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quinta-feira, 28 de junho de 2012

O Templo dos Desejos - Jane Donnelly (Romance)

Na primeira oportunidade que teve, Jonatham disse a Harriet que ela não era mulher para Nigel, seu irmão de criação. Não passava de uma dondoca fútil e mimada. Só
faltou expulsá-la da casa e colocá-la no trem de volta para Londres. Para irritá-lo, ela não apenas ficou, como aceitou o convite de Nigel para passarem férias juntos
na Sicília. Até casaria com ele, se a pedisse. E o rapaz pediu. Mas escolheu a hora errada. Minutos antes, Harriet tinha estado nos braços de Jotham. Havia uma grande
lua no céu e as misteriosas ruínas de um templo à sua volta. E pela primeira vez na vida, ela sentira o sangue ferver de paixão e desejo!


O templo dos desejos
Jane Donnelly


CAPITULO I

- Tem mesmo que ser colocada à venda? - Harriet Brookes perguntou de novo ao contador do pai.
- Esse foi o conselho que dei a seu pai. Como pode ver, a firma vai muito mal. É melhor vender para alguém que possa recuperá-la.
Seu pai nunca tinha se preocupado com dinheiro ou com qualquer outra coisa. Na verdade, há dois anos, vendera a casa que tinham a alguns quilómetros da fábrica.
Quando ia para lá, hospedava-se em um hotel próximo, e pronto. Sempre preferiu seu apartamento em Londres, e, depois que Harriet se tornou independente e alugou
o próprio apartamento, ele decidiu se transferir definitivamente.
O pai costumava sacar um salário generoso e lhe dava uma mesada razoável; jamais falava de problemas. Ela não tinha idéia de que a firma da família ia tão mal, até
meia hora atrás, quando o sr. Snelson trouxera os livros da contabilidade e lhe explicara os números.
- Sinto muito, sinto muitíssimo, mesmo - disse o contador, parecendo arrependido, como se fosse o responsável por aquela situação. Não era, mas também não queria
colocar a culpa em Henry Brookes.
- Não tivemos sorte; em negócios, as coisas evoluem muito rápido.
- Talvez ele devesse dizer também que Henry não levara o trabalho muito a sério, que não tinha qualquer talento para negócios.
Henry talvez tivesse que colocar ele mesmo a fábrica à venda, em no máximo seis meses, se não morresse de um ataque cardíaco a bordo de um iate, quando cruzava o
Mediterrâneo. Se ainda fosse vivo, não ficaria mal de vida: seu atual "caso" era uma viúva muito rica, proprietária de poços de petróleo no Texas. Além disso, não
seria difícil arranjar um bom emprego, com alguma das boas amizades que possuía. Para Harriet, também não haveria maiores problemas. Bonita como era, provavelmente
casaria com algum milionário. Já tinha ficado noiva duas vezes. A notícia de que não herdaria um próspero negócio do pai não a prejudicaria.
De qualquer maneira, Cedric Snelson teve o cuidado de lhe contar as novidades com tato.
- Não sabia de nada. . . Papai não falava de negócios e eu nunca fui muito interessada, mesmo.
A verdade é que o pai também nunca tinha sido. Quando ele herdou a fábrica, ela prosperava como nunca. E ele se limitou a deixar as coisas como estavam. Continuou
sacando seu salário e freqüentando gabinetes, mas nunca foi empresário de verdade. Era muito simpático, dessas pessoas de quem seria impossível alguém não gostar,
elegante e charmoso. Formava um par bem atraente com a filha. Harriet era ainda mais bonita do que a mãe tinha sido.
Já fazia algum tempo que ela não aparecia por aqueles lados; a última vez foi quando Henry vendeu a casa. Desta vez, sua vinda foi muito triste: na véspera, o pai
tinha sido sepultado no jazigo da família e, desde então, estava hospedada na casa de Snelson.
Era modelo profissional. A esposa de Cedric Snelson sempre mostrava ao marido as revistas de moda em que ela aparecia, e Henry invariavelmente lhes contava quando
estava para aparecer em alguma revista ou na televisão. Cedric tinha orgulho do patrão e de sua filha. Depois que Harriet deixou o colégio interno, pai e filha passaram
muito tempo juntos e freqüentavam a intensa vida social da noite londrina.
Muita gente foi ao enterro. A pequena igreja ficou lotada, todos chocados com a morte prematura de Henry Brookes. Harriet ficou de pé entre os Snelson, vestida com
um casaco de veludo preto abotoado
até o pescoço e um chapéu de abas largas, também preto. Não usava maquilagem, mas seu rosto, sombreado pelo chapéu, estava impecável, e seus cabelos brilhavam sobre
os ombros. Os que não a viam há algum tempo não conseguiam tirar os olhos de cima dela, e os que a conheciam bem acharam Harriet mais bonita do que nunca.
Quase todas as mulheres a invejavam, mas naquela tarde todos pareciam ter pena dela, entendendo sua dor.
- Sei o quanto vocês eram ligados... - Foi algo que ela escutou muitas vezes, abaixando a cabeça e fazendo força para evitar as lágrimas.
Deveria voltar para Londres ainda naquela tarde, com alguns amigos que tinham vindo para o enterro, mas foi persuadida pelos Snelson a ficar um pouco mais. Cedric
achou que ela devia tomar conhecimento da situação financeira da firma antes de partir; além do que, uns dias no campo lhe fariam bem.
Harriet só chorou na hora em que soube da morte do pai. Chorou por quase uma hora, mas depois se acalmou, fazendo tudo o que tinha que fazer antes do último adeus.
Durante o enterro, conseguiu se controlar a muito custo.
Foi para a cama cedo, e a mulher de Cedric lhe levou uma xícara com leite quente. Ida Snelson tinha passado todo o dia chorando e assoando o nariz. Gostava bastante
de Henry Brookes, mas tinha ressentimentos em relação à vida folgada que levava. Achava que ele não devia estar naquele iate, e sim em seu escritório, tentando resolver
a situação da empresa. Ida tinha idade suficiente para ser mãe de Harriet, e lembrava perfeitamente da garota gorda que andava de bicicleta o dia inteiro. Cuidou
muitas vezes de Harriet depois que sua mãe morreu, porém, desde então, a menina gorducha se transformara em uma mulher atraente e sofisticada, o que tornava a aproximação
muito mais difícil.
Ida permaneceu de pé e embaraçada, ao lado da cama.
- Tente dormir um pouco - aconselhou, desejando ter dito algo mais reconfortante. - O tempo é o melhor remédio para certas dores.
Logo que Ida saiu e fechou a porta, Harriet se levantou, pegou o leite que estava na mesinha-de-cabeceira e o jogou fora. Odiava leite quente desde o dia em que
a obrigaram a toma-lo, quando ainda era uma criança de quem ninguém gostava.
A sra. Snelson estava errada a respeito de o tempo ser o melhor
remédio. Havia coisas que ainda doíam, mesmo depois de tantos anos. As lembranças estavam à flor da pele, naquela noite, e não eram boas. Harriet temia dormir porque
tinha quase certeza de que ia acabar tendo pesadelos. E, neles, seria criança novamente.
Sua infância tinha sido difícil. A mãe se envergonhava dela, de sua falta de jeito, de seus cabelos espetados e sua expressão teimosa.
- Você não pode fazer nada com ela? - o pai perguntava.
- Fazer o quê? Como quer que eu transforme chumbo grosso em puro ouro?
Entre eles, brigavam muito. Tanto um como outro viviam tendo casos fora do casamento e nem se preocupavam em esconder isso. O pior era quando falavam em separação,
pois ninguém queria ficar com a filha.
- A porta está aberta, você pode sair na hora que quiser! E pode levar Harriet junto! - lembrava-se de ter ouvido a mãe gritar mil vezes.
Quando fez cinco anos, foi mandada para o colégio interno. Não era uma garota popular. As professoras a consideravam inteligente, bastante inteligente, mas solitária.
Tranquila a maior parte do tempo, só se enervava quando alguém se punha em seu caminho. Aí, seus olhos brilhavam de ódio. Mas, no geral, era uma criança amável.
A mãe morreu quando ela passou para o ginásio. Tinha se internado para fazer o que parecia ser uma operação sem gravidade, mas o caso era mais complicado do que
parecia e acabou sendo fatal. Nem saiu do hospital. Depois do enterro, seu pai a mandou de volta para a escola. A tristeza dele era sincera e, a despeito de ser
um mulherengo, amava de verdade a linda esposa, à sua maneira, e não via nada dela na filha gorda e desajeitada. Estava muito ocupado com os próprios sentimentos
para se preocupar com Harriet. Quando ela começou a ser convidada para passar as férias na casa das colegas, foi um alívio para ele.
Durante o ano, Henry raramente pensava nela. De vez em quando se preocupava em saber o que a filha faria quando completasse dezoito anos e terminasse o curso colegial.
E só Por não ver muito Harriet, ele não se deu conta do quanto ela estava mudando. Começou a fazer mais amizades e, toda vez que se olhava no espelho, percebia que
uma
espécie de milagre acontecia. Suas pernas cresciam, ficando mais fortes e esbeltas. Sua cintura afinavá
e os seios se tornavam firmes. Estava ficando alta e a gordura adolescente ia sumindo aos poucos. Os olhos ficaram ainda mais brilhantes e a boca revelou-se forte
e bonita. Sua pele era clara e lisa, e os cabelos, antes secos e sem vida, tomaram jeito. Até a cor ficou mais forte e vibrante: um castanho-escuro que caía muito
bem com seu tipo. Costumava usá-los presos para trás, mas um dia decidiu que ficavam melhor soltos. Algumas professoras tentaram convencê-la a voltar ao velho estilo,
mas se recusou.
- Gosto assim. - E daí em diante tomou ainda mais cuidado com eles. Lavava a cabeça três vezes por semana, escovava, fazia massagens de óleo. -
Por volta dos quinze anos, Harriet passou a ser considerada a garota mais bonita da escola. Não era popular, nunca chegou a ser, mas tinha pelo menos se tornado
acessível e não sofria mais os antigos acessos de raiva. Sentia-se cheia de energia e vitalidade e não se importava com o que os outros poderiam dizer. Durante os
primeiros anos de colégio, levou uma vida solitária, mas, nos últimos dois anos, estava cheia de admiradoras entre as colegas.
Era muito melhor passar as férias escolares na casa de amigas do que com os pais. Contudo, nenhuma delas jamais a convidara, quando era uma garota tímida e desajeitada.
Sua amizade era superficial; Harriet não confiava nelas de verdade, nunca lhes contaria um segredo importante. O que aconteceu a ela foi como ganhar na loteria.
Quem tinha dinheiro podia fazer o que quisesse, e o mesmo acontecia com a beleza. Não era por ela que as pessoas se interessavam, mas por aquela aparência deslumbrante.
Sempre se lembraria de seus pais gritando um para o outro: ".. .e pode levar Harriet junto!"
Agora, não tinha mais nem pai nem mãe, e as pessoas que no enterro lhe disseram "sei o quanto eram ligados" não sabiam de nada. Harriet e o pai nunca tinham sido
íntimos de verdade. Ela o amava, apesar de tudo, mas a relação deles era muito menos do que uma filha precisava de um pai.
Num fim de ano, tinha sido praticamente expulsa do colégio. Não chegou a acontecer nenhum escândalo, mas, antes de voltar para casa naquele Natal, recebeu um ultimato
da diretora, a sra. Lupton. Devia pensar seriamente sobre o futuro, porque sua conduta não estava sendo adequada para uma aluna do São Bartolomeu. .
Engraçado. Tudo porque havia posado para algumas fotos em uma
revista de moda para adolescentes. Nenhuma garota da escola perderia uma chance dessas. Numa tarde de domingo, tomava sorvete numa lanchonete com sua colega Paula,
quando um sujeito se aproximou, se apresentando como fotógrafo, e perguntou se já posara alguma vez. Disse que sua revista precisava de um rosto novo para a campanha
de lançamento de uma coleção de roupas para jovens. Paula deu uma olhada suspeita na carteira profissional, mas Harriet disse:
- Vai ser divertido. . .
Antes de ele ir embora, Paula ainda cochichou:
- E o que vai fazer, se eles quiserem. . . bem. . . você sabe: se quiserem que tire a roupa?
- Não há problema, tenho corpo para isso - respondeu, com um sorriso.
Não tinha a menor intenção de ficar nua, mas foi engraçado ver a cara de Paula. Provavelmente, iria correndo contar tudo às outras, na escola. E foi o que realmente
fez. Toda a escola esperou o dia do lançamento da revista. Quando ela finalmente apareceu nas bancas, Harriet foi chamada à sala da diretora. As fotos estavam excelentes,
ela era muito fotogênica. Aparecia vestida dos pés à cabeça, com roupas jovens que toda adolescente compraria dali a pouco tempo. Contudo, alguma coisa não agradou
à sra. Lupton, que fechou a revista em sua mesa e disse:
- Espero que esse tipo de atitude não se repita.
O editor da revista tinha convidado Harriet para posar mais algumas vezes, e ela pretendia aceitar. Achara a experiência muito interessante, se divertiu no meio
de todo aquele equipamento, tanta roupa bonita, gente exótica do. mundo da moda, fotógrafos bonitos. Além do que, havia sido bem paga.
- Eu estava pensando seriamente em seguir carreira, sra. Lupton. Ou isto, ou casar com um milionário.
- Não seja impertinente! Preste atenção a esta advertência: se isso se repetir, você terá que deixar o colégio. vou mandar uma carta a seu pai, pondo-o a par dos
acontecimentos.
Duas semanas depois, as aulas se interromperam para as festas de Natal e, dessa vez, ela resolveu ir para a casa de seu pai. Tinha sido convidada para viajar com
outras garotas, mas decidiu ver o pai e conversar a respeito das fotos. Ia lhe pedir permissão para deixar a escola, já que não pretendia mesmo seguir carreira universitária.
Fazia mais de um ano que não via o pai. Sabia que ele levava uma vida social muito agitada, tanto que nunca lhe ocorria passar um tempo com a filha. Quando Harriet
chegou, não havia ninguém em casa. O apartamento era espaçoso e confortável, de muito bom gosto. Mas não era um apartamento familiar, aconchegante: nunca houvera
muito espaço para ela ali. Seu quarto continuava como antes. A casa não tinha mudado, seu pai não tinha mudado, mas ela, oh, como mudara! Ao escutar o barulho do
carro entrando na garagem, desceu a escada e foi até a sala. Estava sentada em uma poltrona, quando o pai entrou, recebendo-a jovialmente:
- Oi, minha querida! Pensei que já estivesse dormindo. . . Desculpe por não estar em casa quando você chegou. Reunião de negócios, você me entende... - Só então
notou como Harriet havia crescido.
- Meu Deus, você está uma moça! E linda, hein?
Ela sorriu e foi direto ao assunto:
- O senhor recebeu a carta da sra. Lupton? - Agora era a melhor hora para falar a respeito de deixar o colégio. Sempre que se reencontravam depois de uma longa separação,
ele era o pai mais fantástico do mundo.
- Sim, acho que sim - respondeu, indo até o bar e se servindo de uma dose de uísque. - Ela me pediu para entrar em contato com a escola. Mas, como tenho andado muito
ocupado, até agora não pude nem mesmo telefonar. Qual é o problema? Quais são seus planos para quando deixar a escola? Decidiu ir mesmo para a universidade?
Ele não tinha nem se preocupado com a carta da diretora; pensava que a sra. Lupton queria conversar sobre seu futuro académico.
- Acho que ela está querendo me expulsar - Harriet disse, sentindo um gostinho de vitória na boca, ao ver a cara assustada do pai.
- O que você disse? Como é que pode, Harriet? Você sempre foi uma garota quieta e educada. O que aconteceu para a diretora querer expulsá-la do colégio?
- Eu tirei fotos para uma revista.
- Que tipo de revista?
- Já lhe mostro. - Foi correndo até o quarto e voltou. - Está aqui.
- Ah, graças a Deus!
11
Que tipo de idiota ele pensava que ela era? Que tiraria fotos para qualquer tipo de revista? Abriu numa página com uma enorme foto colorida dela e o seguinte título:
"New Wave: divertida, moderna, uma delícia de moda".
- Esta é você? - ele perguntou, incrédulo.
- Não me reconhece?
- Mas... as fotos estão ótimas! - Era o primeiro elogio que ele lhe fazia em toda sua vida.
- A sra. Lupton não acha. Me advertiu de que posar para revistas de moda não era bem o que se esperava de uma aluna do São Bartolomeu. Para falar a verdade, pai,
eu também não estava muito interessada em continuar estudando lá. Já que gostei da experiência, quero seguir a carreira de modelo.
- Você ainda tem muito tempo para decidir o que fazer da vida. Mas, se não quer mesmo continuar estudando, se não pretende entrar para uma faculdade, não vejo por
que não poderia abandonar a escola agora mesmo. vou passar o Natal em Londres e você vai comigo. Precisamos comprar umas roupas bonitas. . .
Daquele dia em diante, seu relacionamento com o pai mudou radicalmente. Passou a ser a deslumbrante jovem que ele apresentava aos amigos como "minha filha Harriet".
Ele, que sempre tinha sido económico com ela, comprou-lhe roupas caras e sofisticadas, sapatos, bolsas, tudo o que quisesse. Todos a admiravam e ela conhecia o poder
que tinha. com um pouco de sorte, esse encanto podia durar toda a vida. Porém, em seus pesadelos, ainda era a criança gorda e desajeitada, rejeitada pelo mundo.
Apesar de todos os defeitos do pai, porém, Harriet sabia com certeza que ia sentir falta dele. Lembrou-se do encontro com Nigel Joliffe, no enterro. Não via Nigel
há cinco anos; foi no último verão antes de ir para Londres se profissionalizar definitivamente como modelo.
Recordava-se de cada detalhe daquele verão: Henry não se cansava de levá-la a festas, jantares, viagens. Todos os solteiros queriam namorá-la, e até alguns casados
também tentavam. Conheceu Nigel numa festa na casa dele.
Nigel já tinha visto Harriet duas vezes e estava doido para se encontrar com ela. Aproveitou que o pai era amigo de Henry e os convidou.
Harriet se lembrava de todos os detalhes, inclusive do vestido que usava naquela noite.
Nigel era bem bonito e tinha vinte anos. Ele não a largou um segundo; nem naquela noite nem no resto do verão. Harriet não queria, mas ele insistiu para ficarem
noivos antes que ela fosse para Londres. O que aconteceu foi que, em Londres, ela se apaixonou por outro e acabou o noivado com Nigel por carta. E nunca mais o viu,
até aquela manhã, na capela do cemitério.
- Ainda mora em Tudor House, Nigel? - Harriet adorava a casa dele, uma mansão em estilo elisabetano.
- Ainda. Você vai ficar por mais alguns dias?
- vou. - Lhe telefono, então. Está com os Snelson, não é?
- Estou. Telefone mesmo.
Por que será que ele ainda não casou?, pensou Harriet. Achou que ia ser interessante rever Nigel e a enorme mansão.
De noite, sozinha - agora, definitivamente sozinha, porque Henry, mal ou bem, tinha sido um apoio e um bom companheiro nos últimos anos -, ela pensava mais uma vez
nessa sua companheira de infância: a solidão. Estava sempre cercada de pessoas, mulheres, homens, admiradores. Vivia recebendo propostas e convites; mesmo assim,
se sentia só. A única coisa que precisava fazer, quando desejava alguma coisa, era sorrir, e logo algum homem estava assinando um cheque, tomando providências, resolvendo
problemas.
Os homens se apaixonavam facilmente por ela, que, por mais que quisesse, jamais conseguia se envolver. Depois de algum tempo, começava a perder o interesse e logo
encontrava milhões de defeitos no namorado, até que o relacionamento ficava insuportável e terminava. Seu atual caso já tinha atingido esse estágio. Quando voltasse
para Londres, teria uma boa desculpa para deixar de ver Anthony; a partir de agora, precisaria passar bastante tempo ali, pois a fábrica era sua responsabilidade.
Adormecera fazendo planos, e foi um choque descobrir, no dia seguinte, que a fábrica estava à beira da falência. Depois do almoço, a sra. Snelson trouxe o café e
então ela se sentou com o sr. Snelson para verificar a papelada. Os livros de contabilidade não significavam muito para Harriet, mas os gráficos das vendas, com
suas linhas bem baixas, eram claríssimos.
13
- Eu não sabia. . . - disse ela. - Na verdade, jamais me interessei pelos negócios de papai.
E agora era muito tarde para começar a se interessar. Se houvesse alguma possibilidade, procuraria aprender e se lançaria aos negócios com todo entusiasmo. Não apenas
para ganhar dinheiro, mas também porque a vida que estava levando tinha começado a não fazer sentido; adorava ter a oportunidade de agarrar alguma coisa nova e que
exigisse sacrifícios.
Acontece que fazia mais de dez anos que entrara pela última vez na fábrica. Aquelas máquinas todas sempre foram um completo mistério para ela. Não entendia nada
de negócios. Se os técnicos dissessem que a firma não tinha futuro, o jeito seria aceitar isso.
- Mas não há a mínima chance de levar o trabalho adiante? perguntou, com alguma esperança.
- Nenhuma - disse Snelson. - Gostaria de estar anunciando a você que seu pai deixou um próspero negócio. Como isto não aconteceu, pelo menos fico feliz em saber
que vai bem em sua profissão. Sempre a vemos em revistas e na televisão.
Nem sempre, pensou Harriet. Ê preciso ter muita ambição para triunfar nessa carreira. Ser modelo, para ela, era mais um hobby do que uma profissão. Se quisesse realmente
vencer, teria que trabalhar mais e mais duro.
- Sou sócia de uma pequena galeria de arte também. - Sorriu.
- Não vou morrer de fome, garanto!
- Claro que não. Ninguém precisa se preocupar com você, Harriet. De qualquer maneira, não ia tocar os negócios. . . ou ia?
- Se houvesse alguma possibilidade, eu com certeza tentaria respondeu, surpreendendo-o. - Procuraria aprender o máximo e ver se tenho jeito para ser uma mulher de
negócios.
- Não seria uma boa idéia. Mesmo que descobrisse uma grande vocação, ainda é inexperiente. Se tudoestivesse indo bem, eu mesmo a incentivaria; mas, assim, não há
a menor possibilidade de dar certo.
- Acha possível vender a fábrica? Quer dizer, se os negócios vão tão mal, quem vai querer se arriscar?
- Já recebemos algumas propostas. - O sr. Snelson se animou.
- Uma, de uma firma holandesa, e a outra, de alguém daqui.
- Quem?
14
- O sr. Gaul, Jotham Gaul.
- Oh. . . - Harriet se afundou na poltrona. - Ele!
- Você o conhece?
- Não muito bem.
Mas ela sabia muitas coisas sobre Jotham Gaul. Também, pudera... Era o nome mais conhecido das redondezas, um homem de negócios importante, que vivia inaugurando
novas fábricas. Nos últimos cinco anos, tinha lido nos jornais bastante a respeito dele. Também se encontraram algumas vezes. Rapidamente, sempre por acaso, e todo
encontro confirmava sua primeira impressão de antipatia.
- A oferta do sr. Gaul é a melhor - o sr. Snelson informou.
- Quanto melhor?
- Há o problema da indenização. Somos responsáveis por mais de uma centena de empregados. Alguns deles trabalham conosco há mais de vinte anos. O que quer dizer
que terão direito a uma vultosa indenização, a não ser que possamos lhes dar garantias. A companhia holandesa está interessada na fábrica, mas não muito nos trabalhadores.
Já Gaul concorda em manter o contrato com eles.
- Ah, Gaul não, Snelson!
- Posso perguntar por que não está querendo vender para ele? Afinal, tem uma grande reputação no mundo dos negócios.
- Tenho certeza disso - Harriet disse, secamente. - E, se precisamos vender, é óbvio que aceitaremos a melhor oferta. Contudo, gostaria de pensar um pouco mais no
assunto.
- É claro. Além disso, temos que levar em consideração também que essas propostas foram feitas antes de a fábrica ser realmente colocada à venda. Logo que a venda
se tornar oficial, poderemos receber outras ofertas.
- Espero que sim.
Ela foi até o jardim e o sr. Snelson foi conversar com a esposa.
- Gostaria que Henry a tivesse prevenido. Ela não queria vender, queria tentar manter os negócios.
Ida Snelson olhou, pela janela da cozinha, para a figura alta e elegante que passeava pelo jardim.
- Uma nova aventura? - perguntou, e seu marido concordou.
- Justamente o que eu pensava. Harriet está ainda menos acostumada com o trabalho duro do que o pai. Acho que vai seguir o mesmo caminho dele.
15
No entanto, naquele mesmo momento, ela estava decidindo que o tempo das festas havia acabado e já era hora de começar a trabalhar seriamente. Aproximou-se do relógio
de sol e leu uma das inscrições que havia numa das pontas: "É mais tarde do que você pensa". Sorriu, meio sem graça. Voltou para casa, decidida a concordar com o
sr. Snelson: a fábrica devia mesmo ser posta à venda.
"Podemos receber outras ofertas", ele havia dito. Mas, quando Jotham Gaul queria alguma coisa, conseguia. Ela gostaria de ter o prazer de contrariá-lo, pelo menos
umavez, mas não estava certa de que isso seria possível.
Havia sido apresentada a ele numa reunião na casa de Nigel, naquele verão de cinco anos atrás.
- Venha, vou apresentá-la a Jotham Gaul. - Que nome grotesco! De onde ele vem?
- Yorkshire. - Quem respondeu foi um homem que estava de pé atrás de Nigel. Parecia um estivador, tinha ombros imensos, era grande e desajeitado. Naquela noite,
foi o único que não sorriu ao ser apresentado a ela. Cumprimentou-a com um olhar frio e distante, igual aos que recebia quando ainda era uma criança feia e tímida.
Seu primeiro impulso foi sair de perto dele, mas teve que ficar, enquanto Nigel explicava que era um amigo especial da família e um homem que merecia toda a atenção
deles.
- Toda a nossa atenção? Fascinante!
- Oh, sim, eu sou - ele respondeu com uma ponta de ironia. E você, por acaso não é a adolescente que todas sonham ser?
Este era o título da reportagem que haviam feito com ela e que Henry se encarregara de mostrar a todo mundo. Sentia-se como uma celebridade, mas aquele homem não
parecia nada impressionado. De qualquer jeito, não estava interessada nele. Inventou uma desculpa qualquer e se afastou.
Deu uma volta pela sala, admirando aquela casa maravilhosa. Nigel então a levou para a sala de jantar. Em um dos cantos, havia uma grande lareira de pedra e ela
disse:
- Esta casa é linda! Adoraria morar num lugar como este. Jotham Gaul, que também estava por ali, brincou:
- Cuidado, Nigel. Acho que ela está planejando casar com você! Todos em volta riram e Nigel respondeu que ficaria maravilhado
16
se isso acontecesse. Harriet não gostou da brincadeira, mas não deixaria nenhum Jotham Gaul estragar sua noite.
Se fosse ele o comprador da fábrica, pensou, preferia que o negócio fosse feito por intermédio dos advogados. Não queria se encontrar com ele, a não ser que fosse
absolutamente necessário. Aquele homem sempre a deixava furiosa. Que sujeito irritante!, pensava, cada vez que o via.
Harriet ainda estava no jardim, perdida em seus pensamentos, quando Snelson avisou que havia um telefonema para ela.
- Alo, Harriet? Aqui é Nigel. Como está?
- Um pouco melhor, mas recebi a notícia de que a fábrica está à beira da falência. Você sabia?
- É, já tinha ouvido alguns boatos.
- Isso me deixou um pouco abatida. Eu tinha começado a fazer planos para ficar aqui.
- Talvez possa ficar, mesmo sem a fábrica.
- Não, acho que não...
- Bem, depois conversaremos sobre isso. Posso dar uma passada por aí?
- Sim, claro.
Harriet sorria, ao desligar o telefone.
Quando ele chegou, convidou-a para irem até sua casa.
- Você é a mulher mais bonita que conheço. Parece que fica cada vez mais linda.
Nigel era a pessoa de quem precisava naquele momento, pensou Harriet. Alguém simpático com quem conversar e que a fizesse esquecer da morte de seu pai e de todo
o resto.
Estava ansiosa para rever a mansão Tudor. Tinha estado em casas fabulosas ao redor de todo o mundo, mas, se pudesse escolher uma, escolheria a de Nigel. Não conseguia
explicar por que gostava tanto dela.
Fazia um dia agradável e a casa estava aquecida. Não havia ninguém no hall de entrada, nem na pequena saleta onde ficava o telefone.
- Apaixonei-me por esta casa na primeira vez que a vi. E continuo apaixonada.
Nigel sorriu.
- Você se lembra da vez que Jotham sugeriu que casasse comigo para obtê-la?
17
Antes que pudesse responder, ele a pegou pelas mãos e levou-a até a sala de estar.
- Quero lhe apresentar um velho amigo.
Jotham Gaul levantou-se da poltrona em que estava sentado e caminhou em direção a eles.
- Sinto muito pelo que aconteceu a seu pai. Fico feliz por você estar suportando tão bem.
Ela agradeceu friamente. Que sujeito desagradável! Será que nunca ia ficar livre dele?

