao observar que seu uniforme estava
incompleto. A única peça de roupa que se assemelhava a um uniforme era o boné que,
aparentemente, ele tomara emprestado do funcionário. Ritz também carregava uma vassoura,
mas trajava roupas características da região oeste.
- Ele não deve ser daquela região - disse Fortunato.
- Que poder de percepção! - disse Rayford.
- Não é necessário ter um olho muito apurado para identificar roupas regionais.
- Mesmo assim, comandante, isso é sinal de perspicácia.
- Eu não estou vendo nenhuma faca - disse Mac, enquanto as imagens das pessoas
aproximavam-se da câmera. O boné de Ritz estava abaixado até os olhos. Rayford prendeu a
respiração quando ele segurou a ponta do boné e colocou-o corretamente na cabeça,
mostrando todo o rosto. Rayford e Mac, postados atrás de Fortunato, entreolharam-se.
- Assim que eles passaram por aquela câmera – disse Fortunato - o cúmplice recebeu a
informação de que necessitava e desapareceu. Pegou a Srta. Durham e atirou em nosso
policial. E aqueles policiais estavam ali só para proteger a Srta. Durham.
O policial ocultara os detalhes por conveniência porque não queria passar por idiota. Enquanto
alguém não analisasse cuidadosamente a cena, a Comunidade Global não tinha um mínimo de
provas para acusar Rayford.
- Ela vai entrar em contato com você - disse Fortunato a Rayford. - Ela sempre faz isso. É
melhor você não ter nada a ver com o que aconteceu. Sua Excelência consideraria alta traição,
sujeita a pena de morte.
- O senhor está suspeitando de miml
- Ainda não cheguei a nenhuma conclusão.
- Vou retornar à Nova Babilónia como suspeito ou como piloto?
- Como piloto, é claro.
- O senhor quer que eu pilote o Condor 216?
- Claro. Você não pode nos matar sem morrer também, e eu não o considero um suicida. Por
enquanto.
Buck passou mais de três semanas trabalhando na versão via Internet do Semanário
Comunidade Global. Conversava com Carpathia quase todos os dias. Nada foi dito acerca de
Hattie Durham, mas Carpathia sempre mencionava que o "amigo mútuo", o rabino Tsion Ben-
Judá, receberia proteção da Comunidade Global a qualquer hora que desejasse retornar para a
160
Terra Santa. Buck não contou isso a Tsion. Simplesmente manteve a promessa de que o rabino
voltaria para Israel dentro de um mês.
A cada dia, a casa geminada de Donny Moore tornava-se mais apropriada para eles. Ninguém
da vizinhança sobrevivera. Poucos carros passavam por ali.
Ken Ritz, totalmente recuperado, mudara-se do pequenino abrigo que alguém lhe cedera em
Palwaukee e passou a morar no porão da casa secreta. O Dr. Charles os visitava de tempos em
tempos. Sempre que havia uma oportunidade, o Comando Tribulação se reunia para ouvir os
ensinamentos de Tsion.
Não era por acaso que eles se reuniam ao redor da mesa da cozinha, a poucos metros de
distância de Hattie, que passava a maior parte do tempo deitada. Geralmente, ela virava-se de
costas para eles fingindo dormir, mas Buck estava convencido de que ela ouvia cada palavra.
Eles tomavam o máximo cuidado para não dizer algo que os incriminasse em relação a
Carpathia. Ninguém fazia ideia do que o futuro reservava para Nicolae e Hattie. Eles choravam
juntos, oravam juntos, riam, cantavam, estudavam e contavam histórias de suas vidas.
Sempre que podia, o Dr. Charles estava presente.
Tsion repassava o plano inteiro da salvação em quase todas as reuniões, aproveitando um fato
que alguém contara ou explicando um texto bíblico. Hattie tinha muitas dúvidas, mas suas
perguntas eram feitas posteriormente a Chloe.
O Comando Tribulação queria que o Dr. Charles se tornasse membro permanente, mas ele
declinou, temeroso de que, se começasse a visitar a casa diariamente, poderia atrair pessoas
estranhas para lá. Ritz passou muitos dias pondo em ordem o abrigo subterrâneo, caso um
deles ou todos necessitassem esconder-se. Eles esperavam que a situação não chegasse a esse
ponto.
O vôo de Dálias para a Nova Babilónia, com várias escalas para pegar os embaixadores
regionais de Carpathia, tinha sido angustiante para Rayford. Ele e Mac estavam preocupados,
imaginando que Fortunato pudesse encarregar Mac de eliminá-lo. Rayford sentia-se vulnerável.
Talvez Fortunato soubesse que ele estava envolvido na fuga de Hattie Durham.
O dispositivo que permitia Rayford ouvir o que se passava no compartimento dos passageiros
foi muito útil para que eles tomassem conhecimento de fatos importantes durante a viagem.
Um dos botões transmissores estava estrategicamente colocado perto da poltrona em que
Carpathia costumava sentar-se. Evidentemente, naquela viagem Leon apropriara-se dela, o
que foi muito proveitoso para Rayford. Leon era um mestre na arte de ludibriar as pessoas,
sendo superado apenas por Nicolae.
Todos os embaixadores subiam a bordo acompanhados de um grande estardalhaço, e Fortunato
imediatamente procurava agradar a cada um deles. Ordenava à tripulação que os servisse,
cochichava ao ouvido deles, bajulava-os, fazia confidências. Todos ouviram a história de
Carpathia ter ressuscitado Fortunato. A reação era de espanto ou de fingimento.
- Imagino que o senhor saiba que é um dos dois potentados regionais favoritos de Sua
Excelência – dizia Fortunato em particular a cada um dos embaixadores.
As respostas eram praticamente as mesmas.
- Eu não sabia ao certo, mas posso dizer que isso não me causa surpresa. Tenho colaborado
muito com o regime de Sua Excelência.
- Sua colaboração tem sido notada - dizia Fortunato. – Ele gostou muito de sua sugestão para
aproveitarmos tudo o que o mar nos oferece. Sua Excelência acredita que isso renderá imensos
lucros ao mundo inteiro. Ele está solicitando que sua região divida o lucro em partes iguais
com a administração da Comunidade Global sob sua responsabilidade. Depois, ele redistribuirá
a parte da CG às regiões menos afortunadas.
Se aquela observação fizesse o embaixador empalidecer, Fortunato mudava o tom da conversa.
- É claro que Sua Excelência faz ideia do ónus que isso representa para o senhor. Mas há um
velho ditado que diz: "A quem muito é dado, muito é solicitado." O potentado acredita que o
senhor tem governado com tal brilhantismo e vigor que pode ser considerado um dos maiores
benfeitores do mundo. Em troca, ele deu-me a liberdade de mostrar-lhe esta lista e estes
planos para seu conforto e incentivo.
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Enquanto desenrolava os papéis - que Rayford supunha serem plantas arquitetonicas e listas
de privilégios adicionais - Fortunato dizia:
- Sua Excelência pediu-me que lhe assegurasse que ele considera isto muito apropriado para
uma pessoa de sua posição e estatura. Embora o que estou lhe mostrando possa parecer uma
ostentação, ele incumbiu-me de transmitir-lhe pessoalmente que o senhor é digno de tais
acomodações. Embora seu novo domicílio, que será construído e equipado dentro de seis
meses, possa elevá-lo a uma posição superior até mesmo à dele, Sua Excelência insiste para
que o senhor não rejeite seus planos.
Tudo o que Fortunato lhes mostrava parecia impressioná-los.
- Bem - diziam alguns - eu nunca reivindiquei isso para mim, mas se Sua Excelência insiste...
Fortunato deixava para o fim sua abordagem mais astuciosa. Pouco antes do término da
conversa com cada embaixador, ele complementava:
- Só mais uma coisa. Sua Excelência pediu-me que tratasse de um assunto delicado com o
senhor que deve permanecer confidencial. Posso contar com sua discrição?
- Claro!
- Obrigado. Ele está compilando dados importantes sobre os trabalhos da Fé Mundial Enigma
Babilónia. Sem ter a intenção de prejudicá-lo, mas também por não querer agir sem conhecer
sua opinião, ele tem uma pergunta a lhe fazer. O que o senhor acha do trabalho que o
Supremo Pontífice Peter Mathews está realizando em benefício próprio... oh, não, esta
linguagem é pejorativa. Vou fazer a pergunta de outra maneira. Mais uma vez, sem ter a
intenção de prejudicá-lo, o senhor concorda com a, digamos, dúvida de Sua Excelência quanto
à independência do pontífice em relação ao restante da administração da Comunidade Global?
Todos os embaixadores manifestaram indignação diante das maquinações de Mathews.
Consideravam-nas uma ameaça. Um deles disse:
- Fazemos a nossa parte. Pagamos os impostos. Somos leais à Sua Excelência. Mathews só
pensa em tomar, tomar, tomar. Nada é suficiente para ele. Eu, pessoalmente, e você pode dizer
isto à Sua Excelência, adoraria que Mathews caísse fora.
- Então permita-me tratar de outro assunto mais delicado ainda. Posso?
- Certamente.
- Se houver necessidade de tomarmos uma medida extrema contra a pessoa do pontífice, Sua
Excelência poderia contar com o senhor?
- Você está dizendo...
- O senhor entendeu.
- Ele pode contar comigo.
Na véspera do dia em que o Condor 216 deixaria os dignitários na Nova Babilónia, Mac recebeu
um recado de Albie. "Sua encomenda está pronta. Pode vir buscá-la."
Rayford passou quase uma hora programando o turno de trabalho entre ele e Mac para que
ambos chegassem ao fim da viagem um pouco mais descansados. Rayford encarregou-se da
última parte da viagem. Mac dormiria durante esse período para ter condições de pilotar o
helicóptero, pegar a encomenda e pagar a Albie. Nesse ínterim, Rayford dormiria em seus
aposentos no abrigo. Ao cair da noite, eles voariam furtivamente de helicóptero até o rio Tigre.
Tudo funcionou mais ou menos conforme o planejado.
David Hassid estava ansioso para contar a Rayford tudo o que se passara em sua ausência.
- Carpathia tem mísseis apontados para o espaço, temendo os meteoros do julgamento.
Rayford recuou, perplexo.
- Ele acredita nas profecias? Acredita que Deus enviará outros julgamentos?
- Ele jamais admitiria isso - disse David - mas parece estar com medo.
Rayford agradeceu a David e disse-lhe que precisava descansar. Enquanto ele saía, Hassid
contou-lhe mais uma novidade que afastaria Rayford de vez da Internet.
- Carpathia está com uma ideia fixa nestes últimos dias - disse David. - Ele descobriu aquele
site da Web que mostra imagens ao vivo do Muro das Lamentações. Ele leva seu laptop a todos
os lugares, e fica observando e ouvindo os dois pregadores diante do muro. Carpathia tem
certeza de que ambos estão se dirigindo a ele, e é claro que estão. Carpathia está furioso. Já o
ouvi gritar duas vezes: "Quero que esses dois morram! E logo!"
- Isso não vai acontecer antes do tempo determinado - disse Rayford.
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- Você não precisa me dizer isso - disse David. - Leio as mensagens de Tsion Ben-Judá sempre
que tenho uma oportunidade.
