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quinta-feira, 28 de junho de 2012

O Segredo da Libélula

Scott Blum

O Segredo da Libélula
A Busca de um Homem Pelo
Sentido da Vida


Tradução:
Mirian Ibanez



PREFÁCIO

Muitas pessoas me perguntam se esta historia é real ou
ficção, e essa pergunta é sempre difícil responder. A
verdade, para mim, não se limita ao mundo físico; em vez
disso, representa uma energia que circula nos intervalos
entre o tempo e o espaço, num furtivo rio de intenções. E a
energia contida nestas páginas é tão real como qualquer luz
que vejo, canção que ouço ou fruto que já provei. É verdade
que usei um artifício de ficção para entrelaçar as palavras em
uma trama que seja fácil apreciar, assim como também é
verdade que muitos dos eventos descritos aqui aconteceram
de fato, de modo que muitas pessoas podem se identificar
com eles. Para mim, porém, isso é irrelevante, porque a
energia subjacente - e ela sempre está ali - é a minha
verdade.
Que você se divirta lendo a minha verdade e que ela o ins-
pire a ouvir a sua!

Capítulo 1

Ele era o sem-teto mais feliz que conheci. Seu sorriso era
caloroso e amigável. Os cabelos, compridos até os ombros,
eram iguais à emaranhada barba ruiva. Embora parecesse
estar usando as mesmas roupas marrons maltrapilhas desde o
dia anterior e cheirasse como se não tomasse banho havia
uma semana, algo em seus olhos azul-claros me deixou à
vontade.
Enquanto carregava minhas compras pelo estacionamento
até minha vaga, li o cartão que ele estava segurando:

Receba sempre com gratidão.

Seu sorriso expandiu-se intencionalmente quando passei por
ele, e assim que olhei para baixo percebi que havia um
pequeno cachorro negro dormindo a seus pés. Quando
estava bem próximo do homem, sussurrei para mim mesmo:
Isso é irônico.
- O que é irônico? - ele perguntou.
Surpreso, dei mais um passo, esperando dar a impressão de
não ter ouvido o que ele dissera.
- O que é irônico? - ele repetiu.
Parei e virei-me devagar. Embaraçado, respondi:
- É irônico que você esteja dando um conselho sobre como
receber, quando está pedindo dinheiro.
- Não estou pedindo nada - ele sorriu com satisfação. -
Agora mesmo, estou dando.
Mordi a isca, sem pensar.
- Então, quando é que vai me dar alguma coisa?
- Já lhe dei, mas você não aceitou da maneira como lhe foi
oferecido.
- Ah... acho que se enganou. Você não me deu nada. Talvez
esteja me confundindo com outra pessoa.
- Não, não o confundi com ninguém! - ele estava visivel-
mente irritado. - Por favor, vá embora. Estou muito ocupado
- ele disse.
Olhei ao redor e não havia ninguém nas proximidades.
- Por favor, vá embora agora mesmo - ele repetiu e virou
para o outro lado.
Sem graça, carreguei minhas compras ladeira acima, até meu
apartamento. Não sabia o que podia ter dito para ofendê-lo,
mas ele não deixou nenhuma dúvida de que não ficara
satisfeito com meu comportamento.
Quando cheguei em casa, ainda estava bastante perturbado
com o acontecido. Tentei me livrar daquela sensação,
convencendo-me de que ele provavelmente me confundira
com outra pessoa. Queria esquecer tudo e voltar ao meu
cotidiano normal, mas não conseguia. Em geral, não me
importo com o que as pessoas pensam de mim, mas tive
uma estranha conexão com aquele homem e não queria
perder aquilo.
Menos de uma hora depois, peguei minha carteira e voltei
ladeira abaixo. Não sabia muito bem o que ia dizer, mas
tinha de tentar.
Fiquei aliviado ao ver seu cabelo ruivo emaranhado e o
cachorrinho assim que me aproximei da cooperativa em que
havia feito as compras. Quando cheguei perto, vi que ele
tinha um novo cartaz, no qual li:

Quero uma laranja.
O que você quer?

Sorri e pensei que se tratava de uma boa idéia para um gesto
de paz. Fui até a loja e comprei a melhor laranja-baía que
encontrei e ainda peguei umas miudezas que não havia tido
condições de carregar da vez anterior.
Tão logo atravessei as portas duplas de vidro em direção ao
exterior, atirei a laranja para ele, decidido a ter uma nova
chance.
- Aqui está - falei, quando a fruta saiu da minha mão.
- Obrigado! - Ele sorriu, e parecia genuinamente agradecido
pela laranja. - Essa foi a melhor coisa que me aconteceu
durante todo o dia.
Na mesma hora, suas palavras fizeram com que eu me sen-
tisse melhor, e assim decidi ser um pouco brincalhão.
- Então você pode me ajudar a conseguir o que quero? - Dei
uma risadinha de satisfação.
- Claro que posso!
- E como pode fazer isso?
- Você pode tornar real qualquer coisa que queira.
- Ah... mesmo? Então por que você não faz isso?
- Faço todos os dias.
- Então por que continua sendo um sem-teto?
- Por que você pensa que sou um sem-teto?
Minha nossa!, pensei. Definitivamente teria de prestar muita
atenção ao que ia dizer se tivesse mesmo a intenção de ficar
mais tempo com ele.
- O que você concretiza - perguntei, tentando arduamente
mudar de assunto.
- Hoje concretizei uma laranja.
Dei risada.
- Tudo que você fez foi escrever um aviso dizendo que que-
ria uma laranja.
- E você me deu uma. Portanto, claramente tive êxito na
concretização. - Ele sorriu com orgulho.
- Então, se eu quiser um milhão de dólares, tudo que tenho
de fazer é um aviso dizendo "Dê-me um milhão de dólares"
e alguém simplesmente vai me oferecer essa quantia?
- Você acredita que vai acontecer?
- Claro que não! Não há nenhuma chance de alguém ler um
aviso desses e resolver me dar toda essa grana!
- Então você já respondeu à própria pergunta.
- Ou seja... você concorda... que não pode fazer com que
qualquer coisa que queira apareça, de repente, de algum
lugar.
- Não. Apenas concordo que você não acredita que essa seja
a maneira correta de tornar real a quantia de um milhão de
dólares. Na verdade, fazer com que algo se manifeste não
tem nada a ver com fazer um esforcinho à toa e falhar. Tem
que ver, isso sim, com alinhar as metas ao destino para que
ambos se tornem uma coisa só. É preciso acreditar sem
nenhuma dúvida e agir de imediato, senão será apenas perda
de tempo. Você realmente quer um milhão de dólares?
- Claro que quero!
- Eu não acredito.
- Por que não?
- Porque tenho uma laranja e não parece que você esteja
sequer próximo de ter um milhão de dólares no bolso.
Talvez ele tivesse razão.
- O que você realmente quer? - Os olhos dele me fixavam
penetrantes à procura das profundezas.
- Ser feliz - respondi, após longa pausa.
- Agora, sim, trata-se de uma coisa em que posso ajudá-lo.
Desde que você seja honesto consigo mesmo, já estará a
meio caminho de lá.
- Sou Robert - ele disse, estendendo a mão.
- E eu, Scott. - Apertei a mão dele.
- Prazer em conhecê-lo, Scott. E esse é meu cachorrinho,
Don. Volte aqui amanhã, mais ou menos nessa mesma hora,
e terei algo para você.
Assim que fui embora, notei que estava ao mesmo tempo
intrigado e temeroso da maneira como me sentia atraído por
Robert. Para mim, havia algo estranho no modo como as
pessoas de Ashland são abertas e calorosas, e ainda estava me
habituando a isso. Em Los Angeles, eu me sentia confortável
com o véu de anonimato propiciado pelas multidões. E,
quando comecei a descobrir como é amistoso o povo de
uma pequena cidade como esta, no sul do Oregon, senti-me
envergonhado de como me tornei tão fechado ao longo dos
anos e prometi mudar essa conduta. Aqui, ninguém sabia
como eu era desconfiado e entediado em Los Angeles, e eu
queria me reinventar como uma pessoa amigável que só
podia ver o que existe de bom nos outros. Era um tremendo
exercício mental que quase imediatamente começou a me
oferecer de volta algum traço do otimismo que eu tinha na
infância. Decidi abraçar esse ideal quando fiz o caminho de
volta na ladeira e continuei a desempacotar mais caixas.

Eu adorava meu novo apartamento, e ele tinha uma ótima
localização, somente a três pequenos quarteirões do Lithia
Park, nas colinas ao norte, no topo do centro da cidade de
Ashland. Encravado entre antigos carvalhos numa rua
arborizada, o duplex amarelo-claro era maior do que aqueles
nos quais eu estava habituado a morar e parecia mais uma
casa que um apartamento - em especial por causa do enorme
quintal. O quarto tinha uma vista bela e era alugado mês a
mês, portanto, se não desse certo permanecer em Ashland,
eu sempre poderia continuar minha jornada para o norte e
não teria de permanecer ali por muito mais tempo que o
necessário.
Alguns dias antes eu estava viajando em direção a Portland,
para recomeçar minha vida após ter perdido meu emprego
na insensível indústria do entretenimento. Desde o
momento em que me mudei para Los Angeles, uma onda de
má sorte me impediu de manter cada emprego por muito
tempo. Sempre eram mencionadas razões de orçamento,
mas a verdade era que eu nunca fora capaz de encontrar um
nicho em nenhuma daquelas companhias em que trabalhei.
E era sempre o primeiro a ser demitido se a situação ficasse
difícil. Porque tinha inclinação a aceitar o emprego errado,
permanecia mais sem que com trabalho.
Finalmente, prometi a mim mesmo que, se perdesse o
emprego outra vez, deixaria a cidade antes que minhas
economias minguassem a um ponto crítico. Por sorte, uma
das primeiras pessoas que conheci em Los Angeles foi um
empresário do ramo musical chamado Clark. Ele trabalhava
na mesma gravadora que eu quando cheguei à cidade e
estava sempre envolvido em algum esquema de
enriquecimento rápido. Nós nos demos bem de imediato,
mas quando isso aconteceu ele já estava indo embora. Ele
estava farto do ambiente de Hollywood e resolvera mudar
para Portland decidido a lançar uma gravadora independente
para aproveitar o conhecimento expandido que tinha do
cenário musical. Ele me ofereceu um emprego para quando
estivesse com a empresa lançada no Oregon, e decidi aceitar
depois de ter recebido meu mais recente aviso prévio.
Simplesmente juntei tudo que pude em um trailer e comecei
a dirigir em direção ao norte. Fui embora no dia seguinte em
que perdi meu emprego, sem me preocupar em me despedir
de ninguém que conheci.
Depois de conduzir o carro por doze horas seguidas, cruzei a
fronteira entre a Califórnia e o Oregon, e o motor de meu
velho Volvo morreu dramaticamente na montanha Siskiyou,
após uma forte explosão e uma espessa coluna de fumaça
negra. Deveria ter parado em um posto de gasolina para
fazer uma revisão antes de começar a subir, mesmo porque
eu sabia muito bem como Siskiyou exigia demais dos carros
velhos. Eu crescera numa cidadezinha no norte da
Califórnia, cerca de oitenta quilômetros ao sul da fronteira
do Oregon, portanto havia escalado aquele desfiladeiro
muitas vezes. Entretanto, minha família mudara-se para o
Meio-Oeste alguns anos antes, e todos os meus velhos
amigos tinham desaparecido havia muito tempo, de modo
que não havia razão para fazer uma parada na viagem.
Olhando a situação em retrospectiva, fazer uma boa
checagem de óleo no Yreka teria sido uma boa idéia.
Felizmente, uma patrulha rodoviária estava um pouco atrás
de mim quando meu carro explodiu, então os policiais
fizeram um bloqueio naquela parte da estrada até que o
guincho chegasse. Meu carro e o trailer foram levados ao
primeiro mecânico disponível, que ficava justamente em
Ashland. E quando eu soube quanto custaria o conserto do
veículo precisei decidir se comprava uma passagem de
ônibus para Portland ou se gastava todas as minhas
economias para ressuscitar o Volvo.
Quase comprei uma passagem de ônibus para sair de
Ashland, mas alguma coisa me disse para adiar a decisão por
alguns dias e simplesmente permanecer ali. De fato, eu não
estava tão interessado em Portland, mas sim em sair de Los
Angeles. Embora tecnicamente eu já tivesse um emprego
esperando por mim lá, tinha dinheiro suficiente para me
manter por alguns meses enquanto tentasse encontrar
trabalho.
Tinha esquecido de quanto gostava de Ashland - era um dos
meus lugares favoritos durante a adolescência. E me lem-
brava de visitar aquele lugar turístico idílico para fazer
compras, comer nos restaurantes ou assistir vez ou outra a
uma peça de Shakespeare. A cidade era linda, o ar muito
limpo, havia cultura e, mais importante, eu simplesmente
gostava dela. Sentia-me confortável em Ashland, e jamais
me sentira confortável em nenhum outro lugar (incluindo
em minha própria pele) desde que me conheço por gente.
Assim que me hospedei em Ashland por alguns dias,
imediatamente a vida pareceu ficar mais fácil e abandonei
depressa meu plano original, decidindo permanecer no sul
do Oregon. Eu já estava até mesmo muito mais feliz do que
em Los Angeles e logo me acostumei com a idéia de viver
sem um carro. Eu andava a pé desde que chegara, e isso me
liberava de ter um carro, embora tivesse mantido essa
dependência por muitos anos.

CAPÍTULO 2

No dia seguinte, despertei no topo do mundo. Eu ainda
estava cuidando de parte da mudança e nem tinha desfeito
as malas, mas minhas reservas de adrenalina me mantinham
em movimento e eu estava oficialmente morando na mais
bela cidade em que já estivera. Desde que chegara, o tempo
havia permanecido quente, ao contrário do costume, e às
vezes até competia com as mais altas temperaturas do sul da
Califórnia. Foi uma coisa boa porque meu guarda-roupa
estava restrito a camisetas de mangas curtas, jeans e tênis,
tendo em vista que, durante muitos anos, eu trabalhara no
ambiente casual da indústria do entretenimento. Os
habitantes locais avisaram-me de que a temperatura ia cair
vertiginosamente quando a estação mudasse, e comecei a
perceber isso, embora tenha vivido uma única estação nos
últimos anos.


Mais ou menos na mesma hora do dia anterior, retornei à
cooperativa, ansioso para ver o que meu amigo teria para
mim. Robert estava sentado de pernas cruzadas, com as
costas apoiadas em uma árvore conífera, e o pequeno
labrador negro dormia a seus pés. Ele ainda vestia as mesmas
roupas marrons maltrapilhas do dia anterior, embora
parecesse ter encontrado uma escova para pentear os
cabelos. Quando me aproximei, o cãozinho, percebendo
minha presença, abriu os olhos rapidamente, mas logo os
fechou de novo, retornando ao sono aparentemente
perpétuo.
- Olá - falei enquanto caminhava na direção deles.
- Olá, Scott. - Robert levantou-se depressa, juntou seus
pertences e começou a colocá-los numa grande sacola de
lona. Ele sacudiu casualmente o recém-escrito cartaz que
estava mantendo no chão.

Não há diferença entre
_ e _.

Aquele escrito me desafiou. Eu poderia encontrar um par
que desafiasse claramente essa aparente premissa de
igualdade e comecei a pensar em várias duplas. Girafas e
jacarés. Debutantes e automóveis. Janelas e plumas. Por fim,
disse uma em voz alta, na certeza de que iria surpreendê-lo:
- Cotovelos e cogumelos.
- Como?
- Seu cartaz... Não há diferença entre cotovelos e cogumelos
- disse, convencido.
- Concordo. - Ele continuou a guardar as coisas. - De fato,
não existe.
A resposta dele me confundiu, e, quando eu ia começar a
protestar, ele balançou a cabeça como se dissesse: Não se
preocupe. Você tem muito que aprender.
Então Robert guardou o cartaz na mochila e ajeitou com
cuidado uma série de coisas que mantinha ali dentro. Em
seguida, ele a ofereceu a mim e perguntou:
- Você se importa?
- De maneira nenhuma. - Peguei a sacola de tecido e ajustei-
a nos ombros enquanto meu ego ainda estava um pouco
perturbado pela resposta desdenhosa.
Vamos embora - ele disse, lançando o cachorro nas costas
como se estivesse carregando um bichinho de pelúcia. O
cãozinho deixou escapar um grunhido de surpresa quando
sua barriga tocou o ombro de Robert, mas suas pálpebras
continuaram fechadas e ele retornou em silêncio ao seu
estado de indiferença.
Andamos ladeira acima em direção à rua Main e viramos à
direita, na base da montanha, perto da grande biblioteca
cinza. Eu nunca havia estado naquele edifício público antes,
mas sua presença imponente dominava com segurança o
lado sul do centro da cidade.
- Para onde estamos indo? - perguntei.
Robert lançou um olhar cortante em minha direção, dei-
xando bem claro que minha pergunta não seria respondida.
Por um breve momento fiquei pensando se deveria confiar
nele, uma vez que ele parecia ter o hábito de ser enigmático
e reservado ocasionalmente. Mas a verdade é que me sentia
confortável quando estava perto dele. Era como se tudo
estivesse como tinha de estar, e ele expressava certa
inocência infantil que fazia tudo parecer estar perfeito.
xxEmbora não fizesse muito sentido confiar por completo em
alguém que acabara de conhecer, decidi atribuir àquela
apreensão um caráter de reminiscências de desconfiança
adquirido em Los Angeles. Se eu iria mesmo permanecer em
Ashland, precisaria fazer alguns amigos, de qualquer
maneira, então tentei tirar minhas dúvidas da cabeça e
aproveitar o dia sem pensar muito nisso.
- De onde você é? -perguntei, mudando de assunto.
- Sou de toda parte, mais recentemente de Eugene.
- E o que o trouxe aqui?
- Com certeza, vim para conhecer você.
Sorri, mas não estava certo de que ele estivesse brincando.
- Viajo para qualquer lugar onde sou necessário, e Ashland
sempre parece ter pessoas que estão prontas para passar para
o próximo nível.
- Próximo nível de quê ?
- Próximo nível de consciência. Como Ashland está em um
vórtice, atrai pessoas que estão no caminho. E muitas, como
você, não percebem que estão no caminho até que
conheçam alguém como eu.
- Alguém como você? O que quer dizer com isso? Quer
dizer que há outras pessoas como você?
- Claro que há outras pessoas como eu, assim como há outras
pessoas como você. Você está prestes a despertar
espiritualmente, e estou aqui para ajudá-lo a fazer isso.
Felizmente, agora mais do que nunca, muitas pessoas estão
nessa jornada. Por fim, é chegada a hora deste planeta
despertar para que possamos, como um todo, progredir para
o próximo nível.
Eu não pensava que estivesse prestes a nada espiritual. Ape-
nas tive o carro quebrado numa pequena cidade montanhosa
e estava tentando fazer o melhor com o pouco dinheiro de
que dispunha. Na realidade, eu nunca havia pensado muito
sobre espiritualidade antes. Embora meus pais tivessem
nascido em famílias religiosas, decidiram criar os filhos para
serem agnósticos, então eu não tinha muita experiência com
xxessas coisas. Celebrávamos o Natal, mas essa festa estava
mais para "Papai Noel" que para "Jesus e Maria".
Enquanto continuávamos a caminhar pelas montanhas aci-
ma do centro da cidade, eu me dei conta do porquê Robert
estava sendo tão gentil. Evidentemente era um religioso
fanático que estava tentando me converter.
- A que religião você pertence? - Achei que já era tempo de
abrir aquela questão.
- Religião? Não sou religioso! - ele respondeu, indignado. -
Quem disse qualquer coisa sobre religião? Espiritualidade e
religião são duas coisas muito diferentes.
- Desculpe-me, pensei que...
- Religião é o conhecimento da verdade - ele interrompeu -
e espiritualidade é a sabedoria da verdade.
- Você está dizendo que pessoas religiosas não são espiritua-
lizadas? - Eu estava confuso.
- É claro que não. - A voz dele adquiriu um tom mais suave
e mais inteligível quando explicou: - Há muitas pessoas
religiosas que são bastante espiritualizadas. A religião é
apenas um dos caminhos para o despertar espiritual.
Memorizando passagens, praticando rituais ou estudando a
ciência do universo, todos fazem a mesma coisa: mantêm a
mente ocupada com conhecimento até que tenham
experiência de vida suficiente para saber o que fazer com
isso. E isso é sabedoria. Sabedoria = conhecimento +
experiência.
- Mas se religião é o conhecimento da verdade, como é
possível que tantos livros religiosos se contradigam? - Minha
educação agnóstica começava a se manifestar.
Existe uma única verdade subjacente que reúne todos esses
livros, seja ela escrita ou não. E, embora todos tentem, as
palavras não conseguem captar e traduzir a essência da
verdade, e a contradição é uma de suas primeiras armadilhas.
Estava começando a ficar zonzo, de modo que fiz um sinal
indicando a Robert que parasse, para que eu pudesse tomar
fôlego antes de prosseguir. Pensei que estivesse em
excelente forma, mas todos aqueles anos sentado naquele
tráfego intenso, em que os carros ficavam quase grudados
uns nos outros, claramente fizeram estragos e cobravam seu
preço.
Robert colocou o pequeno cão preto na calçada e retomou o
que estava dizendo:
- Contudo, para aqueles de nós que estão abertos a se
aprofundar na sabedoria do universo, que já existe, é
possível embarcar no caminho da verdade em muito menos
tempo.
Recomecei a caminhar lentamente pela encosta, e, depois de
se assegurar de que o cãozinho estava bem, Robert lançou o
labrador negro sobre os ombros e, sem o menor esforço,
subiu a ladeira para me alcançar.
Após assimilar o que ele estava dizendo, acabei por per-
guntar:
- Então isso significa que posso absorver a sabedoria do
universo?
- Sim, você pode. Todos nós podemos. A questão é: você
está disposto a entregar as próprias experiências ao universo?
- Ele sustentou meu olhar por alguns segundos, e desviei,
olhando adiante.
- Isso parece difícil - falei.
- Difícil é lutar contra o destino. Mas é para isso que servem
os erros: para mostrar o que é e o que não é seu destino.
Você compreende?
- Sim. Não. Não sei. - Eu não tinha nenhuma energia para
fingir.
- É disso que gosto em você - ele riu. - Sua honestidade é
reconfortante.
Não sabia o que dizer para que ele fosse mais claro, então
perguntei:
- Há quanto tempo você vem ajudando pessoas a despertar
espiritualmente?
- Há cerca de mil e duzentos anos, até agora.
- Quase tropecei no meio-fio, sem a certeza de ter enten-
dido bem.
- Você está muito bem para quem tem mil e duzentos anos.
- Muito engraçado. É claro que não estou neste corpo há mil
e duzentos anos. Este é muito novo para mim.
- Novo... desde quando?
- Há apenas algumas semanas. Eu o obtive em Eugene, desse
Don aqui - ele disse, acariciando o pequeno mascote, cujos
olhos estavam semiabertos agora, à medida que o animal
chacoalhava a cada passo de Robert.
- O cachorrinho Don deu a você o corpo em que está agora?
Como isso funciona?
- Cachorrinho Don... gosto disso. - Ele sorriu. - Sou o que
chamam de Andarilho. Isso significa que procuro por um
corpo hospedeiro para usar sempre que aquele em que estou
não vai durar muito mais, aí passo para o novo. É muito
semelhante ao que qualquer um faz antes de nascer, mas em
vez de escolher um corpo recém-concebido pego um que já
sabe andar e falar. Isso facilita muito meu trabalho. Após mil
e duzentos anos, não preciso ser adolescente outra vez. É
muita distração.
Minha cabeça estava girando. Não sabia se devia ou não
acreditar nele, mas tinha de admitir que ele não era
enfadonho.
- E o que o cachorrinho Don tem a ver com tudo isso?
- Esse corpo em que estou era habitado antes por Don.
Infelizmente ele teve câncer e não tinha dinheiro para o
tratamento. Estava tão confiante na ilusão da medicina
moderna que não percebeu que poderia se tratar sozinho.
Então, quando estava prestes a partir, fiz um acordo com ele,
dando-lhe outro corpo e cuidando dele se pudesse usar o
seu, humano.
- Então você o transformou num cachorro?
- É claro que não! - Ele riu. - Só dei à alma dele algumas
opções mais práticas e, entre algumas convincentes, ele
escolheu o corpo em que está agora. Não vou ficar muito
tempo neste, então ele precisou pegar um que estava no
mesmo ciclo que eu.
- Ele precisava viver em anos de cão.
- Exatamente.
Após escalar a segunda colina, eu estava quase sem fôlego
novamente e não tinha certeza de que conseguiria encarar
uma terceira. Robert entregou-me uma garrafa d'água e
tomei um gole; em seguida, deu-me a chance de apreciar
aquela linda vista do vale, lá embaixo. A água estava
excepcionalmente refrescante, e, olhando para baixo,
fizemos uma pausa longa o bastante para que eu pudesse ver
o solo do vale, que parecia abraçar as colinas como se fosse
um tapete feito à mão, próximo de uma majestosa lareira de
pedra. Havia muitos lugares nos quais eu nunca estivera em
Ashland, e eu sempre ficava tomado pela beleza da cidade
quando descobria uma nova perspectiva para vê-la.
- Aqui estamos - Robert disse quando chegamos ao topo da
terceira colina. Na nossa frente havia um grande
reservatório de cimento cheio de água, e, à direita, a estrada
modificava-se. No lugar do pavimento, havia terra poeirenta
meneando para o que parecia ser um pasto de cavalos. Segui
Robert, saindo da estrada principal para a direita, e chegamos
a uma escada escondida, sombreada por vários arbustos.
Descemos cuidadosamente os precários degraus para
encontrar o prado mais mágico que eu já tinha visto. Raios
de luz dourados dançavam sobre toras repletas de musgo, e o
solo estava coberto com uma combinação de grarna verde
alta e das mais delicadas heras.
- Isso é inacreditável - murmurei, boquiaberto, diante da-
quela beleza mágica que parecia ter sido extraída de uma
pintura de Maxfield Parrish. A luz que mergulhava no prado
estava em constante movimento, e os tons das árvores e das
gramíneas mudavam de azul para verde e de laranja para
roxo, sucessivamente.
- É, sim. Este é o maior prado de fadas em toda Ashland.
Cuidado onde pisa... Você não vai querer esmagar a casa de
ninguém, não é?
Eu não tinha certeza de que ele falava sério ou não, mas, a
julgar pela testa franzida, não parecia se tratar de uma
brincadeira.
- Você queria aprender a obter a sabedoria universal que já
existe, então eu o trouxe aqui. A natureza está repleta da
verdadeira sabedoria, e está tudo ao nosso redor, todos os
dias. Há muitos espíritos naturais sábios que vivem neste
prado, portanto é um lugar onde facilmente se sente a
diferença entre a energia aqui presente e aquela criada pelo
homem. Fique bem quieto e apenas sinta essa presença.
Sentei-me numa pedra à margem do caminho e fechei os
olhos para ver se podia sentir o que ele estava falando. Quase
imediatamente senti cócegas na barriga e caí numa risada
incontrolável.
- Sim, eles são muito brincalhões. E com certeza estão
curiosos a seu respeito! Você sente isso?
- Hum, acho que sim. - Estava sentindo algo estranho, e
brincalhão era definitivamente a melhor palavra para
descrever isso. Abri os olhos e vi uma libélula azul brilhante
pairar a poucos centímetros do meu nariz, como se estivesse
me olhando de forma direta. E foi embora tão rápido quanto
chegara, e então vi mais quatro, fazendo um caminho
triangular, sobre minha cabeça. Em alguns segundos elas
pareciam se multiplicar às dezenas, e, em menos de um
minuto, havia literalmente centenas de libélulas entre as
árvores, seguindo o mesmo padrão triangular. Uma por vez,
elas pairavam perto do meu nariz, até que comecei a ficar
tonto.
- Libélulas! - Eu estava quase mudo enquanto meu coração
batia acelerado de tanta emoção. Sempre me senti atraído
por essas criaturas graciosas, mas nunca vira tantas num
mesmo lugar.
- Sim, espíritos de fadas assumem a forma de libélulas quan-
do querem que os humanos as vejam. Não são lindas?
- Há muitas! O que elas fazem aqui?
- Cada árvore da floresta tem um espírito natural para olhar
por ela. Como estamos nas montanhas, há muitas fadas de
árvores para cuidar delas. Todo mundo tem um trabalho a
realizar neste planeta, e elas também têm o delas. São
criaturas de sorte: sabem seu destino desde que nascem. É
mais difícil para os seres humanos porque na primeira parte
da viagem eles precisam descobrir a que vieram.
Após algumas horas começou a escurecer sob as árvores do
prado, e a luz passou a brincar de esconde-esconde com as
sombras. Os verdes e azuis tornaram-se marrons e púrpuras,
e, nas cascas das árvores, faces surgiam e desapareciam a
cada segundo. As libélulas voaram para as respectivas casas,
e Robert recolheu o cãozinho Don, que estava em sono
profundo na grama.
Calmamente, Robert fez um gesto para que eu o seguisse, e
caminhamos para outro lado, que ainda estava iluminado
pelo crepúsculo. Aproximamo-nos de um ribeirão, com as
margens cobertas de vegetação. Eu podia ouvir o barulho do
fluxo, apesar de estarmos no verão, e me sentia confortado
com aquele som calmante das águas que acariciavam as
pedras e os seixos em sua jornada pela floresta.
- Veja por onde anda - Robert disse enquanto andávamos
por ali. - Tenho algo muito especial para lhe mostrar.
Seguimos o riacho durante cerca de dez minutos, até que
chegamos a um campo aberto, exatamente quando a noite
mergulhou por completo na escuridão.
- Olhe aquilo! - ele exclamou enquanto apontava para a
grande lua que espreitava por trás das montanhas, ao longo
do vale. Sentamo-nos na clareira e vimos a lua prateada subir
para iluminar a escuridão do céu. O nascimento daquele
corpo celeste era de tirar o fôlego, e eu não me lembrava se
já havia tido tempo para realmente vê-la antes.
Tão logo o círculo prateado se revelou plenamente, Robert
disse:
- Esta é uma noite muito especial de lua cheia. É chamada de
Lua Abençoada e representa a união da terra e do céu. É
tradicionalmente um momento para começar uma jornada
espiritual, pois o poder do verão provê a natureza de
plenitude e abundância. Você está pronto? - ele perguntou.
- Pronto para quê?
- Pronto para respirar a energia da lua?
- O que isso quer dizer?


