O mito do Paraíso Perdido exerce, através dos tempos, um fascínio constante sobre a imaginação humana. Talvez por traduzirem um desejo primordial de segurança e
felicidade, as narrativas que desenvolvem essa temática estão sempre fadadas ao sucesso, mesmo quando se detêm a desmistificar o aspecto ilusório do refúgio aspirado.
Assim ocorreu com a trajetória deste romance, que, desde sua primeira edição em 1912, na Inglaterra, encontrou acolhida entusiástica junto ao grande público,
o que se repetiu em outros países e também no Brasil, na década de 40, quando apareceu sob o selo da coleção Nobel, desta Editora. A primorosa tradução de Mario
Quintana sem dúvida contribuiu decisivamente para o êxito da obra em terras brasileiras, uma vez que acentuava a situação eminentemente lírica proposta pelo autor:
um idílio inocente entre um casal de crianças numa ilha isolada dos Mares do Sul, transfigurando-a pela limpidez da linguagem, impregnada de ternura e força poética,
que realçava o ideal de pureza que a história perseguia.
a luz do lampião/1
Estava Mestre Button a tocar rabeca, sentado sobre um baú de marinheiro, com o instrumento firmado sob a orelha esquerda. Ele executava o Shah Van Vaught, marcando
o compasso a golpes de tacão contra o assoalho do castelo de proa.
Os franceses estão no porto Diz o Shan Van Vaught.
Vestia uma calça de aniagem, uma camisa listada e um casaco de baeta, esverdeado nalguns pontos sob a ação do sol e da água salgada. Verdadeiro tipo do velho
lobo-do-mar, seus dedos aduncos e seu dorso arqueado o aparentavam aos caranguejos. Sua face avermelhada lembrava a da lua, vista através de um nevoeiro dos trópicos;
enquanto tocava, seu rosto tomava uma expressão atenta, como se a rabeca estivesse a contar-lhe coisas muito mais maravilhosas do que aquela estopada dos franceses
no porão de Bantry.
Chamavam-no de "Pat o Canhoto", não porque fosse mais hábil da mão esquerda do que da direita, mas-tão-somente por causa de sua notável inépcia. Qualquer descuido
ou engano em que se pudesse cair, ele logo o cometia. De origem irlandesa, fazia uns quarenta anos já que todos os mares tinham passado entre ele e a sua terra de
Connaught, sem conseguir lavar-lhe o elemento céltico, nem a crença nos gênios e nas fadas. E era tão forte essa herança teimosa, que resistira às tundas ministradas
por Larny Marr durante uma estada em Frisco, às orgias nas tavernas de todos os países, às brutalidades dos imediatos americanos e ás descomposturas dos capitães
ianques. Em companhia de suas fadas, Pat carregava sob todas as latitudes uma forte dose de ingenuidade.
Uma rede, de onde pendia uma perna, balançava sobre a cabeça do músico, outras redes, agitando-se na penumbra, davam a impressão de fantasmas e de grandes morcegos.
O clarão do lampião de sebo suspenso também oscilava, fazendo ressaltar, aqui o pé nu de um adormecido, ali um cachimbo plantado no meio de umas barbas, acolá um
braço tatuado.
Era na época remota em que as duplas vergas das gáveas ainda não tinham reduzido as equipagens, e assim a do "Northumberland" estava completa. Seu pessoal compunha-se
de um amontoado de ratos de bordo tal como a gente só pode encontrar num navio do cabo Horn. Holandeses, americanos, campônios que três meses antes ainda criavam
porcos no Ohio, velhos marinheiros como Paddy Button. Num castelo de proa, mais do que em qualquer outra parte, se acotovelam o que há de melhor e de pior no mundo.
O "Northumberland" dobrava penosamente o cabo Horn. Partindo de Nova Orleães para S. Francisco, tinha lutado um mês inteiro contra os ventos contrários, nesses
mares imensos onde as vagas são tão amplas, que três delas bastam para cobrir uma milha; jogara durante trinta dias inteiros ao largo do cabo Duro (como lhe chamam
os marinheiros), e o princípio desta história no-lo mostra prisioneiro de uma calmaria ao sul da Linha.
Paddy Button acabou sua música e saudou com o arco, depois enxugou a testa com a manga e, tirando um cachimbo do bolso, encheu-o e pôs-se a fumar.
Uma voz arrastada desceu da rede de onde pendia uma perna:
Patrick! Que diabo de história é essa de lebrechão que tu nos contavas há pouco?
Lebre o quê? perguntou Mestre Button, levantando um olho para a protuberância da rede, enquanto aproximava de novo o isqueiro de seu cachimbo.
Era uma coisa verde respondeu uma voz estremunhada, com sotaque holandês.
Oh! Um Leprechaun, queres dizer, sem dúvida? A irmã de minha mãe tinha um, antigamente.
Mas com que se parecia? perguntou a voz sonhadora do holandês, uma voz cheia da calmaria que há três dias transformava o mar em espelho e fazia do ofício
de marinheiro uma sinecura.
Com que se parecia? Certamente que se parecia com um Leprechaun! Com que outra coisa poderia parecer?
Mas como era? continuou a voz indolente.
Era um homem assinzinho, do tamanho de uma beterraba e verde como uma couve. Minha tia tinha um, na sua casa de Connaught, isto nos bons tempos, nos velhos
bons tempos. Ah! Onde é que estão agora os velhos bons tempos?! Que me acredites ou não, mas eu digo que tu poderias pô-lo no bolso, sem que a sua cabeça verde ficasse
de fora. Minha tia guardava-o num armário, mas ele saía pelas frestas, pulava nas panelas de leite ou se metia embaixo das camas; depois, puxando as cadeiras, inventava
nova distração. Perseguia o porco até que, de susto, o pobre animal virasse pura costela como um guarda-chuva velho ou um lebréu que tivesse corrido toda a manhã;
ele punha feitiço nos ovos, tanto assim que os galos e as galinhas não sabiam por que os pintos nasciam com duas cabeças e uma porção de patas. Se procuravam pegá-lo,
ele corria diante da gente como se fosse içar a vela grande. E a gente ainda acabava nalgum buraco, enquanto ele já estava de novo dentro do armário.
Era um Troll murmurou o holandês.
Eu te digo que era um Leprechaun, e é impossível saber todas as diabruras que ele fazia. Tirava a couve da marmita e a esfregava no nariz de quem caía na asneira
de ameaçá-lo com o punho, outras vezes ele punha um luís na marmita.
Que bom que ele estivesse aqui resmungou alguém, de um canto.
Patrick articulou pausadamente o holandês que farias se descobrisses um luís no teu bolso?
Pra que perguntar? De que serve um luís no mar? Dá-me um na terra e tu verás o que faço dele.
Aposto que o primeiro bodegueiro não te verá entrar para lhe entregares os teus cobres! disse uma voz nativa do Ohio.
E não me verá mesmo replicou Mestre Button nem tu tampouco. Ao diabo o vinho e quem o vende!
Isto é fácil de dizer retrucou o do Ohio tu amaldiçoas a aguardente quando te é impossível consegui-la, mas logo que desembarques te encherás como um barril.
Eu me sinto bem é bêbedo mesmo. Sou o diabo quando sinto a bebida na barriga, e é assim que acabarei, ou então a minha velha mãe era uma mentirosa. "Pat",
me dizia ela, da primeira vez que voltei à minha terra, "das tempestades tu escaparás, das mulheres tu escaparás, mas o álcool há de acabar contigo". Faz isto já
uns quarenta anos, quarenta anos!
Mas o fato observou o do Ohio é que ele ainda não acabou contigo.
Não, mas acabará.
sob as estrelas/2
Sobre o convés, fazia uma noite esplêndida, cheia da beleza sideral e da calma dos trópicos.