CAPITULO II

Todas as vezes que se havia encontrado com Jotham Gaul, Harriet fugira dele. Nos últimos cinco anos, conseguira escapar por duas vezes. Numa, caminhando pela Regente
Street, tinha entrado em uma loja, antes que ele a alcançasse; e na outra, num restaurante em Cheltenham. praticamente afundara na cadeira, de costas para ele.
Nigel sorria para os dois, perguntando:
- Quanto tempo faz desde a última vez que estivemos juntos? Ela parece ainda mais bonita do que naquela época, não é?
Jotham sorriu sem responder, mas Harriet não perdoou:
- Você ganhou peso, não foi?
Homens com o físico de Jotham têm muita facilidade para engordar, mas, na verdade, ele parecia apenas mais musculoso.
- E você continua parecendo faminta.
- Seus cabelos também estão grisalhos - ela contra-atacou. Ele tinha os cabelos curtos e despenteados como os de um moleque.
Já devia ter nascido com essas feições rudes; devia ter sido uma
criança feia. Era apenas um ou dois anos mais velho do que Nigel, mas as rugas já apareciam. Tinha uma expressão gozadora e forte, uma expressão que a fazia sentir
arrepios. Jotham se vestia de maneira espalhafatosa. Agora, usava um casaco azul com uma malha verdeesmeralda. Harriet não se surpreenderia se ele estivesse com
uma calça turquesa, em vez de cinza. Às vezes, tinha vontade de perguntar se ele não tinha um mínimo de senso para cores.
- O que você está fazendo aqui? - ela perguntou.
- Eles me deixaram usar alguns quartos.
- Quanta gentileza!
- Jotham faz parte da família - Nigel disse, caminhando até o bar. Preparou um drinque para ela sem perguntar nada, entregando-lhe um copo de Martini doce com limão.
- Ainda me lembro de seus gostos.
Ela tomou um gole e sorriu. Tinha dezessete anos quando namorara Nigel. Seus gostos haviam mudado, mas era mais fácil fingir que continuavam os mesmos e até seria
bom voltar um pouco no tempo. Os últimos anos não tinham sido tão maravilhosos assim.
- Você ainda é fazendeiro? - Nigel já havia lhe dito isso, mas ela simplesmente gostava de ouvir. Havia algo de permanente na vida das pessoas daquele lugar.
- Sim, ainda sou fazendeiro. - Sentou-se ao lado dela no sofá e Jotham acomodou-se numa grande poltrona cor de laranja que resultava numa combinação chocante com
as cores de sua roupa. Será que ele não percebia essas coisas?
Harriet gostaria que ele fosse embora, mas Nigel parecia achar -que faziam um trio perfeito:
- Jotham é quem ganha o dinheiro.
- Sim, todos nós sabemos que ele é um capitão de indústrias disse ela, friamente.
- E você é uma modelo famosa.
- Não tão famosa assim. - Não admitia isso muitas vezes, mas não se importava de dizer a Nigel.
Contudo, foi Jotham quem perguntou, malicioso:
- Por que não? com suas vantagens naturais?
- Acontece que me desinteresso logo das coisas.
- Ah, sei. . . Será que foi por isso que não casou?
20
.- Pode ser. E você? Por que não casou?
Já tinha notado que sempre que se encontrava com ele, qualquer que fosse a situação, ele sempre conseguia atrapalhá-la. No dia em que o encontrou no restaurante,
não conseguiu apreciar uma garfada da comida, só de saber que ele estava tão perto. A primeira vez que o encontrou, logo depois de romper o noivado com Nigel, estava
assistindo às corridas de cavalos em Stratford com um jovem jóquei. Jotham Gaul a cumprimentou efusivamente, embora ela pudesse apostar que ele sabia que seu noivado
havia terminado. Isso a deixou nervosa, assim como a seu acompanhante, que estava num péssimo dia. Tinha acabado de rasgar o bilhete de uma aposta perdida, quando
Jotham chegou. Percebendo o bilhete rasgado no chão, ele balançou a cabeça e comentou:
- com esses olhos, você devia estar entre os vencedores.
- Não, obrigada - disse ela, achando que aquilo era um elogio, até ele completar:
- Olhos gananciosos.
Então, deu-lhe uma dica para a próxima corrida e foi embora, acompanhado de uma jovem muito elegante. Claro que ela não apostou no cavalo que Jotham indicou, e claro
que ele venceu; . .
- Nunca fico muito em um só lugar - Jotham falou, respondendo por que não havia casado.
- Triste. Todas essas andanças pelo mundo devem atrapalhar sua vida amorosa.
- De jeito nenhum. - - Olhou-a como se ela não estivesse entendendo nada. - Andanças pelo mundo atrapalham casamentos, mas são altamente estimulantes para a vida
amorosa. com certeza, você também já deve ter descoberto isso.
Ele devia ser atraente para algumas mulheres, pensou Harriet. Dinheiro e poder atraem a maioria. Até a ela. Mas não Jotham Gaul. Podia ser o homem mais rico e poderoso
do mundo, que continuaria fugindo dele. Olhou- para Nigel e perguntou:
- E você, por que não casou?
- Fiquei esperando por você - ele disse, brincalhão.
Harriet sabia que não estava falando sério, mas acharia agradável se ainda tivesse uma queda por ela. A maioria dos homens tinha, e ela estava completamente livre,
no momento. Não seria assim tão
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mau se envolver com Nígel. Sorriu, demonstrando malícia e promessa, com uma expressão que sempre tinha efeito devastador nos corações masculinos.
- A propósito - Jotham disse -, como vai aquele escultor que trabalhava muito em bronze? Vi uma foto sua na galeria dele.
Anthoriy tinha feito uma exposição na pequena galeria que Harriet ajudara a financiar. Era um artista novo e promissor, e eles haviam saído juntos regularmente,
nos últimos meses.
- Acho que está bem.
- Vocês ainda são bons amigos, não são?
Não havia segredos sobre os romances de Harriet, mas o caso com Anthony estava terminado.
- Não tenho mais nada com ele - disse, tentando ser o mais fria possível. O que havia feito romper definitivamente fora ele não ter ido ao enterro de seu pai.
Mas antes disso ela já estava procurando desculpas para não vê-lo mais, achando-o aborrecido e possessivo demais. Assim que soube da morte de Henry, Anthony se ofereceu
para acompanhá-la ao enterro, mas ela botou na cabeça que ele estava sendo meramente formal e recusou. Disse que se hospedaria na casa dos Snelson e que não ficaria
à vontade se ele estivesse junto. Anthony então prometeu esperar em Londres. Se ela precisasse, ele iria imediatamente. Por causa disso, ficou furiosa. Achou que
ele deveria saber que ela estava precisando de todo apoio. Se a abandonava na hora de dar o último adeus ao pai, o que não faria em outras horas?
- Vai ficar por aqui? - Jotham perguntou, e Nigel olhou-a ansiosamente, esperando por sua resposta.
- Ficaria, se a fábrica estivesse indo bem. Não fazia idéia de que os negócios estavam tão mal. Há muito tempo que não venho por aqui.
- Claro. Para pegar o dinheiro, não precisava vir aqui.
- Como é que sabe se eu pegava ou não pegava dinheiro?
- Conheci alguns de seus namorados.
- O que está querendo dizer?
- Que você é uma pessoa ambiciosa.
- Ei, o que... - Nigel gaguejou, tentando defendê-la, mas ela sorriu, irónica.
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- Olha só quem está falando! O dinheiro é meu e faço com ele o que bem entender. Se eu mexer em seu dinheiro, daí você pode. . .
- Tente mexer em meu dinheiro, para ver o que lhe acontece!
- Meu Deus! - Os olhos de Harriet brilhavam de raiva. - Mas você é mesmo um fanfarrão!
- Você ainda não viu nada.
- O que está acontecendo, afinal? - Nigel perguntou, sem entender coisa alguma.
- Não sei. Mas não gosto de seu amigo; aliás, jamais gostei.
- Isso é alguma brincadeira? Vocês nem ao menos se conhecem, não é? Quero dizer. . . - Nigel olhou para Jotham, que sorria ironicamente.
- Nos encontramos por acaso algumas vezes, durante estes anos
- disse ele. - com certeza, eu já lhe contei isso.
- Sim. Mas. . .
- Bem, foram encontros casuais e rápidos - Jotham completou.
- Mas, para mim, foram mais que suficientes - Harriet disse. Tanto ela quanto Jotham se levantaram. - Adeus, foi um prazer encontrá-lo, como sempre.
- Você está indo. ..
- Embora? Não, Nigel. Ele é quem está indo.
- Tenho mesmo um trabalho a fazer - Jotham disse. Tomou o último gole de seu uísque e encarou Harriet: - Sabe que fiz uma oferta pela sua fábrica?
- O ST. Snelson me contou.
- E então?
- Está achando que vou vendê-la a você? Prefiro botar fogo nela!
- Não, não vai fazer isso. Nem vai conseguir uma oferta melhor.
Depois que ele saiu da sala, ela se queixou com Nigel:
- O que você vê nesse homem? Como pode suportá-lo? É um imbecil, um grosso, um cretino. . .
- Mas todo mundo gosta de Jotham.
- Está brincando!
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- Bem, quase todo mundo. Ele pode ser prepotente, mas é um num milhão.
- Ah, é? - Há muito tempo ela não se sentia tão nervosa assim. Parecia que tinha voltado a ser uma criança rejeitada e problemática. Disse, tentando parecer calma:
- Bem, eu não o suporto. Toda vez que o encontro, tenho a impressão de que faz de tudo para me fazer parecer uma idiota.
- Sinto muito. - Ela não entendeu por que Nigel pedia desculpas, se não tinha nada a ver com ele. - Só não posso entender o porquê; quando quer, ele é um dos homens
mais gentis que conheço. Não é nenhum bobo, nem suporta os tolos.
- Ah, então é isso. - Harriet mordeu os lábios.
- O quê? - Nigel ficou embaraçado ao perceber o que havia dito e tentou consertar: - Oh, não quis dizer que você era uma tola. . . Não, meu Deus, sabe que eu não
quis dizer isto. É que Jotham. . .
Ela agora estava sorrindo, desculpando-o:
- Está tudo bem. Ele me acha uma tola, e eu o acho um cretino. vou ficar bem longe dele, e é melhor que também fique longe de mim.
Nigel estava derretido por aqueles olhos brilhantes, os cabelos castanho-acobreados e a vitalidade de Harriet. Ela representava um desafio e uma tentação. Sua mãe
não ficara nada contente por ele a ter reencontrado justamente agora, mas ele não havia resistido: quando a vira no dia anterior, sua antiga paixão reacendera.
Quando namoraram, em todos os lugares a que iam, as pessoas se viravam para admirá-la. Quase todos os amigos o invejavam. Quando ela partiu para viver em Londres,
sentiu que já não estava interessada nele, mas insistiu para que ficassem noivos. Claro, isso não adiantou. Logo ela parou de responder a suas cartas e passou a
se recusar a falar com ele até pelo telefone. Sofreu muito, ficou magoadíssimo, mas não se surpreendeu. Mais ou menos, esperava por isso. Mas, ao saber que ela havia
ficado noiva em Londres, teve ímpetos de ir e estrangular os dois. com o passar do tempo e a sucessão de namoros de Harriet - as colunas sociais viviam falando dela
-, Nigel perdeu completamente a raiva. Ao encontrá-la no enterro, não estava preparado para o impacto de revê-la. Achou-a ainda mais bela que aos dezessete anos
e se sentiu como um adolescente, em vez de um
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homem de trinta. Sua vida até agora tinha sido tranqüila a o futuro prometia o mesmo: moderação, prosperidade, bons amigos. Mas não havia muita excitação. Quem trazia
um pouco de novidade era Jotham Gaul. Nigel o considerava seu melhor amigo. Sentia admiração por ele e o invejava. Não seria humano se não sentisse inveja de um
homem rico, atraente e inteligente de quem todos gostavam. Nigel ficou feliz por Harriet não gostar de Jotham. As coisas não seriam fáceis, com um rival como ele.
- O que vai fazer com a fábrica?
- Vendê-la. Que mais posso fazer?
Ele não tinha sugestões. Ela teria que vender e partiria novamente.
- Você vai voltar para Londres?
- Creio que sim.
Se fosse outra pessoa, ele poderia sugerir que arranjasse um trabalho por ali e ficasse, mas Harriet era especial demais para um trabalho qualquer. O máximo que
podia esperar era que mantivessem contato e se encontrassem algumas vezes.
- Você virá aqui outras vezes?
- Não será assim tão fácil. - Ela sorriu, franzindo a testa. Não tenho carro. Perdi minha licença dois meses atrás: excesso de velocidade.
- Posso vê-la, se for a Londres? - Ele se sentou no sofá, puxando-a para perto. - Agora que nos encontramos novamente, por favor, Harriet, não suma da minha vida
outra vez.
Ela poderia ter prometido isso e tê-lo beijado, porque ele merecia um beijo. Mas, nesse momento, a mãe de Nigel abriu a porta e entrou na sala.
Era uma mulher magra e sem vida. Harriet lembrava-se dela sempre vestida com cores escuras e de expressão preocupada. Nesse dia, obviamente, a preocupação de Sílvia
Joliffe era Harriet Brookes. Na opinião dela, a moça não tinha a menor condição de se tornar uma boa esposa.
Quando Harriet sumiu, depois daquele verão, Sílvia Joliffe rezou duas preces: uma, em agradecimento por ela ter partido, e a outra, para que nunca mais voltasse.
A segunda foi atendida pela metade: Harriet ficou longe um longo tempo, é verdade, mas voltou, e ainda solteira.
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Obviamente, tinha ficado chocada com a notícia da morte de Henry Brookes e com pena de Harriet, mas não queria que Nigel se envolvesse com ela de novo. Pressentia
que o faria sofrer. Mas, na mesma tarde do enterro, ouviu Nigel desmarcar um encontro com a namorada. Depois, ele ficou falando de Harriet por horas, imaginando
quais seriam seus planos. Pronto: bastou botar os olhos nela para virar a cabeça, pensou Sílvia, e começou a se preocupar novamente.
Nigel tinha avisado que Harriet iria lá e ela não costumava interromper os encontros do filho com os amigos. Mas não resistiu. Entrou na sala, tentando parecer simpática,
mas não conseguiu disfarçar o nervosismo, quando encontrou os dois de mãos dadas e a ponto de se beijarem.
- Olá, Harriet. Que bom vê-la novamente. - Sentiu um peso no coração: já tinha visto sua beleza nas fotos das revistas e nos comerciais da tevê e havia reparado
em Harriet no enterro, vestida de preto e muito pálida. Mas agora ela parecia ainda mais atraente, com o rosto ligeiramente corado e os lábios vermelhos e tentadores.
Seus olhos eram capazes de hipnotizar qualquer homem, e Sílvia sentiu que o filho tinha caído na armadilha. - Ficamos muito tristes com a morte de seu pai.
Eu também fiquei, Harriet pensou. Ele tinha muitas falhas, mas eu o amava, mais do que ele me amava.
- Obrigada - disse, satisfeita por Nigel continuar segurando suas mãos; precisava de apoio, nesse momento.
- Vai ficar muito tempo por aqui? - Sílvia sabia que ainda havia os negócios da fábrica para resolver, mas desejou de todo coração que a estada fosse curta. Não
havia muita coisa de interesse para uma garota como Harriet Brookes, naquelas redondezas. A não ser Nigel, talvez. Oh, meu Deus, não Nigel!
- Só alguns dias - Harriet disse.
Nigel sugeriu, ansioso: - Por que não fica conosco? Não vai ser muito divertido, para você, ficar com os Snelson. Não que seja divertimento o que procuro em uma
hora como esta, claro, mas
você gosta de nossa casa e há muito espaço aqui. Não é, mamãe?
- Harriet não pode simplesmente sair da casa dos Snelson. A mansão Tudor não tem as mesmas comodidades de uma casa
moderna.
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Há anos que os quartos não são usados. Claro que você é bemvinda, Harriet, e adoraríamos poder hospedá-la, mas. . .
Harriet mal a ouviu: nunca escutava as coisas que não queria. Já sabia que a mãe de Nigel a trataria com frieza, mas nem ligava. Não ia perder, por nenhuma cara
feia do mundo, a oportunidade de passar uns dias na mansão Tudor, e respondeu:
- Oh, sim, eu adoraria! - Nigel exultou, embora soubesse que aquilo tinha muito mais a ver com a casa do que com ele.
- Quando você quer vir? - Sílvia perguntou, friamente. Nigel respondeu:
- Imediatamente. vou levá-la para que pegue suas coisas.
- Calma, meu filho. Não sei o que os Snelson vão pensar. Só espero que não se sintam ofendidos.
- Tenho certeza de que não se sentirão - Harriet disse, e se levantou, junto com Nigel.
- Acho melhor então escolher um quarto para você - falou Sílvia, com uma cara de mártir. - Não esqueça de ligar para Annie, Nigel. Você não lhe disse, ontem à noite,
que telefonaria para ela hoje?
O filho a encarou, furioso. Então, a mãe ficara ouvindo sua conversa ao telefone na noite passada?
- Não há pressa, mamãe. Não se preocupe e, por favor, deixe que eu mesmo cuido desses assuntos, está bem? - E acompanhou Harriet para fora da sala.
Harriet estava achando aquilo divertido. A namorada de Nigel não a preocupava; poucas garotas podiam ofuscá-la. Mas, quando entraram no carro, perguntou quem era
Annie, porque sabia que ele esperava essa pergunta.
- Uma garota. - Ele disse, ligando o motor.
- E eu não sou? Ela é importante?
- Minha mãe não gostaria que ela fosse. - Nigel não contou que até a véspera pensava em pedir Annie em casamento. Agora, não telefonaria para ela, porque não tinha
nada a lhe dizer. Harriet era seu único assunto.
Desde a hora em que Harriet apareceu com Nigel para apanhar suas coisas, a sra. Snelson ficou lembrando o quanto o rapaz tinha
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estado apaixonado pela moça, alguns anos atrás. Certamente, a paixão voltaria, se ela ficasse hospedada na mansão Tudor. A sra. Snelson sentiu pena de Annie Hughes,
que, em beleza, não chegava aos pés de Harriet, mas era uma ótima garota.
- Pode me levar até a fábrica? - Harriet perguntou, ao voltarem ao carro.
- Você é a chefe - Nigel respondeu, sorrindo.
- Não por muito tempo.
- Não estava me referindo à fábrica, mas a mim. Peça o que quiser, e eu farei.
Harriet sorriu, jogando a cabeça para trás.
Ele sentiu o perfume gostoso dos cabelos dela e ficou cada vez mais atraído. Ela sabia o efeito que estava causando. A maior parte daquilo era deliberado, o jogar
dos cabelos, o sorrir, o olhar doce, pequenos truques.
- Você é perfeita. Meu Deus, como é bonita!
E era por isso que Nigel e outros homens queriam lhe dar tudo o que desejasse. Jotham tinha dito quê ela era uma gananciosa. Será que estava se referindo a isso?
Não é possível, pensou; ele não sabe o bastante de mim para dizer tal coisa.
- Deve fazer mais de dez anos que não vou à fábrica. Agora que está para ser vendida, quero vê-la. Que loucura!
A fábrica ficava nos arredores da cidade, e ela adorou rever aquela paisagem familiar. Porém, a partir de certo trecho, encontrou muita coisa mudada. Quando passaram
pelo hotel onde seu pai costumava ficar, comentou:
- Ele dizia que aqui o serviam muito bem. Gostava de ficar em hotéis.
- E você, também gosta?
- Não muito. Nos últimos dias, comecei a pensar em ter uma casa de verdade. Acho que preciso sair daquele apartamento, encontrar meu lugar.
- Que tipo de coisa está procurando?
- Não sei. Acho que só vou saber quando encontrar.
Ao chegarem à fábrica, era a hora da saída. Trabalhadores e carros passavam lentamente pelo portão. Antes de Nigel estacionar, ela decidiu não entrar. Se entrasse,
o que poderia fazer? Conversar com
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homens que nào conhecia sobre a venda da fábrica? Alguns funcionários tinham conversado com ela no enterro, mas não sobre o trabalho.
- Não tem realmente nenhum sentido eu entrar na fábrica, não é? Ligarei para o sr. Snelson amanhã.
- Você vai aceitar a oferta de Joth?
- Se não conseguir nenhuma melhor. . .
- Não vai conseguir, e sabe disso.
Nigel falou com tanta segurança, que ela teve que perguntar:
- Como sabe?
- Porque ele sempre consegue o que quer.
- E ele diz que eu que sou ambiciosa. Gostaria de poder recusar sua oferta! Faça-me um favor, Nigel: não fale nesse homem novamente. Olhe, aquele era o escritório
de meu pai. - Apontou, quando chegaram junto do prédio da administração.
A última vez que esteve ali foi um verão antes de sua mãe morrer. Acontece que ele tinha tido um imprevisto e não a alcançou mais em casa, quando ligou para desmarcar.
Resultado: teve que almoçar com a secretária dele. Suspirou, e Nigel disse, gentilmente:
- Sei como se sente. Vocês eram muito ligados, não é?
Era o que todos achavam, pensou Harriet, mas, se o pai a amasse realmente, teria encontrado tempo para almoçar com ela naquele dia. Deram uma volta, viram tudo e
saíram.
- E agora, aonde quer ir? - perguntou Nigel.
- Que tal me fazer uma surpresa?
Ele gostaria de poder fazer isso, levá-la para algum lugar que superasse todos os lugares a que ela já tivesse ido e deixá-la atónita com seu charme. Mas não havia
a menor chance de isso acontecer. Harriet vivia em Londres há anos, já tinha viajado a Europa inteira, freqüentava a noite. Já que não ia conseguir ser original,
decidiu levá-la a um lugar muito agradável, inaugurado no ano anterior. A idéia vinha de Londres: um casarão onde funcionavam uma casa de chá, um bar, um restaurante,
um salão para dançar música suave, ao som de um piano baixo e flauta, tipo boate, e um salão de música jovem.
Nigel estava se dirigindo ao andar de cima, para a boate, pois estava doido por uma atmosfera mais íntima, mas ela parou e disse:
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- Estou ouvindo Rolling Stones. De onde vem essa música?
- Do salão no primeiro andar. É uma discoteca. Você gostaria de ir lá? - Ele preferia ficar numa mesa tranqüila, conversar, olhar para ela, dançar de rosto colado,
mas Harriet já estava descendo a escada.
Antes de entrarem no salão, foram ao bar da discoteca. Tomaram um gim-tônica, conversando sobre os últimos anos. Ele não tinha muito a dizer, ao contrário dela.
- Você tem uma vida maravilhosa, não é? - Nigel perguntou, com um olhar de admiração e de desejo.
- Não tem sido ruim, e sempre acho que o melhor está por vir.
- Espero que sim. Quer dançar?
Ele até que era um bom dançarino, tinha estado ali com Annie não fazia muito tempo, mas nunca dançara com uma garota como Harriet. Annie dançava bem qualquer coisa,
do agarradinho ao rock, mas não chamava nenhuma atenção especial, como ele também não. Já Harriet parecia ser a única dançarina na pista. Seus cabelos e seu corpo
balançavam sensualmente. Era impossível, para quem estivesse por perto, tirar os olhos dela.
As pessoas não a conheciam, mas já a haviam visto em fotos e anúncios, e Nigel ouviu várias vezes sussurrarem: "Quem é essa?", "Você a conhece?", "É uma atriz?"
Acabou deixando que ela dançasse sozinha. Esperou um pouco, afastado, e depois levou-a de volta à mesa.
- Costuma dançar muito?
- Gosto bastante. Tenho dançado mais desde que perdi minha carteira.
- Que carteira? - Nigel tinha a impressão de que todos os olhos estavam voltados para eles, e não sabia se sentia embaraço ou orgulho.
- Minha carteira de motorista. Quando eu ficava muito nervosa, costumava pegar o carro e sair a toda por aí. Dançar ajuda; é uma outra forma de relaxar, e mais saudável.
Seus cabelos estavam despenteados, sua respiração mais rápida, e ela estava maravilhosa. Nigel desejava ter coragem de se
debruçar sobre a mesa e beijá-la.
- Estou em uma fase muito ruim - disse Harriet. Ele segurou suas mãos.
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- Eu sei, eu sei.
Ela esperava que ele não viesse de novo com aquela conversa de como era ligada ao pai. Nigel não sabia de nada. Ninguém sabia. Um homem se aproximou da mesa e perguntou:
- Não nos conhecemos? - - Não - ela respondeu.
- Tenho certeza de que já a vi em algum lugar antes. - Ele era jovem e bonito.
- Você já deve ter me visto, mas não nos conhecemos. - Virou as costas friamente e continuou conversando com Nigel.
Nigel viu Harriet afastar, e ele próprio afastou, mais admiradores naquela noite do que em todas as vezes em que saíra com Annie.
- Esse tipo de coisa acontece freqüentemente?
- Desculpe. - Harriet abaixou um pouco a cabeça e corou. Em parte, era culpada. Tinha dançado de modo muito provocante. Mas, mesmo que ficasse sentada a noite toda,
os homens olhariam e alguns tentariam se aproximar.
- Precisa de alguém para cuidar de você - Nigel falou. - Há alguém? Aquele artista de quem Joth estava falando?
Ela fez não com a cabeça e ele mal pôde acreditar em sua sorte. Dessa vez, teve coragem para beijá-la, e ela correspondeu plenamente.
Já era bem tarde quando voltaram à Mansão Tudor, mas algumas luzes ainda estavam acesas. Estacionaram o carro e caminharam até a porta principal, carregando as duas
malas dela. Uma coruja piou e Harriet ficou com um pouco de medo. Só se sentiu segura quando entraram na casa.
Estava feliz por passar a noite ali. Gostaria de caminhar pela propriedade de manhã bem cedinho, sozinha. Sem ninguém, nem mesmo Nigel.
- Você acredita em reencarnação? - Diante do espanto de Nigel, continuou: - Talvez eu já tenha vivido antes. Esta é a casa de meus sonhos. - Andou pela sala como
se estivesse flutuando, totalmente relaxada. - Juro, já tive muitos sonhos sobre esta casa.
Nigel observou-a, sorrindo. Sabia que depois disso poderia abraçála, mas então percebeu um papel encostado no telefone. Era um bilhete de sua mãe, dizendo: "Annie
ligou".
Harriet também viu.
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- Recado de Annie?
- Sim.
- Está muito tarde para ligar para ela?
- Tarde demais - ele respondeu, embora freqüentemente ligasse para Annie mais tarde do que nessa hora. Não era a hora que o impedia. Ficara tarde demais para ligar
para Annie desde que vira Harriet novamente.
Harriet se aproximou, colocando os braços ao redor do pescoço dele e acariciando seus cabelos. Era alta, só precisava levantar um pouco a cabeça para olhá-lo nos
olhos.
- Obrigada. Velhos amigos, velhas casas. Sabe, é como estar voltando ao lar.
Nigel ia dizer algo sobre nunca mais se separarem, quando a porta se abriu e sua mãe entrou na sala.
- Seu quarto está pronto, Harriet. Venha.
- Isto não é hotel - Nigel protestou. - Em que quarto você a colocou?
Mas Harriet o apaziguou:
- Eu gostaria de subir logo. Foi um dia cansativo.
Era verdade, estava mais do que com vontade de ir para a cama. Pegou uma de suas malas e Nigel pegou a outra. Sílvia subiu na frente dos dois.
Ela não perguntou aonde eles tinham ido. Não disse nada, e caminharam pelos longos corredores em silêncio, ouvindo apenas o som dos próprios passos e o ranger do
assoalho antigo. Por fim, Sílvia parou e abriu uma porta.
- Por que este quarto? - Nigel perguntou. ,
- É mais arejado. - Entrou, acendeu o abajur ao lado da cama e ficou esperando que o filho colocasse a mala no chão.
Harriet percebeu que ela não deixaria Nigel sozinho ali e disse:
- Bem, boa noite.
Já estava acostumada com mulheres que queriam proteger seus homens dela, mas gostaria que Sílvia fosse menos desconfiada. Seria bom ficar amiga da mãe de Nigel.
O quarto era realmente agradável. Todo pintado de branco, tinha cortinas claras e sólida mobília de madeira escura. A noite estava quente, e a cama, convidativa.
Ela não brincava: essa era realmente a casa de seus sonhos, desde aquela festa de réveillon.
Lembrou-se do pai e seus olhos se encheram de lágrimas.
Estava começando a tirar as roupas da mala, quando bateram à porta. Nigel, ela pensou, e preciso ter tato. Mais um beijo de boanoite, um pouco de carinho, uma promessa
no olhar, e ele irá dormir contente.
Abriu a porta e seu sorriso desapareceu no mesmo instante em que viu Jotham Gaul.