Ele ignorou minha pergunta e começou e me orientar para
uma série de ações que acompanhei com relutância.
- Primeiro, levante-se e dobre ligeiramente os joelhos. Em
seguida, flexione os cotovelos para que a parte superior do
braço fique perpendicular ao antebraço e levante as mãos,
com as palmas abertas, em cada lado da cabeça, de frente
para a lua.
Robert fazia os movimentos enquanto falava, e eu o imitava,
fazendo o melhor que podia.
- Bom - ele prosseguiu. - Agora levante a cabeça, virando-a
para trás, de modo que suas narinas fiquem alinhadas à lua.
Estreite os olhos, como se estivesse olhando através das
pestanas.
Como essa não era a posição mais confortável do mundo,
meu pescoço e a parte inferior das costas começaram a doer
quase imediatamente.
- Agora, inspire a energia da lua por meio de longas, vaga-
rosas e profundas respirações. Mantenha a energia dentro de
você, conte até cinco e, em seguida, exale-a lentamente pela
boca.
Segui sua recomendação e, após certo tempo, achei que po-
dia sentir a energia lunar entrando em minhas narinas,
viajando pela garganta e acumulando-se no fundo do meu
estômago. Era uma sensação agradável, calmante, e, quanto
mais consumia, mais eu sentia reservas de energia
preenchendo meu interior. No entanto, minha empolgação
foi rapidamente substituída por uma forte câimbra no
pescoço e na parte inferior das costas. Poucos minutos
depois, tive de me sentar.
Quando olhei para Robert, vi que tinha colocado o pé direito
no interior da coxa esquerda, um pouco acima do joelho, e
que se equilibrava sobre uma perna só. Sem mover um
único músculo, ele disse:
- Não se preocupe, é preciso tempo para que seu corpo se
sinta confortável nessa posição. Mesmo algumas poucas
respirações profundas lhe darão energia suficiente para durar
até a próxima lua cheia. Tento inspirar a cada lua cheia,
acumulando forças para o mês inteiro.
Percebi que ele fazia isso com regularidade e pensei que eu
também deveria tentar. Senti-me mais poderoso do que
nunca, e a energia da lua parecia estar esperando por meu
chamado, sempre que eu precisasse de ajuda extra.
- Nas montanhas, a energia lunar é muito mais poderosa que
em outros lugares - ele disse após um longo silêncio. - O
único lugar da Terra que tem acesso à energia realmente
poderosa da lua é o coração do deserto.
Robert baixou a perna e abriu a sacola que estava no chão, ao
lado do cachorrinho Don. Ele pegou uma pequena pulseira e
a entregou a mim com as duas mãos enquanto fazia uma
reverência com a cabeça. Era pontilhada de pedras redondas
cor de laranja, com discos de prata entremeados de opalas
brancas que reluziam ao luar.
- Fiz isso para você. Tem cornalina, para ajudá-lo a expressar
sua verdade; pedra da lua, para nutrir sua intuição; e luas de
prata, para conservar a energia que você recebeu esta noite.
Use-a durante os próximos vinte e oito dias e começará a
sentir seu poder. O poder das pedras é um dos dons da
natureza. Há muitas luas de energia contidas nessas pedras e
você pode manter o objeto à luz do dia. No entanto, é
importante manter o bracelete carregado, colocando-o em
um prato de água salgada a cada lua cheia.
- Farei isso - disse enquanto colocava a pulseira. Eu nunca
havia usado jóias antes, mas por algum motivo era como se
aquela já fizesse parte de mim. Era como um amigo de longa
data que acabara de encontrar o caminho de volta ao meu
pulso.
Após alguns minutos, Robert olhou para o céu e disse:
- Tenho de ir. - Reuniu seus pertences e pegou o cachor-
rinho Don, que ainda estava dormindo. - Tenho muito a
fazer esta noite e perdi totalmente a noção do tempo. Pode
ficar, se quiser. Você sabe o caminho de volta?
- Acho que sim, mas também vou. - Eu começava a sentir
frio e estava de mangas curtas. Não esperava ficar ali até a
noite.
- Ok, vamos embora.
Voltamos a passos largos pela margem do riacho coberta de
vegetação, e a água refletia a luz prateada da lua. Quando
finalmente retornamos ao prado, ele parecia muito diferente
do que me lembrava. Foi como se alguém tivesse arrumado
todas as árvores caídas ao longo do caminho, fazendo com
que os raios de luar confundissem deliberadamente qualquer
visitante. Tenho certeza de que me perderia se estivesse
sozinho.
Enquanto andávamos, Robert continuava a responder às
minhas perguntas.
- Como a lua cheia pode dar energia a você?
- É simples. Tudo no universo é basicamente troca de
energia. Trata-se de coletar ou gastar energia. Os chineses
chamam isso de yin e yang. Presumo que você esteja
familiarizado com o símbolo yin-yang, não?
- É claro. Aquele círculo preto e branco.
- Exatamente. A luz da lua está repleta de energia yin, que é
reparadora. E, durante a lua cheia, a energia yin está em seu
pico, por isso é muito mais fácil recebê-la e guardá-la para
usada depois. Por outro lado, o sol está repleto de energia
yang, que lhe dá poder para se expressar caso tenha energia
yin de reserva. Isso faz sentido?
- Quer dizer que a lua enche sua conta bancária e o sol ajuda
a gastá-la.
- Essa é uma boa forma de descrever isso - ele riu. - O que
eu queria lhe mostrar é que a natureza pode lhe oferecer
toda a energia de que você precisa se você permitir que ela o
ajude. A lua, o sol e tudo na natureza é oferecido pelo
universo para nos ajudar com nossas necessidades terrenas.
Infelizmente, ao longo dos últimos séculos, os seres
humanos têm sido ensinados a ignorar a natureza em vez de
usá-la a seu favor, o que, é provável, explica por que o meio
ambiente ficou desse jeito.
Eu não gostava de pensar em questões ambientais porque
eram deprimentes. E pareciam grandes demais para que eu
pudesse fazer algo a respeito.
Robert continuou a narrativa e parecia captar minhas
preocupações:
- Não é preciso ser ativista para fazer a diferença. O que
fizemos hoje é suficiente para provocar enorme impacto,
permitindo que recuperemos parte do ciclo da natureza que
foi ignorado. A natureza é vida, algo que respira e que não é
diferente de você ou de mim. Quando nos sentimos amados,
temos mais energia para nos curar se estivermos doentes.
Quando nos sentimos ignorados ou rejeitados, a recuperação
torna-se mais difícil. Ao comemorar os ciclos da natureza,
expressamos nosso amor por ela, que, assim, pode começar a
se curar. Não é a única coisa a fazer, mas é algo viável a
todos como parte da vida cotidiana. E, com o poder de
bilhões de almas deste planeta, é possível alcançar uma cura
imensa, num período de tempo relativamente curto.
Eu não estava convencido de que poderíamos resolver todos
os problemas do mundo com uma simples celebração dos
ciclos da natureza. Mas, com certeza, podia sentir aquela
energia da lua dentro de mim e pensei que, se ela fizera com
que eu me sentisse tão bem, eu provavelmente poderia fazer
alguma outra coisa viva se sentir bem se tentasse. Arquivei
isso sob a definição de "mal não deve fazer" e me dispus a
dedicar alguns minutos todos os dias para enviar bons
desejos ao planeta.
Naquele momento, já estávamos nos aproximando do centro
da cidade.
- Até logo - disse Robert, quando chegamos à base da colina.
- Quando? - perguntei e imediatamente me conscientizei de
que estava parecendo carente.
- Quando for a hora certa. Agora temos uma ligação que não
precisa mais se basear na arcaica medição do tempo. Quando
o universo quiser que a gente se encontre, vamos nos
encontrar.
Robert acenou em despedida e dirigiu-se para fora da cidade
enquanto eu caminhava na direção oposta, rumo ao meu
apartamento. Meus pensamentos estavam flutuando,
concentrados em tudo que havia acontecido naquele dia.
Estava completamente exausto quando cheguei em casa.
Depois de cair na minha cama e de me deixar envolver pelo
silêncio que me cercava, era capaz sentir a energia da lua,
mais ainda que lá fora. Com a sensação de efervescência no
interior do estômago e um sorriso nos lábios, rapidamente
adormeci.


CAPÍTULO 3

Acordei durante a noite. Não conseguia dormir bem por
causa do pesadelo recorrente. Alguns anos antes, eu havia
sido noivo de uma moça chamada Cheryl e íamos nos casar
na primavera seguinte. Conhecemo-nos na escola, mas não
começamos o namoro naquela época, senão após passarmos
um período separados para, em seguida, nos reencontrarmos
na cidade vizinha de Yreka, onde ambos estávamos vivendo.
Após a redescoberta mútua, sentimos uma ligação
instantânea, e sempre achei que tivera sorte por ter
encontrado o amor verdadeiro em tão tenra idade.
Cheryl era miúda e tinha cabelos pretos encaracolados. Ti-
nha um jeitinho especial para a arte culinária e também para
me fazer rir. Imediatamente após terminar o colégio, ela
conseguiu um emprego como subchefe num restaurante
popular que era o favorito dos turistas da cidade vizinha.
Tornou-se muito bem-sucedida em curto espaço de tempo e
começou a trabalhar também à noite para conseguir
viabilizar o próprio negócio. Às vezes eu a ajudava com a
contabilidade e até servia clientes quando havia contratos
para eventos. Nosso sonho era mesmo ficar juntos, em
tempo integral, quando o negócio deslanchasse e ambos
pudéssemos sobreviver dele.
Um dos trabalhos de catering de mais prestígio que tivemos
aconteceu em uma convenção de advogados num retiro nas
montanhas. Era de longe o maior evento para o qual fomos
contratados e nos daria dinheiro suficiente para que Cheryl
pudesse deixar o emprego diurno. Quando nos fizeram a
proposta para realizar o serviço, Cheryl resolveu sair do
emprego diurno para permanecer na empresa de catering
em tempo integral. Faltando menos de uma semana para o
evento, comecei a ter maus pressentimentos. Tentei
desesperadamente fazer com que ela o cancelasse. Isso não
seria fácil porque a comida já havia sido encomendada e
Cheryl estava preocupada com nossa reputação, que poderia
ser arruinada porque os advogados tinham muitos contatos.
O sentimento era tão forte que eu não podia ignorá-lo, então
parei de ajudá-la nos preparativos. Brigávamos o tempo todo
por causa disso e, quando chegara o dia do evento, nem
estávamos mais conversando um com o outro, e me recusei
a ir.
Ao voltar do evento, por volta das três horas da manhã,
Cheryl estava dirigindo nas montanhas quando um
motorista bêbado invadiu sua pista e bateu de frente com o
carro dela. Ela foi morta instantaneamente.

Infelizmente isso não foi um sonho. Esta parte é real.

No sonho, Cheryl sai sozinha das ferragens, com o rosto
marcado por escoriações e os braços cobertos de sangue. As
mãos estão estendidas e juntas, num gesto de dádiva,
enquanto caminha lentamente em minha direção. Ela tenta
me dar alguma coisa, mas não consigo olhar o que é, porque,
seja o que for que esteja carregando, aquilo me deixa
apavorado. Existem outras pessoas no sonho assistindo a
tudo e esperando por minha reação, incluindo minha mãe,
que segura um bebê, um policial e uma menina do colégio,
que também morrera num acidente de carro. No momento
em que Cheryl chega perto o suficiente para me tocar, eu
me viro, dou as costas para ela e vou embora. E esse o exato
ponto em que acordo, com o coração aos saltos, batendo
forte, e o lençol encharcado de suor frio.

Tenho tido o mesmo sonho todas as noites, desde que ela
morreu. Evidentemente, eu seria assombrado pelo resto da
vida por não ter ido com ela naquela noite fatal. Eu achava
que poderia ter feito algo para ajudá-la a evitar o motorista
embriagado caso não tivesse sido tão teimoso e concordasse
em ir. Talvez ela estivesse distraída com o rádio e eu poderia
estar prestando mais atenção à estrada, ou talvez eu tivesse
tido uma reação diferente, como virar bruscamente a
direção, se estivesse ao volante.

CAPÍTULO 4

O novo apartamento estava, definitivamente, ultrapassando
os limites de meu orçamento, e, conforme os dias iam
passando, eu ficava mais inquieto em relação à minha
situação financeira. Eu ainda não havia descoberto qual era a
possibilidade de encontrar emprego em Ashland, mas
parecia que as melhores opções eram o teatro Shakespeare, a
universidade ou restaurantes e lojas, onde havia algumas
vagas. Eu nem tinha qualificação para trabalhar na
universidade ou no teatro, então literalmente consultei a
lista telefônica, anotando todos os números de lojas e
restaurantes da cidade. Sabia que não conseguiria ganhar o
mesmo salário que tinha em Los Angeles, mas decidi que era
melhor ajustar meu estilo de vida a uma cidade da qual tanto
gostara. No entanto, em quase todos os contatos que fiz, a
conversa era a mesma:
- Olá, estou à procura de trabalho. Posso levar meu
currículo?
- Desculpe, estamos com nosso quadro completo no
momento, mas você pode tentar de novo depois do verão.
Uma mulher excepcionalmente gregária, que trabalhava na
loja Native American, me deu uma explicação que afastou
minhas inseguranças:
- Todos os estudantes universitários preenchem as vagas
durante o verão, o que é perfeito para a temporada de
turismo. Todavia, quando as aulas recomeçam, no outono,
começamos a procurar por pessoas que não precisem de
horário flexível.
Eu havia guardado dinheiro suficiente para me manter até a
próxima estação, por isso decidi ver as negativas como uma
oportunidade para desfrutar o verão sem responsabilidades e
retomar a busca por trabalho no final da temporada, quando
começasse o outono. Isso me daria tempo suficiente para
conhecer Ashland melhor e também para ir atrás do meu
autoconhecimento. Sempre passei a maior parte do tempo
trabalhando e não tinha férias de verão desde os tempos do
colégio. Embora ainda estivesse preocupado com dinheiro,
estava entusiasmado com o que poderia descobrir livre da
responsabilidade de um trabalho.
Eu começava a ter fortes pressentimentos sobre a
possibilidade de encontrar Robert de novo e me lembrei do
que ele dissera sobre saber quando seria a hora certa. Eu não
sabia muito bem onde poderia encontrá-lo, mas me pareceu
razoável voltar ao lugar em que tínhamos nos encontrado
pela primeira vez.
Conforme me aproximei da cooperativa, quase não o
reconheci, porque ele estava usando uma camisa de colorido
vibrante,parecida com um poncho, e uma calça creme bem
folgada. Fiquei aliviado ao descobrir que havia mais
mudanças além da roupa, embora o estilo hippie sul-
americano daqueles trajes fosse um pouco desanimador.
Quando cheguei mais perto, observei que ele conversava
com uma jovem mãe de cabelos rastafári, vestida com uma
saia tie-dyed. Ela empurrava um bebê no carrinho, em cujas
rodas estava escrito: "Movido a biodiesel".
- Ofereço minha humilde gratidão por compartilhar sua luz
tão rara com o mundo. Você é realmente abençoado - disse
ela em alto e bom som ao jogar uma moeda de um dólar no
cobertor em que o cachorrinho Don estava deitado. Em
seguida, acenou em despedida e foi embora, conduzindo o
carrinho do bebê pela rampa de concreto, no lado oposto da
calçada pela qual eu me aproximava.
- Parece que você está de bom humor - comentei depois
que a hippie virou à esquerda.
- Está sendo um bom dia - Robert disse enquanto recolhia
um punhado de notas amassadas e de moedas ao redor do
cachorro adormecido. - É uma pena que o vento tenha
começado mais cedo - ele riu entredentes. - Perdi quase
metade do dinheiro.
- Por que você deixa tudo solto por aí? Não poderia colocá-
lo em um lugar mais seguro? - Por parecer tão esperto em al-
guns dias, ele parecia bobo demais em outros.
- Não tenho nada que decidir sobre quem precisa de di-
nheiro - ele comentou em tom bastante sério. - Meu
trabalho é apenas angariar. O vento vai levá-lo a quem mais
precisa dele. Além disso, sempre fico com muito mais do
que necessito. Dá para uma refeição quando fico com fome.
Ao absorver suas curiosas palavras, refleti sobre o cartaz que
estava encostado à árvore e onde Robert escrevera:

Lembre-se do útero.

Fiquei imaginando como eu poderia saber que estava com
fome quando ainda permanecia no útero. Sempre tivera
muito cuidado com o que comia - vinha sendo, mesmo, uma
luta constante desde que eu podia me lembrar. E, a partir do
momento em que me mudei para Los Angeles, uma cidade
tão preocupada com as aparências, eu prestava muita atenção
para garantir que as calorias não fossem parar no lugar
errado. Mas no útero provavelmente eu era alimentado
vinte e quatro horas por dia, ao longo de nove meses, e
pesava cerca de dois quilos e novecentos gramas quando
nasci, e, depois disso, não tive nenhum problema com
sobrepeso.
- Venha comigo - disse Robert enquanto colocava o
cachorrinho Don em um carregador de bebês, pendurado
no peito, antes de começar a subir a rua Um.
O sol escondeu-se entre as nuvens, depois de permanecer
brilhando durante toda a manhã, e a temperatura baixou
imediatamente alguns graus - uma mudança agradável em
relação à onda de calor que se mantivera desde que eu
chegara. Dessa vez eu estava preparado para praticar
montanhismo - havia trazido minha própria garrafa de água,
usava sapatos apropriados com meias bem grossas e levava
um agasalho de flanela pendurado no pescoço para o caso de
outra caminhada até depois do anoitecer.
O cachorrinho Don despertou por alguns instantes, quando
Robert o introduziu no carregador de lona, e olhou para
mim através das pálpebras entreabertas. No entanto, após
alguns passos, ele se entregou de novo, tranquilamente, ao
sono canino.
- Hoje é um dia muito especial para você - Robert disse
quando estávamos a alguns quarteirões de distância da
cooperativa. - Vamos procurar algo seu que foi perdido.
- Algo meu que foi perdido? O que foi que perdi?
- Você perdeu parte de sua alma. E uma parte bem grande!
- Perdi minha alma? Quando foi que isso aconteceu? -
perguntei.
- Não sei exatamente, mas acho que aconteceu há muitas
estações.
Caminhamos por alguns quarteirões pela calçada que ladeava
um cemitério, até que viramos à esquerda na direção da rua
que conduzia à rodovia. O charme do centro da cidade de
Ashland dissipou-se rapidamente quando nos aproximamos
da periferia e, ao chegarmos à estrada, havia desaparecido
por completo. A paisagem seria parecida com a de qualquer
outra área suburbana da América, não fosse por estar
circundada de florestas e montanhas.
- Como você pode saber que perdi parte de minha alma?
- Porque ela está com um grande buraco. Foi a primeira
coisa que notei, na cooperativa, quando você rejeitou meu
presente.
- Esperava que você não me reconhecesse - disse de modo
tímido enquanto continuava a tentar imaginar exatamente
que presente ele me havia oferecido.
- Como eu não o reconheceria? Você estava andando por aí
com um grande buraco na alma. Qualquer um podia ver,
apenas olhando para você!
Isso fez com que eu me retraísse imediatamente. Sempre me
preocupara em manter minhas roupas limpas, bem passadas
e combinando. Mas então acabara de descobrir que havia
um grande buraco em minha alma, que qualquer um podia
ver!
- Não se preocupe com isso. Muitas pessoas não vêem. -
Robert sempre parecia saber o que eu estava pensando. -
Elas sempre estão muito ocupadas com a parte física, então
não prestam atenção na parte espiritual. Sorte sua, também,
porque seu lado espiritual está uma bagunça.
Não sabia se aquilo me faria sentir melhor.
- Então você realmente pensa que podemos encontrar hoje
a parte da minha alma que falta?
- Não sei se encontraremos tudo hoje, mas sei que vamos
começar. Tenho um palpite de que você já sabe onde
procurar pela primeira parte.
Aquilo me levou a pensar: Onde será que a perdi? Como é
possível, antes de tudo, perder uma alma? Quando
atravessamos a rodovia, comecei a perceber que podia sentir
os limites de minha alma. Quando os percorri, percebi uma
área que não mostrava sinais de vida, como o restante.
Parecia mais uma espécie de calo, destituído de qualquer
sensibilidade. Será que eu era uma aberração? Um bobo? Ou
um cara esquecido? Quantas pessoas estariam andando por aí
sem algumas partes de sua alma? E o que teria acontecido
com elas quando perderam isso? Será que as almas passavam
mal? Eu tinha um milhão de perguntas, mas não sabia ao
certo como fazê-las.
- Que parte de minha alma está faltando? - por fim per-
guntei.
- Não tenho certeza, mas vamos descobrir, filho.
Viramos na direção da estrada para o Memorial do Índio
Morto, que me parecia um nome de mau agouro para um
caminho deserto na periferia da cidade. Quando olhei ao
redor, percebi que o horizonte estava colorido com tons
muito diferentes daqueles do centro urbano. As montanhas
sobre Ashland ostentavam folhas e flores de cores muito
vibrantes, enquanto o vale abaixo estava atapetado de uma
relva baixa com nuanças amarelo-claras. Até mesmo a terra
parecia seca, e, a cada passo, minha boca ia perdendo a
umidade... os lábios começaram a rachar. Ainda bem que eu
trouxera minha própria garrafa de água. Mantive a tampa
desenroscada para que pudesse ir sorvendo o líquido aos
poucos enquanto nos embrenhávamos no interior da cidade.
Finalmente, chegamos a um portão de ferro pintado,
acorrentado a uma grossa estaca de cedro. Robert o abriu
deixando apenas uma fresta, suficiente para que eu me
esgueirasse com dificuldade. A estrada de terra estava
abandonada, sem manutenção, havia muito tempo, de modo
que tivemos de caminhar entre a grama alta e os arbustos,
onde dezenas de gafanhotos tratavam de saltar, ficando a
salvo de nossos passos. Sobre a terceira colina havia uma
tenda branca, de cume pontiagudo, instalada sobre o campo
dourado. Eu nunca tinha visto uma montada assim, e a
estrutura cónica - feita de faces de lona sustentadas por ripas
de madeira, unidas no alto - era muito mais larga do que eu
poderia imaginar.
- Aqui estamos - disse Robert, com orgulho, apontando para
a tenda.
- Ela é sua?
- Sim - ele respondeu enquanto pegava o cachorrinho Don,
que estava aninhado em seu peito, e o colocava no chão. -
Venha! - Robert desatou as abas de entrada sob seis suturas
horizontais feitas no tecido, e o segui quando entrava com
Don por uma abertura semelhante a um útero. Uma vez lá
dentro, o cachorrinho esticou-se, saltou sobre uma almofada
cheia de cobertores, enroscou-se nela e voltou a cochilar.
- Ele dorme muito - observei.
- Você também dormiria se tivesse acabado de retornar da
morte. Isso exige muito da pessoa.
- Nossa!
O interior da tenda cheirava a fumaça, e a nebulosa escuri-
dão era quebrada por um único foco de luz que estava
imediatamente à direita do cachorrinho Don. Ali havia
montes de roupas, sacolas de papel amassadas e alguns
cobertores de lã com motivos ameríndios ao redor do
perímetro do chão sujo daquele espaço circular. Bem no
centro, havia sido cavado um buraco para abrigar uma
pequena fogueira. Era rodeado por uma intricada formação
de grandes pedras, sobre a qual estava suspensa uma chaleira
de ferro, sustentada por três galhos presos por fios. Robert
desenrolou um dos cobertores artesanais no centro do foco
de luz e fez um gesto, pedindo que eu me sentasse. Quando
me acomodei, ele acendeu o fogo e abriu quatro bolsinhas
de couro cheias de ervas frescas.
- Esta manhã fui aos campos da vizinhança pegar remédios
que podem ajudar você.
- Remédios? Que tipo de remédios?
- Plantas medicinais. Vou fazer com que se acalme para que
possa viajar comigo ao passado e recuperar sua alma.
A chaleira começou a ferver e poucos minutos depois api-
tava para indicar que estava pronta. Robert pegou um dos
sacos de papel e tirou de lá de dentro uma caneca de
cerâmica turquesa de formato irregular. Nela colocou duas
porções de cada uma das ervas que cortara. Quando jogou a
água fervendo sobre elas, a tenda foi tomada por um aroma
poderoso, ao mesmo tempo incomum e familiar.
- Aqui está... beba - ele disse enquanto me passava a caneca
de chá de ervas medicinais.
Peguei o recipiente de cerâmica com ambas as mãos e o le-
vei até o nariz, inalando o vapor. A fragrância herbal era
doce e ao mesmo tempo lembrava o cheiro da poeira, algo
semelhante ao dia quente de verão que fazia lá fora, e tinha
leves resquícios de um tipo de mofo que poderia ser descrito
com facilidade como sujeira. Sorvi a beberagem com cautela
e, embora não se parecesse com nenhum chá que eu já
provara, era surpreendentemente saborosa.
- Não vou alucinar, vou?
- Não por causa do chá - Robert deu risada.
O líquido começou a acalmar meus nervos e tentei me
manter relaxado para aproveitar a experiência que estava
tendo. Estava de uma só vez entusiasmado e inquieto em
relação ao que poderia acontecer em seguida, mas confiava
em Robert e acreditava que ele tinha as melhores intenções.
Após verificar se eu estava mesmo confortável e de me
oferecer um segundo cobertor caso eu precisasse, ele ateou
fogo às ervas secas que havia colocado em quatro pratos de
cerâmica, de modo que o aroma foi tomando todo o espaço
interno da tenda. Reconheci traços de cedro e sálvia, mas as
demais ervas não fui capaz de reconhecer.
Então, Robert pegou um tambor artesanal raso e começou a
tocá-lo em ritmo lento. O grande instrumento era feito de
duas camadas finas de couro branco esticadas ao redor de
um círculo de madeira, com tiras amarelas e delgadas
entrecruzadas. Havia também uma pluma cinza presa ao
tambor, que dançava a cada batida no círculo de madeira
talhado à mão.
- Muito bem, agora estamos prontos. Termine de tomar o
remédio e deite-se de costas.
Bebi o chá, devolvendo-lhe o recipiente vazio, e estendi-me
por completo sobre um dos cobertores de lã, depois de
ajeitar o outro para que oferecesse um bom apoio para a
parte de trás de minha cabeça.
- Feche os olhos e deixe um raio de sol aquecer sua face.
Fechei os olhos e sorri enquanto sentia o calor do raio de sol
acariciando minhas faces. Minha cabeça pulsava ao ritmo do
tambor, quando Robert começou a bater a intervalos mais
curtos.
- Envolvi esta tenda com luz branca e hoje invocamos os
anciães para nos ajudar a encontrar e recuperar as partes
perdidas da alma de Scott, para que ele possa se tornar
inteiro outra vez. Por favor, ajudem-nos em nossa jornada
rumo ao passado, ao futuro e a todos os lugares por onde
Scott esteve ou estará durante esta vida. E ajudem-nos a
encontrar as partes da alma que estão prontas para
reincorporar-se a Scott no presente caminho.
A respiração de Robert acelerou-se e preenchia os lapsos
entre as batidas do tambor com um som de vento.
Após alguns minutos, ele finalmente falou.
- Seu animal de poder tomou a forma de um corvo e me
conduziu a uma jovem em um carro que tem parte de sua
alma. Ela não está mais neste mundo, mas também ainda não
atravessou para o outro lado.
Imediatamente comecei a sentir calafrios pelo corpo todo e
tentei me envolver no cobertor sobre o qual me deitara.
- Você sabe quem é?
- Hum-hum. - Mal podia controlar as lágrimas. - Cheryl.
- Muito bem. Cheryl quer que você saiba que ela está bem e
que deseja o mesmo a você. Mas agora ela tem de ir embora
e você precisa aceitar sua alma de volta para que a jovem
possa continuar a jornada dela.
Comecei a me sentir culpado. Será que eu estava impedindo
Cheryl de atravessar para o outro lado?
O som do tambor foi ficando cada vez mais intenso, e me
pareceu ouvir um gemido do cachorrinho Don.
- Scott, você está pronto para receber a parte que falta de sua
alma?
- Sim. - Eu mal podia falar ao sentir que algo realmente
grandioso estava prestes a acontecer.
- Invoco o apoio e a força do corvo sagrado, que representa
o despertar do espírito e da intuição. Por favor, ajude-nos a
recuperar a alma de Scott de Cheryl e a trazê-la segura e
integramente de volta para esta dimensão, onde ela deve
ficar com o verdadeiro dono.
Quase naquele exato momento, o sol deixou de brilhar lá
fora e o ar dentro da tenda tornou-se extremamente frio. A
atmosfera oscilou do verão para o inverno em questão de
segundos, e o fogo aceso no centro apagou-se sem
cerimônia. A fumaça das ervas começou a irritar a parte
posterior de minha garganta, ao mesmo tempo que a
insistente batida do tambor fazia minhas têmporas latejarem
a seu ritmo.
- Scott, abra as palmas das mãos para o céu e prepare-se para
receber o que é seu.
- Certo - disse, esperando estar fazendo tudo direito.
- Seu coração está aberto e repleto de amor?
- Sim - murmurei. Concentrei-me em meu amor por Cheryl
e intuitivamente arqueei o peito o mais que pude.
Robert começou a cantar algo que eu não conseguia enten-
der e fui ficando nauseado enquanto meus pés formigavam.
A sensação espalhou-se para a parte posterior de minhas
pernas, chegando à base da espinha, seguindo caminho até a
nuca. A batida do tambor continuou a aumentar de
intensidade até que, de repente, parou, e o silêncio desceu
sobre o interior da tenda com o peso de um grande cobertor
de lã.
Abri os olhos e mal podia enxergar naquela escuridão, mas
tão logo fui ajustando o foco pude ver Robert, que acendia
um estreito cachimbo com a ponta em brasa de um galho
remanescente do fogo extinto.
- O corvo retornou com a parte que faltava de sua alma e
está entre nós. Agora vou aspirar isso que foi recuperado e,
quando exalar, você receberá o que é seu.
Robert colocou os lábios no estreito cabo oco do cachimbo e
aspirou profundamente o que havia nele para o interior dos
pulmões. Com delicadeza, depositou o cachimbo no chão
com as duas mãos e então juntou-as como se fossem uma
taça, do mesmo jeito que Cheryl fazia nos meus sonhos.
Nesse exato instante, o vento penetrou nos ângulos do topo
da tenda e o ar encheu-se de um som semelhante ao de asas
batendo.
A fumaça pareceu esforçar-se para penetrar minha pele,
infiltrando-se diretamente em meus órgãos internos. Aquilo
provocou um aquecimento instantâneo, que rapidamente se
espalhou, primeiro por meus pulmões, depois por meu
coração e, em seguida, por meu estômago, pescoço e
membros. Senti uma onda de emoção como jamais sentira
antes e comecei a chorar. A fumaça enchia-me de tristeza e
eu não podia controlar as lágrimas. Estava literalmente
tomado pela dor, em uma espécie de convulsão, enquanto
me esvaía em lágrimas por um período que para mim
parecia eterno. Não conseguia falar. Não conseguia pensar.
Tudo que podia fazer era sentir... sentir tristeza e dor.
- Receba sua alma de volta. Faça com que ela saiba como
você está feliz por tê-la de novo e prometa que cuidará
muito bem dela e que jamais deixará que se vá.
Esforcei-me muito para seguir suas instruções, mas só
conseguia chorar.
- Você deu a Cheryl parte de sua alma, que pensou ser seu
último presente, mas ninguém pode usar sua alma a não ser
você mesmo.
Minha alma reintegrada estava girando velozmente em mim
e pude sentir que aquela nova parte de mim retornara como
uma velha amiga. Estava sensível e me senti exposto aos
elementos quando me movimentei. Aos poucos, minha
visão começou a ficar nublada e achei que estivesse caindo
nas profundezas da terra enquanto ia perdendo a
consciência.
- Feche os olhos - disse Robert, delicadamente. - Você
precisa descansar agora.
Segui seu conselho e me entreguei a um sono muito, muito
profundo.