Rayford enviou mensagens em código a todas as centrais de boletins da Internet, tentando
localizar Amanda. Muita gente não entenderia, mas ele não se atrevia a expor-se mais ainda.
Acreditava que ela estava viva, a menos que houvesse prova em contrário. Rayford tinha
certeza de que, se Amanda tivesse meios de comunicar-se com ele, faria contato. E quanto às
acusações de que ela estava a serviço de Carpathia, havia momentos em que ele gostaria que
fossem verdadeiras. Isso significaria que ela estava viva. Mas se tivesse sido uma traidora...
não, ele se recusava a pensar nessa hipótese. Em sua opinião, ela ainda não fizera contato por
não ter tido condições.
A ansiedade de Rayford para provar que Amanda não estava no fundo do rio Tigre era tanta
que ele quase não conseguiu dormir. Seu sono foi agitado, e ele olhou para o relógio a cada
meia hora. Finalmente, cerca de 20 minutos antes da hora de Mac retornar, Rayford tomou uma
ducha, vestiu-se e conectou a Internet.
A câmera instalada no Muro das Lamentações transmitia imagens e som ao vivo. Os
pregadores, profetizados no livro de Apocalipse, estavam falando. As imagens eram tão nítidas
que Rayford quase podia sentir o odor de fumaça que exalava de seus trajes de aniagem. Suas
feições escuras, pés descalços e mãos ossudas davam-lhes aparência de pessoas com mais de
mil anos de idade. Eles tinham barbas longas e grosseiras, olhos escuros e penetrantes, cabelos
compridos e desgrenhados. Eles se chamavam de Eli e Moisés, e pregavam com poder e
autoridade. E em alto e bom som. A inscrição no vídeo identificava o da esquerda como sendo
Eli, e sua mensagem era legendada em inglês. Ele estava dizendo:
"Escutai, ó homens de Jerusalém! Estais vivendo sem água do céu desde que assinastes o
pacto com o demónio. Se continuardes a blasfemar o nome de Jesus Cristo, o Senhor e
Salvador, vereis vossa terra cada vez mais árida e vossas gargantas cada vez mais secas.
Rejeitar Jesus como o Messias é cuspir no rosto do Deus Todo-Poderoso. De Deus não se
zomba.
"Ai daquele que está sentado no trono desta terra. Se ele tiver o atrevimento de colocar-se no
caminho das testemunhas seladas e ungidas por Deus - as 12.000 testemunhas de cada uma
das 12 tribos que se dirigem para cá com o propósito de preparar-se para a vinda de seu Filho
- certamente sofrerá as consequências de tal ato."
Neste ponto, Moisés assumiu a palavra.
"Sim, qualquer tentativa de impedir a locomoção dos homens selados por Deus fará com que
vossas plantas murchem e morram, que a chuva não caia sobre a terra e que a água - todo o
seu volume - se transforme em sangue! O Senhor dos Exércitos jurou dizendo: 'Como pensei,
assim sucederá, e como determinei, assim se efetuará'."
Rayford sentia vontade de gritar. Ele esperava que Buck e Tsion estivessem vendo aquilo. As
duas testemunhas advertiam Carpathia para manter distância dos 144.000 que estavam a
caminho de Israel. Não era de admirar que Nicolae estivesse espumando de raiva. Com certeza
ele sabia que era aquele que estava sentado no trono da terra.
Rayford ficou agradecido por Mac não ter tentado dissuadi-lo de sua missão. Ele nunca esteve
tão determinado a cumprir uma tarefa. Ele e Mac acomodaram-se no helicóptero para a curta
viagem entre a Nova Babilónia e o rio Tigre. Rayford atou o cinto e apontou na direção de
Bagdá. Quando eles pousaram, o céu estava escuro.
- Você não precisa me acompanhar nesta missão – disse Rayford. - Não ficarei magoado se
você ficar de fora, só vigiando enquanto eu estiver no fundo do rio.
- De jeito nenhum, irmão. Irei com você.
Eles descarregaram os equipamentos de mergulho e desceram um barranco íngreme. Rayford
despiu-se, colocou as roupas impermeáveis e ajeitou o capuz na cabeça. Se aquelas roupas
fossem um pouco menores, não caberiam nele.
- Será que eu peguei a sua? - ele perguntou a Mac.
- Albie disse que as duas são do mesmo tamanho.
- Impressionante!
Depois de estarem completamente equipados com tanques de oxigénio de oito pés cúbicos,
bóias salva-vidas, cintos especiais e nadadeiras, eles fizeram um teste com as máscaras e as
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colocaram no rosto.
- Meu coração diz que ela não está lá no fundo.
- Eu sei - disse Mac.
Eles inspecionaram seus respectivos equipamentos, inflaram as bóias, desceram o banco de
areia e mergulharam nas águas frias do rio.
Rayford precisava adivinhar em que lugar do rio o 747 afundara. Apesar de concordar com os
técnicos da Pan-Con que disseram a Carpathia que a aeronave era muito pesada para ter sido
levada longe demais pela correnteza, ele acreditava que ela devia ter descido alguns metros rio
abaixo antes de afundar de vez. Rayford estava convencido de que a fuselagem tinha
perfurações na parte frontal e traseira, uma vez que nenhuma de suas partes subira à tona.
Se isso tivesse acontecido, a aeronave havia se chocado contra o fundo do rio.
A água estava muito escura. Embora fosse um bom mergulhador, Rayford sentiu uma certa
claustrofobia por não conseguir ver um pouco mais adiante, mesmo tendo uma lanterna
possante presa ao pulso, que parecia iluminar apenas poucos metros adiante dele. Mac foi
desaparecendo aos poucos de sua vista até sumir de vez.
Será que seu equipamento estava em más condições ou ele desistira por algum motivo? Não
fazia sentido. Rayford não queria perder seu parceiro de vista. Talvez estivessem perdendo
tempo demais para encontrar os destroços. Desse jeito, não haveria tempo para examiná-los.
Ao ver nuvens de areia passando por ele, Rayford entendeu o que estava sucedendo. Mac
nadava à sua frente, a uma distância que ele não conseguia enxergá-lo.
Rayford tentava manter-se na posição correia. Quanto mais fundo ele mergulhasse, menor
seria a força da correnteza. Ele retirou um pouco de ar das bóias e afundou mais alguns
metros. Um pouco adiante, ele avistou uma luz piscando sempre no mesmo lugar. Como Mac
podia ter parado?
À medida que a luz foi ficando cada vez mais forte, Rayford deu um impulso maior com as
pernas, tentando alinhar-se com a lanterna de Mac. De repente, sua cabeça chocou-se
violentamente contra o tanque que Mac carregava nas costas. Mac enganchou seu braço no
dele, segurando-o com força. Ao fazer esse movimento, Mac enroscou-se na raiz de uma
árvore, e sua máscara saiu do lugar. Com um braço segurando Rayford e o outro agarrado à
raiz, ele não conseguia movimentar-se.
Rayford agarrou-se à raiz, para que Mac pudesse soltá-lo. Mac recolocou a máscara no lugar.
Com o corpo balançando na correnteza e com as mãos agarradas à raiz, eles não tinham
condições de comunicar-se. Rayford sentia dor no local da cabeça onde ele batera no tanque de
Mac. Seu capuz rasgara-se, e uma parte do couro cabeludo tinha sido arrancada. Mac apontou
a lanterna para a cabeça de Rayford e fez um gesto para que ele se curvasse. Rayford não
sabia o que Mac vira, mas ele fez um sinal para que ambos subissem à superfície. Rayford
balançou a cabeça, e seu ferimento começou a latejar.
Mac desvencilhou-se da raiz, inflou sua bóia e subiu à superfície. Rayford acompanhou-o com
relutância. Naquelas condições, ele não podia fazer nada sem Mac. Rayford emergiu da água a
tempo de ver Mac subindo a barranca do rio. Rayford fez um esforço para alcançá-lo. Depois de
tirarem as máscaras e os tubos de respiração, Mac disse apressado:
- Não estou tentando demovê-lo de sua missão, Rayford. Mas quero dizer-lhe que temos de
trabalhar juntos. Você está vendo a que distância estamos do helicóptero?
Rayford surpreendeu-se ao ver a silhueta indistinta do helicóptero bem longe de onde eles
estavam.
- Se não encontramos a aeronave até agora, é porque provavelmente passamos por ela. As
lanternas não estão ajudando muito. Precisamos de sorte - prosseguiu Mac.
- Precisamos orar - disse Rayford.
- Mas você vai ter de cuidar do ferimento em sua cabeça. Ele está sangrando.
Rayford passou a mão na cabeça e iluminou os dedos com a lanterna.
- Não é nada sério, Mac. Vamos mergulhar novamente.
- Vamos ter de adivinhar. Precisamos nadar perto da margem até estarmos preparados para
fazer a busca no meio do rio. Assim que chegarmos lá, teremos de agir rápido. Se
encontrarmos a aeronave, vamos examiná-la imediatamente. Se não a encontrarmos,
voltaremos para a margem. Você é quem dará as ordens, Ray. Vai me seguir enquanto eu
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estiver nadando perto da margem do rio. Eu o acompanharei quando você me sinalizar que
chegou o momento de nos arriscarmos.
- E como eu vou saber?
- Você é quem vai ficar encarregado de orar.
165
DEZENOVE
O relógio marcava pouco menos de 13 horas em Monte Prospect. Tsion passara a manhã inteira
preparando mais uma longa mensagem aos fiéis e aos que navegavam na Internet. O número
de respostas continuava a subir vertiginosamente.
Ao ouvir Tsion gritar seu nome, Buck subiu a escada correndo e olhou por cima dos ombros do
rabino para ver o indicador do número de respostas recebidas.
- Então - perguntou Buck - o ritmo já começou a diminuir?
- Eu sabia que você ia fazer este comentário, Cameron - disse Tsion sorrindo. - Chegou uma
mensagem às quatro horas da madrugada explicando que o provedor passará a mostrar o
número de respostas recebidas em milhares, e não em unidades como tem feito até agora.
Buck meneou a cabeça e olhou surpreso para o número que se modificava a cada um ou dois
segundos.
- Tsion, isto é fenomenal!
- É um milagre, Cameron. Recebo estas manifestações com humildade e, ao mesmo tempo, fico
com mais desejo de trabalhar. Deus me tem feito sentir amor por todas as pessoas que estão
conosco, principalmente por aquelas que têm dúvidas. Eu as faço lembrar que encontrarão o
plano de salvação em qualquer lugar que clicarem em nossa central de boletins. O único
problema é que, por não termos um site próprio na Internet, há necessidade de
reabastecermos a central semanalmente.
Buck pousou a mão no ombro do rabino.
- Não vai demorar muito para o início das grandes concentrações em Israel. Tenho orado a
Deus suplicando proteção para você.
- Sinto uma coragem tão grande - não baseada em minhas forças, mas nas promessas de
Deus -, que acredito que poderei caminhar sozinho até o Monte do Templo sem ser
molestado.
- Eu não vou permitir que você faça isso, Tsion, mas acho que tem razão.