O Pacífico dormia, uma gigantesca vaga, vinda de muito longe, do Sul, erguia suavemente o "Northumberland" sobre as suas ondulações, fazia ranger os rizes e
estalar o leme; ao alto, perto do arco de prata da Via-Láctea, o Cruzeiro do Sul pendia como uma pandorga quebrada. Estrelas no céu, estrelas no mar, milhões e milhões
de estrelas; tantas lâmpadas acesas, que o firmamento dava a impressão de uma imensa e populosa cidade, sem que no entanto o mínimo som proviesse daquele palpitante
e vivo esplendor.
Embaixo, na cabina, chamada salão por polidez, estavam sentados os três passageiros do navio; um deles lia, os outros dois brincavam. O homem sentado à mesa,
Artur Lestrange, fixava sobre um livro seus grandes olhos fundos; sofria evidentemente do peito e aproximava-se do instante em que colheria o resultado do último
e do mais desesperado dos remédios: uma longa viagem por mar.
Emelina Lestrange, sua sobrinha, de oito anos, era uma misteriosa criaturinha, muito pequena para a sua idade, sempre metida com os seus pensamentos e dona de
imensas pupilas que pareciam portas abertas sobre visões; parecia lançar apenas um olhar de passagem pelo mundo, para logo retirar-se. Sentada a um canto, ela ninava
qualquer coisa em seus braços, embalando-se ao ritmo de seus pensamentos. O filho de Lestrange, oito anos feitos, ocultava-se debaixo da mesa.
Eram de Boston e iam a caminho de S. Francisco, ou antes a caminho do sol e do esplendor de Los Angeles, onde Lestrange tinha comprado uma pequena propriedade,
esperando gozar lá da sobra de vida que lhe proporcionaria sem dúvida aquela interminável travessia. Estando ele a ler, abriu-se a porta da cabina e apareceu a silhueta
angulosa de Madame Stannard, a governanta, anunciando que eram horas de deitar.
Dicky disse Lestrange, fechando o livro e erguendo de algumas polegadas a toalha da mesa, já está na hora de ir para a cama.
Oh! Ainda não, papai! choramingou sob o móvel uma vozinha pesada de sono. Eu ainda não estou pronto. Eu não quero ir deitar.
Conhecendo o seu ofício, Madame Stannard mergulhou sob a mesa e puxou o menino por uma perna. Ele debatia-se e dava pontapés, sem deixar de chorar como um bezerro.
Quanto a Emelina, tendo levantado os olhos e rendendo-se ao inevitável, ergueu-se, segurando pelas pernas a horrível boneca de trapos que acalentava, e esperou
que Dick, depois de uns últimos gritos, secasse as lágrimas e beijasse o seu pai. Então, solenemente, ela apresentou a fronte ao seu tio, recebeu um beijo e, levada
pela mão, desapareceu numa cabina contígua.
Lestrange retomou o livro, mas não leu por muito tempo; Emelina voltava em camisa de dormir, apertando nos braços um pacote do tamanho de um livro, embrulhado
em papel pardo.
Minha caixa, eu achei a minha caixa disse ela, erguendo-a no ar, como para assegurar a si própria que o pacote não estava perdido.
E o seu rosto um pouco insignificante tornou-se um rosto de anjo, porque ela sorrira. Quando Emelina Lestrange sorria, era literalmente como se a luz do paraíso
a iluminasse; a mais linda forma de beleza infantil irradiava, esplendente, e em seguida se apagava.
Ela se foi embora com a sua caixa e Lestrange retomou o livro. É preciso dizer, entre parênteses, que aquela caixa, a bordo, dava mais trabalho, ela só, que
todas as outras bagagens dos passageiros. Era um presente que lhe dera uma dama de Boston antes da sua partida. O conteúdo era um mistério, salvo para a menina e
para o seu tio. Emelina era mulher, ou antes, um começo de mulher; tinha, entretanto, guardado o segredo, fato que vale a pena registrar. Infelizmente, a toda hora
ela extraviava a caixa. Desconfiando de si mesma e do constante perigo que ameaçava aquele tesouro, ela o levava por toda parte consigo, mas, uma vez sentada num
rolo de cordas e perdida nalgum sonho, se o ruído da manobra a despertava, a pequena corria, esquecendo o seu tesouro, para olhar os marinheiros trabalharem. Depois,
de súbito, notava que a caixa não estava mais lá. Então, de olhos muito abertos, a fisionomia angustiada, ela percorria o navio, indo e vindo, procurando pela cozinha,
lançando um olhar pela escotilha, mas sem dizer palavra, semelhante a um fantasma mudo e desesperado. Parecia ter vergonha de contar a quem quer que fosse a sua
desgraça, mas, ao verem-na, todos adivinhavam o que tinha acontecido e a equipagem punha-se em campo, em busca do tesouro.
Normalmente, era Paddy Button quem o encontrava. Ele que, com as pessoas grandes, fazia sempre o que não devia, agia geralmente de modo a atrair a aprovação
das crianças. Quando estas podiam pegar o velho marinheiro, não o largavam mais, achando-o tão interessante como Polichinelo ou como um músico ambulante.
Pouco depois, Lestrange fechou o livro que lia, olhou em derredor, e suspirou. A cabina do "Northumberland" era bastante bonita: atravessada pela base polida
do mastro de mezena, forrada com um tapete de Axminster e ornamentada de espelhos de moldura branca.
Lestrange olhava a própria imagem, que um dos espelhos reproduzia. Sua magreza era assustadora, e aquele instante lhe revelou, talvez, não somente que ele morreria
um dia, mas que esse dia estava muito próximo. Desviando o olhar do espelho, continuou sentado, com o queixo apoiado à mão, as pupilas fixas numa nódoa de tinta
que havia sobre a toalha; depois, levantando-se, atravessou a cabina e subiu penosamente a escada.
Enquanto se apoiava ao balaústre para tornar fôlego, a revelação da beleza da noite lhe deu como um choque no coração. Sentou-se a uma cadeira no convés e pôs-se
a contemplar a Via-Láctea, arco de triunfo construído com sóis e que a aurora apagaria como um sonho.
Na Via-Láctea, perto do Cruzeiro do Sul, cava-se um abismo perfeitamente designado com o nome de Saco de Carvão. Esta apelação dá bem a idéia de uma caverna
vazia e sem fundo, cujo aspecto provoca vertigens à imaginação. A olho nu, aquele abismo parece tão negro e fúnebre como a morte, mas o menor telescópio o revela
esplêndido e constelado de mundos.
O olhar de Lestrange ia daquele mistério para a Cruz ardente e se perdia no enxame de estrelas dispersas até a linha de mar onde elas empalideciam e se apagavam
na claridade da lua que subia. Viu que alguém passeava sobre a popa. Era o "Velho". Um capitão de longo curso, qualquer que seja a sua idade, é sempre o "Velho".
O Capitão Le Farge devia ter quarenta e cinco anos. Era um marinheiro tipo Jean-Bart, francês de origem, naturalizado americano.
Eu não sei onde se terá metido o vento disse ele, aproximando-se do homem sentado. Acho que furou o firmamento e se escapou para além do céu.
Nós fizemos uma longa viagem disse Lestrange e eu penso, Capitão, que a minha será ainda mais longa. Meu destino não é Frisco, eu bem o sei.
Não pense nessas coisas tornou o outro, tomando uma cadeira. É impossível prever o tempo com um mês de antecedência. Agora que nós estamos em latitudes
quentes, o seu termômetro subirá, e o senhor estará mais bem disposto e forte que qualquer de nós, ao chegarmos às Portas de Ouro.
Eu penso nas crianças continuou Lestrange, que parecia não ter ouvido as palavras do capitão. Se o pior acontecer antes de chegarmos ao porto, eu lhe peço
um grande serviço, disponha de meu corpo sem que as crianças o saibam; há dias que eu queria falar-lhe nisso, Capitão; aquelas crianças ignoram a morte.
Le Farge agitou-se na sua cadeira.
A mãe da pequena Emelina morreu quando a menina tinha dois anos; seu pai, meu irmão, morreu antes do nascimento dela. Dicky não conheceu a mãe, ela deu o último
suspiro quando teve o menino. A mão da Morte pesou sobre a minha família, não se admire que eu tenha ocultado mesmo o seu nome às duas criaturas que mais quero.