CAPÍTULO 5

Quando acordei na manhã seguinte, quase pude sentir o
sabor rançoso da fumaça que impregnava minhas roupas.
Assim que abri os olhos e vi a ponta estreita da lona da
tenda, levei um instante para lembrar onde estava e o que
andara fazendo. Após recobrar minhas faculdades, virei-me,
esperando encontrar Robert e o cachorrinho Don, mas eles
não estavam ao alcance da vista. Havia alguns cobertores e
peças de roupa espalhados no chão sujo, e o côncavo central
já não mostrava nenhum sinal do fogo aceso à noite.
Saí da tenda e chamei meus amigos, mas obviamente eles
tinham ido embora havia bastante tempo. Como lá dentro
estava meio escuro, a luz do sol quase me cegou - parecia
gritar comigo e tratei de cobrir os olhos, até que se
adaptassem à intensa luminosidade. Tão logo me senti capaz
de ajustar o foco, todas as cores pareceram mais brilhantes e
todos os sons, mais altos. Era como se o volume de cada
coisa tivesse sido sintonizado ao máximo e eu pudesse ver e
ouvir com clareza pela primeira vez na vida. Andei por ali e
fiquei encantado com a beleza do vale em que estava. A
relva ressecada parecia um tapete dourado, com leves
movimentos ao sabor da brisa, e as montanhas eram
orgulhosas protetoras do vale abaixo. Era como se também
estivesse observando a beleza pela primeira vez e estivesse
vivo. A energia dessa beleza emanava de cada coisa viva ao
meu redor e eu estava em êxtase.
Então, quase imediatamente, imaginei tudo aquilo
desaparecendo no nada. Meu coração apertou quando me
dei conta de que Cheryl se fora para sempre. Caí de joelhos
e comecei a soluçar. Não podia controlar minhas emoções e,
de um minuto a outro, continuei oscilando entre a extrema
euforia e a mais profunda tristeza. Sentia as emoções de
modo muito mais profundo agora, e, como não deixara
Cheryl ir embora antes, sua morte, naquele instante, parecia
um tremendo golpe.
Entrei na tenda pela última vez para pegar meu casaco e me
assegurar de que não deixaria nada para trás e segui o cálido
caminho ao longo do solo relvado, tomando o rumo da
cidade. Quando comecei a ver de novo as casas, as caixas de
correio e os carros, foi um choque - fiquei surpreso em
perceber como me acostumara tão rápido a ficar cercado
apenas pela natureza.
Enquanto me dirigia à cidade, refleti sobre o que acontecera
no dia anterior e tracei os limites do buraco que havia
sentido na alma. Estava encantado em descobrir que ele já
estava preenchido. A parte de mim antes morta agora estava
muito
viva e se ajustando ao mundo exterior, mas ainda bastante
sensível e frágil.
Eu não havia comido nada desde a manhã anterior e decidi
parar em minha lanchonete preferida assim que cheguei à
cidade. Quando entrei, o contraste do interior com o
exterior foi dramático - não só na luminosidade e no cheiro,
mas também na sensação. Quando eu estava lá fora, sentia
luz e arejamento, mas dentro havia uma energia turva que
pesou em meu coração. Não ajudou em nada o fato de que
cada centímetro da parede estivesse coberto, de alto a baixo,
por fotos branco e preto e por cestas de vime com esculturas
de diferentes coisas, de animais criados em fazendas a
aviões. Aquela profusão de itens, comparada à superfície nua
da tenda de lona, me fez sentir claustrofobia, e eu
provavelmente teria ido embora no mesmo instante se não
estivesse tão esfomeado.
Encontrei uma mesa vazia na frente do restaurante e fiz o
pedido a uma garçonete tatuada, de pequena estatura e voz
rouca. Usava os cabelos vermelhos presos de modo
displicente e o rímel parecia ser remanescente de uma
noitada da qual ela ainda não conseguira se recuperar.
Enquanto esperava a comida chegar, podia ver uma nuvem
de fumaça escura vinda da cozinha, lá no fundo, invadir
todo o salão. Ali sentado na cadeira forrada de vinil negro,
descobri que podia sentir as emoções de cada pessoa, apenas
me abrindo para elas. Era como se os sentimentos de cada
um fluíssem em mim, como ondas do oceano se quebrando
- podia senti-los como se fossem meus. E, embora isso fosse
divertido a princípio, muitas pessoas não estavam realmente
felizes, então tentei ignorá-las da melhor maneira que pude.
Quando minha refeição chegou, fiquei surpreso ao descobrir
que havia também uma energia emanando do sanduíche, no
prato. Era quase idêntica à nuvem negra que sentira vindo
da cozinha e fui ficando muito agitado quando peguei o
lanche.
Não sabia muito bem o que estava acontecendo comigo, mas
sabia que estava com fome e que precisava comer. Decidi
largar o sanduíche e pegar uma das cenouras cruas que
guarneciam a refeição. Ainda estavam frescas, e pude sentir
a força vital que emanava delas mesclando-se à minha
quando as mastiguei e engoli, sentindo que escorregavam
garganta abaixo. As cenouras eram realmente deliciosas, mas
infelizmente só havia três. Aquela sensação agradável
desapareceu quando peguei o lanche de queijo e peito de
peru que havia pedido. Mais uma vez, senti a energia escura
começando a me perturbar. O sanduíche tinha boa
aparência, mas assim que o mordi entrei em choque. Era
como se estivesse engolindo a raiva alheia, algo que me
intoxicou.
Não pude conter o impulso de cuspir o bocado no prato e
esfreguei os olhos, tentando entender o que estava
acontecendo comigo. Meu estômago estava
ameaçadoramente vazio e a cabeça, rodando como se eu
fosse desmaiar. Empurrei o prato para o outro lado da mesa,
o que me ajudou um pouco, mas ainda estava muito zonzo.
Havia perdido o apetite por completo e não queria
permanecer ali nem mais um segundo. Quando passei os
olhos pelo salão, senti que a energia dos clientes estava se
tornando mais escura que antes. Era como se todos
estivessem ali para engolir a raiva do chef e esta estivesse se
instalando no interior deles, independentemente de sua
vontade.
Confuso, joguei algumas notas amassadas sobre a mesa e saí
rápido daquele lugar. Lá fora, aos poucos, fui me sentindo
melhor, à medida que a onda de náusea foi se dissipando ao
ar livre. Algo no retiro espiritual me tornara ultrassensível à
energia das outras pessoas e fiquei surpreso ao constatar
como essa sensação era profunda. Também fiquei muito
chateado com a terrível experiência que acabara de viver no
restaurante. Deixar que o chef transferisse sua má energia
para os alimentos era imperdoável. De acordo com o cartaz
que havia na porta, aquele estabelecimento garantia
orgulhar-se de usar apenas os ingredientes orgânicos mais
frescos, mas a comida era completamente destruída pelo
humor do responsável pelo preparo.
Decidi pegar leve e relaxar durante o restante do dia. Fui até
a entrada do parque Lithia, onde entrei seguindo pelo
gramado próximo ao centro da cidade. Havia estado ali
algumas vezes, mas era como se visse tudo pela primeira
vez. Ao longo do parque, plantas exóticas estavam
assinaladas com placas de latão, onde se podiam ler seus
nomes, e os caminhos eram traçados com tábuas de madeira,
de textura suave ao contato com os pés. E o riacho que fluía
produzia sons delicados sobre o leito de cascalho.
O lugar estava excepcionalmente tranquilo e passei o
restante do dia explorando cada parte dele, determinado a
encontrar o recanto ideal. Bem acima do lago superior,
encontrei um cálido espaço de relva, que parecia ter meu
nome. Deitado sobre aquele cobertor verde, senti a brisa
suave acariciar meu rosto enquanto ouvia o calmo rumo do
curso d'água próximo. Pela primeira vez, desde minha
infância, caí no sono sob as nuvens e mergulhei num estado
de inconsciência - ao que me pareceu - durante horas e
horas. Eu ainda estava profundamente abatido pela
lembrança de Cheryl, mas a beleza natural do parque era
revigorante, e eu ia me sentindo mais purificado ao longo do
transcorrer da tarde.
Quando o sol desapareceu, fui até a cooperativa para
comprar arroz integral para amainar a fome que retornara
durante o caminho para casa. Fiquei desapontado por não
encontrar Robert e o cachorrinho Don e comecei a me
sentir abandonado por eles. Após uma experiência tão
intensa, achava que tinha de conversar com alguém para
entender o que estava acontecendo. Fiquei imaginando por
que Robert me deixara sem ao menos despedir. E, quanto
mais pensava nisso, mais irritado ficava. Ele era diretamente
responsável por tudo aquilo, e eu sentia que ele desertara
sem nenhuma explicação.
Talvez eu estivesse supersensível, mas ainda me sentia
aborrecido com ele quando voltei ao meu apartamento.
Depois de beber alguns copos d'água e de comer algumas
porções de arroz integral, mergulhei em minha cama macia
e fiz uma espécie de casulo com os cobertores, para que não
pudesse ver nem sentir nada que viesse do mundo exterior.



CAPÍTULO 6

Na manhã seguinte, fui acordado por uma batida na porta.
Quando a abri, deparei com uma mulher pequena, de
cabelos louros longos e ondulados. Ela usava um vestido
branco solto, com muito movimento. Tinha nos olhos uma
expressão amável, e seu sorriso de Mona Lisa emanava uma
satisfação que reconheci, mas raramente fui capaz de sentir.
Talvez ainda estivesse na terra dos sonhos, mas parecia que
ela não tinha nenhum limite separando o corpo do que
havia ao redor.
- Scott? - ela perguntou.
- Hum-hum - respondi, ainda tentando afugentar o sono,
esfregando os olhos.
- Olá. Sou Martika. Robert me disse que você tem feito um
trabalho muito intenso e que trouxe de volta uma parte
significativa de sua alma.
- Você conhece Robert?
Ela confirmou com a cabeça.
- Onde ele está? - Minha raiva começou a voltar. - Ele me
deixou sem ao menos dizer adeus.
- Ele faz isso, às vezes. - Ela meneou de novo a cabeça, com
compaixão. - Sei que ele está muito atarefado no momento,
mas de fato precisa trabalhar do jeito dele.
- Como você sabia onde me encontrar? - Eu estava
começando a acordar e tive uma estranha sensação sobre o
que estava acontecendo. - Nunca disse a Robert onde moro.
Esta é uma cidade pequena - ela riu. - Todo mundo sabe o
que acontece com todo mundo, e logo você perceberá isso.
Minha amiga Leslie alugou esse apartamento a você. Ela me
falou a seu respeito assim que chegou à cidade. Minha filha
também morou aqui. Há uma linda vista do quarto, não
acha?
Concordei, lembrando-me de Leslie, a proprietária, com seu
veículo utilitário esportivo. Fazendo uma retrospectiva
mental, recordei que ela parecia falar muito sobre os
vizinhos e pensei que seria melhor ser muito mais cuidadoso
com as coisas que dizia na cidade.
- Posso entrar? - Martika perguntou.
- Sim, desculpe. Ainda estou um pouco fora de órbita nesse
momento.
- Sem problemas - ela disse tão logo fechei a porta atrás dela.
Quando nos sentamos no sofá de módulos marrons e pretos,
aos poucos ela foi ficando mais nítida, como se entrasse em
foco; notei que seus lábios mal se mexiam quando ela falava.
- Como sua alma se sente? - ela perguntou em tom
preocupado depois de ajeitar uma almofada para apoiar as
costas.
Aquela era uma boa pergunta. Finalmente eu disse:
- Sensível, terna.
- Sim, terna é uma boa palavra. Fiz muitos retiros espirituais
e a alma em recolhimento sempre se sente terna após a
reintegração. Este é um período especial. E importante
prestar atenção e sentir gratidão pelo retorno para que a
alma possa se adaptar naturalmente.
Concordei com a cabeça.
- E como está seu humor. - continuou.
Sentia-me como se estivesse chorando havia dias e ainda
estava muito melancólico. Jamais me permitira vivenciar o
luto pela morte de Cheryl; anos de tristeza estavam me
machucando.
- Estou muito triste - admiti após longa pausa.
- É porque perdeu uma pessoa muito querida e não está
sendo capaz de processar esse luto porque sua alma estava
em choque quando a perdeu. Robert e eu achamos que será
muito difícil para você lidar com isso sozinho. Acreditamos
que você precisa de um grupo de apoio.
- Bem, não tenho certeza de que precise disso. - Na verdade,
apavorava-me a idéia de estar em um lugar com luz
fluorescente, cheio de café de péssima qualidade, rosquinhas
com prazo de validade vencido e gente deprimida.
- Não é o que você está pensando - continuou Martika. -
Você se desligou de seus ancestrais e eles estão ansiosos para
ajudá-lo a enfrentar essa situação. Mas, para isso, você
precisa entrar em contato com eles, e o caminho mais fácil é
fazendo uma constelação.
- O que é isso?
- Uma constelação lhe permite acessar a alma de sua família,
abrindo-lhe a poderosa possibilidade de viver sua rotina
diária com a ajuda dos antepassados. Recentemente, você
recuperou a própria alma, mas o fardo está muito pesado
para ser carregado sozinho. E demais para seus ombros. E
por isso que você não pode lidar com a morte de Cheryl.
Cada um de nós tem acesso à alma de nossa família, o que
constitui um sistema de apoio incondicional.
Eu não tinha a menor ideia do que ela estava falando. Já me
bastava a intensa experiência de ter ido buscar de volta um
pedaço perdido da minha alma. Agora alguém vinha me
dizer que eu precisava recuperar a alma de minha família,
algo que eu nem sequer imaginei que tivesse. Eu estava
repleto de tristeza, mas também começava a ficar zangado.
Quem era essa pessoa e por que vinha até mim desse jeito?
Eu só queria cair no sono! Estava cansado demais. Por que
ela simplesmente não me deixava dormir?
- Vamos lá, Scott, será bom para você. Há uma constelação
começando daqui a uma hora e acho que você deveria ir.
De fato eu não queria ir a lugar nenhum, mas não tinha
energia nem para protestar. Ainda estava um pouco zonzo,
então Martika me ajudou a descer os mal preservados
degraus de madeira para chegar à caminhonete dela, uma
Subaru branca. Era a primeira vez que eu entrava em um
carro depois que o meu parara de funcionar, e me senti
inusitadamente confinado.
Seguimos pela estrada principal, na direção sudeste, e nos
distanciamos do Memorial do Índio Morto em direção ao
monte Ashland. Quando estávamos próximos dos limites da
cidade, saímos da rodovia e passamos por uma área cheia de
propriedades muito bem cuidadas. Eram acres e acres de
cercas brancas, delineando campos de criação de animais,
incluindo cavalos, ovelhas, lhamas e cabras. Após mais ou
menos dois quilômetros e meio, Martika enveredou por um
caminho entre duas imponentes construções vermelhas,
semelhantes a celeiros, que indicavam a entrada de um
conjunto de casas de estilo campestre. Seguimos devagar
pelo acesso circular e estacionamos perto de uma pequena
edificação redonda e branca, com telhado de madeira, que
estava parcialmente à sombra de dois majestosos carvalhos.
- Aqui estamos - disse Martika. - Espere no carro um
instante, até que eu deixe tudo pronto para você.
Havia algumas pessoas andando no interior da habitação e
me dei conta do cheiro de fumaça impregnado em minhas
roupas. Estava tão cansado na noite anterior que nem havia
tomado banho ao voltar da estada na tenda. E, naquele meu
estado de torpor, colocara as mesmas roupas que usara no
dia anterior. Comecei a me sentir muito desconfortável e
imaginei se haveria um lapso de tempo para que eu pudesse
me lavar antes de a constelação começar.
Martika apareceu alguns minutos depois e disse:
- Eles estão prontos para você. Venha, vamos entrar!
Naquele instante eu estava inexplicavelmente apavorado
diante da iminência do início da sessão.
- Talvez este não seja o melhor dia para mim. - Tentei
pensar em uma desculpa para ir embora.
- Vai dar tudo certo. Estarei com você o tempo todo. Não há
nada com que se preocupar.
Embora mal conhecesse Martika, desejava acreditar nela
porque parecia genuinamente repleta de amor e bondade.
Eu ainda estava me sentindo muito sensível por causa do
retiro espiritual e realmente não queria ficar sozinho. Era
bom ser cuidado de novo após tantos anos.
- Vamos lá - ela disse, levando-me pela mão ao pequeno
edifício.
O interior era tanto elegante quanto dramático. Havia um
piso redondo, aberto, com uma imensa lareira e painéis de
madeira no teto, decorados com motivos ameríndios.
Colocadas sobre o assoalho bege-escuro havia algumas caixas
de tecidos; as cadeiras estavam dispostas de acordo com o
perímetro circular da sala. Cerca de quinze mulheres e dois
homens estavam sentados nas cadeiras, todos usando
crachás azul-claros e brancos com a informação: OLÁ, MEU
NOME É. A luz externa, filtrada pelas árvores, entrava pelas
janelas, e o ambiente tinha o agradável aroma de serragem e
flor de laranjeira.
- Este é Scott - Martika anunciou. - Ele acabou de fazer um
intenso retiro espiritual e precisa de nossa ajuda.
- Olá, Scott - o grupo saudou em uníssono, e imediatamente
me senti tão incomodado como não me sentia desde o
colégio.
- E este é Hans. - Martika apontou para um homem alto,
com cabelos grisalhos que lhe chegavam aos ombros. - Ele
será o facilitador da constelação de hoje.
- Vamos começar com Scott - disse Hans. - Por favor, sente-
se aqui perto de mim.
Meio indeciso, fiz o que ele pediu, enquanto Martika
esboçava um sorriso como se dissesse "está tudo bem".
Hans continuou.
- Antes de começarmos, quero que todos se abram para o
campo. Inspirem profundamente pelo nariz, com toda força
do coração, e expirem lentamente pela boca.
Todos seguiram suas instruções e a sala ficou repleta do som
da respiração, semelhante ao som do vento. Após alguns
minutos, Hans falou diretamente para mim:
- O que está em seu coração hoje, Scott?
Olhei ao redor e os olhos de todos estavam fixos em mim.
Não sabia o que dizer, mas por fim deixei escapar uma só
palavra:
- Tristeza.
- E por que você está triste?
- Porque minha noiva foi morta. E eu me sinto só.
- Hum-hum. Qual era o nome de sua noiva?
- Cheryl.
- E de que maneira ela morreu?
- Foi morta por um motorista embriagado.
Imediatamente sons de piedade encheram a sala – ruídos
com os quais eu estava bastante familiarizado, e essa era a
principal razão pela qual eu não costumava falar sobre o que
acontecera a Cheryl.
- Muito bem, Scott. Quem nesta sala lhe parece poder
representá-lo?
Não entendi o que ele estava perguntando.
- Hum... acho que eu...
Uma gargalhada ecoou pela sala. Olhei para o chão, na
tentativa de fazer uma saída rápida, sem que ninguém
notasse.
- Você não pode ser um participante ativo da sessão. Tem de
se sentar fora do círculo e ficar observando a constelação
desde o início. Dentro, o círculo vai se transformar no que
chamamos de o campo, que é a porta de acesso ao nosso
inconsciente coletivo, que nos une pelo tempo e espaço.
Use sua intuição e escolha alguém que lhe pareça ter
sentimentos semelhantes aos seus agora.
Eu não compreendia tudo o que ele estava dizendo, mas
percebi que tinha de eleger alguém para me representar
durante o exercício, fosse o que fosse. Levantei-me e vi que
havia apenas mais um homem no grupo além de Hans. Ele
tinha um enorme bigode negro de motociclista e usava um
cinturão com uma grande fivela de prata. Definitivamente,
não era alguém com quem eu tivesse algo a ver.
- Não é preciso que seja um homem. - Hans parecia ler
meus pensamentos. - Apenas escolha alguém que lhe pareça
a pessoa indicada.
Dei uma olhada pela sala e imediatamente me fixei em uma
garota de uns vinte e cinco anos de idade, com cabelos
curtos e negros, maquiagem gótica e vestida de preto, que
tentava evitar meu olhar para que eu não a notasse. Ao
redor, todos os demais pareciam ter se fundido em uma
imagem borrada enquanto apenas ela continuava em foco.
Aos poucos levantei a mão e apontei, sussurando para Hans:
- Ela.
- Lori, você pode ficar em pé, por favor? - ele pediu.
- Estou representando Scott - Lori disse enquanto
caminhava para dentro do círculo.
- Bem, agora quem representará Cheryl?
Olhei para os nomes nos crachás, esperando que pudesse
encontrar alguém com um nome parecido para tornar a
tarefa mais fácil. Mas os crachás misturaram-se em um
oceano de letrinhas, enquanto eu tremia e me sentia
constrangido. Minhas pernas quase sucumbiram ao peso de
meu torso e decidi sentar antes que fosse tarde demais.
- Está bem - disse Hans. - Apenas escolha a primeira pessoa
que lhe pareça certa.
- Martika - deixei escapar, esperando que ela ainda estivesse
na sala. Ela estava atrás de mim, organizando o bufê, e
caminhou até Lori.
- Estou representando Cheryl - disse Martika quando entrou
no círculo.
- Muito bem - falou Hans. - Deixe-me ajudá-lo com os
demais. Gostaria de trazer seus avós para ajudar. Tudo bem
para você?
Todos os meus avós e bisavós tinham morrido havia muitos
anos. Eu tinha sido muito próximo de meu avô materno,
mas somente o via uma vez a cada um dos poucos anos
antes de sua morte. Os outros eu realmente não conhecera
direito. Não tinha uma opinião segura sobre nenhum deles e
me ouvi dizendo em voz alta:
- Sim, se você acha que isso pode ajudar.
Quando olhei ao redor, pude ver uma mistura de tristeza e
compaixão em quase todos os olhos no momento em que eu
falava.
Hans prosseguiu com a determinação de um guepardo ao
acossar a presa:
- Allie, você representa o avô materno de Scott. Diana, você
representa o avô paterno de Scott. Shelley, você representa
o bisavô do lado paterno da mãe de Scott. Scott, de que país
era seu bisavô?
Levei um instante para perceber exatamente de quem ele
estava falando e, após fazer uma breve árvore genealógica
mental de minha família usando o dedo indicador, disse:
- Ele era ameríndio. Da tribo Cherokee.
- Foi o que pensei. Isso faz muito sentido. Devora, você
representa a nação Cherokee. Humm... parece que está tudo
bem, mas algo não está em equilíbrio.
Hans inclinou a cabeça para trás e começou a andar em
círculos. Do lugar em que eu estava, podia ver claramente
seu rosto, mas parecia que seus olhos se reviraram, com as
órbitas para cima, quando fez um movimento que
desenhava aquela espécie de oito, representando o infinito,
com seus grandes pés. Aquilo durou alguns minutos e pude
sentir que não era a única pessoa que estava desconfortável,
quando notei que as outras pessoas se mexiam nos assentos,
esperando que ele terminasse.
De repente, Hans parou, e seus olhos voltaram para o
centro. Em seguida, falou com um tom de comando que
encheu a sala.
- James - sua voz ecoou -, você representa o motorista
embriagado que matou Cheryl.
Quase imediatamente todo sangue de meu corpo pareceu
concentrar-se acima do pescoço e senti o rosto ruborizar até
ficar vermelho de raiva, quando o "bigode" entrou no
círculo. Não podia acreditar que ele estava trazendo aquele
homem para o campo.
Tentei levantar, mas Hans gentilmente me puxou de volta
para o lugar em que eu estava e sussurrou algo que não ouvi.
Fiquei completamente lívido. Queria ir até o motorista
bêbado e bater nele até que não pudesse mais se mover.
Estava com náuseas e tremia tanto que mal conseguia me
manter na cadeira.
Hans falou um pouco mais alto:
- O motorista embriagado sobreviveu?
Por alguma razão, isso me tocou fundo.
- Não, ele também morreu.
- Vamos lidar com isso mais adiante - Hans continuou -, mas
agora quero que você conduza com gentileza cada um dos
apoiadores para dentro do campo, onde eles possam se sentir
mais naturais. Apenas respire com toda força de seu coração
e deixe o campo conduzi-lo.
Após levar um instante me recuperando, caminhei em
direção a Martika e, quando coloquei as mãos com
delicadeza atrás de seus ombros, uma sensação de
formigamento fluiu pelo meu corpo, tomando minhas mãos
e meus braços e descendo pela espinha. Aproximei-me o
bastante para respirar o perfume de seus cabelos, sendo
imediatamente transportado para o momento em que
conheci Cheryl. Martika ia se transformando em Cheryl a
cada instante - tinha seu cheiro, sua postura e sua aura. Em
poucos segundos, todos os traços de Martika haviam sido
apagados e só restou Cheryl.
- Apenas leve-a para onde ela se sinta mais à vontade - Hans
repetiu.
Quase como se alguém estivesse me empurrando pelos
ombros, comecei a guiá-la para o ponto mais distante do
círculo, salva e longe do restante das pessoas.
- Muito bem - continuou Hans. - Agora, os outros.
Da mesma forma, guiei a pessoa que me representava para
perto de Cheryl, de modo que ambas ficaram lado a lado,
uma de frente para a outra. Olhei para o restante do grupo e
a única pessoa que fui capaz de ver foi o motorista bêbado.
A raiva retornou e encheu meu coração quando olhei para
ele. Sem pensar, empurrei-o para o lado oposto do círculo
em relação ao ponto em que Cheryl estava e fiz com que seu
corpo girasse, de maneira que ele ficasse olhando para fora.
Se tinha mesmo de estar ali, eu não deixaria que se
aproximasse de Cheryl. Ele já fizera demais e, se dependesse
de mim, eu não permitiria que aprontasse mais nada.
Olhei para o restante da minha família - meus avós, meu
bisavô e a tribo Cherokee. Não me sentia ligado a nenhum
deles. A morte de Cheryl não tinha nada a ver com eles e eu
não podia entender por que Hans os trouxera ali. Olhei para
Hans, sacudi os ombros e finalmente disse:
- Acho que é isso. - Dei uma olhada para trás, na direção de
Cheryl, e fiquei chocado ao perceber que não conseguia
reconhecer Martika de jeito nenhum. Ela havia se
transformado em Cheryl e estava olhando para mim. Os
pelos de minha nuca se eriçaram quando percebi que era a
primeira vez que realmente via Cheryl em muitos anos.
- Muito bem, Scott, você acabou, por ora. Daqui para a
frente, apenas preciso que você observe e sinta. E
importante para você ficar quieto. Está pronto?
Balancei a cabeça, confirmando, e as luzes pareceram
diminuir, embora eu não estivesse vendo ninguém perto do
interruptor.
Hans andou até meu representante e perguntou:
- O que você está sentindo?
- Sinto raiva do motorista bêbado.
Em seguida, ele foi até o motorista embriagado e repetiu a
pergunta:
- O que você está sentindo?
Vergonha. Remorso - ele disse enquanto começava a chorar.
- Sinto muito.
Hans prosseguiu:
- Quero que diga a Scott: "Sinto muito por ter tirado Cheryl
de seu mundo. É minha culpa e só eu vou sofrer as
consequências".
Lágrimas começaram a rolar pelos cantos de seu imenso
bigode enquanto o motorista bêbado repetia:
- Sinto muito por ter tirado Cheryl de seu mundo. É minha
culpa e só eu vou sofrer as consequências.
Olhei para aquilo, estupefato, e não podia mais sentir meus
pés. Estava completamente zonzo e parecia que ia entrar em
choque. Minhas emoções pareciam estar prestes a entrar em
curto-circuito. Eu não conseguia entender o que estava
acontecendo, mas sabia que não estava gostando nada
daquilo.
Hans andou até meu representante e falou:
- Diga ao motorista bêbado: "Estava enganado quando
assumi sua culpa. A morte de Cheryl não é responsabilidade
minha. É você quem tem de carregar sua culpa".
Meu representante falou devagar e claramente:
- Estava enganado quando assumi sua culpa. A morte de
Cheryl não é responsabilidade minha. É você quem tem de
carregar sua culpa.
Após breve pausa, Hans continuou:
- Diga a ele: "Devolvo sua culpa a você e o deixo em paz".
Depois de um silêncio longo demais, meu representante
olhou para mim e, aos poucos, dirigiu o olhar para o
motorista bêbado, sussurrando com voz trêmula:
- Devolvo sua culpa a você... e o deixo em paz.
Segurei a cabeça com as mãos e comecei a soluçar
incontrolavelmente. A tristeza no meu coração foi
substituída por uma dor intensa e eu não podia parar de
chorar. Estava liberando anos de raiva que havia imposto a
mim mesmo e, pela primeira vez após a morte de Cheryl, eu
me sentia capaz de liberar também minha carga. Não é culpa
minha. Comecei a repetir aquelas palavras vezes seguidas.
Não é culpa minha. Não é culpa minha. Não é culpa minha.
O choro dos outros me envolvia, e depois que minhas
lágrimas secaram senti como se me tivessem passado um
pano de limpeza emocional. Na mesma hora que a raiva e a
culpa começaram a se dissipar de meu coração, parecia que
eu estava iluminado. A constelação estava funcionando e
pela primeira vez eu me sentia grato por estar ali.
- Mexam-se à vontade - Hans falou ao grupo, o que trouxe
meu foco de volta aos representantes no círculo.
Todos começaram a se mover entre si, no centro do círculo,
sem confortar minha representante. Alguns até tentaram
evitá-la, enquanto outros agiam como se não a vissem,
incluindo quando andavam em sua direção. Aí viraram-se
literalmente, girando sem se aproximar. Cheryl, por sua vez,
continuava tentando ficar longe de minha representante, e
sempre que esta a procurava os outros se aproximavam e
quase a nocauteavam. Isso perdurou por quase três minutos
e me fez sentir extremamente desconfortável.
- Já basta - disse Hans. - Parem de se movimentar.
Fiquei aliviado e acalentei a esperança de que tudo aquilo
acabasse.
Hans foi até cada uma das pessoas que estavam no campo e
fez com que parassem diante de minha representante. Em
seguida, perguntou:
- O que você está sentindo?
- Sinto-me sozinho. Como se ninguém quisesse estar
comigo - ela respondeu.
Lágrimas começaram a rolar pela minha face de novo e eu
não conseguia manter os olhos abertos. Mergulhado em meu
nevoeiro emocional, ouvi Hans continuar:
- Isso é porque você deveria estar morto. Você deveria ter
morrido com Cheryl.
Eu não estava certo de ter ouvido direito. Ele, então, repetiu
devagar e pausadamente:
- É porque... você deveria estar... morto. Você deveria ter
morrido com Cheryl.
Eu havia pensado nisso um milhão de vezes, mas achava que
pessoas como Hans eram obrigadas a fazer com que os
outros se sentissem bem por estar vivos, não lhes dizer que
deveriam ter morrido! Fiquei realmente com raiva dele e
desejei sair dali e ir embora, mas minhas pernas não
cooperavam. De fato, meu corpo inteiro não se movia. Eu
estava congelado ali. Parado e forçado a ouvir seu insulto.
- Em geral, o destino trabalha de mãos dadas com o livre-
arbítrio, mas às vezes um pode se sobrepor ao outro, como
aconteceu no seu caso. Provavelmente porque você
desenvolveu sua intuição foi capaz de pressentir que seguir
naquele carro não parecia correto. - Hans continuou, e suas
palavras começaram a ficar mais claras. - Mas o universo é
uma máquina de altíssima precisão, feita de bilhões de seres
vivos, todos predeterminados a mover-se em dado caminho,
seguindo para dentro ou para fora, sem interferência mútua.
Quando alguém morre, aquele caminho é liberado para que
outro ser vivo possa viajar por ali.
Minha cabeça começou a girar outra vez e eu já não tinha
mais certeza de que estava, de fato, acompanhando seu
raciocínio. Então ele olhou direto para mim e continuou a
falar:
- No seu caso, o universo esperava que você estivesse
morto, e sua jornada está interferindo no destino de outras
almas. É como se uma velha estrada continuasse a ser usada
depois que outra tivesse sido construída, nova, sobre a
primeira. Provavelmente haverá uma superposição, porque a
antiga estrada não deveria mais ser usada.
Comecei a compreender.
- É por isso que você se sente tão sozinho e porque as coisas
têm sido tão duras desde a morte de Cheryl.
Comecei a imaginar se minha recente onda de má sorte
tinha algo a ver com o que ele estava dizendo. Antes da
morte de Cheryl, eu sempre encontrava uma vaga para
estacionar diante de qualquer loja para a qual estivesse me
dirigindo, nunca tinha de ficar esperando na linha por mais
de alguns minutos e possuía grandes amigos, que fariam
qualquer coisa por mim. E era verdade que depois da morte
de Cheryl tudo se tornara mais difícil: nunca conseguia
encontrar vagas para estacionar, constantemente tinha de
esperar muito tempo pelas coisas mais simples e quase todos
os amigos me abandonaram.
Quanto mais eu pensava nisso, mais exemplos surgiam,
como meu hábito recente de esbarrar nas pessoas ao
caminhar pela calçada. Era como se desde a morte de Cheryl
a maioria das pessoas simplesmente não pudesse ver que eu
existia. Percebi que até mesmo colegas de trabalho tinham
dificuldade de lembrar meu nome.
Hans explicou:
- Essa também é a razão pela qual você tem se apegado tanto
a Cheryl, porque estava destinado a estar com ela na morte.
Entretanto, você não está morto e precisa se reintegrar à
vida, enquanto ela tem de ser autorizada a continuar a
própria jornada.
Minha cabeça não parava de girar. Eu acabava de ser
informado de que deveria estar morto e que estava
impedindo minha noiva de cruzar para o outro lado porque
continuava apegado a ela depois de sua morte. Mesmo
pensando que Hans estivesse certo, ainda assim era algo
perturbador, e eu me sentia mais confuso do que nunca.
Ele me deu as costas e encarou o círculo outra vez.
- Cheryl, diga a Scott: "Era simplesmente minha hora de ir.
Eu o verei de novo, embora não tão cedo".
- Era simplesmente minha hora de ir. Eu o verei de novo,
embora não tão cedo - Cheryl disse à minha representante.
- Eu o amo, mas você tem de me deixar ir - Hans continuou.
Cheryl repetiu:
- Eu o amo, mas você tem de me deixar ir.
Senti um nó na garganta. Tinha dificuldade de respirar, e as
luzes se apagaram quando o espírito de Cheryl finalmente se
afastou de mim. Minha tristeza foi se transformando em
alívio, e, pela primeira vez desde a morte dela, comecei a
me sentir em paz com sua partida.
- Como você não está mais seguindo seu caminho natural,
não foi capaz de absorver a força e o apoio de seus ancestrais
-Hans disse à minha representante. - Seus antepassados estão
ansiosos para ajudá-lo a se integrar em um novo caminho, ao
longo do qual você não se sentirá mais só. - Ele colocou as
mãos nos ombros de meu avô materno e fez com que ele se
dirigisse à esquerda da minha representante. Em seguida,
orientou meu avô paterno a postar-se à direita. Meu bisavô
foi para a esquerda de meu avô materno e a nação Cherokee
colocou-se no lado oposto.
Ver minha família ao meu redor era extremamente
poderoso. Senti-me amado e apoiado pela primeira vez em
muitos anos. Com meus ancestrais me ladeando como asas,
eu era capaz de imaginar que podia voar para qualquer lugar
com a ajuda deles.
Hans permaneceu estranhamente quieto, e cada uma das
pessoas do círculo parecia tão cansada quanto eu. As faces
estavam marcadas, e montes de tecido amassado estavam
espalhados pelo chão.
- Muito bem - disse Hans após longo silêncio. - Todos que
estão no círculo podem voltar a seus assentos.
Os representantes que haviam permanecido no círculo
retornaram para suas cadeiras e, aos poucos, voltaram a ser
um grupo de pessoas desconhecidas. Em seguida, pares de
olhos preocupados voltaram-se para mim como se
perguntassem, em silêncio, como eu estava.
Hans olhou ao redor, quando se dirigiu ao grupo todo:
- Cada um de vocês deve fechar os olhos e respirar
profundamente mais uma vez, expirando depois qualquer
energia do campo que ainda tenha permanecido em vocês. E
importante liberar a energia que está no corpo antes de
deixar esta sala.
Segui as instruções dele e comecei a me sentir muito mais
leve e menos sofrido do que estivera durante a hora
anterior. Enfim, aquilo estava acabado, e senti uma imensa
sensação de alívio.
- O que aconteceu hoje nesta constelação é um vínculo
sagrado entre todos que aqui estão - Hans continuou - e é
importante não falar sobre o que houve fora desta sala. De
fato, isso será muito útil para todos... - e olhou diretamente
para mim -, incluindo para você, Scott, se tentar esquecer o
que aconteceu e permitir que a energia trabalhe em si sem
deixar que sua mente atravesse o caminho. Sei que é difícil,
mas movimentamos muita energia hoje, e muitos anos vão
se passar até que tudo isso se sedimente.
Eu não sabia muito bem o que fazer com essa informação,
mas me sentia muito melhor e grato. Se ele queria dizer que
eu ia me curar aos poucos ao longo dos próximos anos, eu
realmente torcia por isso.
- Muito bem, acabamos, por ora - disse Hans, de repente. -
Vamos fazer uma breve respiração e dar a Scott algum
tempo para se situar em seu novo sistema de apoio.
Martika me deu um copo-d'água e perguntou se eu estava
bem. Tudo ainda estava nebuloso, mas eu me sentia melhor
e definitivamente muito mais interessado em viver do que
estivera desde que Cheryl morreu. Sabia que ela tinha ido
embora e pela primeira vez em muitos anos estava pronto
para viver de novo.
- Vamos - disse Martika. - Deixe-me dar uma carona a você
até em casa. Acho que você precisa descansar.