- Veja isto aqui, Cameron - Tsion clicou sobre o ícone que permitia ver as duas testemunhas
diante do Muro das Lamentações. - Não vejo a hora de voltar a conversar pessoalmente com
eles. Sinto uma grande afinidade com os dois. Passaremos a eternidade ao lado deles, ouvindo
as histórias dos milagres de Deus.
Buck estava fascinado. Os dois usavam o tempo como desejavam, ora pregando, ora
permanecendo afastados da multidão. Todos sabiam que deviam manter distância deles. Os
que tentaram aproximar-se para prejudicá-los caíram mortos ou foram carbonizados pelo fogo
expelido da boca das testemunhas. Apesar disso, Buck e Tsion tinham ficado a uma distância de
poucos metros deles, separados apenas por uma cerca. Naquela ocasião, as testemunhas
falaram por enigmas, mas Deus ajudara Buck a compreender. Agora, Eli estava sentado em um
local escuro de Jerusalém, com as costas apoiadas em um cómodo de pedra abandonado, que
parecia ter sido usado por guardas em épocas passadas. As duas portas de ferro do cómodo
estavam seladas, e havia apenas uma pequena abertura nas grades que servia de janela.
Moisés estava em pé, de frente para a cerca que o separava do povo. Ninguém se aproximava
a menos de dez metros. Com os pés afastados um do outro e os braços caídos ao longo do
corpo, Moisés não se movia. Parecia até que não piscava. Alguém diria que se tratava de uma
estátua de pedra, a não ser quando a brisa agitava levemente seus cabelos.
Eli balançava o corpo de vez em quando. Massageava a testa como se estivesse pensando ou
orando.
Tsion olhou de relance para Buck.
- Você precisa fazer o que eu tenho feito. Quando preciso descansar um pouco, entro neste
site para observar meus irmãos. Gosto muito de vê-los pregar. Eles falam sem medo e sem
rodeios. Não usam o nome do anticristo, mas advertem os inimigos do Messias sobre o que
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está por vir. Eles serão uma grande inspiração para as 144.000 testemunhas que chegarão a
Israel. Estaremos de mãos dadas. Cantaremos. Oraremos. Estudaremos. Receberemos
motivação para pregar com coragem e ousadia o Evangelho de Cristo ao redor do mundo. Os
campos estão brancos para a colheita. Perdemos a oportunidade de nos encontrar com Cristo
quando Ele arrebatou sua Igreja, mas temos o privilégio indescritível de estar vivos durante
este período! Muitos de nós darão a vida por nosso Salvador. Que chamado mais sublime um
homem poderia receber?
- Você devia dizer isto a seus irmãos internautas.
- A bem da verdade, estou lhe contando a conclusão da mensagem de hoje. Você não vai
precisar lê-la.
- Não perco nenhuma.
- Hoje estou advertindo os crentes e não-crentes para que permaneçam afastados de árvores e
gramados até que venha o primeiro Julgamento das Trombetas.
Buck olhou com ar de indagação para Tsion.
- Como saberemos que ele chegou ao fim?
- Será o maior acontecimento depois do terremoto. Precisamos pedir a Ken e Floyd que nos
ajudem a eliminar uma parte do gramado ao redor da casa e podar algumas árvores.
- Você está levando as profecias ao pé da letra? - perguntou Buck.
- Meu querido irmão, quando a Bíblia usa linguagem simbólica, devemos interpretá-la
simbolicamente. Quando ela diz que toda a erva verde e um terço das árvores serão destruídos
pelo fogo, não posso imaginar que essa linguagem seja simbólica. Se as árvores ao redor desta
casa fizerem parte desse um terço, não vou querer ter nenhuma por aqui. Você não concorda
comigo?
- Onde estão as ferramentas de jardinagem de Donny?
As águas do rio Tigre não eram geladas, mas causavam um certo desconforto. Rayford teve de
usar músculos que não eram exercitados havia anos. Sua roupa impermeável era justa demais,
sua cabeça latejava, e ele lutava para não ser levado pela correnteza. Com a pulsação mais
acelerada do que deveria estar em tais condições, ele esforçava-se para
controlar a respiração tentando não consumir todo o oxigénio do tanque.
Rayford discordava de Mac. Se eles não encontrassem o avião naquela noite, Rayford voltaria
quantas vezes fossem necessárias. Não pediria a Mac que o acompanhasse, apesar de saber
que o amigo nunca o abandonaria.
Enquanto nadava atrás de Mac, Rayford orava incessantemente. Mac retirou um pouco de ar de
sua bóia e afundou um pouco mais. Rayford fez o mesmo. Quando um deles afundava mais de
três metros sem ter onde se agarrar perto da margem, corria o risco de ser levado pela
correnteza.
Rayford esforçou-se para acompanhar Mac. "Por favor, meu Deus", ele orou, "ajuda-me a
terminar esta missão. Se Amanda não estiver aqui, que eu possa encontrá-la. Se ela estiver
em perigo, que eu possa salvá-la." Rayford lutava para tirar da mente a possibilidade de
Amanda estar a serviço de Carpathia. Ele não queria acreditar nisso, nem por um segundo
sequer, mas aquele pensamento o atormentava.
Quanto aos corpos afundados no Tigre, quer suas almas estivessem no céu ou no inferno,
seria melhor deixá-los ali mesmo. Se localizasse algum. Essa expectativa de encontrar os
corpos seria um aviso de Deus de que eles estavam perto dos destroços do avião? Rayford -
pensou em tocar de leve na nadadeira de Mac para dar-lhe um sinal, mas conteve-se.
O avião devia ter batido com força suficiente para matar todos os que estavam a bordo. Caso
contrário, os passageiros teriam tido condições de desatar os cintos e sair pelos furos da
fuselagem ou pelas portas e janelas, abertas em razão da queda brusca. Porém, nenhum
corpo subira à superfície.
Rayford imaginava que as asas tivessem sido arrancadas, e talvez a cauda também. Aquelas
aeronaves faziam parte das maravilhas da aerodinâmica, mas não eram indestrutíveis. Ele
temia ver as consequências de tal impacto.
Rayford surpreendeu-se ao ver Mac a pouco menos de cem metros da margem, sem estar
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agarrado a nada. Aparentemente eles haviam afundado mais do que imaginavam porque a
força da correnteza diminuíra. Mac parou e consultou o manómetro. Rayford também verificou o
seu e fez um sinal de positivo com o polegar. Mac apontou para a cabeça de Rayford. Rayford
fez outro sinal com o polegar, embora o ferimento estivesse incomodando um pouco. Dali em
diante ele seguiu à frente de Mac. Ambos estavam agora a quase dois metros de profundidade.
Rayford teve a sensação de que em breve acharia o que procurava. Orou para não encontrar o
que não queria ver.
Naquele local afastado das margens, a areia não se movimentava tanto, e o foco das lanternas
tinha mais poder de alcance. Rayford enxergou alguma coisa e ergueu o braço para que Mac
parasse. Apesar da relativa calma, eles se aproximaram um pouco mais da margem para não
ficar à deriva. Ambos apontaram as lanternas para o local indicado por Rayford. Ali estava a
gigantesca asa direita do 747, completamente intacta. Rayford lutou para não se descontrolar.
Rayford esquadrinhou a área. Um pouco mais adiante, eles avistaram a asa esquerda, também
intacta, com exceção de um imenso rasgo desde os flaps até o local de encaixe no corpo da
aeronave. Rayford imaginou que a próxima parte a ser encontrada seria a cauda. Testemunhas
disseram que o avião caíra de bico no rio. Em razão disso, a parte traseira devia ter sofrido um
impacto de grandes proporções, fazendo com que a cauda se partisse ao meio ou rompesse
por completo.
Mantendo a mesma profundidade, Rayford nadou até um pouco mais adiante do local onde
eles haviam encontrado as asas. Mac segurou com força o tornozelo de Rayford para evitar que
ele se chocasse contra a imensa cauda da aeronave. Ela estava seriamente danificada. A parte
principal devia estar um pouco adiante. Rayford nadou seis metros à frente e endireitou o
corpo, ficando quase na posição vertical. Quando uma de suas nadadeiras tocou o leito do rio,
ele se deu conta do perigo que corria de ficar atolado no lodo.
Chegara a vez de Buck servir alimento a Hattie, que se sentia tão fraca a ponto de quase não
conseguir movimentar-se. O Dr. Charles estava a caminho.
Enquanto lhe servia uma colherada de sopa, Buck dirigiu-se a ela em tom carinhoso:
- Hattie, todos nós amamos você e seu bebé. Só queremos seu bem. Você tem ouvido os
ensinamentos do Dr. Ben-Judá. Conhece tudo o que foi profetizado e o que já aconteceu.
Não há meios de você negar que as profecias da Palavra de Deus têm sido cumpridas desde o
dia dos desaparecimentos até hoje. O que mais é necessário para convencê-la? De que outras
provas você necessita? Por pior que sejam estes tempos, Deus está deixando claro que só
existe um caminho. Ou você fica do lado de Deus ou fica do lado do demónio. Não chegue ao
ponto de permitir que você ou seu bebé sejam mortos num dos próximos julgamentos.
Hattie cerrou os lábios e recusou-se a aceitar a próxima colherada de sopa.
- Não necessito ser convencida de mais nada, Buck – ela disse com voz fraca.
Chloe aproximou-se mancando.
- Devo chamar Tsion? - ela perguntou.
Buck fez um sinal negativo com a cabeça, mantendo o olhar fixo em Hattie. Ele teve de
inclinar-se para ouvir o que ela dizia.
- Eu sei que tudo isso é verdade. Se eu necessitasse de mais alguma coisa para me convencer,
seria a pessoa mais céptica do mundo.
Chloe afastou os cabelos de Hattie e encostou a mão em sua testa.
- Ela está muito quente, Buck.
- Dissolva um comprimido de Tyienol na sopa.
Hattie parecia estar dormindo, mas Buck sentiu uma certa inquietação. Que desastre seria se
eles a perdessem quando ela estava tão perto de aceitar a Cristo.
- Hattie, se você sabe que é verdade, se você acredita, tudo o que tem a fazer é receber a
dádiva de Deus. Reconheça perante Ele que você é pecadora como qualquer outra pessoa e
que necessita de seu perdão. Faça isso, Hattie. Não deixe para depois.
Ela fez um grande esforço para abrir os olhos. Entreabriu os lábios e cerrou-os novamente. Deu
a entender que ia falar, mas não disse nada. Finalmente, ela sussurrou:
- Eu quero fazer isso, Buck. Quero de verdade. Mas você não sabe o que eu fiz.
168
- Não importa, Hattie. Mesmo as pessoas que foram arrebatadas por Cristo também eram
pecadoras e foram salvas pela graça. Ninguém é perfeito. Todos nós já fizemos coisas horríveis.
- Não tanto quanto eu - ela disse.
- Deus quer perdoar você.
Chloe retornou com uma colher onde ela dissolvera um comprimido de Tyienol e misturou-o à
sopa. Buck aguardou, orando em silêncio.
- Hattie - ele disse carinhosamente -, você precisa tomar um pouco mais de sopa.
Misturamos um remédio na sopa.
Lágrimas escorriam pelas faces de Hattie, e ela fechou os olhos.