Sim disse Le Farge é triste, é muito triste.
Quando eu era pequeno continuou Lestrange não maior que Dicky, minha ama me aterrorizava com histórias sobre os defuntos. Asseguravam-me que eu iria para
o inferno se não me portasse bem, não lhe sei dizer o quanto isto me envenenou a vida, porque as nossas idéias infantis, Capitão, são as mães das que nos vêm mais
tarde. Será que um pai doente pode ter filhos sadios?
Não o creio.
Como eu lhe dizia, quando essas duas crianças se acharam sob a minha proteção, eu me comprometi a tudo fazer no mundo, para lhes poupar os terrores da vida,
ou antes, da morte. Não sei se tenho razão, mas faço pelo melhor. Eles tinham uma gata, um dia Dicky veio dizer-me: "Papai, Pussy está dormindo no jardim e eu não
consigo acordá-la!". Eu então convidei-o para irmos ver um circo que estava na cidade. Ele ficou tão contente com o convite, que esqueceu a gata, mas no dia seguinte
perguntou por ela. Eu não respondi que estava enterrada no jardim, mas disse-lhe que ela havia fugido. Ao fim de uma semana, ele a esquecera completamente, as crianças
esquecem tão depressa!
Sim respondeu o capitão mas um dia ou outro, eles saberão que devem morrer.
Se eu morrer antes de tocar em terra e lançarem o meu corpo ao mar, desejaria que os sonhos das crianças não fossem agitados pela lembrança disto. Diga-lhes
simplesmente que eu fui para um outro navio. O senhor os levará de volta para Boston; tenho lá dentro uma carta com o endereço de uma senhora que se ocupará deles.
Dicky será bem aquinhoado quanto às riquezas deste mundo. Emelina também. Diga-lhes simplesmente que eu parti num outro navio. As crianças esquecem depressa.
Eu farei o que me pede prometeu o capitão.
A lua achava-se já acima do horizonte e o "Northumberland" flutuava sobre um mar de prata. Distinguiam-se todas as minúcias dos mastaréus e todas as cordas das
velas. Enquanto os dois homens permaneciam mudos, mergulhados nos seus pensamentos, uma pequena forma branca emergiu da escotilha do salão. Era Emelina. Ela tornara-se
mestra na arte do sonambulismo. Apenas chegada ao país dos sonhos, lá perdia a pobre a sua preciosa caixa, então saía a procurá-la pelos conveses do "Northumberland".
Lestrange levou o dedo aos lábios, descalçou os sapatos e seguiu-a silenciosamente. Ela remexeu num monte de cordas, tentou abrir a porta da cozinha, errou de um
lado para outro, de olhos abertos, a fisionomia assustada, até o momento em que encontrou a visão do seu tesouro.
Deu volta, erguendo a ponta da camisa para não tropeçar e, ansiosa por se ir deitar, desapareceu na escotilha. Seu tio, atrás dela, mantinha os braços estendidos,
para ampará-la, caso ela caísse.
a sombra e o fogo/3
Era o quarto dia de calmaria. Os passageiros se abrigavam sob uma tenda armada no tombadilho. Lestrange tratava de ler e as crianças procuravam brincar.
O calor era tão pesado que o próprio Dicky se achava reduzido ao estado de massa inerte e avaro de movimentos como uma larva. Quanto a Emelina, parecia ofuscada
pela luz demasiado viva. A boneca de pano aborrecia-se a um metro dela e a miserável caixa parecia esquecida.
Papai! gritou de repente Dicky, que, sacudindo a sua apatia, se inclinava sobre o parapeito do tombadilho.
Que há?
Peixes!
Lestrange aproximou-se. No verde vago das águas, qualquer coisa se movia, qualquer coisa esbranquiçada e longa, uma forma horrível. Desapareceu, veio uma outra
forma que, remontando à superfície, pôde distinguir-se melhor. Lestrange percebeu os olhos, a barbatana escura e o medonho comprimento do animal. Ele estremeceu
e apertou Dicky contra o peito.
Não é bonito, papai? Eu bem que podia trazê-lo para cima, se tivesse um anzol. Por que é que eu não tenho um anzol? Ai, não me aperte assim!
Lestrange sentiu puxarem-no pela aba do casaco. Era Emelina, que também queria ver. Ele ergueu-a nos braços, mas não havia mais nada. Os horrendos vultos se
haviam dissipado, deixando as profundezas de esmeralda sem agitação, sem mancha alguma.
Como se chamam, papai? insistiu Dicky, enquanto seu pai o fazia soltar as grades do parapeito e o levava para a sua cadeira.
Tubarões disse Lestrange, cujo rosto transpirava.
Tomou o volume de Tennyson que estava a ler, sentou-se, conservando-o sobre os joelhos e contemplou o primeiro convés, branco, fulgurante de sol, manchado pela
sombra leve das manobras preguiçosas.
O abismo tinha-lhe entremostrado uma das suas visões. A poesia, a filosofia, a beleza, a arte, o amor e a alegria de viver, poderiam essas coisas existir no
mesmo mundo em que viviam aqueles horrores que acabava de entrever? Olhou para o livro sobre os seus joelhos e comparou os versos maravilhosos que continha as terríveis
bestas que, no rastro do navio, aguardavam a sua presa.
Eram três horas e meia. A governanta veio procurar as crianças e enquanto os três desapareciam na escada do salão, o Capitão Le Farge subia ao tombadilho, examinou
a extensão do mar, a bombordo, onde uma faixa de bruma aparecia como o espectro de um continente.
O sol está escurecendo disse ele. Eu quase posso encará-lo. O barômetro está fixo. A bruma acumula-se. Já viu um nevoeiro do Pacífico?
Não, nunca.
Bem, então não desejo ver um outro tornou o capitão, abrigando os olhos com a mão e fixando-os sobre a linha onde o céu e as águas se esposavam.
O horizonte perdia a sua limpidez, ia-se estendendo uma sombra, imperceptivelmente, sobre o esplendor do dia.
O capitão voltou-se de súbito, ergueu a cabeça e fungou repetidamente.
Alguma coisa está queimando, não sente? Parece um colchão ou coisa que o valha. Aposto que é esse diabo do despenseiro que faz das suas. Quando não quebra
os copos, ou derruba as lanternas ou estraga as toalhas. Deus me acuda! Eu preferia ver em torno de mim uma dúzia de Marias, com suas vassouras, a fazerem poeira,
a ter um despenseiro tão estúpido como Jenkins.
Dirigiu-se para a escada do salão:
Ô de baixo!
Pronto, Capitão.
Que é que você está queimando?
Nada, Capitão.
Mas eu sinto!
Nada está queimando aqui, Capitão.
Aqui em cima também não. Deve ser no convés ou talvez na cozinha, provavelmente trapos que jogaram ao logo.
Capitão chamou Lestrange.
Que há?
Pode vir aqui um instante?
Le Farge aproximou-se.
Não sei se a fraqueza me afeta a vista, mas parece-me que há qualquer coisa de anormal no grande mastro.
O grande mastro, perto do lugar em que penetrava no convés, parecia animado de um movimento de saca-rolha, curioso de observar da tenda.
A ilusão era devida a uma espiral de fumaça tão tênue, que apenas se podia adivinhar por aquele tremor de miragem com que envolvia a madeira em torno da qual
subia.
Meu Deus! gritou Le Farge, a correr.
Lestrange seguiu-o, arquejante, segurando-se a cada passo ao balaústre. Ele ouviu as notas agudas do apito do mestre da equipagem. Viu os marinheiros emergirem
do castelo de proa, como abelhas fora da colméia e reunirem-se em torno da escotilha do porão. Viu retirarem os encerados e as trancas. Viu a escotilha abrir-se,
e um jato de fumaça, de fumaça negra e espessa, subiu para o céu, sólida como um penacho de plumas no ar tranqüilo.