CAPITULO III

Jotham era a última pessoa que ela esperava encontrar na porta de seu quarto, àquela hora da noite.
- A mãe de Nigel está preocupada com você - ele disse.
- E o que tem a ver com isso?
- Como Nigel disse, sou mesmo um membro da família.
- Uma espécie de irmão mais velho? E ele não é grande o suficiente para cuidar de si mesmo?
- Parece que não, quando você está por perto.
- Então, ele gosta de mim. . . E por que não? O que há de errado comigo?
- Nada, à primeira vista. Mas eu não teria nenhum contato maior com você. A não ser em legítima defesa.
- É bom que não tenha mesmo! - Harriet sentou-se na frente da penteadeira e começou a limpar o rímel que havia manchado. Preferia morrer a deixá-lo perceber que
tinha chorado.
- Um rosto e um corpo como os seus significam dinheiro, não? Mas o que vai fazer, quando sua beleza acabar?
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Ela sentiu como se tivesse levado um soco no estômago, mas conseguiu dizer:
- Saia já daqui!
- Imagino que casará com um homem rico, antes que isso aconteça. Só não ponha na cabeça a idéia de que esse homem pode ser Nigel.
Ela continuou virada para o espelho, tirando a maquilagem, até ele sair e fechar a porta. Morria de raiva, principalmente por ter que admitir que ele não estava
totalmente errado. Passou lentamente os dedos pelo rosto. Seria sempre bonita, mas não seria jovem para sempre. Sabia disso, mas evitava pensar no assunto. Especialmente
naquela noite, não estava com cabeça para encarar esse fato.
Como sobreviveria, quando não pudesse mais virar a cabeça dos homens? E não era mais uma herdeira. A fábrica não a sustentaria, e só poderia posar enquanto fosse
jovem. Tinha amigos e homens que diziam amá-la, mas só ela sabia a solidão que sofria quando era feia e sem graça. Certamente, o mesmo aconteceria quando estivesse
velha.
Gostaria de saber onde Nigel estava agora. Depois das palavras de Jotham Gaul, precisava desesperadamente de alguém que lhe desse segurança.
Abriu a porta do quarto e, na porta ao lado, estava Jotham, esperando por ela.
- Procurando alguém? - ele perguntou.
- Estou procurando o banheiro.
- É no fim do corredor.
Ela passou depressa por ele. Agora entendia por que Nigel ficara surpreso com o quarto que a mãe escolhera para ela: era ao lado do de Jotham. No fundo, aquilo
era engraçado. Jotham estava de guarda para mante-la longe de Nigel. O que faria, se ouvisse algo suspeito no quarto ao lado? Entraria ou bateria com força na porta?
Ela riu, ao pensar nisso.
O banheiro era antiquado, mas muito bem conservado. A banheira, enorme, de pezinhos, era de metal, com torneiras douradas em forma de cabeça de leão. Numa prateleira
havia uma porção de sais e óleos para banho. Enquanto estivesse ali, aproveitaria todos esses confortos.
Tomou um longo e relaxante banho e se enrolou numa toalha branca. Pretendia voltar silenciosamente para o quarto, mas, quando
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passou pela porta de Jotham, não resistiu e bateu. Em menos de um segundo, ele atendeu, esfregando os olhos.
A luz do quarto dele estava apagada e isso lhe agradou, porque ela queria acordá-lo. Disse, animada:
- Achei que era melhor avisar que acabei meu banho e estou indo para a cama. Você pode dormir, agora, a menos que esteja de guarda pela noite toda.
- Já cumpri minha parte, já fiz tudo o que me pediram para fazer. - Esfregou novamente os olhos e bocejou. - Eu não o deixaria vê-la com os cabelos nesse estado.
Está horrorosa.
- E você se acha alguma maravilha? Seu rosto só deve ser bonito para sua mãe. Seu único charme é o dinheiro.
- O dinheiro acaba, mas vou dar um jeito para que o meu não acabe. Pretendo ser um velho muito rico e muito sexy. Durma bem.
Fechou a porta na cara dela.
Depois de entrar em seu quarto, Harriet jogou as roupas em cima de uma madeira, deixou a toalha cair e observou-se cuidadosamente no espelho. Queria ter certeza
de que seu fantástico corpo não estava ficando gordo e feio.
O que viu a tranqüilizou. Não havia nada de errado com ela, a não ser a testa franzida. Relaxou e entrou debaixo do cobertor na cama grande e macia.
Não dormiu muito bem. Não se lembrava de ter tido nenhum pesadelo, mas, quando acordou, estava toda espremida num canto da cama, curvada sobre si mesma e com os
punhos cerrados.
A mãe de Nigel estava debruçada sobre ela e perguntou:
- Aceita uma xícara de chá, Harriet?
- Obrigada. Não devia ter-se preocupado. Que horas são? - Levantou o corpo, pegou a xícara e o pires e puxou o lençol sobre o busto.
- O café estará pronto na hora que você quiser - Sílvia disse, olhando com desaprovação os ombros nus de Harriet, que se sentiu tentada a perguntar: "E como a senhora
pensa que Annie dorme? com blusa de gola olímpica?"
O chá estava frio, devia ter sido feito há horas. Harriet não se apressou em descer. Não queria tomar café e gostava de ficar naquele quarto. Vestiu-se lentamente.
Não que levasse muito tempo para decidir
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o que usar; não tinha trazido muitas roupas e todas eram de cores discretas.
Vestiu uma saia justa de jean, com uma blusa de malha azul-céu e sapatos de salto baixo. Para Sílvia, mesmo assim, ela parecia saída de uma foto de revista de moda.
Mas o que fazia isso não era a roupa, mas o brilho dos cabelos, o andar arrogante, o charme dos gestos. Sílvia olhou-a com uma desaprovação que não tentou disfarçar.
Se tivesse sorrido, Harriet sorriria também, e seu sorriso seria autêntico e amigável.
Sílvia Joliffe estava sentada sozinha à mesa da cozinha, com um bule de chá e os jornais do dia à sua frente. Essa era uma de suas horas quietas e despreocupadas
no dia e ela normalmente a aproveitava muito. Costumava beber várias xícaras de chá e ler os jornais. Mas Harriet deixou-a
intranqüila.
Nigel tinha ficado esperando Harriet descer desde cedo. Como ela não aparecia, pediu para levar-lhe uma xícara de chá. Ela não levaria nada, se o filho não tivesse
insistido. Não sabia que o chá estava frio, claro, e Sílvia ficou envergonhada da própria má educação. Também ficou irritada ao ver Nigel ansioso, olhando constantemente
para o relógio, como se não pudesse sair sem dizer bom-dia a Harriet.
Quando não pôde esperar mais, ele pediu:
- Diga a Harriet que eu a encontro na hora do almoço. Mas Sílvia não deu seu recado.
- A comida já está fria, depois de tanto tempo. É melhor eu cozinhar mais para você. - Os dois ovos fritos que estavam no prato pareciam congelados e realmente tiravam
o apetite.
- Não precisa se incomodar, sra. Joliffe. Não como nada no café da manhã. - Não tinha fome há dias. Simplesmente beliscava a comida que lhe serviam e, se estivesse
sozinha, era capaz de não comer nada.
Sílvia jogou a comida desperdiçada na lata do lixo, com uma cara péssima.
- Quer chá?
- Obrigada.
Tomaram chá, levando uma conversa forçada sobre o tempo ou as manchetes do jornal. Não havia nenhuma sinceridade. Tudo soava como uma peça mal encenada e os silêncios
eram cada vez maiores.
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Depois de um tempo, Sílvia perguntou:
- Quais são seus planos para hoje?
Harriet estava pensando que devia ligar para Snelson. Se Nigel estivesse em casa, passaria o resto da manhã passeando com ele. Gostaria de umas horas despreocupadas
ao sol, antes de voltar ao desinteressante mundo dos negócios.
- Onde está Nigel? Sílvia mordeu o lábio.
- Não sei. Acho que foi comprar uma máquina ou resolver um negócio particular. Não diria a Harriet onde o filho tinha ido, nem que voltaria para o almoço. - Jotham
quer vê-la, antes de você sair.
- De novo? Ele estava esperando por mim ontem à noite. A senhora sabia, não é?
- Ah, é? - Sílvia corou.
- Ora, vamos! - Harriet já estava cheia daquilo. - Claro que sabia. Ele me disse para me manter afastada de Nigel, e quem mais, além da senhora, ia pedir a ele que
fizesse isso?
O rubor de Sílvia aumentou. Ela apertou com força a xícara de chá que segurava.
- Eu não esperava que ele fosse tão direto.
- Jotham não foi direto, foi brutal. Conhecendo-o tão bem como o conhece, deveria saber que ele não perde tempo com delicadezas. O recado era este: "Não queremos
você aqui. Caia fora". Não era?
Claro que era, mas ouvi-lo tão diretamente deixou Sílvia confusa. Tentou consertar:
- Eu não esperava que. . . Bem, claro que conversei com ele, sempre conto meus problemas a Joth, e estava preocupada. - Deu um suspiro. - Sim, estava mesmo. Nigel
não pode lhe dar o tipo de vida a que está acostumada. Olhe para você! - Disse isso como se Harriet fosse um ser exótico vindo de outro planeta. - Nunca vai poder
ser a mulher de um fazendeiro.
- Pelo amor de Deus! Só reencontrei um velho amigo. Pode esquecer aquele namoro dos dezessete anos. Já foi há muito tempo. Faça de conta que acabamos de nos conhecer.
Talvez até nos tornemos bons amigos, mas vai levar muito tempo para aparecer a questão de casamento; se é que vai aparecer.
A mãe de Nigel não se tranqüilizou. Continuava estalando os dedos.
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- Ele estava namorando uma moça tão boa. . . Seria terrível se a abandonasse, porque ela é a esposa ideal para ele.
- E eu não? - Harriet perguntou, seca.
- Sabe que não. Você é. . . uma moça para casar com um milionário. Você poderia casar com alguém como Joth.
Harriet começou a rir.
- Prefiro morrer a casar com ele!
Sílvia começou a chorar, e nessa mesma hora Jotham Gaul entrou na cozinha. Usava uma camisa xadrez vermelha e preta, com calça e jaqueta pretas, e parecia maior
do que nunca.
Sílvia agora soluçava, mas ao mesmo tempo tentava sorrir. " - Desculpe. Estou sendo tola.
- Está mesmo - Harriet disse.
Joth olhava para ela com uma expressão de ódio.
- Está tudo bem - ele disse, com doçura, para Sílvia. Harriet ficou com raiva. com aquele "está tudo bem", ele queria dizer: "Não se preocupe com Harriet Brookes,
eu cuido dela".
A mãe de Nigel se animou e sorriu para Joth, como se ele fosse seu segundo filho.
- Sou uma velha tola. Tenho que me apressar; a empregada chega a qualquer momento. - Levantou-se e esbarrou na jarra de leite, derramando tudo na toalha. - Oh, meu
Deus! Já vi que hoje vai ser um dia daqueles.
- É, pelo menos o começo foi muito bom - Harriet disse, com ironia.
Jotham perguntou:
- Quer uma carona para algum lugar?
- Ainda não decidi aonde vou.
Para qualquer lugar que fosse, precisava de transporte. A menos que protelasse todas as decisões para depois dar uma caminhada pela fazenda Tudor.
- Bem, aqui não pode ficar. Sílvia não gosta de seu senso de humor.
Harriet nunca tinha sido mandada embora de uma casa antes e não era hóspede de Jotham Gaul, e sim de Nigel. Por isso, tinha mais do que razão para se sentir muito
ofendida. Mas estava cansada demais para brigar. Levantou-se e disse, calmamente:
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- Me dê cinco minutos para fazer as malas, e então pode me levar até a estação. vou pegar um trem para Londres.
- Oh, não! - Sílvia protestou. - Não pode fazer isso. O que vou dizer a Nigel?
- Pode dizer que pediu que eu fosse embora e que Jotham gentilmente me levou até a estação. Diga-lhe para me ligar, algum dia. vou pegar as coisas e já volto.
Nesse momento, uma mulher apareceu na janela da cozinha e a cumprimentou sorrindo.
- Maisie! - Sílvia exclamou.
Era sua empregada que estava chegando e ela adorava uma fofoca. Se descobrisse o que estava acontecendo ali, toda a cidade saberia no dia seguinte.
- Vamos - Jotham disse. - Podemos ter uma conversinha enquanto você faz as malas.
Oh, por que ela tinha que estar ali? Por que a mãe de Nigel não podia ser mais amigável? Tudo que Harríet queria era ficar um pouco mais naquela casa, com pessoas
que deveriam ser velhos amigos.
- Antes de você começar a fazer suas malas - ele continuou-, é bom que saiba que isso não é uma brincadeira. Sílvia chorando não é nada engraçado.
Ao entrar na cozinha, Jotham devia ter visto Harriet rindo, enquanto Sílvia chorava, interpretando isso mal.
- Eu não estava rindo dela. Estava rindo de algo que ela tinha me dito.
- Ela não achou engraçado.
- Sei que não, mas foi a coisa mais engraçada que já ouvi em anos.
Por um momento, pensou que ele ia agredi-la: deu um passo adiante e se apoiou na parede, prensando-a entre seus braços.
- Sílvia quer que você saia da vida de Nigel.
- Isso eu já descobri.
- Ele se apaixonou perdidamente por você, da última vez. E você parou de responder a suas cartas e nunca atendia seus telefonemas. Nigel ficou com o coração em pedaços,
por sua causa.
Harriet queria responder à altura, mas não seria tola a ponto de provocá-lo mais.
- Bem, sinto muito, mas isso foi há muito tempo.
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- Suas lembranças mostram que você não mudou muito. - Ela se mantinha tensa, grudada na parede para não ter que tocá-lo, e ele continuava impassível. - Esta é a
minha família e não quero vê-los machucados.
- Não pretendo machucar ninguém. Tudo o que queria era ficar um pouco aqui, por que gostaria de ter um lar como esta casa. E você tem sorte de ter uma família, mesmo
que adotada. Eu não tenho ninguém, agora.
Um pouco da dureza desapareceu do rosto dele, que se afastou, deixando-a livre.
- Não gosto de ver Sílvia aborrecida e acho que você não faz nenhum bem a Nigel, mas peço desculpas se estou usando táticas meio violentas.
Ela continuou tensa, olhando para ele, como da primeira vez em que se viram, na festa de réveillon. Jotham Gaul tinha um jeito de olhar que a fazia se sentir uma
tonta. Tentou encará-lo.
- Não que eu acredite que você se intimide com facilidade ele disse, mas não sorriu, porque aquilo não era um elogio.
- Se você quiser, pode intimidar até King Kong. Posso ir agora? Gostaria de ficar aqui por hoje. Tenho que falar com Snelson.
Sabia que ele não faria objeção. A sra. Joliffe tinha entrado em pânico com a idéia de ter que dizer a Nigel que ela havia partido sem ao menos se despedir. No dia
seguinte, provavelmente seria melhor para ela. Harriet também preferia: depois de falar com Snelson sobre negócios, seria bom passar uma última tarde com Nigel.
Ele merecia consideração, especialmente porque esse seria o fim de sua relação.
- Está bem - Joth falou. - Eu levo você.
- Posso pegar um táxi. Você não tem que trabalhar?
- Isto é trabalho: eu quero sua fábrica. - Pelo menos, ninguém podia acusá-lo de ser hipócrita.
- Eu gostaria muito de poder dizer que você não a terá.
No quarto, Harriet pegou um casaco leve e se olhou no espelho; sempre fazia isso quando se sentia deprimida e geralmente levantava seu moral. Começou a escovar os
cabelos com força e depois vestiu o casaco, dando mais uma olhada no espelho.
A mãe de Nigel tinha dito que ela era muito sofisticada para ser mulher de um fazendeiro. Talvez fosse mesmo. Depois de Nigel, tinha
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ficado noiva do filho único de um casal, dono de uma cadeia de hotéis de luxo. Isso aconteceu pouco depois de chegar a Londres. Além de muito rico, o rapaz era bonito
e gentil, mas logo ela lhe devolveu o anel de noivado. Um ano e meio atrás, ficara noiva outra vez, de outro milionário. Durou, entre as idas e vindas, uns seis
meses.
Talvez não fosse do tipo casadouro. Tanto Sílvia quanto Jotham pareciam estar seguros de que ela faria Nigel infeliz. Eles se lembravam da última vez, quando ela
partira, deixando Nigel. No começo, trocavam cartas e se telefonavam dia e noite. Mas logo sua vida em Londres entrou num ritmo tão louco, com tantos compromissos,
desfiles, convites, homens ricos e bonitos caídos por ela, que praticamente se esqueceu de Nigel.
Tinha certeza de que ele a esquecera também, até se encontrarem de novo, dois dias atrás. Agora, estava se apaixonando por ela novamente e podia encorajá-lo, porque
seria agradável e reconfortante. Mas não queria que a mãe dele tivesse uma crise nervosa e que Jotham Gaul decidisse atacá-la como a uma inimiga. Esse preço era
mais do que podia pagar.
Quando saiu do quarto, alguns minutos depois, não viu nem Jotham nem Sílvia. Desceu a escada apreciando a casa. Por que não a deixavam ficar ali só por alguns dias?
Se realmente casasse com um milionário, ia lhe pedir para comprar aquela casa. Riu, ao pensar neste sonho impossível.
. A porta da frente estava entreaberta, deixando passar um raio de sol. Quando saiu, o dia estava tão claro, e o sol tão brilhante, que ficou ofuscada. Teve que
colocar a mão sobre os olhos para fazer sombra, e então viu um carro se aproximando com Jotham na direção. Era um lindo Porsche preto.
- Que bonito. . . - comentou, quando entrou no carro. Passou os longos dedos pelo estofado macio.
- Não precisa me dizer, mas tenho certeza de que pode encontrar alguém que compre um desses para você.
- Engraçado, você dizer isso. Eu estava justamente imaginando se encontraria alguém para me comprar esta casa.
- Acho que não está à venda.
- Sendo assim, o único jeito de consegui-la é casar com Nigel.
- Você pode fazer Nigel de bobo, mas não tanto. Ele não vai casar com você.
Claro que não. Se por acaso a pedisse em casamento, diria não. Nunca tinha sonhado em casar com Nigel, mas não deixaria Jotham Gaul descansado, declarando isso.
Deu um sorriso antipático e ele gozou:
- Acho que você se superestima, boneca.
- Será? - perguntou, enquanto ele ligava o motor do carro. Imagino que não me deixaria dirigir, não é?
- Você dirige bem?
- Muito bem. - Tinha experiência e adorava carros. Seu problema era excesso de velocidade, mas seria muito cuidadosa, se ele a deixasse dirigir.
- Vamos ver como dá a partida.
Trocaram de lugar e ela deu a partida com competência, saindo sem nenhum solavanco, diminuindo a marcha na entrada da estrada, tudo com muita suavidade.
Era um carro incrível de dirigir. Harriet adoraria apertar o acelerador. Era frustrante ter que ficar se controlando. Mas estava numa estrada do campo, e correr
seria uma loucura. A máquina rosnava como um gato e ela estava quase rosnando também.
- É fantástico!
- Que carro você tem?
- Nenhum, no momento. Eu tinha um Stag.
- Por que não tem mais? Vendeu?
Devia ter inventado algum problema mecânico ou dito que tinha se cansado do modelo. Na verdade, não podia estar dirigindo carro nenhum, mas ali era uma cidade pequena
do interior e só dirigiria por alguns minutos. Ninguém sabia de nada e era tão relaxante dirigir aquele carro. . . Era como dançar.
Mas, ao virar numa curva, havia uma perdiz cruzando a estrada calmamente. O caminho estava livre, e Harriet pôde desviar da ave sem maiores problemas. Não havia
perigo, ela controlava o carro, mas poderia ter sido um pedestre, ou uma bicicleta, ou um carro na contramão. Se por acaso se envolvesse em qualquer acidente, estaria
em apuros.
Isso a fez reconhecer que corria um risco estúpido.
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Levou o carro até o acostamento e disse:
- É melhor você dirigir.
- Está se sentindo bem?
- Claro. - Surpreendeu-se ao perceber que tremia e se sentia um pouco tonta.
- Passe para o banco de cá e fique quieta. - Ele abriu a porta para sair e dar a volta. Estendeu a mão para ajudá-la, mas ela fingiu que não viu. Não queria que
a tocasse. Por fim, passou para o banco dos passageiros e se acalmou. Mas ficou quase sem fôlego quando ele colocou a mão em sua testa e pegou seu pulso. Fez um
esforço para normalizar a respiração, porque odiaria que Jotham achasse que a estava deixando perturbada. Ele a olhava com espanto.
Harriet estava pálida e a ponto de desmaiar. Precisava comer algo. Para evitar perguntas, disse:
- É melhor você guiar. Eu não devia estar dirigindo, não tenho licença.
- Sei. - Não parecia surpreso. - Por que não tem?
- Três multas por excesso de velocidade. Ele deu a partida.
- Você tem menos juízo do que uma criança mimada. Aliás, é uma criança mimada.
- Eu sei, foi uma estupidez. Nunca tinha dirigido, depois que perdi a licença. E nunca mais vou dirigir, até tê-la de volta.
- Em meu carro, não vai mesmo - ele resmungou, e ela corou porque sabia que tinha sido irresponsável. O seguro não pagaria nada, se tivesse acontecido um acidente.
- É que seu carro é tão bonito - tentou se desculpar. - E eu só queria. . .
- E, quando você quer uma coisa, não importa mais nada.
Isso era mais ou menos a mesma coisa que Nigel havia dito sobre ele, mas Jotham Gaul nunca fazia coisas tolas.
- Desculpe-me, eu não devia. . .
- Cale-se, boneca. Posso suportar ter que olhar para você, mas não suporto ouvi-la. Você é muito burra.
Se ele dirigisse devagar, ela teria pulado do carro naquela mesma hora. Tinha motivos para estar nervoso, ela havia sido uma irresponsável,
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mas não era burra. No entanto, tudo o que podia fazer naquela hora era engolir a raiva.
Assim que diminuísse a velocidade, saltaria. Podia ir andando ou pegar uma carona. E, quando encontrasse Snelson, diria que vendesse a fábrica para qualquer pessoa,
menos Jotham Gaul.
Harriet ficou olhando pela janela, porque não estava suportando olhar para ele. Ao inferno, ele e seu carro! Mas, realmente, ela não devia ter dirigido. Podia ter
arranjado uma multa muito cara e até mesmo uma prisão. Quando se acalmou um pouco, teve que admitir que tinha sido burra e que saltar do carro só a faria parecer
mais tola ainda.
Ficou quieta, e não falaram mais até Jotham estacionar bem em frente à porta da fábrica. Um carro havia acabado de sair da vaga e Harriet suspirou, desapontada.
Gostaria de vê-lo ficar procurando uma vaga por horas, dando voltas e voltas pela cidade, até se irritar.
- Aposto que isso sempre acontece com você - ela comentou.
- O quê?
- Isso. - Apontou para o carro. - Um lugar fácil para estacionar. Bem, obrigada pela carona. Adeus.
- Também estou indo à fábrica. - Ele trancou sua porta e foi se certificar de que a outra também estava trancada.
- Não vai junto comigo.
- Marquei um encontro com Snelson para nós dois.
Devia ter telefonado quando ela fora apanhar o casaco e pentear os cabelos. Se tivesse forças, daria a ele uma boa resposta. Mas já que tinha de vender a fábrica,
era melhor acabar logo com isso.
Na entrada havia uma pesada porta de ferro, que Harriet tentou abrir e não conseguiu. Jotham se debruçou sobre ela e a abriu com facilidade.
Sou muito fraca, ela pensou. Talvez, no fundo, eu não queira entrar e conversar com Snelson sobre os negócios. Talvez não quisesse abrir a porta. Jotham Gaul atrás
de mim me deixa nervosa.
Entraram no escritório e quatro mulheres os olharam. Harriet estava acostumada com olhares, que iam da admiração à inveja. Mas, dessa vez, não olhavam para ela.
Todas as mulheres estavam sorrindo para Jotham.
O sr. Snelson os cumprimentou calorosamente e os levou até sua
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sala, feliz de ver os dois juntos. Quanto mais rápido Jotham Gaul comprasse a fábrica, melhor para todos, especialmente para Harriet. Por isso, quando Jotham telefonara,
meia hora atrás, ele havia desmarcado todos os compromissos.
- Bem, presumo que esse encontro signifique que vocês já andaram conversando - disse, depois que todos se sentaram.
- Bem, sim - Harriet respondeu. - Certamente estivemos conversando. Tivemos oportunidades de conversar muito, desde que esbarramos um com o outro; mas não de negócios.
Não nos aprofundamos muito nesse tema, não é? Só me lembro de ter dito que preferia botar fogo na fábrica a vendê-la a ele.
Snelson olhou-a com espanto e Jotham disse:
- É muito arriscado, boneca. Isso dá cadeia.
Snelson achou que estavam brincando; afinal, Jotham ria. Então, ? perguntou a Harriet:
- Decidiu vender?
- Sim.
- O sr. Gaul já lhe disse sua oferta?
- Não. Só falou que eu não conseguiria outra melhor. Snelson também achava isso. Começou a explicar por que e Harriet
fez um grande esforço para ouvir. Ele falava em tom monótono, dando um relatório impessoal de números e cifras. Às vezes, mencionava nomes que ela conhecia, homens
que ajudavam nos negócios, os sócios de seu pai, e ela ficou imaginando se eles iriam realmente defender seus interesses, se podia confiar neles. Sentia-se segura
em relação a Snelson e, de qualquer forma, não seria capaz de administrar a fábrica sozinha. Esse era outro sonho impossível; não sabia nada sobre negócios.
- Quer continuar ouvindo os relatórios? - o contador perguntou.
- Não, obrigada.
- Estive no escritório de seu pai ontem - ele disse, abrindo um pacote. - Trouxe isto para você. Ficava na mesa dele.
Entregou-lhe a moldura de prata com o retrato de sua mãe. O rosto na foto aparecia emoldurado pela longa cabeleira. A boca era sensual; os olhos, claros e diretos.
Toda vez que a mãe a olhava, desviava rapidamente o olhar, como se preferisse ver qualquer coisa mais bonita ou interessante. Harriet quase esperava que a foto fizesse
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a mesma coisa agora; nunca tinha encarado a mãe por tanto tempo. Estremeceu e disse:
- Não me lembro muito bem. Não tive muito contato com ela.
- Não contou que não tinha boas recordações da mãe. Como nenhum dos dois homens falasse, pôs a fotografia em cima da mesa e comentou: - Não tenho mais o que fazer
aqui, não é? O senhor poderia entrar em contato com meus advogados e ver se consegue uma oferta melhor do que a do sr. Gaul? Se não conseguir. . .
- Farei isso - prometeu Snelson. Harriet estava pálida.
- Podia me arranjar uma sacola? - pediu. . Poucos minutos depois, ela saía do escritório levando a foto da
mãe em uma sacola de plástico. Entrou num café aconchegante que servia tortas e bolos feitos em casa. Sentou-se ao lado da janela, pediu uma xícara de café e um
bolo de nozes e ficou observando as pessoas passarem. Mas não tinha fome e o bolo não descia pela garganta.
Olhou ao redor, e parecia que ninguém estava sozinho. A fotografia da mãe a fazia se sentir mais sozinha do que nunca. No dia seguinte mesmo voltaria para Londres,
para seu apartamento e para Anthony. Não, para Anthony não voltaria. Mas tinha vários amigos que ficariam felizes por vê-la.
Deixou o bolo quase inteiro no prato, comprou um sanduíche de queijo e um doce e pagou a conta. Pensou em caminhar até a beira do rio e comer lá, mas antes resolveu
passear pela rua principal. Nas lojas de roupas não viu nada que a atraísse. Olhou nos antiquários, mas também não encontrou nada. A maioria das pessoas que passavam
olhava para ela, mas mal as notava.
Por fim, chegou à margem do rio. Fazia anos que não ia ali, mas nada havia mudado. Havia o ancoradouro, com os botes e as pequenas lanchas paradas, os visitantes
passeando, as crianças brincando na grama, sempre vigiadas pelas jovens mães, os aposentados sentados nos bancos, conversando e tomando sol.
O dia estava agradável e Harriet caminhou um pouco antes de sentar-se em um banco embaixo de um velho carvalho. Pegou o doce e o sanduíche que tinha comprado e atirou
tudo aos patos. De repente, sentiu-se cansada; sua cabeça rodava.
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Se ficasse realmente doente, quem cuidaria dela? Seus amigos, é claro, mas agora não precisava de ninguém que cuidasse dela, porque sabia muito bem qual era seu
problema. Quase não havia comido, desde a morte do pai, e isso era mais uma tolice de sua parte.
Deitou-se na grama e fechou os olhos, o calor do sol fazendo-a se sentir relaxada e sonolenta. Um cochilo seria bom. Depois, pegaria um táxi. Poderia ir para a casa
dos Snelson, seria bem recebida. Mas, como suas malas estavam na mansão Tudor e ia embora no dia seguinte, era mais fácil voltar para lá.
Acordou quando sentiu que alguém tinha se sentado a seu lado. Uma moça bem jovem, segurando uma cesta de compras numa das mãos e um carrinho com um bebê na outra,
sorriu para ela.
- Alo!
- Alo!
- Tempo bom, não acha?
- Sim.
- Fui à cidade fazer compras - a moça continuou - e parei aqui para descansar um pouco. - Estava corada e suando de cansaço. Começou a conversar sobre o preço das
coisas e quanto tinha custado aquela cesta com mantimentos, e Harriet concordava movendo a cabeça, sem parar de admirar o bebê adormecido.
- Ele é lindo. Como se chama?
- William - disse a mãe, orgulhosa. - E é um moleque. Olhou para Harriet. - Será que eu. . . eu a conheço? Quero dizer, acho que já a vi em algum lugar.
- Minhas fotos já apareceram em algumas revistas. A moça sorriu:
- Ah, sim, é claro!
Quis saber tudo sobre a vida glamourosa de uma modelo e Harriet tentou satisfazer sua curiosidade. Ficaram ali muito tempo.
- É tarde, tenho que ir - disse Harriet, olhando o relógio.
- Eu também. Meu marido está esperando por mim. Adorei conhecê-la. Você tem muita sorte.
- É?
- com sua beleza, você é a moça mais sortuda que conheço. Harriet riu e brincou:
- Você devia me ver logo que acordo!
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A jovem sorriu e foi embora, carregando seu bebê e suas compras. Harriet caminhou de volta à cidade. A garota é que era a sortuda, pensou. Tinha um filho lindo e
um marido esperando por ela. Mas não havia ninguém, em lugar nenhum, esperando pela belíssima Harriet.

