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quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Amor e sexo - Livro muito bom, para família

Mary Perkins Ryan
John Julian Ryan

AMOR E SEXO
Visão cristã do problema sexual


Edições Paulinas


Aos nossos filhos John, Thomas, Peter, Michael e
David




PREFÁCIO

Um grande pintor japonês, quase octogenário, fazia notar
que se lhe fosse dado viver e trabalhar ainda por algumas
décadas, poderia começar a aprender algo sobre pintura.
Embora não sejamos nós, como aquele pintor, tão hábeis na
arte do amor cristão, podemos, após longos anos de
tentativas, como indivíduos e na vida de matrimônio,
começar a compreender algo do que seja amar.
Procuramos, neste livro, indicar alguns obstáculos e
acentuar os meios mais promissores para uma vivência de
amor, segundo os dados de nossa experiência; assim,
nutrimos a esperança de podermos ajudar alguém a trilhar o
caminho do grande mandamento, sem hesitar tanto como
nós hesitamos, e sem se expor a tantos perigos de cometer
os erros que cometemos. Em outras palavras, procuramos
delinear algumas idéias a respeito da vida, do amor e do
sexo, que almejamos possibilitem a cada um fazer seu
ingresso na vida de adulto, na vida matrimonial e abraçar os
deveres da paternidade.
Foi sorte que nosso trabalho e nossos objetivos puseram-nos
em íntimo contato com os movimentos e a doutrina da
Igreja firmados pelo Vaticano II. Mais felizes ainda nos
sentimos constatando que nossos amigos — sacerdotes,
freiras, leigos casados e solteiros — são os que mais
oportunamente questionam esta matéria; as'soluções que nos
comunicaram através de sua amizade e experiência,
ajudaram-nos a compreender, pelo menos em parte, o papel
que desempenha o amor não só na vida matrimonial, como
em todas as formas de vida cristã. Vai aqui nosso irrestrito
reconhecimento a todos os nossos amigos, bem como aos
colegas que nos auxiliaram a concretizar e dar corpo às
nossas idéias. Desejamos manifestar nossa particular gratidão
a todos os que, com • encorajamentos e críticas,
persuadiram-nos não só a escrever como a reestruturar este
livro.
As idéias que aqui apresentamos não visam a constituir um
"manual sobre o matrimônio". Firmando-nos no contexto
informativo próprio dos manuais que versam sobre a vida de
matrimônio, procuramos, acima de tudo, sugerir linhas de
orientação aplicáveis a todos os que desejam aprender a
amar, não importa qual seja seu estado de vida cristã. Mas
nossa firme esperança é que estas orientações sejam
particularmente úteis aos casais, bem como a pessoas encar-
regadas de cursos em preparação ao matrimônio, ou
diretamente relacionadas com questões matrimoniais.
Tampouco foi nossa intenção redigir uma obra polêmica.
Fomos obrigados a nos empenhai ou pelo menos a entrar em
contato com a maior parte das questões que hoje em dia se
debatem, mais ou menos relacionadas com o sexo, o
matrimônio e a vida familiar. Mas não o fizemos com intuito
de suscitar ou dar continuidade a controvérsias sem sentido,
pelo simples gosto de discutir, mas visando promover um
consciencioso debate em torno da melhor maneira de
remover os obstáculos ao amor, e a fomentar os meios mais
favoráveis para incrementá-lo.
Como católicos, é natural que encaremos os problemas
atuais e suas possíveis soluções no contexto específico,
histórico e hodierno da doutrina e das teorias abraçadas pela
Igreja católica. Entretanto, sendo estes problemas, senão
idênticos, pelo menos análogos aos que se verificam em
outras esferas do Cristianismo, nutrimos a esperança de que
também a eles possa este livro oferecer alguma utilidade.
Mary Perkins Ryan John Julian Ryan


1. HUMANIDADE E SEXO

Desde a época dos Padres, até agora, exerceu notável influxo
sobre algumas correntes da doutrina cristã a idéia de que o
sexo constitui um aspecto negativo da natureza humana, só
restaurável mediante repressão ou abstendo-se de usá-lo. O
impulso original que levou a semelhante atitude parece
provir de doutrinas estranhas ao cristianismo, entre estas, as
correntes estóicas e outras categorias de pensadores
enfadados com a licenciosidade que imperava naqueles
tempos. O ensinamento cristão, porém, sempre proclamou
como realidades fundamentalmente boas e suscetíveis de
redenção, o corpo, o matrimônio, a procriação. Apesar
disso, certas praxes predominaram por longos séculos em
algumas camadas da Igreja. Na época imediatamente anterior
a Freud, a maioria dos pensadores e mestres cristãos
pareciam nutrir repugnância e temor em relação a todas as
manifestações do sexo. Isso ajuda a compreender por que o
Freudianismo, em sua acepção popular, criou um verdadeiro
impacto para a geração que nos precedeu, pois parecia
estender a "corrupção" do sexo a todas as esferas dos
sentimentos e das motivações humanas.
Nos Estados Unidos, o Victorianismo e certos ramos do
Puritanismo são os responsáveis imediatos pela mentalidade
que considera o "sexo" como coisa impura; mas o
Jansenismo, cuja influência é bem conhecida em certas
camadas do catolicismo irlandês, aliou-se a estas forças para
com elas formar a mentalidade de inúmeros católicos. Em
algumas correntes do pensamento católico infiltrou-se a
idéia de que o ideal humano consistiria em abster-se das
atividades sexuais. Certas devoções a Nossa Senhora, por
exemplo, dão a impressão de que o principal motivo de sua
glória consista na preservação de sua virgindade física, e não
porque fora ela um sublime exemplo de fidelidade: "ouviu a
palavra de Deus e a pôs em prática" (Lc 8,21). Não raro,
também, os santos são apresentados como pessoas
"angelicamente puras" desde a infância. A "literatura
popular" em torno da vocação encorajou a idéia de que o
celibato consagrado e a virgindade são estados de vida mais
"elevados" que o matrimônio principalmente porque envol-
vem a abstenção de qualquer contato sexual.
É provável que uns poucos Pastores protestantes ainda
fulminem do alto do púlpito a "luxúria". Talvez algumas
freiras ainda endossem em suas escolas as críticas suscitadas
por uma superiora encarregada de muitas centenas de jovens
alunas. Solicitada a adotar o livro de Von Hildebrand: "Em
Defesa da Pureza", uma das primeiras obras católicas
modernas que procuraram enfrentar a questão matrimonial
ressaltando os aspectos positivos do sexo e colocando-o em
relação com a virgindade consagrada, disse ela muito
desenvolta: "Nada sei sobre isso e nem quero saber". Nossos
pais e educadores estavam imbuídos desta mentalidade, que
provocou semelhantes fenômenos. Razão por que nós
também, por influxo deles, nascemos impregnados, até certo
ponto, nesse clima de negativismo. Por conseguinte, a maior
parte da nossa geração dificilmente consegue evitar o
pensamento, consciente ou não, de que para nós melhor
seria, moralmente falando, "não ter vida sexual", para
usarmos o título de um livro atual e muito útil, escrito por
Richard Hettlinger: Living with Sex: The Student's Dilemma
(New York: Seabury Press, 1966).

O mundo de hoje sofre uma verdadeira inundação "do sexo".
Os cartazes exploram cada vez mais clamorosamente a
atração sexual, fomentando a idéia de que o objetivo da vida
é aumentar o próprio poder de sedução usando o melhor
sabonete, o perfume mais suave ou o mais eficaz
desodorante. "A filosofia do playboy" propunha que a mais
fundamental característica do bem viver consiste no uso tão
freqüente quanto possível da própria capacidade sexual.
Estudos existem, como os de Kinsey e Masters, que analisam
cientificamente o comportamento sexual, normal e anormal,
cujas conclusões recebem a mais ampla divulgação. Revistas
e livros destinados a um público de classe média descrevem
e debatem a vida sexual no matrimônio e fora dele. Filmes,
artísticos ou pseudo-artísticos, encaram o problema com
desinibição cada vez maior. Não podemos fechar olhos e
ouvidos diante disso tudo, seja que nos consideremos
culpados, seja inocentes, no que diz respeito às nossas
reações perante estes multiformes estímulos.
Além disso, nesta época pós-freudiana, é difícil escapar do
influxo da hipótese atualmente em voga segundo a qual
ninguém pode gozar de boa saúde, ser verdadeiramente
homem, desenvolver-se e realizar-se plenamente, se
reprimir os próprios instintos sexuais. Na divulgação dos
princípios freudianos, que não raro foram alvo de equívocos
e de falsas interpretações, colocou-se a repressão das
atividades sexuais físicas no mesmo plano da repressão da
sexualidade como dimensão da pessoa humana, e as
demonstrações de Freud em torno da conexão entre as
dimensões da pessoa humana e as perturbações mentais
foram aplicadas a toda e qualquer abstenção das faculdades
sexuais.
Do mesmo modo, a palavra "sexo" deixou de significar
apenas "uma peculiaridade do macho ou da fêmea, ou coisas
que distinguem o macho da fêmea" e passou a incluir "todas
as coisas relacionadas com a satisfação ou reprodução sexual,
e em especial a atração que exerce um sexo sobre outro".
Mas este sentido assim ampliado já se tornou de novo
insuficiente, pois, em nossa cultura popular, a palavra "sexo"
significa em primeiro lugar o ato sexual (exemplo típico
disso é o recruta que escreveu a palavra "ocasionalmente"
em vez de "masculino" no espaço do formulário reservado à
referência do sexo). Por conseguinte, os aspectos físicos da
sexualidade humana adquiriram extraordinária importância,
e o sexo se tornou algo impessoal, uma espécie ds remédio
para certos psiquismos doentios e uma fonte de prazer para
indivíduos sadios. Insistem ainda os expoentes da cultura
moderna que o sexo, em sentido impessoal, é necessário
para a salvação terrena, ao passo que a religião e os
condicionamentos de outrora apresentam-no como um
perigo para a salvação eterna. Ninguém se admira que tais
contrastes suscitem problemas.
Estes problemas são ainda acrescidos pelas idéias confusas
referentes ao amor romântico, em voga na sociedade
moderna. O amor romântico parece assumir proporções
cósmicas, qual força impessoal fadada a subjugar o homem, a
ponto até mesmo de destruí-lo, como os heróis da lenda de
Tristão e Isolda. Tal conceito mantém-se muito vivo ainda
em nossa cultura, e para ele apelam todos os que se deixam
arrastar pelas paixões. O "amor" justifica tudo, e o povo
identifica "apaixonar-se" com uma grande variedade de
impulsos, inclinações e sentimentos. Estas idéias sobre o
"amor" aparecem entrelaçadas com outras referentes ao
sexo, sem atingir, porém, uma real integração. A famosa
caricatura Playboy, que descreve um casal em apaixonado
amplexo, e refere estas palavras do rapaz à jovem: "Por que
falar de amor em um momento como este?" Resume toda a
temática playboy, segundo a qual o amor romântico não é
absolutamente indispensável para a satisfação sexual, e que
somente um sentimentalismo sofisticado poderia sustentar
tal hipótese. Mas, ao mesmo tempo, canções populares,
filmes, e romances continuam a encorajar o "Jovem Sonho
de Amor". Destarte, não apenas nos debatemos entre duas
mentalidades opostas: "o sexo é um bem" e "o sexo é um
mal", mas entre duas idéias: "O amor é tudo", e o "amor é
uma desilusão sentimental".
As Igrejas procuram enfrentar esta situação, fazendo notar
que o verdadeiro amor não se confunde com
sentimentalismos românticos, e que o sexo é realmente um
bem quando retamente usado na vida matrimonial;
procuram também ajudar seus membros a compreender e a
pôr em prática esta doutrina. Nas últimas décadas, a Igreja
Católica tem se esforçado em dar mais ênfase à idéia de que
o sexo não é somente um bem, mas também uma coisa
santa, quando se faz reto uso de suas funções na vida
matrimonial para cooperar com a obra criadora de Deus,
dando vida a novos seres humanos. A tendência mais
recente é a de sugerir que o sexo alimenta o amor recíproco
do casal. Mas estes aspectos não oferecem soluções para o
problema sexual dos solteiros, dos separados e divorciados,
dos casais que julgam não terem mais condições para criar
outros filhos, assim como para os que não conseguiram
superar o próprio sentimento de culpa em relação ao prazer
sexual. Em verdade, a nova maneira de tratar a questão não
resolve todos os problemas.
O motivo deste insucesso não está em que tais ensinamentos
deixem de encorajar o sexo, na medida do possível, mas
explica-se pelo fato de assumirem a noção abstrata de sexo,
que predomina em nossa sociedade. Talvez esta atitude se
deva, em primeiro lugar, a uma apresentação terrena e
cabalmente pragmática do sexo como realidade física e
biológica, que "faz parte do plano divino". Eis um exemplo:
"visto que as criaturas humanas são preciosas para Deus, ele
deseja que um homem gere filhos. Visando garantir a
perpetuidade da raça humana, tornou prazeirosa a união
física entre homem e mulher no matrimônio. O corpo
feminino excita o homem. Eis o plano de Deus". Em
segundo lugar, pode ser fruto de uma apresentação do ato
sexual como realidade que se torna sublime e sobre-humana
no matrimônio. Eis outro exemplo: "Embora muitas vezes
repetida, a união sexual continua sendo, para um número
ilimitado de casais, o que foi desde o início: fonte
inextinguível de doçura e benção espiritual; nascente quase
milagrosa e sublime de prazer, que leva o casal a se
entrelaçar em mútuo amor". Estas citações de livros
publicados nos últimos anos representam as duas correntes
que caracterizam a maioria dos escritos e do ensinamento
popular católico em relação ao sexo e ao matrimônio. Seja
que o consideremos como realidade simplesmente biológica,
seja que o encaremos por um motivo de sublimação, o sexo
será sempre uma realidade inferior ou superior à esfera do
comportamento especificamente humano.
Mas a questão suscitada pela sociedade hodierna é
precisamente a de saber como humanizar o "sexo", como
elevá-lo ao nível da liberdade e da responsabilidade humana,
como atribuir-lhe função positiva em cada indivíduo, casado
ou solteiro. Várias influências interdependentes possibilitam
atingir este objetivo. Primeira, e talvez a mais importante, é
a que nos oferecem as teorias psicológicas. Inepta seria nossa
compreensão do Freudianismo, se o considerássemos como
uma teoria que reduz o amor erótico e afetivo à sexualidade
genital. A teoria psicológica moderna parece preferir afirmar
que a sexualidade é um impulso que atua não somente na
esfera genital, mas em todas as áreas do comportamento
humano, mesmo quando este se relaciona apenas
indiretamente com as funções sexuais. Tal campo carece
ainda de qualquer determinação, e não se conhece
claramente que sentido teriam as "funções sexuais" para a
pessoa humana, além da esfera biológica. Considera-se, en-
tretanto, esta esfera como um campo que abrange todo o
comportamento afetivo e toda conduta em busca do prazer,
incluindo, por conseguinte, uma verdadeira gama de atitudes
sexuais, desde as mais degradantes até as mais sublimes. Em
outras palavras, é uma força que constitui propriamente um
aspecto integral de todo impulso afetivo da pessoa humana,
possível, portanto, de ser humanizada e personalizada.
Além disso, o ideal do amor cortesão envolvia aquilo que
modernamente chamaríamos de "relações interpessoais"
entre dois que se amam, embora excluísse teoricamente a
relação sexual. Tal coisa foi se tornando, aos poucos,
familiarmente aceita qual desejável pressuposto ao
matrimônio, e influiu no desenvolvimento de idéias, sobre o
comportamento sexual e o matrimônio, mais centralizadas
na pessoa. A despeito da verdadeira obsessão pelo sexo, que
se apoderou da cultura moderna, ou talvez em razão da
intolerável opressão que ela exerce, parece estar em via de
desenvolvimento uma apreciação dos aspectos
verdadeiramente humanos da sexualidade. Os assim
chamados matrimônios "entre colegas" têm sido modelos
que encontram mais aceitação, particularmente entre jovens
de nível universitário, e as relações sexuais pré-matrimoniais
vão se centralizando cada vez mais na "pessoa humana".
Além disso, não constatamos apsnas uma inundação de
imagens "sexy", escritas ou filmadas; há um número
incontável de filmes e romances, que, mediante uma
neurótica idéia de "salvação pelo sexo", procuram encontrar
o sentimento da sexualidade humana e se esforçam por
integrá-la em esquemas mais amplos de valores. Tanto na
vida real quanto na esfera da imaginação, aquilo que muitos
críticos cristãos julgam simples revolta contra a moral
tradicional, em muitos casos não passa de sublimação contra
algo que se apresenta como uma moral vazia de conteúdo, e
uma busca sincera do sentido real da vida.
Considere-se ainda que os membros de muitas Igrejas estão
procurando, com o auxílio da psicologia moderna e de
outras ciências sociais, entender o verdadeiro alcance do
código de moral cristã no que diz respsito ao
comportamento sexual e suas aplicações na sociedade atual.
Entre os católicos, vão se multiplicando os debates em torno
da sexualidade, vista sob um prisma mais humano, sobretudo
quanto à limitação da prole, e, mais recentemente, quanto à
disciplina relativa ao celibato do clero. Muitos cônjuges
começaram a tomar parte nestes debates. Não resta dúvida
de que a tonalidade, ou pelo menos uma das cambiantes que
caracterizam os ensinamentos do Vaticano II, no que diz
respeito ao matrimônio e às relações sexuais no matrimônio,
são assaz diferentes e muito mais genuinamente humanas do
que o clima que impregna a Encíclica sobre o matrimônio
de 1930 e grande parte da literatura católica, mesmo atual.
Mas, além destas tendências que dizem direta relação com o
conceito de sexo como tal, o progresso que o Vaticano II
operou no pensamento cristão, fornece o contexto para
desenvolvermos nosso estudo acerca da doutrina atual da
Igreja referente ao sexo, como também para examinarmos as
suas conseqüências práticas. Pois, o principal obstáculo que
impede uma caminhada rápida em busca de uma
compreensão positiva da função do sexo no amor, e da
função do amor na vida humana, é a idéia impessoal e
isolada do sexo como se fosse uma conquista definitiva de
um vasto conjunto de outras atitudes que influenciaram o
pensamento cristão ao longo dos séculos. Se examinarmos
nosso próprio sentir em relação ao sexo. percebê-lo-emos
entrelaçado com idéias sobre a finalidade da vida, sobre o
pecado, assim como com idéias a respeito do amor, do
matrimônio, da função do homem e da mulher na vida
matrimonial e na sociedade. O mesmo acontece com os
ensinamentos que direta ou indiretamente influenciaram
nossas idéias e nossos sentimentos.

Devido a vários fatores históricos, próximos e remotos,
certas praxes cristãs pareciam inculcar que a finalidade da
vida era apenas a de conseguir a salvação no céu, em vez de
insistir na necessidade de compartilhar a obra de Cristo
destinada a reunir os homens em comunhão de amor e de
vida com Deus e com o próximo. Tais praxes talvez
salientassem que o pecado consiste primariamente em uma
transgressão material, mais ou menos séria, de mandamentos
arbitrários, em vez de ser a recusa do amor divino. Pareciam
afirmar que nosso corpo fosse a parte "inferior" ou "animal"
da natureza, perigo constante para a eterna felicidade de
nossas almas, e não um aspecto essencial do nosso "eu", que
possibilita nossa presença junto ao próximo e nos dá o poder
de comunicar-nos com ele. Neste contexto, era difícil des-
cobrir qualquer sentido ou escopo positivo na sexualidade
além da finalidade de gerar filhos e de garantir uma
comunidade familiar estável, propícia à educação da prole.
Todas as outras manifestações ou ressonâncias do sexo,
desde que reconhecidas como tais, apresentavam-se como
um embaraço, um tormento, um "mistério", ou tudo isso ao
mesmo tempo.
Mas os teólogos e os exegetas vêm trabalhando, há vários
anos, para libertar o povo cristão destas interpretações
simplicistas e unilateralmente enfáticas, fruto de influxos
culturais ou filosóficos. Este trabalho, corroborado pela força
do Espírito Santo no pensamento e na vida dos cristãos, já
propicia uma nova visão da vocação humana e cristã
centralizada no amor: o amor de Deus nos chama e nos
proporciona os meios de corresponder; tal resposta há de ser
dada por nós, não como "almas", « sim integralmente, como
"pessoas", amando-nos mutuamente, produzindo obras de
amor, construindo uma comunidade de amor.
Esta visão nos faz tomar uma atitude renovada perante a
sexualidade humana, encarando-a como um elemento da
natureza que contribui para a vocação do homem ao amor,
tanto do casado como do solteiro. Mas nesta visão urge
renovemos nossas atitudes, buscando suas implicações e
exigências. Pois, ocioso seria supor que poderíamos ensinar
os homens a saírem de si mesmos e a se amarem
reciprocamente sem provocar desgaste psíquico (e até
mesmo desastre social), se não lhes oferecermos alguma
compreensão do amor, de seus postulados e da função da se-
xualidade no amor. Na cultura moderna, as pessoas não
conseguem mais se amar como espíritos desencarnados;
devemos, pois, patentear-lhes que o único modo de
conseguirem o amor, em sentido cristão, é saber amar como
pessoas humanas completas, como pessoas providas de sexo.
Os autores deste livro estão, pois, convencidos da urgência
de refletir sobre a vocação cristã ao amor e a função da
sexualidade nesta vocação, sem esperar que teólogos e
sociólogos completem seus tratados que poderiam, talvez,
oferecer soluções abalizadas a esse respeito. O povo não
pode parar de viver e de amar, na expectativa destas
soluções — se é que um dia chegarão a ser formuladas em
sentido definitivo. O povo tem de enfrentar o dilema da vida
sexual no mundo de hoje, e este dilema só terá solução se
lhe anontarmos uma meta positiva para a própria sexua-
lidade. Parece, pois, um dever participarmos aos outros,
certas intuições que conseguimos, na esperança de que
sejam úteis e despertem ulteriores reflexões tanto por parte
dos leitores em busca de diretrizes para o amor, quanto por
parte dos peritos que procuram melhores soluções para os
problemas que trataremos.
Por isso, na primeira parte do livro, indicaremos
brevemente a harmonia que existe entre as intuições da
psicologia moderna em torno da fundamental importância
do fator afetivo na psique humana, e a visão cristã da posição
central do amor nos desígnios de Deus. Passaremos, em
seguida, a considerar as qualidades do amor maduro e
responsável, os aspectos do desejo de estar com o outro e de
viver pelo outro, de sair de si mesmo para ir ao encontro do
outro, de se engajar em obras de amor pelo bem do outro.
Neste ponto, esperamos demonstrar a identidade essencial
entre a tarefa humana de crescer como pessoa, dentro da
comunidade e através dela, e a tarefa cristã de amar o
próximo como Cristo nos amou.
Examinaremos, em seguida, a função da sexualidade no
amor, como pessoas dotadas de sexo, como homens e
mulheres, e o trabalho necessário para colocarmos nosso
sexualismo a serviço do amor. A esse respeito, sugeriremos
que a norma no comportamento sexual moral pode se
exprimir mais clara e persuasivamente em termos de amor
do que como "prazer deliberadamente admitido". Mais
adiante, considerando a pessoa humana como um todo
formado de corpo e espírito, e o papel do corpo nas relações
humanas, teremos talvez condições para demonstrar a
validade do ideal cristão que só permite o ato e as
intimidades sexuais no contexto matrimonial.
A segunda parte será dedicada, em primeiro lugar, ao debate
em torno da capacidade de agir por amor —
desenvolvimento de uma consciência cristã adulta cada vez
mais sensível aos valores humanos, consciência esta que há
de ser fomentada pelo agir conforme a lei do amor — e a
função da sabedoria humana, da Sagrada Escritura, da Igreja
e das suas leis na formação e no exercício da consciência.
Passaremos, depois, a considerar os aspectos complemen-
tares do crescimento no amor — o cultivo das atitudes e das
relações do amor — assim como as linhas de uma vida
afetiva cristã.
A terceira parte será dedicada à consideração dos três
principais estados da vida cristã — do solteiro, da pessoa
consagrada pela virgindade e pelo celibato, e dos casados —
à luz da vocação cristã: crescimento no amor, agir inspirado
pelo amor. Dedicaremos também nossa atenção às questões
controversas relativas ao celibato, à limitação da prole, ao
aborto, às leis e aos processos matrimoniais, à estrutura da
vida familiar. Finalmente, apresentaremos algumas soluções
para o urgente problema da "educação sexual".

2. AMOR E MATURIDADE

Se pudéssemos imaginar um computador capaz de registrar
nossas mais profundas preocupações, cônscias ou incônscias,
tal aparelho iria quase com certeza descobrir que nossas
preocupações mais profundas são aquelas que geralmente
chamamos de "amor" e "ação". "Sou amado e estimado"?
"Minhas relações com o próximo são aquelas que eu gostaria
de ter"? Ou ainda: "Estou conseguindo meus objetivos, estou
realizando alguma coisa?" Eis as principais questões que
colocamos para nós mesmos, em nosso subconsciente, e,
muitas vezes, na própria superfície de nossa consciência.
Na terminologia clássica do pensamento ocidental, estas
duas preocupações centrais da natureza humana recebiam o
nome de "concupiscível" e "irascível" e se concebiam como
forças a que estamos "sujeitos", isto é, que nos impulsionam
e tendem a subverter nossa razão e livre vontade, em vez de
constituírem forças positivas para o desenvolvimento da
atitude humana. Mas os psicólogos modernos falam de
impulsos "afetivos" e "agressivos", encarando-os como duas
formas de energia psíquica, colocadas à disposição da pessoa
humana em seu conjunto. Estes impulsos devem, realmente,
ser canalizados para uma saída aceitável e criativa, se a
pessoa quiser desenvolver sua potencialidade na vida social;
mas, se reprimidos ou sufocados, provocarão distorções
emocionais. Freud não notou nenhuma distinção marcante
entre esses dois impulsos; para ele, a força impulsora central,
a energia psíquica catalisadora da pessoa humana é a "libido",
o incitamento ao amor, à realização de si mesmo através do
amor (considerado, em certo sentido, como amor sexual). O
impulso agressivo ou executório seria apenas um aspecto
daquele impulso primordial.
Esta intuição corresponde substancialmente aos dados da
experiência. Agimos "agressivamente", no estrito sentido do
termo, para nos defender a nós mesmos, as pessoas, as
coisas, as idéias, e as causas que encarecemos. Somos
agressivos também quando tratamos de remover obstáculos
ao conseguimento de bens necessários para nós e para os
outros. A criança, que bate em outra para tomar-lhe o
brinquedo, ou para recuperar o seu, o soldado que combate
para defender seu país, o estudante que luta por uma nova
idéia, o engenheiro que resolve problemas técnicos, são
todos indivíduos que superam obstáculos para preservar ou
desenvolver a vida, em sentido lato. Em sentido mais amplo
ainda, são pessoas que procuram conquistar sempre mais
plenamente a vida para si mesmas e para os outros; o
obstáculo a superar é um impulso do aspecto executório, o
qual por sua vez, é um aspecto do amor para consigo e para
com os outros. Por isso, a psicologia moderna, iluminando a
nossa experiência, parece apontar-nos um caminho que nos
leva a conhecer a natureza humana cm termos mais
conformes com a Escritura do que a clássica distinção entre
corpo e alma, paixão e razão, que herdamos dos gregos, e
que, por longo tempo, tiveram grande influxo em nosso
pensamento. A S. Escritura considera o homem como um
todo formado de corpo e alma, fala do "coração" como do
centro de sua personalidade — a um tempo emoção,
vontade, mente, impulso vital de todo o seu ser psíquico e
físico. Na S. Escritura, é o nosso "coração" que deve se
converter a Deus, que há de se reformar de tal forma que
possamos amar a Deus e ao próximo de maneira humana,
com "coração de carne", e não com "coração de pedra" (Ez
36,26).
Diz-nos também a S. Escritura que Deus é amor e que Cristo
é a manifestação do amor de Deus entre nós. Jesus nos
ensina e nos torna capazes de amar a Deus e ao próximo
como ele nos amou. Lemos no Livro Sagrado que o impulso
vital e executório da vida e da ação cristã deveria ser o amor
de Deus e do homem, e que o Espírito Santo nos foi dado
para nos fazer amar como Cristo nos amou.
Se isso é verdade, não pode parecer estranho que Deus, ao
criar o homem, o tenha feito de tal forma que o amor — por
mais ambíguo que seja em sua concretização individual —
constitua o dinamismo central, a mola propulsora da
atividade humana. Se algo houver de falho na natureza do
homem, deverá ser atribuído à orientação e à qualidade
deste impulso amoroso, não ao impulso em si mesmo. Por
isso, o principal papel da vida cristã será o de organizar, di-
rigir e fortalecer este impulso, não de suprimi-lo; de permitir
que o amor, infundido pelo Espírito Santo em nossos
corações, permeie, dirija, revigore este impulso em todas as
suas manifestações, não de procurarmos nos livrar dele. Em
outras palavras, Deus não quer que evitemos ou
negligenciemos nossas preocupações centrais referentes ao
amor e à ação; muito pelo contário, deseja que amemos e
ajamos em plenitude, com eficiência: "a glória de Deus é o
homem que vive em plenitude" (S. Irineu).
Em certas camadas do cristianismo, pelo menos nas esferas
populares, tem-se a impressão de que Deus seja contrário ao
nosso ser plenamente humano. Deus parece interessado nas
"almas" e não na pessoa humana integral; parece preocupado
apenas em que obedeçamos às suas leis, e não em que ame-
mos a ele e aò próximo e utilizemos nossa vida para fazer o
bem. Ensinaram-nos que Jesus se fez homem e morreu para
pagar a dívida que contraímos com Deus por nossa
desobediência, que agora podemos receber a graça que nos
possibilita alcançarmos a felicidade perene no paraíso, que,
porém, nos encontramos sempre em perigo de perdê-la com
uma nova desobediência. Destarte, forjou-se a vida cristã
como sendo algo impessoal, destinado a evitar pecados me-
diante a omissão de obras pecaminosas, não uma realidade
voltada para a ação, em mútuo auxílio, visando obter a
plenitude da vida. Razão por que ninguém admira que ela se
tenha tornado sempre mais irrelevante para o homem
moderno. O homem moderno, hoje, mais do que em
qualquer época passada, vê com clareza que seu destino é o
amor e a ação.
Chegamos à conclusão de que este modo de mostrar a vida
cristã foi conseqüência de apreciações simplistas e
unilaterais. A tendência atual é apresentar a mensagem cristã
mais em harmonia com o Novo Testamento, cuja orientação
a serviço do amor e da ação podemos agora observar em
perspectivas cada vez mais profundas. Deus quer unir-nos a
ele e ao próximo em uma comunidade de amor e de vida.
Cristo veio "para que os homens possuíssem a vida, e a
possuíssem com abundância" (Jo 10,10). Ele veio para nos
tornar capazes de amar a Deus e ao próximo, para
desenvolvermos todas as nossas possibilidades humanas de
vida e de amor, e assim edificarmos o Reino de Deus.
O pecado consiste, portanto, na rejeição do amor de Deus e
do próximo, e se manifesta na recusa de agir por amor e na
vontade de agir sem amor. Cristo veio libertar-nos das
cadeias do nosso egocentrismo, da nossa incapacidade de
amar. Ele morreu e ressuscitou para elevar nossa natureza
humana de seu estado "carnal", isto é, fraco e pecaminoso,
até a presença de Deus, e fazer-nos participar da sua própria
plenitude de vida e amor. Nós o seguimos, e continuamos
sua obra, precisamente amando e vivendo de tal forma que
possibilite desenvolver a vida em nós e nos outros, e aeindo
para unir todos os homens com Deus e entre si através do
amor.
Causa ainda surpresa a muitos católicos, mesmo após o
Concílio Vaticano II, ouvir dizer que "aquilo que - a Igreja
ensina", ou ensinou, possa ser de qualquer forma imperfeito
e causa igualmente surpresa a muitos protestantes que haja
católicos dispostos a admitir semelhante asserção.
Naturalmente, "aquilo que o povo pensa que a Igreja
ensina", ou ensinou, em torno de certos tópicos, pode
incluir semi-heresias ou pias exagerações inculcadas outrora
por certos pais ou professores mal informados, como
também pode ser fruto de opiniões teológicas proclamadas
como se fossem Evangelho, pela imprensa ou do alto dos
púlpitos. Mas, à medida que tomamos consciência dos
efeitos da evolução da Igreja em seu contato com as culturas
de várias épocas e lugares, deveríamos acaso surpreender-
nos ao constatar que, em certas regiões, o pensamento
oficial das Igrejas em comunhão com o sentir comum dos
cristãos, tenha inconscientemente adaptado o Evangelho a
inúmeros preconceitos ideológicos e sociais? O racismo é o
exemplo mais atual e embaraçante: quantos católicos ou
protestantes de determinadas regiões tiveram até hoje
oportunidade de ouvir sermões sobre o pecado da discri-
minação racial? Por isso, assim como estamos agora
purificando e aperfeiçoando nossa compreensão das
exigências evangélicas neste campo, o mesmo podemos
fazer no que diz respeito a outras esferas do pensamento
cristão.
Tal afirmação não vem absolutamente negar a presença e a
inspiração do Espírito Santo na Igreja; significa apenas a
aceitação de um fato muitas vezes acentuado pela "Lúmen
Gentium": a Igreja é uma comunidade "peregrina",
constituída de século em século por homens possuidores de
uma visão do mundo que assume aspectos peculiares com o
passar dos tempos. Vivendo em ambiente diferenciado
cultural e socialmente, os cristãos não puderam deixar de re-
ceber a influência destes fatores quanto ao modo de
conceber e praticar a doutrina de Cristo. Verdade é que não
podemos jamais separar o Evangelho "genuíno" da maneira
humana de entendê-lo; entretanto, sempre nos é lícito
procurar compreender e exprimir o ensinamento e as
exigências de Cristo com mais clareza, iluminados pelo
Espírito Santo e pelos esclarecimentos que nos oferece o
progresso humano em matéria de auto-compreensão e de
cultura.
Este trabalho de repensar o Evangelho e de progredir em sua
compreensão, de apresentá-lo de maneira compreensível a
pessoas possuidoras das mais variadas culturas, foi sempre
uma preocupação da Igreja Católica Romana, assim como de
outras Igrejas cristãs. Mas parece que semelhante obra
tomou ritmo acelerado nas últimas décadas, talvez porque ti-
vesse parecido excessivamente lenta no passado, e também
porque o Concílio Vaticano Segundo, com toda a sua
publicidade e suas conseqüências, fez com que quase todos
tomassem consciência da necessidade de "renovação" e
percebessem o trabalho que a Igreja católica e outras Igrejas
cristãs estão empreendendo neste sentido.
Tal renovação, já formulada nos documentos conciliares,
imprime à vida católica orientação bem diferente daquela
geralmente tida como "católica" nos últimos séculos. Os
estudos em torno da educação católica passada e atual,
levados a termo por Greeley Rossi e pelo grupo de Notre
Dame, mostraram com clareza que o ponto axial do ensino
católico não fora o amor de Deus e do próximo ordenado
por Cristo. Os documentos conciliares restauram o amor no
centro dinâmico da vida cristã, que lhe é próprio, e
acentuam com veemência a ação que este amor requer na
sociedade.

Diz a "Gaudium et Spes":

"Relembrando as palavras do Senhor: 'nisto reconhecerão
todos que sois meus discípulos, se vos amardes uns aos
outros' (Jo 13,35), nada desejará mais ardentemente o cristão
do que servir ao homem do mundo atual com crescente
generosidade e eficácia. Por isso, aderindo fielmente ao
Evangelho, e beneficiando-se de suas riquezas, em união
com todos os que amam e praticam a justiça, os cristãos
assumiram uma tarefa gigantesca a ser executada nesta
terra... Nem todo o que diz 'Senhor, Senhor' entrará no
reino dos céus, mas os que fazem a vontade do Pai e lançam
mãos à obra com ardor. Ora, o Pai deseja que reconheçamos
Cristo, nosso irmão, em todos os homens e o amemos
realmente com palavras e fatos. Dando testemunho da ver-
dade, comunicaremos aos outros o mistério do amor do Pai
celeste".

Se aceitarmos o amor como o ponto axial da vida cristã, eis a
primeira pergunta que deveremos nos colocar: que é
"amor"? Os pensadores modernos, sugerindo respostas a essa
questão, refletem com tonalidades diferentes a doutrina da
Escritura segundo a qual o amor requer prontidão para agir
pelo bem alheio: um relacionamento só é verdadeiro amor
quando se transforma em comunicação de vida. "...Não
amemos com palavras ou discursos, mas com fatos e em
verdade" (1Jo 3,18), ou, como diz um velho ditado hebraico,
"o amor tudo conquista, mas amor com talharim é ainda
melhor".
Tanto a S. Escritura como o pensamento moderno indicam,
pois, como deveríamos procurar dirigir e desenvolver todo o
nosso impulso afetivo para amadurecermos como pessoas
humanas, incluindo não somente o aspecto "afetivo", mas
também o caráter "agressivo". Entretanto a definição
tradicional do amor em sentido cristão parecia excluir o
elemento "afetivo". Por isso, cumpre indagarmos se esta
exclusão é válida. Pois, se não o for, então o amor humano
não se difere do amor cristão; é o mesmo amor humano que
se aperfeiçoa até alcançar a plenitude do humanismo. E, se
isso é verdade, os cristãos, os judeus e os humanistas podem
se irmanar em um trabalho comum para ensinar o povo a
amar, e, assim fazendo, partirem em busca de soluções não
apenas para os urgentes problemas do "sexo", mas também
para as questões, igualmente urgentes, relativas ao uso da
agressividade humana no mundo atual, orientando-a não
para objetivos que destroem, mas para metas que constroem.

O amor trata o outro como pessoa

O conceito de Martin Buber da relação Eu-Tu como
verdadeira relação de amor entre pessoas, em contraposição
ao relacionamento Eu-Coisa, no qual uma pessoa trata outra
(ou ambas reciprocamente se tratam) como coisas, foi talvez
empregado sem a devida consciência de suas profundas
conseqüências para a moral cristã. Diz S. Agostinho que o
pecado consiste em usar aquilo de que deveríamos gozar, e
em gozar daquilo que deveríamos usar. A distinção de Buber
aplica este mesmo critério ao amor e ao uso das coisas no
serviço de Deus. Tratar o outro como "Tu", como pessoa,
significa respeitá-lo e aceitá-lo como ele é, prescindindo da
resposta atual ou virtual que ele possa dar; significa estar
preparado a se alegrar por sua individualidade atual e por
aquilo que Deus quer que ele seja; significa o desejo de
facilitar o desenvolvimento de seu ser e de favorecer o seu
caminho para a autenticidade. Tratar outra pessoa como
"coisa" é perguntar: "Como posso dela me servir para a
minha própria exaltação?" e depois partir para a ação
concreta.
Apliquemos esta norma às diversas situações humanas e
entenderemos sua validade. A mãe decidida a fazer sua filha
obter, na sociedade, aquele sucesso que ela nunca alcançou,
está tratando sua filha como coisa, como instrumento a
serviço de seu próprio egoísmo; não age como mãe amorosa,
muito embora esteja convencida de ser uma "serva" que se
sacrifica altruisticamente por sua filha. Um homem e uma
mulher, que se servem um do outro apenas para o prazer
sexual, estão se usando reciprocamente como coisa, ainda
que acreditem ser dois amantes. O benfeitor, que procurasse
dominar seus beneficiados, estaria servindo-se deles para
satisfazer seus próprios instintos.
O amor, ao contrário, procura libertar o outro, deixando-o
viver e se- desenvolver, ajudando-o a realizar o direito de se
tornar plenamente pessoa. É assim que Deus nos ama,
criando-nos como pessoas respeitando a vontade livre, que
nos deu com tanta plenitude, sem jamais violentá-la. Seu
amor não é escravidão, é liberdade. Convida cada um de nós
a uma relação pessoal com ele, na "gloriosa liberdade dos
filhos de Deus" (Rom 8,21). E é assim que devemos procurar
amar-nos uns aos outros.

Amor significa abertura em doar e receber:
generosidade e gratidão

Quem ama não só deseja doar e prestar serviços, mas
também, de qualquer modo, oferecer algo de si mesmo,
desenvolver a pessoa do outro, animá-la, ajudá-la a se tornar
mais autêntica. Todos os que se apaixonam, sentem o desejo
de dar tudo o que a pessoa amada deseja — flores, doces,
alimentos, bailes — mas, acima de tudo, almejam
comunicar-se com ela, pois a comunicação mediante
palavras, gestos e coisas não passa de um sinal da doação de
si mesmo. Quem já se apaixonou, conhece o irresistível
sentimento de gratidão que sentimos quando a pessoa amada
aceita nossas dádivas. Tudo isso se verifica, embora
atenuadamente, em todas as outras relações afetivas. Por
exemplo, pais que nutrem especial amor por seus filhos e
filhas adolescentes, conhecem profundamente este desejo,
tantas vezes contrariado e frustrado, de doar tudo que
podem a seus filhos, e experimentam uma viva gratidão
quando estes aceitam e correspondera
Verdade é também que quem ama mostra-se receptivo em
relação a tudo que o outro deseja dar, e grato pelo dom que
recebe. Diz S. Tomás que um dos aspectos da caridade cristã
é a aceitação do amor alheio; isto se verifica realmente em
todos os que amam. O desejo de dar e de nunca se pôr na
posição de quem recebe, é uma forma de prodigalidade
egoística, não de amor; ninguém gosta de ser amado assim.
Deus, que é amor, é generosidade infinita; tão generoso é
ele, que, através de Cristo, colocou-se na posição de quem
recebe. Podemos, realmente, doar a Cristo, servindo-o em
nosso próximo. Podemos colaborar com ele na realização de
seus planos de amor para a humanidade. Podemos doar-nos
a ele e constatar que lhe agrada nossa oferta.
Este duplo aspecto do amor corresponde àquilo que alguns
psicólogos denominam "cambiantes da vontade e do
impulso afetivo": domínio e submissão, dar e receber, ser
sujeito ativo e passivo da ação. Todos conhecemos pessoas
que se deliciam em mandar e tiranizar, e indivíduos que
gostam de servir; homens que desejam ser adorados e outros
cuja felicidade é adorar. Estes extremos pertencem à nossa
própria constituição; domínio e submissão, quando
oportunamente exercidos, desempenham um papel de
equilíbrio em todas as relações afetivas. No amor normal,
dar e receber são inseparavelmente recíprocos. Pouco
importa indagar quem é que dá ou recebe o beijo; quando
dois se beijam, cada um dá e recebe, sem pensar em
prioridade. Isto se verifica profundamente na relação sexual
quando realizada por amor, pois tanto o homem quanto a
mulher não procuram apenas o prazer recíproco, mas um
deseja ser causa do prazer do outro, dominar e ao mesmo
tempo ser dominado.