Lestrange era de natureza muito nervosa, mas são os homens de seu temperamento que guardam o sangue-frio em circunstâncias como aquela, ao passo que os fleugmáticos
geralmente perdem a cabeça. Seu primeiro pensamento foi para as crianças, o segundo para os barcos.
Durante a tempestade nas costas do cabo Horn, o "Northumberland" perdera várias embarcações. Restavam a grande canoa, a chalupa e um pequeno bote. Ele ouviu
Le Farge ordenar o fechamento da gateira e a manobra das bombas para inundar o porão. E, sabendo que não podia prestar nenhum serviço no convés, desceu precipitadamente
para o salão.
Madame Stannard saía da cabina das crianças.
Madame Stannard, as crianças estão deitadas? perguntou Lestrange, com a respiração entrecortada pela excitação e comoção dos últimos minutos.
A mulher olhou-o, assustada, ele parecia o arauto do desastre.
Se os pôs na cama, vista-os depressa. O navio está prendendo fogo, Madame Stannard!
Meu Deus! É possível, senhor?
Escute disse Lestrange.
Enfraquecido pela distância, monótono como o grito das gaivotas sobre uma praia desolada, chegava até eles o rumor das bombas em funcionamento.
e como um sonho se dissipa/4
Antes que a governanta tivesse tempo de abrir a boca, um passo forte retumbou na escada. Le Farge precipitou-se no salão, com a face congestionada, as veias
das têmporas intumescidas, os olhos perdidos e vítreos como os de um bêbedo.
Preparem as crianças! gritou ele. Preparem-se todos. Os barcos salva-vidas estão sendo lançados ao mar, com as provisões. Diabo! Onde estão os papéis?
Ouviram-no procurar freneticamente e reunir, esbravejando, os papéis do navio, apontamentos de bordo, coisas às quais um capitão tem tanto apego como à vida,
enquanto procurava, achava e empacotava, não cessava também de ordenar que fizessem subir as crianças para o convés. Ele estava meio louco e parecia que o ia ficar
inteiramente, ao pensar na terrível carga que o navio conduzia.
Sob a direção do imediato, a equipagem trabalhava fria e metodicamente, sem suspeitar que tivesse debaixo dos pés outra coisa que não um ordinário incêndio de
carga. Os barcos, despojados de suas cobertas, foram carregados de barris d'água e de sacos de bolachas, ficando o menor deles, o que era manobrado mais facilmente,
ainda suspenso dos cabos à altura do parapeito.
Paddy Button nele colocava um pequeno barril quando chegou Le Farge seguido da governanta, que carregava Emelina, e de Lestrange, que conduzia Dick. A pequena
embarcação possuía um mastro e uma vela alta. Dois marinheiros estavam prestes a largá-lo e Paddy se afastava quando o capitão o chamou:
Para o barco! ordenou ele. Leve as crianças e o passageiro a uma..., duas..., três milhas do navio.
Meu Capitão, mas eu deixei a minha rabeca no...
Le Farge deixou cair o pacote que sobraçava e sacudiu o velho marinheiro, empurrando-o contra o parapeito como se fosse lançá-lo ao mar.
Um instante depois Mestre Button estava no barco. Alcançaram-lhe Emelina, pálida e de olhos fixos, ela apertava contra o peito um pacote enrolado num pequeno
xale. Então ajudaram Dicky e Lestrange a embarcar.
Não há mais lugar disse Le Farge. Se formos obrigados a deixar o navio, a senhora irá no barco grande, Madame Stannard; arriem a embarcação; arriem!
O barco mergulhou o casco no mar tranqüilo e azul, e flutuou.
Antes de embarcar em Boston, não tendo dinheiro para freqüentar as tabernas, vivera Mestre Button muito tempo pelo cais; tinha assistido ao carregamento do "Northumberland"
e soubera mais ainda pelas conversas com o chefe da estiva. Depois que desprendeu os cabos e soltou os remos, o seu entendimento esclareceu-se, ele deu um grito
e os dois marinheiros debruçaram-se sobre o parapeito.
Camaradas!
Pronto! Pronto!
Tratem de escafeder-se se têm apego à vida. Eu me lembrei agora que há um carregamento de pólvora no porão!
E curvou-se sobre os remos com um ardor nunca visto.
Perto da proa, Lestrange enlaçava as crianças; após as palavras de Paddy, ele sentiu palpitações durante um momento. Dick e Emelina, que não conheciam a pólvora
nem os seus efeitos, embora assustados com toda aquela barafunda, estavam encantados por se acharem naquele pequeno barco, tão próximo do lindo mar azul.
Dick mergulhou um dedo n'água para encrespá-la, o que sempre foi um dos maiores prazeres de todas as crianças. Emelina, com uma das mãos na do seu tio, olhava
Mestre Button com um ar ao mesmo tempo grave e divertido. De fato, ele era curioso de ver naquele instante; a alma cheia de terror e comoção, ele ouvia já, na sua
imaginação de celta, o navio saltar pelos ares, e se sentia feito pedaços com o bote, ou, o que era ainda pior, figurava-se no inferno, queimado pelos demônios;
mas a tragédia e o medo não encontravam lugar para expressar-se na sua fisionomia; ele resfolegava fortemente, inchando as bochechas e remava fazendo mil caretas
que refletiam a agonia de sua alma sem no entretanto pintá-la.
Atrás, estava o navio. A chalupa e a grande canoa flutuavam à mercê de Deus, perto do "Northumberland".
Dos flancos do navio saltavam homens como ratos, nadavam como gansos e içavam-se como melhor podiam para os barcos.
Através da escotilha entreaberta, um fumo negro, já semeado de faíscas, elevava-se em jatos rápidos, como vomitado por um dragão de mandíbulas cerradas. A uma
milha do "Northumberland", erguia-se a muralha do nevoeiro. Parecia compacto como uma grande ilha que de súbito se tivesse formado magicamente sobre o mar, uma ilha
onde nenhuma árvore crescesse e nenhum pássaro cantasse, uma ilha guarnecida de rochedos brancos tão sólidos como os de Douvres.
Não posso mais! gemeu Paddy, prendendo os cabos dos remos sob os joelhos e curvando-se como para dar uma cabeçada dos passageiros. Que eu salte ou que
não salte, estou perdido, não me peçam mais nada, estou perdido!
Lestrange, pálido ainda como um fantasma, mas que pouco a pouco voltava a si da primeira comoção, concedeu ao infeliz um momento de folga e voltou-se para o
navio. Este último aparecia a uma boa distância e os botes, já afastados dele, corriam furiosamente na direção do pequeno barco.
Dick continuava a brincar com a água; mas a atenção de Emelina estava toda tomada por Mestre Button. As novidades interessavam sempre a seu espírito contemplativo
e as evoluções de seu velho amigo eram absolutamente inéditas. Ela já o tinha visto bêbedo sobre o convés, ou andando de quatro pés, com Dick às costas; mas nunca
o tinha visto assim daquele jeito. Compreendeu que ele estava cansado e acabrunhado; então, procurando no bolso, ela retirou um caramelo e bateu com ele na cabeça
de Paddy.
Mestre Button olhou vagamente durante um segundo, viu a guloseima oferecida, e, a sua vista, a lembrança das crianças, da sua inocência, de si próprio e da pólvora
esclareceu-lhe o cérebro cansado e o fez retomar os remos.
Papai gritou Dick, que se voltava para trás há nuvens perto do navio!
Num espaço de tempo incrivelmente curto, os sólidos rochedos se haviam partido e o vento leve que os acumulara tinha-os agora dispersado, formando com eles fantásticas
imagens. Cavaleiros de bruma cavalgavam as ondas e dissolviam-se. Vagas que não eram d'água rolavam sobre o mar. Cortinas e espirais de vapor subiam e tudo aquilo
avançava com um preguiçoso movimento. Imenso, vagaroso e sinistro, impiedoso como a fatalidade ou a morte, o nevoeiro estendia-se, absorvendo o mundo.
Contra aquele sombrio fundo cinzento, desenhava-se o perfil do navio, suas velas já tremiam à brisa, e o fumo, escapando-se pela abertura do porão, parecia fazer
sinais aos barcos que fugiam.