CAPÍTULO 7

Durante os dias que se seguiram ao retiro espiritual e à
constelação, meus sentidos aguçaram-se sobremaneira e
meu espírito alcançou um nível de energia que eu não sentia
havia anos. Era como se minha alma tivesse sentimentos
próprios e sensibilidade altíssima. Quase tudo me lembrava
de que minha alma estava ali e de que ainda era terna ao
toque. Quando abri a janela de meu apartamento, uma
pessoa feliz, um pássaro voando - e até mesmo o vento -,
tudo parecia atiçar meu espírito e dizer: Finalmente você
está vivo.
Como eu estava me sentindo sensível demais, não saí do
apartamento por mais de uma semana para me recuperar.
Enfim, decidi tomar um pouco de ar fresco. Caminhando,
antes mesmo de completar um quarteirão, vi uma jovem de
pouco mais de vinte anos, com cabelos cor-de-rosa
brilhantes, usando uma minissaia e meias listradas de branco
e preto. Ela saltitava ladeira abaixo.
- Olá - saudei, sentindo-me muito mais amigável do que
costumava ser.
- Olá, sou Om - ela respondeu com um alegre tom de voz,
fazendo uma pequena reverência.
Eu não tinha certeza de ter ouvido direito.
- M? Trata-se de uma inicial? O que significa?
- Não M, mas Om, sabe? Assim, tipo
Ommmmmmmmmmm. - Ela juntou os polegares e os
indicadores e levantou a cabeça, assumindo por um instante
uma atitude de meditação. Contei oito brincos em uma de
suas orelhas e apenas dois na outra, e fiquei preocupado com
a possibilidade de ela pender para um lado e cair se não se
mantivesse ereta rapidamente.
- Sou Scott - falei, por fim. - Prazer em conhecê-la,
Ommmmmmmmmm.
Ela riu e disse:
- Estou tão contente! O dia está lindo e estou indo praticar
kirtan que sempre eleva meu espírito.
Não sabia muito bem do que ela estava falando, mas sua
energia era contagiante. Podia vê-la emanando do corpo da
jovem e entrar no meu, onde minha alma recebia com
entusiasmo a felicidade da moça. Era uma incrível
demonstração do poder das boas intenções e de como era
melhor estar perto de alguém como Om, que estava repleta
de energia positiva.
- Você também está indo praticar kirtan? - ela perguntou.
- Não sei o que é isso.
- Nossa! Então você precisa vir comigo para conhecer meu
namorado, Garuda. Kirtan é a mais bela experiência que há
no mundo. Através dela você alcança um profundo sentido
de paz interior e de conexão com o universo, quando canta
com seus companheiros espirituais da Terra. Hoje vai
acontecer no parque, com a participação de um maravilhoso
flautista do Nepal. Eu o conheci numa festa, ontem à noite,
e ele emite o som mais puro que já ouvi na vida. Ele pode
curar a si mesmo e aos outros apenas tocando seu
instrumento de bambu. É muito mágico!
Eu não tinha planos para aquele dia e, embora não estivesse
familiarizado com o que ela estava falando, podia sentir o
entusiasmo que emanava até mesmo de cada uma de suas
respirações. Também fazia tempo que eu não ouvia música
ao vivo e ir a um concerto no parque parecia ser uma grande
idéia.
- Vamos lá - falei, e caminhamos juntos ladeira abaixo.
Andamos pela calçada que margeava o parque e, após
atravessar duas pontes de madeira que se estendiam sobre
um riacho, já dava para ver o jardim japonês no lado oposto
da rua. Atravessamos e caminhamos pela área estreita repleta
de bambus, miniaturas de carvalhos com as folhas
avermelhadas e um riacho que serpenteava ladeira abaixo
sobre um leito rochoso. Depois seguimos por uma grande
área de relva, ladeada por três imensas sequóias. As árvores
eram gigantescas e majestosas e pareciam encantadas com a
multidão que se reunia abaixo, sentada em cobertores, na
base de seus troncos. Eu jamais vira tanta gente reunida ali
antes e fui tomado pelo silêncio e pela quietude que
completavam seus movimentos. Algumas pessoas estavam
vestidas com tecidos coloridos e fluidos; outras, porém,
usavam apenas túnicas brancas e turbantes.
Encontramos o namorado de Om, Garuda, após
perambularmos alguns minutos no meio da multidão, e ele
pareceu genuinamente satisfeito ao me conhecer. Sua
cabeça era raspada e ele estava com uma túnica longa e
branca, além de levar um cordão de sementes enrugadas
enrolado no pescoço. Om me apresentou a ele com voz
suave e, depois de murmurar nossas saudações, sentamo-nos
para compartilhar um grande cobertor branco. Eles
continuaram a conversar a meia-voz e, embora não
conseguisse ouvir tudo o que diziam, podia sentir sua
energia me acolhendo como um novo amigo. Fui envolvido
por um sentimento de pertencimento que jamais sentira
antes com pessoas que acabara de conhecer e apreciei o
incondicional sentido de comunidade ali presente.
Garuda havia reservado um ponto no centro do gramado, de
modo que tínhamos ampla vista do palco, que estava
coberto por um largo retângulo de tecido dourado feito à
mão. Havia instrumentos desconhecidos pousados entre
almofadas cor de violeta, que refletiram a luz do sol quando
os músicos apareceram diante da plateia e tomaram suas
posições.
Os primeiros acordes vieram de um só deles, parecido com
um violoncelo bem estreito, mas que emitia um som
semelhante ao de uma cítara flutuando pelo ar em um longo
e gracioso fluxo. Garuda sussurrou em meu ouvido o nome
de todos aqueles instrumentos exóticos, explicando que o
primeiro era um tampura, da índia. Após alguns instantes,
um cavalheiro idoso começou a tocar outro, semelhante a
um acordeom, mas chamado har-monium. Em seguida,
ouviu-se um par de tambores que levavam a audiência a se
movimentar em certo ritmo. Finalmente, um jovem asiático
pegou uma delicada flauta de bambu e começou a tocar a
música mais linda que eu ouvira na vida. As notas fluíam em
seu instrumento oco e pairavam sobre a plateia, vindo direto
ao meu coração. Eu ficava arrepiado a cada longa nota
extraída de uma escala incomum, que era, ao mesmo tempo,
estranha e familiar.
Eu jamais ouvira aquele tipo de música antes, mas aquilo
revelava o que estava profundamente arraigado e que
sempre estivera dentro de mim. A flauta contava uma
história de amor e devoção. Lágrimas de puro amor
começaram a rolar de meu rosto. Nunca antes havia chorado
de felicidade, mas pareceu tão certo que decidi que precisava
fazer melhor uso de minhas lágrimas.
Os músicos deixaram que o flautista fizesse o solo até que
uma mulher de aparência exótica, vestida com uma túnica
branca e um turbante, emergiu graciosamente da plateia e
foi até o centro do palco. Ela começou a cantar em uma
língua estrangeira que não fui capaz de reconhecer e,
intuitivamente, a plateia inteira repetiu o verso a uma só
imensa e poderosa voz. A primeira vez que isso aconteceu
houve uma onda de energia que circulou entre os
espectadores antes de se dissipar, subindo para o céu. Ela
repetiu o verso e, de novo, a platéia a seguiu, de maneira
ainda mais intensa que antes.
A princípio, relutei em juntar minha voz à coletiva, mas
ouvindo atentamente e reconhecendo que nem todos
estavam afinados descobri que as vozes assim mescladas
formavam um conjunto muito natural. Tão logo me
familiarizei mais com o canto, comecei a murmurar a letra e
depois cantei alto, como todos os demais.

- Govinda Jaya Jaya, Gopala Jaya Jaya
Govinda Jaya jaya, Gopala Jaya Jaya
- Radha Ramana Hari, Govinda Jaya Jaya
Radha Ramana Hari, Govinda Jaya Jaya
- Govinda Jaya Jaya, Gopala Jaya Jaya
Govinda Jaya Jaya, Gopala Jaya Jaya
- Radha Ramana Hari, Govinda Jaya Jaya
Radha Ramana Hari, Govinda Jaya Jaya

Aquelas palavras da letra tão singela foram repetidas com
pequenas variações durante quase meia hora, como um
refrão, até que a primeira canção terminasse. Assim que
acabou, a platéia mergulhou em silêncio, permitindo que a
quietude pairasse sobre todos ali presentes, até que os
músicos começassem a ondular sua história melódica outra
vez. No meio da segunda canção, fiquei parado, fechei os
olhos e cantei do fundo de minha alma. A cada verso eu me
sentia muito mais conectado a cada uma das pessoas que
estavam ali no parque. As fronteiras entre nosso corpo
tornaram-se, aos poucos, imperceptíveis, e todos nos
transformamos em uma única e pulsante massa de energia
em movimento. Senti literalmente que estava
transcendendo ao tempo e ao espaço a cada verso e depois
de várias canções eu já não podia mais sentir meus pés
tocando a relva. Meus olhos podiam ver que a força da
gravidade ainda existia, mas meus outros sentidos não
estavam convencidos disso.
O kirtan demorou cerca de quatro horas, e, quando acabou,
eu estava nas nuvens e mal conseguia trilhar o caminho de
volta para casa em companhia de Om e Garuda. Após
andarmos alguns quarteirões em silêncio, Om olhou para o
céu enquanto se abraçava e dizia: "Sou tão feliz!".
Imitei-a. Embora as estrelas estivessem brilhando, a lua
estava escura.
- Deve ser lua nova - falei.
- Tempo de renascimento - disse Om quando chegamos à
minha rua.
- Com certeza, é. - Sorri para ela e Garuda e deslizei pelo
caminho em direção ao meu apartamento. - Obrigado.
- Namastê - eles responderam em uníssono enquanto
juntavam as mãos em posição de prece, inclinando
levemente a cabeça.

Naquela noite, tive o primeiro daquele que se tornaria outro
sonho recorrente. Não sonhara mais com o acidente de
Cheryl desde a constelação e, por fim, estava tendo noites
repousantes pela primeira vez em muitos anos.
O novo sonho não era tão apavorante, mas nem por isso
menos intenso. Acontecia no parque de uma pequena
cidade que reconheci como sendo aquela em Yreka, onde
Cheryl e eu costumávamos passar bastante tempo. Era um
lugar muito especial para nós, onde caminhávamos ao
anoitecer, durante o alto verão, assim que começamos a
namorar.
No sonho, eu começava a me balançar em determinado
balanço, lá no final da área onde ficavam esses brinquedos.
Sentia como se estivesse esperando por alguém ou por algo.
Após me balançar durante certo tempo, eu sentia o que
parecia ser um portal de energia que se revelava bem acima
de mim. Nunca cheguei perto o suficiente para tocá-lo, mas
ele começou a aumentar de tamanho cada vez mais, até ficar
maior que o próprio conjunto de balanços em que eu estava.
A princípio pensei que fosse um sonho simbólico que me
permitiria, finalmente, lidar com a morte de Cheryl, mas a
cada noite ele foi ficando mais poderoso, e a sensação que eu
vivenciava enquanto estava mergulhado nele começou a
permear as horas que se seguiam ao meu despertar. Depois
que ele se repetiu todas as noites, em uma sequência sem
falhas, começou a me consumir e eu mal conseguia
distinguir quando estava acordado ou dormindo. Eu estava
obcecado com o portal sobre o conjunto de balanços. Dava a
impressão de que Yreka guardava a chave para outra
dimensão de meu despertar espiritual.
Depois do que calculei serem umas duas semanas, desde que
o sonho começou, ficou claro para mim que o portal se
abriria no parque na próxima sexta-feira. Isso não fazia
sentido do ponto de vista lógico, mas era como se o tempo e
o espaço fossem se cruzar em um momento preciso,
revelando um "eclipse" para outra dimensão, cuja existência
parecia que só eu sabia. Eu estava, ao mesmo tempo, curioso
e amedrontado sobre o que ele representava, porém senti
que não tinha outra escolha. Eu devia investigar para saber
do que se tratava. Sabia muito bem que minha jornada
espiritual mal começara, mas de alguma maneira achei que
aquele portal iria me transportar para outro plano de
espiritualidade, acelerando essa jornada.
Desde meu retiro, eu ainda não havia visto Robert e me
pareceu que seria uma boa ideia falar com ele sobre o fato de
estar pensando em seguir meus sonhos, indo para Yreka. A
raiva que sentira dele por ter-me abandonado já se dissipara,
e eu começava a admitir que ele era um espírito livre, que
flutuava para dentro e para fora de minha vida no tempo
certo. E naquele dia tive a sensação de que deveria vê-lo de
novo. Estava convencido de que saberia exatamente onde
encontrá-lo.
Fui até a cooperativa e o vi sentado, com as pernas cruzadas
e as costas apoiadas em sua árvore favorita, o cachorrinho
Don a seus pés e um cartaz menor que o habitual
descansando em seu colo:

Ouça seu coração.

- Olá, Robert!
- Nossa, você parece diferente - ele disse, olhando-me de
cima a baixo. - Como andam seus sonhos?
- Engraçado você perguntar sobre isso, porque é a exata
razão de eu estar aqui. - A capacidade intuitiva dele era
formidável.
- Eu, de fato, percebi. O que dizem seus sonhos?
- Estão falando para eu ir até Yreka e balançar em um
conjunto de balanços - tentei esclarecer.
- E o que existe nesse conjunto de balanços?
- Parece algo como um portal para outra dimensão. - Eu
nunca havia dito aquilo em voz alta antes e soou meio
sentimentaloide. - Isso é possível?
- Claro que é possível!
- Por que eu estaria sonhando com isso?
- Quando as pessoas sonham, parte de sua alma fica livre
para deixar o corpo e vaga com o inconsciente coletivo. Às
vezes é pura diversão, como os sonhos nos quais a gente
voa. Outras vezes é para recuperar a sabedoria e o poder
ancestrais. Agora que você tem orientação de seus
antepassados, eles estão ajudando-o a ficar mais forte.
- Então você acha que devo ir?
- O que você acha?
- Acho que sim.
- O sonho lhe deu alguma indicação de tempo?
- Sim. Esta sexta-feira.
- Hummm... Isso me parece uma coisa real. Provavelmente
algum tipo de visão missionária para você.
- E o que é uma visão missionária?
- É um rito de passagem na tradição dos nativos norte-
americanos. Durante a adolescência, os jovens são mandados
para a selva para vencer obstáculos e vislumbrar o futuro.
Parece que Yreka será a sua "selva". Isso o assusta?
- Um pouco.
- Bem... deveria mesmo. Se você resolver ir, precisa fazer
isso com o coração e a mente abertos, sem pensamentos
preconcebidos sobre o que poderá descobrir. A visão
missionária pode ser uma das experiências mais poderosas de
uma jornada espiritual e só faz sentido ir se você estiver
totalmente presente. Muito bem.
- Parece que agora seu coração está muito mais aberto que
antes. Quando o conheci, você estava fechado como uma
ostra e nada podia entrar. Entendeu?
De fato, eu me sentia bem mais aberto e não desejava mais
me fechar para o mundo outra vez.
- Acho que sim - por fim respondi em voz alta.
- Acho que você deve ir - ele disse após longa pausa. - Como
pensa chegar lá? Seu carro não está com o motor fundido?
Eu ficara tão mergulhado no sonho que havia esquecido a
parte prática.
- Nossa, é verdade! Um carro.
- Acho que Martika tem um carro reserva que ela empresta
ocasionalmente a pessoas do grupo da constelação. Por que
não pergunta se ela pode cedê-lo a você?
- É uma boa idéia.
- Boa sorte, Scott. Espero que encontre o que está
procurando. Você está em um estágio especial de sua
jornada.
- Obrigado, Robert. Eu lhe direi o que encontrei.
- Conto com isso!