Amor é doação de vida

Naturalmente, em teoria, cada criança deveria ser "filho do
amor", no sentido próprio do termo: fruto de uma
verdadeira relação de amor entre os pais.
Mas nem sempre é assim. Nossa existência não depende,
necessariamente, de um amor, a não ser do amor de Deus,
que cria uma nova pessoa. Mas ele nos criou de tal forma
que, para crescer e desenvolvermos até o amadurecimento,
precisamos do afeto tanto quanto do amor divino. As
crianças se tornam doentias e morrem de inanição se não as
nutrirmos c não cuidarmos dc suas necessidades físicas.
Embora não existam ainda estudos sobre a função do amor
no desenvolvimento humano, a quotidiana experiência já
indica que o amor é indispensável para o crescimento
normal do homem. Daniel A. Prescott, depois de definir o
amor em termos de simpatia e de interesse de uma pessoa
por outra, propõe seis hipóteses que, na sua opinião, teriam
sido comprovadas pela pesquisa científica: "A sensação de
ser amado pode oferecer a toda criatura humana a base
daquela segurança de que tanto carecemos; possibilita
aprender a amar a si próprio e aos outros; ser amado e amar
torna mais fácil conseguir a formação de grupos; facilita a
identificação com os pais, parentes, professores e
companheiros; ajuda a pessoa a se adaptar em face de
circunstâncias que implicam emoções fortes e dolorosas".
O episódio de Bill Sands, o ex-presidiário que conta sua vida
em My Shadow Ran Fast é o mais comovente exemplo de
amor que vivifica e faz o indivíduo ressurgir de uma vida
emocionalmente morta. A mãe de Sands era sádica, e seu
pai, excessivamente alienado e tímido, não era capaz de
expressar amor. Por isso, chegou ele ao ponto de odiar a
sociedade e a si próprio. O afeto e a confiança que lhe
demonstrou o carcereiro foi o segredo que o fez sair de seu
estado de isolamento. Assim, começou ele o longo caminho
em busca de um genuíno e abnegado humanismo,
rledicando-se a uma obra que visava à recuperação dos
transviados e a impedir que outros descambassem para um
estado de vida sem amor, que transforma o homem em
criminoso.
Como diz o rabino Abraham Heschel: "O homem deve ser
responsivo antes de se tornar responsável". Esta necessidade
de ser amado antes de amar e agir por amor explica a
extrema importância de se exigir que os pais compreendam a
função vital do amor — do marido para com a mulher e de
ambos para com os filhos — no desenvolvimento emocional
da criança. Conselheiros, professores ou assistentes sociais
podem procurar assistir alguém que não recebeu dos pais o
devido amor, mas, só com grande dificuldade, conseguirão
ajudá-lo a sair de seu isolamento e a começar a amar. Ser
amado infunde-nos segurança e autoconfiança, valores
necessários para sairmos de nós mesmos e começarmos a
amar e a agir por amor. Tal amor oferece-nos sucedâneo
para nossa ação e, ao mesmo tempo, incentivo para operar
partindo deste ponto inicial. Isso se verifica especialmente
nas crises de auto-firmação da primeira infância, e se repete
na adolescência (como veremos mais detalhadamente nas
páginas seguintes). Mas, cm toda a nossa vida,
experimentamos alguns dos efeitos libertadores e criativos
do amor. Amar é ter consciência de ser amado pode levar a
uma nova criação do mundo. Em sentido menos dramático,
mas não menos real, cada vez que nos renovamos pelo
amor, parecemos descobrir um novo manancial dc vida, que
restaura nossa capacidade de amar e de agir.
Além disso, somente o amor de um outro por nós —
naturalmente, sem falar da graça do Espírito "que sopra para
onde quer" (Jo 3,8) — é que nos faz descobrir e reconhecer
o amor de Deus. No processo normal do desenvolvimento
religioso de uma criança, o fato de seus pais lhe falarem do
amor de Deus, vai despertando gradualmente nela a
consciência e a descoberta do "Tu" transcendente da pessoa
humana, bem como da necessidade de corresponder ao
"Tu", amando e agindo por amor. Entretanto, sem a expe-
riencia do amor humano — dos pais e dos outros — não
poderia a criança reconhecer o amor de Deus, nem
corresponder-lhe, embora possa ter recebido muita
instrução religiosa e moral. Com efeito, como já começam a
constatar sempre com mais clareza os educadores religiosos,
certa experiência de amor e de comunhão de amor entre
professor e aluno, e entre os próprios alunos, é base
indispensável de toda instrução religiosa efetiva que
pretenda atingir a mente e, ao mesmo tempo, o "coração".
Destarte, através de nossas relações de amor para com Deus
e para com nossos conhecidos é que iniciamos nossa vida de
amor, tornando-nos capazes de amar também os que não
conhecemos e de beneficiados com nosso agir amoroso. "O
bem é autodifusivo", diz o provérbio; assim também o amor.
Quem ama, procura remover obstáculos, libertar,
desenvolver, ajudar todos os seus semelhantes a
conseguirem a plenitude da vida através do trabalho, da ação
e dos desejos, e em todos os modos possíveis. Mas esta
atitude responsável deriva da correspondência ao amor di-
vino e humano que se comunica e se fortalece pela
familiaridade com os outros.

Amor humano e amor cristão

A maioria, porém, não recebemos educação suficiente para
chegarmos à idéia de que o amor, que por lei devemos a
Deus e ao próximo, há de ser plenamente humano, capaz de
englobar o afeto e a ação. O catecismo de Baltimore, por
exemplo, ensina-nos que "para amar a Deus, ao próximo e a
nós mesmos, devemos obedecer os mandamentos de Deus e
da Igreja e realizar obras de misericórdia espiritual e
corporal"; isto é, limita o amor apenas ao campo da ação c da
missão. Mais ainda: a caridade é definida como "a virtude
pela qual amamos a Deus acima de todas as coisas, por sua
majestade, e ao próximo, como a nós mesmos, por amor de
Deus". Assim definida, a caridade não tem a mínima
conotação com a vida afetiva; ao contrário, amar alguém
"por amor de Deus" parece pressupor que não amamos esse
alguém como pessoa, em razão daquilo que ele é.
A idéia de que a caridade, amor infundido em nossos
corações pelo Espírito, é uma realidade muito diferente do
amor humano, teve longa história no pensamento cristão.
Podemos notar uma das primeiras manifestações desta teoria
na Carta aos Romanos de S. Inácio de Antioquia: "Meu amor
terreno (eros) foi crucificado; em mim não há mais ardor
pelas coisas materiais; há, antes, uma água viva que murmura
no meu íntimo e me diz: 'vem para o Pai!' Não sinto mais
prazer em alimentos corruptíveis nem nas alegrias desta
vida: o que desejo é o pão de Deus, aquele pão que é a carne
de Jesus Cristo, o filho de Davi; como bebida, desejo seu
sangue, isto é, o amor incorruptível (ágape).
Esta distinção entre amor humano e ágape foi ulteriormente
acentuada por certos escritores protestantes modernos.
Anders Nygren, em seu famoso Ágape e Eros, sustenta que
amamos até a Deus egoís-tica e não cristãmente, se nos
fecharmos em nossa relação pessoal com ele, na oração e na
contemplação, em vez de nos dedicarmos ao serviço
desinteressado do próximo por amor de Deus. Uma das
principais asserções de Joseph Fletcher em sua obra
Situation Ethics é esta: "amor não é afeição".
"Em sentido específico, o amor cristão, literalmente falando,
é benevolência, boa vontade... O ágape comunica-se com o
próximo, não por amor de si, nem dos outros, mas por amor
de Deus. Podemos afirmar, com muita singeleza, que o amor
cristão é a arte de amar coisas não amáveis, isto é,
desagradáveis. . . Amizade, sentimento, auto-realização,
tudo isso é amor que requer reciprocidade. O ágape, porém,
não o é, pois só procura o bem de quem quer que seja, o
bem de todos".
Cumpre-nos, entretanto, rever esta distinção entre amor
cristão e amor humano, tanto em sua forma antiga quanto
em sua roupagem moderna.
À luz de nossa experiência do amor, de nossas noções de
psicologia, e mesmo do Antigo Testamento, faz-se cada vez
mais evidente que deveríamos, antes, distinguir entre o
amor egoístico, que procura a própria exaltação, e o amor
que considera os outros como pessoas, que ultrapassa as
fronteiras do próprio eu para afirmar e valorizar o ser alheio.
Não são as cambiantes do amor que colocamos em questão;
isto é, não queremos indagar se se trata de um amor quente,
apaixonado, ou não; mas questionamos se a sua orientação
fundamental volta-se para si mesmo ou para os outros.
Não negamos a necessidade da graça de Deus para o
verdadeiro amor.
"Por sua própria natureza, nenhum ser pode transcender-se
a si mesmo, valendo-se apenas de suas forças. Necessitará
sempre de energias que provêm de uma fonte externa. O ato
pelo aual o "ego" humano sai de si mesmo por amor de
outrem, dando igual ou até mesmo maior importância ao
outro do que a si próprio, até o ponto de oferecer, se
necessário, a própria vida pelo outro — a formação de
genuína comunidade — implica uma autotranscendência.
Na ordem atual das coisas, tal ato só é possível por um dom
proveniente de fonte externa, isto é, de Deus, dom que há
de ser considerado como realidade inteiramente gratuita
(pois ninguém tem "direito" de ser amado), e pode, com
toda razão, denominar-se "graça". Este dom, como tal, faz
parte do ato pelo qual Deus se doa às criaturas e em seu
próprio nível, (exceto a comunicação hipostática de Deus
com o homem em Cristo) e, por sua nobreza, é a forma
principal de doação divina".
Razão por que, o dom de Deus, a caridade, ou o ágape, em
vez de se opor ao amor humano, fá-lo capaz de se tornar
autêntico e de amadurecer. E todo aquele que, no ato de
amar, afirma este aspecto fundamental do ser e da
personalidade do outro, corresponde, conscientemente ou
não, à comunicação que Deus faz de si mesmo. Procurar o
bem do outro, ser pelo outro, constitui sem dúvida, como
vimos, o elemento mais importante do verdadeiro amor.
Não se pode falar aqui de qualquer contradição entre a dou-
trina cristã e as intuições dos psicólogos modernos que
consideram a capacidade de amar o outro, servindo ao bem
alheio, como ponto axial da maturidade afetiva. Cristo disse
ter vindo para que os homens pudessem receber a vida, e a
tivessem em abundância. Para amar como ele amou, cumpre
animar, nutrir e incrementar a vida removendo os
obstáculos ao amor, e auxiliar-se mutuamente em busca de
maior vivência. Devemos amar deste modo todos os nossos
semelhantes.
Mas, excluir a afetividãde do amor "cristão", não é
consentâneo com o espírito da Bíblia, e pode produzir vários
reveses psicológicos. Deus, na pessoa de Cristo, veio ao
mundo para se tornar humano com os homens e para os
homens. Ele convida-nos a todos para uma união pessoal
consigo. O amor cristão, portanto, inclui, propriamente, o
desejo de união, como lambem o esforço em se colocar a
serviço dos outros. Além disso, a Edição Anchor do
Evangelho de S. João afirma que o Evangelista parece
considerar os termos phile e ágape como possuindo,
praticamente, o mesmo sentido. Ainda que o termo phile
signifique um amor mais afetivo do que ágape, ambos os
verbos são usados para descrever o modo com o qual Jesus
amou. Sem dúvida, demonstrou Jesus caloroso afeto pelas
pessoas. Possuía aquilo que hoje denominamos relação
interpessoal, com os apóstolos, com Lázaro, Marta e Maria.
Permitiu que a mulher pecadora beijasse seus pés, e lhe disse
que seus pecados lhe haviam sido perdoados porque muito
amara (com um amor que era, certamente, "afetivo").
Além disso, um dos aspectos da boa-nova é exatamente o de
trazer calor humano para as relações entre os homens e
Deus, de tal forma que podemos chamar nosso Deus de Pai
em sentido pessoal. Com efeito, o Novo Testamento lança
mão de todas as relações humanas para descrever o
relacionamento entre Jesus e os seus, recorrendo aos termos
mãe, irmão, irmã, amigo, e à analogia do amor matrimonial
aparece em quase toda a Bíblia. Claro é, pois, que o ele-
mento afetivo não há de ser excluído do amor cristão, do
nosso amor para com o Pai, o Cristo e o próximo.
Como acima dissemos, só nos tornamos capazes de amar
com amor que procura o bem do outro, se formos também
objeto de calorosa relação pessoal de amor. A "relação de
ajuda" — do pai para o filho, do médico para o paciente, do
conselheiro para o dirigido — quando realizada na devida
maneira, é obviamente um dos meios de fazer bem aos
outros. Mas, esta relação deve incluir a aceitação do outro,
assim como ele é, e a vontade de se abrir para com ele como
também de aceitar suas confidências; em outras palavras, a
vontade de estabelecer uma relação pessoal. Devemos
mostrar nosso desejo de estar com o outro, se quisermos que
ele acredite que estamos realmente a seu serviço. Foi assim
que Deus agiu por nós mediante a Encarnação.
Naturalmente, é verdade que nosso dever cristão de amar
nossos vizinhos, nossos concidadãos, ou os imigrantes que
vieram à procura de trabalho, há de se concretizar votando
leis a favor deles, demonstrando-lhes nossa solidariedade, e
recorrendo a outros meios, que os ajudem a obter habitação
decente, oportunidade de trabalho e justo salário. Sem esses
esforços, as tentativas de estabelecer relações com eles
seriam ofensivas. Mas, o problema maior é o de aceitar-se
mútua e realmente como pessoas, isto é, o de estabelecer a
possibilidade de relações. Por isso, o amor afetivo e o amor
que procura o bem-estar do próximo interagem
mutuamente.

Temos necessidade de amar e de ser amados

Constitui obstáculo à validade do amor afetivo, conforme o
ponto de vista de Nygren, de Fletcher, e de muitos outros,
no passado e no presente, o fato de que ele é
necessariamente uma procura de si mesmo, ao passo que
amar como Deus e Cristo amam, significa procurar somente
o bem do outro. Entretanto, aqui também parece que se
criou uma distinção excessivamente simplista e falaz.
Devemos, sim, procurar a perfeição em nossa generosidade
para com o próximo, assim como perfeito é nosso Pai
celeste. Devemos procurar amar aquilo que não é amável,
assim como Cristo morreu por nós, quando éramos ainda
pecadores. Mas, a revelação de que "Deus é amor" não signi-
fica apenas que ele é infinitamente generoso para conosco
em Cristo; significa, também, que sua vida íntima é vida de
amor, de relação interpessoal entre o Pai e o Filho no
Espírito. Nossa capacidade humana de amar como Deus nos
ama não é, contudo, diminuída pelo fato de precisarmos
partir radicalmente para relações interpessoais no amor a fim
de nos tornarmos realmente autênticos. Só na relação
pessoal com Deus, em Cristo, que se tornou possível pelo
dom do seu Espírito, podemos conseguir a plenitude do
nosso ser; conseguimo-lo, também, nas relações pessoais
com as criaturas, quando nosso esforço é completado e
aperfeiçoado pelo mesmo Espírito. Pois, a consumação final
do plano de amor estabelecido por Deus em relação ao
gênero humano não consiste em uma multidão de almas que
vivem sozinhas com o único absoluto, mas cm uma
comunidade de pessoas reunidas, que formam um conjunto
de pessoas humanas, na comunidade das pessoas divinas.
Destarte, o fato de serem recíprocas as relações dc amor não
significa que se oponham ao amor entendido como
generosidade. Ao contrário, a maior necessidade do próximo
é exatamente a de ser amado, necessidade que o amor
generoso procurará satisfazer com a maior plenitude
possível. Se, como cristãos, somos chamados a ajudar-nos
mutuamente para conseguirmos a plenitude da vida, e a nos
interessarmos pelo bem-estar alheio, devemos dar aos outros
a oportunidade de nos amarem e de serem amados por nós
(muito embora isso redunde em nossa vantagem). Por isso, o
amor cristão deve contar, entre suas metas primordiais, a
busca de uma calorosa relação interpessoal, e o amor afetivo
do próximo.
Isso não significa que devemos estar sentimentalmente
apaixonados por todas as pessoas, nem que pretendamos
amar igualmente a todos, e forçá-los a nos amar. Significa
que deveríamos encarar com seriedade as nossas relações,
dispondo-nos a aceitar outras; significa, também, que o
cultivo destas relações não é extrínseco, mas pertence à
essência da vida cristã.

O amor humano é necessariamente exclusivo?

Eis outro motivo que não raro se aduz para distinguir o amor
cristão do afeto humano: o afeto humano é, por natureza,
exclusivo. Não podemos nutrir afeto por todas as pessoas, ao
passo que o cristão deve amar todos os seus semelhantes. As
relações do amor são necessariamente exclusivas,
consumam-se entre duas pessoas, ao passo que o amor
cristão deve ter por objeto o gênero humano.
Também esta distinção parece extremamente simplista.
Como vimos, só conseguimos nos tornar psicologicamente
capazes de ultrapassar os limites das relações pessoais no
amor e de amar o não-amável, quando somos amados e
aprendemos a amar através, das relações pessoais com Deus
e com os outros. Enfim, porque Deus ama a cada um de nós,
pessoalmente, em Cristo, é que podemos amar a Deus e ao
próximo com amor generoso.
Além disso, a verdadeira relação entre duas pessoas não é
exclusiva por natureza, nem é um "duplo egoísmo", mas um
foco radiante de amor e de vida. Toda tentativa de duas
pessoas, tanto no matrimônio como na amizade, de viver "só
e totalmente um pelo outro" terminará fatalmente em
falsificação e esterilidade.
É óbvio que só podemos cultivar profundas relações pessoais
com üm limitado número de pessoas. Mas as relações não se
dividem adequadamente em "superficiais" e "profundas"; há
uma infinita variedade de graduação e de implicações, e é
amando que cresce nossa capacidade de amar. Todos
conhecemos pelo menos uma ou duas pessoas que têm o
dom de estabelecer relações pessoais com todos os que
encontram, de fazer amizades com todos os tipos de indi-
víduos onde quer que estejam. Tal capacidade deveria ser
comum característica do cristão.
Finalmente, se cria uma verdadeira "comunidade" em um
grupo quando se formam muitas relações pessoais entre seus
membros, relações que se irradiam e se entrelaçam para
estabelecer um clima de afeto. Tal comunidade não é
exclusiva, mas por natureza é aberta a acolher outros. Por
isso, estabelecendo verdadeiras relações pessoais,
construímos uma "comunidade" autêntica e nos preparamos
para a vida do mundo que há de vir. Razão por que não seria
realista quem colocasse a exclusividade das relações pessoais
de amor em oposição com a abertura do amor cristão.
Também neste caso, o amor afetivo e o amor generoso são
interdependentes e se fundem.

Como podemos amar por preceito?

Enfim, não raro se acentua que o amor cristão acha-se
sujeito à vontade, ao passo que o amor afetivo se deixa levar
pelas emoções. Podemos forçar-nos a agir em benefício de
outrem, pois tal opção cai sob o controle de nossa livre
vontade, mas não podemos forçar-nos a sentir simpatia por
um outro, pois nossas emoções não podem ser comandadas
por nossa vontade. Por isso, se diz que o mandamento de
Cristo de amar-nos uns aos outros como ele nos amou, só
pode significar o amor de benevolência; outro sentido não
pode ter a ordem de amar.
É óbvio que não podemos provocar e forçar em nós um
profundo desejo de amizade para com alguém com o qual
nada temos em comum, para com alguém que nos repugna.
Menos ainda podemos forçar-nos diretamente a "nos
apaixonar" por alguém, em nenhum dos sentidos que esta
expressão encerra.
Nem podemos forçar alguém a ter amizade ou amor por nós.
Nossa liberdade psicológica, que nos move a agir por amor,
pelo bem do próximo, acha-se, porém, condicionada por um
grande número de fatores emotivos, de que às vezes nem
temos consciência. Um branco fanaticamente racista é
realmente livre de optar por um comportamento amigável
em relação aos negros? A não ser por milagre da graça, não
teria ele necessidade de um longo e penoso processo para se
libertar dos preconceitos e reeducar suas emoções antes de
poder agir com liberdade neste campo? Pode um
obsessionado amar livre e generosamente o objeto de sua
obsessão como qualquer outra pessoa?
Por outro lado, mediante um trabalho de compreensão, de
atento exame dos nossos impulsos e preconceitos, podemos
adquirir uma liberdade cada vez maior no amor, para
amarmos um número sempre maior de pessoas,
enriquecendo amplamente o círculo de nossas relações. Por
exemplo, um psiquiatra ou um diretor espiritual deve
estudar-se a si mesmo, examinar suas diferentes reações
perante vários tipos de pessoas, e aprender a superar a
própria tendência a rejeitar certos tipos, antes de poder
realmente ajudar seus clientes. O mesmo acontece em todas
as situações que exigem confronto imediato: "O subcons-
ciente falará à consciência mesmo que o submerja-mos com
nossos mais altos brados". Se nutrirmos antipatia por alguém,
este o perceberá, mesmo que multipliquemos as atenções a
seu respeito, a sua tendência será de rejeitar-nos a nós e ao
"bem" que procuramos fazer por ele. Se, realmente,
procurarmos trabalhar pelo bem do próximo, não podemos
deixar de lado nossas emoções. Cumpre-nos orientá--las e
colocá-las a serviço do amor generoso.

Amor e maturidade

Claro é que o mandamento de amarmos mutuamente, como
Cristo nos amou, exige o trabalho contínuo de colocarmos
nosso impulso afetivo, em todos os níveis, na linha do
verdadeiro amor humano, assim como o esforço de
aprendermos a maneira de escolher o que é melhor para o
próximo e de agirmos conforme esta opção. Se devemos,
como diz S. João, amar "com os fatos e em verdade", é
mister procuremos amar não só com nossa vontade, mas
com todo o nosso coração.
Isto significa aplicar as intuições modernas ao difícil e às
vezes laborioso processo exigido pela conquista da liberdade,
da maturidade e da responsabilidade da pessoa humana;
aplicá-las, também, ao ensinamento cristão em torno da
necessidade de perder a própria vida para lucrá-la. Fácil não
é tratar os outros como pessoa, amar cada indivíduo assim
como ele é, e se dispor tanto a dar quanto a receber. Temos
a tendência inata de agir como se fôssemos o centro do
universo e de arrastar os outros como se fossem satélites e
servidores. A criança é naturalmente egocêntrica; se for
amada e amadurecer normalmente, aprenderá, pouco a
pouco, a sair de si mesma e a tender para os outros. Mas
ninguém consegue atingir a plena maturidade, na doação de
si próprio. Aprender a amar requer toda uma existência de
esforços conscientes e contínuos para nos "convertermos"
plenamente e "reconvertermos" cada dia, quebrando as
cadeias do egocentrismo criadas pela falta de
amadurecimento.
Este trabalho exige que orientemos nosso impulso afetivo,
que nos impele tanto para a introversão quanto' para a
extroversão, envolvendo-nos em uma tensão confusa que
nos pode levar em ambas as direções. Os teólogos estão
chegando à conclusão de que o impulso central do nosso ser
constitui um dos sinais mais evidentes do pecado original,
não importa qual seja o sentido deste pecado. Nossa
"condição humana" é egocêntrica desde que nascemos, com
todos os múltiplos efeitos que isso acarreta sobre nós e nossa
sociedade; tais efeitos compreendem influxos herdados do
passado e outros peculiares de nossa época. A graça de Cristo
oferece-nos, pois, todos os meios para quebrarmos os
grilhões desta autoprisão, e orientarmos nosso impulso
afetivo para os outros ou para Deus.
Mas este trabalho de aprender a amar implica
necessariamente muitas "mortificações" mais ou menos
dolorosas e conscientes para se desapegar das garantias
coaretadoras do próprio egocentrismo. A criança deve
superar seu mundo infantil egoístico para penetrar no
mundo mais vasto das relações familiares. O adolescente
deve abandonar as garantias e os limites da infância para
tecer novas relações e amadurecer como adulto. Destarte,
todo crescimento para a maturidade implica uma espécie de
"morte" para uma condição mais limitada, egocêntrica e
aparentemente mais segura a fim de se projetar em uma vida
de amor mais ampla e verdadeira.
À medida que atingimos uma capacidade emocional
suficiente para trabalharmos com consciência em busca de
maior maturidade, torna-se mais evidente o grande paradoxo
do amor. Só no amor de Deus e do próximo podemos
alcançar a maturidade e realizar-nos. Porém, se procurarmos
primeiramente nossa auto-realização, nossa busca será
frustrada; voltando-nos para o "eu", só encontraremos a nós
mesmos. A experiência de cada um comprova este fato: à
medida que nos concentramos em nossos sentimentos e nos
benefícios que nos traz a relação de amor, seja ela de
amizade ou de namoro, de matrimônio ou de paternidade, a
corrente afetiva fica bloqueada, e a relação cessa de se
desenvolver. No amor, devemos realmente perder nossa
vida para ganhá-la; devemos nos esquecer de nós mesmos e
de nossa auto-realização, se quisermos encontrar nosso
verdadeiro ser e a plenitude do amor.
Aliás, as observações dos psicólogos modernos, segundo os
quais a maturidade humana consiste na capacidade de amar
sem ser egocêntrico, e que para conseguir tal maturidade,
faz-se necessário o espaço de uma vida inteira, são
ressonâncias da doutrina cristã segundo a qual só se
consegue o crescimento no amor mediante um longo
processo de auto-renúncia a fim de se tornar cada vez mais
solidário com o próximo e se pôr a seu serviço, conforme o
exemplo de Cristo. Aprender a amar como cristão significa
aprender a amar humanamente: processo difícil e às vezes
doloroso, mas o único caminho pelo qual podemos
encontrar a plenitude da vida e con-tribuir para vitalizar a
sociedade.
"Um código moral, mesmo quando aceito pelos melhores
motivos, tende necessariamente a ser mais negativo que
positivo, a se ocupar mais do "não farás" do que daquilo que
um indivíduo deveria dar a seus semelhantes. Interessa-nos
muito o inteiro conteúdo das relações humanas, o sentido
do "ama teu próximo" em toda a extensão e profundidade de
suas conseqüências. Amar não significa apenas fazer boas
obras; vai muito além do que dar de comer a quem tem
fome, e vestir os nus. Significa intimidade e calor humano,
coração aberto, e irresistível generosidade em obras e em
espírito. Significa um desejo de conhecer e uma corajosa
vontade de ser conhecido. Amar é comprometer-se com o
próximo, compartilhar sua vida, a custo de qualquer
sofrimento, seja que esta aflição provenha de sermos
repudiados por ele, ou identificados com ele, ou da própria
participação em sua vida. A vida e a sociedade pedem deses-
peradamente este contato caloroso e íntimo".
Por isso, a consciência de sermos chamados, como cristãos,
a um amor recíproco, não como espíritos desencarnados,
mas como pessoas integralmente humanas, demonstra o
alcance infinito de nossa vocação ao amor para a solução de
nossas necessidades e dos males que afligem o gênero
humano. Podemos, livre e conscientemente, orientar todo
nosso impulso afetivo para fora de nós mesmos, em vez de
procurarmos sufocá-lo ou suprimi-lo. Mas, tudo isso coloca
esta vocação em novas perspectivas, porque agora temos
condições para constatar que todo o nosso eu e nossa psique
devem se engajar no trabalho de aprender a amar "não só
com palavras, mas com os fatos e em verdade" (1 Jo 3,18).

3. AMOR E SEXO

Se devemos aprender a amar com todo o nosso eu, é óbvio
que não podemos fazê-lo como "almas" neutras. Temos de
amar, como homens e mulheres sexuados, outras pessoas
sexuadas, de maneira plenamente humana. O esforço em
amarmos como pessoas maduras deve também incluir o
trabalho de integrar nossa sexualidade (compreendida
naquele sentido biológico, que lhe atribuímos no primeiro
capítulo, como impulso operante em toda a esfera do
comportamento sexual, que compreende a conduta afetiva e
a procura do prazer) como elemento vital de todos os nossos
impulsos afetivos, a serviço do amor. Idéias, que por longo
tempo prevaleceram no cristianismo, olhavam com suspeita
o amor afetivo (com exceção do amor manifestado pelos
esposos regularmente unidos em matrimônio, e pelos pais),
pois viam nele o perigo de conduzir a uma conduta sexual
reprovável. Tal risco, entretanto, é inerente à condição
humana; é dever precaver-nos, mas isso não há de levar-nos
a abandonar o trabalho profundo de aprendermos a amar.
Neste capítulo, portanto, indicaremos, primeiramente, a
necessidade de nos reconhecermos a nós c aos outros como
seres sexuados e como pessoas. Indagaremos, em seguida, o
sentido da sexualidade humana qual elemento indispensável
para o amor humano, e sua função positiva não somente no
amor conjugal, mas em toda espécie de amor. Tal pesquisa
confirmará novamente a necessidade de reformular as
normas católicas atuais referentes à moral sexual, assim
como a necessidade de incentivar os cristãos a cultivarem
vários tipos de relações afetivas para se auxiliarem
reciprocamente em busca de um amadurecimento. Este
capítulo será completado pelo capítulo seguinte, em que
consideraremos a função do corpo nas relações humanas,
esclarecendo vários pontos de duplicidade relativos à moral
sexual, e, em especial, lançando luzes sobre o sentido
humano das intimidades sexuais físicas e do ato sexual.

Somos pessoas sexuadas

É interessante constatar que a mesma mentalidade
responsável pela idéia de sexo como coisa superior ou
inferior à realidade humana, considera as mulheres como
seres sobre-humanos ou infra-humanos. A concepção
herdada dos gregos, segundo a qual as mulheres não seriam
criaturas plenamente humanas, exerceu profunda influência
no pensamento cristão ao longo dos séculos, embora o
pensamento cristão tenha também sustentado e favorecido a
idéia da dignidade da mulher e seu direito a ser tratada como
pessoa. É relevante constatar que para os escritores
espirituais cristãos a "alma" é um elemento feminino;
tiveram eles, geralmente, alto conceito da alma e pouca
consideração pela mulher; mas, na concepção deles, nem a
alma, nem a mulher apareciam como seres humanos
completos.
Santo Tomás, por exemplo, considerava a mulher aual
"macho mutilado". Afirmações menos entusiásticas ainda
podemos colher nos escritos dos Padres da Igreja, segundo
os quais não só inexiste nas mulheres a plenitude humana do
homem, mas constituiriam estas uma contínua insídia à sua
racionalidade, liberdade e virtude. Ao mesmo tempo, outra
corrente muito aceita no pensamento cristão considerava as
mulheres como criaturas mais puras e "espirituais" que o
homem; inspiradoras de suas atitudes, tornam o homem
mais gentil, guiando-o para metas mais sublimes. Eis um
exemplo recente desta mentalidade; o P. Eugene C.
Kennedy, M.M., emérito diretor espiritual e psicólogo,
contribui mais para embaraçar do que para esclarecer o sexo
feminino quando assim se exprime falando das "mulheres
dinâmicas da Igreja atual": "A fonte genuína da afetividade
delas deriva do cumprimento de sua tarefa feminina, que é a
de ser fonte do Espírito Santo para os outros membros da
Igreja... As mulheres são chamadas a inspirar-nos, a
infundir-nos Espírito e vida". Neste sentido, abundante
literatura procura convencer as mulheres de que "a sua
vocação é a maternidade" — "física ou espiritual" — e que
só poderão realizar-se mergulhando na "feminilidade" a
própria personalidade.
Outra versão desta mesma mentalidade, na cultura do Sul
dos Estados Unidos, é a tendência a considerar todas as
mulheres brancas como "senhoras"; em outros ambientes,
são elas apelidadas de "fêmeas", empregando-se também
conceitos equivalentes que se aplicam à mulher não como
"pessoa", mas como encarnação de qualquer "feminilidade"
estereotipada, no sentido deterior da palavra, ou como
objeto de um desejo sexual impessoal. Talvez as mulheres
também nutram idéias semelhantes, ou piores ainda, a
respeito dos homens, qualificando-os com termos
convencionais: "brotos", "fustos", etc, ou como encarnação
de conceitos populares de masculinidade. Tudo isso influi
em nosso modo de julgar os outros e até mesmo no modo
de refletirmos sobre nós mesmos, levando-nos a procurar
imitar este ou aquele clichê ou a fugir de todos.
Se devemos aprender a amar-nos uns aos outros como
pessoas humanas, cumpre-nos, por conseguinte, procurar
superar todos estes tipos estereotipados, bem como todos os
modelos culturais e sociais que os inculcam, e esforçar-nos
por considerar cada indivíduo como uma pessoa que é
homem ou mulher.
Mas, no estado atual de nossos conhecimentos em torno da
sexualidade humana, ninguém pode definir adequadamente
o ponto essencial que diferencia psicológica, e muito menos
"espiritualmente" o homem e a mulher, a prescindir
daquelas diferenças que emergem no processo de
socialização desta ou daquela cultura. Afirma a biologia que,
seja no homem seja na mulher, existem hormônios
masculinos e femininos, embora em proporções diferentes.
Nossa experiência quotidiana atesta que até o homem mais
"viril" pode possuir as assim chamadas qualidades
"femininas" — ternura, atenção, intuição, praticida-de — e
que até as mulheres mais "femininas" podem possuir as
assim chamadas qualidades masculinas — iniciativa, energia,
habilidade administrativa, capacidade, pensamento abstrato
—. As pesquisas de Kinsey puseram em relevo as diferenças
entre as respostas do homem e da mulher no campo
especificamente sexual, mas ninguém é capaz de dizer com
segurança até que ponto estas diferenças podem ser
atribuídas a um comportamento adquirido, e não à essência
da masculinidade ou da feminilidade humana. Por exemplo,
as revistas que exibem sexo não têm, entre as moças,
aceitação equivalente à que recebem entre os rapazes, pois
as mulheres normalmente não se exaltam vendo o corpo do
homem, ao passo que este se excita ao ver o corpo feminino.
Cabe, porém, perguntar se isso pode ser tido como regra
geral em todas as culturas ou é apenas efeito de nossa própria
cultura. No ato sexual, onde se presume que o homem e a
mulher ajam com toda a plenitude da masculinidade e da
feminilidade, a mulher não é, teoricamente, apenas um
elemento passivo e submisso, e o homem, ativo e
dominador, mas ambos se comportam ao mesmo tempo
ativa e passivamente.
Por outro lado, a idéia bíblica e fenomenológica do ser
humano como um todo psicofísico, e não como alma à qual
se acrescenta um corpo, exige, como veremos mais
pormenorizadamente no capítulo seguinte, que nossos
corpos constituam parte essencial de nós mesmos, embora
não sejam tudo o que temos. Em outras palavras, não somos
feitos de almas sexuadas, e de corpos sexuados. É
interessante indagar até que ponto as pessoas educadas no
tradicional pensamento dicotômico, segundo o qual "o
homem é criatura composta de alma e corpo", julgam que as
almas tenham um gênero e chegam até a determiná-lo. As
crianças parecem imaginar a própria alma como algo dentro
delas semelhante a pequenos balões, uma coisa neutra.
Poderíamos dizer também que as mulheres, especialmente
se levarmos em conta que a piedade cristã classifica a alma
como entidade feminina, são naturalmente propensas a con-
siderar suas almas como uma realidade feminina. Talvez,
porém, muitas mulheres de cultura ocidental, desejando
fugir do tipo convencional para serem consideradas como
pessoas, encarnam a própria alma como algo que ultrapassa
as fronteiras do gênero. E que dizer dos homens,
particularmente dos clérigos, acostumados a se apropriar de
certa terminologia da piedade cristã. Não pensam eles na
própria alma como em algo feminino?
Em todo caso, para conseguirmos uma completa
autenticidade masculina ou feminina, útil será usarmos o
termo "alma" para significar a "pessoa humana", e educarmos
as crianças, habituando-as a pensar em si mesmas como em
um todo orgânico, formado de corpo e espírito, que
constitui a pessoa sexuada. Representa, realmente, uma
enorme diferença na estrutura psíquica de cada pessoa, o
fato de ser homem ou mulher, com todas as características
anatômicas e fisiológicas que isso implica, embora não
saibamos o conteúdo exato dessa diferença.
Por exemplo, pergunta-se, hoje, que há realmente de errado
no comportamento dos homossexuais: essa anomalia afeta
apenas o interessado? Tal maneira de agir é capaz de lhe
oferecer uma completa realização de suas aptidões? À luz
dos princípios já enunciados, deveríamos dizer que tal
procedimento não é "natural" porque implica, pelo menos
em um dos interessados, íntima contradição em sua
estrutura psíquica, que coloca a psique de certo modo em
contraste com o corpo, e contraria, portanto, o valor hu-
mano constituído pela integridade, pela plenitude,
proveniente do fato de alguém ser homem ou mulher. Uma
das razões, talvez, do aumento da homossexualidade em
nossos dias. além de outras geralmente apontadas, é que o
papel tanto do homem quanto da mulher acha-se,
atualmente, em estado de transição. Os indivíduos estão
divididos por enorme contraste: sentem o que "devem" ser
(e fazer como homens viris e mulheres autenticamente
femininas, conforme a figura convencional já pré-
estabelecida) em oposição àquilo que percebem que são e
que fazem na realidade. Tal. confusão pode levar a aceitar
mais facilmente o comportamento homossexual. Porém,
numa sociedade em que as funções do homem e da mulher
fossem claramente distintas e caracterizadas, ou em que
ninguém se afligisse por tais problemas, um indivíduo não
completamente seguro de sua identificação sexual, teria
menos razão de duvidar a esse respeito.
O conhecido antropólogo inglês Geoffrey Gorer,
comentando a obra de Konrad Lorenz "On Aggression",
descreve algumas pequenas sociedades primitivas, as quais,
amantes da gentileza, não fazem muita distinção entre
homens e mulheres e não inculcam o ideal da masculinidade
corajosa e agressiva. "Nenhuma criança ouvia sugestões
como estas: "O verdadeiro homem faz assim..." ou
"nenhuma verdadeira mulher se comporta assim..."; desta
forma não se criava nenhuma confusão quanto à identidade
sexual; por isso, não se registrou entre eles nenhum caso de
inversão sexual". O autor prossegue afirmando que a atual
"juventude sem fronteiras, os beats, os swingers, os provos e
os stilyagi", com seus cabelos compridos, suas vestes
indistintas, a procura da paz, "sentiram vagamente a
necessidade de redefinir os conceitos de 'homem
verdadeiro' c de 'mulher verdadeira', cumpre-nos aceitar
esta nova linha se não quisermos chegar à nossa
autodestruição".
Não raro se considera, hoje, o problema da confusão entre as
funções masculinas e femininas como sendo apenas um
problema para mulheres, ao passo que se trata realmente de
um problema que afeta ambos os sexos, embora de modo
diferente, como é natural. Muitas mulheres estão
procurando fugir dos esquemas convencionais, sequiosas de
serem consideradas, antes de tudo, como pessoas.
Certamente não desejam ser tratadas como homens ou
como seres neutros. Entretanto, visto que a personalidade
foi por longo tempo, identificada com a personalidade
masculina, muitas vezes dão elas a impressão de procurar ser
"em tudo igual aos homens", ou de ultrapassar os limites de
sua feminilidade, e chegam a perguntar se por acaso não
obtiveram sucesso até demais neste sentido.
Por outro lado, muitos homens sentem-se ameaçados por
mulheres que assumem, às vezes com muita eficiência,
aquilo que se convencionou classificar como tarefas do
homem, desenvolvendo trabalhos masculinos e
pretendendo receber tratamento igual aos homens. Além
disso, sentem-se eles muitas vezes confusos, sem saber que
atitude assumir perante suas colegas de trabalho, pois os
modelos familiares convencionais de comportamento são
evidentemente inadequados. Uma ilustre psicóloga social,
que é também freira, e traja ainda um enorme hábito
monástico, observava que o hábito parece constituir um
elemento positivo para deixar os homens, seus colegas, à
vontade nos debates em que tomam parte, pois sentem que
o hábito fá-la transcender a esfera habitual das relações entre
homens e mulheres. Mas, forçoso é também observar que
certas mulheres, embora desejem ser tratadas com igualdade
no que se refere ao trabalho, não hesitam em recorrer, na
própria vida profissional, às armas tradicionais da sedução
feminina, às lágrimas, ao "temperamento", reclamando
cortesias e privilégios tradicionalmente concedidos ao "sexo
frágil".
As dificuldades que tanto os homens quanto as mulheres
devem enfrentar, em virtude da atual confusão referente às
próprias prerrogativas, são realmente vastas e complexas,
especialmente na vida matrimonial, como amiúde se
observa. Quiçá a solução esteja em um novo conceito das
tarefas masculinas e femininas. Até agora, tais funções
basearam-se principalmente no que os homens e as
mulheres fazem, ou sempre fizeram em nossa sociedade. A
idéia daquilo que são, ou que deveriam ser, deriva de suas
ocupações. Os antropólogos ensinam-nos, porém, que tanto
homens quanto mulheres desempenharam tarefas fun-
damentais da vida humana, inseridos em uma determinada
cultura, de tal forma que a ocupação não constitui
fundamento indispensável em termos de identificação.
Talvez estejamos em época de transição para um conceito
das tarefas masculinas e femininas fundado numa
compreensão mais profunda das posições do homem e da
mulher perante a realidade. Se os homens e as mulheres
fizerem melhor tudo aquilo que pessoalmente podem
realizar, as profissões e ocupações, a arte e a ciência se
beneficiariam, muito mais que agora, do contributo de
pessoas que agem conforme a própria estrutura de homem e
mulher. Ninguém sabe ainda quanto enriquecimento
poderiam as mulheres oferecer, por exemplo, à medicina, à
arquitetura, à teologia especulativa, se se sentissem livres e
fossem incentivadas a ser plenamente mulheres na profissão
de médica, de arquiteta, de teóloga, em vez de serem mais
ou menos forçadas a assumir uma atitude masculina em seu
trabalho profissional.