Por que é que está saindo fumaça do navio? perguntou Dick. Lá vêm vindo os barcos, quando é que nós vamos voltar, papai?
Titio disse Emelina, colocando a sua mão na de Lestrange e fixando o "Northumberland" titio, eu tenho medo.
De que tens medo, Emy? perguntou ele, aconchegando-a.
Dos fantasmas! disse ela, encolhendo-se contra Lestrange.
Oh! Meu Deus! suspirou o velho marinheiro olha o nevoeiro que vem vindo!
Seria melhor esperarmos pelos barcos aconselhou Lestrange. Nós estamos bastante afastados para ficar a salvo de qualquer coisa que aconteça.
Sim replicou Paddy que ele salte ou afunde, agora não nos atingirá.
Papai choramingou Dicky, quando é que nós vamos voltar?
Não vamos voltar, meu filho, o navio está queimando, nós esperaremos um outro.
Mas onde está o outro navio? indagou o menino, sondando a parte do horizonte que ainda permanecia clara.
Não podemos ainda percebê-lo suspirou o infeliz Lestrange mas ele virá.
A chalupa e a grande canoa aproximavam-se lentamente. Assemelhavam-se a escaravelhos arrastando-se sobre a água, por detrás deles qualquer coisa pesada e morosa
se ia abatendo sobre a superfície brilhante, apagando a cintilação do mar, enquanto ia obscurecendo o sol.
No momento em que o leve zéfiro atingia o pequeno barco, lá longe, à distância, o nevoeiro engolia o navio.
Foi um maravilhoso espetáculo: menos de trinta minutos bastaram para que o navio de madeira se tornasse um navio de musselina, depois um vestígio, ele vacilou
e desapareceu para sempre do olhar dos homens.
vozes através do nevoeiro/5
O sol, cada vez mais fraco, se dissipou; a atmosfera que cercava o pequeno barco era no entanto clara, mas as embarcações próximas apareciam brumosas e sujas.
Por fim o trecho de horizonte ainda límpido foi alcançado pela névoa.
Quando a chalupa chegou a suficiente distância, fez-se ouvir a voz do capitão:
Olá! Do barco!...
Olá!
Aproximem-se!
E a chalupa fez alto, para esperar também a canoa grande. Movia-se habitualmente com dificuldade, e agora estava sobrecarregada. A maneira como Paddy Button
tinha revolucionado a equipagem causara violenta cólera ao Capitão Le Farge, mas este não teve tempo de desabafá-la.
Venha para cá, Senhor Lestrange disse ele, quando o pequeno barco renteou a chalupa. Temos um lugar, Madame Stannard está na canoa grande, onde há muita
gente, ela ficará melhor aí no barco, onde poderá cuidar das crianças. Venham, despachem-se, que o nevoeiro aumenta. Oh! Da canoa! Depressa! Depressa!
Já a canoa grande estava invisível. Lestrange entrou na chalupa; Paddy, com a ponta dos remos, afastou o pequeno barco alguns metros e parou.
Alô, alô! gritou Le Farge.
O nevoeiro respondeu:
Alô!
No minuto seguinte, a chalupa e o pequeno barco não se podiam mais avistar. Um grande sudário os envolvia...
A chalupa estava tão próxima, que em duas remadas Mestre Button a teria alcançado, mas ele não pensava senão na canoa grande e remou vigorosamente para o lugar
onde presumia que ela estivesse.
Olá! Do barco!
Olá!
Olá!
Não gritem juntos, assim eu não sei para onde me dirigir. Alô! Da canoa! Onde estão?
A bombordo o leme!
Sim, sim!
E, governando a estibordo.
Num instante eu alcanço vocês.
Ele remou vigorosamente durante dois ou três minutos.
Alôôô!... gritou uma voz já abafada.
Por que se afastam?
Uma dezena de golpes de remo. O apelo seguinte foi mais adivinhado do que ouvido. Mestre Button suspendeu os remos.
Que o diabo me carregue! Eu pensava que era a chalupa que nos chamava.
E vigorosamente recomeçou a remar.
Paddy, onde é que estamos agora?
A fraca vozinha de Dick não parecia vir de parte alguma,
Por certo que estamos num nevoeiro! Onde mais poderíamos estar? Não tenhas medo.
Eu não tenho medo, mas Emelina está tremendo.
Dá-lhe o meu casaco disse o marinheiro, tirando-o. Quando ela estiver com ele, nós três gritaremos juntos. Há um xale velho no barco, mas eu agora não
posso procurar.
Ele estendeu seu casaco, uma mão quase invisível o tomou. No mesmo instante, uma terrível explosão abalou o mar e o céu.
Já te rebentaste murmurou Mestre Button minha rabeca também! Não tenham medo, meninos, é apenas um canhão que estão disparando para se distraírem. Agora
vamos todos gritar juntos. Estão prontos?
Sim, sim! respondeu Dick.
Alô! berrou Pat.
Alô! Alô! acompanharam duas vozes de falsete.
Uma longínqua réplica mal se percebeu através das profundezas algodoadas... Mas de que lado? Era impossível sabê-lo. O marinheiro avançou alguns metros e descansou
sobre os remos. Tão calma estava a superfície do mar, que se ouvia perfeitamente o bisbilho d'água produzido pela marcha do barco. E esse leve rumor cessou. O silêncio
envolveu os náufragos como um anel.
A luz do alto, quase extinta, parecia filtrar-se por uma vigia de vidro espesso, que fosse acompanhando o barco à medida que este se deslocava através da bruma.
Um grande nevoeiro marinho não é homogêneo; assemelha-se a um favo de mel: possui ruas, cavernas de ar fresco, muralhas de denso vapor. Ele se movimenta e se transforma
com a rapidez de um passe de mágica, de resto, a hora do poente e a aproximação das trevas o aumentavam ainda. Se o céu estivesse sem nuvens, Paddy e as crianças
teriam percebido o sol abandonar o horizonte. Eles chamaram ainda. Esperaram. Nenhum eco respondeu.
Não vale a pena estar zurrando como burros para gente surda como portas disse o velho marinheiro.
Ele lançou um último grito, que não teve melhor resultado que os outros.
Senhor Button! pronunciou a voz de Emelina.
Que há, querida?
Eu tenho... medo!
Espera um momento, que eu vou procurar o xale. Está aqui!
Ele arrastou-se cautelosamente para trás e tomou Emelina nos seus braços.
Eu não quero o xale agradeceu a menina. Eu não sinto tanto medo estando com o seu casaco.
Aquele velho casaco, grosseiro e cheirando a fumo, lhe inspirava coragem.
Bem, fica com ele, então. Dick, estás com frio?
Eu estou com o sobretudo de papai, ele o deixou aqui.
Bem, eu porei o xale sobre os ombros porque estou gelado. Estão com fome, meus filhos?
Não respondeu Dick, choramingando mas não me sinto bem.
Estás com sono? Deita-te ao fundo do barco e toma lá o xale para travesseiro. Eu vou remar ainda um pouco para aquecer-me.
Ele abotoou o primeiro botão do casaco.
Eu estou muito bem! murmurou Emelina, já meio adormecida.
Fecha bem os teus olhos ordenou Mestre Button senão vem o homem da areia e põe terra neles.
E pôs-se a cantarolar uma cantiga que se lhe fixara na memória, de envolta com a lembrança do vento, da chuva, do cheiro da turfa quente, do grunhir de um porco
e do ranger de um berço.
Pronto! murmurou Mestre Button a si próprio, o corpo em seus braços amolecia, ele depôs suavemente a menina ao lado de Dick. Com seus movimentos de caranguejo,
procurou nos bolsos das calças o cachimbo, o fumo, o isqueiro, mas estes objetos estavam com Emelina, no seu casaco. Para não acordar a criança, ele desistiu de
fumar.
À sombra do nevoeiro ajuntava-se a escuridão da noite. O remador não podia distinguir nem mesmo o cabo dos remos, ele errava ao léu, atormentado pelo medo dos
espíritos.