CAPÍTULO 8

Deixei Ashland bem cedo na manhã de sexta-feira.
Entusiasmado, atravessei as montanhas Siskiyous no carro
reserva de Martika. O veículo enfrentava as subidas com
muito mais elegância que o velho Volvo.
Ao me aproximar da fronteira da Califórnia, vi que os
variados e vibrantes matizes verdes das florestas do Oregon
tinham sido substituídos pelos tons apagados da morte,
como se a Mãe Natureza tivesse desenhado uma linha
imaginária que separava os verdes dos dourados.
Quando cruzei a fronteira, senti como se meu espírito -
minha força vital - começasse a escorrer por trás do
pescoço, como se estivesse ligado a um cordão e preso no
lado do Oregon. Quanto mais eu continuava a dirigir para
longe daquela linha imaginária, mais me sentia vazio, até que
cada um dos meus sentidos perdesse quase toda a agudeza.
Tudo cheirava a poeira e tinha sabor de poeira. Mesmo
bebendo da garrafa de água primaveril, eu podia sentir isso.
Meus dedos começaram a ficar entorpecidos e, de repente,
parecia que eu estava usando luvas. O som dos pneus do
carro na pista parecia muito distante, como se minhas
orelhas estivessem tampadas com bolas de algodão. Quase
todos os tons vibrantes que estavam diante de meus olhos
estavam pintados de sépia, como se fossem fotografias
antigas.
Felizmente, minha memória muscular pareceu assumir o
controle e comecei a dirigir no piloto automático, sem que
meu cérebro e minhas mãos se comunicassem. No início,
comecei a ficar em pânico, mas passei a respirar
profundamente e fechei os olhos. Estava lúcido o suficiente
para saber que mesmo dirigindo no piloto automático
precisava manter as pálpebras abertas, O que demandava
muita força de vontade. Então, após cochilar ligeiramente,
consegui acordar e a primeira coisa que vi quando abri os
olhos foi o majestoso monte Shasta. Ele parecia brilhar com
um halo de luz branca contrastando com os tons apagados
ao seu redor. Quando estava crescendo, eu sempre sentia
uma ligação com o monte Shasta e, embora não tivesse
planos de subir ao cume, naquele dia anotei mentalmente na
memória para revisitá-lo o mais breve possível.
Quanto mais perto chegava de Yreka, mais me habituava
àquele estado de entorpecimento dos sentidos. Assustei-me,
porém, ao rodar em direção ao guardrail, em uma passagem
nas montanhas, de modo que tratei de permanecer mais
lúcido o restante da viagem.
Chegando à cidade, fiquei surpreso ao ver como estava
vazia. Sempre fora pequena, mas agora parecia quase deserta.
Não havia carros nas ruas, nem pássaros no céu, nem
pedestres nas calçadas. Talvez meus sentidos confusos
estivessem brincando comigo, mas senti que até mesmo a
brisa decidira abandonar a cidade mineira e deixar que o
silêncio aprisionasse tudo o que restara.
Após estacionar em uma vaga do mercadinho local,
caminhei de volta à ilha de cimento que me dera as boas-
vindas depois que saí da rodovia expressa. Pensei ter
reconhecido algumas pessoas que vi de soslaio quando
passei, dirigindo, pela escultura de bronze de um mineiro e
sua mula, sob a placa azul e branca anunciando o nome da
cidade: YREKA. Sabia que era impossível porque todos os
que conheci no passado tinham deixado o lugar havia anos,
mas mesmo assim permiti que uma ponta de excitação me
envolvesse enquanto retornava à estátua para descobrir se o
que vira era real ou imaginário.
Quando me aproximei da parte de trás da escultura, senti-me
ao mesmo tempo entusiasmado e nervoso, envolvido na
tarefa de esclarecer se as pessoas que vira ainda estavam lá.
Perto do mineiro estavam um menino de cabelos castanhos
e emaranhados, parecendo um capacete, e seu pai careca e
com barba desordenada cor de areia. Quanto mais me
aproximava, mais podia ouvir a conversa, e gelei ao
reconhecer a voz deles.

- Muita gente veio para o condado de Siskiyou durante a
corrida do ouro para conseguir fortunas - o pai explicava. -
Mas poucas tiveram sucesso, e a maioria ficou na penúria.
- Pai, vamos encontrar ouro aqui?
- Provavelmente, não. No entanto, se trabalharmos duro,
podemos nos tornar os únicos a consertar os equipamentos
dos mineiros quando quebrarem.

Lembrei, palavra por palavra, do diálogo que aconteceu
quando minha família chegou a Yreka, vinda do sul da
Califórnia. A cidade ficava a pouco mais de trinta
quilômetros de Greenview, onde realmente nos fixamos,
mas era aquela escultura de bronze que representava o
otimismo que todos nós sentíamos naquele primeiro
momento. As possibilidades pareciam ilimitadas, e
estávamos entusiasmados por ter terra suficiente para criar
animais e cultivar nossa própria comida. Meu bem-
intencionado pai havia crescido no interior de Iowa e,
embora mamãe fosse uma verdadeira moça do sul da
Califórnia, ele a convenceu de que ali era um lugar muito
melhor para criar filhos; a princípio, eu também comprei
integralmente essa ideia.
Quando fiz a volta para ficar diante da escultura, o homem e
a criança já não estavam mais ali. Imediatamente, caí de
joelhos e comecei a chorar. Estava muito distante de minha
família e, embora mantivéssemos contatos ocasionais por
telefone, em aniversários e feriados, as lágrimas eram uma
forma de expressar que sentia uma falta de conexão. A
estátua de bronze era exatamente a mesma, porém eu não
era mais o garotinho de olhos muito abertos, ansioso por
vivenciar aquela nova aventura, da mesma forma que papai
também não era mais o mecânico idealista, ávido por
consertar equipamentos dos mineiros. Os anos haviam
desgastado nosso otimismo a ponto de revelar uma camada
de pessimismo - o dele, financeiro; o meu, social.
Quando, por fim, nos sentimos derrotados pelo condado de
Siskiyou, ambos nos retiramos para nossos respectivos
lugares de nascença: meu pai levou mamãe e minha irmã
para Iowa, querendo ficar perto de sua família, e deixei
Cheryl sepultada, seguindo a caminho do sul da Califórnia,
onde pensei que seria capaz de criar uma nova família, bem
mais parecida comigo.
Após permanecer uns dez minutos aos pés da estátua de
bronze, sequei as lágrimas, sacudi a poeira e comecei a
caminhar na direção da rua Miner. Tinha vindo a Yreka para
visitar o parque, mas não tinha certeza de que estava
realmente pronto para fazê-lo. Ainda me sentia frágil e
nostálgico, então decidi começar minhas reminiscências
visitando algumas lojas no centro, antes de me dirigir ao
parque.
Na rua Miner, os edifícios ainda ostentavam as mesmas e
antigas fachadas erigidas no final do século XIX; entretanto,
anos e anos de descuido fizeram com que a aparência geral
fosse de uma cidade fantasma, em vez da vibrante localidade
dos velhos tempos. Algumas lojas ainda existiam - eram as
mesmas. Velhas memórias espoucavam em minha
consciência praticamente a cada passo. Estavam fluindo
quando me encontrei diante da porta da loja especializada
em artigos esportivos, que ficava no alto da rua.
Olhando para cima, reconheci, balançando na fachada, o
letreiro de madeira com a figura de um peixe verde
esculpida. Abri a porta de vidro com cuidado. Reconheci as
visões e os aromas de minha juventude e fui transportado,
na mesma hora, para meu décimo terceiro aniversário. Meu
pai me levara exatamente a esse lugar, naquele dia, e eu
lembrava do cheiro característico de pólvora misturado com
o fedor de queijo mofado e ovas de salmão. As prateleiras
ainda estavam cheias de armas, varas de pescar, munição e
toda a parafernália necessária para destruir rápida e
violentamente nossos amigos que vivem na natureza.
Quando a porta fechou atrás de mim, pude ver três gerações
de veteranos sentadas no balcão coberto de vinil verde,
tomando café expresso enquanto conversavam com o dono
da loja. Todos vestiam camisas jeans de botões perolados, em
estilo caubói, e bonés de beisebol com o logotipo de uma
empresa de tratores colado na parte frontal. As vozes graves
e roucas mesclavam-se à desconfortável lembrança de meu
décimo terceiro aniversário.
- Vou comprar um rifle seis milímetros para meu neto no
Natal.
- Hoje vou lhe mostrar a arma que será sua se você passar de
ano.
- Esse é um rifle bem apropriado para um garoto de treze
anos. Vai bater no traseiro dele.
A loja inteira caiu numa gargalhada tão grande que fez os
mais velhos começarem a tossir.
- Esta é a mesma arma que meu pai me deu quando eu tinha
a sua idade, e, se você não fosse tão mal na escola, ela já seria
sua. Uma arma como esta fará de você um homem!
- Sim, mas ele é um tremendo atirador, com sua calibre
vinte e dois. Pode acertar uma lata de cerveja a trezentos
metros de distância sem a mira.
- Quem me dera eu tivesse uma visão dessas. Teria aquela
seis milímetros há um par de anos.
- Você e aquela seis milímetros. Acho que você nunca mais
a viu.
Os outros dois caíram na gargalhada, e, dessa vez, a tosse
perdurou por uns hons trinta segundos.
- Seria uma vergonha se sua displicente atitude na escola o
impedisse de se tomar um homem. Você está me ouvindo?
Não sei de onde meu pai tirou a idéia de que eu
compartilhava de sua teoria sobre ter de matar animais
inocentes para tornar-se homem, porque sempre me
orgulhei, em segredo, de salvar muitos seres, devolvendo-os
à vida selvagem, abrindo as portas tias gaiolas. Para ser
honesto, eu não estava interessado no currículo da nova
escola porque ele estava quase dois anos atrasado em relação
ao que eu estava aprendendo antes de mudar. E, quando me
dei conta disso, senti-me superior a todos ali, incluindo a
maioria dos professores, de modo que não me dignava a
fazer os deveres de casa - até que caí fora três anos depois.
Instaladas no alto da parede da loja havia duas cabeças de
cervos, congeladas no tempo, com os chifres ainda
manchados de sangue. A língua de ambos pendia para fora
da boca, e os dois pares de olhos permaneciam virados para
cima, em plena agonia, como um claro sinal de que não
haviam morrido de maneira pacífica. A visão daquelas
cabeças de cervos transportou-me imediatamente para a
primeira vez em que meu pai e eu fomos caçar, poucos
meses depois de meu décimo terceiro aniversário. Como
meu boletim escolar ainda não havia sido entregue, ele me
emprestou um de seus rifles, que era grande demais para
mim.

- Vamos contar para sua mãe que você pegou este aqui
sozinho. Estou orgulhoso de você, filho.
Na realidade, eu havia ferido de raspão a perna traseira
esquerda do animal, com minha fraca pontaria, e meu pai
terminara o serviço com um segundo e fatal tiro, antes que o
pobre tivesse a chance de desaparecer, cambaleando, na
floresta. Fiquei sem fala, ali ao lado dele, imaginando como
poderia ter me envolvido em tirar uma vida tão bela de sua
família. Meu pai colocou uma grande faca de caça em
minhas mãos pequenas; com a dele, segurou meus dedos
para que a mantivesse na posição enquanto dirigia a lâmina
para a base do longo e suave pescoço do cervo.
- Vamos lá, filho, você tem de agir rápido. Se não sangrá-lo
nos primeiros minutos, estragará toda a carne.
Bem que tentei afastar a faca dali com toda força, mas meu
pai apertou meus dedos com tanta intensidade que estava
prestes a esmagá-los. Então, enfiou a faca naquela carne
inocente e o líquido vermelho brilhante começou a
borbulhar e escorrer...

Meu estômago embrulhou na mesma hora e quase vomitei
na loja de esportes. Tomado por náuseas, senti o rosto
empalidecer. Corri para a porta e a abri, saindo em busca de
ar.
- Só porque ele viu Bambi e seu irmãozinho - ouvi o
responsável pela loja comentar, rindo, enquanto a porta
fechava atrás de mim com uma batida seca.
Uma vez lá fora, tropecei na calçada e raspei o joelho
direito, exatamente no ponto em que meu jeans estava
rasgado. Decidi permanecer sentado no meio-fio até que
conseguisse retomar a respiração. Aquele retorno a Yreka
estava me fazendo trazer à tona recordações tão profundas
que eu nem sequer imaginara que ainda tivesse. Eu estava
ficando perturbado diante da perspectiva de voltar ao parque
porque não tinha certeza de que poderia aguentar o que viria
em seguida. Até pensei em pegar o carro e voltar para
Ashland, sem ir mais longe com aquele intento, mas sabia
que, se não o fizesse naquele momento, nunca mais
conseguiria. E, se fosse justificado meu pressentimento de
que aquele portal só estaria acessível naquele dia, eu ficaria
eternamente arrependido de não procurar saber para que
serviria.
Depois de uns dez minutos - tão logo me senti recuperado
da experiência vivida na loja esportiva para poder seguir
adiante -, levantei-me e iniciei a caminhada para o parque,
no topo da colina. Estava a apenas dois quarteirões de
distância quando meu estômago revirou assim que vi o
granito escuro que revestia a porta de entrada do parque.
Passara muitas horas com Cheryl ali, mas mesmo naquele
tempo eu jamais prestara atenção aos dizeres gravados à mão
naquela imponente passagem abobadada. Sob o nome do
parque havia a palavra SISKIYOU escrita em letras grandes e
fantasmagóricas, as quais pareciam dançar. O nome do
condado em que Yreka se localizava parecia uma escolha
estranha para constar ali, porém mais inquietantes eram as
letras em si, que pareciam refletir cada um dos meus
movimentos.
O parque era dividido em três seções. A mais próxima do
arco de entrada era um caminho com algumas árvores
imensas e imponentes, sob as quais havia bancos onde os
visitantes podiam se sentar para aproveitar a larga sombra.
No lado oposto ficava um campo de beisebol, do tamanho
perfeito para jogos de ligas menores, e à esquerda, o
playground com o balanço que vi em meus sonhos.
Fui lançado até os balanços com uma força incontrolável.
Em poucos segundos, estava parado perto do balanço que
ficava próximo ao portal de meu sonho. Entretanto, o
conjunto de balanços já estava sendo usado por duas jovens
de cabelos ruivos, que eram empurradas por um homem de
meia-idade, com a mesma cor de cabelo, porém cortado
bem curto. Ele usava uma camisa abotoada, de listras verdes
e vermelhas. Os vestidos das garotas eram de verão,
estampados com flores amarelas; a mais jovem tinha
curativos nos joelhos.
Tenho de admitir que o pai ali presente ficou nervoso,
certamente considerando que não havia na cidade muitos
homens adultos dispostos a ficar perambulando por aquele
lugar. Resolvi sentar no outro conjunto de balanços que
ficava próximo àquele em que as meninas estavam
brincando, mas percebi que tinham sido feitos para crianças
com menos da metade de meu tamanho. Mal consegui me
acomodar no pequeno assento e meus joelhos quase
raspavam a areia enquanto as correntes de sustentação
guinchavam sob a pressão do meu peso. Tão logo comecei a
me balançar, o pai, inquieto, começou a sussurrar algo para
as filhas, dizendo que estava na hora de ir embora, enquanto
me fitava com os olhos verdes, em sinal de explícita
desaprovação. Como minha intenção não era provocar
desconforto a ninguém, saí de onde estava e fiquei andando
entre os bancos que havia por ali enquanto esperava que a
família se fosse.
Entediado, aproximei-me de novo do pequeno grupo e ten-
tei acalmar o pessoal.
- Lindo dia - disse ao pai.
- Hum-hum. - Ele mal podia acreditar na minha iniciativa.

- Estou esperando por minha sobrinha - falei, na esperança
de que a mentirinha fosse ajudar. - Ela gosta muito de se
balançar.
- Ah... entendo. - O homem sorriu, e posso dizer que estava
bem mais relaxado que antes, desde o momento em que me
vira chegar. - Estamos prestes a ir embora. É o melhor
conjunto de balanços do parque, então posso entender por
que você está aguardando.
- Sim, é o único de que ela gosta. Ela me fez vir aqui para
reservá-lo. - Ri ao perceber que a mentirinha ia ficando mais
complicada a cada sílaba.
- Nós já deveríamos ter saído. Vamos, meninas, temos de ir
embora agora mesmo! - Os três acenaram em despedida
quando deixaram o parque e caminharam pela rua Miner na
direção das casas na colina.
Tão logo a família se foi, sentei-me no mesmo instante no
balanço de meu sonho. Parecia-se muito com o anterior -
pequeno e barulhento, nada satisfatório para alguém do meu
tamanho. Mas o mais significativo foi que, definitivamente,
não havia nenhum portal. Como o restante de Yreka, o
parque parecia totalmente desprovido de qualquer energia
espiritual.
Confuso e frustrado, comecei a andar pelo perímetro do
parque para ver se podia encontrar o portal que aparecia em
meu sonho. Tratei de refazer meus passos e coloquei as
palmas das mãos em cada árvore da área de balanços para ver
se podia sentir algo. Havia outro conjunto de balanços,
perpendicular ao que eu via em meus sonhos, e, em meu
desespero, fui até lá e comecei a me balançar. Aqueles, sim,
eram apropriados para "gente grande", com assentos feitos
de amplos retângulos de borracha e correntes de aço
suspensas em barras situadas cerca de dois metros e meio
acima do solo.
Os balanços maiores eram muito mais ajustados ao meu
tamanho, e, embora eu não estivesse sentindo nada
sobrenatural, realmente me diverti balançando por alguns
minutos. Até considerei a possibilidade de me jogar, quando
o brinquedo estivesse no ponto mais alto, para ver quão
distante eu poderia voar antes de me estatelar no chão. Mas
sabiamente resolvi esperar até que parasse, antes de sair.
Desanimado, sentei na grama e fiquei observando os
balanços, imaginando se teria interpretado mal meu sonho.
Talvez minha procura estivesse encerrada e eu já houvesse
me reconciliado com minha infância. Ou talvez devesse
escolher outro dia. De duas, uma: ou me adiantara demais ou
perdera a oportunidade.
Exatamente quando eu estava prestes a desistir, percebi que
havia um balanço enrolado ao poste de sustentação, fora de
uso. Liberei-o com cuidado. Fiquei perplexo ao perceber que
ele não tinha sombra. Olhei para os demais e todos eles
tinham, exceto aquele que estava diante de mim. Eu sabia
que isso era fisicamente impossível, então tentei me
convencer de que talvez se tratasse de uma ilusão de ótica e
me esforcei para ignorar o detalhe.
Com cautela, acomodei-me nele e dei o impulso com
minhas pernas. Quase na mesma hora senti dor intensa na
barriga. Movimentei as pernas, para a frente e para trás, e a
cada impulso a dor se tornava mais intensa. Comecei a suar
profusamente e em poucos segundos saltei do balanço e bati,
como todo o peso, no solo duro. O impacto fez com que
meu pulmão parasse de respirar, e, quando olhei para trás, na
direção do balanço, fiquei chocado ao ver que estava imóvel,
como se jamais tivesse estado ali.
Apavorado, levantei-me e tentei correr para o lado oposto
do parque, mas minhas pernas não se moviam. Quanto mais
eu tentava, mais meus músculos congelavam, e caí de costas
em câmara lenta, até sentir o impacto do chão com tal
violência que minha respiração parecia que não voltaria tão
cedo.
Assim, estatelado diante do céu, eu podia ver as nuvens
transformando-se. Passaram de um branco inofensivo para
um cinza-escuro ameaçador, quando começaram a girar em
redemoinho. A princípio, circulavam devagar, depois mais e
mais rápido, até que se formou um funil que vinha em
direção ao parque. Eu ainda não podia respirar nem mover o
corpo, de modo que meu medo virou verdadeiro pânico
conforme o tornado fazia o caminho descendente. Em
segundos o céu inteiro escureceu e senti o furacão conectar-
se ao meu abdome.
A dor era dilacerante - senti como se um funil estivesse
sugando meus órgãos para fora do corpo, carregando-os para
o céu. Tentei gritar com todas as minhas forças, mas só o
silêncio saía de minha boca enquanto, sufocado, eu lutava
para respirar sob violenta dor. Naquele exato momento, o
parque foi tomado pelo som mais petrificante que eu já
ouvira. Era o barulho de toda a raiva que fluíra de cada
bramido já lançado, o som do medo que impregnara cada
grito desde o começo dos tempos e o choro de cada bebê
nascido no mundo. O som era totalmente ensurdecedor, e,
quando a luz quase se apagou, minha sensação era de que eu
começava a flutuar sobre o solo.
Mergulhado na escuridão, eu mal podia perceber as bocas
grotescas responsáveis por todos aqueles gritos. Suas faces
retorcidas giravam com o ciclone e começaram a me
atravessar, uma após a outra, entrando em meu abdome. A
cada alma que me invadia, a dor ficava mais insuportável, até
que fechei os olhos e cerrei os dentes tão forte quanto podia.
Segundos depois, o barulho ensurdecedor foi substituído
pelo som do choro de um único bebê, e, quando abri os
olhos, pude ver que estava deitado de cabeça para baixo em
um berço e que o bebê gritava para mim. As veias das
têmporas dele estavam quase saltando da cabeça, e posso
dizer que eu estava apavorando a criança com minha
simples presença. À direita do berço, vi a tela de uma
televisão que estava mostrando apenas imagens estáticas em
branco e preto. No mesmo instante, reconheci que o bebê
era eu mesmo.
Quando eu tinha apenas alguns meses, meus pais
costumavam deixar a televisão ligada no meu quarto e,
quando as estações saíam do ar, a tela ficava com aquela
imagem. Naquele momento, quase todas as noites, uma
grande figura negra ficava suspensa no ar, em cima do berço,
e fazia gestos para que eu me juntasse a ela. Instintivamente
eu sabia que, fosse quem fosse, não tinha as melhores
intenções. Então, eu fechava os olhos e soltava um longo e
inaudível grito, até que ela ia embora. Sempre desejei que
alguém pudesse ouvir meus gritos de socorro, mas todas as
vezes que aquela criatura aparecia minhas cordas vocais
ficavam paralisadas e eu era obrigado a enfrentá-la sozinho.
Ao relembrar, estou convencido de que aquilo vinha de
minha própria alma. Não sei como conseguia me proteger
sendo tão pequeno, mas felizmente aquilo deixou de
aparecer na época em que comecei a falar.
Agora, porém, voltara e novamente vinha à minha procura,
dessa vez muito menos contida que antes.
Àquela altura, meu abdome já estava lotado com,
literalmente, centenas de almas, todas ligadas à mesma
entidade escura com a qual deparei na infância, e elas me
conectaram, fibra por fibra, a um cordão grotesco que
desaparecia na distância, mergulhando na escuridão.
Lutei para recuperar minha força e, quando já estava quase
resignado a me render, uma cena familiar se revelou. Estava
de novo de volta ao acidente com Cheryl, mas dessa vez o
motorista embriagado saiu do carro e começou a se
aproximar de mim às gargalhadas. Ele continuou a fazer
aquele apavorante ruído enquanto passava por Cheryl, por
minha mãe, pelo policial, até vir direto em minha direção.
Nas centenas de vezes em que sonhei com aquilo antes, eu
sempre tinha sido um observador. Mas isso não era um
sonho, e o bêbado definitivamente me viu ali. Jamais vira
seu rosto, mas, quando ele chegou perto, eu o reconheci - e
meu sangue congelou nas veias. Perdi completamente a
consciência quando vi sua face. Era eu.

CAPÍTULO 9

Não me lembro de ter dirigido de volta a Ashland, mas devo
ter feito isso, porque a próxima coisa de que me recordo foi
de ter acordado no chão de meu apartamento, ainda
totalmente vestido e calçado - havia evidências de que eu
tentara fazer uma cama ali mesmo, na sala de visitas, com
almofadas e mantas. Não tinha a menor idéia de por que não
fora para o quarto, porém, provavelmente, eu estava
alterado, porque havia duas luminárias caídas e a mesa de
café tinha sido empurrada contra a parede.
Minha barriga ainda estava muito dolorida. Sentia-me
completamente esgotado e com uma terrível dor de cabeça.
Aos poucos, comecei a me lembrar de tudo o que
acontecera em Yreka e, à medida que as memórias
apavorantes retornavam, soube que precisaria de ajuda
consistente. Considerei a possibilidade de ir ao hospital, mas
não sabia muito bem como explicar aos médicos o que se
passara. De fato, não tinha certeza sequer de como explicar a
mim mesmo o que houve. Por fim, concluí que a melhor
alternativa seria falar com Robert e acalentei a esperança de
encontrá-lo na cooperativa, pois não teria energia suficiente
para procurá-lo em sua cabana.
Quando saí, vi o carro de Martika estacionado na calçada,
em diagonal, com a traseira na rua. Sob o pára-choques, duas
latas de lixo tombadas com o conteúdo espalhado pelo chão.
Sabia que teria de tirar o carro dali e recolher o lixo, porém
mal tinha forças para caminhar. A cabeça flutuando não me
dava condições de dirigir. Então, aos tropeços, fui à
cooperativa e, tão logo me aproximei, Robert correu em
minha direção.
- O que aconteceu com você? - ele perguntou com genuína
preocupação, de um jeito que eu jamais ouvira dele antes.
- O balanço... - falei com voz trêmula. - Meu estômago dói.
- Aposto que está doendo mesmo. Você tem uma enorme
nuvem negra ao redor do tronco. Temos de ir ao seu
apartamento agora! Você está precisando de tratamento
sério.
Ele colocou o cachorrinho Don sobre os ombros, como um
saco de arroz, e, com a mão apoiando minhas costas, ajudou-
me a subir a ladeira. Quando nos aproximamos do
apartamento, ele viu o carro de Martika e balançou a cabeça
compassivamente.
- Eu tinha de ter-lhe dado alguma proteção - disse enquanto
abria a porta. - Não pensei que estariam atrás de você tão
rápido.
- Quem está atrás de mim?
- Falaremos disso mais tarde. Por que não pega um
travesseiro e alguns cobertores e me encontra no quintal?
Será mais fácil em meio à natureza.
Peguei o que Robert pediu e encontrei-o lá fora, puxando a
mesa de piquenique de cedro para baixo do grande
madronheiro.
Ele ajeitou os cobertores sobre a mesa e disse:
- Deite-se de rosto para cima e feche os olhos. Temos de
começar a trabalhar.
Robert colocou uma das mãos sobre meu abdome e outra
em minha fronte. Começou a respirar profundamente.
Moveu as mãos para diferentes partes de meu corpo, sempre
inalando e exalando pela boca com ruído. Então, passou a
murmurar algumas palavras entre os dentes, com voz quase
inaudível.
- Hum-hum. Sim, eu sei. Sim. Hum, vejo. Você ficará bem.
Pode abrir-se, sem permanecer vulnerável. Hum. Ok. Lá.
Entendo.
Colocou o polegar e o indicador em ambos os lados de meu
braço e apertou com firmeza em direção à minha mão,
puxando abruptamente meus dedos, como se estivesse
extraindo alcatrão de cada um deles.
Abri os olhos e vi sete libélulas voando em triângulos sobre
minha cabeça - quase podia tocá-las com o nariz enquanto
elas pareciam investigar o espaço imediatamente acima de
mim. Havia também uma libélula brilhante, sozinha,
posicionada alguns centímetros acima do triângulo - parecia
supervisionar o cortejo.
- Espíritos de fadas - falei, debilmente.
- Sim, você tem sorte. Elas estão ajudando muito hoje.
Tão logo Robert terminou o que fazia com os dez dedos,
movimentou-se em direção às minhas pernas e repetiu tudo
com meus dedos dos pés. Quando fez isso, uma sensação
quente fluiu através de meus membros e pude sentir a cor
voltar ao rosto. Assim que acabou, a dor no estômago
começou a vibrar com mais intensidade.
- Meu estômago - eu disse.
- Quieto! Eu sei. Vou trabalhar nele em seguida.
Aos poucos, ele moveu as mãos da parte superior de meu
tronco até o baixo abdome. Passou a respirar ainda mais
devagar e, ao expirar, começou a tossir de maneira
incontrolável, mas, ainda assim, manteve as mãos onde
estavam. Após a terceira respiração e tosse, senti um enorme
fluxo de energia invadir meu torso inteiro, a começar pela
barriga, seguindo até o coração, e daí para a espinha. Senti-
me íntegro outra vez, como se tivesse despertado da morte.
Abri os olhos e vi lágrimas escorrendo pelo rosto de Robert.
- Lamento muito - ele disse, sem fazer nenhum esforço para
esconder o choro.
- O que aconteceu?
- Você foi picado...
- Picado por quem? - perguntei, mas ele continuou a falar
como se não tivesse ouvido a pergunta.
- ... e ataram um cordão ao seu abdome, de modo que você
estava sendo drenado. Estavam literalmente sugando sua
energia.
- Quem fez isso? - Eu estava começando a ficar nervoso. - E
por que o fez?
- Porque você estava ficando muito poderoso.
- Quem fez isso comigo? - Irritava-me muito que ele não se
dispusse a responder. - Robert, diga-me quem me fez isso!
- Há duas maneiras de pensar sobre esse tipo de coisa. A
visão mais popular é não admitir isso sob nenhuma
circunstância, e as pessoas mais espiritualizadas vão ainda
mais longe, negando que isso existe.
- O que existe? Robert, pare dar voltas e diga-me o que
aconteceu!
- Diabo - ele disse enquanto olhava para o chão. - Diabo -
repetiu após longa pausa. - Muitos curadores acreditam que,
se você admite a existência do Diabo, então lhe confere mais
poder. Mas, às vezes, não saber que ele existe é mais
perigoso que ignorá-lo. É um dilema que tive de enfrentar
durante muitos anos, e, embora muitos sábios digam que é
preciso impedir a todo custo a possibilidade de lhe dar
qualquer poder, no seu caso você precisa saber para que
possa se proteger.
Minha cabeça estava girando.
- O que o Diabo tem que ver comigo?
- Ele quer parar você e, infelizmente, não acho que será a
última tentativa dele.
- Parar de fazer o quê?
- De trazer mais luz ao mundo. Você está destinado a ser um
grande curador, e isso atraiu a atenção dele. Agora, por
exemplo, você não está de posse de todas as suas
ferramentas, portanto está muito vulnerável. Se ele pudesse
pará-lo agora, então você nunca mais iria ameaçá-lo.
- Mas por que isso aconteceu em Yreka, no parque?
- Yreka tem muitos portais de energia negativa, pois fica
entre os montes Ashland e Shasta, que são poderosos
vórtices de energia positiva. Shasta é um dos mais poderosos
da América do Norte.
- Mas por que existe tanta energia negativa entre dois lugares
tão positivos?
- Porque a escuridão segue a luz. É como uma mariposa em
relação à luz: não pode se aproximar demais senão perecerá,
mas não pode impedir de se sentir atraída. Todos os líderes
espirituais mantêm uma luta constante com as forças
negativas, e, quando alguém está em transição para se
transformar em uma alma iluminada, é quando se torna mais
vulnerável.
- Por que você não me alertou?
- Não pensei... - Suas palavras arrastavam-se. - Sim, eu
deveria tê-lo avisado e peço-lhe desculpas.
- Mas por que isso aconteceu? Por que era tão importante
para mim ir a Yreka?
- Você foi conduzido até lá porque sua alma está começando
a se comunicar em múltiplos níveis e você está se abrindo,
rapidamente, para outras dimensões.
- O que isso significa? - Eu estava mais confuso que nunca.
- Significa que você está se abrindo para o mundo espiritual.
E você pode ver, ouvir e, nesse caso, sentir energia em um
nível de alma, além da realidade física. A maioria dos
sentidos das pessoas tem sido treinada para o que acontece
no mundo físico, mas você está superando depressa essas
limitações arbitrárias.
- Então isso quer dizer que fui a Yreka porque fui capaz de
ouvir o chamado do mundo espiritual?
- Sim, mas isso é só uma parte. Agora você precisa aprender
a se proteger, até que possa distinguir entre energia de luz e
energia negra.
- E como vou fazer isso?
- Você precisará encontrar um mestre que possa treiná-lo
sobre essas coisas, mas nesse meio-tempo precisará ter
cuidado e abster-se de atender ao chamado desse mundo
espiritual enquanto permanecer vulnerável.
- Você não pode me ensinar?
- Não - ele sorriu. - Estou no mundo físico no momento. E
você precisa encontrar um mestre em que possa confiar,
mas que ainda esteja no mundo espiritual.
- E como vou saber em quem posso confiar?
- Ouça seu coração e você saberá. Se não tiver certeza, então
provavelmente a resposta será não. Podemos falar sobre isso
mais tarde, mas agora vou até a loja buscar alguns elementos
para terminar a cura de hoje. Voltarei logo!
Depois que ele saiu, entrei no apartamento. Abri a geladeira
para pegar um copo-d'água e encontrei as chaves do carro
repousando dentro da manteigueira. Balançando a cabeça,
dei um longo suspiro e decidi tirar o carro de onde estava
para estacioná-lo em um lugar mais respeitável. Em seguida,
recolheria o lixo, para recolocá-lo nas latas amassadas.
Enquanto cuidava do lixo, refleti sobre o que Robert dissera.
Não queria voltar a Yreka, com certeza. E, definitivamente,
também não desejava me arriscar, expondo-me a uma
situação como aquela, mas senti que havia algo no mundo
espiritual que fazia parte de meu destino. Embora soubesse
que tinha de me recuperar do ocorrido em Yreka, percebi
que, fosse o que fosse, havia me transformado de maneira
permanente. Não havia como retroceder.
Cerca de vinte minutos depois, Robert entrou em meu
apartamento carregando um pequeno saco de papel.
- Vou lhe preparar um banho terapêutico - ele disse. Eu o
segui, quando entrou no meu banheiro e abriu a torneira. -
Cortei um largo cordão de energia que estava atado a você e
o que restou naquele lugar do abdome foi um grande buraco.
Este banho de sal marinho e vinagre de cidra vai ajudar na
cura.
O apartamento inteiro ficou repleto daquele cheiro acre de
vinagre. Após alguns minutos, Robert fechou a torneira e
fez um sinal para que eu entrasse na banheira.
- Quero que você fique aqui de molho por uns vinte
minutos e depois vá para a cama. Fique de repouso. Virei ver
como está amanhã, mas acho que ficará bem.
Ele foi embora e mergulhei naquele banho. Permaneci o
tempo que ele prescreveu e comecei a me sentir muito
melhor - exaurido, mas bem. Eu estava realmente irritado
com Robert porque ele não me alertara sobre o que poderia
estar atrás de mim, mas também me senti abençoado por ter
alguém me guiando ao longo dessas experiências.
Não tinha certeza do que estava reservado para mim, mas
sentia que estava prestes a viver algo muito significativo. Era
como se minha vida estivesse ficando maior que eu e eu
estivesse prestes a assumir responsabilidades que teriam
grandes consequências. Entretanto, eu estava preocupado: se
um simples balanço fizera aquilo comigo, como eu teria
força para estar a serviço de mais alguém? Tentei me apegar
à verdade de que o universo não me ofereceria nada que eu
não pudesse suportar e resolvi permanecer agarrado ao
mundo físico, com os pés na terra, durante o que parecia
estar se transformando em uma jornada inesquecível.