- Eu quero morrer.
- Não! - disse Chloe. - Você prometeu ser madrinha de meu bebé.
- Ele não vai querer ter uma madrinha como eu – disse Hattie.
- Você não vai morrer. É minha amiga e eu gosto de você como irmã.
- Sou velha demais para ser sua irmã - disse Hattie.
- Agora é tarde demais. Você não pode voltar atrás.
Buck conseguiu que ela tomasse um pouco mais de sopa.
- Você quer aceitar Jesus, não é verdade? - ele cochichou perto do ouvido dela.
Depois de uma longa pausa, ela respondeu:
- Quero, mas Ele talvez não me queira.
- Ele quer - disse Chloe. - Por favor, Hattie. Você sabe que estamos falando a verdade. O
mesmo Deus que cumpre profecias de séculos atrás ama e aceita você. Não diga não a
Ele.
- Não estou dizendo não a Ele. É Ele que está dizendo não a mim.
Chloe segurou Hattie pelo pulso. Buck lançou-lhe um olhar de surpresa.
- Ajude-me a sentá-la na cama, Buck.
- Chloe! Ela não pode.
- Ela precisa raciocinar e ouvir, Buck. Não podemos desistir dela.
Buck segurou o outro pulso de Hattie, e os dois fizeram-na sentar-se. Ela apertou as têmporas
com as pontas dos dedos e começou a gemer.
- Preste atenção - disse Chloe. - A Bíblia diz que Deus não deseja que ninguém pereça. Será
que você é a única pessoa na terra que fez algo tão terrível que nem mesmo o Deus do
universo é capaz de perdoá-la? Se Deus perdoasse apenas pecados insignificantes, não existiria
esperança para nenhum de nós. Não importa o que você tenha feito, Deus é como o pai do
filho pródigo, que esquadrinha o horizonte aguardando sua volta. Ele está com os braços
abertos, aguardando você.
Hattie balançou o corpo e meneou a cabeça.
- Fiz coisas horríveis - ela disse.
Buck olhou para Chloe, sem saber o que fazer.
Rayford apontou para uma parte projetada da cauda e subiu um pouco em direção à
superfície. Mac o acompanhou.
Rayford segurou firme na beira de uma janela para não ser levado pela correnteza. Direcionou
o foco da lanterna para dentro do compartimento de passageiros, e seus temores foram
confirmados. Na parte traseira da aeronave não havia nada a não ser piso, paredes e teto.
Tudo havia sido arremessado para a frente.
Ele e Mac usaram as janelas como pontos de apoio para se arrastar por quase 15 metros até a
pilha de escombros. Os lavatórios traseiros, compartimentos de bagagem, paredes divisórias e
latas de lixo estavam no topo da pilha.
A cena era pior do que Rayford podia imaginar. Ele se viu diante de uma gigantesca fuselagem,
com o bico e um quarto do comprimento enterrados no leito do rio Tigre em ângulo de 45
graus. Rayford pensava com horror naquilo que ele e Mac estavam prestes a presenciar. Tudo
naquela aeronave -desde compartimentos de bagagem, poltronas, apoios para cabeça,
bandejas para refeições, telefones e até passageiros -devia estar amontoado na parte da
frente. Um impacto tão violento a ponto de arrancar o trem de pouso de uma aeronave teria
quebrado imediatamente o pescoço de todos os passageiros. As poltronas deviam estar
169
rasgadas e espremidas num canto, e os passageiros empilhados como lenha. Tudo devia ter-se
soltado do lugar e voado para a frente.
Rayford gostaria pelo menos de saber em qual poltrona Amanda se sentara. Assim, ele
pouparia tempo de procurá-la no meio de todos aqueles destroços. Por onde começar? Ele
Hattie abaixou a cabeça. Buck achou que eles a estavam pressionando demais. Mesmo assim,
ele imaginava que teria dificuldade em perdoar a si mesmo, caso não conseguisse dar a Hattie
todas as oportunidades se algo acontecesse com ela.
- Será que eu preciso contar a Ele tudo o que fiz? – disse Hattie com um suspiro.
- Ele já sabe - respondeu Chloe. - Se você se sentir melhor em contar tudo a Ele, faça isso.
- Não quero contar em voz alta - disse Hattie. - Não foram apenas casos amorosos com muitos
homens. Foram coisas piores até mesmo que desejar abortar!
- Mas você não abortou - disse Chloe.
- Nada é tão horrível que não possa ser perdoado por Deus - disse Buck. - Acredite em mim.
Hattie balançou a cabeça. Buck sentiu um alívio ao ouvir o carro do médico chegando. O Dr.
Charles Floyd examinou Hattie rapidamente e ajudou-a a deitar-se. Indagou que medicamento
ela havia tomado, e eles informaram que lhe deram Tylenol.
- Ela necessita de uma dosagem maior - ele disse. – A temperatura está mais alta do que
vocês informaram algumas horas atrás. Em breve ela estará delirando. Preciso descobrir
qual é a causa da febre.
- O estado dela é grave?
- Eu diria que sim.
Hattie gemia, tentando falar. O Dr. Charles fez um gesto para que Buck e Chloe se afastassem.
- Vocês dois e Tsion precisam orar por ela - disse o médico.
Rayford perguntava a si mesmo se seria prudente nadar no meio de centenas de cadáveres,
principalmente tendo uma ferida aberta na cabeça. Bem, se alguma coisa tivesse de
contaminá-lo, ele já estava contaminado. Ele trabalhou febrilmente com Mac para começar a
remover os escombros. Abriram um buraco a pontapés num espaço entre duas janelas, por
meio do qual conseguiram retirar, com grande esforço, as peças soltas no interior da
aeronave.
Quando eles alcançaram um painel extremamente pesado, Rayford passou a mão por baixo
dele e puxou-o. Imediatamente ele descobriu o que o deixava tão pesado. Era o encosto da
poltrona da comissária de bordo. Ela ainda estava com o cinto atado, mãos fechadas, olhos
abertos. Seus cabelos longos flutuavam na água. Rayford e Mac afastaram o painel. Rayford
notou que a luz da lanterna de Mac estava diminuindo de intensidade.
Aquele painel havia protegido os corpos de serem devorados pelos peixes. Rayford teve a
sensação de estar violando cadáveres. Iluminou com a lanterna as poltronas amontoadas.
Todas estavam ocupadas e os passageiros não tiveram tempo de desatar os cintos. Ninguém
teria sofrido muito tempo para morrer.
Mac deu uma pancada em sua lanterna, e a luz voltou ao normal. Ele direcionou-a para os
cadáveres, tocou o ombro de Rayford e balançou a cabeça como se quisesse dizer que não
deviam prosseguir. Rayford não podia culpá-lo, mas não queria desistir. Não havia mais dúvida
de que a busca o tranquilizaria em relação a Amanda. Teria de ir até o fim nessa tarefa
medonha para ter paz de espírito.
Rayford apontou a lanterna para Mac e depois para a superfície. Em seguida, dirigiu-a para os
cadáveres e deu uma batida no peito como se estivesse dizendo: "Pode ir, eu fico."
Mac balançou a cabeça lentamente dando a impressão de estar aborrecido. Mas não saiu dali.
Eles começaram a levantar os cadáveres amarrados às poltronas pelos cintos de segurança.
Buck ajudou Chloe a subir a escada e eles reuniram-se com Tsion para orar por Hattie. Quando
terminaram, Tsion mostrou-lhes que Carpathia estava competindo com ele em matéria de
mensagens enviadas por meio de computador.
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- Ele deve estar enciumado por causa do número de respostas - disse Tsion com tristeza. -
Vejam isto.
Carpathia estava se comunicando com o povo por meio de uma série de mensagens curtas.
Todas elas teciam elogios ao pessoal encarregado da reconstrução. Incentivavam o povo a
mostrar devoção à Fé Mundial Enigma Babilónia. Algumas reiteravam o compromisso assumido
pela Comunidade Global de proteger o rabino Ben-Judá dos zelotes, caso ele resolvesse voltar
para sua terra natal.
- Vejam a resposta que dei - disse Ben-Judá.
Buck leu o que estava escrito na tela:
"Potentado Carpathia: Agradeço e aceito sua oferta de proteção, e congratulo-me com o senhor
porque esse gesto o torna instrumento do único Deus vivo e verdadeiro. Ele prometeu selar e
proteger seus escolhidos durante este período em que nos incumbiu de pregar seu Evangelho
ao mundo. Estamos agradecidos porque, aparentemente, Ele o escolheu como nosso protetor e
gostaríamos de saber como o senhor se sente a esse respeito. No nome de Jesus Cristo, o
Messias e nosso Senhor e Salvador.
Rabino Tsion Ben-Judá, no exílio."
- Não demoraremos muito para partir, Tsion – exclamou Buck.
- Espero poder acompanhá-los - disse Chloe.
- Acho que eu não tenho escolha - completou Buck.
- Estou pensando em Hattie - ela completou. - Não posso abandoná-la enquanto ela não sarar.
Os três desceram a escada. Hattie estava dormindo, mas respirava com dificuldade. Seu rosto
estava vermelho e a testa úmida. Chloe enxugou-a com uma toalha. Em pé diante da porta dos
fundos o Dr. Charles olhava através da tela de proteção.
- Você poderia dormir aqui esta noite? - perguntou Buck.
- Eu gostaria muito. Na verdade, eu gostaria de levar Hattie para que ela pudesse receber
tratamento adequado.
Mas ela seria reconhecida, e não teríamos condições de ir muito longe. Depois daquela história
em Minneapolis passei a ser olhado com desconfiança. Estou sendo cada vez mais vigiado.
- Se você achar que deve ir, então vá.
- Dê uma olhada no céu - disse o médico.
Buck aproximou-se da porta. O sol ainda estava alto, mas havia formação de nuvens escuras
no horizonte.
- Ótimo - disse Buck. - O que a chuva fará com as vias esburacadas que chamamos de ruas?
- Acho melhor dar mais uma espiada em Hattie antes de ir embora.
- Como você conseguiu fazê-la dormir?
- A febre a derrubou de vez. Dei-lhe uma dose de Tylenol suficiente para baixar a temperatura,
mas há perigo de desidratação.
Buck não disse nada. Estava perscrutando o céu.
- Buck?
Ele virou-se.
- Ah, sim.
- Ela estava gemendo e balbuciando algo sobre sentir-se culpada.
- Eu sei.
- Sabe?
- Nós insistimos para que Hattie recebesse Cristo em seu coração, e ela disse que não era
digna. Contou que fez algumas coisas erradas e acha que Deus não a ama mais.
- Ela lhe disse que coisas eram essas?
-Não.
- Então eu também não devo dizer.
- Se for alguma coisa que você ache que devemos saber, diga.
- É uma maluquice.
- Não há nada mais que me cause surpresa.
- Ela está carregando uma tremenda culpa em relação a Amanda e Bruce Barnes. Amanda é
mulher do pai de Chloe?
- Sim, e eu já lhe contei a história de Bruce. O que houve com eles?