É em tais ocasiões que se ouve as sereias divertirem-se na baía de Dunberg ou sobre a costa de Aquiles. Elas brincam e riem, gritando para extraviar os infortunados
pescadores.
As sereias não são más de todo, mas têm os dentes e os cabelos verdes, cauda de peixe e barbatanas em vez de braços. Pensar que elas nadam em torno da gente,
como salmões, quando se está num pequeno barco, a temer que uma delas se aproxime! Isto é para embranquecer os cabelos de um homem!
Por um momento, ele teve vontade de acordar as crianças para sentir-se acompanhado, mas este pensamento lhe causou vergonha. Então remou para sentir o barulho
da água; as batidas dos remos eram uma voz amiga, e o exercício acalmou os seus terrores. De quando em quando, esquecendo as crianças, ele gritava, mas nenhuma voz
lhe respondia.
Continuou assim a afastar-se das embarcações, que estava destinado a nunca mais rever.
a aurora sobre o vasto mar /6
Será que eu dormi? indagou Mestre Button, acordando-se em sobressalto. Tinha recolhido os remos para repousar não mais que um minuto e provavelmente dormira
durante algumas horas, pois agora soprava um vento leve e morno; a lua brilhava, desnudada de qualquer nevoeiro. Eu tive um pesadelo... continuou ele. Onde
estou eu? Oh! Certamente que estou aqui! Sonhei que estava deitado sobre o porão e que o navio tinha explodido.
Senhor Button?
Uma vozinha, a de Emelina, fez-se ouvir, perto da proa.
Que tens, querida?
Onde estamos agora?
Por certo que estamos no mar, onde queres tu que a gente esteja?
Onde está meu tio?
Anda por aí na chalupa, daqui a pouco virá ter conosco.
Eu estou com sede.
Paddy encheu uma caçarola de estanho e lha estendeu. Em seguida tirou do bolso do casaco o seu cachimbo e o seu fumo. Emelina adormeceu de novo ao lado de Dick,
que ainda não se movera. O velho marinheiro ergueu-se e firmou a vista, examinando as cercanias. Nem um único barco, ou a mais pequena vela. Da pequena elevação
de um barco, a vista tem pouco alcance. Não muito longe dali, bem podia ser que as outras embarcações estivessem ocultas na vaga claridade lunar; neste caso, seriam
visíveis ao romper da aurora.
Mas embarcações bastante próximas umas das outras podem afastar-se em pouco tempo. Nada é mais misterioso que as correntes marítimas. O oceano é cheio de rios,
uns rápidos, outros lentos. A uma hora de um lugar onde se corre na velocidade de uma milha por hora, uma outra embarcação pode ser arrastada por velocidade dupla.
Uma brisa morna frisava as águas, mareando o luar e o reflexo das estrelas. O oceano parecia um lago, embora o continente mais próximo estivesse a centenas de milhas.
Os pensamentos das crianças podem ser indefinidamente longos, mas não o são mais do que os desse velho marinheiro, a fumar seu cachimbo sob as estrelas; pensamentos
tão longos como a terra é redonda. As docas de Londres, as luzes de Macau, as bases iluminadas de Callao, sampanas deslizando sobre a superfície oleosa dos portos.
Raramente uma visão simples e pura do mar; que interesse pode ter o mar para um marinheiro que sempre viveu num castelo de proa, cuja memória confunde uma viagem
com outra, que, após ter passado quarenta e cinco anos carregando as velas, não se pode lembrar de onde foi que Jack Rafferty caiu ao mar, ou a propósito de que
ocorreu certa luta de morte, embora perceba ainda, tão nitidamente como num espelho, o rosto ensangüentado sobre o qual alguém se debruçava com um lampião? Duvido
que Paddy Button se lembrasse do nome de seu primeiro navio; se lhe perguntassem, ele teria sem dúvida respondido: "Não me lembro mais. Era no Báltico. Fazia um
frio de rachar. Eu enjoava até virar pelo avesso. Passava o tempo a queixar-me e o capitão batia-me nas costas com cordas para me dar coragem, mas o nome do barco
me saiu da cabeça; em todo caso, desejo-lhe má sorte".
Ficou sentado a fumar, enquanto as luzes celestes brilhavam acima dele. Rememorava cenas de bebedeiras, portos sombreados de palmeiras, Homens e mulheres a quem
havia conhecido. Que homens! E que mulheres! Os rebotalhos da terra e do oceano! Depois cerrou os olhos e, quando os abriu, a lua tinha partido.
Havia agora no Oriente um leque de luz, tão pálido e diáfano como uma asa de libélula extinguia-se, e uma raia de fogo se desenhou no horizonte, que resplandeceu.
A linha de fogo se contraiu sobre um ponto que ia aumentando: era a borda do sol nascente.
Enquanto a luz aumentava, o céu se tornava de um azul impossível de imaginar para quem não o tenha visto, um azul lívido, embora vivo, que cintilava e parecia
produzido por uma impalpável poeira de safiras. E o mar vibrou como a harpa de Apoio, quando o deus a tange com o dedo. A luz é a música da alma. O dia tinha vindo.
Papai! exclamou de súbito Dick, sentando-se ao sol e esfregando os olhos onde estamos?
Tudo vai bem, Dick, meu filho! replicou o marinheiro, que, de pé, procurava em vão as embarcações. Teu pai está tão seguro como no paraíso; daqui a pouco
ele estará aqui, com um outro navio. Então, Emelina, já te acordaste?
Emelina, mergulhada no casaco do piloto, sacudiu a cabeça, à guisa de resposta. Uma outra criança teria feito perguntas suplementares às de Dick; ela, porém,
permaneceu muda. Teria ela pressentido algum subterfúgio nas palavras de Mestre Button? Adivinharia que as coisas eram muito diversas do que lhes contavam? Quem
o poderá saber?
Ela estava com um boné de Dick, que Madame Stannard, na sua precipitação, lhe pusera sobre os cabelos. E o seu aspecto era bem pitoresco, assim vestida como
estava com o velho casacão manchado do marinheiro e o boné de banda sobre a orelha, sentada perto de seu primo, na luz matinal. O chapéu de palha do menino tombara
ao fundo do barco e os seus cabelos castanhos anelados flutuavam à brisa.
Hurra! gritou Dick, olhando a água azul em torno de si e dando um forte pontapé no fundo do barco. Eu vou ser marinheiro, Paddy; tu me deixarás içar a
vela e me ensinarás como se rema.
Cada coisa a seu tempo disse Paddy, apoderando-se do menino. Eu não tenho esponja nem toalha, mas vou lavar-te o rosto na água salgada e te deixarei secando
ao sol.
Ele encheu uma caçarola com água do mar.
Eu não quero ser lavado! gritou Dick.
Mete teu rosto na caçarola ordenou Mestre Button tu não hás de ficar com uma cara de lata de lixo!
Mete tu a tua cara dentro!
Paddy obedeceu, houve um pequeno gorgolejo n'água, ele ergueu uma face gotejante e lançou ao mar o conteúdo do recipiente.
Estás vendo? Perdeste a ocasião disse aquela "governante" estratégica. Toda a água se foi embora.
Há mais água no mar.
Não, não há mais até amanhã de manhã para lavar o rosto, os peixes não deixam.
Eu quero lavar-me, eu quero meter o nariz na caçarola, o mesmo que tu. E, depois, Emelina ainda não se lavou.
Para mim, é igual murmurou Emelina.
Bem, então insinuou Mestre Button, como se tomasse uma resolução súbita eu vou pedir licença aos tubarões.
Ele pendeu a cabeça contra a superfície da água.
Ô de baixo!
Fingiu escutar. As crianças, vivamente interessadas, olhavam por cima da borda.
Ô de baixo! Estão dormindo? Ah! Apareceram. Escutem: está aqui um guri de cara suja que quer lavá-la. Será que se pode tirar uma caçarola d'água? Bem, muito
obrigado, senhor, e queira aceitar os meus respeitos.
Senhor Button, que foi que disse o tubarão? perguntou Emelina.