CAPITULO IV

Ninguém respondeu quando Harriet tocou a campainha da mansão Tudor. O táxi tinha ido embora e parecia não haver ninguém na parte da frente da casa. Provavelmente
estavam nos fundos, pensou. Caminhou até a porta de frás e bateu. Ninguém atendeu. Experimentou a maçaneta e viu que estava aberta.
- Tem alguém em casa? - Foi até a sala e, subindo a escada, chamou de novo: - Alo! Alguém em casa?
Ninguém respondeu. Abriu a porta de seu quarto. Engraçado, pensar nele como "seu quarto, já que no dia seguinte ela o estaria deixando. Mas agora era como voltar
para casa.
Tinha caminhado silenciosamente pelo corredor; Jotham podia estar no quarto, e, como sempre, ele era a última pessoa que gostaria de encontrar. Colocou o casaco
na cadeira e tirou os sapatos. Ainda estava cansada. Se a moça e seu bebê não tivessem aparecido, com certeza teria tirado uma soneca. Ia fazer isso agora.
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Dormiu por quase três horas. Nigel já devia ter chegado em casa. Foi ao banheiro refazer a maquilagem e pentear os cabelos. Sorriu ao se ver no espelho.
- Você está com uma aparência ótima - disse alto.
Mas quando virou a cabeça sentiu a luz do quarto tremer. Estava tonta e precisava comer alguma coisa. Não sentia propriamente fome, mas sabia que ficaria doente
se não se alimentasse.
Descendo a escada, chamou novamente por alguém e Nigel veio em sua direção com os braços abertos.
- Olá! Onde esteve? De onde veio?
- Eu estava lá em cima, no quarto.
- Não sabíamos que estava aqui. Telefonei para um monte de gente, à sua procura. Mamãe pensou que você tivesse voltado para Londres.
- E deixado minhas malas? - Sorriu. - vou amanhã.
Nigel parecia pronto a discutir essa decisão, mas adiou o assunto e acompanhou-a até a sala de jantar. Jotham e Sílvia já estavam sentados, e a mesa, servida. O
jantar era um assado, com muito molho. Ao ver a carne, Harriet teve um princípio de enjoo. Preferia um prato de sopa e uma salada. Sentou-se ao lado de Nigel e perguntou
a Jotham:
- Tudo ajeitado?
- Ainda não. Mas espero ajeitar as coisas em pouco tempo.
- Você já comeu? - Nigel quis saber. - Aposto que não comeu nada o dia inteiro.
Parecia preocupado com ela, porem a mãe o interrompeu:
- Joth me disse que o sr. Snelson lhe deu a fotografia de sua mãe. Lembro-me dela muito bem; era muito bonita.
- Posso ver a foto? - Nigel pediu. Harriet engasgou:
- Minha nossa! Esqueci perto do rio...
- Você é mesmo distraída.
Jotham não perdeu a oportunidade de criticá-la, e a sra. Joliffe completou:
- Como pôde fazer uma coisa dessas? Uma foto que seu pai guardou com tanto carinho!
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Harriet tentou explicar:
- Eu. . . não estava me sentindo muito bem. Tomei um táxi e vim para casa. Logo que cheguei, adormeci.
- Não acha melhor voltar até o lugar em que a deixou e verificar se a foto ainda está lá? - Jotham sugeriu.
- É, acho que sim.
Sua cabeça parecia girar. Na verdade, não acreditava que o pacote estivesse no mesmo lugar em que ela o havia deixado há mais de quatro horas. A moldura de prata
era valiosa. Se alguém abrisse o envelope dentro da sacola plástica, certamente levaria o retrato embora. Contudo, a polícia costuma advertir para não mexer em pacotes
abandonados, pois podem ser perigosos, conter uma bomba ou coisa parecida. . . Então, havia ainda uma chance.
- Quer que eu lhe dê uma carona? - Nigel se ofereceu. Ela tentou se levantar, mas a sala girou à sua volta e caiu de novo na cadeira, ouvindo Nigel chamar seu nome,
fraco e distante.
- Harriet.. .
As coisas pareciam estar clareando novamente. Ela agora estava sentada em uma grande poltrona da sala de estar, com a cabeça entre os joelhos. Percebeu que devia
ter desmaiado. Nunca tinha desmaiado antes, e detestou a sensação. Sentia o suor pegajoso na testa e o enjoo no estômago. Nigel a acariciou e murmurou alguma coisa
a respeito de chamar um médico.
- Não é necessário, já estou bem. Tenho me comportado feito uma criança. Desde que papai morreu, não como direito. Hoje foi a gota d'água.
Nigel continuou acariciando seus cabelos e ela sorriu, porque precisava ser confortada. Até Sílvia parecia preocupada.
Mas Jotham Gaul, não. Permaneceu onde estava, suspeitando que aquele desmaio tinha sido proposital, para despertar simpatia.
- Está precisando de alguém que cuide de você e também de umas boas férias - Nigel disse.
Harriet se sentia um pouco melhor.
- Para onde eu poderia ir?
Ficou surpresa, quando Nigel respondeu, imediatamente:
- Que tal uma ilha na costa da Sicília? Joth acabou de comprar uma vila incrível numa dessas ilhas e vamos para lá no próximo
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jnês, para participar de uma festa - que o pessoal de lá faz todo ano. Você pode vir conosco.
Ela nem olhou para Joth, mas seu silêncio não era nada encorajador.
- É uma idéia maravilhosa - disse, continuando a falar com Nigel- - Mas o que Joth vai dizer sobre isso?
Ele não a queria em sua vila, não a queria em nenhum lugar perto dele. Sua resposta foi polida e fria:
- Seja minha convidada.
Harriet pensou em dizer: "não, muito obrigada", mas sentiu um prazer todo especial em contrariá-lo. Essas férias lhe dariam a oportunidade de conviver um pouco com
Nigel. Além disso, não tinha mesmo nenhum compromisso marcado.
- Obrigada, eu adoraria ir. - Gostou de ver a expressão contrariada de Joth.
- E Annie? - Sílvia perguntou.
- Annie provavelmente vai - disse Joth. Ele também achava que Annie era a mulher perfeita para Nigel. - Você não vai procurar a foto de sua mãe? - perguntou de repente.
Mas Nigel protestou.
- Tenha um pouco de paciência! Não vê que ela precisa comer algo antes?
- Mas ela sempre teve essa cara de faminta! - Jotham respondeu.
- Bem, eu vou servi-la de carne - disse Sílvia.
- Não vou conseguir comer carne agora. . .
- Não está com tanta fome assim? - Jotham perguntou, sarcástico. - Que tal um copo de leite bem quente, então?
- Não, muito obrigada. Preferiria um pouco de sopa, se não for incómodo, é claro.
- Pode andar até a mesa? - Jotham se meteu de novo. - Ou quer ser servida aqui?
Harriet pôs-se de pé, ao ouvir a oferta irónica. Nigel foi para a copa com a mãe. Harriet ainda a ouviu perguntar o que aconteceria com ela e Annie viajando juntas.
Jotham não desgrudava os olhos dela. E se desmaiasse de novo? Talvez ele a amparasse. Ficou toda arrepiada, só de pensar. Mas o mais provável era que a deixasse
cair no chão.
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Acompanhou-o até a mesa e Joth sentou-se. Ela se perguntou por que ele ocupava a cabeceira, sendo apenas um hóspede na mansão Tudor. Nigel é que devia estar sentado
ali.
- Pare de me olhar com essa cara! - ele disse, subitamente. Vai acabar cheia de rugas!
Ela não respondeu. Apenas pegou um pão e comeu um pedaço. Sabia que não podia se descuidar da alimentação; afinal, tinha pela frente um inimigo que sempre a provocava.
- Obrigada pelo convite. - Continuou a conversa, com tranqüilidade dessa vez, como quem não quer nada. - Umas férias na praia são justamente o que eu estou precisando.
- Você acha, é?
Nesse momento, Nigel voltou da cozinha com a sopa, sentando-se na frente dela. A sopa era de batata e cebola, dessas caseiras, que ficam deliciosas com um pedaço
de pão e um pouco de vinho. Ép
- Sua comida está esfriando, Nigel - a mãe alertou.
Mas ele não lhe deu atenção, virando-se e falando com Harriet:
- Acho melhor eu mesmo procurar essa fotografia. Onde você a deixou exatamente?
Harriet protestou, dizendo que ele devia terminar de comer. Mas, quanto mais protestava, mais ansioso ele ficava para fazer algo por ela.
- Depois da ponte, perto do lugar onde ficam os barcos - ela disse por fim. - Sentei embaixo do carvalho e coloquei o pacote no chão. Talvez ainda esteja por lá.
- Se não estiver, dou uma olhada em volta. Não se preocupe, ninguém vai querer levar uma simples foto de uma pessoa desconhecida.
- Sim, mas estava numa moldura de prata muito valiosa.
- É, uma moldura de prata diminui muito as chances de encontrar a foto, mas temos que tentar assim mesmo. - Ele beijou Harriet na testa, cheio de confiança.
- Você está sendo muito gentil em se preocupar com isso. Assim que ele saiu, Sílvia pegou o prato de Nigel e disse que
o colocaria no forno. Estava danada. Saiu da sala batendo a porta.
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Harriet não tinha intenção de interromper o jantar ou de incomodar ninguém. Desejou não ter esquecido o pacote.
- Está se sentindo um pouco melhor? - Joth perguntou, de uma maneira incrivelmente gentil.
- Acho que sim, obrigada.
- Acha que ele vai encontrar o retrato?
- Não tenho a mínima idéia. - Não entendia o porquê de tanta amabilidade.
- Você se importaria se ele não encontrasse a foto?
- É claro que me importaria. - Mas pensou que se isso fosse verdade não a teria perdido.
Jotham não estava comendo, apenas a observava com seu olhar inflexível.
- Bem, na verdade. . . minha mãe nunca se importou realmente comigo. Quando eu era menor, era feia e gorda, e ela me achava um verdadeiro estorvo. - Antes, você
era pobre, não era?
- Sim - ele respondeu.
- Tinha muitos amigos então?
- Alguns.
- Até que teve sorte! Quando eu era pequena, não tinha amigos. E o que era pior: toda vez que minha mãe olhava para mim, parecia se aborrecer. Aqho que não tive
a intenção de esquecer a foto, mas um psicólogo talvez pense diferente. Para ser sincera, se Nigel a encontrar, é muito provável que eu não a pendure na parede.
As recordações dela não me trazem alegria nenhuma. Isso responde a suas perguntas?
- Sim, totalmente. - Depois de um momento, ele continuou:
- Posso fazer outra?
- Sim, por que não?
- Você desmaiou de verdade, ou foi só para provocar compreensão de nossa parte?
- Não preciso da compreensão de vocês. Ninguém ficou mais surpreso do que eu com o desmaio, mesmo que você acredite que foi premeditado,
- É, confesso que fiquei sem saber o que pensar, mas, de qualquer modo, não acredito que tenha sido por falta de alimentação. Por acaso não está grávida?
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- Por acaso não estou grávida? Que pergunta idiota - Teve vontade de atirar o prato nele, mas apenas piscou os olhos e arriscou:
- Você por acaso não está pensando isso porque Nigel está sendo gentil comigo?
- Confesso que cheguei a pensar na possibilidade.
- Você em certas horas é tão romântico. . . Mas vou lhe dizer uma coisa que talvez o surpreenda: passava longe de mim a idéia de casar, até que você e a mãe dele
começaram a falar nisso. Não estou particularmente interessada num marido, porque posso encontrar um na hora que quiser. Mas estou gostando cada vez mais de Nigel
e me sinto inclinada a casar com ele. E foi você quem colocou essa idéia na minha cabeça. Acabou cometendo um erro, ao achar que Nigel não devia casar comigo. Tenho
até que agradecer o amável convite que me fez de visitar sua ilha, onde Nigel e eu poderemos nos conhecer de verdade. . .
- É, imaginei que casamento fosse a última coisa que passasse pela sua cabeça. Mas não se entusiasme tanto. Aposto que ele vai desistir de você, quando descobrir
o que existe por trás de seu lindo rostinho. . .
Harriet sorriu.
- Ah, aí é que você se engana. Sou toda linda. Já me viu de biquini? Será que Annie é tão bonita assim?
Ele apenas sorriu, mas ela não sustentou seu olhar. Teve vontade de se cobrir toda, como se estivesse completamente nua.
- Acho que ninguém devia avisar os tubarões que você está chegando ... - ele disse.
A volta de Sílvia interrompeu a conversa. Daí em diante, fez-se um silêncio desconfortável. Sílvia sentou-se novamente, deixando claro que se sentia incomodada com
a presença de Harriet. Quando achava que ia ficar livre dela, Nigel vinha com essa idéia maluca de passarem as férias juntos. Joth não poderia retirar o convite,
mas certamente ia dar um jeito de fazer algo para que Annie não fosse humilhada e Nigel voltasse a ter juízo. Joth sempre era capaz de fazer algum milagre; Sílvia
confiava nele cegamente.
- Sinto muito pelo que aconteceu. Me sinto culpada por ter feito Nigel sair assim, sem nem terminar de comer - Harriet tentou se desculpar.
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- Eu também - a velha respondeu, com frieza.
- Passei o resto da manhã em Upper Camden. Linda vila! Depois fui até um café chamado Cobweb.
- Pensei que você não tinha comido nada - a mãe de Nigel insinuou.
Harriet teve de se explicar:
- Não comi mesmo. Pedi um sanduíche, mas acabei não comendo.
- Quer mais sopa? - Sílvia ofereceu, de má vontade.
Harriet recusou a sopa, mas aceitou uma maçã de sobremesa. Tirou a casca com uma faca e comeu devagar.
Joth e Sílvia passaram a conversar como se Harriet não estivesse ali, de propósito, para deixá-la constrangida. Mas ela fingiu que não acontecia nada, limitando-se
a ouvir o que falavam.
Eles a estavam tratando tão mal e sendo tão rudes, que chegou a pensar em se jogar nos braços de Nigel, logo que ele entrasse em casa. Mas desistiu da idéia; não
queria que as coisas corressem assim tão rápido. O melhor era manter a calma e sorrir.
Mas Nigel chegou com uma cara tão séria que ela viu logo que sua busca não tinha sido feliz.
- Não faz mal - Harriet disse, impulsivamente. - Não tem importância, Nigel. Você tentou.
Ele estava frustrado e aborrecido.
- Nenhum sinal do envelope. Procurei por toda parte e não vi nada. Telefonei para a polícia, mas ninguém tinha entregado um envelope com uma foto, muito menos a
sacola com o pacote intacto, moldura e tudo. De qualquer jeito, me pediram para telefonar mais tarde ou mesmo amanhã.
Quando terminou de falar, sentou-se ao lado da mãe.
- Obrigada, de qualquer maneira. Não tem tanta importância assim. Tenho outras fotos dela. - O que era mentira, mas não podia dizer isso a Nigel. Pelo menos, não
agora. Mais tarde, talvez. Mesmo porque Joth provavelmente lhe contaria, assim que tivesse uma chance. Afinal, ela havia dito a ele o que sentia pela mãe. Por que
teria outras fotos suas?
- Seu jantar não parece muito apetitoso, agora - Sílvia disse, pondo o prato de Nigel na mesa.
- Para mim, até que está muito gostoso. - Sorriu para
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Harriet enquanto cortava a carne. - Joth lhe contou a respeito da vila?
Se ele imaginava que Joth ia perder seu precioso tempo entretendo-a, estava muito enganado.
- Não. Só me contou que existem tubarões por perto.
- Muito raramente, pelo que sei. - Nigel parecia ansioso de não deixar que ela se sentisse amedrontada. - Aliás, o que vejo lá são golfinhos.
- Que lindo! Adoro golfinhos!
- Você gosta de nadar? As praias são lindas e ótimas para se mergulhar.
- Adoro nadar também!
- Então, tenho certeza de que vai se dar muito bem. As águas são tão límpidas que a gente enxerga o fundo. A areia é fininha e branca. Tudo muito bonito! E a vila
é uma beleza, não é mesmo, Joth?
O outro apenas balançou a cabeça, e Nigel continuou:
- É uma maravilha! com varandas, redes e uma vista de fazer inveja. Sempre pertenceu à mesma família, não é?
Joth balançou a cabeça novamente.
- Mas parece que eles estavam passando por um aperto e tiveram que vender. Joth comprou-a no verão passado.
- Uma vila de uma família falida no verão passado, uma fábrica falida agora. . . e o que mais? Vai trazê-las à vida novamente? Harriet murmurou.
- A idéia é exatamente essa - Joth respondeu.
- Acho que ele está pensando em transformar a ilha num ponto de atração turística - Nigel disse.
- Um investimento lucrativo, é claro - Harriet ironizou.
- Como adivinhou? - Joth ignorou a ironia.
- É um lugar incrível, mesmo. Parece outro mundo. Ótimo para descansar de verdade. - Nigel dirigiu-se a Harriet: - Piccola Licata é o nome da ilha. Você conhece
a Sicília?
Ela respondeu que sim. Nunca havia estado lá, mas sabia onde ficava.
- Bem, Piccola Licata fica no golfo de Gela, a cerca de vinte quilómetros da costa. Pegamos um avião até Palermo e fazemos o resto do trajeto de catrro.
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- Quando iremos?
- No próximo dia 15. Você vai poder ir? - Parecia ansioso por sua resposta.
- Acho que sim. Preciso ir a Londres, resolver algumas coisas, mas no dia 15 já estarei livre.
- Não tem nenhum compromisso? - Este era Joth, é claro. Não tem que posar para nenhuma foto?
- Até o momento, não.
- Quer dizer então que a dama aqui já está de férias?
xx- Até as próximas semanas, mais ou menos. vou cuidar de alguns negócios que papai deixou; isso também é trabalho.
- E quais são seus planos para as férias?
Evidentemente, era uma provocação. Ela já lhe havia dito que pretendia aproveitar aqueles dias para conhecer melhor Nigel. Mas Harriet se saiu muito bem:
- Não acho bom planejar as coisas com muita antecedência. Nunca se sabe o que pode acontecer. As coisas mudaram muito, para mim, nas últimas duas semanas.
Tinha perdido seu pai, mas talvez tivesse econtrado Nigel. Esperava ter encontrado o homem por quem acabaria se apaixonando. Precisava de amor, precisava de um homem
em quem pudesse confiar.
- Nisso, tem razão - Joth a interrompeu. - É impossível determinar o futuro. . .
Quando Nigel acabou de comer, eles foram para a sala ao lado continuar a conversa perto da lareira. Joth contou mais a respeito da ilha, da festa tradicional que
os habitantes preparavam todo ano, da história da vila e da família que morava lá antes de comprá-la. Falava cheio de entusiasmo de seus planos futuros, da quadra
de ténis e da sauna que queria construir. Qualquer um que chegasse àquela hora acreditaria sinceramente que estava muito contente porque Harriet ia passar as férias
com eles. Só ela sabia que Joth não parava de falar para impedir que ela e Nigel dessem um jeito de ficar a sós.
A antipatia que nascera entre eles desde o momento em que se conheceram agora já tinha se transformado em uma guerra. Ela queria realmente passar essas férias numa
praia e conhecer melhor Nigel, mas, ao mesmo tempo, queria se impor perante Joth. Ele e
Nigel estavam falando do templo romano que havia na ilha, e ficou fascinada.
- Mal posso esperar para ver.
- Você vai passar umas férias inesquecíveis! - Nigel disse. Isso eu lhe garanto!
- Sim, vamos fazer o possível para que aproveite o máximo. Harriet desconfiou do sorriso com que Joth disse isso.