Por isso, nossa tarefa cristã exige que trabalhemos neste
sentido, para rever nossos modelos dc pensamento e de
comportamento social; requer que façamos todo o possível
para colocar a personalidade em primeira linha, de tal forma
que o sexo seja considerado como elemento vital, não,
porém, como característica absolutamente determinante.
Embora assumindo, em muitas passagens, a posição
convencional da sociedade de seu tempo, dizia S. Paulo que,
em Cristo, "não há masculino ou feminino". Esta afirmação
deve ser entendida neste sentido: a feminilidade ou a
masculinidade há de ser, na vida cristã, submetida à
personalidade do indivíduo, nunca, porém, eliminada ou
minorada.

O sentido humano ao sexo

A palavra "sexo" deriva, provavelmente, da mesma raiz
latina do verbo "secare", que significa cortar. Em todo caso,
os mitos antigos apresentam o primeiro ser humano como
um ser originalmente bissexuado, que depois foi "cortado
em duas partes" para formar o primeiro homem e a primeira
mulher; desta forma, aquele é incompleto sem esta. O
Gênesis (2,18) contém a mesma idéia: homem e mulher ne-
cessitam um do outro para serem completos. "Não é bom
que o homem esteja só. Vou dar-lhe uma auxiliar
semelhante a ele". Destarte, o fato de sermos homens ou
mulheres indica que nenhuma pessoa é inteiramente auto-
suficiente. "Nenhum homem é uma ilha"; só no amor de
Deus e no amor recíproco podemos realizar-nos
plenamente. Estas profundas verdades estão escritas em todo
o nosso ser psicofísico porque somos, por natureza, pessoas
sexuadas.
A sexualidade é, portanto, a força da natureza humana
destinada a suscitar a necessidade e a urgência que'
impulsiona todo o nosso ser a procurar se realizar na única
direção capaz de satisfazê-lo: na união e comunhão com o
próximo. O sexo nos impele, física e psiquicamente, a
procurar completamento em um ser "oposto" ao nosso.
Nossa sexualidade coloca logo em evidência que não somos
auto-suficientes e nos impele a procurar realizar-nos fora de
nós mesmos.
Esta realização plena — isto é, a consecução de todos os
objetivos de nossa potencialidade, a perfeição e o uso
integral de nossas capacidades de amar e de agir por amor —
só pode ser conseguida no futuro transcendente, que Deus
propõe à nossa fé. Neste mundo, só podemos galgar metas
relativas de perfeição; conseguimo-las mediante o trabalho,
que satisfaz a necessidade de ação, desenvolvendo nossas
capacidades e talentos, assim como mediante as relações de
amor, que satisfazem, em medida mais ou menos ampla, o
anseio de amar e ser amado, porquanto desenvolvem a
capacidade de amor. O poder de agir pode se esgotar em um
determinado período de nossa vida. Mas a capacidade de
amar jamais se extingue: a amplitude da sexualidade, assim
como a urgência psicofísica do impulso afetivo, sempre
ultrapassam seus limites, impelindo-nos a sairmos de nós
mesmos em direção dos outros e a procurarmos que os
outros se abram para conosco.
Desta forma, o objetivo biológico da união sexual, que é um
dos aspectos da sexualidade humana, sugere-nos qual seja a
sua meta integral: impelir-nos para a união com o próximo e
com Deus, que é fonte da vida. A. urgência da sexualidade
em plano físico manifesta, apesar da ambigüidade própria de
nossa condição atual, toda a necessidade de recebermos e
darmos a vida por amor. As perspectivas abertas por
Teilhard de Chardin sugerem que a diferenciação do sexo no
processo evolutivo, e a necessidade de união sexual para
criar uma nova vida, podem ser consideradas como
preparação e antecipação da capacidade humana de amar e,
em sentido mais amplo, de comunicar a vida, poder este que
será aperfeiçoado na fase de "amorização".

O amor é a única força no mundo capaz de criar
personalidade através de um processo totalizador. Constitui,
portanto, o estádio mais alto daquela energia que Teilhard
denominava 'radial'. Só ele une as criaturas humanas de
forma a completá-las e realizá-las, pois só ele fá-las atingir o
mais profundo de si mesmas... Razão por que os homens,
para continuarem livremente o caminho em busca daquela
unidade de noosfera, que é o destino de cada um,
necessitam desenvolver gradualmente a própria capacidade
de amar até poderem abraçar toda a humanidade e a terra
inteira. Em outras palavras, aquilo que Teilhard chamava de
'planetização' (intensificação da temperatura psíquica da
noosfera em virtude de um estreitamento mais compacto
dos homens na su perfície da terra) deve se tornar
eventualmente uma 'amorização'. Costuma-se objetar contra
esta idéia, que a capacidade humana de amar não ultrapassa o
limite de um grupo de pessoas escolhidas; pretender amar
todo mundo é uma contradição, um passo errado, que, em
definitivo, não nos faz amar ninguém. A esta objeção res-
ponderia eu que, se o amor universal fosse impossível, como
pretendem os nossos argüidores, por que então
experimentamos em nossos corações aquele irresistível
instinto que nos conduz para a unidade toda vez que surgem
em nós as mais profundas emoções, não importa qual seria a
sua orientação? Um amor universal não é só
psicologicamente possível; é o único modo completo e
definitivo pelo qual podemos amar.

A sexualidade destina-se, pois, a caracterizar e a afetar toda a
pessoa do indivíduo em luta para adquirir uma completa
personalidade como ser humano, e assim fazendo, mediante
as relações e os atos de amor, visa ajudar os outros a
conquistar a própria personalidade. A sexualidade não é
elemento isolado, em nossa natureza, que deve ser
descartado à medida que o homem se torna menos "animal";
é força intrínseca de nossa humanidade integral. Com isso,
não pretendemos negar ou minorar o seu poder de destruir a
personalidade, quando desencaminhada, desumanizada. Ao
contrário, quanto mais clara for nossa visão do sexo como
força positiva entre os elementos da natureza humana, com
mais evidência perceberemos o desperdício e sentiremos
horror por seu abuso. Mas a força e a insaciabilidade do sexo
não constituem, por si mesmas, sinais da desordem da
natureza humana em sua condição "carnal", no sentido
paulino de fraqueza, de falta de integração, de alienação. São
antes, manifestação do dinamismo positivo da natureza
humana, da energia inerente à psique humana, que procura
seu complemento.
Esta visão do sexo concorda com o uso constante que faz a
Sagrada Escritura de imagens do amor e da união conjugal
para descrever as relações entre Deus e seu povo, entre
Cristo e a Igreja. O aspecto dinâmico do matrimônio —
mútuo auxílio entre marido e mulher a fim de obterem o
próprio completamento — ilustra, muito embora
imperfeitamente, a ação de Deus, que leva o gênero humano
à sua perfeição em Cristo. O matrimônio, como
completamento mútuo, reevoca, embora mais
imperfeitamente ainda, a idéia da realização integral da
pessoa humana, inclusive da sua sexualidade, além dos
limites daquilo que o coração humano pode conceber, e que
esperamos conseguir no dia da Ressurreição: a união
dinâmica perfeita na vida e no amor de Deus e do próximo.
Diz-nos a Escritura que, então, "não haverá nem casado,
nem solteiro" (Lc 20,30), justamente porque todo o anseio
humano de amor será perfeitamente satisfeito, e se atuará,
com toda perfeição, nossa capacidade de amor e de agir por
amor.
Tal idéia da sexualidade concorda também com nossos
conhecimentos a respeito do papel que ela desempenha nas
maiores crises de desenvolvimento emotivo e sexual. O
primeiro despertar da criança para o sexo — para a sua
própria sexualidade e para a de seus pais — acompanha o
primeiro despertar de sua consciência e de sua existência
como pessoa em relação aos outros, e principalmente em
relação a seus pais, cujas intimidades recíprocas começa a
perceber. A criança vai se inteirando de que ela não é o
centro do universo de seus pais, ao mesmo tempo que
começa a perceber a necessidade de ser por eles amada e a
diferenciá-los como homem e mulher. Desenvolvendo-se
normalmente, o menino se identifica, nesta fase, com seu
pai (a menina, com sua mãe), e quando se certifica do amor
de seus pais, começa a sair do egocentrismo infantil e a pro-
curar relacionamento com outras pessoas.
O despertar do adolescente para o sexo acontece durante a
segunda grande crise de procura da própria identidade. O
rapaz começa a perceber que ele "gosta das moças", que a
iovem completa, de qualquer forma, a sua personalidade
masculina, e sente, ao mesmo tempo, o desenvolver das
forças sexuais físicas que o capacitarão a ser um "outro" em
relação a uma mulher, no matrimônio e na paternidade. A
jovem percebe que ela "gosta dos rapazes", sem que isso
comporte, necessariamente, o despertar dos desejos sexuais
físicos, embora as mulheres atinjam a maturidade física antes
que os homens. Mas o rapaz e a jovem adquirem
consciência do próprio sexo, de modo diferente, quando
sentem necessidade de sair de si mesmos para estabelecer
novos relacionamentos e descobrir-se a si próprios em
relação aos outros e ao seu mundo interior.
A superação mais ou menos bem sucedida destas duas crises,
e a integração de seus elementos sexuais na descoberta de si
mesmos e dos outros, são condições necessárias para um
desenvolvimento emocional sadio. Tanto é verdade que
muitas pessoas competentes no assunto consideram o
bloqueio do processo normal de desenvolvimento em um
destes dois estágios como causa principal do
homossexualismo. Na primeira infância, ou na crise de auto-
identificação da adolescência, a criança não conseguiu
identificar-se com o pai ou com a mãe, e o impulso principal
de sua sexualidade desviou-se da procura de completamento
próprio no sexo "oposto". Razão por que alguns especialistas
acreditam que o homossexualismo, pelo fato de ser
problema preponderantemente psicológico, pode encontrar
na psicoterapia um grande instrumento para reconduzir o
homossexual à linha normal de conduta, se estes enfermos
se convencerem de que podem ser ajudados e buscarem
auxílio. Muitos outros problemas emocionais — por
exemplo, os problemas de psicopatia — podem também
remontar ao modo e às circunstâncias em que um
determinado indivíduo atravessou as duas crises de que
falamos, e são provocados pela deficiência em integrar o
sentido de auto-identificação com o sexo e com a capacidade
de se abrir para o outro mediante o amor.
Se a integração deste ou daquele aspecto da sexualidade na
vida emocional de cada um é tão relevante nestas duas
primeiras fases cruciais do crescimento, tal processo deve
continuar a ser essencial em nossa progressiva caminhada
para a maturidade, e no trabalho para conseguirmos o
amadurecimento no amor, que constitui nossa vocação
cristã. Se o sexo possui tarefa positiva no desenvolver da
criança para uma adolescência normal, e do adolescente para
um adulto normal, deve continuar a exercer papel positivo
em nosso desenvolvimento para a "estatura da maturidade
de Cristo". Na criança e no adolescente, o processo de
integração se desenrola, em grande parte, no subconsciente;
porém, quanto mais maduros nos tornamos, mais capazes
deveríamos ser de levarmos a termo esta tarefa com
consciência e com maior liberdade.

Todo amor é sexual, mas o amor é mais que
sexualidade

Cumpre reconhecer que todo amor é sexual, isto é, que
amamos como pessoas sexuadas, como homem ou mulher, e
que nosso amor se diferencia em cada uma das suas relações;
adquire determinadas modalidades quando se dirige para
uma pessoa do mesmo sexo, e outras, bem diferentes,
quando tem por objeto pessoa do sexo oposto. O amor do
pai não é igual ao da mãe; um pai não ama sua filha como
ama seu filho, nem a mãe ama o filho como ama a filha. O
afeto de alguém pelo irmão é muito diferente do afeto pela
irmã e vice-versa. A amizade entre mulheres é algo bem
diferente da amizade entre homens, e, obviamente, a
amizade homem-mulher muito difere das precedentes, e
toma características peculiares no homem e na mulher; o
amor conjugal não só se diferencia de todos os outros, mas
possui traços que divergem no esposo e na esposa.
Por isso, o sexo é elemento integrante do amor, mesmo
antes de se falar de qualquer orientação incipiente ou atual
para o amor conjugal ou para a união sexual física. Ele é
responsável pela variedade de matizes, de calor e de
urgência que especificam estas várias relações. Desempenha,
por conseguinte, uma tarefa positiva em todos os tipos de
afeto, embora não constitua o único conteúdo da relação
afetiva.
Isto é óbvio, também, no que diz respeito ao amor conjugal.
A sexualidade do marido e da mulher, e o ato sexual em que
este indivíduo realiza sua mais alta expressão, constituem
um aspecto essencial da relação entre os cônjuges, não a
totalidade desta relação. O sexo desempenha sua função na
vida conjugal impelindo marido e mulher a procurarem
aquela singular união entre ambos, de que é elemento rele-
vante a conjunção carnal. Verdade é também que a Igreja
sempre reconheceu a validade de um matrimônio não-
consumado em que marido e mulher concordam em não ter
relações sexuais. Tais matrimônios, contudo, são
considerados como passíveis de dissolução, exatamente
porque lhes falta o complemento que advém da união
sexual; e o casamento em que uma das partes se revela
incapaz de realizar o ato sexual é considerado inválido. A
experiência do mútuo prazer e do orgasmo peculiar ao ato
sexual pode abrir mais ainda as portas da personalidade dos
cônjuges, de maneira singular, persuasiva e determinante,
tornando-os capazes de se amarem reciprocamente com
maior profundidade, proporcionando-lhes uma vida
quotidiana mais plenamente comunitária. Mas eles não se
amam apenas no ato sexual, e devem aprender a colocar o
próprio sexo a serviço do amor, na conjunção carnal e em
todos os instantes da vida. se auiserem que seu amor seja
verdadeiramente conjugal.
A "satisfação sexual", no sentido geralmente aceito, parece
referir-se, em primeiro lugar, ao uso e à realização da própria
potencialidade sexual física, capaz de satisfazer o desejo de
conjunção carnal mediante a união com um "outro" através
do sexo. No caso da mulher, isso pode também implicar a
gravidez. Generaliza-se cada vez mais a idéia de que a
satisfação sexual, assim entendida, é necessária para a
realização da sexualidade em seu. mais amplo sentido psi-
cofísico e humano. Mas a união sexual física só é realizadora
quando favorece a união humana integral das duas pessoas
interessadas, seu crescimento no amor, o uso e o
desenvolvimento de todas as suas forças afetivas.
Como acabamos de observar, o prazer e o relaxamento
psicofísico que se experimenta no ato sexual consumado
como ato plenamente humano, é elemento vital para o
crescimento do amor conjugal assim como para viver a vida
matrimonial como vocação ao amor. Ninguém duvida
também de que é no matrimônio que a maioria das pessoas
encontrarão aquele grau relativo de perfeição humana
possível de se obter nesta vida. Todavia, sendo que o sexo
tem uma função em toda a espécie de amor, uma pessoa só
poderá ser completa sexual e humanamente, sem contrair
matrimônio e sem relações carnais, se atribuir à sexualidade
sua função específica no uso e no desenvolvimento da
própria capacidade de amar nos vários tipos de relações
interpessoais.
Em outras palavras, o sexo imprime seu dinamismo em todas
as relações de amor, e assim desempenha sua função
específica em nossa vida à medida em que o fizermos seguir
a corrente principal de todo nosso impulso afetivo, e
procurarmos orientar este impulso para o amor. Quanto mais
pusermos o sexo a serviço do amor, tanto mais seremos
"perfeitos no amor".
Tudo isso verificou-se, em grau supremo, na vida de Jesus,
assim como no-la descreve o Evangelho. Diz Hettlinger:
"O modo inteiramente natural das relações de Jesus com os
homens e as mulheres nos faz perceber que ele atingiu um
harmonioso controle de si e da sexualidade, que lhe
proporcionaram a liberdade necessária para cumprir sua
especial vocação de "servo de Deus". Poucos ousarão afirmar
que Jesus tenha manifestado sinais de desordem emocional
ou psíquica. A consciência de sua missão tornava
praticamente impossível que ele abraçasse a vida
matrimonial. Se devemos reconhecer que Jesus viveu uma
vida plenamente humana, forçoso é admitir, também, que
seu amor por seus amigos não foi assexuai. Nosso
conhecimento da função do sexo na infância e na
adolescência, como também a constatação de que todas as
relações entre o homem e a mulher contêm um elemento
sexual, tornam absurdo supor o contrário. Isso não deve,
contudo, dar asas a fantasias morbosas, que pretendem
descobrir ligações ilícitas entre Jesus e Maria Madalena. Os
padrões de comportamento sexual, no judaísmo de então,
eram rígidos, e tanto naquela época, como agora, os
políticos se apressariam em destruir a autoridade de um mes-
tre propagador de doutrina subversiva, se pudessem
vislumbrar em seus atos a menor sombra de comportamento
ilícito. Embora seja difícil, para o homem piedoso, tanto
quanto para o libertino, admitir esta constatação, parece
certo aue Jesus viveu uma vida de completa normalidade
sexual, não mostrando repugnância pelo corpo, nem se
sujeitando a nenhum trauma psíquico por efeito de qualquer
paixão estranha ao nosso mundo egocêntrico, ainda que
perceptível por alguém que saiba sair do próprio egoísmo".
Neste aspecto, como em todos os outros, Jesus é supremo
modelo da verdadeira humanidade; mas não é o único
exemplo. Muitos homens e mulheres, dentro e fora da vida
consagrada pelo celibato, não são, absolutamente, criaturas
frustradas ou não realizadas, mas pessoas que realmente
amam, homens e mulheres completos, capazes talvez de
mais intensas e numerosas relações de amor do que se
tivessem optado pelo matrimônio. E todos nós podemos,
pelo menos, procurar completar-nos, no casamento ou lora
dele, se aceitarmos a tarefa integral de aprender a amar
como um processo progressivo e sem limite, capaz de
utilizar e desenvolver todas as nossas energias psíquicas,
inclusive seus aspectos sexuais. (Isto não significa negar a
importância de encontrarmos saídas adequadas para nosso
instinto agressivo, aspecto da natureza humana que vem
sendo cada vez mais profundamente estudado sob vários
pontos de vista, como, por exemplo, nos comentários de
Gorer à supracitada obra de Lorenz). Como notamos no ca-
pítulo anterior, a agressividade parece um fenômeno
orientado a superar os obstáculos que se opõem ao
conseguimento dos objetivos do homem; razão porque há
de ser colocada a serviço do amor em sua atividade
restauradora e vital.
Além disso, deveria o cristão, consciente e espe-
rançosamente, perceber que o dinamismo da sexualidade,
assim como de todo o impulso afetivo, mediante as relações
humanas e além delas, é uma procura de Deus que "nos
amou por primeiro", e que nos torna capazes de amar a ele e
ao próximo. Pode o cristão esperar conseguir aquela
realização plena, que supera "tudo o que o coração humano
pode imaginar", por Deus prometida àqueles que procuram
amá-lo e se esforçam por amar o próximo?

Qual seria esse esforço?

O que dissemos não pretende, absolutamente, minorar as
dificuldades inerentes ao trabalho de colocar o sexo a
serviço do amor. nas relações matrimoniais e em todas as
outras. O sexo pode ser percebido pela consciência como
imperiosa necessidade física, psíquica, ou psicofísica, que
deve ser satisfeita a qualquer custo com outras pessoas; ou
como um apelo a nos doar por amor; ou ainda — e isso é
mais comum — como uma associação destas duas coisas.
Além disso, não nascemos nem crescemos dotados de
perfeita harmonia em todos os setores de nossa natureza, e
talvez menos ainda na esfera sexual. Pode, às vezes, surgir
um violento desejo físico, sem ser, em absoluto, provocado
por qualquer emoção, e muito menos ainda pela vontade;
podemos sentir desejos sexuais em relação a pessoas pelas
quais não nutrimos nenhum afeto e nem mesmo os
primeiros indícios do amor. Muitos, por outro lado, e em
particular as mulheres, podem amar com intensa sexualidade
emocional, sem experimentar nenhuma vibração física
extraordinária. Os homens, tanto quanto as mulheres, são
capazes de levar uma vida de fantasia erótica, que pode, ou
não, se relacionar com a realidade em que vivem, ou com a
sua capacidade atual cm matéria de sexo, cie afeto ou de
amor. O tratamento contra este desperdício de energia física
deve ser procurado em um sereno confronto com a
realidade. Por exemplo, um sábio diretor espiritual
aconselhava um seminarista, que se dirigia a ele muito
perturbado, porque tinha "maus pensamentos" quando via
mulheres bonitas, de tirar um dia de folga para ir à Nova
Iorque e passar o tempo olhando as mulheres como se
apresentavam na realidade quotidiana, caminhando pelas
ruas, sentadas no ônibus, fazendo compras nas lojas.
Admirou-se o seminarista constatando que as mulheres
eram muito menos sedutoras na realidade do que na sua
imaginação, e, desde aquele dia, deixou de ser perturbado
pelos pensamentos que o afligiam.

Diga-se mais, o fenômeno da atração sexual não parece
inteiramente previsível ou controlável. Verdade é que, em
nossa cultura mais ou menos padronizada, nota-se uma
multiplicidade de "sex appeal" em vários ambientes, que
mudam com a moda, e condicionam o comportamento de
muitos. Mas, mesmo que recorrêssemos a computadores
para descobrir "compatibilidades" entre os casais de
namorados, nunca teríamos certeza matemática de existir
entre eles atração sexual recíproca, seja em sentido
meramente físico, seja no sentido mais amplo de descoberta
do outro como sexo "oposto", capaz de completar e de ser
completado, coisa que todos julgam de vital importância.
"Apaixonar-se", conforme a definição comum, significa
descoberta do "oposto". Teoricamente, deveríamos "nos
apaixonar" só pela pessoa que — entre todas as que
poderíamos encontrar na vida — fosse a mais apta a nos
completar e a nos considerar como seu perfeito "oposto".
Pode certamente acontecer que tal descoberta recíproca do
"único no mundo para mim" venha o ser selada pela vida
conjugal, em que ambos continuam a se deleitar
reciprocamente e a crescer no amor, sem jamais pensarem
de ter errado em sua identificação original. É mais comum
acontecer que os cônjuges, cedo ou tarde, constatem que a
sua paixão inicial encerrava um grau mais ou menos
profundo de irrealismos; entretanto, a boa vontade, a
intenção sincera de viver um pelo outro no matrimônio, o
amor de que dispõem, tornam-nos capazes de se esforçarem
continuamente para aceitar o cônjuge assim como ele é
realmente.
Mas a maioria — seja ou não. em definitivo, feliz no
matrimônio — experimenta vários tipos de "paixão" em que
inconscientemente se ilude sobre a existência de uma real
complementariedade. Quiçá tenhamos considerado a atração
sexual como elemento determinante, e sobre ela fundamos a
existência de uma relação de amor. Além disso, certa
necessidade psíquica pode nos ter impelido a considerar
alguém como nosso "outro" ideal, sem que absolutamente o
conhecêssemos; e nos enfatuamos com nosso sonho. Uma
jovem pode, inconscientemente, procurar no homem a
imagem de seu pai, ou um jovem, a imagem da mãe, quando
a necessidade de apoio paterno ou materno não foi
adequadamente satisfeita na infância; chegará, assim, a "se
apaixonar por alguém que lhe faça as vezes do pai ou da mãe
sem se revestir propriamente das funções de marido ou
mulher".
Tais erros derivam do desconhecimento de nós mesmos e
das exigências das várias relações humanas; decorrem,
também da incapacidade de orientarmos nossa sexualidade,
em seus vários níveis, a serviço do amor. Ainda que tais
erros não nos conduzam a uma tragédia familiar (embora
isso também possa acontecer), quando percebemos o que
fizemos, experimentamos a sensação de termos traído a nós
mesmos, e um desgosto diferente daquele que sentiríamos
se amássemos alguém que não correspondesse a nosso amor.
Entretanto, erros como estes constituem, para a maioria, um
aspecto inevitável da condição humana, e podem ser
salutares se, através deles, aprendermos algo mais sobre nós
mesmos, e sobre a realidade do amor.

Cumpre-nos então, reconhecer todas estas possibilidades de
desajuste no que diz respeito ao realismo e ao controle de
nosso comportamento sexual, tanto em campo físico quanto
psíquico, sem permitir, todavia, que isso desanime nosso
trabalho de aprender a amar. A meta é tornar-nos mais
realistas e controlados, sem, porém, cessarmos de amar.
Nossa tarefa não é eliminar ou reprimir a sexualidade, mas
procurar organizá-la, orientá-la, de tal forma que possa
contribuir com todas as suas forças para o amor de Deus e do
próximo. O problema não deveria ser de "suportar o sexo",
mas, antes, de procurar viver mais plenamente possível,
como pessoas humanas sexuadas, em um esforço para
harmonizar e fazer progredir a vida, não para minorá-la.
A "sublimação", em sentido psicológico, é um processo
inteiramente incônscio, pelo qual uma pessoa canaliza seu
impulso sexual para outras formas de atividade. Um
professor celibatário, por exemplo, que se julga realizado em
seus 20 ou 30 anos de trabalho atuante a serviço da
juventude, se alarmaria e ficaria perturbado se lhe
disséssemos, à queima-roupa, que seu trabalho foi uma
forma de sublimação das energias sexuais. Em verdade, seu
trabalho poderá chegar até a ser improdutivo se não receber
devida assistência que o ajude a enfrentar essa nova des-
coberta; mas, se conseguir enfrentá-la, com ou sem ajuda,
ele se tornará bem mais maduro, emocionalmente, do que
antes. Assim, não podemos dedicar maior empenho a este
ou àquele trabalho, com o propósito explícito de desfrutar
nossa energia psíquica ou sublimar nosso impulso sexual, e
pretendermos sucesso neste sentido. Mas podemos,
conscienciosamente, procurar tornar-nos mais abertos ao
amor, cultivar relações de amor, fazer obras de amor nas
relações que estejam a nosso alcance, cônscios de que o sexo
é elemento fundamental em qualquer tipo de amor,
procurando controlá-lo e orientá-lo a serviço de nossos
afetos.

É de fato essencial cultivar muitas e variadas relações, se não
quisermos que apenas uma delas adquira peso excessivo,
revestindo-se de vator absoluto em detrimento do amor.
Isto se faz necessário também na vida de casado, embora as
relações matrimoniais possuam, por si mesmas, caráter de
singularidade e de relativo absolutismo; transformar o outro,
mesmo o próprio marido, ou a própria mulher, em ídolo,
significa obstaculizar o crescimento do amor, que aceita o
outro com seus limites e o ajuda a se abrir cada vez mais para
a amizade. Cultivar muitas relações é necessário também em
todas as formas de vida celibatária, pois, se o celibatário
procurar unir-se por amor a uma só pessoa, excluindo as
outras, será levado à busca da união sexual física e fazer da
pessoa que ama um "oposto", naquele sentido singular, que é
próprio da relação matrimonial.
O múltiplo esforço em amar plena e maturamente,
cultivando várias relações, é, portanto, o modo positivo de
agir para colocar o sexo a serviço do amor. Provavelmente,
jamais obteremos completo sucesso; mas de nós não se exige
pleno sucesso, e sim que procuremos, durante toda a vida,
amadurecer no amor.

Qual comportamento sexual é moralmente
bom?

Na edição revista do Catecismo de Baltimore, por exemplo,
define-se a castidade como "virtude moral que regula toda
manifestação voluntária do prazer sexual, no matrimônio, e
o exclui totalmente, fora do estado matrimonial". À luz de
nossa vocação ao amor, como pessoas humanas sexuadas,
parece que a castidade consiste, acima de tudo, em fazer que
nossas atitudes e comportamentos sejam ditados pelo amor,
e, por isso, em colocar nossa sexualidade a serviço do amor,
antes que servir-nos dela ou submeter-nos a ela como fonte
impessoal de prazer egoístico.
Em outras palavras, a norma de comportamento moral
sexual não deveria consistir em saber se consentimos,
deliberadamente, ou não, no prazer sexual fora do
matrimônio, ou se dele usamos de modo indébito no próprio
matrimônio, mas, em saber se estamos, ou não, procurando
profundamente tratar o outro (e nós mesmos) como pessoa,
sem nos servir dele como se fosse coisa, procurando agir por
seu bem total.
Sem dúvida, propendemos a tratar-nos, reciprocamente,
como coisa, e existe em nós uma inclinação a usufruirmos
do outro em muitos modos. Um dos mais importantes
aspectos do crescimento na compreensão de nós mesmos
consiste, precisamente, em vermos com clareza cada vez
maior, se estamos realizando este trabalho, e como o
fazemos. Mas qualquer pessoa capaz de opção moral pode
avaliar, pelo menos aproximadamente, os motivos que
definem sua atitude em relação à determinada pessoa: estou
procurando seu bem ou apenas o meu prazer? Pode também
estimar a motivação imediata de determinada ação: agindo
assim, estou procurando a mim mesmo, minha satisfação
pessoal, ou o bem do outro? Tal norma de amor não deve ser
interpretada como se não importasse o que fazemos, se a
intenção Cor boa. Agir por amor, como veremos mais
amplamente no próximo capítulo, significa ir em busca dc
valores humanos objetivos, valendo-se dos meios
apropriados para discernir o maior bem em jogo em
determinada decisão e pleitear aqueles valores que
constituem o maior bem de todos os interessados.
Naturalmente, no uso de qualquer norma referente à nossas
atitudes ou ações, podemos cair em engano, pelo
conhecimento insuficiente de nós mesmos, e por nossa
auto-ilusão. Mas a norma do amor, retamente entendida,
deveria levar ao conhecimento de nós mesmos e a uma
humildade mais intensa, ao passo que o esforço que certos
ambientes impuseram sobre gerações de cristãos, para
combater e eliminar todos os vestígios de "prazer sexual
deliberadamente consentido", levou-os à uma
escrupulosidade malsã, em vez de favorecer a verdadeira
pureza de coração. Além disso, ninguém pode dizer até que
ponto o prazer que sente por outra pessoa, por uma história,
por um filme, por uma música (embora isso seja "espiritual"),
por um lindo pôr de sol, ou até por uma oração, não seja
também "sexual", tão ínfimo é o poder do sexo em toda a
nossa vida afetiva. Podemos, entretanto, tomar cada vez
mais consciência de nossas atitudes e de nosso
comportamento para descobrir se se orientam, em linha
geral, ao amor ou ao não-amor, tornando-nos, assim, sem
escrúpulos, sempre mais sensíveis àquilo que mais se inspira
no amor, em nossas disposições e em nossa conduta.
Como procuraremos demonstrar nos capítulos V e VI,
adotar uma norma de amor não significa pôr de lado os dez
mandamentos, os ensinamentos da Igreja, ou as intuições
tradicionais da sabedoria humana e cristã: nem quer dizer
cair no subjetivismo sentimental ou numa desenfreada "ética
da situação". Significa esforço disciplinado para acrescer a
capacidade de discriminar os valores humanos, capacitando-
nos, destarte, a optar e agir conforme as exigências do
verdadeiro amor.
A lei do amor, porém, aplicada à moral sexual, não constitui
espécie de critério abstrato, destinado apenas a uma elite
espiritual. Será obviamente mais fácil aplicá-la quando toda a
formação religiosa seguir, desde a infância, suas linhas
orientadoras. Mas qualquer pessoa capaz de decisões morais
pode compreender a diferença que há entre tratar-se a si
mesmo e os outros como pessoas e tratá-los como coisas.
Exemplificando, o adolescente normal tem condições para
entender que a leitura de revistas pornográficas excita o
instinto sexual como fim a si próprio, e como fonte
impessoal de prazer; o mal não está no prazer, e sim na
intenção, que não é certamente inspirada pelo amor.
Este modo de apreciar o valor moral das atitudes sexuais
parece oferecer argumentos muito convincentes contra a
masturbação, que é um claro exemplo da procura de prazer
sexual egoístico, sem amor. Muitos especialistas, entretanto,
estão convencidos de que concentrar a atenção dos
adolescentes e incutir-lhes temor por esta forma de
comportamento é extremamente inoportuno. Tais autores
acreditam que a masturbação, como prática ocasional,
poderia constituir uma fase do amadurecimento sexual, e só
deveria despertar preocupação se se transformasse em hábito
persistente depois da adolescência. Neste caso, seria sintoma
de alguma perturbação psíquica a exigir uma tempestiva
assistência médica. (Atualmente, quase todos estão
convencidos de que os terríveis efeitos que se costumavam
alegar como argumento contra a masturbação, eram
inteiramente imaginários, confundiam-se com as suas
causas, ou resultavam de medo instilado pelo sentimento de
culpa). Eis um campo em que moralistas e psicólogos cris-
tãos devem, juntos, militar à procura de uma compreensão
mais profunda, e de soluções mais realistas; setor em que um
conselho adequado, que leve em consideração todos os
fatores implicados em cada caso particular, seria muito mais
vantajoso para a juventude.
Mas jovens e adultos deveriam admitir como óbvio que uma
pessoa não se comporta por amor em relação à outra quando
procura satisfação sexual em sentido meramente físico,
orgânico, sem a amorosa doação de si, que transforma a
intimidade física e o ato sexual em atos propriamente
humanos. Além disso, é óbvio qae uma pessoa se serve de
outra como coisa, como meio para satisfazer seus fins
egoísticos, quando recorre à atração sexual, ou a estra-
tagemas emocionais, para garantir-se determinada posição
social, segurança econômica, etc. É o que acontece, por
exemplo, quando uma jovem procura conquistar um rapaz
porque ele é o capitão do time de futebol, não porque deseja
o seu amor como tal. Em sentido mais amplo, toda ação de
"conquista" sexual, por parte seja do homem seja da mulher,
será amolamente iluminada se a analisarmos conforme a lei
do amor. Tentar conquistar outra pessoa para a própria
satisfação, para demonstrar valentia sexual, ou simplesmente
pelo gosto de mais uma conquista, não é, obviamente, uma
conduta de amor; o outro constituiria, no caso, simples
pedra de xadrez numa partida que se joga sozinho.
Além disso, recorrer à lei do amor ajudar-nos-ia a distinguir
entre enfatuação e amor verdadeiro, distinção de grande
relevo para o amadurecimento emocional, assim como para
uma ponderada decisão no que diz respeito ao matrimônio.
Pois, na enfatuação. o outro não é considerado como pessoa
que devemos conhecer e amar e que, por sua vez, nos deve
conhecer e amar, mas, antes, como encarnação do prazer de
que necessitamos: desejamos apenas mergulhar-nos na
satisfação que o outro nos dá, proporcionando-nos tudo
aquilo que julgamos não possuir.

Enfim, a lei do amor oferece orientação mais realística c útil
que a norma do "prazer deliberadamente consentido",
quando se trata de julgar, sob o aspecto moral, as intimidades
físicas fora do matrimônio — tanto as carícias muito
"reservadas" quanto o próprio ato sexual — toda vez que
exista realmente uma relação pessoal de amor. As "conces-
sões ao afeto" representam uma tendência cada vez mais
generalizada no comportamento sexual pré-matrimonial da
classe média. Isto constitui, sem dúvida, um grande
progresso em direção ao comportamento sexual por amor,
que supera a "licenciosidade sem afeto", e o sexo
despersonalizado, sem amor. Entretanto, não nos cumpre
apenas perguntar-nos: "Estou realmente apaixonado por tal
pessoa?", "desejo realmente doar-me a ela e ela a mim?", mas
também: "nosso comportamento está realmente promo-
vendo nosso bem em todas as circunstâncias em que nos
encentramos? Nossas ações miram ao melhor para ambos?
Não seria melhor para nós, nesta situação, abster-nos de
certas expressões de nosso amor?" A questão não é saber se
"nosso amor justifica o que estamos fazendo", mas, antes, "se
nos comportamos realmente por amor nestas circunstâncias
e neste preciso contexto".
No próximo capítulo procuraremos delinear a distinção, que
nos parece fundamental, entre as expressões físicas de afeto,
peculiares a todas as relações de amor, e aquelas que exigem
um contexto matrimonial para incrementá-lo. Esperamos
que esta distinção seja útil para estabelecer o que deveria, ou
não. constituir um comportamento amoroso em de-
terminada situação, por exemplo, quando um homem e uma
mulher desejam ansiosamente contrair núpcias em futuro
remoto ou próximo.
Entretanto, por mais difícil que possa permanecer a
aplicação da norma do amor em muitas situações concretas,
tal lei, retamente aplicada, pode ser entendida e respeitada
particularmente pela juvenlu de de hoje. Além disso, a
aplicação desta norma eliminaria os desastrosos efeitos que
provêm do fato de se considerar como culpa "o prazer
deliberadamente consentido" fora do matrimônio. Tal
concepção não somente causou inumeráveis danos a pessoas
solteiras, fomentando escrúpulos, mas também prejudicou
um incontável número de casais, impedindo-os de libertar-
se do sentimento de culpa ao experimentar o prazer sexual,
mesmo no matrimônio.

O recurso à lei do amor faz com que todas as questões que
procuravam definir o lícito e o ilícito, ou o mais certo e o
menos errado no comportamento sexual, saiam da esfera
obscura dos conceitos impessoais de "impuro" ou de "puro",
e passem à luz da realidade verdadeiramente humana,
pessoal e responsável. O comportamento sexual sem amor,
em todos os seus possíveis graus de advertência ou de inad-
vertência, não deve ser considerado pior, ou melhor, que o
comportamento sem amor em qualquer outra área da
conduta humana. Os erros a respeito dos elementos que
constituem, de fato, o comportamento sexual por amor, em
determinadas circunstâncias, não são piores, nem menos
freqüentes, em virtude da fraqueza humana, do que os erros
em torno daquilo que constitui bem para os outros ou para
nós em todos os outros tipos de decisões. Destarte, quem
age sem amor no comportamento sexual não é pior de quem
age sem amor em qualquer outra esfera da conduta humana.
Nem se torna, por isso, mais "audaz" e sua conduta não
constitui um desafio mais orgulhoso que outros a certos
tabus sem sentido. O comportamento que não é ditado pelo
bem-querer, opõe-se aos valores humanos; neste sentido,
será tanto mais desumano quanto mais carecer de amor. Mas
a tarefa de nos tornarmos plenamente humanos dura a vida
inteira.
A lei do amor convida-nos, portanto, a amadurecermos
como pessoas humanas, e a contribuirmos para nosso
crescimento recíproco. Entendida no contexto do amor de
Deus e da nossa vocação ao amor, esta norma não nos impõe
regra nova e rígida com a qual devemos medir nossa
conduta. Não é lícito perguntarmos "até onde posso chegar
para não faltar ao amor". Esta norma conduz-nos, antes, à
autoconsciência e à confiança no amor de Deus, sempre
pronto a perdoar nossos erros, como também nossas falhas
no amor, sempre pronto a nos ajudar mais uma vez a
superarmos nosso egoísmo e a caminharmos para o amor no
comportamento sexual e em todas as esferas da vida
humana.

"Olha como estes cristãos se amam!"