Ele disse: "Tire um barril cheio e seja bem-vindo, Mestre Button, é uma sorte que eu tenha uma gota a oferecer-lhe esta manhã". Depois ele meteu a cabeça debaixo
da barbatana e adormeceu. Ouçam como está roncando.
Emelina dizia quase sempre "Senhor Button" e algumas vezes "Mestre Paddy". Quanto a Dick, tratava-o de "Paddy", simplesmente. As crianças têm cada uma o seu
protocolo.
O que deve sobretudo constranger os que estão perdidos num barco é a promiscuidade. Acumular assim criaturas humanas parece um ultraje à decência, masquem tiver
passado por essa prova há de saber que, em tais momentos, o espírito humano se eleva, e as coisas que chocam ordinariamente não contam mais diante da eternidade.
Se assim é com as pessoas grandes, muito mais o era com aquela casca de noz e os seus passageiros. Mestre Button era dos que chamam as coisas pelo seu nome,
ele não tinha mais contemplação para com as convenções do que a teria uma foca cuidando de seus filhos, e tratava os seus dois petizes como uma ama.
O barco estava provido de um grande saco de bolachas e de algumas conservas, principalmente sardinhas. Eu vi um marinheiro abrir uma lata de sardinhas com um
prego. Ele estava em prisão e as sardinhas lhe haviam sido entregues ocultamente. Privado de chave, ele não possuía senão a sua habilidade e um prego. Paddy tinha
uma faca, ele abriu uma conserva e a colocou perto da proa, ao lado de algumas bolachas, o que, com um pouco d'água e a laranja que Emelina acrescentou ao cardápio,
constituiu um verdadeiro festim. Os restos da refeição foram cuidadosamente guardados e procedeu-se à elevação do pequeno mastro. Quando ficou de pé, Paddy permaneceu
um momento apoiado contra ele, a contemplar o infinito.
O Pacífico tem três azuis: o azul da manhã, o do meio-dia, e o da tarde. Mas o azul da manhã é o mais feliz, é o que tem a mais alegre tonalidade, resplandecente,
recém-aberto, o azul do céu e da juventude.
Que estás procurando no céu, Paddy? perguntou Dick.
As gaivotas replicou o mentiroso. Ele dizia interiormente: "Eu não vejo sinal de nenhuma. Para que lado devo dirigir-me? Norte? Sul? Leste? Oeste? É igual.
Se eu vou para Leste, elas estarão talvez a Oeste, se eu vou para Oeste, elas hão de estar a Leste; e, depois, eu não posso ir para Leste, porque iria contra o vento.
Fiemo-nos na sorte".
Ele arranjou a vela e passou para trás com a escota, depois deslocou o leme, acendeu o cachimbo, acomodou-se confortavelmente e abandonou o barco à mercê da
brisa.
Dirigia-se assim para o desconhecido, talvez para a morte, com o mesmo desprendimento de quem estivesse a passear com as crianças. Isto provinha em parte do
seu caráter, em parte da sua profissão. Sua imaginação, pouco preocupada com o futuro e quase inteiramente influenciada pela sua convivência imediata, não fazia
maus prognósticos, com as crianças, acontecia o mesmo. Assim, nunca uma partida foi tão alegre como aquela. Durante a refeição, Paddy explicava aos seus pupilos
que, se dali a um momento não encontrassem o Senhor Lestrange, era porque ele tinha partido num grande navio e voltaria em breve.
O Pacífico dormia numa dessas calmarias prodigiosas que só podem existir nos períodos de tempo estável, reinando sobre uma vasta extensão, pois um furacão perto
do cabo Horn pode levar seu ímpeto até além das Marquesas. Du Bois demonstrou que o mar é mais vezes agitado pela repercussão de uma tempestade longínqua do que
pelo vento. Mas o Pacífico não dormia senão em aparência. Aquele lago plácido sobre o qual o barco deslizava era animado por um imperceptível movimento que se ia
quebrar contra as ilhas polinésicas.
A boneca de pano de Emelina era horrível sob o ponto de vista estético; a cara coberta de tinta, não tinha ela feições nem braços e, malgrado isso, a menina
não a teria trocado pelas mais belas bonecas do mundo. Ela embalava-a à direita do piloto, enquanto Dick, à sua esquerda, curvava o nariz sobre a água, procurando
distinguir os peixes.
Por que é que o senhor fuma, Senhor Button? perguntou Emelina que, havia um momento, observava silenciosamente o seu velho amigo.
Para distrair as nossas mágoas replicou Paddy. Ele estava inclinado para trás, com um olho fechado e o outro fixo sobre a vela. Achava-se no seu elemento,
sem nada mais a fazer do que dirigir o barco e encher o cachimbo, aquecido pelo sol e refrescado pela brisa.
Um homem de terra firme ficaria louco em tais condições e muitos marinheiros se impressionariam e, praguejando e rezando, alternativamente, tudo dariam para
perceber um navio. Paddy, esse, fumava.
Oh! gritou Dick. Viste, Paddy?
A alguns metros do barco, um peixe saltou fora do mar cintilante, descreveu uma curva no ar e desapareceu.
É um peixe voador que acaba de dar um salto. Eu já vi centenas antes deste. É que o estão perseguindo.
Quem é que o está perseguindo, Paddy?
Quem é que o está perseguindo? Quem queres tu que seja senão um duende?
Antes que Dick tivesse pedido informações sobre a aparência e os hábitos deste último, uma multidão de pontas de flechas argente as passou sobre o barco e penetrou
no mar com um zunido.
Pois são peixes voadores. Que é que tu dizes? Que os peixes não podem voar? Olha, então!
Será que os duendes também os estão perseguindo? perguntou Emelina assustada.
Não, são as sereias que andam atrás deles. Não me façam mais perguntas senão eu começo a mentir.
Cumpre lembrar que Emelina tinha trazido consigo um pequeno pacote enrolado num xale; estava sob o banco do barco e, de tempos a tempos, ela se abaixava para
certificar-se de que ele estava em segurança.
história do porco e do bode/7
Todas as horas Mestre Button sacudia o seu letargo, para procurar gaivotas, indícios de aproximação da terra. Mas o panorama, sem vozes e sem asas, era tão desprovido
de voadores como um mar pré-histórico.
Quando Dick choramingava, o velho marinheiro sempre achava um meio de o distrair. Fez-lhe um anzol com um alfinete retorcido e um barbante, dizendo-lhe que pescasse
estrelas-do-mar, e Dick, com a boa fé das crianças, pôs-se a pescar. Depois, contou-lhes histórias. Outrora, passara ele um mês em Deal, em casa de uma prima casada
com um barqueiro. Tendo ficado um ano em Deal como carteiro. Mestre Button sabia uma porção de coisas sobre a sua parenta, sobre o seu marido e sobretudo sobre Hamah;
Hamah era o bebê de sua prima; um menino prodígio, nascido com os dentes da frente completamente desenvolvidos, e cujo primeiro gesto ao entrar neste mundo foi morder
o doutor. Dependurou-se-lhe ao punho como um buldogue e o doutor gritava por socorro.
A Senhora James disse Emelina, falando de uma das suas relações de Boston tinha um bebezinho, mas ele era todo cor-de-rosa.
Sim, sim afirmou Paddy eles são geralmente cor-de-rosa no princípio, mas desbotam quando os lavam.
Ele não tinha dentes continuou Emelina eu meti o dedo na sua boca para ver.
O médico o trouxe num saco interrompeu Dick, continuando a pescar. Ele o desenterrou de uma horta de couves, eu tomei uma enxada e cavei todo o nosso canteiro
de couves, mas não tinha bebê nenhum, somente uma porção de minhocas.
Eu queria ter um bebê murmurou Emelina mas não o mandaria de novo para o canteiro de couves.
O doutor confirmou Dick levou-o de volta e tornou a plantá-lo, e a Senhora James começou a chorar quando eu perguntei pelo bebê. Papai disse que o tinham
plantado para que ele crescesse e se tornasse um anjo.