CAPITULO V

Harriet chegou bem a Londres. Foi até o apartamento do pai, logo depois de ter deixado sua bagagem em casa. Poderia ter convidado uma amiga para ir com ela, mas
achou melhor ir sozinha; não sabia como reagiria. Não tinha estado lá depois da morte do pai e, se tivesse que chorar, preferia que isso acontecesse sem a presença
de ninguém.
O apartamento era muito confortável e bem localizado, com uma bela vista para o Regents Park. Pensou com um certo pesar que teria que vendê-lo, mas não fazia sentido
ficar com dois apartamentos. com o dinheiro da venda, pagaria algumas dívidas e faria algum investimento. Antes de vender, teria que separar as coisas do pai.
Para sua surpresa, o apartamento estava todo arrumado: roupas nos armários, livros e revistas nas estantes, sapatos engraxados. Harriet pensou que a faxineira caprichara
para que tudo estivesse pronto para a volta de Henry Brookes. Separou algumas fotografias da família, duas da mãe, uma do pai e uma dela mesma, tirada cerca de um
ano
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atrás, e guardou-as na bolsa. Procurou uma mala grande o suficiente para que pudesse levar alguns papéis; nada de correspondências antigas. Henry não era de guardar
muita coisa. Uma ou outra carta pessoal ela queimou sem nem mesmo ler, e separou algumas contas atrasadas. Pegou alguns quadros, um porta-cigarros de prata que ele
sempre usava, algumas roupas. A mobília também ia ser vendida. Quando terminou a arrumação, já era noite. Sentou-se por um momento na escuridão. Ia visitar alguns
amigos que a confortariam, mas o que desejava mesmo, naquela noite, era alguém em quem pudesse confiar de verdade, alguém que a protegesse.
Estava habituada a ir e voltar da casa do pai sozinha, sempre tinha sido assim. Mas não nesse dia. Agora precisava de alguém, de um ombro para chorar, alguém a quem
confessar todas suas dúvidas e anseios e que não visse apenas sua beleza exterior.
Talvez, algum dia, Nigel pudesse ser essa pessoa toda especial. Isso, se Jotham Gaul lhe desse chance. Só de pensar em Gaul, prendeu as lágrimas e ficou de pé imediatamente.
Queria pensar em Nigel, pois a lembrança dele lhe trazia algum conforto. Mas, sempre que pensava nele, acabava pensando em Gaul também, e não era nada agradável.
Dorothy McGill e o marido Sam viviam na parte de cima da pequena galeria de arte de que Harriet era sócia, bem próxima a Twickenham Green. As pinturas e esculturas
que costumavam expor e vender eram de artistas razoavelmente conhecidos e modernos. A
atual mostra era de um americano, Jackson Pollock, que pintava seus quadros
borrifando tinta nas telas. O quadro que ficava na vitrine era uma mistura de amarelo, roxo, vermelho e preto, apenas manchas. Quando Harriet desceu do táxi e viu
aquilo, a primeira coisa em que pensou foi que Jotham Gaul seria capaz de usar uma camisa naquelas cores.
Dorothy era roliça e muito bonita, morena de cabelos longos e cheia de energia. Harriet chegou bem na hora do jantar e sem avisar. Apesar disso, a amiga sorriu
de satisfação, ao vê-la. Sempre que aparecia, Harriet dormia no quarto de hóspedes e ajudava nas vendas da galeria.
-. Quando voltou?
- Hoje mesmo. Estou vindo do apartamento de papai.
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- Foi lá sozinha? Por- que não me avisou? Eu teria ido com você.
- Não se preocupe, fui lá só para pegar algumas coisas.
- Mas vamos entrando, Harriet. Deve estar cansada da viagem e da arrumação toda.
- Seja bem-vinda - disse Sam.
Agora que Henry morrera, os dois se sentiam um pouco responsáveis por Harriet, apesar de não serem tão mais velhos nem terem qualquer parentesco. Harriet ficava
feliz por isso.
- Sente-se - ele ofereceu. - Está com fome? Ei, Dorothy, tem mais disso?
"Isso" era uma pizza de mozarela e uma salada. Havia só um pequeno pedaço.
- Não se preocupem - Harriet disse -, vou até a cozinha, e faço um sanduíche.
Procurou por queijo e presunto na geladeira, cortou uma fatia de tomate e passou um pouco de manteiga no pão. Quando voltou, com o sanduíche e um copo de leite,
Dorothy perguntou:
- Ué, e o seu regime?
- Fica pra depois. Ontem cheguei a desmaiar por não me alimentar direito. Além do mais, estou meio esgotada. E falida. A fábrica tem que ser vendida, está cheia
de credores. Tudo o que meu pai me deixou foi isso: dívidas. - Deu uma mordida no sanduíche e olhou para eles, esperando que dissessem algo. Mas apenas se olharam,
surpresos. Imaginavam que Henry Brookes era um homem rico o suficiente para garantir o futuro da única filha, que nunca parecera se preocupar com dinheiro.
- Mas você não está tão quebrada assim. E os contratos de modelo?
- Eu estava pensando em alguma coisa mais regular. Pensei que pudesse conseguir um trabalho na fábrica, mas o sujeito que a comprar não vai me oferecer nada, com
toda certeza.
Dorothy engoliu em seco.
- Se está precisando mesmo de emprego fixo, podemos lhe oferecer um na galeria. Afinal, é uma ótima vendedora.
- Sou mesmo? - Sempre tinha ajudado nas vernissagens, mas só por diversão. Nunca pensara seriamente a respeito.
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- E é ótima também para distribuir as peças na galeria. Lembra da exposição daquele escultor italiano, Agnelli? Ninguém conseguia dispor as esculturas dele de uma
forma agradável. Você conseguiu.
- É mesmo? Nunca pensei que soubesse fazer qualquer coisa, além de posar diante de uma câmara ou desfilar.
- Ora, Harriet! - disseram os dois, quase em coro. Mesmo assim, ela achou que Dorothy estava apenas sendo gentil em lhe oferecer um emprego.
- Por enquanto, não quero me comprometer, Dorothy. vou viajar daqui a duas semanas para uma ilha no sul da Itália. vou com um rapaz que encontrei no enterro de meu
pai e que já conhecia há algum tempo. Não vamos só nós dois, é claro, mas muita coisa depende de nossa convivência lá... Quero dizer, talvez não volte para morar
em Londres. . .
- Casamento à vista? - Sam brincou.
- Que coisa boa, Harriet! - disse Dorothy, sincera.
. - Isso ainda é confidencial, mas, se ele me pedir em casamento, acho que aceito.
Poderia casar com ele, sim. Se Jotham Gaul não estragasse tudo e Nigel não desistisse dela para ficar com Annie não-sei-do-quê.
- Ele é rico? - perguntou Dorothy.
- Não. Tem uma adorável mansão antiga, bem conservada, e algumas terras. Cria ovelhas e planta. Digamos que é um fazendeiro próspero, mas não é rico.
Nigel telefonava toda noite, e eles conversavam sobre o que tinham feito durante o dia. Principalmente sobre o que ele havia feito. Harriet gostava de saber o que
se passava na mansão. Nigel falava mais da falta que sentia dela. Também sentia muita vontade de vê-lo, quase tão grande como a que ele dizia sentir.
Encontraram-se todos no aeroporto de Heathrow, em Londres. Nigel já tinha dito a ela que não ficariam mesmo a sós, porque já havia combinado a viagem com Annie muito
tempo atrás.
Annie, pelo que Harriet entendeu, tinha feito pé firme de ir à ilha, mesmo sabendo que o rapaz levaria a nova namorada. Das duas, uma: ou era muito corajosa, ou
seu caso com Nigel era menos sério do
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que a mãe dele imaginava. Harriet teve esperança de que a outra não estivesse tão apaixonada e não se magoasse.
Nigel já esperava, quando ela chegou. Abraçou-a e olhou-a extasiado, como se ela tivesse saído de um sonho.
- Você está fantástica!
Harriet usava calça e jaqueta de algodão cor de pêssego, e uma camiseta bem decotada por dentro; sapatos de pano tipo ténis, brincos de argola e uma bolsa de lona.
Mas chamava tanta atenção, que parecia vestida de ouro ou prata. Nigel sentia um evidente orgulho disso.
Levou-a na direção de um homem e de duas moças que tomavam café, ele, Alistair Wilson, um arquiteto que ia estudar algumas das reformas que Joth queria fazer na
vila de Piccola Licata; as duas moças, atraentes, eram Annie e Eriça. Annie tinha cabelos suavemente ondulados, não era bonita, mas tinha um sorriso doce e luminoso.
Quando disse "Olá", Harriet compreendeu por que a mãe de Nigel pensava ter encontrado a nora ideal.
Já Eriça parecia muito desagradável. Era bem atraente, mas não devia ter gostado de ver que Harriet era ainda mais do que ela. Eriça era mulher de Alistair Wilson,
um homem de seus trinta e poucos anos, cabelos pretos e um bigodinho fino, franco e sorridente.
Nenhum sinal de Jotham. Harriet havia endurecido o coração para poder encontrá-lo novamente. Depois de cumprimentar todo mundo e trocar algumas palavras, perguntou:
- E Jotham?
- Ele vai nos encontrar na ilha, direto de Milão. Passou a última semana lá - disse Nigel, que não havia mencionado o fato pelo telefone.
- Ah, sei. . . - Deu um largo sorriso de alívio.
Então, não teria que agüentá-lo colado à sua nuca durante os três dias de viagem até o golfo de Licata.
- Você não gosta de Jotham? - perguntou Eriça, com inocência fingida.
- É uma longa história - Harriet desconversou, sorrindo.
A viagem foi agradável. Passaram a noite em Palermo e cruzaram a Sicília de carro. Alistair guiou a maior parte do tempo.
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Harriet nunca ficava sozinha com Nigel e conversava pouco. Às vezes, riam juntos, mas ela preferia ficar a sós com seus pensamentos. Nigel a admirava com os olhos
a maior parte do tempo e Alistair também dava suas olhadas, quando Eriça não estava vendo.
Sentia-se muito tensa desde a morte do pai e aproveitava para relaxar. Era quase um tempo de convalescença. Por isso, também não fazia esforço algum para se incorporar
ao grupo. Achava, portanto, meio ridículo que Nigel ise apaixonasse por ela cada vez mais. Tudo o que tinham compartilhado eram as poltronas no avião, os assentos
no carro e as refeições no hotel de Palermo.
Durante a viagem, Annie se comportou irrepreensivelmente. Se estava com ciúmes, não o demonstrou.
Um barco de pesca esperava para levá-los a Piccola Licata. A ilha brilhava no meio do mar. Um vulcão, dito extinto, cercado de limoeiros, laranjeiras e oliveiras,
aparecia do lado que viam da ilha. Harriet tirou os óculos escuros para ver melhor.
A ilha parecia cada vez mais bonita, à medida que se aproximavam. Suas praias eram brancas, contornadas pela linha escura das rochas.
- Logo estaremos lá e você poderá tomar uma ducha e descansar. Foi uma viagem cansativa, não acha?
Não estava cansada, mas com muito calor. Até o vento era quente. Uma ducha seria adorável. Ou talvez pudessem mergulhar naquelas águas profundamente verdes...
- Vamos nadar. O que acha, Nigel?
- Gostoso, mas não há piscina.
- É, estou vendo - disse Harriet, com ironia. Ele não sabia que era uma ótima nadadora. Na certa, pensava que só seria capaz de dar algumas braçadas na piscina.
- Posso ver Jotham! - gritou Eriça, olhando para a ilha de binóculo. - Ele está esperando por nós no ancoradouro. - O binóculo passou de mão em mão. Primeiro, Annie;
depois, Harriet.
- Onde fica a vila? - perguntou ela.
- Na praia, à direita de Joth, no alto - respondeu Nigel.
Ela o veria logo. Achou a vila pelo binóculo. Era uma construção branca, longa e térrea, com portas amarelas e telhado vermelho. Conseguiu ver a varanda, vasos coloridos
com plantas. Depois focalizou a praia e viu Joth.
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Havia outro homem com ele, mais magro e baixo, e bem moreno. Os dois usavam camisas de tecido grosseiro, conversavam e riam.
- Acabou? - Eriça perguntou.
Harriet tinha ficado com o binóculo por muito tempo.
- Desculpe, me distraí com a beleza da ilha. A vila pareceu interessante. Quem é o outro homem no ancoradouro?
- Pensei que você tivesse olhado a vila.
Como eu gostaria que você fosse Annie, pensou Harriet. Não teria escrúpulos de competir com você, mas detesto a idéia de magoar Annie.
- Como eu disse, a vila parece interessante. - Virou-se para Nigel e repetiu a pergunta: - Quem é o outro homem?
- Paolo, filho de Piero e Elena, o casal que cuida de tudo na vila.
Harriet achou que poderia gostar do lugar, com suas laranjeiras e limoeiros em flor e a praia branca. Mas seus olhos vagavam inquietos em direção ao pier de Jotham
Gaul. A calma tinha acabado. Um sentimento que parecia um calor na boca do estômago a incomodava. Sua pele reagia à proximidade de Gaul como se ele tivesse eletricidade.
Coçou o braço, olhou para o céu e pensou: sou definitivamente alérgica a ele.
O barco atracou e todos começaram a saltar e jogar as bagagens no cais. Todos, inclusive os dois pescadores que os tinha trazido. Joth estava dando as boas-vindas.
Tanto Eriça quanto Annie pularam em seus braços. Ele as beijou e continuou abraçado a elas enquanto cumprimentava os homens.
Paolo olhava para todos. Era mais velho do que Harriet imaginara, pele muito escura, cabelos crespos bem curtos. Saudou Harriet, sorridente.
Joth parecia ainda maior e mais rude. Usava uma camisa rasgada e aberta no peito, sandálias e calça com manchas e remendos. Tinha a aparência de um vadio de praia,
exceto por todos estarem à sua volta como se fosse um rei.
Por cima de todas as cabeças, seus olhos se encontraram com os de Harriet.
- Meu Deus! Você aqui?!
Claro que ele não tinha se esquecido de que ela iria. Só estava
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querendo dizer aos outros o quanto era sem importância para ele.
Meu Deus, que sujeito insuportável!
- Imaculada como sempre - ele acrescentou, debochado.
- Está pretendendo derreter meu coração com tantos elogios?
- perguntou, cínica. - Que lugar simpático você escolheu para
viver. . .
- Nem sempre - ele disse, aproximando-se.
Eriça, Annie e os outros foram andando na frente. Harriet ficou aborrecida por não ter conseguido fugir dele e acompanhar o grupo. Não conseguia andar. Permaneceu
imóvel e olhou para ele através dos óculos escuros e grandes.
Quando ele estava suficientemente perto para encostar nela, Harriet começou a tentar controlar a respiração acelerada. Sorrindo, Jotham tirou os óculos dela. Nunca
poderia esperar que ousasse tocá-la.
- Ah, sim, é você... disse, recolocando os óculos.
Harriet fechou os olhos. Ele sabe que tenho medo dele, pensou, e sentiu frio naquele dia quentíssimo.
Estavam pegando as bagagens- Era preciso cruzar a praia e subir alguns degraus de rocha. Harriet supôs que os homens carregariam tudo. Andou um pouco, levando sua
bolsa, e ouviu Jotham chamar.
- Ei, não suba de mãos vazias!
Virou-se e pegou uma maleta que ele estava segurando.
- Não sei se já avisaram mas aqui ninguém fica sem fazer nada
- disse Joth.
- Por mim, tudo bem.
Carregar a mala na praia era fácil; difícil era subir os degraus, e realmente duro, chegar até a vila. Qualquer peso era um suicídio, naquele calor, e o humor de
Harriet piorou ao ver Eriça de mãos vazias. A ela, Jotham não tinha chamado de volta.
Nigel, com uma mala em cada mão, ia um pouco atrás de Eriça, prevenindo-a dos perigos do caminho.
Chegando à vila, ainda tinham que subir uma escada de madeira que levava à varanda. Havia sido reformada recentemente e a madeira nova brilhava, contrastando com
todo o resto da casa. A parede branca e as portas e janelas amarelas estavam com a pintura descascada e
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desbotada. No entanto, a varanda era encantadora, com vasos de plantas por todo lado e algumas jardineiras cheias de flores lindas. A casa estava fechada e Harriet
estava doida para entrar. Morria de curiosidade de vê-la por dentro.
Não se decepcionou. Entrou em um hall muito amplo, com um piso de cerâmica que devia ter quinhentos anos. Apaixonou-se pela casa à primeira vista. Certamente já
tinha sido uma casa muito bonita e, com um certo trato, voltaria a ser. Não seria necessária uma reforma grande, pois era sólida. Ainda sobrava algo de uma linda
mobília. Harriet deu uma volta e retornou ao hall. De lá saía uma escada de madeira, com dois leões esculpidos no final do corrimão, no andar de cima; os leões seguravam
brasões de família. Examinou-os de perto; depois olhou para Jotham e disse:
- Suponho que este não é seu brasão. Ele sorriu, irónico.
- Se fosse, teria alguma coisa de sinistro. Sou bastardo. Harriet viu que os outros conversavam com um casal de velhos
morenos. Os dois diziam-se contentes pela chegada de todos, por vê-los mais uma vez. Perguntou, baixinho:
- Piero e Elena? Joth confirmou.
A mulher estava vestida de preto da cabeça aos pés. Usava um véu negro e argolas de ouro nas orelhas. Harriet calculou que deveria ter setenta anos. O homem parecia
ter raízes no chão, como uma velha árvore, mas via-se que era ágil, ainda ativo e bem-humorado.
- Paolo também trabalha aqui?
- Cuida das ovelhas. São os únicos empregados da vila. Agora estava claro o motivo por que cada um tinha que cuidar
de si; a casa era muito grande. Harriet seguiu Joth para que ele a apresentasse.
Elena era uma senhora discreta, mas seus olhos brilhavam de curiosidade ao olhar para Harriet. De quem seria aquela moça avulsa no meio dos casais?, eles se perguntaram.
Ele avisou que os quartos estavam prontos. Harriet captou o olhar triste de Annie. Será que ela e Nigel dormiram juntos da outra vez?
Jotham sugeriu que levassem as malas para cima.
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Piero pegou a bagagem de Harriet e Elena a conduziu até o quarto. Era um corredor, com portas regularmente distribuídas, que dava de frente para a escada. Seu quarto
era o último. Piero colocou as malas e saiu. Elena ficou esperando para ver se Harriet queria mais alguma coisa.
Havia um grande jarro azul com água fresca, dentro de uma bacia de louça. Harriet estava encantada. A mobília era linda: cama, armário, penteadeira e até uma escrivaninha.
- Que ótimo quarto! Adorei! - Elena sorriu e ela decidiu perguntar, em tom casual: - Onde é o quarto de Gaul?
com um olhar malicioso, a velha apontou para a porta mais próxima.
Não a surpreendia que Jotham ficasse tão perto. Depois que Elena saiu, Harriet foi até a janela. Havia uma varanda, mas teria preferido a vista para o mar. A paisagem
era estranha, dali, dominada pelo vulcão. Abriu a janela e ficou tentando distinguir os cheiros: laranja, oliveiras, sal... Nem uma brisa soprava, nenhum passarinho
cantava; tudo estava imóvel e silencioso, criando um clima meio amedrontador. Mesmo que estivesse extinto há muito tempo, como diziam, tinha se a impressão de que
algo primitivo e poderoso poderia despertar furiosamente o sono do vulcão.
Se isso acontecer, pensou Harriet, espero que eu perceba logo. Não duvidaria que Jotham me deixasse aqui.
Tirou a roupa e tomou um rápido banho de chuveiro. Depois, passou bronzeador, colocou o biquini e uma camisa azul. No fim das férias, estaria moreníssima. . . Nos
últimos tempos estivera um pouco pálida, mas agora ficava cada vez mais saudável e morena.
Foi a última a descer. Nigel esperava por ela no hall e os outros estavam na cozinha. Desculpou-se:
- Demorei muito?
- Você está maravilhosa. Resplandecente como uma deusa de ouro.
- Ê o óleo que me faz brilhar. Ah, sinto cheiro de comida. . . Havia sopa de peixe, pastéis de queijo,-frutas, queijo de leite de
cabra e vinhos locais.
Antigamente, Elena só trabalhava na cozinha. Depois do declínio da fortuna dos Raffaele, passou a ser zeladora da vila, e Piero
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continuou a cuidar dos jardins. A maioria dos empregados deixou a casa ou morreu. Só os dois e seu filho Paolo ficaram.
Ali era o lar deles. Para onde iriam? Não havia lugar na casinha de Paolo. Durante quase dois anos, depois que a condessa morreu, a vila ficou vazia e foram eles
que a mantiveram viva, sem nada receber. Os dois temiam a vinda de um novo proprietário, mas nunca falavam disso, nem mesmo entre si. Foi quando Jotham Gaul chegou;
sorrindo gentilmente, conversando com eles, tratando-os bem melhor do que o último representante dos Raffaele, um homem ríspido que só tinha pisado na ilha uma ou
duas vezes.
Havia boatos de que outras casas seriam construídas, mas o sorriso de Jotham fez com que Elena se sentisse segura:
- Louvada seja a Virgem Santíssima! Ele é um bom homem disse a Piero. Elena era uma mulher sensível; Piero nunca a tinha visto errar.
Os visitantes começaram a chegar, e eles se sentiam felizes. Mantinham a casa alegre e os tratavam com o mesmo respeito devotado ao signore. No início, Elena chocara-se
com as regras de Jotham de que cada hóspede precisava arrumar seu quarto, lavar, limpar. Afinal, Piero e ela estavam recebendo salários novamente. Mas depois admitiu
que talvez fosse realmente muito trabalho para os dois. E, afinal, os hóspedes se divertiam, fazendo as tarefas em grupo. Jotham tinha lhe dito que depois contrataria
uma nova equipe de trabalho e ela seria a governanta.
Eriça e Annie planejavam o cardápio, fazendo uma lista de mantimentos a serem trazidos de barco, quando Harriet sentou-se à mesa. Tomou sua sopa em silêncio, até
que Eriça perguntou:
- Sabe cozinhar bem?
- Não, mas aposto que você sabe.
- Cozinheira classe A! - disse Alistair, fazendo Eriça inchar de orgulho.
- E Annie faz uma das melhores comidas que já provei - Jotham disse, fazendo a garota sorrir.
Harriet apreciou o fato de Annie precisar de alguém para falar de seus dons, mas seria aborrecido se Jotham continuasse a aproveitar qualquer oportunidade para elogiar
a outra e inferiorizá-la. Disse, agressiva:
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- E você comeu poucas coisas boas na vida, não é? Já está chegando a idade de lamentar o tempo perdido. . .
Jotham apenas sorriu, mas Eriça e Annie protestaram. Harriet avisou:
- Bem, não contem comigo na cozinha. Não sei fazer um ovo. Não era verdade. Seria capaz de fazer qualquer coisa que fosse
preciso, mas não cozinhava bem e não queria ser um bom alvo para as críticas ferinas de Jotham.
- O que você sabe fazer? - Jotham perguntou. Foi Nigel quem, vaidosamente, respondeu:
- Ser maravilhosa. Uma garota bonita como Harriet não precisa saber fazer mais nada.
Um pesado silêncio caiu. Idiota sem tato!, pensou ela, furiosa. Eriça a estava odiando, Annie perdera o sorriso. E não era elogio dizer que ela não passava de um
enfeite. Disse, rapidamente:
- A maior parte da beleza é maquilagem. Truques de cosméticos. Se vocês não precisam de outra cozinheira, que tal uma arrumadeira? Posso arrumar as roupas, lavar
os pratos... É só dizer o que querem que eu faça. Claro que de meu quarto eu cuido.
- Isso nunca foi posto em questão - Jotham comentou, em tom de gozação.
Quando acabaram de almoçar, desceram para a praia, deitaram na areia prateada, tomando banho de sol. A água parecia fresca, sob o céu ardente, e Harriet já tinha
resolvido nadar, quando Eriça se levantou e sugeriu a mesma coisa. Virou-se para Harriet:
- Pelo menos, sabe nadar, não é? .
- Sei.
- Está vendo aquela rocha? - Havia muitas rochas na baía e Eriça estava apontando para a maior, a uns cem metros dali. - Pode chegar até lá?
- Acho que sim.
- Corra, então! - Eriça falou, e saiu correndo, seguida de Alistair e Annie. Nigel deu a mão a Harriet e entrou com ela nas suaves ondas. Depois de algumas braçadas,
ela percebeu que poderia vencê-lo na corrida, e aos demais também.
Era uma boa nadadora, mas, se ganhasse essa corrida, os outros iam antipatizar ainda mais com ela. Nadou calmamente. Alcançaram
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a rocha e subiram, as garotas sacudindo os cabelos molhados. Jotham tinha ficado na praia. Se tivesse vindo, Harriet se esforçaria para ganhar a corrida. Talvez
ele não nadasse bem, e seria divertido fazê-lo bufar para tentar passá-la. Perguntou:
- Jotham não vai se juntar a nós?
Responderam que sim e começaram a brincar, nadando como golfinhos na pequena baía.
Embaixo do pier, a água devia ser sempre funda, e seria um bom lugar para mergulhar. Harriet queria saber se havia rochas submersas, mas deixou para perguntar em
outra hora: com Nigel tomando conta dela como se fosse um bebê, não seria possível falar em mergulhar.
- Você está bem? Não está cansada de ficar aqui? - ele perguntou.
- Está tudo bem. . . - Harriet já começava a se irritar com aquela paparicação. - Chega de fazer onda! - Sorriu, para amenizar.
- Quando estiver cansada de ficar aqui, vou boiar, não se preocupe mais.
Continuou sentada na rocha maior, enquanto os outros se espalhavam pelas rochas menores. O sol estava fervendo, e, assim que se viu sozinha, mergulhou, nadando calmamente
mais para o fundo. Depois de algum tempo, escutou que alguém a chamava. Levantou os braços e gritou:
- Aqui!
Torceu para que Nigel não fosse até lá. Estava gostoso ficar sozinha, queria apenas continuar boiando, levantando de vez em quando a cabeça para olhar a costa, as
árvores, o vulcão.
Nigel não veio, e depois de algum tempo Harriet procurou por ele. Estava sentado na rocha maior, falando com Joth. Teve certeza de que conversavam sobre ela.
Não podia ouvi-los, mas a conversa parecia séria. Pegou uma corrente que a levou mais perto. Queria interromper qualquer coisa que Jotham estivesse fazendo. Ou ela
teria que ir lá, ou fazer com que Nigel viesse. Sorriu, de repente: podia fingir que se afogava, e Nigel viria para salvá-la. Uma corrente começou a puxá-la. Levantou
os dois braços e gritou:
- Socorro! A correnteza está me levando!
Respirou fundo e mergulhou. Quando começou a subir, sentiu
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que alguém a agarrava. Ao chegarem à superfície, viu que era Jotham.
- Você?!
- Os afogados não escolKem os salvadores - respondeu ele, puxando-a até a praia.
Harriet percebeu que, se resistisse, ele não hesitaria em ser estúpido. Sabia que ela não tinha se afogado, mas a levava meio submersa, como se estivesse desmaiada.
Era de propósito. Queria fazê-la confessar ter enganado Nigel.
Quando ele parou de nadar e a levantou, Harriet saiu cambaleando. Tinha que impedir que ele tivesse certeza do truque, para continuar contando com a simpatia de
Nigel.
Deixou-se carregar e sentiu quando a depositaram na areia. Estava de olhos fechados e escutou Jotham dizer em seu ouvido:
- Se não se levantar rapidinho, vou lhe dar um beijo inesquecível ...
- Saia de cima de mim! - Harriet gritou, já de olhos abertos.
- Não estou em cima de você. Não ainda. O que acha do beijo? Harriet gritou tão alto que os outros se viraram para ver o que
acontecia. Nigel a chamou e todos saíram do mar. Nigel foi o primeiro a chegar. Ajoelhou-se a seu lado.
- Você está bem?
- Acho que sim. Os outros, com exceção de Alistair, pareciam menos impressionados, Annie mordia o lábio e Eriça perguntou:
- O que aconteceu? Pensei que soubesse nadar.
Harriet tinha engolido muita água e sentia-se enjoada. Nigel foi buscar uma toalha. Jotham disse:
- Não vá longe da próxima vez.
Todos perceberam, pelo sorriso dele, que ela havia fingido, e começaram a rir. Nigel chegou com a toalha e enrolou Harriet. - vou embora. Sinto como se tivesse engolido
metade da baía.
- Você não parece elegante como de costume - Joth comentou.
- Escapei por pouco.
- Pare com isso. Não estava correndo perigo nenhum.
- Não perigo de afogamento. Estava brincando! Mas quase ganhei o beijo de minha vida, de Joth, e não consigo pensar numa forma pior de morrer!
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Todos riram, incluindo Jotham. Se riam corri ela ou dela, nunca saberia.
- vou indo, agora.
- O jantar é às sete. Você está bem? - perguntou Nigel.
- Estaria melhor se ele não tivesse me "salvado". Quase me afoga de verdade - Harriet respondeu, num súbito acesso de raiva.
- Sinto muito, mas você parecia em apuros e Joth nada melhor do que eu. Quando percebeu que fingia, bem. . .
- Se eu realmente estivesse me afogando, ele me deixaria morrer. Estavam no alto dos degraus de pedra, e ela parou um pouco antes
de subir a escada de madeira que levava à varanda.
- Qual é seu quarto? - Nigel perguntou.
- O que fica ao lado do de Jotham.
Sentou-se em uma cadeira na varanda para descansar. Nigel disse a ela que Annie tinha ficado no mesmo quarto da outra vez, mas que ele agora tinha um quarto seu,
no alto da escada.
- E você está perto de Joth?
- Como em sua casa. Sua mãe me pôs ali para me afastar de você e para que Jotham pudesse me vigiar melhor. Tanto sua mãe quanto ele estão do lado de Annie, não é?
- Gostam muito dela.
- Já que Jotham gosta tanto, por que não casa com ela?
- Jotham não é do tipo que casa. As garotas passam por sua vida. . . - Nigel respondeu, rindo. - Acho que minha mãe pensou que você podia tentar conquistá-lo. Não
sei por que, pois ela sabe que ele não se envolve realmente com ninguém.
- Bem, ela mesma me sugeriu que casasse com ele, mas qualquer cego pode perceber que eu e Jotham Gaul nunca seremos bons amigos. - Levantou-se, pegou a toalha. -
Por favor, mostre-me onde ficam os chuveiros aqui fora.
Nigel beijou-a no ombro.
- E depois. . .
- Depois, vou descansar, e quero realmente dizer isto: descansar. Tomou um banho rápido e não encontrou ninguém no caminho
de seu quarto. Não ouvia vozes; por isso, pensou que todos ainda estavam na praia. Trancou a porta do quarto e começou a secar os cabelos. Jotham tinha dito que
não estava elegante; pois então, ia descer mais bonita do que qualquer uma de suas amantes.
Quantas teria tido? Não que se importasse com isso. Se estava se arrumando para alguém, era para Nigel. Ouviu uma batida na porta, desligou o secador e ouviu a voz
de Nigel:
- Harriet, sou eu.
Já que tinha dito que ia descansar, se não fizesse nenhum barulho, ele pensaria que dormia. Isso não o magoaria. Queria esperar até estar apaixonada por ele. Ficou
quieta, esperando que fosse embora.