171
- Ela contou chorando que ia viajar com Amanda de Boston para Bagdá. Quando Hattie disse a
Amanda que mudara de plano e voaria para Denver, Amanda insistiu em acompanhá-la. Hattie
me contou o seguinte: "Amanda sabia que eu não tinha nenhum parente em Denver. Ela achou
que sabia o que eu ia fazer lá. E estava certa." Depois ela me contou que Amanda cancelou
sua reserva para Bagdá e estava a caminho do balcão a fim de comprar uma passagem para
Denver no mesmo vôo de Hattie. Hattie suplicou-lhe que não fizesse isso. O único jeito de
impedi-la foi Hattie jurar que não iria se Amanda tentasse acompanhá-la. Ela fez Hattie
prometer que não tomaria nenhuma atitude estúpida em Denver. Hattie sabia que essa atitude
estúpida seria fazer um aborto. Prometeu a Amanda que não faria o aborto.
- E por que ela está se sentindo tão mal?
- Ela contou que, quando Amanda voltou para pegar o vôo programado anteriormente para
Bagdá, não havia mais lugar.
Ela disse a Hattie que não queria permanecer em lista de espera e que se sentiria mais feliz se
a acompanhasse no vôo até o oeste. Hattie não permitiu, e acredita que Amanda conseguiu
um lugar no vôo para Bagdá. Ela não pára de dizer que devia e queria ter ido com Amanda. Eu
lhe disse que ela não devia dizer coisas desse tipo, e ela retrucou: "Então por que não permiti
que Amanda me acompanhasse? Ela ainda estaria viva."
- Você ainda não conhece meu sogro nem Amanda, Floyd, mas Rayford não acredita que
Amanda tenha viajado naquele avião. Não sabemos se ela viajou.
- Mas se ela não viajou naquele avião e não acompanhou Hattie, onde estaria? Centenas de
milhares de pessoas morreram no terremoto. Vocês não acham que já teriam recebido notícias
se ela tivesse sobrevivido?
Buck olhou para o céu e viu nuvens se aproximando.
- Não sei - ele disse. - É provável que ela não tenha morrido, só esteja ferida. Talvez ela não
tenha condições de fazer contato, como foi o caso de Chloe.
- Talvez. Buck, tenho mais dois assuntos para tratar com você.
- Diga.
- Hattie disse que sabia algo mais sobre Amanda.
Buck gelou. Seria possível?
- O que mais ela poderia saber? - ele perguntou, tentando controlar-se.
- Um segredo que ela ouviu, mas que não pode revelar.
Buck receava saber do que se tratava.
- Você disse que havia mais um assunto.
Agora, quem demonstrava nervosismo era o médico.
- Eu gostaria que tudo isso fosse um delírio - ele disse.
- Vamos, diga.
- Tirei uma amostra do sangue dela. Vou verificar se houve envenenamento. Meus colegas de
Denver podem tê-la envenenado antes de o plano deles ser posto em prática. Perguntei o que
ela havia comido lá, e ela percebeu que eu estava suspeitando de alguma coisa. Começou a
tremer e parecia muito assustada. Ajudei-a a deitar-se. Ela agarrou minha camisa, puxou-me
para perto e disse: "Se Nicolae me envenenou, serei sua segunda vítima." Perguntei o que
aquilo significava. Ela respondeu: "Bruce Barnes. Nicolae o envenenou quando ele estava em
viagem ao exterior. Barnes conseguiu voltar para os Estados Unidos e foi hospitalizado.
Todos pensam que ele morreu no bombardeio, e talvez tenha sido verdade. Mas teria morrido
de qualquer forma, mesmo que o hospital não tivesse sido bombardeado. Eu sabia de tudo
isso. Não contei a ninguém." Buck estava abalado.
- Eu gostaria muito que você tivesse conhecido Bruce – ele murmurou.
- Teria sido uma honra para mim. Temos condições de saber qual foi a causa da morte, você
sabe. Ainda não é tarde demais para uma autópsia.
- Isso não o traria de volta - disse Buck. - Mas o fato de saber disso me dá um motivo...
- Um motivo?
- Talvez uma desculpa. Para matar Nicolae Carpathia.
172
VINTE
Embora a água proporcione praticamente a mesma ausência de peso do espaço cósmico, o
esforço de puxar e arrastar escombros e deslocar fileiras de poltronas com corpos presos a elas
foi penoso demais. A luz da lanterna de Rayford estava diminuindo de intensidade e o
suprimento de ar reduzira sensivelmente. O ferimento em sua cabeça latejava, e ele se sentia
zonzo. Talvez Mac estivesse sentindo o mesmo, mas nenhum deles fez um gesto indicativo de
desistência.
Rayford sabia de antemão que sentiria um grande mal-estar no momento de revolver os
cadáveres, mas a sensação que tomou conta dele foi horrível. Que tarefa difícil! As vítimas
estavam boiando, completamente desfiguradas, com as mãos fechadas, braços flutuando,
bocas escancaradas, rostos apresentando tonalidade preta, vermelha ou roxa. Os cabelos
movimentavam-se tocados pela correnteza.
Rayford sentia dificuldade para respirar. Mac deu um leve toque nele, apontou para seu
manómetro e fez um sinal de dez com os dedos. Rayford tentou trabalhar mais rápido,
porém até aquele instante havia verificado só 60 ou 70 corpos, e não poderia terminar a tarefa
sem outro tanque de oxigénio. A partir de agora, teria apenas cinco minutos pela frente.
Bem abaixo dele estava uma fileira das poltronas do meio, todas intactas e de frente para o
bico da aeronave, como as demais, porém viradas um pouco de lado. Com sua lanterna fraca,
Rayford só conseguiu enxergar a parte posterior de cinco cabeças e dez calcanhares. Sete
sapatos haviam-se soltado dos pés. Ele nunca entendera por que os pés humanos se contraem
diante de uma violenta colisão. Calculou que essa fileira tinha sido arremessada sete metros
para a parte da frente da aeronave. Ele fez um gesto para que Mac segurasse um dos braços
da fileira de poltronas enquanto segurava o outro. Mac levantou um dedo, indicando que
faltava um minuto para eles subirem à superfície. Rayford assentiu.
Enquanto eles tentavam endireitar a fileira de poltronas, ela ficou presa em alguma coisa e eles
tiveram de recolocá-la no lugar e puxá-la novamente. Depois que ambos conseguiram levantála,
ela finalmente tombou para trás. Os cinco corpos estavam agora deitados de costas. Rayford
iluminou fracamente com a lanterna o rosto em pânico de um senhor idoso trajando terno e
colete. As mãos inchadas do homem flutuaram diante do rosto de Rayford. Rayford as afastou
com delicadeza e dirigiu o foco de luz para o passageiro ao lado. Era uma mulher de cabelos
grisalhos, olhos abertos e sem expressão. O pescoço e o rosto estavam sem cor e inchados,
mas os braços não se haviam levantado como os dos outros passageiros. Ela provavelmente
agarrara a sacola de seu laptop e enroscara sua tira na dobra do braço. Morreu com os dedos
entrelaçados e com as mãos presas entre os joelhos, tendo ao lado a sacola do computador.
Rayford reconheceu os brincos, o colar e o casaco. Ele queria morrer. Não conseguia desviar os
olhos dela. As íris haviam perdido a cor. Era uma imagem que Rayford jamais conseguiria
esquecer. Mac nadou apressado até ele, segurou-o pelos bíceps e puxou-o levemente. Confuso,
ele virou-se para Mac.
Mac deu um leve tapa no tanque de oxigénio de Rayford, que estava à deriva por ter perdido o
sentido do que estava fazendo. Ele não queria sair do lugar. De repente, sentiu as batidas
fortes de seu coração indicando que o oxigénio estava terminando. Ele não queria que Mac
soubesse disso. Foi tentado a sugar água suficiente para encher os pulmões e fazer companhia
à sua amada.
Mas Rayford sabia que seu amigo não permitiria que isso acontecesse. Mac não usara tão
rapidamente todo o seu suprimento de ar. Ele abriu os dedos de Amanda e passou a tira da
sacola sobre a cabeça, deixando o laptop suspenso atrás do tanque de oxigénio.
Rayford sentiu a presença de Mac, segurando-o pelas axilas. Rayford queria livrar-se dele, mas
ele foi mais esperto. Quando Rayford apresentou o primeiro sinal de resistência, Mac soltou as
duas mãos e prendeu os braços de Rayford impedindo-o de movimentar-se. Mac deu um
173
impulso com força e arrastou Rayford para longe da carcaça do 747, fazendo uma subida
controlada.
Rayford perdera a razão de viver. Quando eles chegaram à superfície, ele arrancou a máscara,
e soluços fortes brotaram de seu peito. Ele deu um grito tão alto que atravessou a escuridão
da noite e refletiu na solidão da agonia de sua alma. Mac conversava com ele, mas Rayford
não lhe dava atenção. Mac puxou-o com força, nadando e arrastando-o em direção à margem.
Apesar de ter respirado um pouco de ar fresco, Rayford parecia estar entorpecido, sem saber
se teria forças para nadar. Mas ele não queria fazer nenhum esforço. Sentia pena de Mac, que
se esforçava tanto para puxar um homem grande como ele pela escarpa enlameada do rio até
a areia.
Rayford continuava gritando, e o som de seu desespero chegou a assustá-lo. Mas ele não
conseguia parar. Mac arrancou a própria máscara, desamarrou os tanques de oxigénio de
Rayford e os soltou. Rayford rolou sobre a areia e deitou-se de costas, imóvel.
Mac retirou o capuz de Rayford e viu que havia sangue dentro de sua roupa. Os gritos de
Rayford transformaram-se em lamentos. Mac ficou agachado e respirou profundamente.
Rayford o observava, esperando que ele relaxasse e se afastasse dali, achando que era o fim.
Mas não era o fim. Rayford acreditara sinceramente que Amanda estava viva e que se reuniria
a ela. Ele atravessara períodos muito difíceis nos últimos dois anos, porém sempre recebera
uma dose de misericórdia suficiente para mantê-lo equilibrado. Agora não. Seria melhor pedir
que Deus o levasse? Ele não teria condições de enfrentar mais cinco anos sem Amanda.
Mac ficou em pé e começou a abrir o zíper de sua roupa de mergulho. Rayford levantou
lentamente os joelhos e afundou os calcanhares na areia. Fez isso com tanta força que sentiu
uma distensão nos tendões, enquanto seu corpo escorregava para dentro do rio. Como se a
ação estivesse rodando em câmera lenta, Rayford sentiu o ar fresco batendo no rosto
enquanto sua cabeça afundava na água. Ele ouviu Mac praguejar e gritar:
- Oh, não faça isso!
Mac teria de livrar-se de seus tanques antes de pular no rio. Rayford só esperava conseguir
esquivar-se de Mac no escuro ou que o amigo caísse em cima dele, deixando-o inconsciente.
Seu corpo afundou verticalmente na água, depois se virou e começou a subir. Ele não
movimentou um dedo sequer, na esperança de que o rio Tigre o envolvesse para sempre. Mas,
sem entender o motivo, ele não conseguia engolir a água que o mataria.
Rayford ouviu o baque de Mac na água e suas mãos esbarraram nele, agarrando seus pés.