CAPÍTULO 10

Na manhã seguinte, o telefone me acordou, e quem estava
do outro lado da linha era Martika.
- Alô, Scott. Como você está se sentindo?
- Muito melhor, obrigado. Robert lhe contou o que
aconteceu em Yreka?
- Sim. Lamento que tenha tido de passar por isso. Mas foi
uma espécie de, como se costuma dizer, rito de passagem.
- Sim, também acho.
- Significa apenas que você está no caminho certo.
- É o que Robert diz.
- Ele é um grande mestre. Eu o conheço há muitas vidas.
- Você acredita no mal? - Ainda estava digerindo o que
acontecera em Yreka.
- Ah, nada sei a respeito. Sei que Robert tem opiniões muito
definidas sobre essas coisas, mas minha experiência tem me
mostrado que a energia negativa pode ser revertida com
cura.
- Então ser mau é apenas uma doença?
- Acho que você pode pôr as coisas nesses termos - ela riu. -
Não estou dizendo que não há energia escura, mas tenho
visto algumas almas horrorosas curar-se, tornando-se
inofensivas, quando lidaram com suas questões
fundamentais.
Eu não havia contado a Robert sobre que rosto vira no
motorista bêbado, mas sentia que precisava compartilhar o
que acontecera. Contei a Martika tudo que pude lembrar e
lhe perguntei o que pensava a respeito.
- Quando você viu sua face no motorista bêbado, o que
sentiu? - ela me perguntou após longo silêncio.
- Não sei. Desfaleci.
- O que você sente agora?
- Raiva. Não sei bem. Culpa?
- A culpa é um passo na direção certa. Significa que você
está começando a se identificar com ele de alguma maneira.
Muitas pessoas tentam enfrentar a própria sombra, mas a
maior meta é confrontar-se com a sombra da humanidade. E
aí que acontece a grande cura.
- O que você quer dizer com "sombra"? - Achei que talvez
devesse saber o significado do que Martika estava dizendo,
mas ela me fez sentir à vontade para perguntas que Robert
consideraria entediantes.
- Todos têm interiormente um lado claro e um lado escuro.
Não podemos ser integrados e equilibrados por completo se
não aceitarmos que ambos são aspectos importantes do ser
humano. As pessoas ignoram ou tentam esconder o lado
escuro de si mesmas, outras tornam-se deprimidas ou, em
alguns casos, pioram muito. Quando a escuridão por fim
sobe à superfície, porque não pode mais ser controlada,
algumas coisas muito extremas podem acontecer.
- Como quando uma pessoa grita com você sem nenhuma
razão?
- Sim. Tanto isso quanto, infelizmente, algo muito, muito
pior.
Pensei em temas do noticiário vespertino e fiquei
imaginando quantas tragédias poderiam ter sido evitadas se
as pessoas não ficassem tentando subverter as próprias
sombras.
- E a dádiva que foi concedida - Martika prosseguiu - é a
consciência de que a humanidade tem um lado de luz
coletiva e outro de sombra coletiva, do qual todos fazemos
parte. Estamos todos conectados, e você teve um exemplo
literal disso. Sim, seu amor por Cheryl era uma dádiva. Mas
você também é o motorista bêbado que a matou. Eu também
sou. Nós todos somos amor e ódio. Nós somos um, com
todas as nossas cores.
- Isso é um pouco difícil de aceitar. - Eu estava tentando ser
o mais diplomático possível enquanto tratava de distinguir
entre minhas sensações de raiva e de confusão mental. Não
podia sequer imaginar assumir a responsabilidade de ser o
motorista embriagado que me separou de Cheryl, levando-a
para longe.
- Sim, é difícil aceitar, Scott. Lamento que você tenha tido
de aprender isso com uma lição tão dolorosa. De verdade,
meu coração pulsa por você.
- Então você está dizendo que todo mundo é
intrinsecamente bom? - perguntei com uma indignação
difícil de esconder. - Acho que isso vai contra a visão de
Robert.
- É verdade - ela riu nós não concordamos em tudo. E
Robert tem mais experiência que eu nesse tipo de coisas,
portanto siga as recomendações dele e tenha cuidado. Mas
lembre-se também de olhar para o lado bom de cada pessoa,
não importa quão difícil seja encontrá-lo. Porque, quando
você ajuda alguém a se curar, ajuda todos a se curarem.
- Estamos todos conectados.
- Sim, estamos. - Ela fez uma pausa. - Lamento mudar de
assunto, mas um amigo meu precisa usar o carro amanhã.
- Ah, sinto muito. Vou trazê-lo agora mesmo.
- Não preciso dele senão à noite. E, se estiver disposto, estou
fazendo uma pequena reunião... Pode trazer o carro à noite
e conhecer algumas pessoas.
- Isso parece fantástico. Vou, sim.
Martika me deu os detalhes e comecei a me preparar para
regressar ao mundo pela primeira vez, desde minha visão de
Yreka.

Cheguei dez minutos adiantado à bela casa de campo de
Martika, após colocar um pouco de gasolina no carro dela, e
fiquei surpreso ao notar que a festa já estava bastante
animada. Ela atendeu à campainha usando um vestido de
seda azul e branco pintado à mão e uma enorme flor,
também branca, nos cabelos.
- Você parece bem - Martika disse enquanto me dava um
grande abraço. - Está completamente recuperado?
- Acho que sim. Obrigado por perguntar. - Martika sempre
parecia ter a coisa certa a dizer.
O interior da casa estava decorado com uma mistura
incomum de elementos contemporâneos e típicos de
fazendas. O assoalho parecia ser original, de tábuas de
madeira, com o charme e a história de muitos anos de vida.
E esse tipo de acabamento era acentuado com peças de arte
atuais de inspiração oriental enfeitando as paredes. Na
entrada, um imponente Buda de cor creme saudava os
convidados. Havia algo misterioso sobre uma imensa
colagem, e, quando me aproximei para olhar melhor, fiquei
chocado com o que vi.
- Isso é feito de cigarros?
- Sim - disse Martika. - Um artista local desenrola cigarros
usados, que coleta em bares da cidade, e usa para fazer as
mais extraordinárias colagens.
- Você fuma? - Eu estava achando muito difícil encarar a
disparidade entre a imagem de Martika e uma parede repleta
de cigarros. Quando olhei de perto, retrocedi, enojado ao
notar que a boca vermelho-carmim do Buda era feita de
papéis manchados de batom.
- Ah, por Deus do céu, não! Mas essa peça me provocou
tamanha repulsa que eu simplesmente tinha de tê-la. E
prometi a mim mesma que a colocaria em um lugar de
destaque até que fosse capaz de aceitá-la completa e
integralmente. Acho que sou uma espécie de viciada em
cura. Sou imediatamente atraída por algo que faz com que
eu me sinta desconfortável, porque sei que, no fundo, ali
existe algo que preciso trabalhar.
Martika fez um gesto para que a seguisse e, enquanto
andávamos pelo hall de entrada até o interior da linda casa,
ela acrescentou uma última coisa sobre o assunto:
- Meu pai fumava.
Quando entramos na cozinha, havia algumas pessoas que
reconheci do grupo de constelação e outras que não me
pareceram familiares. Eram de todas as idades, mas outra vez
mulheres, na maioria. A impressão que dava era que aquela
grande cozinha de estilo interiorano era o coração da festa.
Muitos convidados estavam reunidos perto de panelas de
cores vivas, azuis e vermelhas, que ferviam no fogão bem
grande, de aço, semelhante aos usados nos restaurantes.
- Aqui há um grupo de pessoas muito interessantes para
você conhecer - disse Martika. - Posso lhe oferecer água ou
chá?
- Chá seria ótimo.
- Espero que goste de rooibos - ela disse enquanto me
oferecia uma xícara de um líquido vermelho.
- Este sabor é incrível! - Gostei daquele sabor com toques
ácidos e amendoados, que não se parecia com nenhum
outro chá que eu experimentara antes. - Onde você o
encontra?
- É originário da África, mas você pode comprá-lo na
cooperativa, com certeza.
- Com certeza - sorri.
- Scott, quero que conheça Lisa. Ela estava no mesmo grupo
de constelação do qual você participou e acho que ambos
têm muito em comum. - Martika apresentou-me a uma
pequena e alegre morena, com cabelos ondulados e batom
vermelho brilhante. Após assegurar-se de que estávamos
familiarizados de forma adequada, Martika levou o bule de
chá a outro aposento e nos deixou conversando na cozinha.
- Nossa! Sua constelação foi muito intensa - Lisa comentou,
falando muito mais depressa do que eu estava acostumado a
ouvir. - Sei que não deveríamos falar sobre isso, mas nunca
tinha visto nada semelhante antes.
- Você já viu muitos desses grupos? - disse, lembrando que
ela estava sentada perto do "bigode" na constelação.
- Estou num programa intensivo, que dura um ano, então
participo de um fim de semana de três dias, todos os meses,
e também de alguns outros encontros, como aquele do qual
você participou.
- É demais. Não sei se eu poderia lidar com um
compromisso mensal desses, tendo de reservar três dias
seguidos.
- Você se acostuma, mas penso que sua sessão foi um pouco
mais intensa que a da maioria.
Isso me fez sentir um pouco melhor. Não podia imaginar
que houvesse algo mais intenso que aquilo!
- Fiquei chocada quando Hans disse que você deveria estar
morto - Lisa continuou. - Foi como se tivesse levado um
soco diante da afirmação dele.
- Um soco?
- Você sabe... Fiquei toda arrepiada, com calafrios, ou seja lá
como queira chamar a sensação. É como quando a gente diz
que ficou com os pelos da nuca em pé.
- Nossa!
- Sabe por que esses golpes acontecem?
- Não, de jeito nenhum.
- Ocorrem quando a ligação com seu espírito é mais forte
que aquela com seu corpo. É porque eu sabia que o que
Hans disse era verdade. Como se sentiu quando ele disse que
você deveria estar morto?
- A princípio, fiquei irritado, mas depois me senti aliviado. -
Fiquei surpreso comigo mesmo por estar me abrindo
daquela maneira com alguém que mal conhecia, mas estar
na casa de Martika fazia com que me sentisse seguro. - Estou
aliviado porque agora sei que não estava imaginando coisas.
Sempre achei que deveria ter morrido, mas isso não fazia
nenhum sentido, até que ele explicou.
- Nossa, foi muito intenso!
Martika reapareceu, batendo em uma taça de vidro com o
cabo do garfo.
- Por favor, dirijam-se à sala. O jantar está pronto! Dirigimo-
nos àquele aposento, onde havia duas grandes mesas unidas
por uma das extremidades. Na extensa parede atrás delas,
havia uma grande colagem de papéis de cigarro
reproduzindo a Última Ceia, que provocava a sensação
inquietante de que vigiava tudo o que seria consumido ali.
Havia cerca de vinte lugares indicados, e cada pessoa
colocou-se diante de sua posição atrás das cadeiras.
Intuitivamente, todos nos demos as mãos. Eu não tinha o
costume de segurar a mão de pessoas desconhecidas, mas
havia uma inocência genuína naquele movimento, de modo
que pareceu tornar a ceia ainda mais encantadora.

Estava entre duas senhoras de cabelos grisalhos às quais não
tinha sido apresentado ainda. Uma delas usava um vestido de
veludo vermelho, e os cabelos ficavam à altura dos ombros;
os da outra, que também usava veludo, porém verde, eram
crespos e curtos. A primeira segurou minha mão esquerda
frouxamente, ambas as palmas se tocando - a dela estava
úmida. A outra agarrou meus dedos com força, com um
largo sorriso. Ela fez com que eu me sentisse desconfortável
com sua suposta intimidade, mas tentei ser simpático e
devolvi o sorriso, tentando ser o mais caloroso possível.
- Agradeço por terem vindo - disse Martika, levantando sua
taça. - Todos vocês são muito queridos e estou feliz por
reuni-los nesta noite especial. Como muitos não se
conheciam antes, por favor, reservem alguns segundos para
se apresentar uns aos outros antes de nossa refeição.
Cada um se apresentou e quase todos pareciam muito
semelhantes ao falar. "Sou tal ou qual pessoa e estou no ano
intensivo "xis", ou "Sou quem está à sua frente e vou fazer
minha primeira constelação na próxima semana".
Entretanto, apenas uma pessoa se destacou durante as
apresentação - uma jovem muito bem-vestida, com longos e
ondulados cabelos loiros, que, pela aparência, bem poderia
ser a irmã caçula de Martika. Usava uma blusa branca muito
simples e uma saia de algodão azul bem clarinho, ampla, que
chegava até o chão, como se fosse um bolo de três andares.
- Olá! Sou Madisyn, com y. S-Y-N, e não S-O-N - ela
soletrou delicadamente. - Acabei de mudar de Seattle para cá
e Martika me acolheu sob suas asas. Não sei se estou pronta
para o trabalho de constelação porque parece intenso demais
para mim.
Por fim, alguém que falava com honestidade! Gostaria de ter
sido informado antes sobre o que ia acontecer para que
tivesse a chance de sair correndo. Achava que, no final,
tinha sido uma coisa boa, embora não tivesse certeza de que
poderia fazer aquilo de novo.
Não ouvi as outras apresentações porque estava tentando,
com afinco, pensar na melhor maneira de me expressar
quando chegasse a hora; então, fiquei repassando
mentalmente todas as alternativas. Morria de medo de falar
em público e provavelmente não teria aceitado o convite
para jantar se soubesse antes que teria de fazer isso. Como
estava chegando minha vez, fiquei ainda mais nervoso e,
quando quem estava antes de mim terminou o que tinha a
dizer, pacientemente todos esperaram que eu começasse.
- Olá! Meu nome é Scott - falei, por fim, após longo silêncio.
- Hans me disse que eu deveria ter morrido.
Quase todas as pessoas presentes começaram a rir, e me
peguei sorrindo enquanto dava uma olhada geral para me
assegurar de que Hans não estava ali. Não fiquei chateado
porque sentia que todos usavam as risadas para me oferecer
apoio, mostrando que de fato se importavam comigo.
Eu não tinha certeza se todos que estavam ali haviam
entendido o que eu quisera dizer, mas enquanto olhava para
aquelas faces sorridentes reconheci muitos dos que haviam
constelado comigo, e eles pareciam lembrar o que
acontecera.
- E obrigado a você, Martika, por ter-me apoiado tanto desde
que me mudei para Ashland e por me incluir, esta noite,
entre seus familiares e amigos.
O jantar estava delicioso, e aquela foi a primeira vez que
consegui comer uma refeição completa desde meu retiro
espiritual. Estava comendo apenas pão e vegetais cozidos
após aquele decepcionante incidente com o sanduíche de
peito de peru e queijo, e essa ceia de macarrão artesanal
cabelo de anjo com tomates e manjericão era um verdadeiro
banquete. A comida recendia a amor e felicidade. Minha
alma sentiu-se nutrida e rejuvenescida. Foi uma das
refeições mais gratificantes que fiz na vida e podia sentir o
amor e a solidariedade de Martika em cada porção.
Quando a sobremesa de mirtilos frescos foi servida, todos
trocaram de lugar e tive a grande sorte de ficar diante de
Madisyn, com y. Com a vantagem da proximidade, pude
observar que os olhos dela eram de um azul luminoso e que
ela usava uma flor branca nos cabelos, tal como a de
Martika, porém muito menor.
- Sinto esta incrível refeição! - Madisyn disse ao sentar-se.
- Você disse sinto!
- Sim, aqui a energia é tão linda... e esta comida está repleta
de boas intenções.
- Concordo. Não sabia que alguém mais podia sentir a
energia dos alimentos. Descobri isso recentemente. Tentei
comer em um restaurante, mas não consegui, porque senti
como se estivesse comendo a raiva de alguém.
Ela fez um movimento afirmativo com a cabeça.
- Não entendo por que muitos restaurantes não fazem
culinária consciente. Essa é a principal razão que me impede
de comer fora. Não consigo mais fazer isso.

- Culinária consciente? Não sabia que isso existia. É algo
novo?
- Isso existe desde o início dos tempos. A questão é que
muitos restaurantes não se importam com a intenção. E por
isso que a comida feita em casa sempre tem melhor sabor. -
Ela tomou fôlego por um instante e acrescentou: - Se eu
tivesse um restaurante, obrigaria os empregados a voltar para
casa se chegassem ao trabalho de mau humor. Você não
pode ter um restaurante e permitir que os chefs coloquem
má energia na comida servida aos clientes. Acho que agora
tenho de abrir meu próprio restaurante! Será que terei de
fazer tudo sozinha? - Ela riu, e seus olhos azuis
resplandeceram.
Eu jamais conhecera alguém com tamanha capacidade de
manter força e compaixão em equilíbrio, sem esforço, como
ela. Em seu mundo, parecia que ambos faziam parte de um
mesmo elemento contínuo. E eu estava realmente
impressionado com a graça como ela os reunia.
- É uma bela pulseira artesanal. - Ela mudou de assunto de
repente, apontando para o bracelete que Robert me dera.
- Obrigado. Um amigo fez para mim.
- Conte-me como foi isso.
- É feito de cornalina e tem pedra da lua e prata por causa de
minha ligação com a lua. Ele me conforta.
- Ah, isso faz sentido - ela sorriu. - Acho que sinto alguma
energia lunar vinda de você. Tenho uma joalheria de caráter
espiritual. Esta é uma de minhas peças. - Ela fez um gesto
em direção ao colar que estava usando. Tinha três peças
ovais de prata com caracteres chineses e um pendente de
cristal transparente.
- É muito bonito!
- Sim. Gosto muito dele. E uma peça produzida para mim,
por um amigo de Martika. Tenho procurado novas criações
que possam ser usadas por homens. Talvez seu amigo se
interesse em trabalhar comigo.
- Isso seria muito bom. Falarei com ele a respeito. - Pensei
que conseguir algum ganho extra para Robert poderia fazer
com que precisasse ficar menos tempo ali na frente da
cooperativa suplicando por dinheiro e que, assim, ele teria
mais tempo para se dedicar ao seu trabalho de guru.
- Dê-me seu número de telefone e ligarei para você quando
puder agregar mais criações. Nesse meio-tempo, procure
saber se seu amigo está interessado.
- Farei isso. - Dei a ela meu número, esperando que ela não
demorasse muito para ligar. Quando lhe estendi o papel
onde escrevera, um amigo dela apareceu e sussurrou algo em
seu ouvido.
- É minha carona - disse Madisyn enquanto se levantava. -
Tenho de ir embora. Foi um prazer falar com você.
- Digo o mesmo!
- Adeus, Garoto Lunar! - Ela piscou o olho enquanto
caminhava até a porta.
- Adeus. - Quase fiquei ruborizado.
Depois que Madisyn saiu, percebi que ainda não estava
completamente recuperado do que acontecera em Yreka e
começava a me sentir cansado. Achei que estava na hora de
ir e encontrei Martika lá fora, na varanda, despedindo-se dos
outros convidados. Também apresentei meus cumprimentos
e desci os degraus pintados de branco para mergulhar na
noite, rumo ao meu apartamento. Ao chegar em casa,
imediatamente fui para a cama, repleto de gratidão por
participar da comunidade que me recebera de forma tão
completa. Fechei os olhos e caí no sono - o mais feliz que
tive em muitos anos.