CAPITULO VI

Harriet ficou no quarto até a hora do jantar. Desceu então para a sala. Não tinha planejado uma entrada de efeito, apesar de vestida de maneira atraente, como sempre.
Estava com um vestido de voai branco, preso nos ombros e na cintura, com aberturas laterais; usava uma pulseira dourada, presa no alto do braço, brincos grandes
e sandálias sem salto.
Os outros já estavam lá embaixo. Quando ela apareceu no alto da escada, viraram-se para olhá-la. Agüentou firme a inspeção, acostumada a olhares insistentes. Continuou
descendo calmamente, mas, ao chegar no meio da escada, Jotham deu início a uma irónica rodada de aplausos.
- Que entrada magnífica!
- Estou contente que tenha apreciado. Não se acham passarelas assim perfeitas com facilidade. Sua escada é incrível.. .
- Disponha dela quando quiser... Nigel disse, solene:
- Você parece uma deusa, hoje mais do que nunca. - Havia
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mesmo alguma coisa de grego ou romano no vestido dela, mas o elogio lhe pareceu excessivo. Sabia que isso constrangia Annie.
- Ou uma escrava - Jotham acrescentou.
Harriet quase lhe agradeceu a possibilidade de quebrar aquele constrangimento.
- É melhor você não provocar, já que está distribuindo tarefas. Por falar em tarefas, quem fez o jantar?
Tinha sido Elena, e estava ótimo. Comeram na varanda, enquanto as estrelas apareciam e a Lua ia cada vez mais alta. Na baía, os barcos passavam como estrelas na
água.
Harriet sentou-se, silenciosa. Não queria estragar aquela sensação de paz que pairava.. Bebeu seu vinho, comeu, escutando os outros falarem de uma festa local à
padroeira, daí a dois dias. Seria no pequeno templo romano no sopé do vulcão. Os pescadores do continente costumavam trazer as famílias e namoradas, bebidas e comidas,
e todos da ilha participavam. Sempre havia música e dança e uma disputa de arremesso de peso. Jotham, que era o único que já tinha ido a uma, disse que a festa era
ótima.
Harriet gostou da idéia e ficou intrigada com as ruínas romanas. Queria descobrir onde ficavam. Havia muita coisa para explorar na ilha.
- Vamos entrar? - Jotham sugeriu, quando acabaram de comer. A porta aberta mostrava uma sala aconchegante e bem iluminada. As explorações podiam esperar até o dia
seguinte. Annie bocejava e Eriça disse que ia dormir.
Os homens ainda ficaram algum tempo lá embaixo, e as três moças subiram. O quarto de Eriça era o primeiro. Entrou sem dizer nada; Annie gritou-lhe um boa-noite,
Harriet despediu-se falando para a porta fechada. Annie sorriu.
- Eu tinha ciúme dela - disse -, na última vez que viemos para cá, porque é mais bonita
do que eu. Agora, ela é que está com ciúme de você. Acho que você nunca invejou
ninguém, não é?
- Poucas pessoas. Mas a aparência não é tudo para alguém ser feliz. - Impulsivamente, perguntou: - Gosta muito de Nigel? Gostaria de ter mordido a língua para não
perguntar nada.
- Muito - Annie respondeu, parando na porta de seu quarto. Pensei que íamos ficar noivos na festa. Você gosta dele?
- Gosto.
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- Bem, ele está maluco por você - Annie comentou, com inesperado humor. - Não sei o que estou fazendo aqui. Não teria vindo, se Joth não insistisse tanto. Teria
sido muito melhor não vir; assim, não ine magoaria tanto.
Entrou no quarto e fechou a porta.
Então, Annie tinha vindo por insistência de Jotham? E que história era aquela de ficar noiva na festa? Ninguém lhe havia dito nada.
Tendo Annie, Eriça e Jotham contra ela, seria difícil ficar sozinha muito tempo com Nigel, Harriet pensou. A idéia de conhecê-lo melhor e refletir sobre seus próprios
sentimentos parecia irrealizável, naquele clima de competição e inimizade. Eriça continuaria disputando o tempo todo e Annie parecia sofrer cada vez mais. Tudo ficaria
ainda pior, se Jotham não parasse de hostilizá-la. Perguntava-se se conhecer Nigel valeria todo aquele desgaste. Bem, sentia-se bastante atraída por ele e, apaixonado
como ele estava, acabaria encontrando uma saída. Ela não tomaria a iniciativa.
Ainda estava quente. Mesmo depois de tirar a roupa e molhar o rosto e os braços, sentia calor. Não conseguiu se cobrir e deitou pensando no mar.
Imaginou-se boiando de novo, mergulhando lentamente, e lembrouse de Joth agarrando-a sob as ondas e levando-a para a superfície. Ele a teria salvado, se estivesse
se afogando. Tinha sido o único a entender seu grito.
Mudou de posição e pensou como seria bom um ar condicionado.
Acordou com a sensação de que alguém a sacudia. Sentou-se na cama e olhou em volta do quarto escuro. Sentiu uma vibração, como se estivesse em cima de um metro.
Um tremor de terra? O vulcão? Quem garantia que estava mesmo extinto? Haveria um barco para fugir?
Pulou da cama e vestiu um quimono verde. Abriu a janela e foi até o terraço, examinar o vulcão. Pequenas nuvens acumulavam-se no topo, talvez fumaça.
Nenhuma luz acesa na casa, todos dormiam. Ninguém teria sentido o tremor? Tudo estava quieto, com exceção de uma leve brisa que remexia as folhas lá fora. Mas ela
não havia sonhado. Tinha certeza de que acordara com o tremor. Precisava falar com alguém; senão, não conseguiria dormir.
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Foi até a varanda, que tandem dava para o quarto de Joth, e espiou pela porta entreaberta.
- Ei! - Levantou um pouco a voz e disse: - com licença.
Ele se sentou na cama. Harriet limpou a garganta apertada pelo medo e murmurou:
- Sou eu, Harriet.
- Estou vendo. . . Acho que voce errou de quarto!
- Não sentiu um tremor ha pouco? Minha cama tremeu. Tem certeza de que essa coisa está extinta?
- Ah... Bem, não foi aqui, deve ter sido o ruído de algum motor por aí, não se preocupe. O meao está extinto desde a época dos romanos.
Estava tão calmo, que Harriet acreditou. Mesmo assim, perguntou:
- Tem certeza de que não vai acontecer?
- Está extinto, garanto. Sinto muito que você tenha se assustado. Importuna, pensou. Sustos histéricos. -
- Desculpe acordar você, mas ninguém me preveniu disso.
Virou-se para o vulcão. Parecia calmo, como uma grande montanha cinzenta, e as nuvens
eram nuvens, não fumaça. Foi até a varanda, ficando lá, debruçada na grade.
Joth se aproximou, vestido com um roupão.
- Não tinha visto o barco e não estava certa de que você me chamaria, se fosse necessário
fugir - Harriet confessou.
- Por que acha que eu a Abandonaria, depois de salvá-la de um afogamento?
- Depois de quase ter me afogado, você quer dizer. - Sorriu, olhando para ele. - Sabia que eu estava brincando, não é?
- Não. Mas se tivesse parado para pensar, teria percebido. Estava uma noite clara e ela
pensou ver até a expressão de seus olhos, que a observavam. - Esse é um
de seus truques, hein? A frágil mocinha se afogando, desmaiando.
- Pareço uma frágil mocinha?
- Não disse que você era; Qisse que joga assim, quando interessa.
- Hoje, estava brincando, mas não fingi, quando desmaiei na mansão Tudor. Foi a primeira Vez que desmaiei, mas nunca tinha perdido meu pai antes.
- Sinto muito, Harriet.
- Eu o amava muito, você abe.
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Por que tinha dito isso? Não queria a amizade de Joth.
- E foi por isso que se interessou por Nigel? Está procurando segurança?
Harriet não queria que ele começasse a investigar sua vida: Falou, séria:
- Disse a você que gostaria de viver na mansão Tudor. - Ficaram num silêncio desconfortável, perto da verdade. Seus sentimentos para com Nigel estavam ligados àquela
casa; àquela festa de ano-novo, quando tudo tinha começado, quando o pai se orgulhara dela pela primeira vez.
- Mas gosta dele?
- Não se meta! Quem disse que eu e Nigel não fomos feitos um para o outro?
Ele olhou para ela durante um tempo que lhe pareceu infinito e disse:
- Pobre Annie! Não terá muita chance.
- Você está triste por ela, não é?
- Claro que estou. É uma grande garota, e o homem com quem esperava casar está dormindo com...
- Não comigo!
- Não esta noite - corrigiu Jotham.
- Nenhuma noite.
Houve outro silêncio e ele disse:
- Por que não? Pensei que ele a achasse irresistível. . .
Até certo ponto, tinha sido por falta de oportunidade, pensou Harriet. Mas só até certo ponto, pois poderia estar com ele agora, se tivesse corrido para seu quarto,
em vez de se meter com Jotham Gaul.
Disse, levianamente:
- Talvez eu esteja resistindo um pouco. Nigel tem boas maneiras, espera ser chamado. Nunca bateria à porta do quarto de uma dama. . .
- Não olhe para mim - ele interrompeu, com indignação fingida.
- Não ando por aí, batendo em portas. Não preciso fazer isso, elas me chegam pela janela. . .
- E aí descobrem que estão no quarto errado.
- Você não pode conquistar todos.
- Ouvi por aí que é você que conquista quase todas.
- E eu ouvi que é você que faz isso.
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Riram. Uma brisa levantou o robe de Harriet, deixando à mostra suas lindas pernas.
O que estou fazendo aqui, pensou, quase nua, conversando com Jotham Gaul? Virou-se na direção de seu quarto.
- Bem, boa noite. Mantenha nosso vulcão quieto.
- Farei isso por você.
Alguma coisa no timbre da voz dele fez com que ela hesitasse e olhasse para trás. Mas Joth não disse mais nada. Ela entrou no quarto e fechou a janela. Deitou-se,
pensativa.
Não devia ter ficado lá fora mais de quinze minutos, conversando com ele. Medo, raiva, risadas, em um espaço de tempo tão curto. . . O que viria depois? Imagine
se Joth se aproximasse dela quando estava com medo! Ficaria assustada, claro, e furiosa. Mas então, enquanto riam, ele poderia ter segurado sua mão, que ela continuaria
a sorrir. . . Sonolenta, ainda tentava descobrir por que tinha tido a impressão de que ele não a queria lá. Se ela não tivesse se despedido, quanto tempo ainda ficariam?
O que mais deveria ter sido dito? Ou, feito.
Tornou a pensar nele, quando acordou. Ficou algum tempo deitada. Depois foi-até a varanda e assegurou-se de que nada havia mudado. Não tinham visto o fim do mundo
juntos. Mas ele era um homem surpreendente.
Vestiu-se e desceu. Era cedo e o dia ainda estava fresco. Talvez fosse uma boa hora para excursões. Se alguém lhe explicasse como, poderia ir até as ruínas, ou,
quem sabe, escalar o vulcão para ter certeza de que nada fervia lá dentro.
Na cozinha, encontrou Piero e Annie tomando o café da manhã. Élena descascava pimentões verdes e vermelhos.
- bom dia.
- bom dia. Sirva-se, Harriet - disse Annie.
- Só vocês já acordaram?
- Jotham está por aí - Annie respondeu.
Depois que acabaram seu café, Annie e Elena começaram a fazer a lista do que tinham que comprar para a comida da festa.
A Vila Raffaele sempre havia patrocinado a festa. Agora que tinha um signore de novo, voltara a seu antigo papel. Já no ano anterior, com carta branca de Jotham,
Elena se encarregara da comida, que foi um dos pontos altos da festa.
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- Mais café? - Annie perguntou. - E talvez Joth queira um pouco mais.
Harriet surpreendeu-se dizendo:
- Quer que eu leve para ele?
- Se você quiser... - Annie pareceu surpresa também. - Acho que está no escritório. A primeira porta à direita.
Assim, lá foi Harriet levando café para o "senhor". Ninguém poderia acusá-la de não estar ajudando. Entrou no salotto, uma espécie de sala de estar, ao lado do hall,
que obviamente tinha acabado de ser reformada. Estava pintada de novo, num tom lindo de creme. As cortinas também eram claras.
Harriet reparou nas belíssimas pinturas; havia uma parede só com originais, um deles de Miro, que certamente valia uma fortuna. No chão, tapetes persas. O retrato
de uma mulher jovem imediatamente chamou sua atenção. Estava pendurado ao lado de uma janela que dava para os limoeiros. Era uma mulher atraente, de cabelos negros
e brilhantes, presos numa trança; usava um colar de pérolas e anéis. Harriet olhou para o quadro e disse:
- Gostaria de saber quem é você.
A porta do fundo do salotto era a do escritório. Harriet bateu.
Jotham disse para entrar e arregalou os olhos quando a viu. Estava atrás de uma grande mesa e de pilhas de papéis, uma à sua direita, outra à esquerda. Entre as
duas pilhas, um manuscrito que ele devia estar lendo.
- Annie mandou isto para você.
- Annie é muito atenciosa. - Joth pegou a xícara.
As pilhas de papéis a fascinavam por alguma razão. Ficou olhando para elas.
- Mais alguma coisa? - ele perguntou.
A ilha parecia tão longe do mundo dos negócios. . . Ela continuou a olhar os papéis e perguntou:
- Aqui tem correio?
- Os barcos de pesca trazem a correspondência. Você quer mandar alguma coisa?
Harriet balançou a cabeça:
- Não particularmente. Apenas me pareceu engraçado que você continuasse a comandar seus negócios daqui. Tem alguma coisa a ver
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com minha fábrica? - Corrigiu depressa, antes que ele o fizesse: Minha fábrica que é praticamente sua?
- Tem.
Claro que era por isso que ela não conseguia desviar o olhar dos papéis; não era mais sua fábrica, mas-ainda se preocupava com ela.
- Você está pagando as contas?
- Estou.
- De quê?
- Equipamentos novos, máquinas, móveis. Harriet perguntou, num impulso: - Como você começou? De onde veio?
- Preocupe-se com quem eu sou agora - ele respondeu, sem levantar os olhos do papel.
- Alguém que está tentando ajudar Annie a ficar com Nigel. Queria fazer com que ele olhasse para ela, mas não conseguiu.
- Entre outras coisas.
- Você dirige uma dúzia de fábricas pela manhã, fica com a tarde livre para dirigir a vida dos outros e chama isso de férias?
- Vá, e divirta-se em outro lugar. - Desta vez, Joth olhou para ela.
Harriet saiu, batendo a porta como uma criança emburrada. Também, não podia realmente esperar que Joth discutisse com ela seus planos para a fábrica, nem que contasse
a história de sua vida. Como ele tinha dito, tudo o que ela precisava saber era que ele estava ali agora.
Não foi direto à cozinha. Andou pelo salotto e parou na frente do retrato da jovem mulher. Estava ali, de pé, quando Nigel chegou e lhe deu um beijo de bom-dia.
Ela olhou para o retrato e perguntou:
- Quem é essa mulher?
- Adelanta, condessa de Raffaele. Joth achou que devia deixar o retrato aí. Afinal, ela morou aqui por oitenta anos. . .
- Eu também não tiraria o retrato; é muito bonito. Mas acho que Joth devia ter pendurado junto os da família dele.
- Joth não tem parentes. Minha mãe e eu somos sua família.
- Como vocês ficaram amigos?
- Mamãe era amiga da mãe dele desde pequena. Ele foi educado pelo avô, ferreiro em Yorkshire. A mãe morreu quando ele era criança,
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sem revelar a ninguém quem era seu pai. Joth costumava passar as férias conosco.
- Vocês não imaginam como isso é importante para as crianças que não têm pais. - Harriet se lembrava muito bem do tempo de escola, em que ficava meses ansiosa por
um convite para passar as férias na casa das amigas. - Ele deve ter tido uma infância triste.
- Acho que sim. - Nigel não parecia completamente certo disso. -- Ele se sustenta desde os dezesseis anos, mas nunca ninguém sentiu pena de Joth. Todos nós sabíamos
que ele ia subir na vida.
- Como chegou aqui? - Harriet olhou para a porta do escritório, onde Jotham estava transformando um negócio falido em algo rendoso. Gostaria de ter feito isso. Se
alguém a tivesse ajudado. . .
- Ele começou cedo, assim que saiu da escola. Abriu uma fábrica de fundição de ferro, utilizando uma velha forja. Deu certo. Tudo que Joth toca dá certo. Uma fábrica
leva a outra e. . . Agora, não trabalha mais com ferro fundido, mas com indústria pesada. Não mudou nada; é exatamente o mesmo desde que o conheci.
- Isso é pena.
Nigel puxou Harriet pelos ombros.
- Eu realmente gostaria que você gostasse dele. Não sei por que vocês dois não conseguem se dar bem.
Nesse momento, Joth entrou na sala.
- Ela está lhe contando o medo que sentiu à noite? Nigel não entendeu nada. . . .
- Que medo?
- O tremor.. . Você não sentiu? Pensei que nosso vulcão tivesse acordado. Olhei para as nuvens, pareciam fumaça - Harriet explicou.
- Não, é realmente seguro. - Nigel riu. - Você confundiu seus tremores com os do vulcão! Mas por que foi ao quarto de Joth?
- Não estava procurando ninguém em particular. Fui até a varanda, e a janela dele estava aberta. Só queria saber se podia voltar para a cama, ou se devia correr
até a praia e fugir de barco.
- Claro - Nigel disse, mas qualquer coisa em seu olhar mostrava que não estava muito convencido.
- Vamos tomar café. - Harriet foi andando na frente de Nigel, devagar, evitando cruzar com Jotham no hall.
- Estava atónita. Não compreendia por que se sentira tão culpada, nem por que seu coração batia tão forte. Não se sentiria mais culpada
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se a acusassem de ter passado a noite com Jotham. Chegou à cozinha exasperada com ele e com ela própria.
Todos estavam lá, agora. Alistair e Eriça passavam mel e geléia nas panquecas, e Annie ainda conversava com Elena, esperando que Nigel voltasse.
Quando entrou na cozinha com o rapaz, Harriet pensou: ela seria melhor para ele. Tem a natureza mais doce do que a minha. Mas sou mais alta e elegante, tenho cabelos
e olhos brilhantes, e ele não consegue ver além da embalagem.
Nesse instante, encontrou o olhar cínico de Jotham, que parecia lhe dizer: "Está começando a perceber que não serve para Nigel, não é?"
Que homem insuportável! Se imaginava que ela ia desistir com facilidade, estava muito enganado.
Pegou no braço de Nigel e perguntou:
- Quer croissant, querido?
Estava indo pegar café para ela, quando Jotham disse:
- Coma alguma coisa, Harriet. Não queremos que desmaie outra vez.
- Desmaiou? - perguntou Eriça,-curiosa. Harriet não explicou nada. Apenas perguntou:
- O que estão pensando em fazer?
Era o dia da festa. Havia apenas trinta pessoas na ilha, mas os pesqueiros trariam mais cinqüenta convidados. Assim que a cozinha estivesse limpa, Elena começaria
a cozinhar. Eriça e Annie a ajudariam.
Os homens estavam indo buscar folhagens para os arranjos. Harriet gostaria de fazer parte de qualquer um dos grupos, e, como não tinha utilidade na cozinha, só lhe
restara ir com os homens.
- Venha e ajude a gente com as folhagens - Nigel disse, antes mesmo de ela propor isso.
- Desculpe, mas não pode ir - cortou Joth. - Só os homens fazem isso, é um antigo costume. Os pescadores não gostariam de vê-la quebrar os hábitos locais.
Poderia ser verdade, mas Harriet notou o espanto nos olhos de Elena ao ouvir aquilo.
- A vila está em festa, hoje - ele continuou -, ficará aberta
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para todos. Por que não dá uma arrumadinha na casa? Elena está muito ocupada.
- Claro, por que não? vou limpar o salotto.
- E o hall de entrada - Joth acrescentou.
- Mas é claro. Você quer que eu raspe o assoalho, não é?
- Boa garota. É exatamente esse o espírito da coisa.
Tanto Harriet quanto Jotham sabiam que ninguém iria raspar aquele assoalho. Nigel, no entanto, não entendeu nada.
- Você não pode raspar o piso.
- Não mesmo, Nigel? Que pena! - Harriet respondeu, agressiva. O rapaz não disse mais nada. Os homens saíram com enxadas e
grandes cestos, e Elena trouxe os ingredientes para cozinhar. Seria divertido ficar na cozinha, e Harriet adoraria ajudar, mas foi até o salotto e começou a esfregar
e limpar. No fundo da sala, parou e hesitou diante da porta do escritório de Joth. Acabou entrando e espanou a cadeira.
Ainda havia papéis na mesa, porém arrumados. Gostaria de procurar os documentos de sua fábrica, mas tinha medo de desfazer a ordem.
Espanar não era um pretexto muito bom; por isso, resolveu sair rápido dali. Não gostaria de ver Jotham com raiva de verdade. O instinto lhe dizia que, se ele se
enfurecesse realmente, ela não teria tempo de fugir.
Acabou de limpar o salotto e foi para o hall. Quando estava no meio do trabalho, parou para almoçar. Entrou na cozinha, onde bolos gelavam, caldas eram preparadas,
farinhas peneiradas. . . Era como a cozinha de um hotel.
Elena sorriu para Harriet e colocou alguns bolinhos de carne em seu prato, mas Eriça e Annie estavam tão hostis que ela preferiu comer sozinha no hall.
Acabou de limpar tudo, muito irritada. Estava cansada e com calor, bastante mal-humorada. Era demais fazer tudo aquilo nas férias! Ainda teria que arrumar sua cama
e dar uma mão na cozinha; nunca tinha se sentido menos festiva. Era provável que no dia seguinte, em vez de participar da festa, ficasse de cama.
Jotham entrou pela porta da frente e ela gritou.
- Não suje o meu chão! Ele andou até ela.
- Eu não teria acreditado. Que brilho!
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Sorriu, e ela percebeu que os homens tinham se divertido, assim como as duas que estavam na cozinha. Ela era a única vítima, com dor nas costas e nos joelhos. Olhou
para as mãos e ele disse:
-Nigel estava certo: você arruinou suas delicadas mãozinhas.
Se ainda tivesse forças, ela teria jogado o balde de água na cabeça dele. Fez o que podia: jogou pano suja em seus pés.
- Mal-humorada!
- Você ainda não viu nada.
- Nem você.
- Estou cheia! vou nadar. É seguro mergulhar das pedras perto do pier?
- É bastante profundo, mas não há perigo, se for uma boa nadadora. Você é?
- Bastante boa para nadar quinze quilómetros até o continente, se tiver mais um dia igual a este. - Foi até a varanda, desceu a escadinha de madeira e as rochas.
Estava cheia de buracos e era fácil despencar dali.
Poderia ter andado até a baía e nadado lá, mas tinha vontade de mergulhar. Tirou a camisa suja, as sandálias, e olhou para a água. Era tão clara que, apesar da profundidade,
dava para ver as conchas e a areia prateada. Levantou os braços e mergulhou como uma bailarina em um pulo perfeito.
Tocou o fundo, sentindo a água acariciante e fria, e subiu lentamente para a superfície. Nadou rápido e depois devagar, brincando feliz como uma criança. Olhou para
cima e viu Jotham no pier. Deu-lhe um aceno amigável e gritou:
- Está uma delícia. Não se preocupe, não vou gritar por socorro, desta vez.
- Vamos até o templo. Quer ir?
- Não há nada para esfregar lá?
- Não.
- Certo, então eu vou.
- Tome seus sapatos.
Harriet saiu do mar, pôs as sandálias e a camisa, que ficou transparente com toda aquela água.
Provavelmente, Joth a tinha seguido até ali porque achava que era uma idiota capaz de se afogar por causa de um mau humor. Mas
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sabia que, se tivesse se metido em problemas, ele mergulharia para salvá-la mais uma vez.
- Ei! Espere por mim!
Joth estava no alto das rochas e parou. Harriet o alcançou e perguntou:
- Teve um bom dia? Conseguiu pegar muitas folhagens?
- Sim, obrigado.
- Bem, acho que o salotto é um crédito para mim também. Ele riu e os espíritos se acalmaram. - Como são essas ruínas?
- São pequenas, há apenas as paredes externas. Mas as colunas ainda estão de pé, em volta de um pátio. É lá que será a festa. O templo é mitraico.
- Ah! Então, era subterrâneo?
- É verdade. - Ele parecia surpreso por ela saber disso. Harriet continuou andando, olhando para trás, por sobre o ombro, para vê-lo.
- Já ouvi falar de Mitra, deus persa dos soldados, senhor da luz. Joth sorria, e ela pensou que talvez achasse que tinha lido aquilo
para impressionar Nigel.
- Acha que sou boba, não é? - Pisou em um degrau solto e escorregou. Jotham, que vinha logo atrás, a segurou. - Um dia vou surpreendê-lo muito.
Queria dizer que um dia provaria ter um cérebro na linda cabecinha. Olhou para seus olhos cinzentos e não conseguiu perceber em que ele pensava. Joth disse, baixinho:
- A surpresa poderia ser mútua.
- Você, me surpreender? - As palavras saíram lentas, e ela não desviava a atenção das mãos dele, que ainda a seguravam.
- Harriet!
Ouviu seu nome como se tivesse vindo de outro planeta. Olhou para a varanda e viu Nigel.
- Harriet! - Gritou mais uma vez, e começou a descer em direção a ela.
- Tudo bem, fique aí. Estou indo.
Ele esperou. Quando ela chegou lá em cima, abraçou-a, mas Harriet não sentiu nada. O toque de Joth ainda a queimava.
- Você está ensopada!
- Estava nadando.
- Vestida?
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- É uma ótima maneira de lavar a roupa! Poupa trabalho.
Nigel arregalou os olhos. Harriet estava brincando, claro, mas ele não tinha muito senso de humor. Olhou para Joth, como pedindo explicações.
- Não a joguei na água, não me olhe com essa cara. Harriet riu.
- Me dê cinco minutos. Não vá ao templo sem mim, por favor. Quando entrou no hall, percebeu que alguém tinha recolhido o
pano molhado que jogara em Joth e levado as vassouras e o balde. O assoalho realmente estava bonito. Não havia desperdiçado seu tempo de faxina.
Voltou em cinco minutos, de roupa trocada. Tinha penteado os cabelos, que secariam ao
sol. Foi com Nigel, Jotham e Annie pelo caminho do templo, sob as oliveiras.
Era uma subida de quinze minutos, e não havia muita coisa para ver no caminho. Antes da queda do Império Romano, quando a ilha era um posto de observação, existiam
torres para olhar o oceano, mas foram destruídas.
O templo resistira melhor. Muitas colunas tinham caído ou estavam quebradas, mas o pátio de pedra continuava intato, e ainda se via a. escada que levava ao subterrâneo.
Havia homens e mulheres no pátio, sentados em mesas, enfeitando os pilares com papéis coloridos e folhagens. Harriet só conhecia Paolo, mas todos sorriram para ela
quando chegou.
Jotham se juntou ao grupo que trabalhava, mas Nigel ficou com Harriet e Annie. Os dois já conheciam o lugar e responderam a algumas perguntas de Harriet. As escavações
não aconteciam o tempo todo, mas um arqueólogo, Alexander McGregor, amigo de Jotham, estava ocupado com uma escavação maior na Sardenha e tinha vindo para a ilha,
ver se encontrava algo. De tempos em tempos, ele voltava e continuava o trabalho. McGregor estaria entre os convidados da festa.
Harriet foi até os degraus que desciam para o subterrâneo. Nigel disse:
- Não há nada aí embaixo!
- Antigamente, devia ser um lugar interessante. Mas agora é só um buraco vazio - Annie comentou.
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O segundo degrau tinha um símbolo talhado na pedra. Harriet exclamou:
- As duas mãos unidas! O símbolo dos mitras! As mãos dos camaradas!
- Exatamente. - Nigel continuou falando das tradições, dos jogos folclóricos. Harriet mal o ouvia, pensando que as fortes colunas tinham caído, construções tinham
ruído e esse símbolo de fidelidade e solidariedade resistira ao tempo.
Viu Jotham rodeado de gente, como sempre, e pensou: confio nele; se eu estiver em perigo, posso esperar por sua mão para me ajudar.
Seus pensamentos a assustaram. Como poderia um inimigo virar um amigo da noite para o dia? Andou em volta do pátio com Nigel e Annie, olhando para Jotham, que descarregava
caminhonetes cheias de caixas de vinho.
Ele olhou para ela e sorriu. Harriet sorriu também e apressou o passo, quase correndo. O ar estava carregado de excitação e antecipava a festa. Todos estavam animados
e Harriet se sentiu subitamente louca de alegria, como numa estranha explosão de amor.