Rayford não tinha forças para resistir. Do fundo do coração veio-lhe uma sensação de pena de
Mac, que não merecia isso. Não era justo causar-lhe tanto esforço. Lentamente, Rayford
começou a nadar em direção à barranca do rio, demonstrando a Mac que decidira cooperar
com ele. Assim que chegou à areia, ele caiu de joelhos e encostou o rosto no chão.
- Não sei o que lhe dizer neste momento, Ray. Mas preste atenção. Se você quiser morrer neste
rio hoje, vai ter de me levar junto. Entendeu?
Rayford assentiu, sentindo-se desprezível.
Sem dizer mais nada, Mac puxou Rayford para perto de si e examinou seu ferimento na
escuridão. Retirou as nadadeiras de Rayford, colocou-as ao lado da máscara em cima dos
tanques de oxigénio e entregou tudo nas mãos do amigo. Depois, pegou seu equipamento e
dirigiu-se para o helicóptero. Guardou suas coisas, ajudou Rayford a tirar a roupa de mergulho
como se fosse um menino preparando-se para dormir, e atirou-lhe uma toalha. Ambos
vestiram roupas secas.
O ferimento de Rayford começou a doer como se tivesse sido atingido por pedradas. Ele cobriu
a cabeça e curvou o corpo, mas sentiu dores agudas nos braços, pescoço e costas. Será que
havia se esforçado demais? Teria sido um tolo por ter continuado o mergulho com uma ferida
exposta? Quando ele levantou a cabeça, Mac estava preparando-se para subir no helicóptero.
- Entre, Ray! Está caindo chuva de granizo!
Buck sempre gostou de tempestades. Pelo menos até antes de conhecer a ira do Cordeiro.
Quando menino, ele sentava-se diante da janela panorâmica de sua casa em Tucson e
observava o violento temporal. No entanto, os fenómenos atmosféricos após o Arrebatamento
174
tinham o poder de deixá-lo assustado.
O Dr. Charles deixou instruções sobre o tratamento de Hattie e partiu para Kenosha. Quando a
tarde começou a escurecer por causa da aproximação da chuva, Chloe pegou cobertores extras
para Hattie, que dormia o tempo todo, enquanto Tsion e Buck fechavam as janelas.
- Vou correr um risco calculado - disse Tsion. Vou ligar meu computador nas baterias até que a
tempestade termine, mas continuarei conectado às linhas telefónicas.
- Pela primeira vez vou poder corrigir um intelectual brilhante - disse Buck rindo. - Você
esqueceu que estamos recebendo eletricidade de um gerador movido a gás, que dificilmente
será afetado pela tempestade. Sua linha telefónica está ligada à antena parabólica no telhado,
o ponto mais alto daqui. Se você estiver preocupado com relâmpagos, é melhor desligar o
telefone e ligar a fonte de energia.
- Jamais serei confundido com um eletricista - disse Tsion, balançando a cabeça. - A verdade é
que não tenho necessidade de conectar a Internet nas próximas horas. -
Depois de dizer isso, ele subiu a escada.
Buck e Chloe sentaram-se lado a lado aos pés da cama de Hattie.
- Ela está dormindo demais - disse Chloe. - E está muito pálida.
Buck refletia sobre os terríveis segredos que atormentavam Hattie. O que Rayford pensaria
sobre a possibilidade de Bruce ter sido envenenado? Rayford sempre achou estranha a
expressão serena de Bruce em comparação com a de outras vítimas do bombardeio. Os
médicos não chegaram a nenhuma conclusão sobre a enfermidade que ele contraíra no
Terceiro Mundo. Quem poderia pensar que Carpathia estava por trás disso?
Buck também se preocupava por ter matado o policial da Comunidade Global. A fita de vídeo
havia sido mostrada repetidas vezes em todos os canais de TV. Buck não suportou ver a cena
novamente, apesar de Chloe ter insistido que, de acordo com as imagens reproduzidas na fita,
ele não teve alternativa.
- Outras pessoas teriam morrido, Buck - ela disse. - E uma delas teria sido você.
Era verdade. Ele não podia chegar a outra conclusão. Por que, então, não se sentia satisfeito
por ter feito aquilo? Ele não nascera para ser um guerreiro. E, mesmo assim, estava na linha
de frente.
Buck segurou a mão de Chloe e puxou-a para perto de si. Ela encostou o rosto em seu peito, e
ele acariciou seu rosto machucado. O olho, ainda fechado pelo inchaço e com manchas roxas
ao redor, parecia estar melhorando.
- Eu a amo de todo o coração - ele disse, dando-lhe um leve beijo na testa.
Buck olhou de relance para Hattie. Fazia uma hora que ela não se mexia na cama.
A chuva de granizo começou a cair.
Buck e Chloe levantaram-se e observaram da janela as pequeninas pedras de gelo caindo com
força no jardim. Tsion desceu a escada correndo.
- Oh, meu Deus! Vejam isto!
O céu ficou negro e os granizos eram cada vez maiores, quase do tamanho de uma bola de
golfe. Batiam no telhado com força, provocando goteiras na casa, e ressoavam ao cair em cima
do Range Rover. A energia eletrica foi interrompida. Tsion tentou protestar, mas Buck o
tranquilizou.
- Os granizos bateram no fio e interromperam a energia, só isso. Um problema fácil de ser
consertado.
Enquanto eles observavam a tempestade, o céu iluminou-se. Mas não por causa de
relâmpagos. Os granizos, pelo menos metade deles, estavam em chamas!
- Oh, meus queridos! - disse Tsion. - Vocês sabem o que é isso, não? Vamos arrastar a cama
de Hattie para longe da janela! O anjo do primeiro Julgamento das Trombetas está atirando
saraiva e fogo à terra.
Rayford e Mac deixaram seus equipamentos de mergulho no chão, perto do helicóptero.
Protegido dentro da cabina, Rayford tinha a sensação de estar dentro de uma panela de
pipoca. Os granizos, cada vez maiores, batiam com força nos tanques de oxigénio e chegaram a
perfurar o helicóptero. Mac ligou o motor e acionou as hélices, sem saber para onde ir. Ele não
queria deixar os equipamentos de mergulho ali, e helicópteros não combinavam com chuvas de
175
granizo.
- Você não vai querer ouvir o que eu tenho a lhe dizer, Ray - ele gritou para abafar o barulho
da tempestade -, mas precisa deixar aqueles destroços e o corpo de sua mulher no lugar em
que estão. Eu também não gosto disso e entendo menos que você, mas creio que Deus vai
ajudá-lo a atravessar esta provação. Não balance a cabeça. Sei que ela era tudo para você.
Mas Deus o deixou aqui com um propósito. Eu preciso de você. Sua filha e seu genro precisam
de você. O rabino, de quem você tanto tem falado, também precisa de você. Só lhe peço uma
coisa. Não tome nenhuma decisão enquanto estiver dominado por emoções. Atravessaremos
isto juntos.
Rayford sentia-se desgostoso consigo mesmo, mas tudo o que Màc - o crente recém-convertido
- dizia soava-lhe como banalidades. Quer fossem verdadeiras ou não, ele não estava disposto a
ouvir.
- Seja sincero comigo, Mac. Você verificou a testa dela para ver se havia o selo?
Mac fez um trejeito com a boca e não respondeu.
- Você verificou, não? - pressionou Rayford.
- Sim.
- E não havia nada, havia?
- Não, não havia.
- O que devo deduzir disto?
- Como eu posso saber, Ray? Eu não era crente antes do terremoto. Também não sei se
naquela ocasião você já tinha o selo na testa.
- Provavelmente já!
- Talvez, mas você se lembra quando foi que o Dr. Ben- Judá explicou que os crentes estavam
começando a ver o selo na testa de seus irmãos? Foi depois do terremoto. Se eles tivessem
morrido no terremoto, não teriam recebido o selo. E mesmo que tivessem recebido, como
podemos saber se ele permanece na testa depois que a pessoa morre?
- Se Amanda não era crente, provavelmente estava trabalhando para Carpathia - disse Rayford.
- Mac, não sei como vou suportar isso.
- Pense em David - disse Mac. - Ele está à espera de nossa liderança e orientação, e sou tão
novato nisso quanto ele.
Quando, além de granizos, começaram a cair línguas de fogo do céu, Rayford apenas observou.
- Caramba! - Mac repetiu várias vezes. - Parece uma explosão de fogos de artifício!
Enormes granizos batiam com força no rio e eram levados pela correnteza. Acumulavam-se na
barranca e a areia ficou branca como a neve. Neve no deserto. Flechas incandescentes desciam
zunindo do céu e chiavam ao bater na água. O som era o mesmo quando elas caíam sobre os
granizos na margem do rio, e o fogo não se apagava imediatamente.
Os faróis do helicóptero iluminaram uma área a seis metros adiante. Mac desatou o cinto de
segurança e inclinou-se para a frente.
- O que é isto, Ray? Está chovendo, mas está tudo vermelho! Olhe lá! Por cima da neve!
- É sangue - disse Rayford, com uma sensação de paz inundando sua alma. Ela não amenizou
seu sofrimento nem levou embora suas terríveis suspeitas sobre Amanda. Mas esta
demonstração, esta chuva de fogo, sangue e gelo, o fizeram lembrar-se novamente de que
Deus é fiel. Ele cumpre suas promessas. Apesar de saber que os nossos caminhos não são os
caminhos de Deus e que não podemos entender seus planos enquanto vivermos aqui na
terra, mais uma vez Rayford teve certeza de que estava lutando ao lado do exército que já
vencera esta guerra.
Tsion correu até os fundos da casa e viu as chamas derretendo os granizos e incendiando o
gramado. As chamas arderam por alguns momentos e, em seguida, foram apagadas por outra
precipitação de granizos. O quintal inteiro estava escuro. Bolas de fogo caíam sobre as árvores
que circundavam o quintal. Elas explodiam em chamas e seus galhos lançavam uma
gigantesca fumaça alaranjada no ar, e esfriavam-se rapidamente.
- Aí vem o sangue - disse Tsion.
De repente, Hattie sentou-se na cama, olhou através da janela enquanto uma chuva de
sangue caía do céu. Ajoelhou-se com esforço na cama para poder ver mais adiante. O jardim
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chamuscado estava molhado com uma mistura de gelo derretido e sangue.
Relâmpagos riscavam o céu e trovões ribombavam. Granizos um pouco maiores que bola de
beisebol batiam com força no telhado, rolavam e caíam no jardim. Tsion gritou:
- Louvado seja o Senhor Deus Todo-Poderoso, criador do céu e da terra! O que vocês estão
vendo é a representação do que está escrito em Isaías 1.18: "Ainda que vossos pecados são
como a escarlate, eles se tornarão brancos como a neve; ainda que são vermelhos como o
carmesim, se tornarão como a lã."
- Você está vendo isto, Hattie? - perguntou Chloe.
Hattie virou-se e Buck viu lágrimas em seus olhos. Ela fez um movimento afirmativo com a
cabeça, mas parecia atordoada. Buck ajudou-a a deitar-se novamente, e ela voltou a dormir.
Quando as nuvens começaram a dissipar-se e o sol voltou a brilhar, os resultados tornaram-se
óbvios. As cascas das árvores estavam negras e a folhagem queimada. Quando o gelo
derreteu e o sangue infiltrou-se no solo, a grama chamuscada ficou visível.