Com uma compreensão mais profunda das exigências do
amor e da função positiva da sexualidade em todas as esferas
do bem-querer, poderíamos começar a libertar-nos dos
temores que afligem muitos dentre nós quando iniciamos
uma relação de profunda amizade com pessoas de ambos os
sexos, adquirindo idéias mais claras e coração mais aberto.
O temor que inspiram as relações de amizade, entre homem
e mulher, fora do matrimônio, é profundamente inveterado
em muitos padrões éticos e sociais. Mas a vida moderna está
conduzindo a um irrealismo cada vez maior porque procura
evitar os riscos inerentes a estas amizades separando o mais
possível os homens das mulheres. Melhor seria reconhecer
estes riscos e procurar orientá-los de maneira equilibrada e
adulta, no contexto positivo de nossos esforços para crescer
no amor. Deveriam, pois, os cristãos deixar de se agarrarem
a modelos leigos, clericais ou religiosos da vida, que tornam
dilícil, quando não impossível, fomentar amizade entre
homens e mulheres; cumpre oferecer mais amplo apoio a
situações que possibilitam cultivar muitas espécies de
amizade. Além disso, necessitamos de amizade com pessoas
tanto do mesmo sexo quanto do sexo oposto para enriquecer
e elevar as nossas possibilidades, como homens ou
mulheres, na vida real. A "rivalidade do sexo" há de ser
entendida em termos de intercâmbio aprazível e estimulante
entre pessoas dotadas de sexo, que percebem o valor de sua
própria posição, e a necessidade de serem complementadas
pelo sexo oposto.
Felizmente, parece estar desaparecendo a segregação sexual
no curso secundário e superior. O sistema segregacionista,
que só permite o encontro com jovens de outro sexo em
condições que reevocavam o cultivo de flores em estufas,
não é útil à moralidade nem faz amadurecer a capacidade de
amar. Uma jovem de uma das melhores faculdades para
moças, constatou, em experiência pessoal, que as jovens se-
quiosas de entrelaçar relações de amizade, mais que de
namoro, com rapazes, podiam fazê-lo muito mais facilmente
com estudantes de uma universidade mista adjacente, do
que com os que estudavam na repartição masculina da
mesma faculdade. Os primeiros estavam acostumados à
companhia de mulheres no dia-a-dia e em situações alheias
às vicissitudes escolásticas, e eram, por conseguinte, muito
mais abertos aos vários tipos de relacionamento. Mas,
naturalmente, a posição da escola ou da faculdade não cons-
titui o único fator; as atitudes familiares e sociais são muito
mais importantes para encorajar ou desencorajar uma visão
mais ampla das relações entre rapaz e moça, entre homem e
mulher, de quanto não o sejam os assim chamados
"encontros".
Não é paradoxo, como poderia parecer, afirmar que numa
época na qual, segundo a opinião de muitos, o nível moral se
acha em declínio, e aumenta a imoraridade, deveríamos
preocupar-nos menos com as situações que favorecem um
comportamento sexual favorável, e promover situações
favoráveis ao florescimento da amizade. Criando clima
propício à amizade entre pessoas do mesmo sexo, ou de
sexos diferentes, proporcionaremos à grande número de
pessoas uma idéia mais realista das implicâncias morais do
comportamento sexual. Como não raro acontece, a
integração do sexo no verdadeiro amor humano tornou-se
mais difícil para jovens e adultos, do que deveria ser, pois
escasseiam os estímulos e as oportunidades de se criar novas
amizades visando a promover o impulso afetivo. Jovens e
adultos não reconhecem mais este impulso por aquilo que
realmente é, nem encontram nenhuma saída para a
afetividade e o sexo, a não ser em relações que constituem
intimidades carnais, ou para elas se encaminham. Destarte, a
moral cristã, como já dissemos, seria fortalecida e não
enfraquecida, se se criassem maiores oportunidades para se
entrelaçar amizade.
Promover clima favorável ao afeto humano poderia
constituir, também, uma das grandes contribuições do
cristianismo para resolver o fenômeno do homossexualismo,
em franca expansão. Tal anomalia parece,
fundamentalmente, um problema provocado por alguma
deficiência afetiva no ambiente familiar durante o período
crucial do desenvolvimento da personalidade; razão por que,
quanto mais ajudarmos os pais, a compreenderem o
processo da evolução psico-sexual e a se compenetrarem de
sua importante tarefa no que diz respeito à criação de um
clima de amor para seus filhos, tanto mais estaremos
reduzindo as causas do homossexualismo.
Os rapazes de colégios internos caem muitas vezes neste
vício, devido à impossibilidade de terem relações com
moças. Eliminando os inconvenientes destes internatos, e
encorajando a amizade entre rapazes e moças, estaríamos
contribuindo, em grande escala, para reduzir o número
daqueles que, na incerteza da própria identificação sexual,
são levados a um caminho errado, que corre o risco de se
tornar situação estável. Também o medo do
homossexualismo, que obsessionou a disciplina de tantas
ordens religiosas, de escolas e seminários, deve ser
enfrentado com o conhecimento que temos de suas causas
psicológicas, baseando-nos na certeza de que a falta de
relações normais com outras pessoas deve ser considerada
mais como causa do que como remédio para esta
anormalidade.
Enfim, um clima sadio de afeto cristão pode ser considerável
auxílio para um homossexual que deseja voltar à
normalidade; oferece uma saída para seu impulso afetivo
capaz de reduzir seu desejo de contato com homossexuais e
de incentivar a procura de auxílio psicológico. De um lado,
as leis contra o comportamento homossexual entre adultos
parecem mais prejudiciais do que úteis, de outro lado, maior
tolerância social em relação a esta prática poderia introduzir
tais enfermos a julgarem menos necessária a procura de
ajuda e de um possível tratamento. Mas, a aceitação
completa de um homossexual como pessoa constitui,
certamente, uma obra de amor cristão maior do que
qualquer outra.
Podemos resumir o que dissemos, repetindo que todos os
verdadeiros riscos ínsitos na tentativa de amarmos uns aos
outros como pessoas humanas completas — pessoas
sexuadas — são muito inferiores aos perigos que surgem da
falta de amor. Fomos feitos para amar, para procurar
continuamente realizar-nos de forma cada vez mais
completa (embora sempre relativa) libertando-nos da
escravidão do nosso egoísmo através do amor e do serviço
de Deus e do próximo. Nascemos e crescemos com impulso
afetivo e sexualidade desordenada; ambos, afeto e
sexualidade, tendem a arrastar os outros para a órbita de
nosso egocentrismo, ao mesmo tempo que nos impelem a
sairmos de nós mesmos e a procurarmos os outros. Como
cristãos, acreditamos que Cristo oferece às criaturas
humanas, que respondem ao dom divino do amor (não
importa como o reconheçam) a capacidade fundamental de
quebrar as correntes do próprio egoísmo para amar como ele
ama. Devemos optar muitas vezes em nossa vida por um
amor "com fatos e em verdade", mas só podemos aprender a
amar, amando e não reprimindo nosso desejo de amar.


4. A FUNÇÃO DO CORPO NAS RELAÇÕES
HUMANAS

Se quisermos que a afetividade e o sexo influam na vida e no
amor de cada um de nós não devemos pensar que somos
"criaturas compostas de alma e corpo", como se fossem duas
entidades separadas; cumpre-nos admitir que somos pessoas
psicofísicas e que o corpo constitui nosso ser, embora não
seja todo o nosso ser. Devemos compreender a função de
nosso corpo precisamente como realidade que nos possibi-
lita estarmos presentes e servirmos o próximo, qual
instrumento recíproco para amar e realizar as obras do amor.
Certas pessoas consideram esta atitude positiva como
inteiramente natural. Mas, para muitos, a sua conquista exige
longo processo até superar a desconfiança inconsciente e a
aversão pelo corpo e entender conscientemente o exato
comportamento a seguir. Pois, vários influxos culturais e
religiosos levaram-nos a desconfiar do sexo e formaram
também nossa opinião em torno de nosso corpo,
encaminhando-nos para uma concepção que o definia como
realidade separada e inferior à alma. De acordo com esta
mentalidade, o sexo é algo simplesmente corporal, e a
sexualidade é sempre um desejo sexual desordenado. Os
órgãos sexuais constituem a parte "má" de um conjunto
arruinado, parte que deve ser o mais possível ignorada, salvo
no que diz respeito aos esforços necessários para regular a
sua atividade. Um exemplo disso pode-se ver num texto do
primeiro catecismo, publicado em inglês e cm francês, em
uso até há poucos anos. Segundo aquele texto, eis uma
pergunta que a criança devia fazer, examinando sua
consciência: "Toquei a parte má do meu corpo?"
Ao inverso, na literatura católica sobre educação sexual,
nota-se também outra tendncia diametralmente oposta, que
considera os órgãos sexuais como partes peculiarmente
"sagradas" do corpo humano. Eis um exemplo: "Aos
adolescentes pode-se dar uma explicação em termos como
estes: são estas as partes santas, ou íntimas, ou sagradas do
corpo, porque Deus fez o menino de tal forma que, quando
crescer, possa tornar-se pai, se o Senhor assim o quiser".
Mas, estas e outras tendências semelhantes, que consideram
o ato sexual no matrimônio como coisa "santa" não mudam
muito as coisas, como poderia parecer. Os antropólogos e os
peritos em religiões comparadas dizem que o sentido de
"impuro" e de "sagrado" são muito afins. Ambos constituem
áreas "intocáveis", que devem ser mantidas separadas da vida
humana normal. Este dado da antropologia tem sua
confirmação: a mentalidade que suspeita como "impura" to-
da atividade sexual, também considera o sêmen humano
como coisa sagrada, embora a racionalização biológica desta
atitude — isto é, que o sêmen contenha potencialmente
uma criatura humana completa — já tenha sido de há muito
abandonada.
Demonstrou-se, claramente, que tal atitude não é
autenticamente cristã. Como dissemos acima, a Bíblia não
considera o homem como um "composto de alma e corpo",
duas entidades separadas, mas, antes, como um conjunto de
corpo e espírito, pois usa exatamente o termo "coração" em
sentido psicofísico. Nem a palavra "espírito", na Bíblia,
significa uma "realidade sem corpo", mas algo vivo e vital. A
palavra "espírito", em hebraico, assim como no grego e no
latim, vem de uma raiz que significa "respiro". O respirar de
uma criatura é sinal de que está viva; por isso, o respiro
passou a significar a verdadeira vida, a vitalidade de um ser
vivo, o seu "espírito". Assim, Deus é "Espírito" porque é o
supremo Vivente, que concede ao homem uma participação
de sua própria vida, a qual supera o grau de vida atingível
pelas criaturas, pois o homem é capaz de sair de si mesmo e
de se unir a Deus e ao próximo pelo conhecimento e pelo
amor.

Quando S. Paulo estabelece oposição entre "carne" e
"espírito", não tenciona descrever-nos um contraste entre
corpo e alma, mas a diferença entre o homem integral, em
sua "condição humana" de fragilidade, pecado, egoísmo, falta
de vitalidade e de capacidade para amar, e o homem que
possui realmente a vida e é capaz de sair de si mesmo pelo
amor, em virtude do Espírito de Deus. O "estado de graça" é
precisamente este dom de vida e de capacidade para amar.
Destarte, levar uma vida "espiritual" significa cooperar na
obra do Espírito com todo o nosso ser psico-físico, aprender
a amar e produzir obras de amor como pessoas humanas
completas. Devemos passar pela morte antes de sermos, à
semelhança de Cristo ressuscitado, totalmente
"espiritualizados" pelo Espírito; mas, em nossa condição
atual, devemos esforçar-nos por "caminhar no amor", como
diz S. Paulo, como todo o nosso ser.
A visão bíblica do homem não resolve todas as questões que
poderíamos suscitar em torno da corporeidade humana e da
morte. Mas nos demonstra que elevemos deixar de
considerar o homem como alma que habita em, um corpo,
ou como anjo que opera no corpo através de glândulas
(assim descrevia Maritain a concepção de Descartes): nosso
corpo é nossa própria realidade, embora sejamos algo mais
que simples cornos. A concepção, que faz do homem uma
justaposição de duas entidades separadas, contraria este
outro conceito mais fundamental, que considera nosso
corpo como "eu", embora não seja "todo o nosso eu". Cada
um de nós tem uma "imagem corpórea", como dizem os
psicólogos, que não é toda a "imagem do eu", mas faz parte
dela e exerce profunda influência em nossa imagem pessoal.
A perda de um dente ou de um cabelo pode levar alguém a
sentir que todo o seu ser esteja se decompondo. Pessoas que
perdem um olho experimentam profunda sensação de
detrimento em toda a própria personalidade, porque pensam
que já não são mais um ser completo. Sujeitando-se a uma
histeroctomia, muitas mulheres experimentam uma fase de
depressão em grande parte atribuível ao fato de julgarem ter
perdido algo de sua personalidade feminina, sentimento este
inteiramente injustificado. Por outro lado, como todos
experimentamos uma mudança para melhor em nossa
imagem corporal, pode operar maravilhas em nossa imagem
pessoal. Barbear-se pode restituir ao homem o sentimento,
antes vacilante, de auto-afirmação; o mesmo se diga da
mulher após um penteado. Um traje novo, que nos parece
realmente ornar, pode dar-nos a sensação de sermos mais
nós mesmos.
A visão bíblica da natureza humana corresponde, portanto, à
realidade psicológica. Além disso, esta concepção permite-
nos acolher sem temor todas as descobertas da ciência sobre
a interação entre espírito e corpo. Muito útil seria conhecer
com mais clareza, por exemplo, se as características
emocionais, que sabemos acompanham as doenças em geral,
são causa ou resultado destas enfermidades. E será também
interessante conhecer mais a fundo como uma vontade forte
pode. às vezes, obter bons resultados não obstante os
defeitos corporais. Clarence Day, por exemplo, autor da obra
Life with Father, continua a trabalhar e a mostrar alegria
apesar dos longos anos de penosa artrite. Certas pessoas,
fisicamente feias, parecem belas, graças a sua irradiante
personalidade. Interessa também saber se certos
psicotrópicos conseguem realmente colocar os indivíduos,
em determinadas circunstâncias, a contato direto com a
realidade fundamental, e como isso pode acontecer. Quanto
mais conhecermos esta matéria, mais condições teremos de
considerar nosso corpo cm sua exata realidade, isto é, como
sendo nós mesmos, embora não constitua todos nosso eu;
não um obstáculo ao amor, mas expressão e instrumento dos
nossos afetos.

Estamos com o próximo e o servimos graças
a nosso corpo

O modo de conceber a realidade corporal, de viver nela e
por ela, representa o ponto mais importante da especulação
de vários filósofos atuais quando enfrentam o problema da
função do corpo como instrumento indispensável para
compartilharmos a vida do próximo, em comunhão e amor
recíproco. Só podemos perceber a realidade sensória, e a
"extra-sensória", através dos instrumentos e meios que o
corpo coloca à nossa disposição. Destarte, é somente através
do corpo que podemos comunicar-nos com outras pessoas,
embora a pessoa seja algo mais que simples corpo, e as coisas
a serem comunicadas constituam realidades que ultrapassam
a esfera dos sons e das imagens. A "união dos espíritos"
jamais poderá se realizar se as pessoas não se encontrarem
mediante o próprio corpo.
Mais ainda, a presença física real parece necessária para uma
plena comunicabilidade entre pessoas. O engenho humano
tem inventado muitos meios de comunicação indireta e à
longa distância, que, em última análise, sempre exigem a
mediação do corpo; mas nenhum destes meios possui a
plena capacidade de comunicação, que oferece o encontro
face a face. Todos temos experiência das vantagens que
oferece o encontro com uma pessoa, com a qual nos
comunicávamos somente por carta ou por telefone, para
incrementar nossas relações com ela, embora seja realmente
difícil definir tais vantagens. Todos sabemos também o que
seja desejar ardentemente a presença física de alguém:
escrever, telefonar, e o próprio telefone-televisor, que
teremos em próximo futuro, não podem absolutamente
substituir o encontro pessoal. A verdadeira "companhia"
exige que a pessoa esteja corporalmente presente junto ao
outro.
Entretanto, esta presença física entre duas pessoas só produz
intercomunicação pessoal à medida que ambas desejarem c
forem capazes de se comunicarem mutuamente através de
seus corpos, de exprimir mediante olhar, tato, gestos, tom de
voz, e toda a própria atitude, sentimentos como estes: "estou
com você e sou para você; sou feliz em estar aqui com você
e para você; estou procurando dar-lhe algo de mim mesmo e
receber tudo o que você quiser me dar". Como bem
sabemos, podemos estar fisicamente presentes junto a
pessoas com as quais não temos nenhum interesse de nos
comunicar, por exemplo, em um ônibus. Podemos estar
fisicamente presentes junto a um indivíduo de quem não
gostamos, e criar entre ambos verdadeira barreira, que
impede a comunicabilidade; o mesmo podem os outros fazer
em relação a nós. Conhecemos, também, quanta frustração
nos causam certos encontros em que, pelo cansaço, pelas
circunstâncias do encontro, ou por nossa própria
incapacidade, parece que não conseguimos nos comunicar
com alguém que amamos, embora o tenhamos
profundamente desejado. Que imensa satisfação nos
proporciona o simples fato de estarmos com alguém que
amamos, comunicando-nos com ele só com nossa presença
e nossa atitude.
Nosso corpo é, pois, elemento essencial em todas as relações
e em todos os tipos de amor. Cumpre-nos, portanto, assumir
a tarefa de torná-lo instrumento apto e hábil não só para
realizar obras de amor, mas também para exprimir e
fomentar as relações de fato.
Esta exigência esclarece, outrossim, a questão da modéstia,
que levou certos cristãos a esforços às vezes tão ridículos,
como o de obrigar os índios de certas ilhas a se vestirem
como os europeus, a instituir as "Cruzadas Marianas", etc.
Conforme o pensamento dos Padres, a "nudez" culpável das
criaturas humanas, descrita no Gênesis como conseqüência
do pecado, é a carência daquela "veste", que é a graça de
Deus; é nossa falta de participação no esplendor da caridade
divina. Com efeito, S. Cirilo de Jerusalém, em um de seus
sermões aos neo-batizados, congratula-se com eles por
terem reconquistado aquela "veste", e com ela, e per ela, a
virtude de não se envergonharem da própria nudez, quando
emergiam da fonte batismal peíante os cristãos que tomavam
parte na cerimônia.
A modéstia cristã não pode, pois, consistir em escondermos
nossos corpos ou qualquer de suas parles como algo de que
deveríamos nos envergonhar. Antes, a modéstia é o inverso
do exibicionismo, que procura atrair a atenção sobre si para
sujeitar os outros aos próprios interesses. Ela é um dos
aspectos da atitude de amor para com os outros, que
equivale a este desejo: "Eu gostaria de entrar em relação com
você, se você o quisesse". Aliás, ela nos guia na escolha das
roupas, dos cosméticos, dos gestos e atitudes, que poderão
melhor capacitar nossos corpos a manifestar "discretamente
nossa personalidade às pessoas que vamos encontrar em
diferentes posições sociais e culturais, isto é, levando em
conta as expectativas, os preconceitos, as condições sócio-
culturais que lhe são próprias. Poder-se-ia, com efeito,
elaborar toda uma teologia das vestes, do penteado, dos
cosméticos, para demonstrar como tudo isso é bom, quando
orientado a facilitar nossa melhor apresentação perante os
outros, conforme as valias circunstâncias; e é mau, quando
se destina a projetar falsa aparência de nós mesmos para
enganar o próximo.
Todas as gamas de cortesia têm aqui sua aplicação, se
disserem respeito ao uso de nosso corpo para exprimir e
realizar o amor. Não é insólito encontrarmos pessoas cujas
maneiras rudes e cujo comportamento grosseiro fazem
fracassar seu desejo de amor. Percebemos a "boa intenção"
de que são dotadas, mas preferiríamos que não nos
procurassem. Conhecemos, também, pessoas egoístas, que
se apresentam com tanta atração e cortesia, que somos quase
levados a perdoar sua insinceridade; estas, realmente, não
desejam amar, mas não deixam de oferecer uma agradável
companhia. Um cristão deveria ser sempre uma "agradável
companhia", muito mais do que poderia sê-lo o mais
irresistível conquistador. Cumpre-mos, pois, cuidar que
posso comportamento e nossas maneiras exprimam respeito
pela dignidade da pessoa alheia, desejo de servir-lhe, e
abertura em aceitar a amizade que porventura se nos
oferece.
Posto que só podemos estar com o próximo e servir-lhe
mediante nossos corpos, e que nosso corpo é o principal
instrumento para exprimirmos o amor, surge também a
necessidade de cultivarmos todos os meios de comunicação
formal ou informal, inclusive a arte de conversar.
Deveríamos desejar comunicar-nos com os outros do
melhor modo possível, e procurar os meios mais oportunos
para conseguir, realmente, esse objetivo. É mister, pois,
atendermos às descobertas da psicologia e da psico-
sociologia, no que diz respeito às coisas que impedem ou
facilitam a intercomunicação, não para obter maior ha-
bilidade em manipular os outros, mas para conseguir
melhores condições de contato interpessoal.
Enfim, devemos cultivar a arte de exprimir um caloroso
afeto. A maioria das pessoas apresenta-se excessivamente
inibida a esse respeito. Não nos sentimos livres de trocar um
caloroso aperto de mão, de reanimar com um abraço urna
pessoa angustiada, de abraçar um amigo que há muito não
encontrávamos, significa sufocar, aos poucos, a própria
capacidade afetiva. Se quisermos restituir-lhe sua verdadeira
função na vida cristã, devemos encontrar modo e meios de
exprimí-la mediante nossos corpos.

Intimidades físicas e relação sexual

O principal motivo que nos leva a temer as demonstrações
de afeto, que acabamos de mencionar é também o perigo de
que todo sentimento afetivo profundo não só procure
exprimir-se fisicamente, mas provoque ressonâncias sexuais,
que serão tanto mais fortes quanto mais envolverem a
pessoa. Mas ninguém vê algo malsão ou imoral quando dois
homens, ligados por profundo afeto, dão violentas batidas
nas costas um do outro em sinal de saudação, ou ouando os
atletas se penduram um no outro após uma dura vitória. São,
contudo, manifestações de afeto violentas e, em certo
sentido, sexuais. Além disso, abraços e carícias entre pais e
filhos não são assexuais; há diversos cambiantes nas
expressões físicas de amor, se a relação é entre mãe e filha,
mãe e filho, pai e filha, pai e filho.
Irreal seria, portanto, pretender traçar uma linha precisa e
imutável entre as expressões de afeto dotadas de ressonância
sexual física, e as que não as têm. A distinção tradicional
entre lícito e ilícito nas relações extramatrimoniais — o
beijo "casto", como se fosse entre "irmão e irmã", oposto ao
beijo passional — não leva em consideração as sutilezas da
sexualidade e do fato humano. Entretanto, esta distinção
constituía pelo menos uma tentativa, embora inepta, de
exprimir uma real diferença.
Quiçá tal diferença possa ser melhor expressa do seguinte
modo. Toda relação verdadeira de amor implica prazer
recíproco, desejo de se conhecer um ao outro mais
profundamente, e de realizar uma união cada vez maior de
espírito e coração. Em todas as demonstrações físicas de
afeto, procuramos exprimir este prazer e este desejo. Mas,
na intimidade sexual física e na conjunção carnal, um
homem e uma mulher também se deleitam reciprocamente,
procuram conhecer-se melhor e se unir precisamente
mediante a sensação recíproca dos seus corpos, e, no ato
sexual, mediante a penetração e permeação do corpo femi-
nino pelo corpo do homem.
Naturalmente, qualquer demonstração de afeto pode pecar
por insinceridade e constituir, portanto, falsos sinais e
violação mais ou menos séria da dignidade humana. Até
mesmo uma criança, por exemplo, tem razão de estranhar
quando agarrada e abraçada por alguém que ela sente não
possuir nenhum afeto por ela como pessoa, cujo gesto é
movido apenas por um sentimentalismo genérico em
relação às crianças. Muito mais ainda, constituirão afronta à
pessoa humana, as intimidades e o ato sexual quando se
revestem de caráter simplesmente físico, pois não só
representam um falso sinal do amor mas também uma pro-
cura de prazer em um corpo, não em uma pessoa como tal;
uma tentativa de conhecer e possuir outro corpo, não de se
unir a outra pessoa ern unidade de corpo e espírito.
Todas as verdadeiras demonstrações de afeto constituem,
portanto, sinais e expressões de amor. Mas, através das
intimidades físicas e do ato sexual "centralizados na pessoa"
e animados pelo amor, um homem e uma mulher procuram
não somente exprimir suas relações de amor, mas também
promovê-las pelo conhecimento, e pelo prazer recíproco
que deste conhecimento físico e amoroso diretamente
deriva. Destarte, a conjunção carnal, realizada por amor e
com a devida ordem, constitui, em sentido profundamente
real, o ato mais plenamente humano que um homem e uma
mulher podem executar, que os engaja plenamente em dar e
receber como pessoas constituídas de corpo e espírito, em
conhecer e deixar-se conhecer, em comprazer-se um no
outro. Tal união sexual coloca o homem e a mulher na mais
íntima reciprocidade física e psicofísica, unindo-os e
fazendo-os viver um pelo outro no mais singular dos modos.
Eis porque as intimidades físicas e a cópula carnal exigem e
implicam o contexto do matrimônio. Nosso corpo é tão
intimamente o nosso ser, que um conhecimento físico tão
íntimo, para ser ato plenamente humano, deveria realizar-se
somente num contexto cm que um homem e uma mulher
se engajam reciprocamente em um conhecimento mútuo
como pessoas, de modo singularmente completo e
exclusivo, que os leva a se doar um ao outro numa união
vital e perpétua. "Viver juntos", em sentido sexual, implica e
exige a "união de vida" no sentido mais vasto, que consiste
em compartilhar a vida de cada dia, com a intenção de assim
fazer durante toda a existência.
Isto não significa, naturalmente, que o conhecimento físico
recíproco obrigue um homem e uma mulher a tal
compromisso. É exatamente o contrário: o engajamento
prévio da mente e do coração faz com que o conhecimento
físico seja um ato verdadeiramente humano, dando-lhe
valor e autenticidade; as intimidades e a conjunção carnal,
por sua vez, acrescentam a este engajamento uma nova e
singular dimensão.
Assim, há uma diferença específica, não apenas gradual,
entre as ações que se destinam simplesmente a exprimir o
amor e aquelas que procuram também o conhecimento
físico íntimo da outra pessoa. Tal distinção pode ser
exemplificada pela diferença que existe entre um "beijo à
francesa" e o mais caloroso beijo por afeto. Entretanto, a
interrogação que um homem e uma mulher não unidos por
vínculos matrimoniais devem colocar não é esta: "até onde
podemos chegar nos atos de amor?" Mas: "desejamos real-
mente chegar ao amor?" Pois o amor, como sabemos, não só
significa o desejo de estar com alguém, mas também de
servir-lhe, de procurar seu bem no contexto de uma
situação concreta. Procurar intimidades e união sexual sem
profundo desejo de união pessoal, constitui, obviamente,
uma negação do amor. Mas, procurar o primeiro tipo de
relações fora do engajamento matrimonial, que é a única e
mais completa comunhão de vida, significa minorar os
valores realmente humanos do sexo em relação a si mesmo e
ao próximo.
Talvez um dos problemas mais agudos para os jovens que
procuram encontrar o próprio caminho em todas as áreas de
relações humanas é o seguinte: como podem duas pessoas
chegar a se conhecer o bastante para decidirem se realmente
desejam contrair vínculo matrimonial, se não começaram a
se conhecer pelo menos através das intimidades físicas?
Uma das respostas é que as pessoas podem se conhecer
mutuamente através de outras formas de relacionamento
humano, que não incluem relações sexuais: conversar,
trabalhar em conjunto, encontrar-se em várias circuns-
tâncias, intercâmbios, etc. Com efeito, estas aproximações
preliminares são necessárias para que a intimidade física
venha a constituir o conhecimento de uma outra pessoa e
não simplesmente de um corpo.
Além disso, podemos aproximar-nos de alguém mediante
demonstrações físicas de afeto, que não incluem intimidade
sexual. É óbvio que, no matrimônio, marido e mulher
cheguem a se conhecer psicofisicamente através de muitas
formas de contato físico e de afeto fora das relações sexuais,
e estas exigem o contexto daquelas para serem realmente
expressões plenamente humanas de afeto.
Dispõem, portanto, as criaturas humanas, de muitos meios
para chegarem a um conhecimento recíproco, que
dispensam aquela forma singular de aproximação constituída
pelas intimidades físicas c pela conjunção carnal. Se
compreendesse melhor a necessidade e o valor destes outros
meios, não sentiria o homem tanta urgência em recorrer à
intimidade sexual física. Nas conjunturas atuais, a obsessão
pelo "sexo" tende a esconder-nos estas outras possibilidades
de contato afetivo. Se cultivássemos com mais consciência,
chegaríamos a apreciar melhor as especiais características da
intimidade física sexual, e mais fácil seria abster-nos toda vez
que não se tratasse de um ato de amor plenamente humano.
Idealmente falando, a relação entre um homem c uma
mulher que pretendem se casar, deveria amadurecer "pari
passu" com o temperamento e a situação de ambos, passando
por diversas fases de conhecimento recíproco em várias
circunstâncias, aumentando o afeto e suas várias expressões.
Se chegaram a um mútuo compromisso através de um
noivado formal ou informal, o progresso das intimidades
físicas deverá caminhar de tal forma que o casal chegue ao
matrimônio quando suas relações já estejam prontas para a
união sexual; protrair esta fase de compromisso sem chegar à
relação sexual, pode provocar tensões e desgaste, que não
raro irão prejudicar a própria conjunção física.
Naturalmente, poucos namoros e noivados conseguirão
proceder conforme esta linha ideal. Por isso, trata-se apenas
de uma orientação para quem se esforça em evitar erros e
procura adaptar-se às circunstâncias.
Muitos, porém, perguntam: "Por que esperar até o
casamento, se já estamos verdadeiramente engajados um
com o outro? Que poderá acrescentar uma cerimônia
matrimonial ao nosso compromisso?" Um dos aspectos da
resposta consiste na própria natureza da cópula carnal.
Muitas pessoas se enganam, pensando tratar-se de uma
experiência maravilhosa em qualquer circunstância; ficam
desorientadas e desiludidas auando percebem que isso não é
absolutamente verdadeiro, tanto no matrimônio quanto fora
da vida maravilhosa: fatores físicos, psicofísicos e
circunstanciais; alguns destes não caem sob o controle direto
das pessoas interessadas. Transformar estas experiências em
um ato de comunicação interpessoal, de mútuo
conhecimento do coração mediante o corpo, realizá-las com
ternura e paixão, estar preparado a dar e a receber o prazer,
constituem, sem dúvida, aspectos essenciais para o pleno
sucesso. Só quem despende esforços neste sentido,
conseguirá obter as várias tonalidades que impedem a
conjunção carnal de se esvaziar, de se tornar rotineira; entre
estes matizes, enumerern-se a consolação, a alegria, o risco,
a serenidade, a intensa ternura, o descanso.
Sendo a conjunção carnal, potencialmente, um ato humano
tão completo que envolve a participação psicofísica total cie
duas pessoas no esforço de se conhecer, de dar e receber, de
mutuamente se unir, ela constitui uma verdadeira arte. Se
todas as formas de comunicação exigem inteligência, esforço
e prática para conseguirem o próprio objetivo, quanto mais o
exigirá esta forma de inter-relacionamento, que é
potencialmente a mais completa de todas! As ações que
envolvem a mente e o corpo requerem habilidade e, por
conseguinte, prática inteligente a fim de se obter um
resultado bom e harmonioso. Que dizer, então, deste
engajamento completo de duas criaturas humanas, prontas a
colocar seus corpos plenamente a serviço do amor,
utilizando-se deles para exprimir e incrementar o afeto e o
conhecimento recíproco?
Aí está uma das razões válidas para se admitir que a
conjunção carnal antes do matrimônio, ou extra-
matrimonial, não é humanamente desejável, mesmo que
haja sincero engajamento entre as duas pessoas. O homem e
a mulher devem viver juntos, isto é, compartilhar a vida um
do outro; e esta convivência deve ser aceita pela sociedade
em que vivem, se quiserem ter condições reais para
desenvolver os valores incluídos na conjunção carnal e
torná-la instrumento entre os mais válidos para favorecer o
mútuo engajamento. Para ser uma elevada experiência
humana e um ato de amor sublime, a cópula carnal exige um
estado de espírito livre de qualquer preocupação, a escolha
do tempo oportuno, a oportunidade de falhar e de tentar
outra vez, no contexto de uma vida amorosamente
condividida. Apesar dos métodos anticoncepcionais
modernos e da acolhida cada vez maior dispensada, em
alguns ambientes, às relações extra-matrimoniais,
semelhantes liberdades não podem ordinariamente existir
fora do matrimônio. Mesmo o assim chamado "matrimônio
experimental" não assegura aquelas liberdades de que
falamos, justamente porque "experimental".
Esperamos que estes conceitos contribuam para esclarecer
um pouco a razão pela qual o afeto não justifica certas
"licenças" — termo em voga nos estudos sobre o
comportamento sexual pré-matrimonial — mesmo quando
excluem o ato sexual, a menos que tal afeto, por parte de
ambos, tenha atingido uma sincera vontade de amor, leve a
um engajamento mútuo matrimonial, e o matrimônio futuro
constitua uma possibilidade existencial não excessivamente
remota. "Licença" é termo sem dúvida infeliz, que se usa
quando a mulher permite ao homem "tomar liberdades" em
relação a seu corpo e à sua pessoa. Se um homem e uma
mulher conceberem o comportamento sexual como
"licença", dificilmente o conceberão em termos de amor. O
comportamento expresso pelo termo "licença" identifica-se,
especificamente, com a relação sexual, e exige, pelo menos
em intenção, o mesmo contexto, para que seja um
comportamento plenamente humano.
Nutrimos, outrossim, a esperança de que nossas palavras
contribuam para esclarecer por que a cópula carnal exige
comunhão de vida e de amor, se quisermos se torne, como
deve, uma experiência humana. Os argumentos geralmente
aduzidos contra a liceidade do ato sexual antes do
matrimônio costumavam firmar-se na possibilidade de uma
gravidez e de contrair moléstias venéreas. Embora se trate
de possibilidades reais, cada um tende a responder: "isso não
acontecerá comigo". Alguns especialistas em problemas
atuais sobre comportamento pré-matrimonial afirmam, com
efeito, que muitas moças não usam a "pílula" nem se
premunem com outras espécies de anticoncepcionais,
porque sentem que só poderá justificar o ato sexual o fato de
serem "arrebatadas" pela paixão, e é difícil que alguém se
convença de ter sido "arrebatada" se se prepara, antes,
contra possíveis conseqüências da união carnal.
Na realidade, tal "arrebatamento" tem pouca possibilidade de
constituir aquela experiência que se procura. De qualquer
forma, uma experiência sexual feliz é quase sempre algo que
há de ser preparado com muito trabalho, e que não pode se
realizar com sucesso senão em um contexto matrimonial,
pois constitui o ponto culminante da vida de matrimônio.
Muitas concepções diferentes do sexo negam decididamente
um ou ambos os requisitos. Em certas camadas da sociedade,
a relação sexual é tida simplesmente como necessidade
biológica, pelo menos para o homem, e não se faz a mínima
questão de procurar uma experiência ou um sentido humano
mais completo para a união carnal. Mas tão logo a educação
nos introduza nas experiências passadas e atuais do outro e
nos torne sensíveis a estas experiências, tais interrogações
começam a ser colocadas. O tipo hedonista das revistas
pornográficas responde a estas interrogações dizendo que,
por quanto lhe diz respeito, a relação sexual se propõe
alcançar uma experiência do mesmo nível da que se obtém
em uma refeição bem preparada, e inclui talvez as
dimensões de um intercâmbio prazeiroso e estimulante
entre pessoas, como acontece, justamente, em um aprazível
jantar à deux. Mas semelhante experiência condividida, diz
o hedonista, não implica nenhuma doação de si e nenhuma
responsabilidade em relação à outra pessoa.
Cumpre afirmar que os partidários desta concepção, embora
aparentem sutileza de raciocínio, pecam por imaturidade e
insegurança. São imaturos porque nem mesmo começaram a
levar a sério o outro e as relações pessoais; permanecem
fechados no próprio "ego"; inseguros, porque não ousam sair
de si próprios pelo amor, e assumir o risco da
responsabilidade.
Outros — e em número cada vez maior, como salientamos
no último capítulo — acham que as intimidades e o ato
sexual deveriam ter como "centro" a pessoa e incluir relação
e engajamento real com o companheiro como pessoa. Mas,
opinam eles, os homens mudam, alguns mais, outros menos,
e outros, ainda, de maneira muito radical.- Por que as
intimidades e o ato sexual deveriam exigir algo mais que o
engajamento completo que duas pessoas realizam hic et
nunc? Por que deveria, ou melhor, como poderia ser um
engajamento por toda a vida?
Alguns observadores, constatando que este ponto de vista
tende a prevalecer cada vez mais, especialmente entre os
que receberam formação universitária, sugerem que a
sociedade deve autorizar duas espécies de casamento: um
tipo se limitaria a sancionar, oficialmente, os valores da
comunhão de vida aceita pela sociedade, que não pretende
ser permanente nem procriar, e outro tipo, que só seria
abraçado por pessoas de certa maturidade, que visam
contrair víncuio estável e desejam ter filhos. Em um dos
capítulos seguintes voltaremos ao complexo problema do
grau de maturidade e da natureza do consentimento exigido
para contrair compromisso de matrimônio por toda a vida, e
perguntaremos se o casal é obrigado a manter este
engajamento em todas as circunstâncias. Quanto a este
capítulo, o problema é saber se a doação recíproca, toda
singular, realizada no ato sexual, não exige, para ser
plenamente humana, um engajamento com o outro
justamente como pessoa que vive e cresce no tempo, um
engajamento de confiança em suas capacidades, no seu
futuro "por toda a vida". Se, como sabemos, a história é uma
dimensão essencial da personalidade humana, como pode
alguém engajar-se totalmente com um outro sem se
comprometer com a sua história futura, com seus dotes
atuais e com as esperanças que nutrimos nele para o futuro?
Um mútuo compromisso, firmado e favorecido pelas
relações sexuais, não exige engajamento em um futuro
condividido? Esperamos que ulteriores estudos filosóficos e
psicológicos em torno da personalidade humana e da
sexualidade em seu desenvolvimento possam confirmar a
tradição cristã, que responde afirmativamente ao problema
em debate.
Como é natural, o princípio cristão de que a cópula c o ato
próprio do matrimônio, e só pode realizar suas
potencialidades humanas em um engajamento de vida
intencionalmente perpétua, não significa que o matrimônio
ofereça algum poder mágico para realizar o ato sexual com
amor e com sentido humano. Muitos casais nem mesmo
percebem por que procurar fazê-lo, pois as regras morais em
que foram educados nunca fizeram menção desta exigência.
Mas, tanto no matrimônio como fora dele, será ilícita
qualquer manifestação sexual quando alguém procura
usufruir do corpo alheio como fonte impessoal de prazer,
em vez de buscar a doação recíproca com alegria e amor. A
idéia de relação sexual como "dever" — a expressão é de S.
Paulo — a ser prestado reciprocamente pelos cônjuges,
parece reduzi-la à satisfação de uma necessidade impessoal.
Talvez, porém, o termo "dever" constituiria expressão
menos infeliz se o considerássemos no contexto daquele
amor que, segundo o mesmo S. Paulo, "devemos" uns para
com os outros. Neste sentido, marido e mulher realmente
têm o "dever" recíproco não só de permitirem um ao outro a
realização do ato matrimonial, como também de se
esforçarem para tornado um ato de amor, sinal e
consumação de todas as outras formas de mútua doação em
sua vida quotidiana.
Este é o motivo pelo qual os ensinamentos da filosofia e da
psicologia sobre a relação sexual são extremamente
necessários como subsídio para realizar a cópula com
habilidade e prazer como um ato psicofísico. Mas tudo isso
explica, também, porque tais informações não constituem
tudo o que se exige como preparação ao matrimônio ou
como matéria de cursos para casais — mesmo quando a elas
se acrescentem algumas exortações espirituais sobre o
sacramento do matrimônio. Os cônjuges devem ser
conscientizados sobre o sentido do afeto, do verdadeiro
amor, da cópula conjugal em seu amplo significado; só assim
terão condições de atribuir à relação sexual o lugar que lhe
compete em sua vida de matrimônio.