CAPITULO VII

Harriet dormiu um pouco, à tarde, para ficar em plena forma.
A festa começou, para ela, desde a hora em que acordou; abriu os olhos, já cheia de alegria. Nunca tinha sentido aquilo antes: uma sensação de que todos eram seus
amigos e que ninguém poderia lhe fazer mal.
Pôs um vestido ao mesmo tempo simples e chiquíssimo, de algodão branco, com sandálias douradas baixinhas. Apressou-se, porque não queria perder os preparativos finais.
Encontrou Eriça no alto da escada, usando um macacão de voai indiano rosa e púrpura, bem decotado.
- Você está linda, Eriça. Essa roupa é um luxo.
- Muito obrigada. Você está fantástica, como sempre.
- Não, não estou. Olhe para as minhas unhas. Toda aquela faxina de ontem me ensinou que é bom manter a boca fechada.
Eriça riu.
Havia muita coisa para fazer. A comida teria que ser transportada até o templo, no lombo de duas mulas. Depois, seria preciso arrumar
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tudo nas mesas. Elena, com uma saia estampada de fundo preto e uma blusa de fina cambraia branca, dava ordens a todos como um capitão de navio.
Pôs Harriet para trabalhar nas cestas de flores, antes que o calor as fizesse murchar. Tinha que fazer arranjos e guirlandas, encher vasos e potes. Gostou da tarefa.
Tinha talento para arrumar coisas, e depois das férias consideraria seriamente a proposta de Dorothy de trabalhar na galeria.
Depois que os homens transportaram a comida, foram para o cais esperar os barcos. Tradicionalmente, os homens da ilha esperavam os convidados do continente e os
conduziam até o templo, onde as mulheres e crianças aguardavam para a festa começar.
Tudo já estava no pátio e o som da música e do canto já se fazia ouvir. Até Elena ria alto e batia palmas.
- Estão chegando!
- Não é emocionante? - Eriça perguntou a Harriet. As duas estavam se dando bem. Já tinham rido muito, e ambas sentiam-se excitadas com o som do violão e os cantos.
- Será que podemos subir na colina para ver os convidados chegando?
Elena explicou a Harriet que era costume esperar ali e sentiu-se aliviada quando a moça disse, séria:
- Bem, então temos de ficar, é claro.
Eriça teve um ataque de riso. Harriet, "séria", estava muito engraçada. Harriet também riu, sentindo o coração leve.
Esperava com tal ansiedade, que temia demonstrá-la. Teria que se esforçar para ficar calma, ou acabaria correndo, numa impaciência infantil.
Annie tinha estado, quieta o tempo todo, arrumando as mesas. Agora estava sentada em um tronco, a uma pequena distância do grupo.
- Não está sendo como ela pensou que seria - comentou Eriça. Harriet não podia lhe dizer que não era por Nigel que esperava.
Mas Annie entenderia isso logo, e talvez então pudesse se divertir na festa.
Alguns dos convidados chegaram tocando violão e bandolim, batendo címbalos e uma espécie de sininhos que pareciam castanholas. Quase todos cantavam uma canção que
Harriet nunca tinha ouvido,
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com um ritmo gostoso que dava vontade de dançar. Quando os músicos chegaram no pátio, todos pareciam se mexer ao mesmo tempo.
- Salute e benvenuti! - diziam as mulheres da ilha.
- Saudações! - Harriet dizia, apertando as mãos de todos, incluindo Jotham, quando ele chegou perto dela. Ele tinha vindo diretamente em sua direção, muito rápido.
- Salute! - Deixou a mão cair no ombro dela e acrescentou:
- Você foi escolhida.
- Escolhida para quê?
Ele usava camisa branca e calça preta. Estava muito atraente e quase tão misterioso como se usasse um tapa-olho de pirata.
- Os solteiros podem escolher um parceiro para a festa - disse, bem sério.
Harriet se lembrou de ter escutado isso antes. Viu muitos jovens casais de mãos dadas. A maioria devia ser de namorados, mas os que estavam sozinhos também acabariam
arranjando parceiros sem dificuldade, por causa das regras da festa. E, pelo visto, Joth seria seu par.
Nigel chegou sorrindo.
- Que tal a festa?
- Chegou atrasado. Já escolhi Harriet.
- Está brincando!
- É o costume.
- Não para nós, que não somos daqui.
- Para mim é. Vivo aqui e fora daqui.
Nigel não sabia se ria ou brigava. Virou-se para Harriet.
- Que devo fazer?
- Procure outro par para você - Jotham respondeu por ela.
- Quer dizer Annie, é claro.
- Isso é problema seu.
Joth pegou a mão de Harriet e ela teve que passear a seu lado por todo o pátio. Depois, largou a mão dele. Claro que não a havia escolhido apenas pelo prazer de
sua companhia.
- Está me tirando do caminho para Annie?
- Certo.
- E tenho que ficar com você a festa inteira?
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- Tem. Eles vão nos amarrar juntos nessa árvore em que você está encostada.
- Ninguém vai me amarrar a ninguém. - Aí, notou que ele ria.
- Muito engraçado! Quantos costumes antigos mais você vai inventar?
- Quer saber de outro? Nesta festa de hoje, os homens têm que fazer tudo o que as parceiras pedirem.
- E o que costumam pedir? - Para casar.
- Assim, você poderia se meter em confusão. Ela sorriu e Joth cochichou em seu ouvido:
- Você também.
- Promessas, promessas. . . - Flertava com ele, olhando fundo em seus olhos. - Ninguém o pediu em casamento no ano passado? Certamente, você tinha um par. . .
- Claro que tinha.
Joth tinha sempre namoradas bonitas. Quem mais teria estado lá? Talvez no mesmo quarto em que ela estava agora, dando para uma varanda. . . Sentiu uma coisa muito
parecida com ciúme.
- E aí está ela - Joth disse, e levantou o braço para saudar uma mulher muito gorda, de cara bonita, que certamente já havia passado dos quarenta. - Seu nome é Mafalda
e é viúva.
Harriet podia imaginar a alegre viúva, vida e alma da festa, dando tapinhas no ombro do novo signore.
- Então, parece que sua companheira do ano passado não pediu um marido...
- Ela pediu uma ovelha.
Harriet caiu na risada, tapando a boca com a mão.
- Não estou dizendo nada. . .
- Faz bem. - Joth riu também.
Nigel estava de pé, com Eriça e Alistair, quando Annie chegou perto dele e o pegou pelo braço.
Harriet viu a cena e se lembrou de que a moça esperava ficar noiva na festa.
- Ela não faria isso, faria? - perguntou, alarmada.
- Faria o quê? - Joth perguntou, baixinho.
- Pedir a Nigel para casar com ela. Não podemos deixar que
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faça isso! - Avançou em direção a Annie, mas Jotham a segurou pelo pulso.
- Por que temos que impedir? - Seus olhos estavam duros de novo. Pensava que Harriet dizia aquilo por interesse próprio.
- Porque ele é bem capaz de magoá-la.
- Bem, e daí? Não pode ficar pior do que já está.
- Pode! Annie não suportaria sofrer mais uma rejeição dele. Ficaria arrasada.
Joth ainda lhe segurava o pulso, mas agora de uma maneira mais delicada.
- Ela não é tão idiota. Não proporá casamento, se não tiver certeza de que ele quer, e sabe que não quer. Mas deixe que aproveite a festa com Nigel. Ele já tinha
prometido isso a Annie antes de você aparecer.
Joth tinha um charme persuasivo, difícil de resistir.
- Espero, para o bem dela, que você a conheça tão bem como pensa. Ela faria melhor se tivesse escolhido você.
- E o que Annie faria comigo? Ou o que eu faria com ela?
- É, acho que ia mesmo preferir Nigel. - Disse isso sem raiva nem ironia.
Jotham sorriu.
- Quer um copo de vinho?
Ela ficou esperando, encostada na coluna. Os músicos estavam tocando, mas todos falavam e riam, reunindo-se aos amigos. Jotham voltou logo, do meio da multidão,
trazendo dois copos.
O vinho parecia novo e fraco. Harriet fez uma careta, quando bebeu. Joth brincou:
- Está a seu gosto?
Harriet riu. A festa estava animada. As mulheres mais velhas se vestiam de preto, mas as jovens usavam vestidos de cores brilhantes, com rendas e fitas.
Olhou em torno e depois para Joth.
- Está de seu agrado?
Ele a encarou como se ali estivessem só os dois:
- Muito.
O coração de Harriet foi parar na garganta.
- Apresente-me à dama, homem! - disse um senhor ruivo e baixinho que apareceu subitamente, e Harriet adivinhou que era
mcGregor,
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o arqueólogo. Disse estar encantado por conhecê-la e apertou entusiasticamente sua mão. - Nós, os estrangeiros, devíamos ficar juntos.
- Não esta estrangeira. - Joth abraçou-a pela cintura. - Esta aqui ficará perto de mim.
Era tudo brincadeira, mas gostou de ficar assim, bem perto de Jotham. Gostava de sentir o peso de seu braço em volta da cintura, a mão dele tocando o ombro.
- O.K. Mas cuidado, menina, ele é o maior mentiroso que já conheci. Não preste atenção ao que ele diz - avisou McGregor, sorridente.
- Eu sei, eu sei.
Todos estavam pensando que ela era a namorada de Jotham. Exceto Eriça, Annie e Alistair, claro. Os dois recebiam olhares e sorrisos, ao passarem pelo pátio. Pegaram
comida nas mesas e se sentaram com Eriça e Alistair.
A música tocava o tempo todo, e sempre havia casais dançando. Às vezes, alguém cantava. Harriet achava o clima e a música tão embriagantes quanto o vinho. Seguiu
os cantores, ainda que não entendesse uma palavra das canções.
Depois de algum tempo, Nigel e Annie chegaram trazendo um prato com bolos, outro com docinhos e uma jarra de vinho.
Nigel sentou-se perto de Harriet e Annie, ao lado de Eriça, comendo o bolo bem devagar e olhando para longe, como se estivesse prestando atenção à música.
- Foi um truque sujo esse de Jotham, tirando você de mim Nigel falou, baixinho.
Harriet encolheu os ombros.
- Esqueça. A festa está ótima.
- Parece que você está se divertindo muito. - Nigel estava irritado.
- Não deveria?
Jotham se virou para eles, e Nigel não respondeu à pergunta. Subitamente a música parou e os címbalos começaram a bater. O barulho foi tal, que Harriet se assustou.
Ia começar a prova de arremesso de discos.
- Se o concurso fosse para ver quem era a mais bela, não haveria discussão: Harriet certamente venceria - disse Nigel.
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- Isso não tem sentido - ela protestou, brusca, desejando que Nigel parasse de falar essas coisas que criavam um mal-estar geral.
Os discos eram pedras com um buraco no meio, e foram depositados no meio do pátio. Um homem desenhava cuidadosamente um grande círculo.
- Eram originariamente usados para caça - McGregor explicou. Os homens se apresentavam para começar o jogo e Joth foi também. Chamou Nigel e Alistair:
- Venham! Vamos fazer uma tentativa?
- Está certo. - Alistair se levantou.
- Não vou fazer papel de bobo - Nigel disse, e Annie o apoiou. A maioria dos homens usava lenços coloridos no pescoço ou nos
braços. Eram os lenços das mulheres.
- As mulheres amarram seus lenços neles para dar sorte! - disse Eriça. - Leve o meu, Alistair. - Tirou um lenço de seda da cintura.
- Agora vou ganhar. - Alistair riu.
Harriet desejou também ter um lenço para dar a Joth.
- O que você vai me dar para levar para a batalha? - ele perguntou.
- Isto. - Harriet lhe deu um beijo. Era um beijo de amizade, não significava nada. Todos riram, menos Nigel. Harriet não se arrependeu, mas ficpu tão abalada com
o contato do rosto de Jotham, que, se ninguém estivesse olhando, ela pararia de rir para perguntar: o que está acontecendo comigo?
Mas não era hora de introspecções. Jotham e Alistair foram aplaudidos, quando se juntaram ao grupo. Jotham tinha patrocinado a festa, e já era uma figura conhecida.
O primeiro homem pegou o disco. Levantou-o acima do ombro esquerdo e o desceu até o chão, levando para cima e para baixo duas vezes, e aí girando dentro do círculo
e atirando.
O disco voou por cima da última coluna e caiu na grama. Um homem correu com um marco na mão e o fincou no chão. A distância foi medida e anunciada.
- Espero que eles não derrubem mais nenhuma coluna com essa coisa! - murmurou Eriça.
- E não machuquem alguém.
A platéia estava atrás dos jogadores, mas o burburinho poderia atrapalhar um novato, e o disco era de pedra, muito pesado. Na vez
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de Alistair, muita gente prendeu a respiração. Ele levantou e abaixou o disco devagar, mas corretamente, começou a girar e o arremessou: alcançou uma curta distância.
Voltou, sacudindo a cabeça. Todos riam, à sua volta, e ele também.
- Desclassificado! - disse isso e se jogou no chão.
- Como você conseguiu? - Eriça perguntou.
- Pisei fora do círculo. Isso é muito grave. - Pôs a cabeça entre as mãos, fingindo estar envergonhado. - Bem, agora é Joth. Deixei o time mal. Desculpe, companheira...
Mais uma dúzia de homens jogou o disco como seus ancestrais tinham feito, durante tantos anos. Havia concentração, força e poesia no antigo ritual, e Harriet se
emocionou com o jogo. Depois de cada um arremessar o disco, havia murmúrios; entusiasmados, se o jogador ia bem; apáticos, se ia mal.
Quando Joth pisou no círculo, Alistair gritou:
- Olhe oride põe o pé!
Joth fez uma saudação gaiata, levantando as mãos unidas. Ninguém o estava levando a sério. Não havia silêncio para ele. As risadas continuavam. Pegou o disco, levantando-o
duas vezes. Ao contrário de Alistair, seus movimentos eram jeitosos. Quando ele girou e atirou, as risadas cessaram e todos os olhos acompanharam o voo. Foi um bom
arremesso, entre as melhores marcas.
Alistair perguntou:
- Como ele conseguiu?
- Alguém conhece alguma coisa que Jotham não consiga fazer?
- Nigel disse, como se compartilhasse do entusiasmo geral.
- Não consegue falar tanto quanto eu - disse McGregor, alegremente.
Todos, menos Nigel, bateram palmas, quando ele se aproximou.
- Você esteve praticando? - Harriet perguntou.
- Foi sorte. - Sentou-se ao lado dela.
Joth tinha rasgado a camisa, na hora de atirar o disco, e todos riram mais uma vez.
- Você não pode andar assim por aí - Annie disse. Harriet estava certa de que Annie ia se oferecer para costurar a camisa, ainda que Joth não se importasse de andar
com ela rasgada.
Ele tirou a camisa e perguntou:
- Assim está melhor?
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Alguns homens tinham tirado a camisa por causa do calor e Harriet sentiu um arrepio, ao ver seu peito musculoso. Teve um súbito desejo de acariciar a pele morena
e beijar os ombros fortes.
- E você devolva meu lenço. Desclassificado! - Eriça disse, e tirou o lenço de Alistair.
i- Também quer seu presente de volta? - Joth perguntou a Harriet.
Ela tentou sorrir e dizer que queria. Era o que todos esperavam. Então Joth a beijaria, sorrindo, e tudo não passaria de uma brincadeira. Mas disse:
- Deu sorte, já que você jogou tão bem. Por isso, é melhor ficar com ele. - E já não era mais porque não pudesse suportar seu toque, e sim, porque, se a beijasse,
seu sangue ferveria e não conseguiria disfarçar na frente de todo mundo.
Algum dia, pediria um beijo de volta.. . Harriet sorriu, pensando que agora tinha um amor secreto.
O arremesso de Jothan pegou o quarto lugar, incrível para um principiante. Paolo, entusiasmado, disse que, se Joth treinasse um pouco, todos teriam um signore campeão.
McGregor falou no ouvido de Harriet:
- Se fosse ele eu não aconselharia isso. Quando Jotham aprende a fazer alguma coisa, torna-se invencível. É um terrível aventureiro. Um homem admirável!
Nigel tinha dito isso também. Parecia ser uma opinião geral.
- Vamos dançar? - ela pediu a Jotham.
- Desculpe, eu não danço.
- Estão vendo? Descobri alguma coisa que ele não sabe fazer Harriet disse a todos.
- Isso não faz mal, não é? Harriet faz solo de dança. Não precisa de par - disse Nigel.
Os dançarinos no pátio eram todos casais. Mas os mais jovens estavam dançando separados. Harriet perguntou:
- É permitido dançar sozinha? Não quero quebrar nenhuma regra tradicional.
- Sinta-se livre. Contanto que eu não a perca de vista - falou Joth.
- E o que aconteceria, se eu sumisse de sua vista, Joth?
- Bem, eu a procuraria e a acharia.
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Ela riu e saiu dançando. Nunca tinha se sentido tão livre e feliz. A música de violões e bandolins fazia dançar também seu coração, mais ainda ao ver que Joth olhava
para ela e sorria. Quando estava morrendo de calor, voltou, feliz porque ele a esperava. Estava se divertindo como nunca e gostaria que todos estivessem se divertindo
tanto quanto ela.
Mas Nigel e Annie pareciam infelizes. Apenas ficavam sentados, observando, falando de tempos em tempos. Alistair comentou com Harriet e Joth:
- Esses dois estariam melhor num velório do que numa festa. Lá pelo meio da noite, Annie disse estar com dor de cabeça por
causa do calor e Nigel se ofereceu para acompanhá-la de volta à vila.
Harriet experimentava todos os sucos que via e tomava goles ocasionais de vinho. Joth estava o tempo inteiro com ela. Entraram no subterrâneo do templo com McGregor,
e Harriet ficou fascinada com a pequena aula de história que ele deu.
Invejo você. Quem sabe o que poderá encontrar?
McGregor sorriu.
- Não muitos tesouros escondidos. Tudo o que era de valor já foi encontrado há muito tempo.
- Mas deve ser maravilhoso voltar milhares de anos atrás, saber como era tudo. Sei que estou fantasiando muito, porque vocês fazem um trabalho duro. Mesmo assim,
acho fascinante.
- Por que não fica uns dias com a equipe de McGregor, quando eles voltarem para cá para recomeçar as escavações? - Joth sugeriu.
- Gostaria muito. Se puder, terei o maior prazer em fazer parte de seu grupo. Posso?
- Claro. O prazer será meu.
Harriet não resistiu e, voltando-se para Joth, perguntou:
- E você? O que acha disso?
- Se você vier, darei um jeito para vir também. - Ele não falou nos outros e olhou para ela como se dissesse que aquilo era apenas entre eles dois..
Ainda houve festa, música e dança por muito tempo. A festa sempre durava até o fim da noite, quando os visitantes tinham que voltar para casa. A saída era uma procissão
de luzes até o cais. Harriet estava cansada, mas não queria voltar à vila. Mas Eriça e Alistair já estavam falando em
ir embora. Eriça perguntou:
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- Onde acha tanta energia, Harriet? Você está sempre dançando ou passeando e parece fresca como uma margarida.
Eriça tinha sido amigável a noite inteira. Aliás, todos tinham sido simpáticos. Harriet pensou que aquele era o melhor dia de sua vida e se perguntava o que aconteceria,
se dissesse: enquanto eu demonstrar estar me divertindo, Joth não pensará em ir embora. Não quero que a festa acabe, porque, quando isso acontecer, deixaremos de
ser parceiros..
- vou me sentir cansada amanhã, mas não tenho vontade de ir embora ainda.
Mas quando, poucos minutos depois, ela se sentou num tronco, com Joth a seu lado, estava Certa de que ele ia perguntar se não queria voltar para casa. Tinha que
fazer alguma coisa para impedi-lo de dizer isso. Olhou para o vulcão e perguntou:
- É possível escalar até o cume?
- Claro, mas não tão tarde. Ele tem seus perigos. Mas podemos subir até um certo ponto, se você quiser.
Harriet se levantou imediatamente. Não estava cansada e achava que era capaz de subir até o alto do vulcão, mas admitia que devia ser perigoso à noite. Ela e Joth
atravessaram o pátio, passaram as barracas e começaram a subir.
O barulho da festa chegava até eles e quase não falavam. Ela teria falado, se estivesse com outra pessoa, mas gostava de andar silenciosamente com Jotham. Sentia
que o conheceria cada vez melhor, já que compartilhavam não só palavras, mas pensamentos e emoções. Não precisavam falar. com o sorriso e o olhar, eles se comunicavam.
A noite estava maravilhosa, o dia tinha sido fabuloso, mas ela sabia que não precisava dizer isso. Nunca tinha tido um relacionamento tão real com ninguém, antes.
Confiava sua vida àquele homem, que ela parecia odiar até tão pouco tempo atrás.
Não era uma subida difícil, para quem fosse jovem e forte. Ele não se ofereceu para ajudá-la nem nos piores trechos. Nem precisava: Harriet subia com a mesma facilidade
que ele, e tinha prazer em se esforçar. Mais acima, passaram entre galhos de árvores e escuros ciprestes, e alcançaram uma plantação de pinheiros prateados.
Ali a grama parecia mais macia, mais agradável que o chão áspero que vinham escalando. Era uma espécie de mirante, e pararam para olhar para baixo, para o pátio
e o templo. E ainda se ouvia música.
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Essa era a terra de Joth: a ilha era praticamente sua. Harriet ficou sabendo, por Piero e Elena, que, depois de comprar a vila, Joth passara a comprar outros terrenos
e acabaria dono de tudo.
- Você pensa em - construir muita coisa por aqui? - ela perguntou.
- Não se preocupe. A vila será adaptada para receber visitantes. As outras construções serão feitas ao lado do continente. Não serão muitas. Não estou aqui para
fazer uma destruição. Nada será estragado, prometo.
Harriet estava tão contente que não conseguia falar. Ele disse, suavemente:
- Era isso o que você queria ouvir, não?
- Era. Queria ter certeza de que nada seria destruído.
Podia sentir seus olhos nela. Levantou a cabeça, ficando cada vez mais vermelha. De repente, sentiu-se completamente tímida. Harriet Brookes, a garota cosmopolita,
estava corada como uma colegial porque um homem ia toma-la nos braços.
Nunca tinha se sentido assim. Estava tão assustada que, instintivamente, afastou-se um pouco. A música ainda chegava a eles e ela ensaiou alguns passos de dança.
Joth se divertia.
- Nadar, dançar, guiar depressa demais. Você é uma garota que não pára nunca.
- Você também não pára nunca.
Mas ele tinha uma calma interior, uma força silenciosa. Nunca pisaria fundo no acelerador para correr, sem necessidade, nem dançaria para esconder suas inibições.
Não havia comparação entre os dois e ela sabia disso. Joth pegou suas mãos e ela tentou se soltar.
- Pare - ele disse, e Harriet parou de empurrá-lo. Sentaram-se na grama macia e ela começou a tremer. Joth lhe
acariciou os cabelos e Harriet sussurrou um não. Era muito súbito, a atração física era muito forte. Precisava de tempo para pensar, se decidir.
- Foi um dia ótimo - Jotham disse, e ela compreendeu que não pretendia fazer amor naquele momento. Ficariam como estavam por algum tempo, bem juntinhos. Já que nada
ia acontecer rapidamente, ela relaxou e se sentiu profundamente feliz.
Estava cansada. Tinha estado tão excitada que só agora percebia o cansaço, no fim daquele dia longo e agitado. Riu.
- Acho que comi demais, os doces estavam ótimos. O que você achou dos arranjos de flores? Fui eu que fiz.
- Cheios de cores.
com a cabeça recostada no peito dele, a voz parecia vir diretamente do peito. Joth estava usando uma camisa vermelha e azul, que Elena tinha trazido da vila. Ele
havia ofendido o senso de decoro da velha, andando de peito nu, parecendo mais um camponês do que o signore. Quando Elena chegou, zelosa, com a camisa nas mãos,
Joth riu e disse: "Sou um camponês!" Mas a mulher pediu tanto, que ele acabou vestindo a camisa para não decepcioná-la.
Harriet começou a desenhar quadradinhos em sua camisa, acariciando-o com o mindinho, e disse:
xx- Você adora as cores vibrantes, não é?
- Claro. Por quê?
- Queria saber. Pelas roupas que usa...
- Gosto das cores fortes, mas não tenho muito gosto para combiná-las.
- Então é isso. - Deitou a cabeça em seu ombro. - Eu adoro combinar as cores. Muitas vezes, de maneira fantástica. Acho que é por isso que gosto tanto de pintura.
É a arte de combinar cores, também, não acha? Há essa pequena galeria de arte em que tenho uma pequena parte.. . Bem, é uma galeria pequena, mas expõe coisas boas
de vez em quando. Anthony expôs há pouco.
- Vi a fotografia.
Vários jornais publicaram uma foto de Anthony com Harriet. Ela tinha gostado muito dele, mas jamais se sentira em paz a seu lado.
- Me convidaram para trabalhar lá em tempo integral.
- Estou certo de que você seria um sucesso.
Se ele realmente acreditava nisso, o que responderia se pedisse um emprego na fábrica?
- Gostaria de saber como estão os negócios de minha família.
- Você já mexeu alguma vez nisso?
- Não, mas sou esperta e aprendo rápido.
Antes de seu pai morrer, ela apenas se divertia. Mas sabia que, se alguma vez ele tivesse precisado de sua ajuda, teria trabalhado no lugar dele. Só que o pai
nunca se importara com os negócios.
Sempre tinha apostado em seu charme e em sua sorte, que, aliás, o acompanharam até seu último suspiro.
- Nigel falou que tudo o que você toca prospera. Tudo sempre dá certo, para você - disse Harriet.
- Nigel. . : Nigel não compreendeu nada. Trilhei o caminho palmo a palmo. Sangue, metade do caminho. E lágrimas também. - Sorriu para ela, deitando-a em seu braço.
- As lágrimas foram muito tempo atrás.
- Quando você era jovem?
- Muito jovem.
- Foi também quando eu chorei.
Compartilharam a memória da solidão por um momento, e ela sentiu que o coração batia mais rápido, o calor do braço dele a invadia, e pensou: não ficaremos mais sozinhos
agora.
- Estou tão cansada! - Não conseguia parar de bocejar. Dancei demais.
- Fique quietinha. - Beijou os cabelos dela, e Harriet se calou. Queria ficar naqueles braços e descansar, porque em nenhuma cama tinha jamais sentido tanta paz.
Em pouco tempo, dormia como uma criança.
Quando acordou, sabia exatamente onde estava. Era estranho, porque o sono tinha sido profundo e cheio de sonhos. Seria natural ter se espantado, ao acordar nos braços
de Joth, mas isso não aconteceu. Ele tinha enrolado a camisa em volta dela e estava deitado pertinho. A música tinha cessado.
Ele acordou quando ela se mexeu e sorriu:
- bom dia!
- Que horas são?
- Passa um pouco das três.
- Da manhã?
Era uma pergunta tola, com todas as estrelas brilhando e a Lua em cima de suas cabeças. Devia ter dormido horas. . . Sentou, olhou para baixo, para a cena silenciosa,
e perguntou:
- Para onde foram todos?
- Para a cama.
- Você devia ter me acordado.
- Por quê? Estava cansada.
Então, ele a deixara dormir, ficando com ela. Era atencioso e cuidadoso
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como poucos homens. Na verdade, nunca tinha conhecido ninguém assim. Ficou tonta por um minuto ou dois, quando se levantou e apoiou-se nele.
- Ainda estou meio dormindo. Dopada.
- Acorde devagar. Pegou a camisa dele.
- É melhor você vestir isso. Elena não gosta que ande por aí feito um camponês.
- Quem vai contar a ela?
Ele amarrou os braços da camisa em volta do pescoço, e o luar em seus músculos fazia com que parecesse uma estátua grega. Riria, se ela dissesse que o achava bonito;
não acreditaria. Mas se ele fizesse amor comigo agora, ela pensou, a terra tremeria tanto que eu pensaria que era o vulcão.
- Venha - ele disse. - Hora de ir para casa.
- Tem certeza de que esse vulcão é inofensivo?
- Claro.
Seu braço estava em volta da cintura dela, e ele a ajudava a descer, apesar de ela ter subido sozinha. Claro que era mais perigoso agora, que só havia o luar para
iluminar o caminho. Os lampiões de querosene tinham sido apagados, depois da festa.
- As tempestades, aqui, são um espetáculo lindíssimo. Temos as melhores tempestades da Itália - Joth falou, rindo.
- Talvez você invente uma para eu ver.
- Você voltará outras vezes e verá.
Sorriram um para o outro, porque ambos sabiam que Harriet voltaria.
- Joth, conte-me de suas tempestades.
- A primeira vez pensei que o mundo ia acabar. O ar estava completamente parado. E quente. Mais quente do que nunca. Era difícil respirar.
- É sempre assim, antes de uma tempestade, não é? - Ela falava por símbolos, mas achava que ele entendia. Ou não?
- As tempestades chegam subitamente. O sol pode estar brilhando e, de repente, você se vê mergulhado na escuridão. O vento é muito forte, e os trovões assustadores.
Caem raios no mar, a água sé agita. Se na terra, você escuta o ruído das rachaduras. Há
106
um cheiro de sulfa no ar, por causa do vulcão. Se quiser ver uma boa tempestade, venha até aqui.
- Acha que os turistas gostariam delas? Parece um espetáculo fantástico, mas também terrível.
- Estava pensando em anunciá-las como uma atração especial da ilha.
- Mas, se não cair tempestade, os turistas vão querer o dinheiro de volta. Acho melhor não provocá-los.
- Estou aprendendo.
- Nigel apostaria em você. Diz que tudo é fácil para Jotham Gaul.
Passaram por um lugar onde os soldados romanos acampavam.
- Será que eles ainda estão em guarda? - Harriet sussurrou.
- Quem sabe?
Sob o luar, Harriet imaginava como teria sido a ilha antes. Ela participaria das escavações com McGregor. O melhor era que Joth estaria com eles, compartilhando
o prazer das descobertas.
Passaram pelo pátio deserto no centro do templo, ainda com restos da festa. As flores estavam mortas e as folhagens despencavam das colunas. No dia seguinte, tudo
seria lavado, e mais um ano se passaria até a próxima festa. Mas tinha sido um dia memorável. Harriet se lembrava de cada minuto.
- Espero que Mitra tenha gostado da festa.
- Esta festa foi para Santa Maria dei Greci - Joth corrigiu.
- Então, espero que ela também tenha gostado. Eu gostaria. Andavam de mãos dadas, como o símbolo do templo: confiança.
Sabia que poderia ir com esse homem até o fim do mundo.
Começaram a descer em direção à vila, em total silêncio, quebrado apenas pelo constante ruído do mar e pelo murmúrio da brisa. Harriet começava a se sentir cansada
de novo. Era agradável não ter que falar nada, ir para casa silenciosamente, guiada pela mão de Joth.
Não havia luzes na casa, e, quando ele abriu a porta, ela sussurrou:
- Todo mundo está na cama. O que terão pensado de nossa longa ausência?
- Não que você tenha caído no sono - Joth disse, rindo. Herriet pôs a mão na boca para não acordar a casa toda.
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- Acho que as mulheres não costumam cair no sono quando desaparecem com você.
Tenho ciúme delas, de qualquer uma delas. Mas não estão aqui e eu estou. Por que deveria me preocupar?, pensou.
As portas de todos os quartos estavam fechadas. Parecia que todos dormiam, e Harriet foi andando na ponta dos pés, ainda que Joth não se preocupasse nem um pouco
com o barulho que faziam.
Na frente de sua porta, ela perguntou:
- Boa noite? Já é amanhã, não é? O que vamos fazer amanhã, depois de limparmos o pátio?
- Você e eu pensaremos em alguma coisa.
Ele não a tocou, nem sequer a beijou, mas novamente ela sentiu uma onda de calor, como se ainda estivesse na colina, em seus braços.
- É... pensaremos.
Abriu rápido a porta do quarto, porque, se ficasse um pouco mais ali, ela o abraçaria.
A luz do luar enchia o quarto. Não havia venezianas e ninguém tinha fechado as cortinas. Tirou as sandálias e foi até a varandinha sem acender nenhuma lâmpada.
Tinha que tirar aquela roupa e tomar um banho, ainda que rápido. Estava suada e suja, e os cabelos, cheios de grama. Mas sua vontade era se jogar na cama imediatamente,
do jeito que estava.
Ouviu o ruído de um movimento, -virou-se e perguntou, assustada:
- Quem está ai?
Então Nigel falou, levantando-se de uma cadeira encostada na parede:
- Bem, então funcionou, não é? Tudo saiu como ele havia planejado.