- A Bíblia diz que um terço das árvores e toda erva verde do mundo seriam queimados -
disse Tsion. - Espero que a energia seja logo restabelecida para ver como os porta-vozes de
Carpathia explicarão o que aconteceu.
Buck sentiu a mão de Deus empurrando-o para fazer alguma coisa. Ele queria que Hattie fosse
curada para que ela lhe contasse a verdade. O fato de Bruce Barnes ter sido envenenado por
Carpathia ou perdido a vida no primeiro bombardeio da Terceira Guerra Mundial não fazia
muita diferença diante daqueles acontecimentos. Mas se Hattie Durham tivesse alguma
informação sobre Amanda que confirmasse ou negasse o que Tsion encontrara nos arquivos de
Bruce, Buck estava disposto a ouvir.
Mac deixou o helicóptero ligado, mas Rayford estava sentindo muito frio. Como naquela parte
do mundo não havia nenhuma vegetação para ser queimada, o fogo e o sangue haviam sido
superados pelos granizos. O resultado foi a noite mais fria da história no deserto do Iraque.
- Fique aqui - disse Mac. - Vou buscar os equipamentos.
Rayford estendeu o braço para abrir a porta.
- Eu estou bem. Vou fazer a minha parte.
- Não! Não mesmo! Deixe-me fazer isso.
Rayford não queria admitir, mas sentiu-se agradecido por não precisar sair do helicóptero. Mac
começou a caminhar sobre o gelo derretido. Guardou o equipamento de mergulho atrás das
poltronas. Quando subiu a bordo novamente, estava carregando o laptop encharcado de
Amanda.
- Qual é a sua, Mac? Estas coisas não são à prova d'água.
- É verdade - disse Mac. - A tela está furada e os painéis solares em péssimo estado, o teclado
não funciona, a placa-mãe desapareceu. A água estragou tudo menos o disco rígido. Ele está
dentro de uma embalagem à prova d'água. Os técnicos poderão examiná-lo e copiar qualquer
arquivo que você desejar.
- Não espero encontrar nenhuma surpresa.
- Desculpe-me a franqueza, Rayford - disse Mac -, mas você não esperava encontrá-la no rio
Tigre. Se eu estivesse em seu lugar, procuraria encontrar evidências para provar que Amanda
era tudo o que você pensava que ela era.
- Eu teria de recorrer a alguém que conheço, como David Hassid ou outra pessoa que mereça
minha confiança.
- Você está querendo dizer David ou eu.
- Se houver alguma novidade má aí dentro, não quero que um estranho descubra antes de
mim. Por que você não cuida disso, Mac? Nesse ínterim, não quero nem pensar no assunto. Se
eu pensar muito, vou quebrar a promessa que fiz a você e exigir que Carpathia se retrate e
limpe o nome de Amanda na frente de todos aqueles que o ouviram falar mal dela.
- Você não pode fazer isso, Ray.
- Talvez eu não me controle se tiver acesso exclusivo a esse computador. Faça isso por mim e
me informe o que descobriu.
- Não sou um especialista no assunto, Ray. Que tal se eu contar com a ajuda de David ou pedir
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que ele me ensine a lidar com isto? Não vamos examinar apenas um arquivo. Vamos examinar
tudo o que estiver aqui.
Nicolae Carpathia anunciou o adiamento da viagem em razão do "estranho fenómeno natural"
e seus efeitos sobre a reconstrução do aeroporto.
Ao longo das semanas seguintes, enquanto o contingente de Chicago do Comando Tribulação
preparava-se para a viagem para Israel, Buck ficou surpreso diante da melhora de Chloe. O
gesso foi tirado pelo Dr. Charles Floyd e, em questão de dias, os músculos atrofiados
começaram a voltar ao normal. Talvez ela ficasse com algumas sequelas, tais como dificuldade
para locomover-se, dores residuais e uma leve lesão no rosto e na ossatura. Mas, para Buck,
ela nunca parecera estar tão bem. Sua conversa girava em torno da viagem a Israel para
presenciar a incrível concentração das testemunhas.
As primeiras 25.000 testemunhas a chegar deveriam encontrar-se com Tsion no Estádio Teddy
Kollek. O restante reunir-se-ia em alojamentos por toda a Terra Santa, vendo tudo por um
circuito fechado de TV. Tsion contou a Buck que planejava convidar Moisés e Eli para
comparecerem ao lado dele no estádio.
Após o granizo, fogo e sangue enviados por Deus o número de cépticos reduziu sensivelmente.
Não havia mais ambiguidade acerca da guerra. O mundo estava tomando partidos.
Quase um mês após a noite em que Rayford descobrira o corpo de Amanda, David Hassid
presenteou-o com um disquete de alta tecnologia contendo todos os arquivos relacionados no
computador de Amanda.
- Todos estão em código e não podem ser lidos sem a devida decodificação - disse-lhe David.
Rayford comportava-se com tal frieza na frente de Carpathia e Fortunato, mesmo quando era
forçado a levá-los de um lugar para outro, que chegou a acreditar que os dois estavam
entediados dele. Ótimo. Enquanto Deus não o liberasse de sua tarefa, ele a suportaria.
O progresso da reconstrução ao redor do mundo causava admiração a Rayford. As equipes de
Carpathia trabalhavam sem parar em estradas, pistas de aeroportos, cidades, rotas comerciais.
O centro de turismo, comércio e governo tinha sido transferido para o Oriente Médio, Iraque,
Nova Babilónia, a capital do mundo.
O ferimento na cabeça de Rayford sarou rapidamente, mas seu coração ainda doía. Ele passava
os dias chorando, orando, estudando, acompanhando atentamente os ensinamentos de Tsion
pela Internet e enviando e-mails diários para Buck e Chloe.
Mantinha também a mente ocupada fazendo roteiros de viagem, aconselhando David Hassid e
doutrinando Mac. Nos primeiros dias após o mergulho no Tigre os papéis de ambos haviam se
invertido quando Mac precisou ajudar Rayford a atravessar o período mais crítico de sofrimento.
Rayford teve de admitir que Deus lhe renovava as forças a cada dia. Nenhuma força extra,
nada para ele investir no futuro, mas suficiente para o dia.
O povo ao redor do mundo implorava por conhecer a Deus. Seus pedidos inundavam a
Internet. Tsion, Chloe e Buck trabalhavam dia e noite correspondendo-se com os novos
convertidos e fazendo planos para a concentração em massa na Terra Santa.
O estado de saúde de Hattie não melhorava. O Dr. Charles localizou uma clínica médica
secreta, mas finalmente disse a Buck que tomaria conta dela ali mesmo enquanto eles
estivessem em Israel. Seria arriscado para ambos, e ela talvez tivesse de ficar sozinha por
algum tempo, mas isso era o melhor que ele podia fazer.
Buck e Chloe oravam por Hattie todos os dias. Chloe confidenciou a Buck:
- A única coisa que poderá impedir-me de ir com vocês é se Hattie não aceitar a Cristo antes
de minha partida. Não posso deixá-la neste estado.
Buck tinha seus motivos para desejar que ela sarasse. A salvação dela estava em primeiro
lugar, é claro, mas ele precisava saber de coisas que só ela poderia contar-lhe.
Por meio de informações obtidas de David Hassid e da própria observação, Rayford percebeu o
quanto Carpathia estava furioso com Tsion Ben-Judá, com as duas testemunhas, com a próxima
conferência e, principalmente, com o número cada vez maior de pessoas interessadas em Cristo.
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Carpathia sempre fora um homem motivado e disciplinado, mas agora estava claro que ele
trabalhava visando um objetivo. Seus olhos tinham uma expressão selvagem, e seu rosto
estava tenso. Levantava-se muito cedo todos os dias e trabalhava até altas horas da noite.
Rayford esperava que ele entrasse em delírio de tanto trabalhar. Seu dia está próximo, pensava
Rayford, e espero que Deus me permita apertar o gatilho.
Dois dias antes da data programada para a partida rumo à Terra Santa, Buck acordou com o
som de um bip em seu computador. Havia uma mensagem de Rayford que dizia: "Está
acontecendo! Ligue a TV. Vai ser eletrizante!"
Buck desceu a escada na ponta dos pés e ligou a TV, procurando as emissoras de notícias.
Assim que ele viu o que estava se passando, despertou todos da casa, exceto Hattie. Ele disse
a Chloe, Tsion e Ken:
- É quase meio-dia na Nova Babilónia, e acabei de receber uma mensagem de Rayford. Venham
comigo.
Os telejornais de TV contavam a história do que os astrónomos haviam descoberto duas horas
antes - um cometa novo em rota de colisão com a terra. Os cientistas da Comunidade Global
analisaram os dados transmitidos pelas sondas lançadas no espaço que circundavam o objeto.
Disseram que meteoro não era a palavra exata para aquela formação rochosa, que tinha a
consistência de giz ou talvez de arenito.
As imagens vindas das sondas mostravam um projétil de forma irregular, de cor clara. O
jornalista dizia:
"Senhoras e senhores, peço que observem essas imagens com atenção. Este objeto está
prestes a entrar na atmosfera terrestre. Os cientistas ainda não determinaram sua
composição, mas se - conforme parece - ele for menos denso que granito, o atrito com a
atmosfera o fará explodir em chamas.
Quando ele for atraído para a força de gravidade da terra, atingirá uma velocidade
descomunal. Conforme os senhores podem ver por estas imagens, ele é imenso. Porém,
enquanto não soubermos qual é o seu tamanho aproximado, não podemos imaginar seu
potencial de destruição. Os astrónomos da CG calculam que ele pode ser comparado à cadeia
dos Montes Apalaches. Tem potencial para partir a terra ao meio ou deslocá-la de sua órbita.
O Ministério da Aeronáutica e Administração Espacial da Comunidade Global estima que a
colisão se dará aproximadamente às nove horas da manhã, horário da região central dos
Estados Unidos. Eles prevêem que o fenómeno ocorrerá no meio do Oceano Atlântico.
"Ondas imensas poderão cobrir as duas margens do Atlântico até uma extensão de 80
quilómetros. Neste momento, as áreas costeiras estão sendo evacuadas. Tripulações e
passageiros de navios em pleno mar estão sendo içados por helicópteros, apesar de não
sabermos quantas pessoas poderão ser retiradas a tempo. Especialistas concordam que o
efeito devastador sobre a vida marinha será incalculável.
"Sua Excelência potentado Nicolae Carpathia emitiu um pronunciamento declarando que seu
pessoal não teve condições de prever este fenómeno. Embora o potentado Carpathia diga estar
confiante de que possui armamento de fogo para destruir o objeto, ele foi informado que os
locais por onde se espalharão os fragmentos correrão grandes riscos, principalmente
considerando que a montanha cadente está prestes a afundar no mar."
Os componentes do Comando Tribulação pegaram seus computadores para transmitir ao mundo
que esse era o segundo Julgamento das Trombetas profetizado em Apocalipse 8.8-9.