Nossa atitude em relação ao corpo

Muitos, porém, casados ou solteiros, necessitamos examinar
toda a nossa atitude em relação aos nossos corpos e procurar
aceitá-los e usá-los como corpos humanos, físicos, mas
sempre pessoais. Isto não acontece facilmente em muitos
ambientes americanos. A tendência da publicidade e da
cultura de nossa classe média visa, em geral, fazer-nos
conhecer apenas os aspectos "simpáticos" de nossos corpos.
Os doentes são levados para o hospital, fora das vistas dos
que têm saúde. Nascemos e morremos em hospitais; por
isso, pode acontecer vivermos mais de cinqüenta anos sem
nunca termos visto alguém nascer ou morrer. Usamos
desodorantes e perfumes para nossos corpos como se fossem
bonecas. Empregamos todos os tipos de eufemismos para
indicar os lugares destinados a "libertar a natureza", como
dizia uma velha tradução da Bíblia. Não possuímos termos
neutros exatos para as funções excretorias e sexuais; temos
de escolher entre a expresão licenciosa, vulgar, e o termo
científico. Somos amiúde definidos como "materialistas",
mas com muita dificuldade começamos a apreciar o prazer
das coisas materiais: alimentos, bebidas, perfumes, cores,
sons, estruturas. E é bem noto que os americanos, homens e
mulheres, são internacionalmente respeitados como
expertos na arte de copular.
Por outro lado, gastamos muito tempo e energia com o
nosso corpo, não só para mantê-lo sadio, mas também para
adquirir o conforto e as coisas que julgamos atraí-lo. O sexo,
de que nossa cultura está saturada, é tido por nós,
primariamente, como atividade física sexual.
Tudo isso denota atitude ambígua cm relação ao corpo: uma
espécie de versão pós-vitoriana (e pós-fronteiriça) da noção
maniquéia, segundo a qual, não importa saber que uso
fazemos do corpo, pois tudo que é matéria é mal; importa
apenas que as almas sejam puras. Temos, em geral, exagerada
vergonha de certas partes de nossos corpos; prodigamo-lhes
muita atenção, mas não nos preocupamos em usá-las com
habilidade e prazer, visando uma vida mais plena para nós e
para os outros. Tal atitude é fruto da nossa concepção de
sexualidade, pois a consideramos como algo estranho a nós
mesmos, como realidade de que devemos nos envergonhar,
ou como coisa de que devemos gozar; falta-nos a visão do
sexo como algo de que nos cumpre usar em vista de
objetivos plenamente humanos. Estas atitudes encontram
apoio em certas noções segundo as quais seria errado (ou
"pouco simpático") para os solteiros pensar nos aspectos da
relação sexual.
Daí resulta que muitos consideram a união sexual como ato
puramente físico; necessário seria que chegassem a
compreendê-la em termos mais vastos, como realidade
psicofísica na qual o aspecto físico há de ser colocado a
serviço do ato humano de comunicação interpessoal. Por
outro lado, muitas mulheres se debatem com o problema de
aceitar plenamente o ato sexual em seu aspecto físico como
algo relacionado com o amor. Muitos manuais sobre a vida
matrimonial passam diretamente de uma descrição exaltada
das belezas do amor conjugal à descrição científica e aos
diagramas dos órgãos sexuais femininos e masculinos, do ato
sexual, da concepção, da gravidez. O choque que nos causa
esta leitura, pela passagem de um estilo para outro, é
comparável à sensação de desânimo que experimentam
muitas mulheres ao descobrirem a nua realidade do coito em
seu aspecto físico, por mais informadas e preparadas que
sejam, e muito embora tenham sido muito "permissivas"
antes do matrimônio, chegando até os limites da relação
sexual completa.
Os manuais sobre o matrimônio dão geralmente bons
conselhos sobre como deve o marido ajudar a esposa a
alcançar todo o prazer possível no ato sexual; alguns são
realmente úteis, pois ensinam aos cônjuges a maneira de
obterem relações matrimoniais bem realizadas. Mas estes
conselhos seriam mais eficazes — pelo menos na opinião
dos autores deste livro — se tomassem como fundamento
uma correta atitude em relação ao corpo humano, conforme
delineamos neste capítulo, encarando o corpo do homem e
da mulher, em sua plenitude física, como elemento essencial
de nós mesmos, como instrumento indispensável para
estarmos com o outro, servindo-o e comunicando-nos com
ele. Tal atitude nos dará a reconhecer o erro que constitui o
mau uso do próprio corpo, e do corpo de outrem, quando o
tratamos sem amor, e compreenderemos como é importante
servir-nos do corpo, retamente, qual instrumento de amor.
Nos versos de Burn: "Gin (if) a body meet a body / Comin
thro' the rye" (Se um corpo encontra outro em meio ao
centeio) a palavra "body" (corpo) significa toda a pessoa,
como em "somebody" ou "any-body", alguém, ninguém. (Os
exegetas dizem que o mesmo se deve dizer das palavras de
Jesus na última ceia: "Este é o meu corpo"). Desta citação
pretendemos deduzir que, quando um corpo encontra outro
corpo, e o encontro de duas pessoas; por isso, devemos
assumir, com seriedade, a função que desempenham nossos
corpos em todos os nossos encontros.
Na primeira parte deste livro, procuramos mostrar que não
podemos cumprir nossa vocação cristã ao amor sem que
aprendamos a amar como pessoas humanas, isto é, como
pessoas dotadas de sexo e de corpo. Nos próximos capítulos
vamos debater o problema referente ao modo de
crescermos, como pessoa, na arte de amar, pesquisando a
maneira de cultivar relações de afeto, e de levar a termo a
obra do amor, amadurecendo-nos como pessoas que amam.

5. "AMA E FAZE O QUE QUERES"

Orientar todo o dinamismo íntimo em nossa natureza e
personalidade para o amor de Deus e do próximo, é tarefa
primordial da vida humana; por isso, o amor há de ser
norma definitiva de toda a nossa conduta. A vida de afeto e a
vida de amor não precisam mais construir dois
compartimentos estanques da existência. Nosso agir pode ser
vivificado e humanizado pelo calor de profundas atenções
para com o próximo. A vida afetiva e as paixões podem ser
libertadas dos entraves do sentimento e da emoção porque
procuramos o bem verdadeiro daqueles que amamos, em
situações concretas. E a vida moral não terá mais como
principal preocupação procurar saber, ansiosamente, se
praticamos o mal, quantas vezes e em que medida.
Consistirá em um esforço que visa ao futuro, e só examinará
o passado em vista de melhor agir para o futuro: esforço em
corresponder ao amor de Deus como pessoas que se
aprofundam no ágape fraterno e cumprem o maior número
possível de ações por amor. Assim, imprimiremos gradual
unidade cm todo o dinamismo de nossa vida.
Como já dissemos, os teólogos estão empenhados na
reorganização da moral, tendo por fundamento a lei positiva
do amor, em vez de se firmarem nos preceitos negativos, ou
na fuga do pecado. Mas não devemos esperar que cheguem
ao fim destas pesquisas para fazermos do amor a norma
definitiva de nossa conduta. O que de nós se exige é o esfor-
ço para desenvolvermos uma consciência cristã adulta, e isso
deve ser possível a todos os cristãos normalmente
preparados. Devemos superar o estádio do superego infantil,
no qual somos vítimas do temor de transgredir tabus e
preceitos materiais, em busca de uma autocrítica cada vez
mais madura em torno das atitudes e das motivações que
determinam o nosso agir; cumpre interrogar-nos sobre
nosso proceder e seus motivos, em vez de aceitar
passivamente certos preceitos meticulosos, em
determinados setores do comportamento, como único
critério do lícito e do ilícito; devemos produzir normas
cristãs em todos os campos, normas que encarnem os
valores humanos a serem ativamente fomentados por nossas
ações. É mister superemos a imatura atitude do "pergunte a
papai", que procura sempre alguma autoridade para nos
indicar o reto caminho, em determinadas circunstâncias, e
aprendamos a tomar decisões que tenham em justo apreço a
sabedoria e a autoridade cristã, mas que também constituam
decisões nossas, pessoais, de que nos sentimos responsáveis.
Como já dissemos, para nos tornarmos responsáveis,
devemos, ser, antes, responsivos. Infelizmente, embora
tenhamos ouvido dizer amiúde que devemos "amar a Deus
sobre todas as coisas, por ele mesmo". Deus nos tem sido
apresentado de tal forma que este preceito se nos torna
psicologicamente muito difícil de cumprir. A insistência
sobre o pecado e o medo do inferno como punição por
nossas faltas, apresenta-nos a figura de Deus como a de
certos pais insensatos, que só sabem dizer ao filho: "não!",
"não faça isso!", dando-lhe a entender que perderá seu amor
se desobedecer. Uma criança educada neste sistema terá
dificuldade em fazer algo mais que a simples obediência por
temor das ordens do pai, e jamais conseguirá elevar-se a um
desejo mais maduro de agradá-lo por amor, a uma
participação ativa pessoal e espontânea nos desejos do
progenitor.
Mister se faz, então, procuremos, com o auxílio de Deus
realizar uma mudança em nossa perspectiva moral,
convencendo-nos de que nunca podemos perder o amor de
Deus — embora possamos nos afastar dele, ele jamais nos
abandona — e tomando consciência de que agir bem
significa responder ao amor de Deus, participar em suas
obras, que redimem a humanidade. Devemos, pois, começar
a perceber que necessitamos pedir a Deus perdão por nossa
falta de amor, e por aquilo que nos induziu a agir assim.
Necessitamos de seu auxílio para superarmos nosso egoísmo,
tornando-nos mais abertos ao amor, c evitando qualquer
ação que não seja por ele ditada.
Começaremos, assim, a perceber a necessidade de uma
autocrítica mais profunda do que o simples exame de nossos
"pensamentos, palavras e ações". É mister desenvolvermos
não só a consciência daquilo que fazemos, mas também o
motivo pelo qual agimos; indagaremos as causas de nossa
falta de amor, e a maneira de superá-las, incrementando os
estímulos que conduzem ao bem-querer. Reconheceremos,
então, a necessidade de cultivar uma atitude de amolem
todas as nossas relações com os outros e de libertar-nos dos
impulsos que nos impedem assumir a amizade no
relacionamento com os outros.
Descobriremos, em outras palavras, que é necessário encetar
um trabalho constante de "conversão", isto é, de renúncia a
viver e agir conforme a "carne", conforme a natureza
humana em seu egoísmo, procurando viver e agir no
espírito, isto é, de acordo com o espírito de Cristo, que é
amor vivificante. Muitos textos da Escritura e da Liturgia em
torno do arrependimento e da conversão, que antes, talvez,
não tivessem muito sentido para nós, porque só procurá-
vamos, em geral, "evitar o pecado mortal", começam a nos
apresentar realidades extremamente relevantes. Mas
devemos também inteirar-nos de que Deus não pretende
tornar-nos perfeitos no amor em um instante; é um
processo de lento amadurecimento, um "morrer'' sem cessar
ao próprio egoísmo para viver mais livre e humanamente.

Para a formação de uma consciência cristã

Tudo que fazemos, é sempre para realizar ou promover algo
que acreditamos constitua um valor, tenhamos, ou não,
consciência disso no instante em que agimos. Quando
escovamos os dentes depois das refeições, por exemplo,
assim o fazemos porque nossa educação infantil, o dentista,
o reclame da pasta dental, convenceram-nos de que
conseguiremos o valor que representam os dentes sadios
escovando-os após as refeições. Quando deixamos de fazê-
lo, é porque temos em vista outra coisa que parece
representar, naquele instante, um valor maior — por
exemplo, chegar ao trabalho na hora certa, responder ao
telefone, etc.
O processo que usamos para elaborar normas de conduta
quotidiana — isto é, selecionar valores e estabelecer
hierarquia entre eles — parece muito complexo. No estádio
de desenvolvimento do superego infantil, assimilamos
consciente ou inconscientemente, as normas que nossos
pais nos apresentam. Em seguida, quando nos abrimos para
um mundo de relações mais amplas, e encontramos outras
crianças, começamos a confrontar aquelas normas com as
nossas, e a formular certos juízos críticos sobre a validade
das mesmas. Este processo torna-se cada vez mais complexo
à medida em que nos deparamos com as normas de
comportamento dos outros, na escola, na vida social em
nossas leituras, no trabalho, etc. Durante toda a vida,
descobrimos valores (reais ou fictícios, mas sempre aceitos
como valores) e continuamos estabelecendo uma espécie de
hierarquia entre eles, sobre a qual fundamos as pequenas e as
grandes decisões de nossa vida.
Por isso, a formação de uma consciência cristã adulta inclui a
crítica dos valores que motivam nossa vida, e a
reestruturação dos mesmos à luz da norma suprema do
amor. Teoricamente, nossa educação familiar e religiosa
deveria ajudar-nos nesta tareia durante a infância e a
adolescência. Mas a dificuldade provém de que o ensino
religioso no passado insistiu excessivamente em preceitos
negativos, ou relacionados somente com certas esferas do
comportamento, despreocupando-se com a constante
necessidade de formar nossas consciências — isto é, de
sermos cada vez mais capazes de discernir os atos que mais
se inspiram no amor. Conseqüência disso é que os católicos
dotados de considerável formação religiosa podem possuir
informações bastante detalhadas, por exemplo, sobre aquilo
que, para os teólogos, constitui pecado mortal no furto,
demonstrando-se, porém, completamente alheios face à
injustiça da discriminação racial, pois este aspecto do
comportamento não se costumava incluir no ensino
religioso. Mas, ainda, muitos católicos não tomaram
consciência do dever de fomentar a justiça em relação ao
problema racial, pois não se usava inculcar como obrigação
cristã o desenvolvimento dos valores humanos.
A Igreja tem sido freqüentemente criticada por se ter
preocupado em ditar normas pormenorizadas a respeito da
moral sexual, dando pouca atenção à moral social. Porém,
pedir aos moralistas que indiquem o limite exato entre
pecado mortal e venial no que diz respeito, por exemplo, à
discriminação de raças, ao problema habitacional, à
educação, e que promulguem suas conclusões, nas cátedras e
nos livros, não resolveria o problema, mas iria fomentar
ainda a moral negativa do "não farás"; nem ajudaria a
convencer os católicos do dever de se engajarem na tarefa
de transformar a cidade secular em cidade mais humana, de
perceber os valores humanos que estão sendo agora
destruídos ou sufocados, de começar a intervir, em maior
escala e mais positivamente, para socorrê-los.
Trabalhar para que a vida do homem seja mais humana, eis
exatamente a vocação cristã. O Senhor disse ter vindo para
que os homens recebam a vida e a possuam em abundância.
Tal como o amor do Cristo, o amor cristão há de ser
realidade vivificadora; nossas ações não devem apenas não
impedir que outros vivam de maneira humana (como nos
prescrevem os seis últimos mandamentos), e sim promover
concretamente o desenvolvimento humano de nosso pró-
ximo (como nos ordena o segundo "grande mandamento").
Além disso, devemos doar-nos em nosso trabalho
quotidiano, era nossas atividades comunitárias, e assim por
diante, para realizarmos este mandamento, pois nossa missão
é amar-nos uns aos outros como Cristo nos amou, a ponto
de sacrificar a própria vida.

Para formar uma consciência cristã adulta, não basta,
portanto, descobrir sempre mais claramente o que não se há
de fazer. Deveríamos, também, procurar conhecer, com
evidência cada vez mais lúcida, aquilo que nos cumpre fazer
para realizarmos a lei do amor. Segundo o ensinamento de
Aristóteles, aceito e desenvolvido pela doutrina cristã, a
norma suprema para agir retamente como homem é "o
maior bem do maior número possível de pessoas". Se
compreendermos esta norma, no contexto do interesse
divino pela pessoa humana, em particular, c do seu supremo
desígnio em relação aos homens, o "bem" deve consistir na
dignidade e na inviolabilidade da pessoa humana, no direito
de possuir todos os meios para se sustentar e se desenvolver
como seres livres, em todas as dimensões da humanidade,
amparados e ao mesmo tempo amparando a sociedade
orientada para levar a uma plenitude de vida as pessoas
mutuamente relacionadas. O bem, que devemos desejar a
todos (inclusive a nós mesmos) e procurar promover, em
nossas resoluções, e com o nosso trabalho, é o conjunto de
valores que tornam os homens capazes de serem mais
perfeitamente humanos.
Realmente, não é sempre fácil discernir os valores humanos
em jogo nas decisões a serem tomadas, e optar por um deles,
quando parecem conflitantes; e isso ainda mais difícil se
torna em virtude da pressão exercida pelas emoções. Por
exemplo, quando um jovem e uma jovem devem enfrentar
o problema de se decidir pelo casamento, ou não, antes de
terminar os estudes, deveriam teoricamente ponderar as
vantagens que um matrimônio precoce pode proporcionar-
lhes contra a possibilidade de o matrimônio comprometer os
bons resultados que adviriam se terminassem o curso,
valores estes que poderiam mais tarde enriquecer a vida
familiar. Quantos tiveram de enfrentar semelhante situação
não ignoram que existem fatores, às vezes muito
"condicionantes", a serem considerados: a carreira ou
trabalho futuro de ambos, as condições econômicas
presentes e futuras, a possibilidade de virem a ter filhos c
suas conseqüências, os deveres para com os próprios pais.
Conhecem também a extrema dificuldade em ponderá-los
desapaixonadamente. Todavia, como bem salienta a ética da
situação, o amor não pode ser cego. Deve procurar ser o
mais esclarecido possível, para discernir e escolher o maior
bem de todas as pessoas interessadas — isto é, o potencial
humano mais elevado e vivificante, que possa, de qualquer
modo, ser realizado.
Considere-se, por exemplo, o problema do casal que deve
decidir se deverá, ou não, ter outro filho. Em plano técnico,
haveriam de levar ern consideração a própria saúde, idade,
rendimento, responsabilidades atuais e futuras em relação
aos filhos que já têm, e outras obrigações de família.
Poderiam também considerar as conseqüências que
acarretaria o nascimento de outro filho quanto ao trabalho
em que um deles, ou ambos, se acham engajados. Se este
fator resultasse negativo, qual seria sua incidência na
situação econômica da família? E se este trabalho
representasse uma contribuição tão importante para a
sociedade, que não pudesse ser comprometido? Que peso
deveria ter, sobre a sua decisão, um possível achatamento,
ou a estagnação de suas condições de vida? Quando se pede
dizer que alguém, realmente, precisa de uma nova geladeira
cu de um carro mais do que de outro filho? E até que ponto
pode influenciar nesta decisão o desejo quase inconsciente
de menores dificuldades ou de uma vida mais segura? Que
peso teria tudo isso?
Mais ainda, que dizer do amplo contexto social em que se
coloca semelhante decisão, não só no que diz respeito à
"explosão demográfica", mas também em relação às crianças
já existentes — órfãs, abandonadas, desamparadas, — que
necessitam de cuidados especiais e amorosos? Não seria
talvez melhor, para o casal, adotar uma criança, ou financiar-
lhe um asilo, do que ter outro filho? E à mãe que dispusesse
de tempo e energia, seria lícito preferir trabalhar em um
asilo vizinho, para crianças abandonadas, do que ter outro
filho? Seria lícito ao casal enviar o dinheiro que gastaria com
mais um filho a uma organização internacional, como a
UNICEF, para sustentar crianças necessitadas cm qualquer
região do mundo?
Eis por que tomar uma decisão sobre o modo de agir mais
inspirado pelo amor em várias situações concretas, é
problema complexo, que implica não somente a consciência
dos valores humanos em geral, e daqueles particularmente
envolvidos no caso, mas também sensibilidade e
conhecimento adequado da situação concreta e daquilo que
se pode fezer, na prática, para atuar uma outra opção. Por
exemplo, para decidir se deverá ou não realizar uma cirurgia,
deverá o médico levar em consideração, além do bom
resultado que poderá advir para o paciente, as probabilidades
de sucesso com a técnica, a habilidade e outros meios de que
poderá valer-se. O amor cristão não deve ser apenas teórico;
há de ser prático, levando-nos a peguntar: "Até que ponto
seríamos capazes de conduzir a bom termo este ou aquele
compromisso em determinada circunstância?"



Pensar com a humanidade e com a Igreja

Realizamos, porém, este complexo trabalho de
discernimento e de opção como membros da comunidade
humana e cristã. Podemos, pois, beneficiar-nos da sabedoria
humana e cristã, passada e presente, para discernirmos quais
sejam os valores humanos autênticos, e quais devamos
preferir quando se apresentem conflitantes, bem como a
maneira de promovê-los em determinada situação concreta.
Atingirmos esta sabedoria do modo mais profundo e extenso
possível, através da leitura, do estudo, dos debates, das
consultas, é um aspecto integrante de nossa tarefa.
Cumpre-nos, todavia; inteirar-nos de que, assim fazendo,
estaremos mergulhando em uma corrente dinâmica de
desenvolvimento, que, começou com os primórdios da
história humana, e continua até hoje. Os homens sempre se
colocam esta questão: "Como posso ser feliz e viver mais
plenamente?" Na procura de uma resposta, foram
beneficiados por aquela "luz que ilumina todo homem". A
revelação de Deus ao povo de Israel esclareceu, em muitos
aspectos, as intuições que outros povos haviam alcançado,
quanto aos valores humanos, e proclamou, também, a
necessidade de promover estes valores para agradar a Deus:
se pretender ser justo aos olhos de Yahweh, deve o homem
ser justo e misericordioso para com seu próximo. Jesus
acolheu e interiorizou o ensinamento da Escritura,
resumindo a Lei e os Profetas no mandamento do amor de
Deus e do próximo. A Igreja, comunidade daqueles que
reconhecem e aceitam o Cristo como Senhor c procuram
viver em seu espírito, empenhou-se através dos séculos, na
tarefa de aprofundar a compreensão desta doutrina, e de
mostrar aos cristãos como viver em harmonia com ela.
Deste modo, a luz que resplandece na revelação de Deus
pelo Cristo, e se manifesta, de muitos modos, na humana
sabedoria levou a consciência do homem a se tornar cada
vez mais sensível aos valores terrenos: à vida, à dignidade, à
liberdade da pessoa, e a seu direito de possuir os meios para
desenvolver a própria personalidade. A Declaração dos
Direitos Humanos da ONU, por exemplo, é uma prova deste
progresso; embora não seja rigorosamente observada,
oferece um padrão básico de conduta e de avaliação do
comportamento humano. Este processo de desen-
volvimento da consciência continua; estamos engajados
nele, e podemos tanto promovê-lo quanto obstaculizá-lo.
Por exemplo, como a humanidade chegou lentamente a
perceber que a escravidão, por tantos anos aceita como
instituição social, era reprovável porque se opunha à
dignidade e à liberdade, assim também, em nossos dias,
estamos chegando a sentir o erro da discriminação de raças e
da injustiça social. Em nossas opções e conversas, com o
nosso voto, afinal, em todas as nossas atividades sociais,
podemos impedir, ou favorecer, a difusão e a implantação
desta tomada de consciência.
Naturalmente, em muitos problemas atuais, não se
consegue, ainda, uma clara convergência das opiniões de
pessoas sinceras e esclarecidas. Há divergências no que diz
respeito à moralidade de uma determinada guerra, ou das
guerras, em nossa situação atual; há também os que
sustentam que a imoralidade da guerra já esteja fora de
discussão. Mais precária ainda é a concordância das opiniões
quanto ao problema do aborto terapêutico. Podemos,
contudo, colaborar para o desenvolvimento do gênero
humano, procurando formar nossas próprias consciências
em torno destes problemas da atualidade, mediante estudos,
debates, reflexões c oração. Com efeito, nosso dever é agir,
sem ficar esperando que as autoridades resolvam o problema
para nós. Hoje, os problemas se multiplicam muito mais
rapidamente do que as soluções apresentadas pelos órgãos
competentes. Tomem-se como exemplo as questões
atinentes ao reto uso das descobertas no campo da genética.
Membros responsáveis por nossa sociedade, devemos
colaborar na busca de respostas que sejam as mais humanas
possíveis.
Cristãos que somos, formamos nossas consciências como
membros da comunidade eclesial, guiados por seus
ensinamentos. Deveríamos, pois, considerar, com a mais
séria atenção, as afirmações do Magistério, no passado e no
presente. Mas, cumpre inteirar-nos de que também este
ensinamento acha-se em fase evolutiva. Não podemos
permanecer fixos e estáticos quando a própria Igreja deve
crescer na compreensão do Evangelho, e tem por tarefa
indicar aos povos de várias mentalidades, culturas e
condições sociais, o comportamento exigido pelo
Evangelho. Além disso, quanto mais minuciosas forem as
leis propostas pela Igreja, e sua formulação, quanto mais
condicionadas por uma mentalidade particular, e pelas
circunstâncias que a provocaram, tanto menos serão
aplicáveis à todos os tempos e situações.
Muitos católicos de hoje acham-se desorientados porque,
dizem eles: "tudo está mudado, e aquilo que nos ensinaram
como sendo errado, não o é mais". Onde vamos parar? Uma
caricatura do New Yorker, que apareceu logo, após
promulgada a nova disciplina sobre o jejum e a abstinência,
mostrava um pequeno demônio perguntando a outro mais
adulto: "Que vamos fazer com todos aqueles católicos que
comiam carne nas sextas-feiras?", demonstra a grande
confusão reinante, que culmina com a determinação de
muitos católicos de abandonar a Igreja, se ela modificar a
doutrina tradicional em relação aos métodos
anticoncepcionais.
É lamentável que tantos católicos tenham crescido sem
conhecerem as razões que fundamentam os preceitos da
Igreja em vários setores, e a possibilidade de mudanças,
ficando, por isso, profundamente desorientados com as
modificações atuais, e com a possibilidade de outras ainda
para o futuro. Todos os preceitos da Igreja, tanto os que se
revestiam de caráter de lei positiva, como a abstinência na
sexta-feira, quanto os que interpretam a lei moral, como as
normas que regulam o uso dos métodos anticoncepcionais,
têm por finalidade proteger ou promover determinados
valores. A lei da abstinência da carne às sextas-feiras, por
exemplo, visava promover o valor da penitência cristã,
tornando obrigatória uma determinada prática penitencial.
Com a mudança das circunstâncias, e com o variar da
mentalidade dos povos, esta prática não parecia mais atingir
sua finalidade; as novas normas têm em mira inculcar o
espírito de penitência, dando aos católicos maior liberdade
de escolher o modo mais idôneo de atuá-lo na própria vida.
Ora, a propósito da lei moral, constitui exemplo clássico de
mudança, as normas introduzidas pela Igreja depois de 1450,
que aboliram numerosas e explícitas condenações da usura,
pois, até então, considerava-se usura "tudo que se exigia
além do capital emprestado":
"Que bens procurava a Igreja proteger? Que meta atingir?
Qual a função específica daquela norma? A estas questões,
poderíamos responder afirmando que a Igreja visava
proteger os bens da justiça e da caridade; que o escopo era
defender o pobre contra a exploração do rico, impelir o rico
a compartilhar seus bens com os outros, e conseguir uma
justa distribuição da riqueza, em benefício de toda a
comunidade. Função da lei de usura era atingir estes fins, e
proteger estes valores. Na economia das pequenas
povoações medievais, a lei da Igreja alcançava seu objetivo.
A Europa ocidental não chegou a conhecer o terrível mal da
usura que sufocou as aldeias da Grécia antiga e a China do
século vinte... Mas, aquela norma de conduta, expressa em
forma de proibição absoluta, não devia se confundir com a
lei moral imutável...
Cabe à Igreja proclamar, até o fim dos tempos, o exemplo de
Cristo, repetir a cada cristão o 'novo mandamento' de amar o
próximo 'como eu vos amei'. A proclamação do Evangelho
implica necessariamente o ensinamento da justiça e da
caridade. Entretanto, depende das circunstâncias concretas
de uma sociedade determinar quais as ações justas e
caridosas. Se mudarem os aspectos econômicos, mudarão
também as exigências da justiça e da caridade; alguns atos
receberão mais enfoque moral, outros menos; a atitude
moral em relação a certas atividades será alterada; as normas
que prescrevem certos atos, e proíbem outros, serão sujeitas
a reexame. Aquilo que se proclamou essencial, pode ser
considerado como tal somente em determinado contexto.
Tal reexame se deu quanto às normas da usura. A finalidade
da lei, que era a de orientar os homens a um maior amor nas
transações financeiras, podia ser atingida com mais proveito
mediante novas normas, e a proibição absoluta da usura, no
sentido antigo, foi realmente reformulada pelos teólogos de
1450 a 1600.
Do mesmo modo, a norma da Igreja acerca dos
anticoncepcionais visa proteger vários bens. "Nunca é lícito
agir diretamente contra uma vida inocente. A dignidade
pessoal de um cônjuge deve ser respeitada pelo outro. O
amor sexual é santo no matrimônio. No contexto de
costumes que ameaçam a procriação, propagados por vários
grupos dualistas durante mais de 1200 anos, a norma acerca
dos anticoncepcionais exerceu a função de proteger o valor
do ato procriativo. Em um contexto ambiental em que não
se tinha em conta a vida do embrião, nem se fazia exata
distinção entre aborto e métodos anticoncepcionais, a
norma teve o objetivo de proteger vidas inocentes,
considerando como sagradas todas as fases do processo da
geração. Em um contexto ambiental em que a liberdade na
escolha do futuro cônjuge era coisa rara, e era grande o
perigo da exploração das mulheres, a norma teve a função de
salvar a dignidade procriativa da mulher. No contexto de
uma aproximação entre métodos anticoncepcionais,
adultério e fornicação, o preceito proibitivo conseguiu
revigorar a fidelidade conjugal. Se estes bens puderem ser
protegidos sem uma norma absoluta no que diz respeito aos
métodos anticoncepcionais, tal rejra deveria então ser
revista, assim o exigindo as transformações sociais.
A norma sobre anticoncepcionais foi aplicada, sem qualquer
crítica, até o fim do século dezoito. Muito lentamente
começou a ser objeto de crítica, no século dezenove, e só a
partir de 1850 as novas circunstâncias ambientais
começaram a pressionar, afetando a sua validade. Entre estas
mudanças incluíam-se a explosão demográfica (crescimento
este provocado, em iarga escala, pelo controle das doenças),
a alterada situação das mulheres perante a lei e a sociedade
ocidental, que dispensava quase totalmente a proteção
paternalista exercida sobre elas, e o desenvolvimento
maciço, no Ocidente, dos estudos universitários. O contexto
cultural em que se situa o matrimônio não é o mesmo do
Império Romano, onde começaram a vigorar as normas
contra os anticoncepcionais, nem é o mesmo da Idade
Média, que reconfirmava aquelas leis. Se tais normas foram
estruturadas para fazer face aos perigos de um determinado
contexto histórico, poderão ser reexaminadas em relação ao
contexto atual.
Destarte, se o Papa, um dia, modificar explicitamente esta
proibição, isto não significará que a Igreja tenha mudado
suas afirmações em torno dos valores acima mencionados;
significará, apenas, que ela propõe uma norma diferente
como meio para incrementar estes valores em um novo
contexto.
Além disso, o conceito de "lei natural", herdado em
particular dos estóicos, que inspirou a elaboração de muitos
preceitos, inclusive dos que se referem ao uso de
anticoncepcionais, era um conceito que compreendia a
natureza humana como "realidade" estática. Não se
inculcava ao indivíduo e à sociedade o dever de "agir por
autodeterminação", mas se exigia apenas um conformismo
com o modslo preestabelecido na mente divina, cujos traços
podiam ser claramente averiguados, observando o homem
em sua natureza concreta. Parecia assaz satisfatório deter-
minar uma finalidade peculiar para cada uma das faculdades
e órgãos do homem. Podia-se afirmar que estavam sendo
retamente usados somente quando serviam à finalidade para
a qual foram criados: a inteligência, para procurar a verdade,
a vontade para fazer o bem, o sistema digestivo, para a
nutrição, etc. A alma e suas potências superiores, conforme
esta mentalidade, eram tidas como entidades distintas do
corpo; razão por que as potências físicas do homem podiam
ter apenas uma finalidade física, e a preservação de sua
integridade física era um valor que devia ser mantido até
mesmo sacrificando aquilo que hoje chamaríamos de bem-
estar psíquico.
Hoje, com o progresso de nossos conhecimentos em torno
da constituição psicofísica do homem (embora muito longe
de serem completos), estamos começando a reconhecer que
a finalidade biológica de um órgão, ou de uma função, não
esgota todos os seus objetivos. Por exemplo, comer e beber,
podem satisfazer muitas necessidades psíquicas, ao mesmo
tempo que apagam as necessidades físicas; comer e beber
juntos podem incrementar toda uma escala de valores
humanos, que superam os estritamente biológicos. (E
nenhum moralista, pelo que sabemos, jamais pôs em questão
a moralidade de um ato executado de tal forma que frustre a
sua finalidade biológica, por exemplo, comer alimentos que
contêm poucas calorias).
Indo mais a fundo, o conceito de responsabilidade humana
como concordância entre o anr e um ideal predeterminado
ou uma "lei natural" estática, está cedendo passo a uma idéia
dinâmica do homem como ser responsável por seu próprio
desenvolvimento, que pretende adquirir um grau cada vez
mais pleno de humanidade. "Lei natural" seria, então, o
consentimento evolutivo do gênero humano, através dos
séculos, quanto aos valores que constituem e desenvolvem a
humanidade. Neste contexto, parece menos importante
preservar a integridade das funções corporais do que tornar a
pessoa capaz de agir de maneira mais plenamente humana,
ou de possibilitar que outros atinjam esse nível de ação.
O problema da liceidade dos transplantes de rins é caso bem
característico. Outrora, os moralistas condenavam tais
operações, fundamentando-se na idéia de que o doador não
tinha nenhum direito de sacrificar sua integridade física, a
não ser em benefício de seu próprio bem-estar físico. Hoje,
embora não seja opinião unânime, a liceidade dos
transplantes é admitida por muitos moralistas, em razão do
maior bem humano que estas operações proporcionam. O
mesmo pensamento poderia ser aplicado, também, à questão
da liceidade da esterilização do marido, quando o casal já
procriou o número de filhos que lhe é possível educar
convenientemente. Sem dúvida, é um valor manter intactas
as próprias funções procriativas. Mas, se uma vasectomia
(operação muito simples e recuperável em cinqüenta por
cento dos casos) levasse os cônjuges a viver em paz a própria
vida matrimonial e a cuidar conscienciosamente dos filhos
que já possuem, não deveria o valor da integridade física
submeter-se a estes outros valores mais plenamente
humanos?
No passado, os moralistas desenvolviam as próprias idéias
mais ou menos em âmbito privado; a grande massa dos fiéis,
que viviam entre 1450 e 1600, não percebia, e por isso não
se perturbava, pela mudança que sofriam as normas da
Igreja.
Hoje, os meios de comunicação, e o elevado nível de cultura
geral, modificaram as perspectivas.
Devemos, pois, inteirar-nos de que o pensamento da Igreja,
em campo moral, está sofrendo um necessário processo de
desenvolvimento, e que isto não significa abandonar os
valores do passado, mas discernir, cada vez mais claramente,
os verdadeiros valores humanes, e os meios de protegê-los e
incrementá-los do melhor modo possível com o mudar das
circunstâncias. Não deveríamos perturbar-nos porque o
"ensinamento da Igreja" a respeito de determinados
comportamentos está mudando. Antes, deveríamos alegrar-
nos por pertencermos a uma Igreja viva, que responde ao
Espírito, e procura novas luzes no Evangelho, sensível à
mudança das condições humanas, compreensiva e, ao
mesmo tempo, operante, em relação ao desenvolvimento da
consciência dos homens. (Por "ensinamento da Igreja"
entendemos aqui os pronunciamentos não infalíveis dos
Papas e dos Bispos, o ensino nos púlpitos, as opiniões dos
teólogos e suas expressões nos manuais, etc.).
Dizem, porém, muitos católicos: se não posso contar com a
autoridade da Igreja para ter a exata solução de um problema
moral; se, após ter-me aconselhado com o representante da
hierarquia, devo eu mesmo tomar minha decisão, como
posso saber se estou agindo bem? A resposta foi bem
resumida nestas linhas de Gerard S. Sloyan:
"Sei que estou agindo bem se procuro ter reta intenção em
todas as coisas que faço. É isso que Cristo chamava de
'pureza de coração', ou de 'sinceridade total' (cf. Mt 5,8).
Sei que estou agindo retamente se levo em consideração o
ensinamento de Cristo, Cabeça da Igreja, expresso com suas
próprias palavras no Novo Testamento, assim como a
doutrina de Moisés e dos Profetas à qual ele se referiu, de
Paulo, e des outros apóstolos, que ensinaram em seu nome.
Sei que estou agindo bem quando, conscientemente, assumo
meu amor por Deus, expresso mediante meu interesse pelos
homens (por este homem, por esta mulher) como medida
de todas as minhas opções.
Sei que estou agindo retamente quando faço apelo à Igreja
para que me ajude a resolver os problemas da minha
consciência: ao ensinamento do Papa e dos Bispos, dos
teólogos e pensadores religiosos, dos sábios e santos que
conheço. Quando, em tudo que faço, procuro o conselho
fraternal dos que crêem, e de todos os homens de boa
vontade.
Sei que estou agindo bem quando permaneço fiel à minha
consciência, quando faço todo o possível para esclarecê-la.
Sei que estou agindo bem quando sigo com atenção os
debates em torno dos problemas morais de nosso tempo, e
suas implicações sociais, que aguardam ainda a palavra
definitiva da Igreja. Eu sou a Igreja, e todos os meus irmãos
necessitam de meu auxílio neste campo.
Sei que estou agindo bem quando suplico a Deus sua graça
em tudo o que faço.
Sei que estou agindo retamente se me arrependo de meus
pecados, e os confesso humilde e sinceramente, sem
encobri-los nem desculpá-los.
Sei que estou agindo bem se peço que o Espírito Santo faça
de mim uma criatura de amor, um ser que ama, na família
humana e na Igreja, apegando-me àquilo que é justo,
rejeitando o que é errado, sem compromissos, e sem
respeito humano. Que o Espírito realize em mim a imagem
de Cristo, filho do Pai, e o que justamente lhe peço.

O amor não pode dispensar a prudência

Os critérios mencionados não são condições a serem
realizadas de improviso ou casualmente; constituem um
programa para a vida inteira.
O filósofo Gilson fazia notar que a "piedade não dispensa a
técnica". Assim, também o amor não dispensa a prudência,
capacidade adquirida, que nos leva a tomar decisões sábias
tanto no que diz respeito àquilo que devemos fazer, quanto
no que concerne ao modo de melhor realizarmos nossas
ações. Estas duas coisas são correlativas, pois inútil seria
tomar uma decisão que não fosse, depois, realizável na
prática. O que se pode fazer representa uma interrogação
vital a ser colocada em referência àquilo que se deve fazer,
embora a imaginação, a coragem, e a esperança cristã
consigam ver possibilidades, e julgar fatível, aquilo que a
outros poderia parecer irrealizável. Por isso é que os cristãos
deveriam conceber a política como "arte do possível", e
dedicar-se a ela.
S. Tomás enumera oito partes ou elementos diferentes, que
concorrem para formar esta capacidade de decidir com
sabedoria: examinar os fatos; determinar os valores
subjacentes e os problemas implicados; raciocinar com
lógica; tomar conselho; proceder passo a passo; ter certeza
de que todos os fatores foram tomados em consideração;
usar criatividade e recursos próprios para chegar à solução e
à decisão final; e, o elemento mais importante, pedir as luzes
do Espírito Santo. Com uma expressão americana,
poderíamos denominar este último elemento de "hunch",
que significa fusão definitiva e pessoal entre experiência e
intuição do agir e do modo de proceder, e constitui a
resposta específica da pessoa e uma situação específica.
Sendo estes elementos tão essenciais como todos os outros
neste sentido a ética cristã deve ser sempre uma "ética de
situação".
É, pois, norma útil procurar analisar as decisões (ou os passos
dados sem tomar nenhuma decisão) a fim de constatar até
que ponto levamos em consideração todos estes elementos
(e, em decisões mais sérias, o elemento mais importante,
que S. Tomás considera como óbvio: pedir as luzes do
Espírito Santo). Pode-se fazer semelhante análise também a
respeito de decisões claramente éticas, principais ou
secundárias — por exemplo, tomar posição pró ou contra a
segregação em alguns casos específicos, criticar certas
normas que proíbem dirigir automóvel a quem tomou
bebida alcoólica — assim como outras que envolvem a moti-
vação fundamental da pessoa, e o sentido dos valores, em
vez do aspecto bom ou mau de um determinado fato. É útil
também procurar analisar os fatores que deveriam ser
levados em consideração ao tomar decisões hipotéticas sobre
questões que ainda não foram enfrentadas: comprar uma
casa nesta ou naquela vizinhança, em determinadas
circunstâncias; escolher uma escola para os próprios filhos,
aceitar este ou aquele tipo de emprego. Tal prática auxilia a
pessoa a não se deixar influenciar pela pressão de forças
internas e externas quando deve enfrentar uma séria decisão
capaz de envolver não apenas o próprio bem, mas também o
bem dos outros.
Naturalmente, não podemos nem devemos fazer um ensaio
geral antes de cada decisão de nossa vida quotidiana. É,
entretanto, claro que, para termos condições de escolha
sábia e amorosa em nossas decisões mais importantes,
cumpre-nos lutar a fim de adquirir as boas disposições e a
capacidade para isso. Cumpre conquistarmos esta
capacidade, se não quisermos ser simplesmente arrastados
por forças internas e externas, e se pretendermos alcançar
uma verdadeira liberdade pessoal. Além disso, se é mister
ponhamos em jogo todos os elementos necessários para
chegarmos a uma sábia decisão, devemos lutar
continuamente para sermos mais informados, melhor
instruídos, mais afetivos, como também mais abertos ao
amor. Aliás, devemos ser tudo isso para realizarmos com
sinceridade nossa obediência ao amor.
Dizer, como S. Paulo, que "o amor c consumação da lei", ou
com S. Agostinho, "ama e faze o que queres", não significa
um convite à irresponsabilidade emocional. Trata-se, antes,
de um convite a unificar nossa vida e ação no serviço
responsável do amor, perpetuando nó mundo de hoje a obra
benfazeja de Cristo e seu anélito que todos "tenham a vida
em abundância".