CAPÍTULO 11

Depois que voltei de Yreka, meus padrões de sono jamais
voltaram ao normal. Durante muitos anos, tive pesadelos
sobre o acidente com Cheryl, mas a traumática experiência
em Yreka levara meus sonhos a um nível totalmente novo.
Reviver um medo da minha infância, que eu tentava afastar
de minha mente desde a época em que ainda nem sabia
andar, mexeu com meu núcleo mais profundo. E, à medida
que as semanas passavam, comecei a sentir pavor de cair no
sono, porque inevitáveis retrospectivas daquele dia em
Yreka por certo aconteceriam. Robert me garantiu que eu
estava a salvo, mas eu continuava a sentir que havia algo
atrás de mim e que parecia ficar mais próximo quando eu
dormia.
Passadas duas semanas de um violento distúrbio de sono,
comecei a ficar preocupado de fato, de modo que iniciei
uma pesquisa obsessiva sobre o que os sonhos significavam e
sobre como podiam ser controlados. A falta de descanso
estava afetando de forma decisiva os períodos em que me
mantinha acordado, e cada vez mais eu me tornava inseguro
em relação à linha que separava ambos - o sono e o período
acordado. Passei a consultar quase todas as prateleiras da
biblioteca e, por fim, fiquei bastante aliviado ao descobrir
um livro sobre sonhos lúcidos, que ensinava, em termos
bem práticos, as ferramentas necessárias para controlá-los.
Esperava que, se pudesse fazê-lo, seria capaz de colocar
minha mente em ordem para ter uma noite inteira de
descanso, sem interrupções.
Comecei a seguir literalmente as instruções do livro e, antes
de me recolher para dormir, manifestava a intenção de
encontrar os guias de meus sonhos tão logo ficasse
inconsciente. Eu os escolhi entre meus ancestrais da
constelação porque eles eram as únicas pessoas que eu sabia
que estavam mortas além de Cheryl. Esperava que
aceitassem meu convite, embora os tivesse conhecido de
passagem durante a constelação e não tivera oportunidade
de permanecer muito tempo ao lado deles quando ainda
estavam vivos.
A princípio, não fui muito bem-sucedido, e cada vez que
tentava influenciar meus sonhos acordava ou era sugado por
outra retrospectiva de Yreka. No final, o que funcionou foi
imaginar que estava em determinado lugar e começar a girar
rapidamente em torno dele, tão logo começava a dormir.
Assim que parava, podia continuar a dormir e permanecer
no controle. Após algumas noites de prática, eu já era capaz
de conduzir meus sonhos sem aquele processo inicial de
girar.
Quando, por fim, alcancei meu primeiro estado de sono
lúcido, quase tropecei em um senhor idoso que estava
sentado em uma cadeira de balanço de madeira deteriorada.
Estávamos na varanda de uma casa cinza, familiar, com uma
cerca branca separando-a de um imenso milharal, que
pensei reconhecer, mas não sabia onde ficava localizado.
Quase anoitecia, e o ar estava quente e úmido. O ruído
vibrante dos grilos preenchia o silêncio. Após alguns
momentos apreciando a cena, reconheci aquela como a
varanda de uma casa em Iowa, para onde uma de minhas
avós me levou quando, ainda criança, fui visitá-la. A
residência estava para ser demolida e ela quis me mostrar o
lugar em que havia crescido.
- Olá, Scott - disse o senhor idoso que ali estava,
movimentando a cadeira de balanço com seus grandes pés
descalços.
Fiquei olhando para ele, completamente inexpressivo.
- Sou seu bisavô.
- Lamento muito. Não o reconheci.
- Não tem problema. Você nunca me viu antes, nem quando
estávamos vivendo no mesmo plano.
Ele morrera em um acidente de caça, antes de meu
nascimento, o que provavelmente explicava por que minha
avó ficara tão brava quando soube que meu pai queria me
dar uma arma de presente em meu décimo terceiro
aniversário. Ninguém falava sobre meu bisavô ao longo do
meu crescimento, e a única vez que o encontrei foi ao
vivenciar a experiência da constelação, quando ele estava
representado por uma mulher.
- Você tem passado muito tempo por aqui - continuou meu
bisavô. - Não gosta de viver na Terra?
- Está tudo bem, eu acho. - Nunca havia pensado nisso
antes. - Imagino que vim parar aqui só para descobrir alguma
coisa.
- O que você está procurando?
- Não sei. Mas parece importante.
- É, sim. Você está começando a prestar atenção em sua
intuição, o que é bom. Vai perceber que é o único sentido
no qual pode confiar. Seus olhos e ouvidos podem ser
facilmente enganados, mas a intuição é sua bússola.
Naquele momento, a cerca branca que rodeava a casa se
transformou em uma brilhante e colorida parede de
alvenaria, pintada com retângulos alternados de cores
primárias. A grama virou areia bem diante de meus olhos e,
em poucos segundos, surgiram um escorregador e uma
gangorra de metal prateado. Na mesma hora, reconheci o
playground da pré-escola que frequentei durante minha
mais tenra infância. Quando olhei para trás, na direção de
meu bisavô, percebi que sua casa havia sido substituída pelo
edifício térreo e cinza da instituição de ensino.
- Onde estamos? - gritei para me sobrepor aos gritos que
começavam a ser ouvidos por toda aquela área própria para
brincadeiras.
- Estamos em sua terra dos sonhos.
- Minha terra dos sonhos? O que é isso?
- O que você quiser que seja. Você pode usá-la para
trabalhar seus problemas terrenos e encontrar as melhores
soluções antes de retornar. É também uma boa forma de
manter contato com o plano espiritual enquanto você
permanece na Terra.
Embora nada disso parecesse fazer sentido, eu podia sentir
em meu coração que o que ele estava dizendo era verdade.
- Então este é o plano espiritual?
- Não, é uma zona segura entre a consciência e o plano
espiritual. Muitas regras são as mesmas, podendo assim ser
aplicadas, mas ninguém pode entrar se você não convidar.
- Posso alcançar o plano espiritual a partir daqui?
- Sim, pode, mas você ainda não está pronto. Sugiro que
passe mais algum tempo aqui e que primeiro se familiarize
com sua terra dos sonhos. Depois, se continuar interessado
no tema, podemos falar a respeito mais tarde.
Passar algum tempo na minha terra dos sonhos foi muito
divertido. Eu podia evocar praticamente qualquer tempo e
lugar que quisesse e encontrar amigos e parentes do passado,
com qualquer idade que imaginasse que tivessem. Comecei
com minhas lembranças favoritas, revivendo-as uma a uma.
A primeira vez que aprendi a andar de bicicleta. Meu
primeiro cachorrinho. As férias em Yosemite. Revisitei
aqueles momentos em sequência, até que não podia lembrar
mais nada.
Então passei a recordar minhas piores lembranças e
transformá-las em boas. Fui até meu primeiro dia na escola
primária, quando fiz xixi nas calças durante o recreio.
Percebi que poderia desejar um curso diferente para os
acontecimentos e tentei arduamente fazê-lo. Então, tratei de
usar o banheiro antes de entrar na classe e, quando chegou a
hora do recreio, eu estava completamente seco e brinquei
na gangorra sem nenhum incidente. Percorri todas as
minhas piores memórias e as consertei. Podia reinventar o
passado e, mesmo sabendo que isso não alteraria o curso de
minha própria história, fiquei muito mais satisfeito comigo
mesmo. Era reconfortante saber que podia aprender com
meus erros.
Mas havia uma coisa que eu não podia compreender.
- Por que não posso reviver memórias com Cheryl? -
perguntei ao meu bisavô.
- Como já lhe disse, você é capaz de convidar pessoas e
lugares para virem ao seu mundo dos sonhos de acordo com
sua vontade. Mas as pessoas e os lugares têm de aceitar esse
convite antes de virem. Na realidade, as almas de pessoas
que você convoca participam de seus sonhos.
- Mas por que ela não quer vir? Até mesmo gente que eu
não via desde a pré-escola aceitou.
- Você aprisionou Cheryl em sua terra dos sonhos durante
muitos anos e ela estava impedida de progredir para onde
precisava ir. No momento, ela está um pouco receosa de
voltar aqui.
- Como eu poderia aprisioná-la aqui se ela precisava aceitar
meu convite para vir?
- Bem, de fato a princípio ela aceitou. Vocês tinham um
vínculo muito especial. Mas, assim que ela chegou, você a
manteve segura por laços energéticos.
- Verdade? E por que fiz isso?
- Há muitas razões que levam a nos prender à energia de
outras pessoas. No seu caso, era o medo de perder alguma
parte de si mesmo quando ela morreu.
As palavras dele ecoaram em mim com tanta força que
percebi que aquilo era verdade. Quanto mais compreendia,
mais me horrorizava pelo que fizera a Cheryl depois que ela
morreu.
- Não seja tão duro consigo mesmo - aconselhou meu
bisavô. - Essa é uma situação muito comum para muitas
pessoas que se amam.
- Ela está brava comigo?
- Duvido. Você apenas precisa dar a ela algum tempo até que
consiga estabilizar a própria vida após a morte e estou certo
de que ela virá visitá-lo, no futuro, tão logo esteja mais
equilibrada.
Percebi que um dos principais fatores que mantiveram vivo
meu interesse pela terra dos sonhos foi a procura por
Chervl. Quando descobri que ela não desejava ser
encontrada, comecei a me aborrecer com aquilo. Perguntei
ao meu bisavô novamente sobre a possibilidade de ele me
mostrar o plano espiritual, e, embora ele tivesse dito que eu
ainda não estava pronto, adiantou que eu estava me
aproximando disso. Até concordou em ajudar a me preparar.
- A primeira coisa que você tem de fazer é aprender a se
proteger energeticamente de outras almas - ele começou
explicando. - Aqui você não tem a barreira do corpo como
escudo para impedir que energias estranhas cheguem à sua
alma, então precisa saber como se manter íntegro.
- Manter-me íntegro? O que isso quer dizer?
- Que você precisa se cercar de luz branca protetora, porque
assim só a energia boa entrará. Você será capaz de sentir
tudo, mas não haverá nenhum risco sério como o que
aconteceu em Yreka.
- Você sabe o que houve lá?
- Claro. Eu estava com você naquele dia. Tenho caminhado
ao seu lado desde que nasceu. É que você só não prestou
atenção.
Fiquei imaginando por que levara tanto tempo para permitir
que meus ancestrais me ajudassem. Sempre achei que era
mais nobre cuidar de mim mesmo, mas comecei a entender
que se basear na força da família soava bastante natural.
- Você acredita no mal? - Eu ainda estava tentando assimilar
o que me parecia apenas uma idéia, mas a coisa foi se
tornando mais complicada à medida que eu passava a refletir
mais sobre ela. - Não tenho certeza se acredito que todos
somos bons e maus ou se creio apenas que o mal está fora de
mim. Penso que, se somos todos um só, então eu não
precisaria de proteção, certo?
- Não necessariamente. A verdade reside em algum ponto
entre os extremos. Sim, é verdade que todos formamos uma
unidade, mas isso também tem que ver com poder relativo.
Força relativa.
- O que você quer dizer com isso?
- Por exemplo: se uma força negativa estiver sendo
direcionada a partir de toda a energia negativa da
humanidade e você estiver contando apenas com sua
energia positiva, o resultado é que você será dominado,
sufocado.
- Como fui em Yreka?
- Exatamente. No final do processo você aprenderá a utilizar
a energia de outras almas que estiverem solidárias com você.
Todavia, não recomendo que tente fazer isso agora, mas
apenas quando estiver aberto e vulnerável a se alinhar com
outros. Você precisa acumular mais experiência para ser
capaz de discernir o que é útil do que não é.
- Então o que devo fazer?
- Por ora, limite-se a se proteger. Quando você ampliar seu
poder pessoal, naturalmente atrairá outros com interesses
semelhantes, mas depois do que lhe aconteceu em Yreka
você deverá ser muito cuidadoso porque já atraiu algum tipo
de atenção que absolutamente não deseja.
- Você pode me mostrar como devo fazer para me proteger?
- De fato eu não queria vivenciar outra experiência como a
de Yreka.
- É muito simples. Apenas se imagine envolvido em uma
bolha de luz branca e relaxe. Quanto mais fizer isso, mais a
luz branca se impregnará em sua alma e o protegerá.
- Mas de onde vem a luz branca?
- Vem de dentro. O branco é feito de todas as cores que
estão em seu interior. Liberando a energia de todas elas
simultaneamente, você faz uma limpeza e ao mesmo tempo
se protege contra energias indesejáveis enquanto as
tonalidades se misturam na cor branca.
Tudo aquilo me parecia muito abstrato e complicado, e
fiquei frustrado quando tentei lembrar como misturava as
cores nas aulas de arte da escola de verão.
- Não creio que eu esteja fazendo isso direito.
- Isso é porque você está pensando demais. Apenas sinta-se
protegido. Sinta-se em segurança. Não deixe sua mente
perturbá-lo. As cores cuidarão de si mesmas. Só relaxe e
sinta-se seguro. Estou bem aqui. Não vou decepcioná-lo.
Quando comecei a respirar tranquilamente e imaginei que
estava salvo e protegido, comecei a ter a sensação de que um
brilho quente emanava das profundezas de meu ser. No
início senti que estava satisfeito, e, quando abri os olhos,
parecia que eu estava sob um foco de luz muito brilhante.
Contudo, eu podia ver que a fonte da luminosidade vinha de
meu interior. Sua energia espalhava-se por cerca de sessenta
centímetros em todas as direções e me senti muito
confortável. Quanto mais eu relaxava, mais brilhante ficava a
luz, mas, quando comecei a pensar sobre o que estava
acontecendo, ela perdia a intensidade, ia diminuindo. E,
embora fosse muito incomum essa visão que eu tinha de
mim mesmo aceso como uma lâmpada, aquilo também me
parecia muito natural.
- Muito bem - disse meu bisavô. - Pratique isso com
regularidade e, assim que estiver acostumado à sua luz, eu o
levarei para o outro lado. A proteção é muito importante no
plano espiritual. Não queremos que algo de mal aconteça.
Passei os próximos dias dedicado à prática de me envolver
na luz protetora e, ao fazê-lo, fiquei menos temeroso de
pegar no sono à noite. Por fim, parecia que eu dispunha das
ferramentas para me manter a salvo e protegido caso algo
terrível acontecesse de novo, como ocorrera em Yreka.
Também mudei sobremaneira minha dieta. Tive de parar de
comer em restaurantes porque não podia mais ter certeza de
que os empregados estariam de bom humor quando
preparavam minha comida. E, como eu ia comer a energia
deles nas refeições, seu estado de espírito se tornaria o meu.
Nunca aprendera a cozinhar para mim, mas agora eu não
tinha outra alternativa porque estava muito sensível.
Com minha sensibilidade emocional, meu corpo também
estava muito mudado - eu não conseguia mais digerir com
facilidade refeições muito gordurosas. Simplifiquei
radicalmente meu menu, a ponto de me limitar ao arroz
integral e ao chá de rooibos. Era muito purificador e, embora
eu não tivesse muita energia quando comecei, após certo
tempo me sentia melhor que nunca. Sabia que não seria
muito saudável a longo prazo, mas aquelas eram as únicas
coisas que conseguia manter no estômago, com todas as
mudanças que estavam acontecendo. Eu percebia ainda que,
quanto mais peso começava a perder, mais fácil ficava
permanecer em minha terra dos sonhos. Os quilos extras
funcionavam como uma espécie de lastro, fazendo com que
eu pendesse para baixo, e, quanto mais eu emagrecia, mais
liberdade tinha para manter o estado de consciência ou sair
dele.
Quando chegou o dia de explorar o mundo espiritual, meu
bisavô me levou para uma parte de meu mundo dos sonhos
que eu nunca tinha visto antes. Andamos pelo playground
de minha pré-escola, ao longo da passagem sobre a rodovia
onde andava na adolescência e das trilhas montanhosas de
minha juventude. No lado oposto da serra, aproximamo-nos
do pico de um enorme precipício, que era alto em relação ao
vale a ponto de não me impedir de ter a visão da base. Tudo
que se via dali era um campo ininterrupto de nuvens que se
estendia por quilômetros, com pássaros voando para cima e
para baixo do véu de névoa como se fossem golfinhos
brincando de pegar onda. Eu achava que já havia explorado
meu mundo dos sonhos por completo, mas não me
lembrava desse precipício em particular. É como se ele
tivesse surgido do nada quando eu estava pronto para vê-lo e
fizesse sinais para mim com nuvens que quebravam como
ondas contra o rochedo. Enquanto eu permanecia extasiado
pela beleza espetacular que ali estava diante de mim, um
pequeno bando de corvos grandes circulava sobre minha
cabeça e formava uma sombra sinistra aos meus pés.
- Os corvos anunciam mudança - disse meu bisavô.
- Eles parecem estar me seguindo - falei, dando risada.
- É porque eles também são seu espírito animal. Você tem
muitas mudanças para vivenciar nesta vida e os corvos
ajudarão a mantê-lo na trilha. Eles agem como sinalizadores
para indicar que você está no caminho certo.
Meu bisavô pegou minha mão esquerda com a direita dele e
estendeu a outra para fora. Intuitivamente, imitei seu gesto
enquanto caminhávamos em direção ao pico mais alto.
- Você está pronto? - ele perguntou.
Balancei a cabeça afirmativamente e ambos saltamos daquele
precipício. No momento em que nossos pés deixaram o
solo, mergulhamos para o vale lá embaixo, e meu estômago
parecia querer sair pela boca. Senti uma pontada de pânico
enquanto passávamos velozmente pelas nuvens e podia ver
que a base do vale se aproximava muito depressa. Meu
bisavô apertou gentilmente minha mão e vi, por sua
expressão, que tudo estava indo bem. Fixei-me em seus
olhos sorridentes, profundos e sábios e senti que meus
ombros começavam a relaxar.
Uma tranquilidade tomou conta do restante de meu corpo, e
nossa queda livre fluiu graciosamente com um voo em
forma de arco, que começara lá em cima, nas nuvens.
Quando atravessamos a cobertura de nuvens, a neblina
branca foi substituída por um arco-íris como o dos cristais
quando atravessados pelo sol, em feixes que ondulavam por
um oceano de bolsões de energia sob a forma de amebas. E,
quando olhei para meu bisavô, fiquei surpreso ao constatar
que ele também se transformara em uma membrana de
energia disforme. Mas era estranho porque, mesmo assim,
eu quase podia reconhecê-lo com mais facilidade sem seu
corpo do que quando ele estava nele. Era como se eu o
estivesse vendo tal qual era realmente, sem o ruído
arbitrário do mundo físico envolvendo seu corpo.
Continuamos a voar entre as cores vívidas com uma
facilidade de liberdade totalmente estimulante. Entretanto,
não era exatamente como voar, porém mais como nadar -
nadar em um mar de almas. E, desde que minha alma
também estava livre do corpo, eu era capaz de sentir coisas
com muito mais intensidade do que podia sentir na Terra.
Tratava-se de uma sensação semelhante à de estar usando
óculos sujos durante toda a vida e de, por fim, poder ver o
pôr do sol pela primeira vez sem nenhum anteparo.
Mas não era apenas olhar e sentir. Todos os meus sentidos
tornaram-se um só e eu podia, simultaneamente, ver, ouvir,
sentir, cheirar e provar tudo ao meu redor. Meus sentidos
terrenos eram pequenos buracos estreitos que permitiam a
passagem de apenas parte do que estava em volta de mim, e
eu estava impressionado com minha capacidade de sentir
com meu ser integral. Não havia diferença entre ver, sentir,
provar, ouvir e cheirar. Havia apenas ser e sentir.
- Isso é incrível! - eu disse ao meu bisavô telepaticamente, o
que parecia muito mais natural que minhas próprias cordas
vocais. Falar era tão simples quanto pensar, e eu não tinha
mais de me preocupar com um vocabulário que tornasse
meus pensamentos obscuros.
- Sim, é mesmo. É pura energia. A essência da vida sem as
limitações do mundo físico. O mundo físico tem muitas
vantagens, mas nada se compara ao imediatismo do mundo
espiritual. Há muito tempo os filósofos vêm escrevendo
sobre a importância de viver o momento, mas aqui você
realmente nem tem outra alternativa.
- Com certeza. - Era fácil compreender o que ele queria
dizer. Tudo estava em constante movimento, e eu era
compelido a permanecer atento a cada momento que
vivenciava. Entretanto, o que levou mais tempo para ser
absorvido foi a falta de espaço pessoal. Os limites da minha
alma estavam em total contato com a alma dos outros, o que
soava um pouco claustrofóbico a princípio. Mas logo me
senti mais confortável com a sensação de estar flutuando em
um mar de almas, o que se assemelhava a um tecido que
tivesse sido esticado em um enorme e ondulante
acolchoado.
No início eu estava bastante cauteloso e permaneci próximo
ao meu bisavô. Todavia, à medida que me tornava mais
confiante, perambulava para mais longe dele, antes de
retornar ao seu lado. Quanto mais eu penetrava no mundo
espiritual, mais alegria experimentava, apenas me
movimentando. Como a gravidade não funcionava como na
Terra, senti-me como uma criança de novo, escorregando
de meias nos assoalhos de madeira da casa de minha tia. De
fato, como não havia fricção de minhas meias (nem mesmo
de meus pés), pude deslizar pelo mar de almas por algo
semelhante a quilômetros sem demora.
Após um deslizamento particularmente longo, percebi que
não conseguia reduzir a velocidade e achei que, ao
contrário, estava acelerando meu distanciamento de meu
bisavô. Chamei por ele um pouco antes de reconhecer que
uma entidade escura estava se aproximando. No instante em
que senti o que estava acontecendo, ela começou a me
puxar depressa para seu núcleo escuro. Comecei a girar em
círculos, como se estivesse num redemoinho, à medida que
os escuros cabos de energia se enroscavam em minha alma e
me puxavam para perto. Felizmente meu bisavô apareceu e
assumiu o controle da situação.
- Scott, proteja-se com sua luz branca. Você deixou que ela
apagasse e está sem nenhuma proteção!
Olhei para baixo e vi que ele estava certo: minha luz estava
completamente extinta. Tentei fazer com que brotasse de
meu interior, mas o pânico me impedia de permanecer
focado.
- Não posso! - gritei. - Não está funcionando!
- Acalme-se e relaxe. Sua força continua em você. Lembre-
se apenas do que praticamos e deixe que se manifeste.
De modo surpreendente, fui capaz de relaxar quando me
sintonizei com a confiança que meu ancestral depositava em
mim. Meu bisavô me ensinara muitas habilidades, mas sua fé
incondicional fez com que brotasse em mim muito mais
força do que eu imaginava ser possível. Em poucos
instantes, uma onda de calma encheu minha alma e senti a
sensação familiar de minha luz interior me protegendo com
a bolha branca. Tão logo a bolha se formou, percebi que ela
havia me tirado daquela trajetória, longe da escuridão. Meu
bisavô me seguiu de perto. Quando, por fim, estávamos bem
distantes do perigo, ele me deu uma última recomendação.
- Você tem de lembrar de verificar regularmente sua
proteção até que ela se torne uma segunda natureza. A
princípio é fácil baixar a guarda e esquecer de manter-se
iluminado, mas após algum tempo isso se tornará parte de
você. No entanto, como você pode ver, este é um ambiente
escorregadio, e os erros que se fizer vão durar uma
eternidade.
Mesmo depois do susto, fui ficando cada vez mais
preocupado em permanecer o maior tempo possível no
mundo espiritual, e o retorno à consciência parecia muito
menos interessante do que costumava ser antes. Eu não saía
de casa senão quando era absolutamente necessário e
diminuí meu interesse pelas pessoas que estavam presas ao
corpo físico. Sabia que Robert e Martika provavelmente
compreenderiam o que estava acontecendo comigo, mas
não queria permanecer consciente por tempo bastante para
vê-los. A vida na Terra parecia tão arcaica, com meus
minúsculos buracos sensoriais que permitiam a passagem de
uma fração do mundo ao meu redor, que comecei a achar a
manifestação física dos corpos completamente pesada e
deselegante.
Bem depressa comecei a ficar entediado diante de tudo o
que o plano terreno tinha a oferecer, até que fiquei irritado
mesmo quando comecei a receber avisos, pelo correio,
porque não estava cumprindo minhas obrigações financeiras
para viver "confortavelmente" no mundo físico. Havia uma
parte de mim que queria permanecer como cidadão
responsável, mas a maioria do tempo eu não conseguia parar
de pensar no outro lado, sempre que estava em estado
consciente.
Após retornar ao mundo espiritual, comecei a explorar meus
arredores com um enfoque mais deliberado. As outras almas
com as quais eu entrava em contato constante me
fascinavam, mas cada vez que tentava me comunicar com
elas achava que seria quase impossível. Os pensamentos
delas eram tão tangíveis quanto qualquer outra de suas
partes, mas todas estavam mescladas e era difícil separar uma
da outra. Era algo como tentar ouvir sussurros estando no
meio de uma multidão e perto de uma cachoeira.
Desde o início, eu conseguia me sintonizar com facilidade
com meu bisavô, porque já estava familiarizado com sua
energia, mas repetir o mesmo processo com almas que não
conhecia era bem mais desafiador. Meu bisavô explicou-me
que o problema era que na Terra eu estava acostumado à
rotina multitarefa - ou seja, a fazer, com frequência, muitas
coisas simultaneamente para economizar tempo. No plano
espiritual, tudo sempre existira, estava completamente
acessível e em constante movimento, de modo que não era
possível se concentrar em mais de uma coisa por vez sem
ficar sobrecarregado.
Com essa ajuda, reciclei minha preparação inicial, fazendo o
possível para permanecer totalmente presente, e, quando
consegui, comecei a travar os diálogos mais profundos que
tivera, mesmo quando se tratava de simples saudações. Pude
perceber que todas as almas queriam ser ouvidas de forma
integral e completa e logo me dei conta de que antes
acabava perdendo a maior parte das coisas que estavam
acontecendo ao meu redor justamente por adotar aquela
atitude "multitarefa", alterando a todo momento meu foco
do que ocorria na realidade.
Após certo tempo, eu já me sentia bem mais confortável
com os fundamentos de permanência no plano espiritual e,
conforme retomava com mais frequência, a multidão ia
aumentando. Depois da quinta vez, as almas estavam
reunidas de maneira tão densa que era quase impossível se
mover.
- Isso aqui está se tornando um ambiente muito popular -
comentei.
- Você é que é o sujeito popular - disse meu bisavô. - Estão
chegando almas dos lugares mais distantes do mundo
espiritual para ficar perto de você.
- O que me torna tão especial? O fato de ser novo aqui?
- Isso é apenas parte da coisa, mas a principal razão é porque
você está envolto em luz branca. Sua energia faz com que
essas almas se sintam bem e então elas querem chegar
pertinho.
- Mas elas podem se envolver com sua própria luz. Ainda
não sabem o que há em seu próprio interior?
- Infelizmente, não. A maioria das pessoas pensa que a
felicidade está fora delas, e aqui não é diferente. Essa é uma
das grandes tragédias da vida e a razão pela qual muitos
vivem sem alegria boa parte dos dias.
- Mas é tão fácil! Você deveria ensinar a elas como fez
comigo.
- Meu destino não é esse. Estou feliz em ajudá-lo em tudo de
que precisar, mas não estou interessado em ajudar todo
mundo. Talvez essa seja a sua missão.
Naquele momento, uma pequena alma flutuou ali perto, e,
quando passou por mim, pude sentir sua história de vida.
Quanto mais tempo passava no mundo espiritual, mais era
capaz de focar minha atenção em uma alma em particular
para ler sua energia. Era como um conhecimento interior, e,
quanto mais aberta fosse a alma, mais eu podia intuir. Parecia
estranho que eu pudesse sentir se uma alma era pequena ou
grande, velha ou nova, feliz ou triste, mas eu de fato podia.
Havia uma noção de conhecimento muito mais certa que
qualquer outra coisa que eu pensava haver sabido na Terra.
A pequena alma que flutuara perto de mim pertencia a um
menino que perdera os pais em um incêndio doméstico.
Este, após perambular de um lar adotivo a outro, sem
nenhum carinho, morreu em tenra idade, aos sete anos, em
decorrência de uma pneumonia de que fora acometido no
final do inverno. Ele estava perdido e apavorado, sem
compreender por que estava ali.
- Qual é seu nome? - perguntei.
- Tamlin.
- Tamlin, não precisa se apavorar. Você gostaria de cercar-se
dessa luz branca, como eu?
- Hum-hum.
- O segredo é que ela já está em você. Tenha bons
pensamentos e lembre-se do amor de seus pais. Eles
continuam cuidando de você e querem que seja feliz. - Eu
não sabia de onde vinham minhas palavras, mas quando
deixei que fluíssem me pareceu que o confortaram.
Devagar, uma luz pequena e brilhante começou a brotar da
alma de Tamlin. A princípio, era muito pequena, do
tamanho de um grão de areia, mas foi expandindo-se aos
poucos e ficando cada vez maior. Aproximei-me e acolhi
gentilmente a luz, até que ela ficasse brilhante o bastante
para envolvê-lo. A alma de Tamlin começou a mostrar-se
iluminada e cada vez mais feliz à medida que a tristeza ia
diminuindo. Em poucos segundos, os pais dele apareceram
do meio da multidão e o abraçaram.
- Onde vocês estavam? - perguntou o menino enquanto sua
alma emanava ressentimento e euforia ao mesmo tempo.
- Estávamos procurando por você em toda parte - disse a
mãe. - Você sempre foi um farol de luz na Terra, mas aqui
não podíamos encontrá-lo, embora soubéssemos que estava
em algum ponto. Tão logo vimos sua luz, há poucos
instantes, soubemos que finalmente o havíamos encontrado.
- Acredito que eu não seja mais necessário por aqui. - Meu
bisavô sorriu e começou a desaparecer. - Chame, se precisar
de mim.
Eu permanecia muito mais tempo no mundo espiritual,
ajudando tantas almas quantas pudesse. Aquilo me parecia
tão natural que parecia mesmo ter nascido para isso. Estava
trazendo muita alegria e felicidade a tantas almas e podia
dizer que, de fato, estava fazendo a diferença. Era uma
experiência muitíssimo poderosa, e cada vez que eu
retornava havia mais almas feridas esperando para ser
curadas. Enfim, eu encontrara meu propósito anímico, e era
extremamente gratificante ser capaz de fazer uma coisa tão
significativa.
Ocasionalmente, eu captava um vislumbre de Cheryl, mas
ela mantinha distância e apenas saudava. Era bom vê-la de
novo, mas eu não estava mais obcecado como antes. Ficava
contente ao deixá-la ir e sabia que ela, por certo, se
aproximaria quando estivesse pronta. E, como eu estava
passando mais tempo em meu mundo inconsciente,
comecei a perceber a presença de uma menininha que
estava quase próxima ao pico do desfiladeiro de acesso ao
mundo espiritual. A energia dela era familiar, mas eu não
conseguia lembrar de onde vinha.
Após algum tempo, comecei a procurar por ela e trocávamos
sorrisos quando nos víamos. A princípio, eu não estava
certo se ela era de luz ou de escuridão, porque sua energia
era muito poderosa, mas com o passar dos dias senti que era
amigável. Tive coragem de perguntar quem ela era.
- Olá - por fim a saudei.
- Olá - ela disse, pragmática.
- Quem é você?
- Meu nome é Autumn. Sou sua filha.
Com isso ela deu uma risadinha divertida e, bem diante de
meus olhos, se transformou em uma libélula azul brilhante,
que ficou flutuando no ar a poucos centímetros do meu
nariz.
- Você é minha filha?! - exclamei ali, estupefato,
concentrando-me nos olhos da libélula.
E, superposto ao ruído de suas asas translúcidas, ouvi sua
risadinha brincalhona de novo, enquanto ela desaparecia,
cada vez menos nítida.

CAPÍTULO 12

Após a primeira vez que falei com Autumn, minha mente
ficou repleta de dúvidas. Eram dezenas delas e do tipo:
Quando ela nascera? Há quanto tempo está esperando por
mim? E mais importante ainda: Se sou o pai, quem é a mãe?
Eu a vi mais algumas vezes na terra dos sonhos, porém cada
vez mais pressentia sua presença quando rapidamente
recobrava a consciência para pausas dedicadas a comer,
tomar água e ir ao banheiro. Era como se ela estivesse se
preparando para nascer e quisesse começar explorando sobre
o que se tratava aquele plano físico.
Certa tarde, ao anoitecer, rompendo meus costumes
normais, fiquei uma noite inteira sobre a Terra e sentei-me
na varanda posterior de minha casa. Fiquei observando o
nascer da lua e as sombras mais lindas que jamais vira das
árvores no quintal. E, como eu já havia tido a revelação,
pude sentir aquela sensação familiar de ter Autumn por
perto. Quando olhei ao redor, vi que a luz da lua e as
sombras tinham se fundido, tomando a forma de um coelho
gigante, com os galhos torcidos de uma grande cerejeira.
- Autumn? - perguntei. - É você?
As orelhas do coelho começaram a se mover como se
estivessem me saudando, e justamente quando eu estava
prestes a ignorar aquilo, creditando o fato a uma brincadeira
de minha imaginação, percebi que o ar estava muito parado.
Não havia sequer uma ligeira brisa no ar cálido de verão, e
todos os galhos ao redor estavam completamente imóveis
enquanto as orelhas do coelho continuavam a se
movimentar.
Meu estômago parecia repleto de milhares de borboletas, e
fiquei ali, observando as orelhas dançantes do coelho da
cerejeira por mais ou menos meia hora. Quando minha
atenção começava a se dissipar, Autumn sentiu minha
distração e instantaneamente se transformou em um cisne
gracioso, que parecia flutuar nos reflexos prateados do luar.
Ela então preparou uma completa coreografia com diversos
animais dançando na árvore, um após outro, pelas próximas
horas. Os cisnes transformaram-se em girafas. As girafas
tomaram a forma de ursos-polares. Os ursos-polares viraram
galinhas. As galinhas, gatos. Eu estava impressionado com
sua criatividade e engenhosidade, mas na verdade foram sua
alegria e genuína inocência os elementos que capturaram
meu coração.
A partir de então, quanto mais tempo eu passava no mundo
espiritual, de menos comida parecia necessitar. Contudo,
mesmo com minhas restritas refeições, finalmente
abandonei o arroz integral e o chá vermelho. Pela primeira
vez, desde que começara a permanecer mais tempo no
mundo espiritual, precisei voltar ao mundo físico para me
reabastecer de suprimentos. Embora nervoso diante da
perspectiva de entrar em contato com outras pessoas de
novo, estava ansioso para compartilhar minhas novidades
com Robert e tinha esperança de que ele oferecesse sua
perspectiva sobre Autumn. Após me preparar mentalmente,
vesti, de modo quase instintivo, uma camisa de mangas
compridas, chapéu e óculos de sol para me proteger do
mundo exterior e aventurei-me de volta à cooperativa.
Agora eu sabia, com certeza, que Robert estaria lá, de modo
que fiquei imaginando se o cartaz dele me daria alguma
resposta.
Sem cumprimentá-lo, aproximei-me dele e li sua nova
mensagem:

Não há linhas retas na natureza.