CAPITULO VIII

- Planejado o quê? - Harriet perguntou.
- Afastar você de mim.
O tom de Nigel era raivoso. com a pouca luz que iluminava o quarto, ele parecia pálido, os cabelos despenteados. Harriet sentia-se fraca até mesmo para falar; e,
mesmo assim, começou:
- Estou muito cansada. . . E Nigel sorriu, irónico.
- Isso não me surpreende!
- Nós fomos dar um passeio. Fomos até o bosque. Depois, paramos para descansar e eu acabei dormindo.
- Que bonito! - ele zombou.
- Ora, vá dormir, Nigel! Amanhã conversaremos. - Ele não devia ter tido uma espera confortável, sentado naquela cadeira de madeira, fumando, cheio de ciúme. - Há
quanto tempo você está aí me esperando?
- Horas! - respondeu, com uma cara de sofrimento.
- Bem, eu não combinei nada com você. - Sua cabeça começou
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a doer forte e tudo o que ela queria era deitar. Sabia que teria bons sonhos e, quanto mais cedo dormisse, melhor. Agora não estava com disposição para se explicar
a Nigel. De qualquer maneira, não havia nada que explicar. Foi até a mesa, apoiou os cotovelos e escondeu o rosto nas mãos. - Por favor, me deixe sozinha.
- E, se eu não sair, o que vai fazer? Gritar por Joth?
- Não. - A última coisa que ela queria era uma discussão àquela hora da noite. Não era sua culpa se Nigel ficara esperando, mas, de qualquer maneira, se sentia um
pouco responsável.
- Ele sempre dá uma grande ajuda, é um ótimo amigo esse Joth.
- Nigel disse, com ironia.
- Também acho - ela respondeu, calmamente.
- Mas ele tem suas prioridades, e a mais importante é minha mãe. Joth faria qualquer coisa por ela.
Sem descobrir a razão, Harriet, pela primeira vez, viu com simpatia a mãe de Nigel e pensou que poderiam ser boas amigas.
- Ela está preocupada com você - o rapaz continuou - e pediu a Joth que desse um jeito de impedir você de se aproximar de mim. Ela quer Annie como nora. E isto é
o que Joth está fazendo agora.
Harriet sabia muito bem que era o que estava acontecendo, mas não mais com uma atitude forçada. Apenas acontecia, natural e maravilhosamente.
- Bem, sim. Mas. . .
- Ah, você o atrai. Isso é óbvio. Ele está sempre querendo me mostrar que não posso com você, sempre tentando nos separar. Mas não vai segurar Joth por muito tempo,
porque ele nem mesmo chega a gostar de você.
Harriet levantou a cabeça e se olhou no espelho. Nisso, Nigel tinha razão: Joth não gostava dela, não tinha gostado de nada, nela, e até já tinha dito isso. Ele
a achava gulosa, agoísta e superficial, e certamente não havia mudado de opinião. Por que o faria? Ele a escolhera como companhia na festa apenas para mante-la afastada
de Nigel e dar uma chance a Annie.
- Ele vai se meter numa bela encrenca - disse a Nigel.
- Que encrenca? - perguntou, desconfiado. - Ele está é se divertindo muito.
É, Harriet pensou, era possível. Seus olhos eram dois pontos negros no rosto pálido. Tentou sorrir, mas os lábios não se mexeram.
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- Antes da festa, ele comentou que eu seria um louco, se me envolvesse com uma mulher como você - Nigel continuou.
- Como ele se atreveu a dizer isso? Saia da minha frente. . . Nigel engoliu em seco, parecia um pouco assustado com a violência
aparentemente sem propósito de Harriet.
- Oh, desculpe, tive um dia cansativo. Pobre Nigel, você não tem nenhuma culpa.
- Você é a mulher mais linda do mundo!
- Sou, é? Que exagero, Nigel! Me olhei no espelho e sei que estou feia, suja e com o rosto cansado.
- Estou louco por você.
- Desde quando?
- Desde sempre.
Oh não, ela pensou, mais essa a esta hora da noite!
- Está me pedindo em casamento?
- Estou - ele respondeu, rapidamente, e Harriet não entendeu muito o porquê daquela súbita proposta.
- Tenho que responder agora? - Abriu a porta, sorriu para ele e continuou: - Se importa se eu pensar a respeito hoje à noite e dar uma resposta depois?
Ele não teve outra alternativa, a não ser retribuir o sorriso e sair. Nigel estava realmente louco por Harriet. Tivera uma noite horrível, vendo-a o tempo todo com
Joth, e, o que era pior, esperando e imaginando coisas, quando percebeu que todos já tinham voltado, menos eles.
Deus sabia o quanto a desejava. Pensou que devia ter sido mais incisivo com ela, tê-la tomado nos braços e beijado apaixonadamente. Mas Harriet era uma garota estranha.
Não conseguia tirar os olhos dela, mas, na maior parte do tempo, não tinha a menor idéia do que passava por sua cabeça. Mesmo que casassem, não sabia com certeza
se conseguiria compreendê-la.
Porém, Harriet, depois desses dias na ilha, não tinha mais a menor intenção de casar com ele. Percebia, com muito mais clareza do que o rapaz, que sua união não
daria certo. De manhã, diria a ele que deviam continuar apenas bons amigos.
Joth estava certo, pensou. Nigel seria um idiota, se se envolvesse com uma mulher como Harriet Brookes. Jotham Gaul nunca se enganava . . . Teve vontade de chorar,
mas lágrimas eram para adolescentes.
Apesar de estar se sentindo tão desolada agora quanto aos quinze anos, precisava enfrentar tudo como adulta. Trancou a porta e foi até a janela, fechando as
cortinas.
Todas as coisas que Joth lhe havia dito antes de chegarem à Sicília voltaram à sua frente: nem pense em casar com Nigel. . . Seu coração batia forte e ela tremia.
Se Joth estivesse no quarto, teria gritado ou até mesmo batido nele. Correu até a janela e a abriu com dedos vacilantes. Teve um louco desejo de invadir seu quarto
e lhe dizer umas verdades. com que direito se intrometia na vida dos outros? Por que advertir Nigel para não se envolver com ela? Como se nenhum homem pudesse se
envolver com ela por muito tempo. . .
Mas um pouco de bom senso a fez ver que aquela não era atitude de uma mulher adulta. Tinha que ter um pouco de autocontrole; não podia simplesmente sair por aí no
meio da noite, gritando como uma louca e acordando todo mundo.
Pegou então a escova e a passou com força nos cabelos. Foi até o banheiro e deixou a água do chuveiro correndo, enquanto tirava a roupa. Depois do banho, estava
um pouco mais calma. Não totalmente apaziguada, é verdade, mas pelo menos não sairia por aí agredindo ou xingando as pessoas. Tinha muito que dizer a Jotham Gaul
a respeito do jogo idiota que fazia, protegendo Nigel dela.
Devia estar na cama já, mas se sentia desperta como se fosse meio-dia. Gostaria de dar uma caminhada pela praia, até mesmo nadar, mas chegou à conclusão de que a
hora era imprópria. Além disso, alguém poderia ouvir e ir atrás dela. Jotham, talvez, e isso ela não queria por nada no mundo. Da vontade de xingá-lo e até mesmo
agredi-lo, mudou rapidamente para um desejo de nunca mais vê-lo.
Tinha trazido alguns romances e pegou um deles para ler; um que falava de Chicago dos anos 30, povoada de gãngsters e mulheres fatais. Quando se desinteressou da
história, começou a escrever uma carta para uma amiga em Londres. Descreveu a ilha, a vila e como tinha sido a festa. Em outra carta, esta dirigida a Dorothy, disse
quase a mesma coisa, acrescentando apenas que "o homem que eu lhe disse que poderia me pedir em casamento acabou de pedir. Tenho certeza de que não daria certo,
de modo que minha resposta será não. Em relação ao trabalho que você me ofereceu na galeria, a resposta é sim. Gostaria de tentar e quero começar logo que voltar".
Queria realmente o trabalho. Estava certa de que tinha jeito para
.112
a coisa. Mas, naquele momento, não sentia entusiasmo por nada. Sentia-se completamente apática, apesar de continuar resistindo a entrar debaixo das cobertas e dormir.
Quando viu luz pela fresta da janela, percebendo que o dia já nascia, correu até a cama e enfiou a cabeça debaixo do travesseiro.
Aterrorizada, tentou afastar a déia de que teria pesadelos. Sempre dormia mal, quando essas coisas aconteciam. Mas ao acordar, mais tarde, não se lembrou dos sonhos.
Já era tarde, e ninguém a havia chamado. Estava surpresa por Nigel não ter batido à porta. Tinham combinado que ela lhe daria a resposta a respeito do casamento
naquela manhã.
Pegou suas cartas e desceu. As portas da casa estavam abertas, mas não viu ninguém. Na cozinha, Elena lavava os pratos e os copos da festa. A velha sorriu e disse
bom-dia, afastando-se da pia por um momento para lhe oferecer uma xícara de café.
- Obrigada. Onde está todo mundo?
- Lá no templo. Acho que voltam logo.
Estavam dando uma limpeza geral, Harriet pensou, e eu devia estar ajudando.
- Dormi demais.
- O sr. Gaul me disse para deixá-la dormir.
- Muito gentil da parte dele.
- Ele está no escritório. Disse que queria vê-la, quando descesse. Harriet bebeu de um gole só o resto do café. Estava quente e forte
e a fez acordar de vez. Pôs a xícara de volta na mesa e foi até o o escritório. O que será que Jotham queria? Comentar com ela a festa, ou mesmo reafirmar suas opiniões
a respeito dela e Nigel? Não era provável que soubesse qualquer coisa a respeito do pedido de casamento. Sentiu um gostinho especial quando pensou em lhe contar
a novidade. Estava com raiva porque Jotham a havia enganado, fingindo gostar dela, fazendo com que gostasse dele e o visse pela primeira vez como um amigo. Bateu
à porta irritadíssima.
- Entre - disse Joth, atrás de sua mesa de papéis. Mal moveu as sobrancelhas. - Boa tarde. Não quer se sentar?
Continuou escrevendo, como da outra vez. Será que estava ocupado de verdade ou era apenas uma maneira de fazê-la ficar esperando?
- Chame quando tiver terminado.
. Levantou-se e andou para a porta, mas ele disse, subitamente:
- 113
- Que história é essa de Nigel pedi-la em casamento? Virou-se, surpresa. Será que Nigel conversara com Joth, antes de
ela lhe dar uma resposta?
- E então? - ele insistiu.
- Bem. . ,
- Tem certeza de que ele não estava sonhando ou bêbado?
- Não estava bêbado e muito menos sonhando. Quem lhe contou?
- Então, ele a pediu em casamento e você está pensando no assunto.
Será que tinha visto Nigel deixando seu quarto? Duvidou de que o rapaz tivesse fornecido a informação voluntariamente. Era óbvio que Joth devia tê-lo interrogado.
De qualquer maneira, não ia contar nada a ele. Fez uma cara de quem tem a faca e o queijo na mão. Como pudera pensar que esse homem era seu amigo?
- Bem, é isso mesmo. Você já sabe de tudo. Sua rede de informações é fantástica.
- Já pode parar de brincar. Não vai nem pensar na proposta que recebeu de Nigel! - Estava furioso, e ela queria que ficasse possesso, que subisse na mesa e gritasse
como um louco, pois isso seria mais satisfatório do que apenas falar alto com ela.
- A decisão é só minha. É claro que estou pensando na proposta. Você está fora do jogo, agora. Não adiantou nada preveni-lo para não se meter com uma mulher como
eu. E sua estratégia na festa também não funcionou. Nigel se apressou para fazer o pedido, pois ficou preocupado ao nos ver o tempo todo juntos.
Jotham recostou-se calmamente na poltrona e disse, com voz pausada:
- Ele não é seu tipo. Por que não o solta dessa armadilha? Para ela, admitir isso agora era como aceitar ordens dele. Assim,
simplesmente mentiu:
- vou casar com Nigel, e você não pode fazer nada...
Ele se levantou, com uma expressão misteriosa, deu a volta à mesa, sem tirar os olhos dela, e se aproximou. Harriet tremeu de medo, imaginando o pior, mas ele apenas
colocou as mãos em seus ombros, de leve, e disse:
- Agora, vai me dizer por que quer casar com ele.
- Já conversamos sobre isso. Quero a Mansão Tudor. Mesmo que Sílvia Joliffe não aprecie muito meu senso de humor.
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Achou que Joth ia lhe dar uma bela bofetada por ser tão insolente. Mas, em vez disso, ele se afastou, com um brilho satisfeito nos olhos.
- Espero que tenha outras razões.
Ela não poderia dizer: "Amo Nigel". Já estava mentindo ao dizer que ia casar com ele, mas falar que o amava era demais. O brilho nos olhos de Jotham aumentou e ele
sorriu:
- Se você não tem outra justificativa, beleza, vai precisar de um pouco de seu senso de humor. - Fez uma pausa insuportável, e a curiosidade de Harriet cresceu.
O que estava pretendendo? - Porque eu comprei a Mansão Tudor há mais de quatro anos, logo depois da morte do pai de Nigel. Deu para entender? Se a única razão para
casar com ele é ser dona daquela casa, eu a aconselharia a responder não.
Meu Deus, esse homem tem tudo o que eu quero!, ela pensou. A fábrica, a vila e, agora, a Mansão Tudor.
- É fascinante conhecer um homem que tem tudo. Exceto um pai. É uma pena que ele não esteja por perto para ver as maravilhas de que o filho é capaz. . . - Depois,
se arrependeu: - Desculpe, eu não tinha a intenção. . .
- Não se preocupe. - Ele parecia abalado. - Você até que se saiu bem. Desculpe se não tenho algo à altura para lhe responder. . .
Harriet saiu correndo dali para seu quarto.
Sentia-se tonta, como se alguém a tivesse atingido com um soco. Pegou os óculos escuros para esconder essa ferida imaginária dos outros e resolveu dar uma volta.
Não queria encarar ninguém, mas também não podia ficar dentro do quarto. Estava triste, amargurada e solitária demais para se confinar; acabaria se enforcando.
Lá fora, agradeceu por estar num lugar tão bonito. Ali, podia pensar com um pouco de calma em tudo o que lhe havia acontecido nas últimas horas. Lembrou-se de seus
tempos de menina. Por que aqueles que amava não sentiam o mesmo por ela? Seus pais, suas amigas. . . Joth. Ele nem mesmo chegava a gostar dela. No entanto, ela,
que também não gostava dele antes, tinha mudado de idéia. . . Ficou imóvel como uma rocha, quando finalmente entendeu: a véspera havia sido um dia tão especial porque
ela se apaixonara, pela primeira vez na vida.
Ao pensar em Joth, sentiu uma imensa vontade de voltar e se atirar
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em seus braços, deixar que a confortasse. Mas não podia fazer nada disso, porque ele não sentia nada por ela.
com o Sol lá no alto, as ondas arrebentando na praia, e tendo aquela linda paisagem como cenário, deitou-se na relva macia, debaixo da sombra de uma árvore, e descansou,
sofrendo por querer um homem que não a queria.
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CAPITULO IX

Depois de um tempo, Harriet decidiu caminhar até o templo para se encontrar com o pessoal. Tinha acertado, ao sair de óculos escuros. Atrás deles, seus olhos estavam
cheios de desesperança. Porém, deu um jeito de arranjar um sorriso, quando se aproximou dos outros.
Havia um pequeno fogo no centro do pátio, no qual os nativos da ilha e os visitantes colocavam tudo o que sobrara da festa: folhagem, verdura seca e papéis, e até
mesmo as flores que não sobreviveram. Tudo era jogado no fogo, e logo haveria só cinzas, que se espalhariam com o vento e desapareceriam.
Talvez pudesse guardar uma folha, ela pensou. Depois, desistiu. Para quê? Queria era esquecer tudo o mais rápido possível. Queria esquecer Joth, mas não seria muito
fácil.
Nigel veio a seu encontro, sorrindo.
- bom dia, querida. Está linda.
- Obrigada - respondeu mecanicamente.
- Pensou a respeito de minha proposta?
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- Pensei, sim. E acho melhor a gente esquecer o que se passou ontem à noite.
Desejou que aquela noite fosse apagada para sempre, desde a hora em que chegara a seu quarto e deparara com Nigel.
- Não se deixe levar por Joth, Harriet. Quero mesmo casar com você.
Harriet viu que Annie olhava para eles e desejou ser uma fada. Ela os tocaria com sua varinha de condão e eles seriam felizes para sempre. Seria tão bom se as coisas
fossem simples assim. . .
- Joth não tem nada ã ver com isso - disse.
- Tem mais uma coisa que eu queria falar - volveu Nigel. É sobre a casa. Pertence a Joth. Precisávamos de dinheiro, quando meu pai morreu. Por isso, vendemos para
ele. Mas a terra continua sendo nossa.
- Compreendo- ela murmurou. Não diria que já sabia disso.
- Por favor, não conte isso a ninguém. A Mansão Tudor tem sido o lar de minha mãe desde que casou, e vai continuar sendo, como é o desejo de Joth.
Harriet foi obrigada a sorrir. Então, Sílvia Joliffe preferia deixar que a vizinhança continuasse pensando que ela ainda era a dona da casa. E por que não? Um pouco
de orgulho não fazia mal a ninguém. Além do mais, não tinha nada que se meter nesse assunto.
- Num certo sentido, ainda pertence à família - ela falou.
- Joth, você quer dizer? Sim, é o que ele sempre diz. E nós poderíamos, morar na casa. Você sempre disse que a adorava.
Porque ela desejava algo forte e seguro a seu redor. Forte e seguro como Joth.
- Vamos esperar e ver o que acontece, está bem? - Harriet disse, atirando alguns copos e pratos de papel no fogo.
- Tive que contar a Joth. Acho que ele me viu saindo de seu quarto e pensou em algo que não aconteceu. Disse que tinha pedido você em casamento e que você ia pensar
a respeito.
Harriet não perguntou se os outros sabiam. Annie sorriu timidamente, quando a cumprimentou, e Eriça e Alistair disseram apenas "olá".
- Onde você e Joth se meteram, ontem à noite? - Eriça perguntou, assim que Nigel se afastou. - Nigel ficou uma fera.
- Fomos dar um passeio.
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- Devem ter ido bem longe. Tanto é, que você descansou bastante, hoje de manhã. . .
- É que fui deitar muito tarde. Dormi no passeio e, quando cheguei em casa, não consegui pegar no sono imediatamente.
- E Joth a deixou dormir? - Eriça continuou, com um sorriso de cumplicidade. - Ele não costuma deixar que isso aconteça. Pelo que eu sei...
Harriet pensou na consideração que Joth tinha por ela. Talvez mais do que qualquer homem. Cortou a conversa, que não ia mesmo levar a nada, e começou a trabalhar,
ajudando a limpar o local. O dia estava quentíssimo, mas ela não parava. Sabia que, quanto mais se esforçasse, menos esforço teria que fazer para dormir. Estaria
tão cansada, que bastaria chegar ao quarto, tirar os sapatos e se jogar na cama, para dormir como um anjo.
Se não fizesse esforço agora, de noite ficaria dando voltas pelo quarto, pegaria um livro, inventaria mil coisas e acabaria ficando com a luz acesa a noite inteira.
Joth chegou e também se pôs a trabalhar. Estava abaixada ao lado do fogo com Nigel, quando ele se aproximou com mais um monte de papel.
- Ainda pensando com o maior carinho na proposta que recebeu esta madrugada? - ele provocou.
Nigel olhou, embaraçado, e Harriet implorou:
- Por favor, não vamos começar tudo de novo.
- Aposto dez contra um como a resposta vai ser não - Joth comentou, e Harriet se afastou o mais depressa possível.
Depois do almoço, quando todos estavam na praia, aproveitando o sol, ela propôs a Joth:
- Já que gosta de apostar, que tal uma corrida a nado até as pedras?
Seu maio era da cor da pele, com desenhos orientais. Sua figura magra e esbelta faria com que qualquer homem a olhasse com admiração, mas Joth não parecia impressionado.
- Por quê? - ele perguntou.
- Só para provar que nado mais rápido do que você.
- Sinto muito recusar o convite, mas tenho que revisar uns papéis e. . .
- Você quer nadar, Harriet? - Nigel interrompeu.
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- Claro que sim - ela respondeu, e saiu correndo pela praia até se atirar, cheia de energia, na água. Nadou tão rápido, que, chegou às pedras muito antes dos outros.
Alistair foi o segundo a chegar:
- Você devia ter nos prevenido que era uma campeã olímpica.
- Que nada, é só uma coisa que gosto de fazer. Uma das poucas coisas que sei fazer direito.
Mergulhou novamente, assim que Nigel e Brica se aproximaram, ofegantes. Afastou-se das pedras, em direção ao mar aberto, deixando-os para trás.
Talvez ela pudesse ficar na água até o fim das férias, observando os golfinhos e apenas aparecendo para comer. A água acariciava seu corpo dos pés à cabeça, era
um bálsamo para seus problemas.
. - Harriet, você está muito longe! - Nigel gritou.
- Tudo bem. Aqui está ótimo, estou me divertindo muito! Essas férias eram a última chance que tinha de nadar por um bom
tempo, porque, quando voltasse a Londres, começaria a trabalhar na galeria de arte e tão cedo não teria outras férias assim. Pensou em Anthony e em que seria agradável
revê-lo. Mas a imagem de Joth foi suficiente para tirar de sua cabeça todos os outros homens. Imaginou se ele não viria atrás dela, se ficasse longe dos outros por
mais tempo. Mas não, ele já a havia socorrido uma vez, e ela não estava em dificuldades.
Podia vê-lo dali, ainda sentado na praia com seus papéis. É claro que ele hão vem, pensou, não sou nada para ele. E não faria o menor sentido esperar que pudessem
se encontrar em Londres novamente. Não havia nenhuma possibilidade de dar certo para ela e Joth. E por que tinha dito aquilo a respeito do pai dele? Como alguém
podia ser tão insensível a ponto de agredir uma pessoa daquela maneira?
- Desculpe, desculpe - murmurou, enquanto boiava. Nigel nadava em sua direção.
- Você está indo muito longe - ele protestou novamente.
- Não seja tolo, Nigel. Posso me virar sozinha. Além do mais, nado muito bem.
- Não estou dizendo que não sabe nadar, mas podia ficar um pouco menos afastada de nós. Mal a estamos vendo.
- Está bem, está bem. vou até ali e volto - ela respondeu, deixando-o para trás de novo.
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Quando voltou para as pedras, todos já estavam na praia. Resolveu se exibir um pouco. Subiu na pedra mais alta, acenou para que a vissem e pulou lá de cima.
Que delícia, pensou. Aquilo era fantástico. Poderia ficar mergulhando por horas. Da praia, Nigel gritava que aquilo era perigoso, podia bater com a cabeça no fundo
e se machucar.
Depois de mais alguns mergulhos, resolveu atender a seus pedidos e nadou até a praia. Alistair e Eriça a receberam com entusiasmo, e Annie perguntou:
- Não tem medo de nada?
- Claro que tenho. - Da solidão e de ficar velha, pensou. E de amar um homem que não sente o mesmo por mim. - Mas não de mergulhar.
Nigel se aproximou, resmungando:
- Tem que aparecer e se exibir a toda hora? Tudo o que você faz é para chamar a atenção dos outros?
- É, eu acho que sim - Harriet respondeu, sem pensar muito.
- Mas que diabo! Você quer casar com ela ou quer consertá-la? Joth se intrometeu, com seu vozeirão.
- Mas é uma insanidade ficar mergulhando daquelas pedras.
- É, e ela dirige carros em alta velocidade também - zombou Joth.
- E se ela se desfigurar, depois de um acidente?
- Aí, eu descobriria quem são os amigos de verdade... - disse Harriet.
Os dias passavam, as férias estavam sendo ótimas. Passavam horas na praia, faziam passeios de barco pelas ilhas vizinhas e saíam para pescar à noite. Uma vez, foram
até o continente para fazer compras, ler os jornais e saborear a tradicional comida italiana.
Harriet estava sempre inventando novas aventuras, como pescar em alto-mar, mesmo sem nunca ter feito isso antes. E quase foi derrubada para fora do barco. E ainda
queria subir até a cratera do vulcão. Insistia muito, mas ninguém aceitava o convite. Um dia, ameaçou:
- Já que ninguém quer me acompanhar, vou sozinha.
- Não enquanto eu estiver por aqui - disse Joth. E ela sabia que, se ele quisesse, poderia impedi-la.
A energia de Harriet, que a princípio tanto tinha encantado Nigel,
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agora começava a deixá-ío um pouco abatido. Ainda estava fascinado por ela, mas chegara à conclusão de que não conseguiria acompanhar seu ritmo por toda a vida.
Talvez fosse até bom a Mansão Tudor não ser mais sua; assim, não tinha muito que oferecer a Harriet. E estava começando a agradecer por Annie ter insistido em vir
também, porque um homem fica com os pés no chão, quando tem como companheira uma mulher como Annie.
Todos estavam se divertindo muito. Harriet parecia estar aproveitando cada minuto das férias. Ninguém suspeitava de que fazia tanta coisa apenas para estar bem cansada
de noite e dormir logo. Porque, se acordasse no meio da noite, imaginaria de novo, mil vezes, a mesma cena: ela indo até a varanda e chamando Joth pela janela. Em
sua fantasia, ele saía do quarto e conseguiam finalmente conversar um pouco. Diria a ele o quanto estava só e o quanto o desejava e precisava dele. Mas tinha medo
de que a tocasse, pois, se isso acontecesse, seu corpo reagiria com uma explosão de desejo.
Na verdade, sabia que jamais se atreveria a chamar por Joth, porque não teria uma acolhida muito boa e não queria esta lembrança amarga martelando sua cabeça quando
deixasse a ilha.
Quando não estivesse mais passando seus dias com ele, suas noites seriam mais calmas. Quando voltasse a Londres, iniciaria vida nova, Teria trabalho novo e excitante,
não voltaria a ver Jotham Gaul.
Mas, na quarta-feira da segunda e última semana de férias, ela desceu para tomar o café da manhã e Joth não estava. Os outros estavam sentados em volta da mesa,
tomando leite e comendo, quando Alistair disse alguma coisa parecida com "quando Joth voltar".
Harriet fez uma cara de assustada e perguntou imediatamente:
- O que você quer dizer com "voltar"? Aonde ele foi?
- Teve que resolver alguns negócios em Nápoles, no sul da Itália. Em vez de ser um alívio para Harriet, que poderia relaxar por um
par de dias e de noites, a notícia lhe provocou um profundo desânimo, como se tivesse caído num buraco fundo. Tudo, em volta, agora parecia sem graça e pesado, sem
vida e sem brilho. Estava apaixonada por um homem que não gostava dela. Quando ele estava perto, sentia-se perpetuamente ameaçada, mas, com ele longe, nada mais
tinha graça.
Eriça, sentada a seu lado, disse, ansiosa:
- Você está bem? Ficou tão pálida. . .
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O bronzeado da pele de Harriet tinha se transformado num branco sem vida, e todos ficaram preocupados, mas ninguém associou isso à viagem de Joth, e sim ao excesso
de atividades. Ela reclamou de dor de cabeça e Annie lhe trouxe uns comprimidos, fazendo a palidez desaparecer.
Passou aquele dia e o outro muito deprimida. com a desculpa de que estava um pouco gripada e precisando descansar, só saía do quarto para passear sozinha, nas horas
em que o resto do grupo fazia outras coisas.
Já era de noite, no outro dia, quando Joth voltou. Todos estavam na varanda tomando café. Harriet tentou se manter o mais fria possível, porque sabia que, caso se
empolgasse, um pouco que fosse, acabaria confessando o quanto tinha sentido sua falta, e aquilo não ficaria nada bem na frente de todo mundo.
Logo que viram as luzes do barco, todos correram até o ancoradouro.
- Fez boa viagem? - Nigel gritou. Joth acenou:
- Õtima. Os resultados estão aqui, dentro de minha valise.
- O que está em sua valise? - perguntou Annie.
- Provavelmente, os papéis de mais algum bom negócio - sugeriu Nigel.
Harriet gostaria que, pelo menos dessa vez, ele voltasse como perdedor. Assim, quando lhe dissesse: por favor, vamos ser amigos, acreditaria que o que sentia por
ele era sincero, e não o capricho de uma beldade mimada.
Logo que Joth desembarcou, Annie e Eriça correram para abraçá-lo.
- Sentimos muito a sua falta - Annie falou.
- Também fiquei com saudades de todos vocês.
Eu não posso dizer uma coisa dessas com naturalidade, pensou Harriet, porque, se ele me abraçar, vou ficar vermelha e sem graça.
Quando começaram a subir o caminho de -volta à casa, Joth virou-se para ela e perguntou:
- Como é, já escalou o vulcão?
- Não. - Depois, teve uma brilhante idéia: - Ei, não ganhei presente nenhum de você, na festa. Que tal me levar lá e reparar sua falta?
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Ele sorriu.
- Está bem. Amanhã.
Os outros zombaram. Quem ia querer passar o último dia de férias escalando um vulcão? Parecia um passeio quente, poeirento e horrível. Mas Harrieí queria ir porque
sabia que apenas Joth teria coragem para acompanhá-la. E porque seria mais fácil conversarem lá em cima. Lá, teria todo o tempo do mundo. Poderia conduzir o papo
naturalmente, pedir-lhe desculpas pelo que tinha dito, sem precisar fazer um drama.
No outro dia, logo que acordaram, Eriça veio lhe falar.
- Você não está levando a sério essa escalada, está?
- É claro que estou.
- Você não vai conseguir - advertiu Annie.
E Annie provavelmente estava certa. A escalada era duríssima, mas, pelo menos, ela mostraria a Joth que- não desistia facilmente quando as coisas se complicavam.
Ele respeitava os combatentes, e subir até a borda do vulcão era um desafio.
- Estou pronto - Joth disse, e Harriet pôs-se imediatamente de pé. Vestia um jeans e uma camisa de algodão, e calçava botas de couro, resistentes e confortáveis
o suficiente para não machucar os pés na subida.
- Quando mandamos a expedição de salvamento? - perguntou Nigel.
- Não se preocupe, estaremos de volta logo - disse Joth, sério. vou ser a primeira a chegar, ela pensou, e então poderei dizer:
bem, este obstáculo foi superado. Agora existe outro. Queria pedir desculpas.. .
Começou a escalada com determinação. A subida era lenta, mas constante, e logo ultrapassaram a zona cultivada e atingiram a base rochosa. Até lá, tinham conversado
normalmente, inclusive sobre o hotel que Joth pensava construir na ilha. Mas ali ele a advertiu:
- De agora em diante, eu a aconselho a falar pouco e economizar fôlego.
Ela concordou, respirando já com um pouco de dificuldade. A superfície era árida e as únicas plantas que sobreviviam ali eram uma espécie de cacto.
A escalada era realmente difícil. Depois de cerca de uma hora de caminhada, Harriet teve que admitir que chegar ao topo não seria
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tranqüilo como imaginava. Na última etapa do percurso, Joth teve que ajudá-la a superar certos obstáculos.
Ela murmurou um "obrigada", quando a ajudou a se equilibrar em cima de uma ponte estreita e perigosa que os levaria a seu destino. Apoiada em seu corpo, ela o ouviu
comentar:
- Vamos conseguir. Estamos bem perto.
Sim, ela pensou, nós conseguiremos. com você, sou capaz de qualquer coisa. E sorriu, fazendo que sim com a cabeça, incapaz de falar.
Do cume do vulcão, olharam para dentro da cratera, pensaram na quantidade de lava que já saíra dali e nas antigas povoações soterradas por sua fúria.
Mas a vista do mar era muito mais bonita do que a do interior do vulcão. Harriet estava tão cansada que não conseguia dizer uma palavra, limitando-se a sorrir e
a apontar para a imensidão da água. Ele sorriu para ela e lhe ofereceu um pouco de água de um cantil.
Eu o amo, ela pensou, eu o amo, e tenho medo de confessar meu amor. Mas hoje à noite vou me fazer mais bonita do que nunca, e talvez então isso seja mais fácil.
- Devo estar parecendo .uma bruxa.
- Que nada! Você está muito bem. Vamos começar a descer, agora?
Mal iniciaram a caminhada de volta, ela escorregou em uma pedra e caiu, cortando o queixo.
- Isso tem de parar - ele disse, levantando-a. - Não agüento mais.
Ela sabia que tinha sido um estorvo, mas doeu muito ouvir isso dele. Foi pior que o pouco de sangue que viu em seus dedos depois de passar a mão no rosto.
- Está tudo bem. Você não está desfigurada. Ela sorriu, serrí jeito.
- Nigel parece pensar que isto é a pior coisa que poderia me acontecer.
- É mesmo?
- Você me acha bonita?
- A maior parte do tempo, sim, mas algumas horas você fica feia como um gambá.
Ela quis partir para a briga, mas ele a desarmou com um enorme
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sorriso. É claro que estava brincando. Ofereceu-lhe seu lenço e perguntou:
- Tudo bem?
- Tudo bem - ela disse, levantando-se. - Podemos voltar pelo templo? Gostaria de vê-lo pela última vez.
- É claro.
Joth foi na direção da trilha que levava ao templo. Logo que chegaram ao local em que ela tinha repousado nos braços de Joth, Harriet não se conteve e comentou:
- Não vou casar com Nigel.
- É claro que não. - Ele não parecia surpreso, mas parou para olhá-la.
- Sílvia ficará muito feliz, não é mesmo? Nigel me disse que você faria qualquer coisa por ela.
- Mas o que fiz, desta vez? - ele perguntou.
- Escolhendo-me para sua companhia na festa, você afastou Nigel de mim.
- Bem, não fiz isso por Sílvia. Nem por Nigel.
- Foi por Annie?
- Você deve pensar que sou uma instituição de caridade. Faço muitas coisas por mim mesmo.
- Mas você disse a Nigel que ele seria um louco, se envolvendo com uma mulher como eu.
- E seria mesmo. Você nunca lhe daria um minuto sequer de descanso. Mas eu seria muito mais louco, se não me envolvesse com você.
- Está brincando! -
- Estou, é?
- Por que não disse apenas "por favor, não case com ele", na manhã seguinte à festa?
- Ele me falou que você estava pensando a respeito.
- Prometi isso para ele me deixar dormir um pouco. Minha decisão já estava tomada.
- Isso é bem simples, mas não me ocorreu em nenhum momento. Nwnca imaginei que, sendo ciumento, poderia me tornar idiota.
Ela não acreditou no que estava ouvindo. Sentou-se na grama para não cair de tanta emoção.
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- Você não agiu como um sujeito ciumento.
- Claro que não. Sou muito bom nesses jogos de paciência. Sentou-se do lado dela. - Mas, se Nigel e você estivessem ficando bastante íntimos, eu teria agido de outra
maneira.
- De que maneira, por exemplo?
- E a Mansão Tudor? - Piscou para ela. - Era um grande trunfo em minhas mãos. Você a queria, não queria? Poderia tentar seduzi-la também. Tenho certeza de que sou
melhor, nisso, do que Nigel.
- Aposto que sim - ela concordou, docemente, apoiando a cabeça em seu ombro, enquanto ele a abraçava.
- Sentiu minha falta, nestes dois dias?
- Bastante.
Nunca tinha se sentido tão segura. Estava a ponto de gritar, ou de chorar, ou as duas coisas, quando perguntou:
- Você me ama?
Ele fez uma cara de quem ia dar alguma resposta surpreendente, mas falou apenas:
- Sim, muito.
O sorriso venceu as lágrimas e ela disse, baixinho:
- Acho que também amo você.
- Acha? Não quero que se apresse, já leva uma vida muito agitada. Quer um tempo para pensar?
- Quanto vai me dar?
- Cinco minutos, está bem?
- Obrigada. - Adorava ficar olhando para seu rosto anguloso e bonito. - Nunca levei a sério a possibilidade de casar com Nigel. Você compreende, não depois daquela
festa... E não tem nada a ver com a Mansão Tudor. Cheguei até a escrever para Dorothy, em Londres, a da galeria de arte onde vou trabalhar. Não pude dormir aquela
noite e...
- Onde fica essa galeria? - Joth interrompeu.
- Em Londres. Em Twickenham. Já lhe falei sobre ela. Pertence a Dorothy e ao marido, mas eu os ajudei a comprá-la. Vendi umas jóias e...
- E você precisa trabalhar em tempo integral?
- Você tem alguma outra sugestão?
- Muitas. Mas, já que sou romântico e antiquado, a primeira coisa que precisa ficar bem clara é que você vai casar comigo.
- Casar com você? - Mas ele já a beijava e a acariciava, no rosto, nos lábios, no pescoço...
Antes que seu corpo começasse a pegar fogo, Harriet disse:
- Se meus cinco minutos já acabaram, tenho certeza de que caso com você.
Ele sorriu. Não disse nada. Segurou-a nos braços e beijou-a apaixonadamente, lentamente, com habilidade e paixão, até que não agüentaram mais de desejo e se amaram,
ali mesmo, naquele templo romano.

Fim.

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