6. AMAR-SE MUTUAMENTE "NA VERDADE"

O amor é realmente "a consumação da lei"; mas só podemos
realizar este ideal procurando tornar-nos mais abertos ao
amor, assim nas atitudes como no agir. Dizia S. Paulo, que
podemos fazer toda sorte de boas obras, até distribuir nossos
bens aos pobres e entregar nossos corpos à chama; se não o
fizermos por caridade, tudo isso seria, em última análise,
simples futilidade (1Cor 13). Como assinalamos nos pri-
meiros capítulos deste livro, o amor cristão não pode ser
confundido com uma espécie de benevolência fria e
abstrata, mas tenciona ser um amor humano real, entre
pessoas realmente humanas, capaz de integrar e orientar
toda a vitalidade de nosso impulso afetivo. Por outro lado,
como cristãos, não somos chamados a "fazer o bem" à
distância, a estranhos, mas a nossos "vizinhos", a pessoas
com quem estamos, de qualquer forma, relacionados, em
virtude de nossa filiação comum à comunidade do gênero
humano, que Deus ama e protege; por isso, nossa atitude em
relação a todos há de ser pessoal e amorosa. Por outro lado,
em todo relacionamento, devemos ser realmente amorosos,
procurando transformá-lo em verdadeiro entrelaçamento do
amor.
Neste capítulo, consideraremos alguns dos requisitos destas
relações de amor, sua variedade e diferenciação nos vários
"estados de vida cristã".
Nossa relação com Deus é fundamental

É verdade que podemos realizar o amor de Deus através do
amor do próximo, e que, em toda a nossa vida,
conquistamos seu amor mais plenamente amando e sendo
amados; entretanto, se devemos crescer e atingir a
maturidade cristã, nossa relação com Deus em Cristo deve se
tornar, de qualquer modo, relação cada vez mais pessoal e
mais profunda, centralizando nossa existência e nosso
impulso vital. Não que devemos necessariamente dar mais
tempo à oração, em sentido formal, ou aos encontros em
que ele se acha eclesialmente presente — a Eucaristia, a
Escritura, a reunião de dois ou três em seu nome — mas
cumpre tornar-nos cada vez mais conscientes de sua
presença amorosa, de seu estar conosco e por nós em nosso
dia-a-dia.
Muitos fomos educados na mentalidade do temor, que é
paralela à visão legalista da vida cristã, e achamos difícil
renunciar à idéia de Deus como de alguém que se coloca
constantemente à nossa espreita, para ver se estamos
desobedecendo às suas leis, e admitir, ao reverso, que sua
presença é, antes de tudo, uma atenção amorosa para
conosco. Em Cristo, Deus se compromete definitivamente
em estar conosco e para nós. Por isso, ele está conosco e
para nós em todo o nosso amor. sequioso de ajudar-nos a
amar mais plena e humanamente. "Deus é amor, e quem
vive no amor vive em Deus, e Deus nele" (1Jo 4,16).
Além disso, Deus mesmo se apresentou como garantia de
que o amor é possível, e vale a pena ser praticado.
Precisamos ter o sentido de nosso próprio valor para sairmos
de nós mesmos pelo amor; necessitamos acreditar que
possuímos algo para dar aos outros, e que os outros sentem o
mesmo a nosso respeito. Deveria a criança, desde o início,
receber de seus pais este sentido de autoconfiança, de ser
por si mesma merecedora de amor. Adquirimos novamente
este sentido toda vez que somos amados. Mas, em última
análise, é o amor de Deus que constitui o fundamento
inabalável do sentido maduro da confiança em nós mesmos,
que nos torna capazes de quebrar os grilhões de nosso
egoísmo, para aventurar-nos na doação recíproca do amor.
Podemos crer que somos dignos de amar porque Deus nos
ama, porque nos dotou de personalidade única, porque
oferece a cada um de nós uma relação pessoal com ele em
Cristo.
Do mesmo modo, Deus é garantia da dignidade pessoal dos
outros. Entramos em contato com o mistério de cada pessoa
humana no clima da benevolência amorosa que Deus nutre
por aquela pessoa e por todas as suas capacidades. Não
devemos, portanto, procurar amar os outros "por amor de
Deus", como se não possuíssem valor em si mesmos. Não
encontramos "Cristo nos outros" como se fossem simples
meio para chegarmos a Cristo. Devemos amá-los por aquilo
que são em si mesmos, procurando condividir a mesma
estima que Cristo tem por eles, e o modo com que os serviu;
assim fazendo, encontraremos o Cristo.
Deus é garantia da validade de toda iniciativa de amor, por
mais imperfeita, frustrada e infrutuosa, possa às vezes
aparecer. Ressuscitando Cristo dentre os mortos, mostrou-
nos que, em última análise, o amor é fonte de vida; amar até
o extremo é a única via que conduz à vida para si e para os
outros. Cristo, vivo e glorioso, capaz de estar com os
homens e de se doar totalmente a eles mediante sua
ressurreição, garante que a vida por ele prometida é
totalmente dedicada ao amor, ao supremo amor, e que
podemos apressar a vinda do seu reino esforçando-nos,
agora, em amar como ele nos ama.
Finalmente, porque Deus nos faz capazes de procurá-lo em
nossos amores humanos, e acima deles, é que podemos
estimar seu valor, como também suas limitações. Nenhuma
pessoa pode ser para outra o último "tu", o último fim, a sua
realização suprema. Se esperarmos isto de outra criatura,
mesmo na relação conjugal, iremos ao encontro de
frustração e amargura. O cristão percebe que as aspirações de
seu impulso afetivo ultrapassam o poder das criaturas; por
isso, não deve esperar delas mais do que possam ou estejam
dispostas a dar. Chega, também, a inteirar-se de que a sua
busca — por quanto fugazes se apresentem as suas intuições
— não procura chegar a um "tu" evanescente, mas a alguém
que lhe vem ao encontro e o procura com amor. A relação
de amor do cristão com Deus não visa ser uma espécie de
sucedâneo para compensar as frustrações da falta de
correspondência por parte das criaturas, mas é a base da
estabilidade e da força do seu relacionamento amoroso com
o próximo. O cristão pode, verdadeiramente, amar outras
pessoas, precisamente porque se inteira de que nenhuma
delas pode ser Deus para ele, nem ele um Deus para elas,
pois seu amor e suas ações se desenvolvem no âmbito do
amor de Deus e do seu desígnio de dar a vida aos homens.


Cultivar atividade amorosa para com todos é
essencial à vocação cristã

Deus ama cada pessoa humana; devemos procurar amar
como ele nos ama; somos chamados a cultivar para com
todos, a atitude fundamentalmente inspirada pelo amor, que
nos dispõe a aceitar o outro como ele é, reconhecendo sua
dignidade e personalidade, desejando ser-lhe amigo aberto e
acessível. Tal atitude implica, naturalmente, a nossa boa
vontade de procurar o bem do outro, usando todos os meios
disponíveis para conseguí-lo efetivamente. Mas preserva
também nossas boas obras da esfera de uma
condescendência impessoal. O bem de pessoas concretas,
não de seres abstratos, é o que procuramos realizar, tendo
presente que cada um possui seu valor singular, e se
relaciona conosco, de qualquer forma, no amor e na atenção
de Deus.
"Nenhum homem é uma ilha", somos de algum modo
membros uns dos outros, nossas atitudes, até mesmo em
relação àqueles que não conhecemos e jamais
conheceremos pessoalmente, importam muitíssimo para o
bem da humanidade. Tais conceitos vão se lornando cada
vez mais óbvios no mundo atual. Se percebemos que nossos
sentimentos relativos a pessoas de outra cor levam-nos a
considerá-las como próximos indesejáveis, se vemos os
hebreus como um povo que procura abrir caminho a
qualquer custo, se julgamos que os subdesenvolvidos nos
incomodam e deveriam ser mantidos à distância, devemos
fazer um esforço positivo para mudar estas atitudes
começando a travar conhecimento com pessoas que perten-
cem a essas categorias — através da leitura, se for impossível
um contato direto — de tal forma que possamos considerar
as pessoas sem levar em conta clichês já preestabelecidos.
Aos cristãos cumpre desfazer-se de todo convencionalismo,
desenraizar todo preconceito capaz de forçá-los a tratar os
vários grupos como "coisas", não como pessoas, nos contatos
pessoais, na vida de comunidade, nos colóquios, e nas
decisões pelo voto.
Podemos, aliás, devemos, manter uma atitude de amor
autêntico em nossa vida, como membros da comunidade em
que vivemos, de nossa igreja, de nosso país, do mundo. Mas
cumpre-nos manter igual atitude também nos mais casuais
encontros. Mesmo ao varredor de rua, ou ao jornaleiro,
devemos estar dispostos a manifestar nossa benevolência
com um simples sorriso ou com uma observação sobre o
tempo. Muito diferem estes intercâmbios se motivados por
mera cortesia convencional, por familiaridade forçada e
ofensiva, ou quando, ao contrário, exprimem a alegria de se
encontrar com alguém, embora por breve tempo. Todos
sabemos como agradam estas manifestações de cordialidade;
são capazes de alegrar um pouco nosso dia, influindo-nos
uma nova coragem. É o que acontece, por exemplo, quando
um freguês enfadado encontra uma vendedora que o trata
como pessoa, ou um passageiro intranquilo se depara com
um agente da companhia de aviação, que se comporta como
ser humano. Manifestar esta atitude em nossos contatos
quotidianos de trabalho, é um modo de colaborar para tornar
mais humana a cidade do homem; é um aspeeio do amor
que devemos uns aos outros.
Mas é muito mais fácil manter esta atitude amorosa em
relação a estranhos, quando se percebe que o desejam, do
que com pessoas com quem estamos diariamente em
contato, e pelas quais não sentimos atração. Transcorremos
grande parte da vida acolhendo apenas um grupo restrito de
pessoas no círculo de nosso relacionamento pessoal, e
julgamos os outros como meios, ou obstáculos, ou
incômodos em relação ao conseguimento de nossas metas.
Isto pode acontecer até mesmo no âmbito das famílias.
Nutro certo ceticismo sobre as relações pessoais entre
marido e mulher quando ele a chama de "mãe": parece,
então, que a mulher se tornou para ele uma função e cessou
de ser uma pessoa.
Além disso, devemos examinar-nos quanto às nossas
relações com os colegas, professores ou estudantes, chefes
ou subordinados, companheiros ou conhecidos: estamos
procurando tratá-los como pessoas, no contexto de uma
determinada situação? Ou usufruímos deles, e os
negligenciamos, como se fossem coisa? Isto não significa
que devemos cultivar uma falsa camaradagem ou
familiaridade com os outros, e sim, que devemos procurar
abolir qualquer sombra de impersonalismo desumano em
todas estas relações. Quando percebemos uma atitude
negativa ou hostil de nossa parte em relação a outro,
convém procuremos suas origens, tanto em nós como no
outro. Talvez nutramos algum preconceito ou idéia conven-
cional em relação a todas as pessoas que ostentam
determinado modo de falar e de se trajar, possuidoras de
determinada esfera de interesses, originárias de peculiar
antepassado ético ou de determinada região do país. Tudo
que fizermos, buscando olhar o outro como pessoa, em sua
verdadeira identidade, antes que como encarnação de coisa
abstrata ou de qualidades desagradáveis, ajudar-nos-á em
nosso trabalho de transformar nossas relações em algo
pessoal. Naturalmente, não é fácil tarefa. É muito mais dura
para alguns do que para outros, especialmente em se
tratando de pessoas educadas em ambientes que nutrem pre-
conceitos e idéias convencionais, sem jamais questioná-los.
Mas, tentá-la é nosso dever de cristãos. Como sugere Carl
Rogers, só um incremento desta atitude, em larga escala,
poderá oferecer um futuro favorável para a humanidade.

Cultivar relações sinceras de amor é
essencial à vocação cristã

Pelo menos em certo sentido, pode ser muito difícil manter
uma atitude fundamental de amor em nossas relações mais
profundas, que engajam com mais veemência nossas
emoções e nossa sexualidade. Como vimos
precedentemente, nosso impulso afetivo, em sua carga
sexual, poderá induzir-nos a sair de nós mesmos, era direção
aos outros; ou poderá procurar atrair o outro para a órbita de
nosso interesse egoístico. Quanto mais nossas emoções e
nossa sexualidade ferem envolvidas, maiores serão nossas
possibilidades num ou noutro sentido. Todavia, no amor
recíproco, originado de relações profundas — certa dose de
egocentrismo de ambos os lados é impossível evitar-se — é
que aprendemos a amar, a encontrar forças para amar além
dos limites destas relações, e a amar até mesmo pessoas que
não são amáveis.
Analisar a qualidade destas relações profundas, e procurar
melhorá-las, não significa pretender desvendar o mistério do
amor recíproco, mas antes descobrir como tal mistério possa
tornar-se mais vital e frutuoso. Todos sofremos, de um
modo ou de outro, e quiçá muito profundamente, pela
incapacidade de amar ou pela falta ele amor, que
encontramos no outro. Todos tivemos, igualmente, ocasião
de arrepender-nos das feridas que provocamos nos outros.
Examinar os elementos de uma verdadeira relação de amor
— amizade, namoro, matrimônio, paternidade — não
significa deturpar a beleza da rosa ou diminuir nossa alegria.
Isso deveria, ao contrário, ajudar-nos a evitar o desperdício
de energias em nossa vida afetiva, a orientá-la e ordená-la,
para que se torne mais robusta e frutuosa.
Devemos precaver-nos contra o perigo de dissipar muita
energia emocional em relações irreais. A "paixão" que
arrasta cegamente e leva a circundar a pessoa amada com
uma auréola de atrativos irresistíveis, fazendo cair numa
espécie de adoração unívoca por ela, é fenômeno comum na
adolescência. Para muitos rapazes e moças, pelo menos, isso
pode servir como tirocínio para o verdadeiro amor. Mas os
adultos, também, não raro percebem que continuam ainda
cultivando esta espécie de relação imatura, quiçá por medo
inconsciente do verdadeiro amor, ou por alguma oculta
desilusão em suas relações concretas. A atitude de
"enfatuação unilateral", muitas vezes atribuída, nos
romances, às secretárias em relação a seus chefes, reduz a
possibilidade de uma verdadeira relação de amor coni o
outro, que poderia levar ao matrimônio, e favorecer a
fixação em algo indisponível e irreal.
O remédio, quiçá bastante doloroso, consiste em cultivar
uma sincera relação interpessoal com a pessoa por quem nos
apaixonamos, se isto for possível, bem como com todas as
que fazem parte da esfera de nosso relacionamento.
Devemos, também, precaver-nos contra falsas relações que
levam ao domínio ou à submissão, a possuir ou a ser
possuído. Podemos inteirar-nos da precariedade das relações
entre marido e mulher em que um domina e o outro se
submete, ou das relações entre pai e filho em que aquele se
torna um tirano e este um escravo. Eric Berne, em seu livro
Games People Play, acentua que todos propendemos a
colocarmos reciprocamente em falsas posições, e buscamos
sempre prevalecer, como dominadores ou dominados,
vencedores ou vítimas. Cumpre-nos, portanto, descobrir a
maneira de comportar-nos em todas as nossas ações,
inclusive nas mais íntimas; verificar se, pelo menos em linha
de máxima, estamos dispostos a permitir que o outro
exprima a própria personalidade, constatar se procuramos a
liberdade e o desenvolvimento do outro, ou se nos
preocupamos primordialmente em sujeitá-lo a nosso serviço.
Naturalmente, toda verdadeira relação implica o delicado e
misterioso entrelaçamento da livre opção de duas pessoas, e
o compromisso de respeitar a liberdade recíproca. Isso exige
que ambos se esforcem em sair do próprio eu, em se abrir
para dar e receber; que procurem servir um ao outro,
valorizar a personalidade um do outro, favorecer o mútuo
desenvolvimento das respectivas potencialidades. Não
significa, apenas, encontrar no outro o próprio prazer. Como
sabemos, este gáudio desperta um vivo desejo de nos
doarmos ao outro para que ele possa ser mais plenamente
aquilo que é, e de recebermos dele, a fim de sermos mais
plenamente nós mesmos, e termos mais para dar.
Uma verdadeira relação não é, por isso, algo esr tático, nem
se confunde com a rotina, mas há de se colocar em um
processo de contínuo crescimento. Ambos devem se
esforçar para sair de si mesmos e ir ao encontro do outro,
para ciar e receber. Se marido e mulher considerarem suas
relações recíprocas como ponto estático, o amor
matrimonial de ambos corre grave perigo. Cumpre-lhes
cultivá-las, sequiosos de maior conhecimento, pelo menos
em certas esferas das relações humanas, desejosos de se
doarem mutuamente cada vez mais, se não quiserem que o
amor lentamente morra. O simples fato de se familiarizar
com o outro constitui base suficiente para um matrimônio.
Do mesmo modo, comportar-nos-emos somente como
conhecidos, não como antigos, se não chegarmos a
procurar, recorrendo a todos os meios disponíveis, uma
união de mente e de coração mais generosa e mutuamente
enriquecedora. A amizade definha e morre, quando, por um
motivo ou outro, duas pessoas não mais se interessam nem
se preocupam uma pela outra. Do mesmo modo, duas
pessoas, embora não se tenham encontrado durante meses
ou anos, mas nutram interesse e preocupação uma pela
outra, podem manter a amizade e fazê-la reflorescer no pri-
meiro encontro.
Além disso, uma verdadeira relação transforma dois "eus"
em um único "nós", sensível e corresponsável pelos outros,
em todas as circunstâncias. Cada um sabe que certa
comunhão de gostos e interesses é uma necessidade quando
duas pessoas pretendem estabelecer relação duradoura;
devem possuir "algo em comum". Mas, até que esta não leve
à corresponsabilidade, e a uma ação conjunta pelos outros, a
relação não terá futuro. Eis porque pais, educadores, e os
próprios jovens devem criar condições para que rapazes e
moças, meninos e meninas possam desenvolver uma
atividade em comum — trabalhos acadêmicos, sociais, ou
atividades congêneres. Se se encontrarem apenas em
relações "eu-tu" artificiais de namoro, sem chegarem à
dimensão do "nós", as dificuldades em estabelecer relações
autênticas tornar-se-ão agudas.
De fato, as relações mais sólidas e vitais nascem, em geral, da
corresponsabilidade e da ação para atingir determinada meta,
e continuam "orientadas para uma tarefa", pelo menos no
sentido amplo do termo: interesse comum concreto pelo
progresso humano e pelo futuro do Reino de Deus. Além
disso, as verdadeiras relações são abertas; os dois desejam
viver unidos, um servindo ao outro, sem chegar, porém, ao
exclusivismo. A "comunhão embrional", que eles cons-
tituem, está a serviço de uma "comunhão" mais ampla com
um grupo ou com uma comunidade, da qual recebem o
necessário vigor. O fato de se colocarem a serviço um do
outro fá-los abrirem-se, em mútuo interesse, pelo desejo de
acrescer não apenas o próprio bem-estar, mas também, de
um modo ou de outro, para promover o desenvolvimento
de todos aqueles pelos quais são responsáveis. Uma amizade
entre dois homens, por exemplo, que leve qualquer dos dois
a negligenciar suas relações com a própria esposa, é amizade
imatura. A amizade entre um sacerdote e uma mulher
casada só será autêntica quando auxiliar ambos a cumprir os
próprios deveres.
Tal sentido de responsabilidade em nosso amor se faz tanto
mais necessário quanto mais a vida moderna, e nossa melhor
compreensão do ideal cristão, vem facilitando a criação de
relações não estruturadas nem circunscritas pelo
convencionalismo social. Se os casados, os solteiros c os que
escolheram a vida celibatária "por amor do reino" desejarem
criar amizades, elevem aprender a se tornar cada vez mais
sensíveis às condições humanas de cada pessoa, colhendo
todas as ocasiões para praticar o amor como um dom de
Deus que há de ser cultivado no contexto do ágape divino e
de seu plano de edificar uma Igreja-co-munhão-de-amizade.
Todo o processo na formação de relações antênticas deve
fundamentar-se na realidade; realidade constituída por
pessoas individualmente consideradas, nas circunstâncias em
que vivem, dotadas de peculiares capacidades de relação e
responsabilidades; realidade da condição peculiar de cada
pessoa; realidade do amor e do plano de Deus.
Toda relação profunda envolve, portanto, de qualquer
forma, uma decisão. Muitos romances se escreveram sobre
pessoas irresistivelmente atraídas uma pela outra, que não
conseguiram evitar de se apaixonar uma pela outra. Certo é
que não podemos sondar as profundezas deste mistério que
é o amor. Mas sabemos que o amor é realmente doação
livre; não pode ser forçado nem mesmo por atrativos
pessoais. Deve ser dom do coração, entendido em sentido
bíblico, como núcleo vital da nossa personalidade, e centro
de nossas decisões. Em dado momento, deveremos decidir-
nos livre e responsavelmente pelo amor, se quisermos que
nossa vida seja autêntica.

Quantos amores?

Tolslói coloca nos lábios de Ana Karenina, quando procura
convencer seu amante de que não o ama menos porque
ama seu filho, estas palavras: "todo amor é infinito". E é
realmente assim, pois toda relação autêntica, todo
verdadeiro amor e, sui generis, encontro único entre duas
pessoas singulares. Se tenho verdadeira amizade por Fulano,
esta há de possuir cambiantes que a diferem da amizade que
tenho por Sicrano, de tal forma a excluir qualquer in-
terferência entre ambos. Somente as relações espúrias ou
falsas podem ser conflitantes: se procuro "conquistar" Maria,
ficaria tremendamente magoado se outro tentasse o mesmo.
Mas se procuro ser bom amigo para ela, ficarei contente se
ela tiver outro amigo sincero.
É verdade também que, amando, adquirimos maior
capacidade para amar. O adolescente, quando começa a
perceber que seus pais são pessoas, não apenas "pais", e
procura amá-los como tal, está no bom caminho para poder
amar de maneira interpessoal, tanto nas amizades como no
namoro; os esposos, que lutam pelo verdadeiro amor no
matrimônio, descobrem em si mesmos, disposição muito
maior para a amizade e o amor em relação aos filhos. Assim,
à medida em que progredimos no amor, tornamo-nos cada
vez mais capazes da verdadeira amizade. É óbvio que vários
fatores como tempo, saúde, distâncias, limitam a
possibilidade de entrelaçarmos todas as amizades que
desejaríamos. Mas podemos sempre entrar no círculo de
relações sem limites, desprovidas de particular exigência, nas
quais cada um se dispõe a doar e a receber, a compartilhar
satisfações e responsabilidades, toda vez que se apresenta
ocasião concreta. Além disso, ninguém se iludirá pensando
ter coração aberto para o outro, se raciocinar assim: "Já
fechei o círculo de meus amigos verdadeiros, com os quais
pretendo entrelaçar relações autênticas; não posso mais
abrir-me para nenhuma outra amizade".
Muitos julgam impossível semelhante abertura para o
homem da cidade; outros, embora admitindo esta
possibilidade, consideram-na indesejável. Devo tratar como
pessoa quantos encontro cada dia; mas tenho o direito de
escolher aqueles com os quais desejo entrelaçar relações
mais íntimas. À maioria destas relações devem, pois,
reduzir-se a encontros de negócios, nas quais nenhuma das
partes deseja ou espera algo mais caloroso ou pessoal.
Julgo necessário, neste ponto, distinguir entre amor e
familiaridade, isto é, conhecer todos os fatos c sentimentos
do outro, tomar a liberdade de visitado inesperadamente em
qualquer hora — atitudes estas que tornam geralmente
desagradável a vida em lugarejos, em pequenas cidades, e em
alguns bairros das grandes aglomerações urbanas: isto não é
indispensável para uma verdadeira abertura ou para criar
autênticas relações pessoais. Poderá, talvez, acontecer em
determinadas relações e circunstâncias, embora até mesmo
marido e mulher não necessitem saber tudo o que se passa
com o outro, nem tomar a liberdade de se intrometer
continuamente na intimidade do outro. Em muitos casos,
esta familiaridade pode não encerrar nenhuma verdadeira
relação nem a ela conduzir. Uma tagarela de aldeia, que sur-
preende todas as manhãs suas vizinhas para tomar café com
elas, talvez nunca chegará a uma relação pessoal com
nenhuma delas.
Uma verdadeira abertura, ou a calorosa simpatia, não exigem
este tipo de familiaridade para o qual grande número de
pessoas, tanto da cidade como do campo, não dispõe de
tempo nem se sente inclinada. Por outro lado, como
sabiamente afirma o livro Towards a Quaker View of Sex,
"vida social exige, terminantemente, o calor do contato e da
intimidade pessoal. Vemos, em toda parte, exemplos de
sociabilidade sem a procura destes contatos, e, em nossas
cidades, pode coexistir a multidão que se atropela com o
isolamento e a solidão mais profunda. Vemos energias
humanas, que deveriam estar a serviço da criatividade e do
amor, fechadas em atividades que miram friamente à auto-
afirmação; vemos o amor inibido, frustrado e negado,
voltando-se para o oposto: a crueldade e a agressão".
Parece-nos, pois, necessário amar com todo o calor possível,
sem pôr limites à extensão e ao grau de intimidade, e sem
fechar-se à possibilidade de novas relações ou de um
desenvolvimento mais profundo das já existentes.
Além disso, como anteriormente dissemos, o cultivo de
autênticas relações com muitas pessoas reduz ao máximo a
possibilidade de concentrar todo o nosso impulso afetivo em
uma só pessoa, fazendo com que ela tome o lugar de Deus
em nossa vida. Parece, pois, necessário a multiplicidade das
relações na vicia celibatária abraçada "por amor do reino".
Isto é também indispensável na vida do solteiro, que pensa
em se casar. A objeção contra um noivado precoce não se
fundamenta, somente, na possibilidade de levar a
experiências sexuais pré-matrimoniais, mas também no fato
de impedir que os jovens adquiram experiências de si e dos
outros através de uma variedade de relações, experiência
esta muito desejável antes do engajamento matrimonial.
(Todavia, alguns jovens podem ser incapazes de entrelaçar
verdadeiras relações se não conseguirem o necessário
sentido do próprio valor mediante a segurança que lhes
proporciona um noivado a longo prazo. Destarte, cada caso
deve ser julgado singularmente).
Para os casados, suas relações de esposos deveriam ter,
obviamente, uma função única e central; cultivá-las no
âmbito do próprio relacionamento com Deus, deveria ser a
preocupação primordial e contínua. Duas pessoas não
podem, porém, existir "completamente, em todos os
sentidos, uma para outra". Crer que isto seja ideal é criar um
misticismo platônico em torno do matrimônio. Toda relação
entre esposos é única porque existente entre duas pessoas
exclusivas, que doam, reciprocamente, os vários aspectos da
própria personalidade integral. Alguns casais vivem
satisfatoriamente, sem mesmo sentir necessidade, por
exemplo, de um nivelamento intelectual que outras pessoas
de mentalidade diferente poderiam considerar
indispensável.
Destarte, também o contexto matrimonial exige
multiplicidade de relações. Os casados necessitam cultivar
outras relações de amizade, com homens c mulheres, para o
desenvolvimento do mútuo amor conjugal, bem como da
personalidade dos seus amigos. Destas relações, algumas hão
de ser obviamente compartilhadas tanto pelo marido quanto
pela mulher. Outras, porém, serão condivididas somente no
sentido de que marido e mulher poderão oferecer ao
relacionamento matrimonial o enriquecimento que delas
deriva. Se marido e mulher têm, por exemplo, profissão
diferente, cada um criará amizade entre os colegas de
profissão de ambos os sexos, com os quais o outro cônjuge
terá pouco em comum; isto não se deve deplorar; antes, há
de ser encorajado, contanto que a relação matrimonial
continue sendo o centro de tudo.
Assim, a forma de vida afetiva do cristão casado é diferente
das manifestações de afeto daqueles que optaram pela vida
de celibato ou de virgindade consagrada. Todos os cristãos
podem, conscientemente, procurar em Deus o próprio "tu"
final, encontrando estabilidade e força, para todas as suas
relações, neste sustentáculo supremo da vida humana. O
cristão casado escolheu outra pessoa humana, não para ser o
seu "tu" neste sentido externo, mas para viver com ela e por
ela como "dois em uma só carne", isto é, em comunhão total
e singular, que implica a união de sexo e de vida. Mas
aqueles que se engajaram em um estado de vida celibatário
"pelo amor do reino" renunciaram à possibilidade de
escolher uma pessoa humana para ocupar esta função em
suas vidas. Podem adquirir maior disponibilidade para outras
relações, pois não possuem este engajamento centralizado,
nem sua complementação normal, o compromisso da
paternidade, ao qual todos os outros devem ser referidos.

O mesmo pode-se dizer de muitas outras formas de vida
celibatária. Quem não se engajou no matrimônio nem no
celibato consagrado, forçosamente carecerá daquela
estabilidade que estes engajamentos proporcionam, e não
provará a sensação de uma vida afetiva definitivamente
resolvida. Existe, porém, a possibilidade de conseguir uma
espécie de equilíbrio dinâmico, na própria tensão criada por
esta falta de engajamento afetivo. Se o solteiro, homem ou
mulher, evitar uma espécie de estabilidade prematura e falsa
em determinada relação (com os pais, com outro parente,
com amigo ou amiga), procurar viver cultivando as relações
que a sua situação concreta lhe proporciona, e permanecer
aberto para possíveis relações futuras, pode-se dizer que seu
comportamento é profundamente real. Sua vida pode
apresentar as mesmas possibilidades de crescimento no amor
que oferecem o matrimônio ou o celibato consagrado,
embora tais perspectivas sejam mais difíceis ainda de serem
atuadas do que naqueles outros estados de vida que possuem
formas emotivas mais claramente definidas.

Destarte, os vários "estados de vida" são realmente
diferentes: a carga afetiva deveria se diversificar em se
tratando de casado, de solteiro, ou de pessoa que escolheu a
vida celibatária "por amor do reino". Porém, todos estes são
estados de vida cristãos. Em qualquer condição, nosso
destino é procurar a Deus, cultivar as atitudes e as
verdadeiras relações de amizade, conquistar mais amor em
todas as nossas ações. Em qualquer estado, pode o cristão,
embora com dificuldade, lentamente, sujeito a muitos erros
e fracassos, aprender a amar e realizar as obras do amor. E
quanto melhor aprendermos a amar, tornaremos menos
difícil para os outros a tarefa de viverem no amor.
Nesta vida, sofrimento e trabalho estão sempre implicados
em nosso amor, mas também alegria e satisfação. Não
podemos esperar que os outros amem perfeitamente, em
medida maior do que nós mesmos amamos. Todos estamos
em busca da maturidade; ainda não a atingimos. Estamos
procurando sair de nós mesmos, e vencer nosso egoísmo,
mas necessitamos de conversão contínua. Cada qual à seu
modo, e em grau diferente, participamos da mesma luta para
colocar a sexualidade e o impulso afetivo a serviço do amor
(e a idéia de que esta luta se tornará mais fácil com o passar
dos anos é pura veleidade; poderá tomar aspectos diferentes,
em determinadas pessoas, mas só cessará se deixarmos de
nos interessar pelas vicissitudes da vida). Mas, neste esforço
de amar plena e humanamente, estaremos lançando as bases
do reino, da sociedade de amor, que é o desígnio supremo
de Deus para a humanidade.

7. A VIDA DE SOLTEIRO COMO VOCAÇÃO
AO AMOR

Os autores católicos, que tratam da vocação religiosa,
costumam distinguir três "estados": a vida sacerdotal e
religiosa (celibato), a vida matrimonial, e a vida de solteiro
"no mundo". Tais distinções não correspondem, exatamente,
à realidade, pois os sacerdotes e os religiosos não se destinam
a viver "fora do mundo", e o sacerdócio não se vincula
essencialmente com o celibato. Razão por que melhor seria
falar de vida de solteiro não engajado, vida celibatária
escolhida, "por amor do reino", e vida matrimonial.
Até há trinta anos, somente o segundo "estado", constituído
pela vida sacerdotal e religiosa considerava-se como
vocação, como chamamento de Deus para servi-lo de
maneira especial. Nas últimas três décadas, o matrimônio foi
gradualmente admitido como vocação. Estes dois modos de
vida foram altamente institucionalizados em muitos
aspectos; motivo por que devemos estudar as mudanças a
serem introduzidas no sistema estabelecido, teórico e práti-
co, a fim de reconduzirmos a vida consagrada e o matri-
mônio a seu conceito primordial, como modalidades da
única vocação cristã ao amor; é o que procuramos fazer nos
três capítulos seguintes.
Considerando que a vida de solteiro, não especificada por
compromisso matrimonial ou celibatário, nunca foi
institucionalizada, lícito é dizermos que os solteiros são,
hoje, os membros da Igreja mais livres e desobstruídos de
esquemas e regulamentos, capazes de criar estilos de vida
cristã consentâneos com as necessidades atuais. Até hoje,
contudo, as várias formas de celibato sem compromisso não
foram consideradas como aspectos da vocação cristã ao
amor. O número de adultos solteiros, que vivem fora do
contexto familiar, ou de qualquer instituição, foi crescendo
de tempos para cá. Vários fatores levaram a isso. Por
exemplo, a possibilidade de vida autônoma, conquistada
pelas mulheres, a decomposição da unidade do núcleo
familiar, o crescente número de separações conjugais, e a
proporção elevada de pessoas idosas, sobretudo mulheres, na
sociedade atual. A doutrina cristã continua, entretanto,
refletindo a estrutura social dos velhos tempos, quando as
pessoas ou se casavam muito cedo ou abraçavam o sa-
cerdócio ou a vida religiosa, ao passo que os que não se
casavam, nem emitiam profissão religiosa, permaneciam
amparados péla família ou se agregavam a uma instituição
eclesiástica.
Constatava-se, então, que o ensino religioso católico, nas
escolas superiores, incluía um capítulo sobre a vocação ao
matrimônio, ao celibato consagrado e à virgindade, mas
omitia qualquer referência sobre a vida de solteiro e, quando
o fazia, considerava-a como período de transição. Surgiram,
assim, os consultórios destinados a preparar e orientar
noivos e cônjuges para a missão do matrimônio. Seminários
e noviciados formam candidatos ao sacerdócio e à vida
religiosa, ao passo que as próprias estruturas institucionais
oferecem subsídios para bem viver esta vocação. Parece,
contudo, existir escasso interesse pelos católicos solteiros;
ninguém se preocupa em ajudá-los a viver o próprio celibato
como verdadeira vocação, embora todos os jovens, pelo
menos por certo período, devam passar por este estado,
muitos nele permaneçam durante período
consideravelmente longo, e alguns, por toda a vida.
A sociedade, geralmente, dirige a quem ultrapassou os vinte
e cinco anos, a seguinte observação: "Que pena, não
encontrou ainda a pessoa que lhe convém!" Eis por que
muitos católicos solteiros têm impressão de que a Igreja os
inclui entre os que "fracassaram na própria vocação".
Ao mesmo tempo percebem eles, em toda a sua extensão, o
conflito entre as normas tradicionais da moral c a
mentalidade moderna, que é muito indulgente no tocante ao
sexo. Aumentou consideravelmente o número de relações
pré-matrimoniais e extraconjugais, nas últimas décadas, e a
classe média deixou de considerar a virgindade como
indispensável para ser "boa menina" ou "bom rapaz".
Além disso, toda forma de celibato tornou-se árdua nos dias
que correm, seja pela exploração do sexo na cultura de hoje.
seja pelas descobertas que colocam em evidência seus
valores humanos. Os cristãos celibatários não podem
permanecer insensíveis a todos os estímulos sexuais a que os
expõem os meios de comunicação. Mas, em se mostrando
sensíveis às obras dramáticas, à literatura e às correntes do
pensamento moderno, não podem ignorar os reais valores
do sexo, e será muito difícil não se persuadirem de que sua
adesão às normas da moral sexual cristã significa deixar fugir
a única oportunidade para se realizarem como pessoa.
Quase insustentável tornou-se a posição dos celibatários,
pois vigoram ainda certas normas tradicionais, que inculcam
a necessidade de ignorar o sexo ou de lutar contra ele como
sendo o melhor modo de o cristão enfrentar o problema. A
muitos, essa atitude se afigura como batalha perdida desde o
início, que acarreta a destruição da amizade com Deus. Para
outros, o resultado pode ser a supressão do afeto,
provocando sérios danos em seu estado emocional, ou, pelo
menos, o enfraquecimento das energias psíquicas, e o
fechamento em uma solidão cada vez maior. Resultaria,
então, este dilema: ou viver na amizade com Deus, ou
perder contato com as pessoas. Para muitos, mais difícil se
torna ainda a situação porque são obrigados a viver fora do
ambiente familiar. Nada existe, na vida quotidiana, que os
convide a sair da própria solidão, ou que a mitigue. (Os
autores deste livro casaram-se quando tinham
respectivamente 44 e 30 anos; por isso, falam por
experiência vivida).
Esperamos, portanto, que este livro possa auxiliar a
promoção dos valores da moral cristã, de tal forma que
apareçam humanos e dignos de serem defendidos mais do
que o foram no passado, quando a maioria, pressionada pelas
necessidades e pelas interrogações da época, ancorada no
medo de transgredir um tabu, outra resposta não tinha senão
essa: "A Igreja diz que isso é pecado". E nutrimos a
esperança de que este livro apresente a obrigação de
aprender a amar como um compromisso de pessoas
humanas completas, como esforço louvável e vital, de tal
forma que as limitações e os interditos sejam apenas con-
seqüências de um aspecto do engajamento positivo em amar
e em agir por amor.
Sem dúvida, também as pessoas com as quais mantemos
qualquer relacionamento, devem aprender a amar. Muitos
apresentam-se mais ou menos cônscios desta necessidade,
ou de alguns aspectos que à especificam; outros não têm
nenhuma consciência deste dever. Quem quer que possua
alguma noção do que seja amar, e da função própria do sexo
no amor, não pode pretender atitudes sempre compreen-
sivas por parte daqueles a quem deseja oferecer o próprio
afeto. Podemos muitas vezes colocar-nos na embaraçadora e
difícil posição de quem deve dar testemunho do amor sem
nada receber; isso não raro acontece nos círculos de
amizade em que tentamos ser admitidos e bem recebidos.
Por outro lado. onde quer que encontremos respeito,
simpatia e interesse pelo outro, aí descobriremos sempre
uma atmosfera de amor, embora impensada e implícita.
O cristão não deve, portanto, julgar-se munido de princípios
de fé para dar combate ao mundo, à carne, ao demônio.
Deve, antes, julgar-se como um aprendiz na arte de amar.
Procurará adquiri-la não somente nos ensinamentos de
Cristo, mas também nos mestres da sabedoria humana, e em
companhia de outros discípulos. A arte de amar exige luta
contra a negação do amor em nós, nos outros, nas institui-
ções, na organização da sociedade. Como cristãos, temos a
vantagem da fé e da esperança no poder absoluto do amor;
temos a graça para amar, que nos c concedida por Cristo.
"O Espírito Santo, em cuja virtude amamos, pode ser doado
por Deus mesmo aos que não pertencem ao cristianismo
histórico. O cristão, entretanto, conhece algo imensamente
importante, que outros não chegam a perceber: o reino de
Deus, a graça e a misericórdia. A capacidade para amar o
próximo em espírito e verdade não deriva de suas forças,
mas do poder que Cristo lhe dá através de sua graça.
Tudo isso é certo. Cumpre, todavia, dizer que este
conhecimento não é como saber que os três ângulos de um
triângulo equivalem a dois ângulos retos. Trata-se, antes, de
conhecimento igual ao que temos de nossos pais.
Poderíamos até dizer que uma criança, que cresce sem co-
nhecer seus pais, somente por esta falta de conhecimento se
diferencia do resto da humanidade. Mas é óbvio que
semelhante conhecimento, ou a falta dele, não constitui para
ela apenas um problema teórico de informação: é algo capaz
de alterar toda a sua existência.
O cristão consciente espera, sem restrições, a vinda do reino
de Deus, isto é, o triunfo definitivo do poder do amor;
possui aquela intuição fundamental e indispensável de que
este poder do amor outra coisa não é senão o Espírito de
Cristo. Em definitivo, a caminhada do gênero humano para a
formação dc uma comunidade de amor deve ter, na
vanguarda, aqueles elementos que possuem esta esperança e
esta visão.
Os cristãos não ignoram, também, que Deus conhece de que
matéria somos feitos, e que somos principiantes na arte de
amar; razão por que ele não pretende que sejamos perfeitos
desde o início. Devemos recordar que a "virtude" não nasce
conosco; cumpre-nos conquistá-la. Mulher ou homem
virtuoso não é quem jamais errou, em matéria de
comportamento sexual, e, menos ainda, quem não fracassou
em seus afetos; virtuoso é quem, após anos de esforços, e
com o auxílio de Deus, conquistou gradualmente uma
capacidade para amar de maneira cada vez inais plena e
perfeita.
Nem mesmo a virgindade, em seu sentido cristão mais
profundo, deve ser conservada como fenômeno físico que
pode ser irremediavelmente perdido, e cuja perda fora do
matrimônio implique, também, uma necessária ausência de
"virtude". Quando o Apocalipse fala daqueles que não se
contaminaram com mulheres, que permaneceram virgens, e
seguem o Cordeiro para onde quer que vá (14.4-5), não se
refere às pessoas que nunca tiveram contato sexual, mas
àqueles que, segundo a expressão do Antigo Testamento,
não "fornicaram seguindo falsos ídolos". Virgindade significa
sentimento puro de amor para com Deus e o próximo, cujo
exemplo mais sublime é a Mãe de Jesus, virgem não só
fisicamente, mas também neste sentido profundo. "Puro de
coração" é quem procura amar a Deus e aos homens com
sinceridade. Deus é quem "ama e reintegra a inocência",
porque, quando nos afastamos intencionalmente do amor,
ele nos ajuda a reencontrá-lo; restitui-nos sempre a graça,
quando a desejamos, para tornar-nos capazes de maior
pureza de coração e de sinceridade mais transparente em
nosso amor.
Convidar os cristãos solteiros a crescer no amor, reconhecer
a própria sexualidade, e procurar colocá-la a serviço de todas
as suas relações e atos de amor, significa incentivá-los a
abandonar as torres de niai fim, reais ou imaginárias, em que
se acham fechados; é convidá-los a viver no mundo real
como seres humanos, enfrentando os riscos inerentes à
condição de homem e outros peculiares a quem deseja viver
o celibato como aspecto da vocação cristã ao amor. Mas, o
convite a amar faz parte do mandamento de Cristo a todos
os seus seguidores. O Senhor não pode deixar de desejar que
o aceitemos, embora seja incerta e imperfeita a nossa
vontade em cumprí-lo.
Há muitas espécies de celibato. O celibato de um jovem
universitário, ou de quem, pe'a primeira vez, encontra um
emprego, é bem diferente daquele do adulto, para quem as
possibilidades de matrimônio parecem diminuídas ou talvez
mesmo esgotadas; há, também, o celibato das pessoas que
deixaram de lado a idéia de casamento para mais livremente
se dedicarem ao próprio trabalho, ou em virtude de uma
situação familiar. Estas modalidades se diferenciam ainda das
que caracterizam a posição do viúvo e do desquitado. E
todas elas assumem peculiaridades bem diferentes, em se
tratando de homem ou de mulher.
Nestas múltiplas formas de celibato, como, aliás, em todos os
outros modos de vida, o risco de não amar é maior do que o
risco de amar. Quem quiser amadurecer como solteiro, isto
é, viver e crescer, há de se esforçar para criar muitas
relações de amor, sem se isolar; para agir com mais amor,
sem se abandonar à convicção de que o "verdadeiro" amor
seja somente o afeto entre esposos, e implique,
necessariamente, a união sexual. Assim fazendo, a
dificuldade principal dos jovens consistirá em explorar as
várias relações, inclusive as que lhes podem oferecer
possibilidade de matrimônio, reservando sempre a entrega
total de si mesmos para o dia em que se julgarem
completamente amadurecidos e até encontrarem a pessoa
adequada a quem fazer e de quem receber esta doação
completa. Igual dificuldade se apresenta quando nos
esforçamos em prosseguir, corajosamente no amor, toda vez
que constatamos nosso erro quando o dom integral de nós
mesmos não recebeu nenhuma correspondência por parte
da pessoa amada. Tais dificuldades subsistem à medida que
os anos passam; aliás, a tentação de nos resignar perante o
fato de que "a vida foge", tende a progredir rumo ao
fechamento em nós mesmos, fazendo-nos recusar o contato
com outras pessoas, e fugir de novas relações, não só pelo
temor de outros malogros, mas também porque cultivá-las
exigiria excessivo esforço.
Do mesmo modo, a vida dificílima de um católico
desquitado, com ou sem prole, sofre a grande tentação de
procurar refúgio em relações irreais ou superficiais, ou de se
isolar na solidão. Por maior que seja o esforço exigido, é
necessário dispor-se a aceitar outras relações, para continuar
a crescer no amor, nelas e por elas.
Assim, também, os viúvos e as viúvas, em qualquer idade,
não devem ter a sensação de que a vida tenha terminado, e
que a razão de sua existência sejam apenas os filhos e netos.
Conhecemos pessoas que, embora mais idosas, apresentam-
se tão vivazes e dispostas a aceitar qualquer relação nova que
se lhes ofereça, tão abertas para o presente e para o futuro,
que não só os coevos, mas também os mais jovens procuram
a sua companhia. A arte de amar é tal, que se pode praticar
em qualquer idade; sabemos que isso é possível porque há
pessoas que o realizam.
O professor O'Malley, de Notre Dame, que se conservou
solteiro, costumava dizer aos alunos: "Se vos casardes, ou se
permanecerdes solteiros, sempre havereis de arrepender-
vos". Era um modo espirituoso de afirmar que todo gênero
de vida possui suas dificuldades. As que apresenta a vida de
solteiro são bem conhecidas, mas" raramente se consideram
as potencialidades deste estado. O "testemunho" peculiar
que um celibatário ancião pode oferecer aos outros
membros da Igreja acha-se muito bem expresso em um ro-
mance, publicado em 1876, escrito por uma solteira de
quarenta e oito anos. A protagonista é uma viúva sem filhos,
vítima de um matrimônio fracassado; sua lüha adotiva
acabara de se unir em feliz matrimônio com o homem que a
própria viúva esperava ter como esposo.
"Que consolação para ela se fôssemos duas solteironas; se,
olhando para nós. pudesse dizer: 'Eis duas mulheres
fracassadas como eu, cada uma a seu modo!' Entretanto,
nenhuma de nós faliu na vida. Penso que seja esta a bênção
que somente nós, mulheres, representamos, e a grande
razão de nossa existência. Cada um observa que perdemos,
como diz o povo, uma notável porção de vida; mas as perdas
que sofrem aqueles cujas relações aparecem, por fora,
perfeitamente realizadas, ficam escondidas no segredo do
coração. Porém, se corajosamente enfrentarmos as provas
que o destino nos oferece, todos poderão constatar que não
somos absolutamente criaturas incompletas, e que, apesar de
tudo, existe ainda em nós uma verdadeira vida".
É exato falarmos de "testemunho", referindo-nos ao cristão
que escolheu o celibato como engajamento estável. Mas o
testemunho de um cristão celibatário sem votos, que vive
plenamente seu ideal, embora sem nenhum compromisso
estável, pode ser igualmente importante perante os esposos,
os sacerdotes, os religiosos e os outros solteiros.