Tsion escreveu o seguinte: "Será que estamos agindo como videntes se os resultados estão
diante de nós? Será que isso chocará os poderosos quando eles descobrirem, conforme a
Bíblia diz, que um terço dos peixes morrerá e um terço dos navios afundará, e que ondas
imensas causarão devastação no mundo inteiro? Ou será que os governantes darão uma nova
interpretação a esse evento para parecer que a Bíblia estava errada? Não sejam tolos! Não se
demorem! É chegada a hora de aceitar. Chegou o dia da salvação. Aceitem a Cristo antes que
seja tarde demais. As coisas vão piorar cada vez mais. Fomos deixados para trás na primeira
oportunidade. Tomem uma decisão antes de dar o último suspiro."
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As forças militares da Comunidade Global posicionaram aeronaves com câmeras instaladas em
locais estratégicos para filmar a colisão mais espetacular da História.
Finalmente, constatou-se que a montanha de mais de 1.600 metros quadrados consistia na
maior parte de enxofre, que explodiu em chamas assim que entrou na atmosfera. A montanha
eclipsou o sol, deslocou as nuvens de seu trajeto e produziu ventos com força de furacões
entre ela e a superfície do mar durante a última hora em que despencou do céu. Quando ela
bateu no mar, fez subir um jato de água quente a quilómetros de altura, acompanhado de
trombas d'água e tufões, que inundaram vários aviões da CG. Durante semanas, as imagens
filmadas desse fenómeno foram levadas ao ar 24 horas por dia na TV.
A devastação na região costeira foi tão extensa a ponto de interromper quase todos os meios
de transporte. A concentração das testemunhas judaicas em Israel foi adiada por dez semanas.
As duas testemunhas diante do Muro das Lamentações partiram para a ofensiva, ameaçando
prosseguir com a seca na Terra Santa que perdurava desde o dia da assinatura do tratado
entre o anticristo e Israel. Os dois prometeram transformar rios em sangue em retaliação a
qualquer ameaça que os evangelistas selados por Deus viessem a sofrer. Em seguida, em uma
demonstração cómica de poder, eles clamaram a Deus para que chovesse apenas no Monte do
Templo por sete minutos. Do céu sem nuvens caiu uma chuva quente que transformou o pó
em lama, fazendo com que os israelenses saíssem de suas casas. As pessoas levantavam as
mãos, olhavam para cima e punham a língua para fora. Cantavam e dançavam porque esse
milagre significava grandes colheitas. Porém, sete minutos depois, a chuva parou e evaporouse,
a lama transformou-se em pó que foi soprado pelo vento.
"Ai de vós, que zombais do único e verdadeiro Deus!", gritaram Eli e Moisés. "Enquanto não
chegar o tempo certo, quando Deus permitir que sejamos lançados por terra para depois nos
levar para junto dele, não tereis nenhum poder sobre nós nem sobre aqueles a quem Deus
chamou para proclamar seu nome por toda a terra!"
A princípio Rayford sentiu-se animado pelas palavras de conforto recebidas de Chloe, Buck e
Tsion pela morte de Amanda. Porém, quando ele começou a exaltar suas virtudes, via e-mail,
as respostas foram ficando mornas. Será que eles estavam sendo sugestionados por Carpathia?
Eles conheciam e amavam Amanda o suficiente para acreditar que ela era inocente.
Finalmente, chegou o dia em que Rayford recebeu uma longa mensagem de Buck, que
terminava desta forma: "Nossa paciente melhorou o suficiente para poder contar alguns
segredos do passado que a impediam de dar um passo vital na direção do Criador. Essa
informação é alarmante e reveladora. Só poderemos conversar sobre ela pessoalmente,
portanto peço que você coordene um encontro entre nós dois assim que for possível."
Rayford sentiu um profundo abatimento. Será que aquela mensagem significava que Hattie
havia esclarecido as acusações que pesavam sobre Amanda? Se Hattie não tivesse meios de
provar a falsidade de tais acusações, Rayford não teria pressa nenhuma em se encontrar com
Buck.
Poucos dias antes da partida reprogramada do Comando Tribulação para Israel, o Ministério da
Aeronáutica e Administração Espacial da CG detectou novamente uma ameaça vinda do céu.
Tratava-se de um objeto semelhante em tamanho à montanha incandescente, mas tinha a
consistência de madeira podre. Carpathia, na ânsia de desviar para si a atenção do povo
dirigida a Cristo e a Ben-Judá, comprometeu-se a abatê-lo no céu.
A imprensa mostrou, com grande estardalhaço, o lançamento de um gigantesco míssil nuclear
destinado a fazer evaporar a nova ameaça. Enquanto o mundo inteiro observava, o meteoro
em chamas ao qual a Bíblia dava o nome de Absinto, desintegrou-se em bilhões de partículas
antes da chegada do míssil. Os resíduos voaram à deriva durante horas e caíram sobre um
terço das fontes, nascentes e rios da terra, cujas águas se tornaram amargas e venenosas.
Milhares de pessoas morreriam ao bebê-las.
Mais uma vez, Carpathia comunicou sua decisão de adiar a conferência em Israel. Mas Tsion
Ben-Judá não tomou conhecimento. Enviou sua resposta pela central de boletins da Internet e
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insistiu para que o maior número possível das 144.000 testemunhas se concentrasse em Israel
na semana seguinte.
"Sr. Carpathia", ele escreveu, deixando de usar de propósito os outros títulos, "estaremos em
Jerusalém conforme programado, com ou sem sua aprovação, permissão ou proteção
prometida. A glória do Senhor será a nossa retaguarda."
A lista dos arquivos em código extraídos do disco rígido do computador de Amanda evidenciava
numerosa correspondência entre ela e Nicolae Carpathia. Apesar do medo que sentia, Rayford
estava ansioso por decodificá-los. Tsion lhe contara sobre o programa de Donny que revelou
materiais contidos no arquivo de Bruce. Se Rayford pudesse ir para Israel quando o restante do
Comando Tribulação estivesse lá, poderia finalmente desvendar aquele terrível mistério.
Por que sua filha e seu genro não o tranquilizavam? A cada dia Rayford sentia-se pior,
convencido de que seus entes queridos haviam sido sugestionados e que não havia nada a
fazer para dissuadi-los. Ele não tinha feito perguntas diretas nem pedido a opinião deles. Não
seria necessário. Se eles ainda estivessem do seu lado - e do lado da memória de sua mulher -
ele saberia.
Rayford acreditava que a única maneira de inocentar Amanda seria decodificar seus arquivos,
mas ele teria de correr o risco. Teria de enfrentar o que lhe fosse revelado. Será que ele queria
conhecer a verdade? Quanto mais orava sobre isso, mais convencido ficava de que não devia
temer a verdade.
Dependendo do que ele descobrisse, sua atitude em relação ao Comando Tribulação mudaria.
Se a mulher com a qual ele compartilhara sua vida o enganara, em quem mais poderia confiar?
Se ele não sabia julgar o caráter de uma pessoa, que bem poderia fazer no trabalho pela causa
de Cristo? Dúvidas malucas permeavam sua mente, mas ele precisava conhecer a verdade.
Quer ela tivesse sido uma mulher apaixonada ou mentirosa, esposa ou feiticeira, ele precisava
saber.
Na manhã da véspera do início da mais famosa concentração em massa do mundo, Rayford
aproximou-se de Carpathia em seu escritório.
- Sua Excelência - ele começou a dizer, engolindo qualquer vestígio de orgulho -, estou
entendendo que o senhor vai precisar de Mac e de mim para levá-lo a Israel amanhã.
- Não me venha com essa conversa, capitão Steele. Eles estão se reunindo contra a minha
vontade, portanto, não tenho a intenção de dar um aval com minha presença.
- Mas o senhor prometeu proteger...
- Ah, isso também mexeu com você, não?
- O senhor conhece minha posição.
- E você também sabe que sou eu quem diz para onde devo ir, e não vice-versa. Você não acha
que se eu quisesse estar em Israel amanhã já não lhe teria dito isso antes?
- Então, quer dizer que aqueles que imaginam que o senhor está com medo daquele estudioso
que...
- Medo!
- ... o desmascarou via Internet e que o chamou de enganador diante de pessoas do mundo
inteiro...
- Você está tentando me seduzir, capitão Steele – disse Carpathia, sorrindo.
- Francamente, acredito que o senhor sabe que vai ser destronado em Israel pelas duas
testemunhas e pelo Dr. Ben-Judá.
- Pelas duas testemunhas? Se aqueles dois não pararem com aquela história de magia negra,
falta de chuva e sangue, vão ter de se explicar comigo.
- Eles dizem que o senhor não pode fazer nada que os prejudique até o tempo certo.
- Eu vou decidir qual é o tempo certo.
- Apesar disso, a nação de Israel foi protegida do terremoto e dos meteoros...
- Você acredita que as testemunhas são responsáveis por isso?
- Acredito que Deus é o responsável.
- Diga-me uma coisa, capitão Steele. Você ainda acredita que um homem com poderes de
ressuscitar uma pessoa possa ser o anticristo?
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Rayford hesitou, desejando que Tsion estivesse presente.
- O inimigo é conhecido por imitar milagres - ele disse. - Imagine qual seria a reação do
público em Israel se o senhor fizesse algo parecido. Lá estarão pessoas de fé em busca de
inspiração. Se o senhor é Deus, se pode ser o Messias, eles não ficariam emocionados por
conhecê-lo?
Carpathia encarou Rayford, parecendo esquadrinhar seus olhos. Rayford acreditava em Deus.
Acreditava que, apesar de seu poder e de suas intenções, Nicolae estaria de mãos atadas
diante de qualquer uma das 144.000 testemunhas que haviam sido seladas na testa pelo Deus
Todo-Poderoso.
- Se você está sugerindo - disse Carpathia, escolhendo as palavras - que é importante que o
potentado da Comunidade Global conceda a esses convidados uma recepção suntuosa
como eles jamais viram, talvez tenha razão.
Rayford não havia dito nada que se referisse a isso, mas Carpathia ouviu o que queria ouvir.
- Obrigado - ele disse.
- Capitão Steele, prepare o roteiro do vôo.
182
De que lado você vai ficar?
Rayford Steele e Buck Williams temem estar sozinhos. Os dois sobreviveram a um
terremoto mundial ocorrido no 21° mês da Tribulação. Um não sabe que o outro está
vivo, e ambos empreendem uma busca desesperada na tentativa de encontrar suas
respectivas esposas. O mentor do grupo, Tsion Ben-Judá, está preso em um abrigo
subterrâneo. E ninguém sabe o que aconteceu com Hattie Durham, uma velha amiga
do grupo. Enquanto o mundo caminha a passos largos rumo à grande colheita de almas
profetizada na Bíblia Sagrada, Rayford e Buck tentam resgatar pessoas queridas de
todos os lugares.
Tsion conseguirá sair são e salvo do abrigo? Chloe será encontrada viva? E Amanda? E
Hattie? E quanto às terríveis acusações que pesam sobre os ombros de Amanda? Rayford
está determinado a limpar o nome da esposa, quer ela esteja viva ou morta.
A medida que as profecias dos julgamentos vão-se cumprindo, o número de céticos
diminui. Até mesmo os inimigos já sabem contra quem estão lutando, e o mundo é
obrigado a decidir de que lado vai ficar.

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