- Seja honesto - brinquei -, você escreve essas coisas para
mim, não?
- Claro que não. - Pelo canto do olho, pareceu-me ver
Robert piscando para o cachorrinho Don. - Você saberá
quando um cartaz for feito para você.
- Como você descobre todas essas frases?
- Elas são reveladas a mim por aqueles que precisam ser
ouvidos. E as gravo para aqueles que desejam ouvi-las. E, às
vezes, eles são a mesma pessoa.
- Entendo. - Fiquei imaginando, em silêncio, se alguma vez
ele havia escrito uma coisa que eu dissera. Em seguida,
contei-lhe minhas recentes aventuras, na esperança de que
ele tivesse uma revelação.
- Então você conheceu Autumn? - Robert perguntou assim
que terminei meu relato. - O que você pensa a respeito dela?
- Ela é muito alegre!
- Sim, ela é assim mesmo. - Ele riu.
- Você a conhece ?
- Eu a conheci durante sua recuperação anímica.
- Por que não me contou?
- Não achei que você poderia suportar que eu falasse,
naquele momento, sobre sua filha ainda não nascida. Você já
tinha muito com que lidar.
- Sim, acho que sim.
- Parece que você passou muito tempo do outro lado, não é
mesmo?
- É verdade. Como sabe disso?
- Porque você está completamente fora do corpo agora. Está
pairando no ar e voltado para a esquerda. Tem de tentar
permanecer com os pés no chão enquanto está na Terra,
senão não terá a menor chance de escolha.
- De escolha de quê?
- De onde vai viver. Você quer viver neste planeta ou no
plano espiritual?
- Por que tenho de escolher? Não posso continuar a visitar?
- Acho que você fez mais que visitar, não foi?
- Apenas me sinto tão poderoso quando estou lá!
Definitivamente, estou ajudando muitas almas a curar-se.
Minha vida parece muito mais repleta de significado no
mundo espiritual. É como se eu tivesse a missão de curar os
outros.
- Sim, você tem esse dom. Mas ele sempre estará com você.
Viver neste planeta também é um dom, e você tem muito
que fazer aqui. A escolha é sua, e você tem muita sorte de
ter outra oportunidade de decidir.
- Quer dizer que essa não foi a primeira vez que tive de
escolher?
- Todo mundo se defronta com algum tipo de escolha
imediatamente após nascer. As almas entram no corpo
humano quando estão no útero e muitas vezes permanecem
ali até o nascimento. E, quando nascem, têm de decidir se
estão prontas para lidar com as limitações de viver aqui. As
poucas que não querem permanecer resolvem ir embora, e
isso é comumente denominado SMSI.
- Síndrome da Morte Súbita Infantil?
- Sim. E uma denominação paradoxal, porque está longe de
ser súbita. A transição em si é instantânea, mas a decisão
demora algumas semanas. É a coisa mais importante com a
qual nos confrontamos tão logo nascemos neste mundo:
decidir se estamos prontos para ser limitados por estes
corpos para que possamos experimentar a vida aqui.
- Mas por que alguém desejaria viver aqui? Há muitas coisas
erradas neste lugar. E estes corpos são muito limitados em
comparação ao plano espiritual.
- Porque há muitas experiências e lições que só podem
ocorrer aqui.
- Dê-me um exemplo.
- Ter filhos, para citar um.
Meus pensamentos voltaram para Autumn e comecei a
imaginar como seria ser pai. Havia algo em mim que
desejava cuidar dela e ensinar-lhe sobre a vida neste planeta.
Era quase como a coisa que eu mais desejava fazer!
- Por que não posso viver nos dois lugares, como já fiz?
- Porque seu corpo não suportaria. Quanto mais tempo você
passar lá, mais se desligará do corpo, e ele então morrerá.
Quanto tempo você acha que passou desde que mudou de
seu apartamento?
- Não sei... talvez uma semana.
- Na verdade, umas três. Olhe para si mesmo. Deve ter
perdido entre seis e nove quilos. Seu espírito está pairando
no ar sobre o corpo, como um balão de hélio, e suas calças
estão quase caindo dos quadris.
- Sim, provavelmente eu deveria comer mais, mas não acho
que tenham se passado três semanas.
- Olhe aqui... - ele disse, mostrando-me um jornal.
A data ali registrada era 10 de setembro. Fiquei chocado.
Tinha ido à festa de Martika havia umas cinco semanas. Isso
explicava por que minha caixa de correio estava abarrotada
de avisos de contas vencidas e de ameaças das companhias
de serviço.
- Você tem de escolher - ele repetiu, e dessa vez suas
palavras chegaram direto ao meu íntimo.
- Mas e Autumn? O que ela faria caso eu não queira
permanecer aqui?
- Está tudo bem com ela. Autumn é uma alma poderosa e
ficará bem, não importando a escolha que você faça. Ela tem
muitas alternativas, de modo que você não precisa se
preocupar com ela. Não é a primeira vez que ela vem aqui e
sabe muito bem o que está fazendo. Mas você perderá uma
das mais incríveis alegrias do universo se resolver partir
agora. Seu trabalho do outro lado estará lá para sempre, mas
a alegria que traz uma criança é uma oportunidade especial
que não acontece todos os dias.
- Quando vou conhecer a mãe dela?
- Depois que sua alma decidir ficar. Agora, vá até a loja e
arranje alguma comida, pois você parece estar para morrer.
Comprei um grande pacote de arroz integral e um de
roiboos. Após me despedir de Robert e do cachorrinho Don,
fiz minha tradicional caminhada, subindo a ladeira. Quando
estava mais ou menos na metade do caminho de casa, notei
a presença de três libélulas, que pareciam estar me seguindo.
Havia algo muito familiar naquelas libélulas, em especial nas
duas que estavam mais perto de mim. Como eu já havia me
acostumado com as brincadeiras de Autumn, pensei que ela
fosse um daqueles insetos.
- Então, Autumn, quem são essas suas duas amigas? - Eu
costumava falar com ela em voz alta, independentemente da
forma como se apresentava. Parei no meio da rua e as três
libélulas começaram a voar em círculos sobre mim. O
caminho que traçavam no ar as aproximava cada vez mais do
topo de minha cabeça, até que senti estar usando uma coroa
de libélulas e que eu era seu rei. Em meu coração, surgiu
uma revelação. Uma silenciosa resposta à minha pergunta,
que soava mais alta que quaisquer outras palavras que
pudessem ser ditas: Papai e Mamãe.
CAPÍTULO 13

Passei a próxima semana e meia refletindo sobre a mais
importante decisão que tive de fazer nesta vida. Enfim
descobri o propósito de minha alma e achei aquilo muito
bom. Mas tinha de decidir entre seguir o chamado do
mundo espiritual ou criar minha filha ainda não nascida.
Quanto mais eu meditava, mais sentia que qualquer uma das
duas decisões provavelmente seria a certa. Sabia que meu
trabalho ainda estaria esperando por mim depois que
deixasse o planeta e também sabia, do fundo do coração, que
Autumn entenderia se eu continuasse minha jornada antes
de ter a oportunidade de vê-la nesta dimensão. E, embora eu
estivesse honrado que ela tivesse me escolhido, deveria
fazer o que era certo para mim, porque não queria que ela
sentisse rancor se decidisse ter uma família sem obrigação.
Queria perguntar a Autumn o que ela pensava que eu
deveria fazer, mas ela parou de aparecer em meus sonhos.
Podia sentir, de fato, sua presença no mundo físico, porém
tinha a sensação de que ela queria que eu chegasse à minha
própria conclusão.
Tentei passar mais tempo na Terra e cuidar de meu corpo
para que pudesse fazer uma escolha equilibrada. Não era fácil
voltar a comer com regularidade, mas mais difícil ainda era
negligenciar as almas que estavam esperando por mim.
Podia senti-las chamando e sabia que poderia ajudá-las, mas
também tinha certeza de que teria de decidir rapidamente
sobre trazer Autumn para este mundo.
Ao anoitecer do dia da próxima lua cheia, minha
contemplação foi interrompida por uma batida na porta da
frente. Quando a abri, vi um homem magro, careca e
parecido com um monge, usando uma toga branca e um
colar vermelho trançado no pescoço. Aos seus pés estava
um cachorrinho que lembrava muito o companheiro de
Robert.
- Cachorrinho Don? - perguntei.
Em seguida ouvi a inconfundível voz de Robert, embora
estivesse mais tranquila e fraca que de costume:
- Sim, Scott, somos nós. Podemos entrar?
Fiquei observando a criatura naquela vestimenta larga e,
quando me fixei em seu rosto, quase caí para trás ao me
deparar com os olhos dela.
- Robert, é você?
- Claro que sou eu! Quem você pensa que é?
- Seu cabelo... - Dei um passo para o lado e fiz um gesto,
convidando-o a entrar.
- Sim, cortei o cabelo.
- E se barbeou - falei, ressaltando o óbvio. - Com certeza
você parece diferente sem cabelos.
Uma vez lá dentro, sentamos à mesa na pequena sala de
jantar que separava a cozinha da área de visitas. Após
acender a luz sobre a mesa, olhei para baixo, em direção ao
cachorrinho Don, e percebi que ele estava usando uma
coleira vermelha trançada semelhante ao colar de Robert.
Instintivamente, curvei-me para olhar de perto e retrocedi
quando reconheci as mechas dos cabelos recém-
desaparecidos de Robert.
- Você fez um colar de seus cabelos?! - Meu rosto se
contorceu. Não pude esconder minha repugnância.
Robert apenas balançou a cabeça enquanto amarrava um
fino cordão branco entre seu colar e a coleira do
cachorrinho Don. Como sempre fazia, o animal enroscou-se
nos pés de meu amigo e fechou os olhos. Sob a luz eu podia
ver o rosto de Robert com muito mais clareza e notei que
tinha círculos escuros debaixo dos olhos fundos e que os
cantos de sua boca estavam curvados para baixo.
- Você está bem? - perguntei. - Você não parece nada bem.
Ele replicou com tom de voz suave e rouca:
- Parece que a doença deste corpo foi mais longe do que eu
imaginava. - Ele fez uma pausa suficientemente demorada
para dar um longo e profundo suspiro. - E não serei capaz de
usá-lo por muito mais tempo.
- O que quer dizer com isso? Você me disse que essa doença
era algo que podia ser controlado pela vontade. E falou que
qualquer um pode fazer isso, se desejar! O que você está
dizendo? Não pode me deixar agora! - Eu estava confuso e
chateado. Robert era a única pessoa que sabia tudo que
estava acontecendo, e eu não estava pronto, ainda, para ficar
sem ele.
- Você nem sequer sabe se vai permanecer neste planeta. E,
se realmente for ficar, terá de ter Autumn.
- Mas por que você não pode simplesmente curar seu corpo?
Você me garantiu que podia fazer isso.
- Pensei que pudesse, mas este já foi longe demais. Além
disso, meu trabalho em Ashland está terminado. Você não
precisa mais de mim.
- Preciso, com certeza! Você ainda não pode me deixar. -
Sabia que estava beirando à súplica, mas me sentia
desesperado.
- Preciso lhe pedir um imenso favor - disse Robert.
- Qualquer coisa - respondi, secando as lágrimas que desciam
pelo meu rosto.
- Preciso que tome conta de Don. Fiz uma promessa a ele de
que seria bem cuidado enquanto permanecesse nesse
formato.
- Mas eu não sei...
- E, se você decidir ir embora - ele interrompeu -, Martika já
aceitou tomar conta dele. Ela não pode assumir o
compromisso esta semana porque vai viajar até São
Francisco para um seminário. Você poderia esperar para
tomar sua decisão até que ela regresse?
- Claro! - Era o mínimo que eu poderia fazer depois de tudo
que ele fizera por mim.
- Muito obrigado. Isso significa muito para nós dois. - Ele
começou a fuçar em sua sacola de roupas enquanto
continuava a falar. - Não quero lhe impor nada além do que
já fiz. - Queria assegurar a ele de que não houve nenhuma
imposição, mas ele fez um gesto com as mãos para pedir que
ficasse em silêncio. - Mas, além do que se refere a Don,
preciso realizar uma cerimônia para honrar o corpo que ele
me cedeu de empréstimo e celebrar a vida que ambos
vivemos nele.
Fiquei assustado ao ouvir suas palavras tão pungentes e
entendi a gravidade da situação. E, quando mergulhei
profundamente em seus olhos, percebi algo que jamais vira
antes: gratidão. Imensa gratidão. Ele olhou para baixo, em
direção ao cachorrinho adormecido, e pude sentir uma
misericórdia - e uma sensação gratificante - mais poderosa
que qualquer palavra que pudesse ser dita. E, com um
sussurro quase inaudível, ele murmurou:
- Obrigado.
Eu não sabia o que dizer e quase esqueci que também estava
ali. Embora parecesse completamente desconectado de meu
próprio corpo, ouvi minha voz dizendo:
- Com certeza... qualquer coisa de que você precise.
Robert sorriu gentilmente enquanto retirava com todo
cuidado uma linda folha de papel de arroz artesanal; em
seguida, com as duas mãos, colocou-a diante dele, na mesa
de jantar. A lâmina texturada, de cor creme, era enfeitada
nas bordas por flores de framboesa vermelhas e por uma
sinuosa luz amarela que cintilava de seus talos dourados. Ele
pegou também uma longa pena branca, com uma ponta
esculpida na extremidade inferior, e um pequeno frasco de
tinta negra antiga.
Com um fósforo comprido, acendeu cerimoniosamente cada
um dos três candelabros verdes que havia sobre minha
mesa. Devagar, deslizou um deles para colocá-lo diante de
mim, outro na frente dele e o terceiro no chão,
amorosamente, ao lado do cachorrinho Don. Após acender
as velas, ele fez sinais para que eu apagasse as luzes e, tão
logo o atendi, fechou os olhos, sentando-se sem dizer uma
só palavra por alguns segundos. A única coisa que quebrava
aquele silêncio profundo era o ruído produzido por seus
pulmões, à medida que ele lutava respirar, em curtas e
superficiais aspirações.
Quando abriu os olhos, Robert pegou a pena e a introduziu
no frasco. Depois de esperar que o excesso de tinta pingasse
de volta à base, começou a escrever no papel com longos e
precisos movimentos. Do lugar em que me encontrava eu
não tinha ângulo para ver o que ele estava registrando ali,
mas pude observar que seus olhos estavam mais focados do
que eu jamais vira. Ele continuou a escrever com
intensidade e deliberado senso de propósito, abrindo ligeiras
pausas para encher a pena de tinta antes de seguir adiante.
Quando acabou, depositou com delicadeza a pena sobre a
mesa e, instintivamente, o cachorrinho Don despertou e
ficou observando Robert, com ambas as orelhas empinadas,
evidenciando sua atenção concentrada.
Robert levantou-se da cadeira e, com as duas mãos, pegou o
papel em que escrevera e começou a falar, com a voz clara e
poderosa, pela primeira vez naquela noite.
- Com este Jisei, nosso Poema da Morte, humildemente
homenageio a vida de Donald Newport e a viagem que
fizemos juntos neste corpo tão digno. Embora a carne seja
mera vestimenta, serviu-nos muito bem, protegeu-nos e
carregou-nos em muitas viagens importantes ao longo desta
vida. - Em seguida, Robert ajoelhou-se diante do
cachorrinho Don, para que ambos pudessem se fitar direto
nos olhos, e continuou: - Sou eternamente grato por seu
generoso presente e agora serei seu servo pelas próximas três
vidas. Permanecerei ao seu lado e lhe darei a minha vida
para que você faça com ela o que desejar.
Então Robert colocou o papel diante do cachorrinho Don e
abaixou a cabeça até o chão, até ficar no mesmo nível das
patas do animal. Don olhou para baixo, fitando a folha em
que Robert havia escrito, e parecia estar lendo o que ali
estava. Após alguns minutos, ele lambeu uma das faces de
Robert e deixou escapar um triste lamento.
Devagar, Robert levantou-se de novo, pegou o papel e
colocou-o diante de mim, antes de retornar para sua cadeira.
Quando olhei para baixo, fiquei maravilhado com a beleza da
caligrafia. Cada movimento da pena havia acariciado
amorosamente o papel, deixando um rastro de tinta que
tinha muito mais que ver com a arte japonesa que com a
língua inglesa. Depois de apreciar o belo contorno das letras,
comecei a ler lentamente o poema haiku, uma palavra por
vez, até finalmente mergulhar no sentido:

O véu nevado do inverno
Que cobre as árvores de branco
É água novamente

Li as palavras de novo, e meus olhos começaram a marejar.
Uma solitária lágrima escapou e escorregou pela minha
narina até cair sobre a última linha do poema,
transformando as letras em uma piscina de líquido negro.
Olhei para Robert, e as lágrimas continuaram a percorrer
ambos os lados de meu rosto.
Ele pegou o papel e com um único movimento aproximou o
canto da folha da chama da vela, até que pegasse fogo. Eu e
o cachorrinho Don ficamos ali, pasmados, enquanto ele
queimava o poema, e esperei até que Robert estremeceu,
quando a labareda começou a chamuscar os pêlos do dorso
de sua mão. No instante exato em que aquela cena começava
a parecer desconfortável, ele colocou a poesia incandescente
no prato de cerâmica verde-claro que tirara da sacola. As
chamas percorreram devagar as bordas do papel, e, em
poucos segundos, o fogo havia-se extinguido, deixando em
sua esteira um frágil traço de cinzas.
Robert fuçou mais uma vez a sacola, de onde retirou outro
instrumento cerimonial. Dessa vez, era um pequeno jogo de
tesouras desgastadas, as quais usou para liberar o fio que
havia atado â coleira do cachorrinho Don, fazendo outro
corte onde o mesmo fio estava preso a seu próprio colar
vermelho. Ele segurou o fio com a mão esquerda e depois
guardou as tesouras na sacola. Andou ao redor da mesa até
parar de repente diante de mim. Instintivamente, levantei-
me e empurrei a cadeira para baixo da mesa, para que não
houvesse nenhum obstáculo entre nós.
- Scott, agora você é o fio que me une a Donald - disse
Robert, recuperando a tonitruante voz cheia de autoridade. -
Onde quer que esteja, no plano terreno ou seguindo seu
caminho, você é o elo que nos mantém unidos. Durante a
próxima vida, Donald e eu nos sentiremos honrados se você
continuar aceitando essa responsabilidade e sendo nosso
guia. Sua visão se tornará cada vez mais poderosa nas
estações que virão, e você será capaz de reconhecer de
imediato cada um de nós, não importa a forma como nos
apresentemos. Scott, você vai aceitar essa responsabilidade?
Embora eu não soubesse sequer o que faria na próxima
semana, quanto mais na vida seguinte, sentia-me em débito
com Robert e, de qualquer maneira, queria lhe oferecer uma
retribuição. Eu não tinha a menor ideia do que isso
implicava, mas sentia que Robert confiava em mim,
portanto provavelmente seria algo que eu pudesse fazer.
- Será uma honra para mim - disse por fim. Em seguida, ele
tomou minhas mãos nas dele e gentilmente transferiu o fio
para as palmas das minhas.
Apertei o delgado fio branco com os dedos, até que ficasse
cada vez mais quente para que pudesse sentir a vibração da
energia de Robert e do cachorrinho Don. Aquilo me parecia
muito familiar, e, com humildade, segurei a relíquia sagrada
da ligação deles. Eu já sabia que havia amor real entre as
pessoas, mas aquela era a primeira vez que de fato podia
sentir a energia do verdadeiro amor em minhas próprias
mãos.
Ao olhar para cima, vi que Robert estava em pé diante de
seu candelabro, com as palmas das mãos unidas e a cabeça
tombada.
Está na hora de eu ir embora - ele disse enquanto se curvava
em direção à vela para apagá-la. Quando a chama se
extinguiu, a luz do ambiente ficou reduzida a menos da
metade. Ainda havia dois candelabros acesos, mas o dele
produzira mais luminosidade que os outros e já fazia muita
falta.
- Onde você vai nascer da próxima vez? - Comecei a tremer
de maneira incontrolável.
- Não tenho certeza. Provavelmente em Cassadaga. Ali
existe um escritor muito talentoso que transformará milhões
de corações.
Eu não sabia onde ficava Cassadaga, mas não me parecia um
lugar próximo.
- Quando você vai embora?
- Esta noite - ele disse, e seu sorriso partiu meu coração. -
Cuide-se, Scott.
Com isso, bateu a porta atrás de si. Fiquei olhando pela
janela enquanto ele descia a rua e virava a esquina, até que
fui tomado por uma onda de tristeza.
Tão logo ele foi embora, minhas lágrimas voltaram com
força total, e, quando os outros candelabros se apagaram, vi a
lua cheia suspensa no céu, diante de minha janela. Tinha
planejado ficar em comunhão com a energia lunar daquela
noite para ajudar em minha decisão sobre Autumn, mas já
não tinha mais disposição para aquilo. Minha decisão parecia
sem sentido à luz do que acabara de acontecer. Então, numa
atitude dramática, fechei a persiana para evitar que a luz
prateada entrasse em meu quarto.
Quando despenquei na cama, as lágrimas escorriam do rosto
para os cantos de minha boca, deixando um sabor salgado
em minha língua. Naquele exato momento, odiei tudo que
dizia respeito ao mundo físico, com todas as suas arbitrárias
limitações, e só desejei ir embora. Entretanto, prometera a
Robert que cuidaria do cachorrinho Don ao menos até que
Martika voltasse. Se não fosse por esse compromisso, por
certo teria tomado a decisão de ir para o mundo dos
espíritos, sem jamais retornar.

CAPÍTULO 14

Na manhã seguinte, acordei com um estado de ânimo muito
melhor e, surpreendentemente, meu apetite tinha voltado.
Estava faminto pela primeira vez em várias semanas e decidi
levar o cãozinho Don para um passeio, porque assim poderia
comer um burrito no desjejum, no quiosque ao ar livre que
havia nas proximidades do parque.
Após comprar a comida, andei com ele pelo interior do
parque e percebi que o tempo começava a mudar. Havia um
friozinho no ar, daquele tipo que anuncia uma estação
prestes a chegar, e fiquei surpreso ao constatar como as
folhas estavam diferentes.
Eu não andava por ali havia algumas semanas e, enquanto
caminhávamos pelas trilhas repletas de gravetos, fui ficando
impressionado com os diferentes matizes de laranja e
amarelo que adornavam os galhos do arvoredo. O lugar
estava cheio de cores porque o outono estava
definitivamente alterando tudo. E, à medida que nos
aproximávamos do riacho, podiam-se ver as folhas caídas
flutuando na água resplandecente, como se fossem canoas
preguiçosas.
Robert não estava longe de meus pensamentos naquela
manhã, e tudo parecia contribuir para que eu me lembrasse
dele. Peguei-me olhando fixamente para a base de um
imenso carvalho e fiquei observando suas folhas
amarelecidas desprendendo-se dos galhos, os quais as
mantiveram em segurança durante tantos meses. Com
delicadeza, elas deslizavam para o chão, onde se juntavam às
amigas que haviam feito a mesma viagem recentemente.
Refleti sobre o humilde estado de graça em que Robert havia
partido na noite anterior e me senti honrado de ter sido
testemunha de uma cerimônia tão profunda.
Enquanto observava as folhas caindo no chão,
instintivamente acariciei as orelhas de Don e senti meus
dedos tocarem a coleira trançada que havia em seu pescoço.
As lágrimas ameaçavam reaparecer porque as emoções que
sentira na noite anterior começavam a aflorar de novo, mas
depressa me forcei a sentir gratidão pelo fato de nossos
caminhos terem se cruzado, não importando se de maneira
tão breve. Robert tivera grande impacto em mim em um
curto espaço de tempo e senti, no fundo do coração, que
voltaria a me encontrar com ele outra vez, no futuro.
Eu parecia menos seguro que na noite anterior em relação
aos meus desejos: se queria permanecer na Terra ou ir para o
mundo dos espíritos. Era afortunado por ter sido informado
sobre meu trabalho no plano espiritual e sabia que seria
abençoado com uma família se ficasse na Terra. Eu não
estava certo, porém, sobre qual dessas opções seria mais
significativa no grande plano do universo. Ali, sozinho com
meus pensamentos serenos, estava confiante no fato de que
o outono seria muito mais poderoso espiritualmente do que
eu jamais poderia esperar. A mesma questão ainda
permanecia: Como posso promover o impacto mais positivo
em minha vida?
Quando chegamos ao final do lago de patos, na área inferior
do terreno, vi a sacola de Robert abandonada sobre uma
pilha de folhas, embaixo de uma pequeno plátano. Ele deve
tê-la deixado ali no parque antes de ir embora na noite
anterior. Não pude evitar pegá-la e, após alguns segundos,
instintivamente desatei os cordões esfarrapados que
mantinham aquele objeto fechado e dei uma olhada lá
dentro. Havia alguns cartões escritos na inconfundível
caligrafia de Robert. Contei um total de sete. Fui tirando um
a um, com cuidado, e os depositei na grama, em minha
frente. Cada um era quase idêntico ao outro e tinha uma
única palavra boiando bem no centro:
Sim.

- Típico! - exclamei em voz alta depois de inspecionar os
dois lados de cada um deles, na vã esperança de encontrar
alguma outra palavra escondida em algum canto. Robert
jamais pareceu responder a nenhuma de minhas perguntas
de maneira direta e, mesmo após ter ido embora, mostrava-
se mais enigmático que nunca.
Sentei no gramado com os sete cartões ao meu redor e ouvi
a voz de Robert sussurar:
- Encha seu coração de "sim" e tomará a decisão certa.
Voltei-me, esperando poder mergulhar profundamente, de
novo, em seus olhos azul-clarinhos, mas não havia ninguém
nas proximidades. Dei uma olhada para baixo, em direção ao
cachorrinho Don - suas orelhas estavam em posição de
alerta e ele se mostrava todo animado pela primeira vez
desde que Robert partira na noite anterior.
De repente, um corvo surgiu atrás de nós, voando baixo, em
círculos. Como o som do bater de suas asas chegava até nós,
o cachorrinho Don foi na direção do pássaro. Eu jamais vira
o animal se movimentar tão rápido antes. Corri atrás dele e,
quando virei a esquina, ele estava dando voltas em torno de
uma mulher de longos cabelos louros, que usava um suéter
azul-claro, comprido até os joelhos. Quando cheguei perto, a
reconheci: era Madisyn, com y, e tinha estado no jantar de
Martika.
- Olá - eu disse.
- Oi, Garoto Lunar. Você tem um belo cachorrinho - ela
falou enquanto o acariciava delicadamente em um dos lados
do focinho. - Qual é o nome dele?
- Don.
Ela franziu o cenho.
- Ele não gosta mais desse nome. Precisa de um bem mais
distinto. Que tal Ônix? Você gosta disso, Ônix?
Ônix saltou nos braços dela e começou a lamber seu rosto ao
mesmo tempo em que balançava a cauda, manifestando sua
concordância.
- Acho que ele gostou. - Dei risada. E, quando olhei para
baixo, na direção do bichinho ansioso, percebi que havia
algo diferente. Estava faltando alguma coisa.
- A coleira dele desapareceu. - Tentei permanecer calmo,
mas meu pânico ficou evidente quando comecei a
esquadrinhar o solo à procura do colar vermelho trançado.
- Ele não precisa disso - Madisyn afirmou com um sorriso. -
Todos nós sabemos quem ele é, não é mesmo, Ônix?
Ônix balançou o rabo e deixou escapar um breve e alegre
latido.
- Você ainda está morando em Ashland? - perguntei.
- Sim, estou. Encontrei uma casa a apenas alguns quarteirões
daqui e a amei. É cheia de luz e é maravilhoso poder chegar
ao parque tão rápido. Sou amante da natureza e estar com as
árvores todos os dias me enche de alegria.
Nós três começamos a andar juntos pelo caminho,
apreciando aquele confortável silêncio, como se nos
conhecêssemos por muitas e muitas vidas. E, por alguma
razão, senti como se isso realmente tivesse acontecido.
Os delicados sons da natureza misturavam-se naturalmente
com os dos nossos passos, e, pela primeira vez na vida, senti
que tudo estava exatamente como deveria estar e como
sempre estivera.
Continuamos a explorar as trilhas menos conhecidas da
parte final do parque e, quando subimos uma ladeira
íngreme, chegamos a uma grande árvore que acabara de cair
sobre o caminho.
Madisyn graciosamente encontrou a maneira mais fácil de
contornar essa barreira e, sem a menor cerimônia, disse:
- Não há linhas retas na natureza.
- Onde você leu isso? - perguntei, imaginando se ela
também havia conhecido Robert.
- Não li em lugar nenhum. Foi uma visão que tive quando
criança e que sempre mantive com carinho em meu
coração.
Vinda de sabe-se lá que lugar, uma familiar libélula azul
brilhante baixou do céu e pousou nas douradas madeixas de
Madisyn. Parou de bater as asas e manteve-se sobre as
delgadas pernas de fada, fazendo o próprio caminho naquele
espaço.
- Você tem uma fada na cabeça - sorri.
- São gente minha. - Ela riu e estendeu o dedo indicador até
o alto da cabeça para que a libélula pudesse subir a bordo. O
inseto veio devagar, e ela, com a maior naturalidade,
colocou-o entre nós para que pudéssemos lhe dar uma boa
olhada. A libélula pousou por alguns segundos e depois voou
rapidamente para o interior das árvores.
Enquanto Madisyn andava pelo bosque, a luz filtrada por
entre as árvores incidia sobre seus cabelos, fazendo as
mechas louras começarem a resplandecer. Pela primeira vez
em muitos anos, vislumbrei o amor no horizonte e percebi
que, por fim, deixara Cheryl ir embora.
De repente, sem mais nem menos, Madisyn parou no meio
do caminho, olhou para o alto das árvores e disse:
- Amo o outono.
Ohei para ela, encantado, sentindo meu corpo inteiro
tremer.
- Queria que o outono estivesse aqui todos os dias! - ela
exclamou, com os braços estendidos para o céu.
- Eu também - sorri. - Eu também.

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