Necessidade de uma formação comunitária

Todos os membros da Igreja os que escolheram o celibato
sem particular engajamento, bem como os sacerdotes, os
religiosos e os cônjuges, necessitam de colaboração
recíproca para que a própria vida corresponda à vocação do
amor. Além disso, uma comunidade de amor deve,
obrigatoriamente, incluir, no próprio ministério, o serviço
àqueles que não possuem família, nem se afiliaram a uma
comunidade religiosa.
Exigem-se, portanto, duas espécies de esforços: o trabalho
educativo e a criação pastoral (no sentido mais vasto do
termo). Ao concluir esta obra, enfrentaremos o problema da
"educação sexual" e dos "cursos matrimoniais", estendendo
estes conceitos à formação para o amor, que inclui os
elementos vários, esboçados neste livro: a vocação ao amor,
a função do afeto, do sexo e do corpo; o sentido de
crescimento na capacidade de agir por amor, e de amar com
maior profundidade; a necessidade de aprender a amar,
cultivando várias relações de amizade. Cumpre indicar com
clareza as perspectivas e as dificuldades em levar a bom
termo esta vocação, no matrimônio, na vida de celibato
temporário, permanente, engajado ou sem engajamento.
Acima de tudo, é mister convencermo-nos de que Deus
deseja que aprendamos a amar, e que nenhum cristão fica
abandonado neste esforço, pois pertence a uma comunidade
que mira exatamente a "edificar-se no amor".

Se se desse aos adolescentes, com maior largueza, essa
formação para o amor, iniciariam eles os estudos superiores,
ou a vida profissional, com noções adquiridas sobre a
maneira de enfrentar os problemas da vida e do mundo
afetivo. Vivendo muitas vezes fora do contexto familiar, não
preparados para a liberdade, abandonados a si mesmos,
sentem particular necessidade de encarar este período de sua
vida não como um inexplicável e aventuroso labirinto, mas
como período de especial oportunidade para se
enriquecerem integralmente. Se compreendessem melhor a
própria vocação, poderiam, sem restrições, aceitar como
objetivo principal deste período, o crescimento na
compreensão de si e dos outros, a conquista daquela destreza
e experiência indispensável para assumir a própria tarefa na
edificação da Cidade Secular. Deveriam perceber, com mais
clareza, a necessidade de amadurecer antes de se julgarem
em condições de optar livremente pelo matrimônio e por
determinada pessoa. Se conseguirem algum conhecimento
em torno da função do sexo no amor, e do dinamismo das
relações pessoais, será menos fácil sujeitarem-se a
experiências sexuais e a um matrimônio sem amor,
induzidos por forças internas ou externas
Não queremos dizer que uma formação qualquer seja capaz
de aplainar as dificuldades deste período da vida. Mas a
educação para o amor, proporcionada através de colóquios,
filmes e outros meios, inclusive conselhos, pode ajudar
adolescentes e jovens a assumirem as responsabilidades
inerentes à própria vida, levando-os a orientar suas energias
e atividades para metas reais.
Devem, igualmente, as igrejas, colocar à disposição de seus
membros, todos os meios disponíveis paia essa formação,
mostrando a casados e solteiros que a vida pode ter sentido
humano e cristão, em todas as circunstâncias e condições;
que cada qual tem o dever de amar e de crescer no amor,
em qualquer situação que se encontre; que a perfeição é
possível, não importa qual seja o nosso estado de vida,
quando persistirmos na luta para aprender a amar, amando.
A esse respeito, poderão ser úteis os debates em grupo, as
leituras dirigidas, e coisas semelhantes. Além disso, serviços
vários prestados à família por diversas entidades e
consultorias pré-matrimoniais, podem, da mesma forma,
socorrer às necessidades dos celibatários, bem como dos
noivos e cônjuges. Há promissores movimentos, neste
sentido, que promovem encontros em vários ambientes,
agrupando os jovens e seus pais, a princípio separadamente,
depois em conjunto, para debaterem problemas referentes
ao amor e ao sexo.
Tais programas deveriam, também, levar em consideração as
necessidades peculiares de outros grupos, como os viúvos e
desquitados. Os últimos, em particular, mantêm-se
completamente marginalizados da vida católica, quando não
chegam mesmo a ser excluídos dela. Certos ambientes
consideram-nos como "maus católicos", e dão-lhes a
sensação de serem indesejáveis em vários tipos de
encontros. Já é tempo de compreendermos que também um
católico pode se achar em circunstâncias que o obriguem a
recorrer ao desquite — quando necessita de uma sentença
para decidir sobre a custódia dos filhos ou a separação de
bens — e que isso não implica rompimento de relações com
a Igreja. Pelo contrário, deixando de se unir novamente em
matrimônio, oferece testemunho heróico de sua fé na Igreja.
É hora também de as instituições eclesiásticas dedicarem
maior carinho e esforços para levar os separados e
desquitados a melhor conhecerem e tratarem seus
dificílimos problemas: problemas dos que se separam sem
filhos, da mãe jovem ou adulta que ficou sem arrimo, dos fi-
lhos que perderam a companhia e o afeto dos pais.
Tais esforços para oferecer a celibatários e casados a
possibilidade de realizarem a vocação humana e cristã ao
amor, devem caminhar pari passu com um trabalho de
formação de grupos multiformes e abertos, nos quais seja
possível criar verdadeiro afeto e amizade construtiva. Não
entendemos que o objetivo principal seja proporcionar
reuniões alegres a solteirões simpáticos, ou refúgio para
corações solitários; a meta é formar comunidades e centros
em que os participantes, desenvolvendo todas as formas de
vida cristã, tenham possibilidade de encontrar outras pes-
soas, de se comunicar e de agir em grupo.

Há muitos anos, uma professora aposentada. Miss Sarah
Benedicta O'Neil, freqüentava um salão que, naquele tempo,
era a única livraria de Chicago onde era certo encontrar
pessoa com quem trocar palavras, tomar chá, e comprar
livros pela metade do preço se o dinheiro estivesse curto.
Quantos jovens trabalhadores, e inclusive um dos autores
deste livro encontraram naquela livraria o calor do amor
cristão, capaz de encorajar um espírito solitário e desorienta-
do! Muitos centros como este existem hoje, mas outros mais
são necessários, nas universidades, em cidades e lugarejos,
em paróquias e agrupamentos sociais.
As atuais estruturas de paróquia seriam muito mais eficientes
para formar mentalidade comunitária verdadeira e aberta, se
a prática pastoral tivesse por objetivo reunir casados e
solteiros em um clima de fraternal companhia e de comum
trabalho. Mas é necessário criar mais que simples
organizações. Sente-se real necessidade de se constituírem
centros formados por grupos abertos para quantos estiverem
dispostos a estabelecer verdadeiras relações de amizade com
os outros, colaborando na criação de um clima propício
para o reflorescimento do afeto cristão. Em outras palavras,
casados ou não, devemos ajudar-nos mutuamente a criar
aquela comunidade no amor, de que participam "todos os
que se nutrem de um mesmo Pão".

8. O CELIBATO ESCOLHIDO "POR AMOR DO
REINO"

As palavras do Evangelho de S. Mateus, que proclamam a
vocação ao celibato "por amor do reino", acham-se
intimamente conexas com o ideal do matrimônio
indissolúvel. "Não separe o homem o que Deus uniu..."
"Dizem-lhe os discípulos: se tal é a condição do homem a
respeito da mulher, é melhor não se casar! Respondeu ele:
nem todos entendem esta palavra, mas somente aqueles a
quem foi dado... Há eunucos que a si mesmos se fizeram tais
por amor do reino dos céus. Quem puder compreender,
compreenda" (Mt 19,6-12). O contexto deixa bem claro que
o ideal do matrimônio é mais fácil de ser compreendido e
aceito, pois somente poucos abraçarão voluntariamente o
celibato por amor de Deus e do Evangelho. Alguns não
duvidam em afirmar que o ideal celibatário é mais
condizente com a moral sexual cristã; e esse seria o motivo
que induz a optar por aquele estado de vida como forma de
serviço a Cristo.
Em recentes debates sobre anticoncepcionais, a relação
entre matrimônio cristão e castidade foi colocada em termos
muito superficiais, que têm em conta somente a satisfação
sexual física. Diziam alguns sacerdotes moralistas: "Se somos
capazes de abster-nos do prazer sexual, também os cônjuges
conseguirão fazê-lo", pelo menos durante certo período. Por
outro lado, é interessante observar a reação negativa de
alguns leigos solteiros perante sacerdotes convictos de que a
vocação sacerdotal não inclui necessariamente um chamado
para o celibato. Mas, a correlação entre as diversas formas de
vida cristã deveria entender-se de maneira bem mais
profunda.
No tocante ao reino que Cristo veio fundar, a vocação ao
celibato "por amor do reino" tem por objetivo dar
testemunho da doação que Deus fez de si em Cristo, como
"tu" supremo da pessoa humana. Tão grande e real é este
dom, que o cristão pode transcorrer toda a vida sem o afeto
matrimonial, e nem por isso sentir-se-á frustrado ou
incompleto. É a vocação a dar testemunho da realidade
humana do amor cristão, da possibilidade efetiva de cultivar
relações plenamente humanas fora do âmbito da amizade
conjugal; vocação a amadurecer no amor e a ajudar os outros
nesta tarefa.
O ideal do celibato "por amor do reino" representa,
portanto, um fator de vital importância para a comunidade
cristã, seja pelo trabalho que o consagrado pode, ou poderia
realizar, seja pelo testemunho especial que lhe cabe dar
perante os homens. Se os cônjuges cristãos são chamados a
testemunhar, em especial, a fidelidade e a redenção que o
amor de Deus através de Cristo, oferece à humanidade, em
todas as vicissitudes da vida e do amor humano, os que se
consagram a Deus pelo celibato são chamados a dar
testemunho da realidade do amor de Deus, no amor
humano, e além dos afetos terrenos, nos acontecimentos do
mundo, e além das vicissitudes desta vida.
Todos os outros cristãos, casados ou solteiros, precisam deste
testemunho. Precisamos vê-lo e apreciá-lo em nosso
trabalho, na vida social, desde as cidades até as mais remotas
aldeias das montanhas, para sentirmos a amorosa presença
de Cristo no mundo, e o seu contínuo apelo ao mundo para
realizar obras de amor.
Grande e evidente é o contraste entre a mentalidade dos que
consideram a vocação sacerdotal e religiosa como abandono
do mundo e tentativa de negar o próprio dinamismo de vida,
esforçando-se por pertencer inteiramente a Deus, e a
concepção que encara o ministério sacerdotal e a vida
religiosa como apelo ao amor de Deus e do próximo a ser
realizado de maneira plenamente humana, como vocação
para executar no mundo o plano divino. Quatro itens
cumpre-nos mencionar, pela importância que representam
para o tema deste livro: a vocação à vida de celibato
consagrado é dom que não se concede a todos os bons
cristãos, nem mesmo à maioria deles; seguir esta vocação
não significa negar o afeto humano e o sexo, mas integrá-lo
no conjunto dinâmico da pessoa que busca o amor de Deus
e dos homens; esta vocação exige opção livre para servir a
Deus e às necessidades do Evangelho conforme a capacidade
de cada um e as especiais exigências da Igreja e da sociedade;
esta vocação requer muitos tipos de comunidade.

Esta vocação é um dom

No Novo Testamento, seja nos Evangelhos, seja nas cartas
de S. Paulo, põe-se em relevo que esta vocação é dom
especial; disto decorre, e é óbvio, que uma pessoa pode ser
cristã perfeitamente engajada sem ter recebido este dom.
Entretanto, durante muitos séculos, até recentemente, foi
convicção bastante generalizada na Igreja católica que o
estado normal para se levar uma vida plenamente cristã era o
sacerdócio e a vida religiosa. Considerava-se, geralmente, a
vida matrimonial como apanágio dos medíocres; não se
pode negar que muitos escritos, ainda em voga, sobre a
"vocação", proclamam explícita ou implicitamente estas
idéias.
Tal concepção é fruto de longo e complexo processo
histórico. Parece-me que se radicalizou quando terminaram
as perseguições, logo após a paz constantina, ocasião em que
muitos passaram a aceitar o cristianismo por motivos alheios
a uma profunda convicção pessoal. A vida cristã ordinária
começou a parecer muito pouco heróica, especialmente
depois que cessou a possibilidade de testemunhar o Cristo
mediante o martírio. Os cristãos fervorosos deram-se à
procura de um modo de vida cristã mais autêntico, e de um
sucedâneo do martírio. Um dos resultados dessa busca foi o
nascimento e a rápida difusão do monaquismo em toda a
Igreja, e o desenvolvimento, através dos séculos, de muitas
outras formas de vida "religiosa", apresentando-se todas,
cada qual à sua maneira, como renúncia ao matrimônio e ao
direito de dispor das coisas, como obediência a um superior
e renúncia à própria vontade.
Atualmente, em especial após o Vaticano II, a Igreja esforça-
se para pôr em evidência a vocação de todo cristão à
perfeição e a viver como "mártir", dando testemunho do
amor a Cristo na abnegação de si próprio. Embora os
escritores ascéticos tenham sempre afirmado, mais ou
menos explicitamente que somos todos chamados a sermos
"perfeitos como nosso Pai que está nos céus", muito
raramente o católico comum levou "a sério" este apelo.
Admitir que o fiel de Cristo orienta-se, por sua natureza, ao
amor. e a realizar na prática as últimas conseqüências dessa
afirmação, parece ainda agora, para muita gente, um fato
revolucionário.
Aquela antiga suposição segundo a qual todo fiel realmente
fervoroso devia desejar a vocação ao sacerdócio (celibato) ou
à vida religiosa, teve como conseqüência este fato: quase
todo católico que se sentia chamado a uma relação mais
íntima com Cristo e a servir os irmãos, considerava-se,
também, na obrigação de abraçar a vida sacerdotal ou
religiosa. Tal suposição foi prejudicial para o matrimônio,
reduzindo-o a um estado de segunda classe; obviamente,
prejudicou também o conceito de celibato "no mundo",
como se costumava dizer.

Foi, outrossim, nociva ao sacerdócio e à vida religiosa, pois
muitas pessoas julgavam-se chamadas a estes estados de
perfeição simplesmente porque desejavam ser cristãos mais
plenamente engajados, embora não tivessem aquela graça
particular que se exige para o celibato consagrado a Deus. (O
número elevado de líderes leigos, em vários setores da vida
católica, que passaram pelo seminário, está a testemunhar a
difusão deste fenômeno em passado não muito remoto).

Diga-se ainda que, à luz da vocação cristã, o dom necessário
para abraçar o celibato consagrado deve consistir, pelo
menos em nível psicológico, na capacidade de crescer e
amadurecer no amor, sem o normal auxílio do vínculo
matrimonial. O indivíduo deve estar em condições de
quebrar as cadeias do propilo isolamento, de aprender a
amar os outros nas relações pessoais, de colocar o afeto e o
sexo a serviço do amor, sem a comunhão que o matrimônio
oferece, sem um companheiro ou uma companheira para
executar as obras do amor, sem atenuantes para a solidão,
sem a experiência da união sexual, sem aquele incentivo a
crescer no amor, que decorre normalmente do matrimônio.
Como salientamos no primeiro capítulo, há muitos, hoje,
sinceramente convencidos de que seja impossível adquirir
maturidade e perfeição, humanamente falando, sem a
experiência do amor, que deriva da necessidade sexual. Mas,
todos conhecemos pessoas capazes de desmentir esta
convicção com a própria personalidade e a própria vida. É
realmente possível amadurecer como pessoa humana aberta
ao amor, mesmo vivendo no celibato consagrado, porque há
pessoas que conseguiram e conseguem tal objetivo neste
estado de vida.
Entretanto, é necessário um grau notável de
autoconsciência, de experiência, de maturidade inicial, para
que alguém se veja em condições de afirmar, realmente, se
recebeu, ou não, este dom, se é capaz, ou não, de aceitar a
renúncia ao matrimônio, e emitir um compromisso livre e
pessoal de "fazer a vontade do Senhor" e servir ao
Evangelho.
Deve ser claro para todos, inclusive para os candidatos ao
sacerdócio e à vida religiosa, que a graça do celibato
significa, exatamente, capacidade para abraçar a realidade do
amor cristão sem o matrimônio, que é sinal desta realidade e
instrumento oferecido à maioria dos homens para conquistá-
la. Atribuir ao celibato e à virgindade consagrada o devido
apreço, significa estimar também o matrimônio cristão.

Função do amor e do sexo na vocação ao
celibato

A suposição de que todo católico, sequioso de se engajar
seriamente como cristão, deva abraçar o celibato sacerdotal
ou religioso, conduz a outra deletéria conseqüência: muitas
pessoas que possuíam idéias erradas sobre sexo e
matrimônio, ou emocionalmente imaturas, foram levadas a
confundir a própria aversão ao sexo com o apelo ao celibato
consagrado. A preparação para a vida clerical e religiosa,
bem como as condições em que viviam os candidatos antes
de ingressar no seminário ou noviciado, tornaram muito
difícil aos sacerdotes e religiosos adquirir visão clara e
equilibrada da própria sexualidade e da função aue ela
representa em sua vida e nos seus afetos. A desconfiança
geral, que envolve a sexualidade, e o conceito negativo, que
se criou em torno da pureza (já nos referimos a isso no
início deste livro) levaram a julgar pecaminoso tudo que diz
respeito ao sexo, e inculcaram que a única atitude possível,
nessa matéria, era não pensar nisso.
Mais ainda, a suposta periculosidade atribuída aos afetos
profundos fez com que sacerdotes e religiosos perdessem a
coragem de tentar relações intensas de amizade com pessoas
do mesmo sexo e, a fortiori, do outro sexo. Isso significou,
para muitos, a morte da afetividade, com todas as torturas
psicológicas e as anormalidades que geralmente acompa-
nham tais catástrofes. Tentou-se, então, orientar este
impulso somente para Cristo (ou sua Mãe), decorrendo disso
um sentimentalismo malsão, uma piedade melosa e
inconsciente. E eis um dos resultados muito freqüentes
dessa situação: justamente aqueles que mais necessitavam de
maturidade emocional, e de exata orientação afetiva, para
corresponderem à própria vocação, eram obstaculizados
quando tentavam lançar mão de meios positivos a fim de
alcançarem este amadurecimento. Destarte, em vez de
testemunho do amor cristão, deram provas muito freqüentes
dos maus efeitos da falta de formação para o amor. Au-
toritarismo opressor, paternalismo (ou maternalismo)
excessivo, são vícios comuns que muitas vezes caracterizam
essa lamentável deformação. Outra falha pouco mencionada
é aquela inclinação ao flerte, imatura e quase ofensiva, que
caracteriza o comportamento de alguns sacerdotes junto às
mulheres com as quais mantêm contato no trabalho, nos
escritórios, nas comissões e outras atividades semelhantes.
Muitos seminários e noviciados começam a recorrer aos
testes psicológicos como critério para a admissão dos
candidatos. Mas, é mister promover uma formação
contínua, por exemplo, mediante debates em grupo e
orientações dos peritos em torno da função do sexo e do
amor na vida cristã em geral, no celibato consagrado e, em
particular, na virgindade. É também indispensável incentivar
a formação de relações interpessoais. Grande vantagem
adviria da promoção de cursos especiais para sacerdotes e
religiosos sobre estes temas . Isso traria enormes proveitos
não só para eles, mas também para as pessoas confiadas à
orientação ou instrução que eles proporcionam, bem como
para quantos lhes pedem o conselho sacerdotal.
Além disso, há ainda a necessidade de esclarecer aos pais e
demais responsáveis, incentivando-os a oferecer aos jovens
noções mais sólidas em torno do sexo, do afeto e do amor
cristão, a fim de que se capacitem para escolher o próprio
"estado" de maneira mais segura do que o faziam outrora.

A necessidade de liberdade

São Paulo ensina claramente que uma das razões pelas quais
o cristão se decide a abraçar o celibato é a libertação das
preocupações e cuidados pela família, para se colocar mais
frutuosamente a serviço do Evangelho (1 Cor 7,35-40). Mas,
nas atuais estruturas eclesiásticas, os sacerdotes (para não
falar dos seminaristas) e os religiosos são geralmente muito
menos livres que os leigos para servir ao Evangelho no
mundo de hoje. As dificuldades encontradas por muitos
padres na luta pela aplicação dos direitos civis, ou os
obstáculos em que se debateram muitas freiras, tentando
superar as formas medievais da clausura para se dedicar onde
a Igreja mais precisa de seu trabalho, são claros exemplos do
que afirmamos.

Psicologicamente falando, as pessoas que se consagram ao
celibato, mais ainda que os solteiros, necessitam desenvolver
a própria personalidade em ocupações apropriadas que, de
qualquer maneira, ofereçam um objetivo para o próprio
impulso criativo. Para o homem ou a mulher frustrados em
seu trabalho, o celibato dificilmente poderá ser um
engajamento completo no amor. Apesar disso, muitas vezes
acontece, nas dioceses e nas comunidades religiosas, que as
pessoas sejam tratadas como pecas de reposição; usa-se delas
conforme as necessidades do momento, e não como pessoas
que só servirão frutuosamente à Igreja se engajadas e
capacitadas para desenvolver e pôr em prática todas as suas
potencialidades.
Estas falhas nas atuais estruturas eclesiásticas parecem
responsáveis, em grande escala, pelo minguar dos candidatos
ao sacerdócio e à vida religiosa, e pela deserção em massa,
sobretudo nas comunidades mais iluminadas e progressistas;
aqueles que deveriam constituir o protótipo da liberdade na
Igreja, terminaram sendo as pessoas mais compromissadas
pelas estruturas. Muitos problemas complexos implicados na
modificação e na transformação das estruturas existentes,
visando favorecer a liberdade de que falamos, ultrapassam os
objetivos deste livro. Mas entre os fatores invocados para o
desenvolvimento das atuais estruturas, três fazem parte do
tema em questão.

O primeiro diz respeito ao conceito de obediência religiosa,
que suprime o impulso criativo e afetivo, em vez de orientá-
lo e desenvolvê-lo a serviço do amor. O conceito original de
obediência religiosa era a submissão do principiante na vida
espiritual a um mestre experimentado, que o ajudava a se
conhecer melhor, prevenindo-o contra a auto-sugestão e
favorecendo o seu crescimento na fé e no amor de Deus.
Mas logo descambou para a idéia de que a pessoa deveria se
comportar como instrumento passivo nas mãos do superior.
A tese de que a perfeição consiste em aceitar a vontade do
superior como sendo a de Deus, levou muitas vezes os
religiosos a abdicar às suas responsabilidades, impedindo o
desenvolvimento da pessoa. Esta mentalidade facilita o
caminho para a organização, mas se opõe frontalmente à
idéia cristã segundo a qual o homem, por vontade de Deus,
deve crescer para conquistar uma personalidade
inteiramente livre em uma comunidade de amor. Cumpre,
pois, reformular as estruturas eclesiásticas, para adaptá-las
aos valores que deveriam promover, tanto nos que se sub-
metem quanto nos detentores da autoridade. Em qualquer
caso, seja a autoridade, seja a obediência, devem favorecer o
crescimento para a liberdade própria dos filhos de Deus.
Em segundo lugar, muitas estruturas existentes tiveram
origem no temor do "mundo", em grande parte originário da
preocupação pelo sexo. Padres e religiosos devem se afastar
do inundo, e permanecer longe dele, sobretudo para evitar
os perigos contra a castidade. A este temor aliava-se a idéia
de que as mulheres não são pessoas, no sentido pleno da
palavra, motivo pelo qual devem ser colocadas a salvo e pro-
tegidas por muros e regras (feitas por homens), a fim de
salvá-las das garras dos homens que poderiam atentar contra
a sua castidade.
Como vimos, este não é o tipo eficaz de separação c
proteção de que necessitamos hoje. Aqueles que escolheram
o serviço de Deus, consagrando-se ao celibato, necessitam,
antes, que se lhes ajude a compreender a função do sexo e
do amor na própria vida, a orientar para o amor o impulso
vital de que são dotados; depois, devem ser deixados cm
liberdade, para seguirem a própria vocação "a serviço dos
homens". Isto se faz urgente em nossos dias, não só pelo
bem daaueles que seguem esta vocação, mas também de
toda a comunidade cristã e da sociedade. Precisamos do
"testemunho" das pessoas, que se consagram pelo celibato,
onde esse exemplo possa ser bem dotado: nas vicissitudes da
vida contemporânea, que exige vivamos e concretizemos a
obra do amor cristão; nas grandes cidades, nas universidades,
nos subúrbios, no campo, de dia e de noite. Muitos, dentre
os que seguem esta vocação, já se orientam para uma linha
de liberdade, c combatem os obstáculos que se lhes opõem.
Tais pioneiros, homens c mulheres, estão inaugurando,
assim o esperamos, uma nova era para testemunhar o
celibato consagrado no mundo.

Necessidade de vida comunitária

"Não é bom que o homem esteja só". Tais palavras aplicam-
se, também, ao cristão que se consagra à vida de celibato. A
resposta tradicional a esta necessidade de companhia e de
amparo foi a criação de comunidades religiosas. (Na tradição
monástica, o indivíduo deve passar por longo período de
aprendizagem na vida comunitária, antes de ser admitido à
vida ere-mítica, para viver sozinho com "o Único
Absoluto"). Infelizmente, muitos institutos religiosos
conceberam esta "comunidade" como uma vida lado a lado,
seguindo a mesma regra, mas percorrendo caminhos pa-
ralelos cuidadosamente separados, sem exigir esforço
dinâmico para edificar uma verdadeira comunidade de amor
cristão. O medo das "amizades particulares" — expressão em
voga, nos escritos ascéticos, para indicar toda relação pessoal
muito chegada — que poderiam afastar do amor de Deus e
fazer cair em pecados sexuais, tornou quase suspeito o afeto,
até mesmo entre membros de uma comunidade.
É evidente que as "amizades particulares", no sentido de
relações falsas e egoístas, são malsãs em qualquer estado de
vida. O homossexualismo foi, e ainda pode ser, um sério
problema nas comunidades religiosas; problema complexo,
que deriva de educação falha desde a infância, como
também de um tipo "fechado" de vida religiosa em que
faltam experiências emocionais externas. As comunidades
procuram melhorar as antigas condições, e começam a
constatar que não há como subsistir verdadeira comunhão
sem que seus membros se unam reciprocamente em várias
relações de amizade e de afeto — relações abertas, em largos
círculos, mas sempre verdadeiras e interpessoais. Não quero
dizer que o indivíduo deva se esforçar para amar todos os
outros do mesmo modo: cada membro da comunidade há de
ser aberto para todos os outros, de tal forma que possa
florescer uma variedade de relações.
Mas, considerando que os consagrados ao celibato têm de
enfrentar cada vez mais as situações reais da vida, vai se
tornando mais difícil conservar as formas tradicionais da
vida religiosa, comunitária: vinculação dos membros ao
mesmo esquema de vida, lontras horas dedicadas à oração
comum, etc. Em muitas circunstâncias, somente dois ou três
podem viver juntos, como acontece com o clero diocesano
e em algumas congregações de freiras devotadas ao ensino e
à assistência social. Em outros casos, mulheres que fizeram
voto de castidade deverão viver sozinhas, bem como muitos
celibatários, embora não engajados por votos religiosos.
É, pois, evidente que para abrir às múltiplas necessidades dos
que fizeram voto de castidade nos dias de hoje, a idéia de
comunidade religiosa estática, e de vida regular comum,
deve ceder passo a modelos mais dinâmicos. Tais cristãos
terão, assim, condições para se inserirem em muitos grupos
de amizade, de interesse e de trabalho, entre eles mesmos,
ou em companhia de outras pessoas, casadas ou solteiras.
Todos os cristãos sentem necessidade do testemunho
daqueles que se consagraram ao celibato; mas, para isso, é
indispensável poder encontrar outras pessoas consagradas
prestando a própria colaboração nestes vários tipos de
comunidade.
Fazemos votos que "sacerdotes, religiosos e leigos" não mais
se apresentem como três classes rigidamente separadas da
Igreja católica, e que, em virtude das relações humanas, e do
comum trabalho pelo Reino, possam todos colaborar para a
"edificação do Corpo de Cristo no amor".

9. O CASAMENTO COMO VOCAÇÃO PARA O
AMOR

A Igreja, em sua longa história, sempre considerou a
realidade humana do casamento, conforme as peculiaridades
dos povos e dos tempos: entre os Judeus contemporâneos de
Cristo, na civilização greco-romana do Cristianismo
primitivo, entre as tribos bárbaras que estavam sendo
cristianizadas, na sociedade medieval do Ocidente. O
casamento, naquelas sociedades, era uma instituição social
em que os valores pessoais pouco importavam e as mulheres
ocupavam geralmente posição muito inferior. (A idéia do
consentimento pessoal como constituindo a essência do
contrato matrimonial remonta à época tardia da civilização
romana, e foi julgada essencial ao casamento somente depois
de muita hesitação e raciocínio, e, mesmo então, numa
perspectiva legalista, que fez este consentimento "pessoal"
parecer impessoal). Tão logo a Igreja dirigiu seus esforços
para a conservação e o fortalecimento desta instituição, os
pensadores cristãos começaram a estudar o matrimônio a
partir da realidade em que viviam, e tentaram incorporá-lo
nos moldes da época: por isso, não surpreende que o seu
trabalho, até há bem pouco tempo, tenha sido muito
impessoal e institucionalizado.
A repugnância e desconfiança em torno da sexualidade, tão
dominantes no pensamento cristão, fizeram o casamento
parecer um estilo de vida de segunda categoria, justificado
apenas pela necessidade de propagar a espécie humana em
uma instituição reconhecida e estável. Assim, teólogos e
canonistas têm-se interessado muito em emanar regras para
o uso das relações sexuais no casamento, contribuindo deste
modo, em certo sentido, para centralizá-lo na instituição,
fazendo da necessidade e importância da procriação sua
única desculpa válida. Como bem fez notar John T. Noonan,
a insistência sobre a importância da procriação provém dos
estóicos. "Pôr em evidência a finalidade procriadora do sexo
pareceu a muitos cristãos, como parecera aos estóicos pagãos
e a muitos judeus pensadores, como Filão, o melhor meio de
condenar, racionalmente, a promiscuidade sexual, enquanto
servia, ao mesmo tempo, para realçar a bondade da
procriação, contra o parecer dos agnósticos". Por esse mo-
tivo, o pensamento cristão, com relação ao casamento, tem
mostrado, de um modo geral, acentuada ambivalência: tenta,
por um lado, sustentar a instituição, enquanto, por outro,
mantém certa repugnância e suspeita com relação ao ato
característico do matrimônio.

Em décadas recentes, contudo, esforços crescentes têm sido
feitos para se reconhecer e desenvolver o sentido positivo
das relações sexuais e da vida familiar num contexto cristão.
Tais esforços foram iniciados e, até certo ponto, levados à
frente por casais para quem tornou-se cada vez mais claro
que a "realidade humana" do casamento mudou: não é mais
a instituição social que costumava ser. Se os cristãos,
argumentam eles, devem ser capazes de sentir o matrimônio
como "mistério de salvação" — uma resposta ao amor de
Deus que nos foi dado em Cristo —, essa realidade deve
exprimir-se em termos de valores pessoais e recíprocos.

Diz Schillebeeckx: "A família sofreu perda de funções.
Grande variedade de encargos, antes executados pela
comunidade familiar, foram assumidos por grupos
extrafamiliares. Conseqüência importante de toda essa perda
de funções é que o casamento e a família foram, por assim
dizer, abandonados a si mesmos. O casamento não produz
mais o engajamento dos cônjuges nos moldes objetivos e
permanentes da comunidade familiar. Veio a faltar este
sólido fundamento da vida de matrimônio, e o casal recém-
casado de boje tem de começar tudo do começo e, o que é
pior, deve começar sozinho, ou melhor, como duas pessoas
solitárias. A situação social objetiva, em que o casal, outrora,
se introduzia sem contrastes deixou de existir. Mas, o
declínio desta situação social objetiva levou a uma liberdade
e a uma visão mais ampla quanto ao aspecto pessoal e
subjetivo da vida matrimonial. O casamento e a família pas-
saram a contar apenas com seus próprios recursos. Razão por
que foi indispensável reformular a sua natureza objetiva.
Tudo quanto resta à família e ao casamento é este aspecto
pessoal e subjetivo, esta vida íntima, interior".
Mas, as autoridades da Igreja nem sempre acharam fácil
reconhecer que esta mudança na realidade humana do
casamento oferece aos cristãos uma nova oportunidade de
vivê-lo, como mistério salvador, de modo mais consciente e
pessoal. Acostumado às formulações do passado, o
Magistério tem sido lento em reconhecer a necessidade de
repensar e reafirmar o ensinamento cristão sobre o
casamento em termos pessoais, embora estes sejam muito
mais adequados ao Evangelho que os termos impessoais e
legalistas das formulações antigas. As afirmações sobre o ca-
samento e a vida familiar na Constituição sobre a Igreja
no Mundo de Hoje, apresentaram realmente um enorme
avanço em confronto com a Encíclica sobre o Casamento
Cristão, publicada em 1930 (a qual representa, por sua vez,
considerável passo à frente em relação aos pronunciamentos
anteriores). A Constituição contém, por exemplo, uma
bela afirmação sobre O amor matrimonial. Evita,
cuidadosamente, estabelecer hierarquia entre os "fins" do
casamento, enquanto que, em todos os documentos
anteriores, o amor conjugal era muito claramente relegado a
uma posição inferior à procriação. Mas os dizeres do do-
cumento e a história de sua formulação indicam a grande
dificuldade que encontra a mentalidade personalista sobre o
casamento para abrir caminho e superar a velha mentalidade
institucional retrataria ao sexo e suas formulações.
Nesta afirmação do Concílio, as duas mentalidades parecem
apenas justapostas, cemo acontece em muitos escritos atuais
relativos ao casamento. Elas estão, de fato, em conflito nas
mentes e nos corações dos católicos, e talvez de todos os
cristãos. É o casamento a forma mais ou menos inevitável de
"servidão humana" à qual as pessoas são forçadas pela
necessidade de legitimar o sexo, ou pode ele ser um modo
de vida pessoalmente frutuoso c realizador? O sexo, mesmo
no casamento, é algo sujo, embora inevitável e fascinante,
ou pode ser ele uma forma verdadeira de autodoação? A
procriação e o cuidado dos filhos são o tributo que se paga
por "ceder" ao sexo, ou podem eles ser o fruto de uma
decisão responsável e amorosa? Deve o marido ser a
"cabeça" da família, e a mulher, seu "coração", ou deveriam
eles tentar complementar-se enquanto pessoas, tais como
são? Deveria a mulher, idealmente falando, ficar em casa, e
cuidar dos filhos e do lar, ou deveria ela se dedicar a algum
outro trabalho, mesmo se isto não fosse necessário para o
sustento da família? O matrimônio é apenas um
engajamento social, para viver juntos, gerar e educar filhos?
Ou, se é um engajamento profundamente pessoal, emais as
condições para sua validade? Em que sentido devem as
pessoas, lealmente, ter intenção de se casar? Que
significado devem dar ao casamento para que ele seja verda-
deiro?
Tais questões, formuladas mais ou menos conscientemente,
provocam sentimento de culpa, e ainda mais confusão,
porquanto as necessidades da vida moderna, em muitos
casos parecem estar forçando as pessoas a respostas
contrárias à mentalidade "tradicional", em que foram
educadas. Mas a solução deste conflito não pode ser
encontrada tentando projetar um ideal de vida familiar
cristão imcompatível com a realidade humana do casamento
na hora atual. Deve ser encontrada tentando refletir sobre
todas as questões hodiernas concernentes ao casamento e à
vida familiar, à luz da vocação cristã de praticar as obras do
amor. Só nesta perspectiva, podem os valores humanos
implicados, serem mais claramente discernidos, escolhidos e
promovidos, a fim de que o casamento cristão possa tornar-
se, mais plenamente, um mistério vivificador para os
cônjuges de nossos dias.

A vocação ao matrimônio

Se levarmos a sério nossa obrigação de praticar as obras do
amor, torna-se logo manifesto o motivo por que o
casamento é o modo de vida que melhor corresponde à
maioria das pessoas. Isto não acontece por causa da
"fraqueza da carne" ou pela necessidade de reproduzir a raça
humana, mas porque viver juntos, como "dois numa só
carne" (o que significa dois numa só vida), oferece ao
homem e à mulher oportunidade, sob muitos aspectos, de
romper o auto-isolamento, de entrar na dinâmica de um re-
lacionamento amoroso, empregando a totalidade de suas
pessoas sexuadas, constituídas de corpo e espírito, de colocar
a sexualidade a serviço do amor, de lazer dos seus corpos,
instrumentos de doação, de comunicar mutuamente a vida e
de doá-la aos filhos e à sociedade.
É claro que nem todos os casais sabem aproveitar,
integralmente, estas oportunidades, e muitos mal as
conhecem. Marido e mulher, ou um deles, podem nunca
compreender a necessidade de tentar romper o auto-
isolamento e de se abrir para o outro; um pode fechar-se ao
outro. Uma pessoa pode viver em matrimônio por muitos
anos antes de perceber que, inconscientemente, levantou,
de uma ou outra maneira, barreiras que impedem uma
comunicação maior. Da mesma forma, pessoas casadas
existem que não reconhecem o papel da relação sexual em
toda a sua extensão, ou a necessidade de aprender a executá-
la bem, como ato de amor. E, certamente, muitos casais não
têm idéia de várias dimensões vivificadoras do casamento,
além daquela de colocar filhos no mundo. Não percebem
que sua missão é ajudar um ou outro a crescer no amor, a
educar os filhos como pessoas capazes de amar, c que, como
indivíduos e como casal, são destinados a contribuir para o
bem-estar da sociedade.
Entretanto, as pessoas que entendem o casamento, de
alguma forma como um sério compromisso, abraçam-no
com a intenção de amar-se reciprocamente, por mais
imperfeita que a sua concepção de "amor" possa ser, e com a
determinação de "levá-lo a bom resultado". Para espelhar a
natureza da vocação cristã e a realidade das intenções das
pessoas, o ensinamento sobre o matrimônio deveria, pois,
reconhecer explicitamente o amor conjugal como essência
do casamento, colocando a seu serviço todos os outros
aspectos: fisiológico, psicológico, econômico, etc.
É demais freqüente apresentar-se o amor conjugal como
uma espécie de doação estática, na relação sexual, ou como
confortável incandescência que permanece depois de o fogo
da paixão e do romantismo ter-se apagado. Mas o amor
essencial ao casamento cristão não é nenhum destes, menos
ainda um sentimento romântico de mar de rosas. É, antes, a
vontade de um homem e de uma mulher, estimulados pelo
afeto e pela sexualidade, de estar um com o outro e pelo
outro na comunhão matrimonial, como membros da
comunidade, da Igreja e da sociedade.
Esta vontade inclui, portanto, implicitamente, o esforço de
crescer no amor mútuo e de tentar agir amorosamente um
para com o outro. E isto, por sua vez, implica no desejo de
aprofundar as várias artes requeridas para crescer no amor
conjugal e na capacidade de agir amorosamente — a arte de
cultivar uma relação de amor, as artes do relacionamento
humano e do contato físico, a habilidade em controlar um
orçamento, manter uma casa, e assim por diante. Implica,
também, a vontade de ser parte de um amoroso "nós",
gerando filhos, educando-os no amor, e praticando obras de
amor na sociedade humana. Em outras palavras, tudo que se
pode dizer sobre as exigências de qualquer relacionamento
amoroso é, a fortiori, verdadeiro a respeito do
relacionamento conjugal, justamente porque o casamento
constitui, em potencialidade, o relacionamento humano
mais completo e o que oferece as mais completas e variadas
oportunidades para crescer no amor.
Semelhante idéia do casamento capacita-nos a considerá-lo,
a um tempo, idealista e realisticamente, em vez de sermos
— como é por demais freqüente — sentimentais sob o
aspecto ideal e cínicos face à realidade. Podemos ser
idealistas em relação ao casamento, porque percebemos que
não há limites para o crescimento no amor. E desde que o
casamento oferece tantas e tão variadas maneiras de estar
com e para o outro, podem-se descobrir maneiras novas ou
negligenciadas de crescer numa ou noutra dimensão,
quando as costumeiras parecem fracassar.
Podemos, porém, ser realistas, porque vemos que estas
formas de renovar o amor e crescer nele não consistem,
basicamente, em gestos, como o marido que se lembra do
aniversário de sua esposa oferecendo-lhe flores, ou a esposa,
que procura apresentar-se bonita e bem arrumada quando o
marido chega em casa, voltando do trabalho. Estas atitudes
podem muito bem ser apropriadas num determinado casa-
mento, como sinais e expressões de afeto. Mas, o cres-
cimento no amor dá-se, primeiramente, dentro e através das
realidades humanas básicas da vida em comum ao longo dos
anos, tentando tornar-se mais amoroso em situações
alteradas e através delas, procurando agir mais
amorosamente no trabalho e no descanso de cada dia. Dá-se
no cuidado de um pelo outro e pelos filhos, "na doença e na
saúde", na tarefa da manutenção da casa e na de sustentar a
família, na participação da vida eclesial e comunitária.
Descrever o casamento como modalidade especial da
vocação cristã ao amor não quer dizer, pois, encorajar o
subjetivismo ou o romantismo, mas o realismo cristão. O
amor conjugal não é espécie de bônus acrescentado à
essência do casamento; é sua base por direito, seu
dinamismo necessário. Muitos casamentos, é verdade,
sobretudo em culturas onde os enlaces são combinados
pelos pais, apresentam-se muito bem sucedidos sem que o
casal tenha, de antemão, "se apaixonado" reciprocamente,
em qualquer sentido que este termo possa ser tomado. Mas
nenhum bom casamento pode existir sem o respeito pela
outra pessoa, c sem a vontade de estar com e pelo outro, que
constitui a essência do amor, na comunhão peculiar do
matrimônio.

Dizer que o casamento é, essencialmente, vocação ao amor,
não significa negar o ensinamento cristão tradicional,
surgido com Santo Agostinho, sobre os "fins" do matrimônio
como sendo proles, fides et sacramentum (prole,
fidelidade e sacramento). É antes, desenvolver este
ensinamento em linhas personalistas. A "prole" indicando o
aspecto "nós" do amor conjugal e da missão do casamento; a
"fidelidade", o aspecto interpessoal; e o "sacramento", a
autenticação de Deus, através de Cristo, no amor
conjugal, o esclarecimento de seus valores, a habilitação do
homem e da mulher para concretizarem estes valores.
Porque o casamento visa ser uma escola única de amor, é
que constitui a origem adequada e o berço de uma nova
pessoa humana. As declarações do Concílio Vaticano II
sobre a prole como finalidade do matrimônio salientaram
que esse objetivo inclui não só gerar filhos, mas também,
educá-los para a vida humana c cristã. Educar, porém, os
filhos de forma que aprendam a amar, é essencial para um
bom encaminhamento na vida, e isto só pode ser dado se os
pais se esforçarem em realizar a obra do amor, no lar e na
sociedade.
"Fidelidade" significa mais do que não cometer adultério.
Significa fidelidade à pessoa que escolhemos e pela qual
fomos escolhidos como companheiro de vida; é, portanto,
uma fidelidade que nos empenha em crescer no amor pelo
outro, em abrir-nos ao amor do outro, em todas as
vicissitudes e mudanças que os anos e o desenvolvimento de
duas pessoas diferentes podem trazer. A inconsistência de
muitos casamentos, aparentemente bem sucedidos, aparece
quando casais, cujos filhos cresceram, descobrem que não
têm mais nada em comum para mantê-los unidos. O seu
casamento, de repente, parece ter sido apenas um
companheirismo na tarefa de educar filhos; desempenhando
seu papel de pais, negligenciaram a "fidelidade" dinâmica
que deviam um ao outro como pessoas, a qual lhes teria
assegurado a continuidade e vitalidade do casamento. Os
debates atuais sobre como mulheres casadas possam melhor
precaver-se contra o perigo dos "anos vazios", depois que
seus filhos cresceram, não deveriam negligenciar este
aspecto do casamento somado ao cultivo de várias
habilidades e interesses.
A sacramentalidade do matrimônio tem sido por demais
freqüentemente apresentada como conferindo-lhe uma
auréola de santidade especial, ou fazendo as pessoas casadas
conseguirem um suplemento de "graça", que as habilita a
levar vida tranqüila e feliz, "como a Sagrada Família de
Nazaré". A teologia sacramental hodierna prefere ressaltar
que, através do sacramento, as potencialidades humanas do
matrimônio são focalizadas na sua relação essencial com a
"vida mais abundante" que Cristo veio revelar e tornar
acessível à humanidade; os cônjuges correspondendo à
revelação e ao convite de Cristo, capacitam-se a atualizar
mais plenamente estas potencialidades em suas vidas.

Deus nos criou para amá-lo, para amar-nos reciprocamente,
c desenvolver-nos rumo à plenitude de vida da qual Jesus
ressuscitado é exemplo e fonte. O casamento, então, sempre
e em toda parte, foi sinal, por quanto ambíguo e tênue, desta
vocação humana, e realização deste apelo, toda vez que se
agiu por amor. O uso que os profetas fizeram da analogia do
amor conjugal para descrever as relações entre Deus e seu
povo tornaram este sinal mais claro, demonstrando, ao
mesmo tempo, como é o amor de Deus, e como deveria ser
o amor dos cônjuges: fiel, criador, misericordioso,
renovador. A descrição que Cristo fez de si como "noivo", e
a imagem do Apocalipse apresentando a consumação da
história humana como casamento entre a "nova Jerusalém" e
o "Cordeiro", revelam o sentido do matrimônio como sinal
de união, em vida c amor, de um para com o outro e para
com Deus, cm cuja direção são orientadas as aspirações de
toda a humanidade. Na Carta aos Efésios, 5,21-53, S. Paulo
proclama os deveres dos cônjuges no matrimônio: devem
amar-se, dar-se um ao outro e pelo outro, estimar-se.
(Parece-nos, portanto, grave erro, índice de um sentido de
analogia muito deficiente, não descobrir nenhuma outra
exemplificação para o matrimônio que não seja a
comunidade de amor constituída pela Trindade. O
relacionamento conjugal não é relação pai-filho, e Deus
houve por bem revelar-se como Pai, Filho, e Espírito, não
como marido, mulher e filho, tal como acontecia em muitos
mitos primitivos. A união matrimonial é sinal de nossa união
com esse Deus-em-três-pessoas, por Cristo, no Espírito, mas
não constitui sinal da vida íntima de Deus).
Quando, pois, dois esposos aceitam-se, mutuamente, na
alegria e na tristeza, na prosperidade e na pobreza, na
doença e na saúde, até que a morte os separe, eles se
empenham em tentar viver juntos de tal forma que a
realidade humana de seu casamento seja sinal do amor fiel
de Deus, - que procura conduzir a humanidade, tanto
através das vicissitudes e deficiências, quanto das realizações
e do progresso da história humana, à plenitude de vida em
Cristo. Seu compromisso mútuo constitui o "sacramento", si-
nal visível e eficaz da presença e ação de Cristo nas
realidades quotidianas da vida, para conduzi-los (e, através
deles, outros) rumo a esta plenitude. Isto não quer dizer que
o Cristo é, por assim dizer, um terceiro em cada
matrimônio, como pareceria indicado pelo título do livro
Três para Casar-se. Cristo não está presente, em nenhuma
relação amorosa, como um "outro", mas se situa no "centro"
do próprio relacionamento, para iluminá-lo, dirigi-lo à
consumação através do Espírito: isto é verdadeiro, a fortiori,
no que concerne ao relacionamento conjugal.
Além disso, os esposos cristãos assumem seu compromisso,
mutuamente, como membros da Igreja, da comunidade
daqueles que reconhecem a Cristo como Senhor da História,
e procuram conscientemente responder a seu convite para
trabalhar com ele a fim de transformá-la numa história
plenamente humana. A necessidade, sentida em quase todas
as sociedades, de um compromisso público para o
casamento, parece atribuível, sobretudo a uma questão de
ordem social para ter certeza de que a prole nasça numa
unidade familiar estável e de que apenas os filhos legítimos
participem da vida e propriedade da família. A celebração
pública do casamento cristão também ressalva a natureza
essencialmente social desta vocação, objetivando o
compromisso dos esposos, não apenas reciprocamente, mas
também face à Igreja e à comunidade humana, de cumprir
sua missão de amor na sociedade. E, através desta celebração
pública, a comunidade, por sua vez, se compromete cm
ajudar este casamento a tornar-se o que deve ser.
Este aspecto eclesial e social do casamento lança novas luzes
sobre a interrogação: "Por que esperar pelo casamento?"
Desde que a relação sexual é o ato caracterizador da união
matrimonial, que, por sua vez, é sinal de união entre Cristo e
a Igreja, torna-se mais conveniente que o matrimônio seja
primeiro ratificado publicamente e reconhecido pela Igreja.
O significado pleno do casamento, corno realidade humana
e cristã, explica também por que a cerimônia deveria, a
rigor, realizar-se no contexto da celebração eucarística, sinal
e antecipação da eterna festa nupcial.
Mas, a dimensão eclesial do casamento cristão também exige
que os casais não vivam como unidades isoladas; deveriam
eles encontrar, nos outros membros da Igreja, auxílio para
viver em fidelidade e amor crescente. As Igrejas e a
sociedade estão percebendo que a idéia da unidade familiar
auto-suficiente não é mais válida; tanto a ajuda material
quanto os serviços de assistência, por exemplo, devem, mais
e mais, pôr-se à disposição das famílias que deles necessitam,
se quisermos que a sociedade seja sadia. O Movimento
Familar Cristão realizou, e está realizando, um grande
trabalho, reunindo casais para se auxiliarem a crescer no
conhecimento de Cristo, na compreensão da vocação ao
matrimônio, e a resolver problemas concretos, relativos às
famílias. Mas também precisamos de maior
intercomunicação entre os membros da Igreja, casados e
solteiros. A liberdade de algumas irmãs, por exemplo, de
visitar famílias e grupos familiares para ajudá-los a descobrir
algumas das conotações do Concílio Vaticano II que dizem
respeito à vida matrimonial, constitui excelente progresso;
assim também a formação de equipes integradas por
sacerdotes, irmãs, casados e solteiros, para trabalhar juntos
na programação de várias atividades.
Além do Movimento Familiar Cristão, todas as associações
para a educação religiosa devem promover a idéia da família
cristã não como fim de si mesma, mas como escola de amor
tanto para os pais quanto para os filhos. Semelhante escola
deveria ser considerada parte integral da "Igreja Servidora",
cujos membros devem ser preparados para servir seus
semelhantes. Nem toda família cristã pode ser "apostólica"
no sentido de realizar algum trabalho especial em nome da
Igreja; os casais, porém, deveriam compreender que sua
vocação não é apenas "rezarem juntos e coabitarem" como
família. Os pais devem educar seus filhos para que se tornem
pessoas responsáveis no amor, e para formarem uma
comunidade aberta de amor, pronta a receber outras de
braços abertos, e a servir às necessidades dos demais.
Familiarismo, no sentido de limitação dos interesses de uma
família aos dos próprios membros qual sociedade fechada,
constitui deficiência na compreensão do matrimônio.
Resumindo, pois, a idéia de que o casamento cristão é,
essencialmente, vocação ao amor, esclarece, desenvolve e
fortifica os valores básicos do ensinamento cristão
tradicional. Embora não tenha sido explicitamente
formulada semelhante visão do matrimônio é, de fato,
sustentada por pessoas que, de modo refletido e sério,
tentam encarnar valores cristãos em suas vidas. Adotar e
desenvolver, mais plena e solidamente, este sentido de
vocação no ensino e na praxe da Igreja não redundaria, pois,
na infiltração de "valores pagãos", que algumas pessoas
parecem temer, se as idéias legalistas sobre o casamento
forem abandonadas. Este sentido, pelo contrário, reforçaria a
única base sobre a qual o casamento cristão pode ser,
solidamente, estabelecido hoje em dia: o amor interpessoal.

Que constitui o casamento?

A idéia de que o casamento é, essencialmente, uma vocação
para o amor, também esclarece, embora talvez ainda sem
plena evidência, interrogações que se suscitam em nossos
dias sobre a natureza do consentimento matrimonial e sobre
o que, realmente, constitui um casamento. O pensamento
cristão debateu durante muito tempo este problema antes de
chegar à presente definição da lei canônica; "O
consentimento matrimonial é ato de vontade pelo qual cada
parte dá e recebe um direito perpétuo e exclusivo sobre o
corpo para atos que, por si mesmos, se destinam à geração
de filhos", antes de decidir que tal consentimento, e os
elementos objetivos da sua manifestação pública "na Igreja",
e sua consumação pela cópula, constituem o matrimônio
indissolúvel. A lei canónica acrescenta ainda: "Para que seja
possível o consentimento matrimonial, é necessário que as
partes não ignorem, pelo menos, que o casamento é uma
sociedade permanente entre o homem e a mulher para a
procriação de filhos; esta ignorância não se presume depois
da puberdade".
Muitos católicos, inclusive canonistas, estão começando a
questionar a validade destas definições, e os motivos que as
fundamentam. Se o casamento é, essencialmente, um
aspecto da vocação cristã para o amor, então o
consentimento mútuo deve referir-se a esta forma única de
viver em comum no amor, e não apenas ao "direito
perpétuo e exclusivo sobre o corpo". Realidade óbvia, as
pessoas sempre consentiram em algo mais do que neste
direito; consentiram no casamento como ele estava sendo
vivido em sua sociedade. Na antiga sociedade ocidental,
"casamento" era termo mais ou menos unívoco. Podia-se
vivê-lo pessoal ou impessoalmente, amorosamente ou sem
amor, mas era uma realidade social claramente definida. Era
nesta realidade que as pessoas realmente consentiam, e havia
pouca confusão sobre o objeto do consentimento desde que
a indissolubilidade era tida como certa.

Mas, hoje em dia, o casamento como realidade social não é,
de forma alguma, necessariamente, uma "sociedade
permanente entre o homem e a mulher para a procriação de
filhos". Pode-se, pois, perguntar se a maioria dos cristãos,
que se casam, consentem no casamento indissolúvel ou no
casamento como ele é, quer dizer, o casamento com a
possibilidade do divórcio, se as coisas forem mal. Pode-se
presumir que consentiram no matrimônio cristão como
definido acima, pelo simples fato de, antes, terem sido
batizados? Para poder presumir que estejam realmente
casados, mesmo no sentido da atual definição canónica do
casamento, cumpre sempre perguntar: "No que realmente
consentiram os esposos?"

Mas, se o casamento é, essencialmente, vocação para o
amor, então toda a perspectiva de "contrato" há de ser
mudada. Um homem e uma mulher devem pretender viver
com c pelo outro, nesta forma única de comunidade, se
quiserem ser verdadeiramente esposo e esposa. Qual é,
então, a espécie de consentimento necessário para constituir
um casamento? A lei canônica já enumera vários fatores, tais
como a violência e o medo, capazes de invalidar o consen-
timento matrimonial. Mas, como o conhecimento de outros
fatores psicológicos, que podem condicionar o livre
consentimento, tomou impulso nos últimos anos, há muitos
elementos que também precisam ser levados em conta.
Quantos casamentos entre adolescentes, por exemplo, foram
celebrados porque a menina ficou grávida, e seus pais não
suportaram a sua
"desgraça", ou por pressões mais sutis, como a necessidade
desesperada de se "arranjar", ou a pressão ainda mais sutil
exercida pela mentalidade do "assim fazem todos"? Em
semelhantes circunstâncias, pode-se afirmar que os dois
consentiram em casar livremente?
Além disso, qual é o grau de maturidade emocional
necessário para que uma pessoa seja capaz de assumir um
verdadeiro compromisso de viver com e para a outra, na
união do casamento? Seria, sem dúvida, extremamente
difícil elaborar métodos práticos para determinar a existência
de semelhante maturidade antes de admitir ao enlace
matrimonial cristão. Certamente, uma melhor preparação
pré-nupcial poderia promover a urgência desta maturidade
antes do engajamento definitivo. Mas, se for claro que o
casal (ou um dos cônjuges) não assumiu tal compromisso, e
era incapaz de fazê-lo, pode-se dizer que contraíram
matrimônio cristão? Mais ainda, deixando de lado o
consentimento original, se um casal se mostra incapaz de
viver um com o outro e pelo outro com certa dose de boa
vontade, tal matrimônio seria realmente um casamento
cristão? Deve, necessariamente, ser considerado indissolúvel
pela lei da Igreja?
Não se promove o sucesso do casamento cristão, em nossos
dias, insistindo na indissolubilidade de um matrimônio cuja
nulidade não possa ser provada conforme os critérios
canónicos vigentes. O casamento indissolúvel é, sem dúvida,
o ideal proposto por Cristo, ideal a ser fomentado pela
educação, e a ser tido como norma na prática. Mas, quando
for bastante claro que um casal não se comprometeu com a
realidade do matrimônio cristão, e não pode mais viver
junto, num esforço para se amar mutuamente, é difícil
descobrir valores a serem salvaguardados declarando tais
côniuges indissoluvelmente ligados pelo vínculo nupcial.
Eles não estão vivendo o matrimônio cidstão, mas apenas a
sua ficção legal. Não deveriam ficar livres, perante a Igreja,
para assumirem um verdadeiro vínculo com outra pessoa, se
e quando forem capazes de fazê-lo, ou de obterem a
revalidação de semelhante compromisso, se já assumido?
Mesmo se o dito casal tiver filhos, o bem-estar destes não é
promovido se viverem num clima de desamor; possibilitar a
seus pais de se separarem c, talvez, de tornarem a se casar,
poderia também beneficiar os filhos.
Existe, hoje em dia, profundo abismo entre o matrimônio,
como o considera a legislação da Igreja, e a realidade
humana do casamento, como as pessoas a entendem e
experimentam. Muitos se preocupam cm viver o casamento
de forma realmente humana, e muitos, que não se
impressionam com isso, abandonam a Igreja, a qual, dizem
eles, cuida apenas de preservar uma instituição, não de
ajudar as pessoas a viver cristãmente. Mesmo casamentos
consumados sacramentalmente podem ser dissolvidos
conforme a praxe da Igreja Ortodoxa, e os tribunais da Igreja
Latina parecem inclinados a aplicar, cada vez mais
largamente, os pricípios que levam a declarar nulos os
casamentos entre católicos e não-católicos. Desta forma, o
casamento indissolúvel não é absoluto na prática da Igreja.
Mas, ao mesmo tempo, a complexidade do processo jurídico
adotado pelos tribunais eclesiásticos em matéria de
matrimônio, criou obstáculos intoleráveis ao bem-estar
daqueles aos quais estes tribunais deveriam servir, como
também absorve um volume inacreditável de tempo e
energia sacerdotais, não só dos que trabalham nos tribunais,
mas também dos pastores, que devem coletar provas.
Para proteger e incrementar, pois, valores humanos e
cristãos do casamento, é necessário mais e melhor
preparação para ele, e se exigem mais e melhores serviços de
consultoria, providenciados quer pela Igreja, quer pela
comunidade civil, a fim de ajudar as pessoas a salvar e
melhorar seus casamentos. Mas o que também é necessário,
para casais que não podem viver juntos no casamento, e não
têm esperança de fazê-lo, é um processo largamente simpli-
ficado para declarar tal casamento inexistente no parccer da
Igreja. Como Huizing sugere, a melhor solução poderia ser o
treinamento de sacerdotes e leigos para trabalharem ao lado
de pessoas especializadas em assuntos matrimoniais,
atribuindo-lhes o poder de decidir, com o parecer destes
conselheiros, que um dado casal não está realmente vivendo
em matrimônio, e que seu casamento, como entidade
eclesial externa, está dissolvido.
Naturalmente, o pensamento da Igreja Católica e da
comunidade cristã ainda não se amadureceu neste sentido.
Não presumimos antever o desenvolvimento que o futuro
nos reserva, neste campo, do ponto de vista das ciências
sociais, da teologia ou da lei canónica. Mas podemos dizer,
com alguma certeza, que tal evolução, para ser autêntica,
deverá esclarecer e promover os valores pessoais do
casamento e da vida familiar, a fim de tornar menos difícil a
compreensão e a possibilidade de viver o matrimônio como
vocação para o amor. Enquanto isso, a nossa tarefa de
casados é tentar viver esta vocação, e educar nossos filhos,
procurando fazê-los compreender sua verdadeira natureza,
como forma de servir a Deus e aos homens.

10. "Educação Sexual" ou Educação Para o
Amor?

Reformadores sociais desanimados afirmaram, certa vez, que
a única maneira de melhorar a humanidade seria matar todos
os pais e professores e trazer uma legião de arcanjos para
educar as crianças. Aqueles dentre nós que são pais ou
educadores (e provavelmente também os jovens, dos quais
estamos encarregados), podem, de certo modo, concordar
com esta opinião. Tudo que temos feito parece, tantas vezes,
se não positivamente errado, pelo menos pateticamente
inadequado. Quase todos concordariam que isto é
sobremaneira verdadeiro no campo da educação sexual; que
os pais e professores, e a sociedade em geral, desapontaram,
e ainda estão desapontando os jovens, neste ponto; que urge
procurar meios e programas melhores.
Mas, como esperamos ter demonstrado neste livro, o
problema central consiste exatamente em nossa tendência a
considerar o "sexo" como algo isolado, separado do resto da
vida humana; por conseguinte, encaramos a "educação
sexual" como algo que se acrescenta à educação de uma
criança ou de um adolescente. A sexualidade não é um
aspecto separável da vida humana; afeta todo o nosso viver e
amar. A educação sexual, pois, não oode ser dada como algo
separado da educação global da criança para viver e amar.
O período crucial da primeira infância fundamenta as
atitudes básicas da pessoa para consigo mesma, para com os
outros, para com a sexualidade própria e alheia. A criança
copia estas atitudes observando o comportamento que os
pais manifestam, um pelo outro, em relação a ela e aos
outros membros da família. Estas atitudes são aprofundadas e
modificadas nos anos que os psiquiatras chamam de período
da sexualidade "latente", anos em que a criança começa a
formar normas mais conscientes de comportamento,
resultantes da interação com as normas de pessoas que não
sejam seus pais. Depois, no segundo período crítico, na
adolescência, o despertar para a sexualidade acha-se
intimamente ligado com o despertar do jovem para uma
procura mais explícita de sua personalidade e da necessidade
de se unir com outros jovens. Mas este despertar é
profundamente condicionado por suas atitudes já existentes,
recebidas sobretudo de seus pais, assim como pelas atitudes
que ele, inconsciente ou conscientemente, percebe em seus
coetâneos e nos adultos.
Em outras palavras, os pais realmente iniciam a educação
sexual de seus filhos no dia em que estes nascem (ou talvez
mesmo antes), através de suas atitudes para consigo mesmos,
para com seus corpos, de um para com o outro, para com o
filho e a vida em geral. Eles ministram essa educação pela
maneira como sentem c agem na vida diária, durante os anos
de crescimento do filho, através de todos os contatos com
ele, não apenas quando respondem às suas perguntas sobre a
origem dos bebês. O que quer que possam, ou não, dizer
explicitamente sobre o sexo, estão, sem cessar, co-
municando suas próprias atitudes e idéias sobre o que
significa ser uma pessoa ciente de seu corpo, uma pessoa
sexuada, sobre o que significa amar e ser amado.
Há, portanto, pouca utilidade em tentar capacitar os pais a
darem explicação mais claras e adequadas dos "fatos da vida",
a menos que também lhes sejam dadas oportunidades para
examinarem e, se necessário, melhorarem suas próprias
atitudes e idéias em relação ao amor, à sexualidade e a seus
próprios corpos.
Para começar por esse último aspecto, uma criança não se
beneficiará por seus pais lhe contarem algo sobre a
"bondade" das partes sexuais e sobre os fenômenos do corpo
humano masculino e feminino, se eles mesmos se
comportarem na vida diária como se seus corpos fossem
coisa de que é preciso envergonhar-se, ou se lhe inculcarem
medo e sentimento de culpa a respeito de qualquer órgão ou
função do corpo (por exemplo, afastar suas mãos, com
expressão de horror, quando a criança explora o pênis —
uma ação tão natural e inocente, como a de contar os dedos
dos pés). Mães e pais devem ser convidados a examinar suas
atitudes em relação a seus corpos e todos os aspectos físicos
da vida, inclusive a conjunção carnal, para ver se há
necessidade de torná-los mais sadios e realistas; pois os pais
comunicam suas atitudes aos filhos muito antes de tentar
falar-lhes com franqueza sobre os órgãos e as funções
sexuais.
Muitos psicólogos ressaltam sobremaneira a importância do
modo de ensinar o uso da toilette, não apenas porque é uma
das primeiras recomendações dos pais às crianças sobre
como tratarem o próprio corpo, mas também porque isso
pode afetar muito a atitude de uma criança em relação a seu
corpo. Inculcar sentido de repugnância ou de culpa
relativamente a qualquer das partes do corpo ou de seus
processos é, naturalmente, um fundamento desfavorável
para uma ulterior educação do corpo como instrumento de
amor.
Neste sentido, afirmou-se muitas vezes que os pais deveriam
ensinar aos filhos os nomes científicos exatos dos órgãos
genitais, mostrando-se dispostos a dar-lhes uma versão
simplificada dos processos de concepção, gestação e
nascimento, quando fizerem perguntas a respeito. Mas os
pais deveriam estar igualmente bem preparados para
ministrar a seus filhos informações adequadas sobre todas as
partes do corpo e seus processos, para ajudá-los a adquirir
um vasto conhecimento de toda a sua estrutura orgânica.
Cumpre proporcionar, também, às crianças, alguma noção
das interações entre a psique e o corpo — por exemplo, que
a gente pode sentir-se mal quando está com medo, ou
quando não se quer ir à escola. A criança, na medida de sua
capacidade, deve ser instruída sobre o próprio corpo como
entidade pessoal, como parte do "eu", dando-lhe condições
para tratá-lo como tal.
Como foi dito muitas vezes, os pais não deveriam tentar dar
à criança informações sobre "a origem dos bebês" mais do
que peçam, o que é, em geral, muito menos do que um
adulto poderia supor. O período que precede a adolescência,
isto é, da "sexualidade latente" parece a melhor época para
ministrar às crianças informações mais precisas e científicas.
Isto poderá ser feito na escola, na aula de ciência, se os pais
tiverem, antes, providenciado o necessário contexto de
atitudes sadias. Ora, talvez, em alguns casos, tais aulas pode-
riam oferecer uma oportunidade para a educação dos pais,
iniciando com o porquê de a escola estar ministrando
semelhantes aulas às crianças, em nível escolar. As crianças,
nesta idade, interessam-se normalmente por qualquer fato,
e, se forem educadas sadiamente, vão encarar esta matéria
como todas as outras. Mas, aqui entra em jogo a atitude dos
professores. Se eles não estiverem em condições de tratar
com naturalidade esta matéria, sob o ponto de vista
científico, e se ficarem perplexos sem saber o que transmitir
às crianças, cumpre-lhes examinar-se e descobrir a razão da
sua incerteza, antes de aceitar o ensino naquela classe.
Convidar os pais (e também os professores) a examinarem
suas atitudes sobre o corpo humano é, pois, um aspecto
muito importante para melhorar a educação sexual. Mas isto
não pode ser feito sem convidá-los a examinarem suas
atitudes em torno da própria masculinidade ou feminilidade,
da sexualidade como elemento essencial no amor, em torno
do relacionamento conjugal e do amor. Não adianta um nai
dizer a seu filho que "o sexo é expressão de amor", se a
criança não experimentou o amor em sua vida familiar, ou
experimentou-o como sufocante ou dominador, e não sentiu
a sexualidade como elemento integrante e alegre do amor.
Os pais, portanto, precisam ser auxiliados a entender os
requisitos de todo amor, as qualidades especiais do amor
conjugal, e também as características próprias do amor
paterno; devem possuir algumas noções básicas das
principais fases do desenvolvimento emocional da criança,
para poderem amá-la mais inteligentemente.
Aqueles dentre nós que aceitaram o cargo da paternidade
nos anos de 1940 viveram momentos de grande confusão
com as teorias em conflito sobre o modo de criar os filhos:
alimentar o bebê de acordo com um horário ou quando ele
queria? Ser rígido ou tolerante? Receávamos frustrar o
desenvolvimento emocional do filho, se lhe impuséssemos
rigorosa disciplina; receávamos o perigo de prejudicá-lo, se
nos mostrássemos excessivamente indulgentes. O que
nenhum livro sobre cuidados infantis esclarecia
suficientemente — e isso teria, se não facilitado, pelo menos
simplificado as coisas — era a extrema importância de amar
a criança e evidenciar este amor. Todos os especialistas em
psicologia infantil certamente concordavam em afirmar que
toda criança, desde o primeiro instante de vida extra-uterina,
e durante todo o crescimento, necessita sobretudo de amor
ardente e protetor, capaz de infundir-lhe o sentido de seu
valor e a coragem para sair de si mesma, e começar a amar,
em busca de sua realização.
Mas, amar um filho não significa sufocá-lo com atenções ou
superprotegê-lo, ou ser sentimental a seu respeito. O amor
paterno deve ser amor real, com todos os requisitos que
procuramos descrever anteriormente, neste livro — amor
que respeite a dignidade de criança como pessoa livre e
autônoma; amor que, gradualmente, a inicie no autocontrole
e na liberdade. Todos os pais compreendem que devem
amar seus filhos, mas muitos têm idéias muito confusas
sobre o que este amor deveria ser, e como exprimí-lo da
melhor forma.
Por exemplo, durante os primeiros anos, a criança
interioriza as exigências conscientes e inconscientes de seus
pais, formando o que os freudianos chamam de "superego"
— um amálgama de inibições e canalizações de seus anseios
para satisfazer suas necessidades crescentes. Os psicólogos
são unânimes em ressaltar a importância vital de impor
disciplina à criança, numa atmosfera de amor, durante esta
fase, ajudando-a a conseguir no futuro autocontrole, impon-
do-lhe controles externos. O filho tem muito medo de
perder o amor dos pais. Ele precisa assegurar-se de que uma
desobediência ou falha em aceder às exigências paternas não
o farão perder aquele amor. Isto não significa que nunca se
devam punir as crianças ou que ficariam elas
emocionalmente prejudicadas, por toda a vida, se os pais as
repreendessem. Significa que apesar dos gritos, das
palmadas, ou mesmo de alguma eventual injustiça real por
parte dos pais, a criança é capaz de sentir que lhe querem
bem, com afeição ardente, que jamais se extingue.
Ajudar os pais cristãos a terem idéias mais claras sobre as
prerrogativas do amor paternal é importante, também,
levando-se em consideração que a criança adquire a primeira
idéia de Deus, observando o comportamento e o amor dos
pais. Adquire a idéia do tipo de resposta que Deus espera
para seu amor, por analogia com a resposta que os pais
esperam. Se estes ameaçam retirar sua afeição quando a
criança se comporta mal, será difícil convencê-la, mais
tarde, de que Deus não faz o mesmo. Se lhe impõem
obediência por medo, será difícil para a criança, mais tarde,
tentar responder ao apelo de Deus com amor. Desde que
todo o campo do desenvolvimento da consciência está
intimamente ligado com a experiência da criança em torno
do amor dos pais, devem estes aprender as qualidades
libertadoras do verdadeiro amor: se amarem realmente seus
filhos, deverão educá-los, gradualmente, rumo à liberdade
responsável, não em direção à obediência "cega".
Se quisermos proporcionar aos jovens de hoje e de amanhã
uma educação sexual melhor do que a oue receberam até
hoje, devem os pais adquirir melhor noção do amor humano
e divino — e do papel da sexualidade e do corpo no amor.
Felizmente, a grande maioria dos pais dispõem-se a fazer por
seus filhos o que jamais fariam por si mesmos. Se se
convencerem da necessidade de reexaminar suas idéias e
atitudes nesta matéria, farão pelo menos um esforço real
para se adaptarem, aceitando a colaboração de especialistas.
Mas não basta a orientação dos pais. Os adolescentes,
embora muito bem educados por pais amorosos, precisam de
auxílio para começar a integrar todos os elementos no amor
humano, em cujo conhecimento vão se iniciando, e esta
ajuda deve vir preferivelmente, de adultos que não sejam
seus próprios pais. (Não que os pais não devam tomar parte
neste trabalho; cumpre-lhes permanecer disponíveis, porém
sem exclusivismo; precisam estar prontos a aconselhar e
ajudar, ou simplesmente a estarem juntos com seus filhos,
encorajando-os, animando-os. Mas, só se intrometerão com
conselho, ou obrigá-los-ão a seguir determinada linha,
quando isso for compatível com os ditames de uma
equilibrada prudência).
Esta ajuda pode melhor ser proporcionada nas escolas ou
associações, em discussões de grupo, ou coisa semelhante.
Os jovens poderiam ser auxiliados a distinguir entre
relacionamento verdadeiro e falso, a entender a dinâmica
das relações autênticas, a aprender mais conscientemente as
qualidades do verdadeiro amor, e a ver como a regra do
amor se aplica em situações concretas. Neste contexto,
pode-se mostrar-lhes o papel positivo da sexualidade, suas
diferentes manifestações no homem e na mulher, a maneira
de colocá-la a serviço do amor e o uso adequado do corpo
no afeto e na relação sexual.
Outro aspecto essencial poderia ser constituído por debates
realistas sobre o modo de estabelecer relações com pessoas
que não compartilham a mesma filosofia do amor: como dar
testemunho da própria fé sem ser pedante. O uso de bons
filmes e romances, naturalmente, seria uma ajuda para
promover e fazer refletir, descortinando a complexidade
infinita das relações humanas, as potencialidades destrutivas
e criadoras do amor e da sexualidade, o esforço que o amor
exige, as alegrias e a satisfação que oferece.
Professores e conselheiros, a quem incumbe orientar tais
debates, necessitam de informações mais do que exatas
sobre os órgãos, as relações sexuais e os vários aspectos do
matrimônio. Eles, também, precisam examinar suas próprias
atitudes em relação à vida e ao amor, à sexualidade e ao
próprio corpo, pois são estas atitudes aquilo que, em última
análise, irão comunicar. O mesmo vale, obviamente, para os
encarregados de cursos pré-nupciais ou da formação
matrimonial.
É claro, portanto, que a abordagem da educação sexual c da
consultoria matrimonial há de compreender um programa
de educação para o amor. Tal educação é, propriamente, um
aspecto da educação religiosa; à luz de Deus, que nos chama
e nos capacita a amarmos a ele e uns aos outros, é que a
tarefa do amor humano pode ser vista em todas as suas
dimensões, e em toda a sua urgência. Contudo, enquanto
um humanista não crente, como Erich Fromm, é capaz de
ajudar as pessoas a aprender a amar, um crente que possua
idéia de Deus e de suas relações com a humanidade alheia ao
amor, seria incapaz de fazê-lo. A educação religiosa, em
todos os níveis, deve tentar mostrar o conceito da vida cristã
delineado nos documentos do Concílio Vaticano II. Só
assim a educação cristã para o amor humano terá
fundamento e se enquadrará em um justo contexto.
Mas isto não significa que a educação para o amor deva ser
deixada só a cargo de educadores religiosos. A cooperação de
especialistas em todas as ciências e artes que lidam com a
psique e o corpo humano, com a família e com a pessoa,
como membro da sociedade, será necessária para programar
a melhor maneira de ministrar essa educação em suas
multiformes expressões, tornando-a sempre mais acessível.
É tarefa que exige tato, delicadeza, respeilo pela liberdade,
conhecimento das pessoas e jeito para lidar com elas. Nossa
paixão por respostas simples a problemas complexos, e pela
apresentação complexa de verdades que, em última análise,
devem ser captadas pela intuição, nosso gosto em produzir
textos e programas ao nível somente de pessoas treinadas,
inteligentes e sensíveis, são perigos contra os quais cumpre
tomar todas as precauções possíveis, a fim de que, tentando
ajudar' a amar, não manchemos o esplendor do amor, nem
prejudiquemos sua vitalidade. Por outro lado, continuar
organizando cursos de atualização, ou coisas semelhantes,
em vista da educação sexual, separando-a de seu contexto
natural do amor, é encorajar a desumana separação entre o
sexo e a vida humana, entre o sexo e o amor.
É lícito, pois, esperarmos que a cooperação frutuosa entre
educadores religiosos e seculares, e os vários institutos e
centros de consultoria pré-matrimonial, auxiliados por
especialistas nos vários ramos das artes e ciências, consiga
elaborar programas adequados às necessidades dos vários
grupos, e às diferentes faixas de idade. Fazemos votos que
estes programas sejam apenas um aspecto de todo o
dinamismo do pensamento e da vida da Igreja, orientada em
direção ao amor, à luz e no poder do Espírito.
Podemos, ainda, esperar que a onda atual de interesse por
uma educação sexual mais adequada, possa levar a um
reexame de toda a educação e trazer à tona a necessidade de
ordená-la mais efetivamente numa linha personalista e
realmente humana. Hebreus, humanistas e cristãos, todos
concordam, por mais diferentes sejam suas formas de
expressão, que a tarefa da humanidade é construir a Cidade
do Homem como sociedade de pessoas, que livremente
contribuem para o bem-estar e o desenvolvimento mútuo:
No que diz respeito à fé em Deus e em nossa tarefa,
qualquer que seja nossa opinião quanto à sua fonte — para
alguns, resposta a um chamado de Deus; para outros, criação
puramente humana — ela nos impõe o dever de cuidar que
cada homem se torne um homem, um coração ardente de
iniciativa, um poeta no sentido mais profundo do termo;
alguém que experimentou, dia após dia, a superação criadora
de si mesmo — que os cristãos denominam transcendência,
e nós, autêntica humanidade.
Este ideal é bastante sublime, e de realização assaz difícil,
para exigir esforços conjugados de todos nós, mesmo que
tenhamos de ver queimar no fogo do diálogo, que nos
permite encontrar-nos bem no fundo de nós mesmos, no
limiar da base — quanto em nós impede de nos tornarmos o
que somos. Este é o sentido luminoso que Nazim Hikmet -
deu à chama de purificação do sacrifício: Se eu não queimo,
/ Se você não queima, / Se nós não queimamos, / Como é
que as sombras / Se tornarão luz?

Talvez a necessidade clara e urgente de encontrar melhores
soluções para os problemas levantados pela sexualidade na
civilização ocidental contemporânea, possa forçar um
reexame do papel do amor humano na construção desta
sociedade, e uma reorganização da educação e de outras
instituições, para incrementar, de modo mais adequado, o
desenvolvimento de pessoas humanas capazes de amor e de
ação amorosa.
Este livro tentou demonstrar que é tanto possível quanto
essencial, para os cristãos, colaborar nesta tarefa de atribuir à
sexualidade seu próprio papel no amor e, ao amor, sua
função própria na vida humana, embora isso exija mudança
em nosso modo de pensar e em nossas instituições. Se, de
alguma forma, nosso trabalho inspirar os leitores a
considerarem e debaterem os meios para amar-nos mutua-
mente, da melhor maneira possível, "em ação e em
verdade", terá alcançado seu objetivo.

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