Os anjos têm asas disse Emelina, pensativa.
E eu continuou Dick contei tudo à cozinheira, e ela disse a Jane que papai recheava a cabeça das crianças com besteiras, então eu pedi a papai que recheasse
cabeças de crianças diante de mim, e papai disse que a cozinheira devia ser despedida por ter dito aquilo e ela se foi embora no outro dia.
A cozinheira tinha três malas grandes e uma caixa de chapéu contou Emelina, recordando o incidente.
E o cocheiro perguntou se ela não tinha mais malas para pôr no carro e se não se esquecera da gaiola do papagaio.
Eu queria ter um papagaio numa gaiola suspirou Emelina, acomodando-se para conseguir um lugar melhor à sombra da vela.
E que é que tu farias de um papagaio numa gaiola? perguntou Mestre Button.
Eu abriria a porta.
Tu falas em soltar os animais, isto me lembra que o meu avô tinha um velho porco Paddy e Emelina conversavam com toda a seriedade, como entre iguais. Eu
era um pirralho do tamanho da minha bota e ia à porta do chiqueiro, então ele vinha, grunhia e fungava com o focinho por baixo da porta e eu começava a dar socos
na porta para arreliá-lo, e gritava:
" Vamos! Vamos! Vamos! e ele me respondia na língua dos porcos:
" Vai gritar contigo mesmo. Faze-me sair ele me dizia e eu te darei um escudo de prata.
" Passa-o por baixo da porta eu lhe respondia.
"Então ele passava o focinho por baixo da porta e eu lhe batia com um pau, e ele pedia socorro em irlandês, e minha mãe vinha e me esbofeteava e eu bem que merecia.
Pois bem: um dia eu abri a porta do chiqueiro e ele saltou fora e se foi andando, andando, até um rochedo que tomba a pique sobre o mar. E lá ele encontrou um bode,
e o bode e ele tiveram opiniões diversas:
" Vai-te embora disse o bode.
" Vai tu disse ele.
" Com quem estás falando? disse o outro.
" Contigo disse ele.
" Quem roubou os ovos? disse o bode.
" Pergunta à tua avó disse o porco.
" Pergunta a quem? disse o bode.
" Ora! Pergunta a...
"E antes que ele pudesse acabar, o velho bode deu-lhe uma marretada nos peitos e os dois se despenharam dentro d'água.
"E então o meu velho avô me agarrou pela pele do pescoço.
" Vai para o chiqueiro disse ele.
"E no chiqueiro me encerraram e prenderam durante quinze dias e me tratavam a farelo e soro de leite. E bem que eu merecia!"
Almoçaram pelas onze horas. Ao meio-dia Paddy arriou o mastro e armou na frente do barco uma espécie de pequena barraca. Em seguida, deitou-se ao fundo do barco,
protegendo o rosto com o chapéu de palha de Dick, estirou-se para achar uma boa posição e adormeceu.
"shenandoah" / 8
Ele dormia havia mais de uma hora, quando um grito agudo e prolongado o fez acordar em sobressalto. Em pleno dia, Emelina tivera um pesadelo, provocado pela
refeição de sardinhas e pelos duendes. Quando ela se acordou e voltou à calma (o que sempre demandava um tempo considerável), Paddy ergueu o mastro e pôs-se a olhar
para todos os lados. A mais de três milhas, seu olhar encontrou qualquer coisa: era o mastro de um pequeno navio que, pouco a pouco, saía das águas. Não havia o
mínimo vestígio de vela sobre o madeirame nu. Um leigo teria tomado aquilo por árvores despojadas. Uns vinte ou trinta minutos ele ficou olhando, sem falar, a cabeça
para a frente, como uma tartaruga; depois soltou um hurra selvagem.
Que é que há, Paddy? perguntou Dick. É o navio de papai?
Não sei, veremos quando lá chegarmos. Hurra! repetiu Mestre Button. Ô do navio! Se vocês estão encrencados, fiquem aí até que eu chegue. Decerto estão
encrencados, ou então dormem ou sonham, pois não há um pedaço de vela ao vento. Dick, deixa-me passar para trás com a escota, o vento nos levará mais depressa do
que se remássemos.
Ele tomou o leme, a brisa enfunou a vela e o barco avançou.
Será que é o barco de papai? perguntou Dick, quase tão emocionado como o seu amigo.
Não sei, veremos.
E nós subiremos no navio? indagou a menina.
Sem dúvida, minha querida.
Emelina abaixou-se, procurou seu pacote sob o banco e o depôs sobre os joelhos.
Aumentando, as linhas da embarcação tornavam-se mais distintas; era um pequeno brigue, com mastros e vergas onde flutuavam alguns farrapos. O velho marinheiro
logo compreendeu a situação:
Está abandonado, o infeliz! murmurou ele. Abandonado e imprestável. Que azar!
Eu não vejo ninguém no barco! exclamou Dick. Papai não está!
O velho marinheiro desviou um pouco o barco do seu caminho, para ver o navio mais de perto. Desmontou os mastros e tomou os remos.
O pequeno brigue tinha um aspecto lúgubre. Sua linha de flutuação estava bastante baixa: Tudo nele estava roto, pendido e nenhum barco se suspendia a seus flancos.
Era fácil verificar que se tratava de um transporte de madeira cuja equipagem o abandonara, por ter feito água em conseqüência de um choque.
Paddy passou rente ao navio, que flutuava tão tranqüilamente como se estivesse no porto de S. Francisco.
À sua sombra, a água parecia verde e viam-se ondular as algas que cresciam sobre o casco do navio. Sua pintura estava rachada e queimada como se o fogo a tivesse
lambido.
Algumas remadas os conduziram para debaixo da popa, ali estavam escritos, em caracteres apagados, o nome do navio e o porto ao qual pertencia:
SHENANDOAH MARTHA'S VINEYARD
Ali há letras disse Mestre Button mas eu não posso ler por falta de instrução.
Eu posso ler ofereceu-se Dick.
Eu também murmurou Emelina.
Dick soletrou: S-h-e-n-a-n-d-o-a-h.
Que quer dizer isso? indagou Paddy.
Não sei respondeu Dick, um tanto vexado.
Sim senhor! exclamou o marinheiro, sacudindo a cabeça, enquanto conduzia o barco a estibordo. Nas escolas, dizem que ensinam o alfabeto às crianças, queimam-lhes
as pestanas com as lições dos livros, e eis ali letras do tamanho da minha cabeça que eles não podem adivinhar o que querem dizer. E falam-me ainda no aprendizado
dos livros!
O brigue tinha porta-enxárcias antigos, largos como verdadeiras plataformas; e a sua linha de flutuação era tão baixa que aqueles não ficavam mais que um pé
acima do barco. Mestre Button ali o amarrou, subiu os porta-enxárcias e escalou a amurada; em seguida voltou para levar Dick, e os meninos esperavam, enquanto o
velho marinheiro fazia subir o barril, os biscoitos e as conservas para o convés do "Shenandoah".
Era um lugar próprio para encantar um garoto: todo o convés, a partir da boca do porão, estava carregado de madeiras. Por toda parte, sobre o tombadilho, jaziam
rolos de cordas e um alojamento ocupava quase toda a proa. Um delicioso cheiro de maresia, de madeira velha, de alcatrão, de mistério; brióis e outras cordoalhas
tombavam dos mastros, prontos para servirem de balanços.
Havia um sino suspenso diante do mastro da mezena, e Dick apressou-se em bater nele com uma barra de ferro que encontrara no convés. Mestre Button gritou-lhe
que parasse, o som do sino o incomodava, aquele ruído parecia um chamado; e um chamado, sobre um navio deserto, quem sabe lá o que poderia trazer? Dick largou o
ferro. Ele tomou a mão livre de Paddy e os três franquearam a porta do alojamento.
A peça possuía três janelas a estibordo, e o sol as atravessava com uma luz lutuosa; uma cadeira parecia que tinha sido afastada precipitadamente para longe
da mesa. Sobre esta, viam-se ainda os restos de uma refeição: um bule, duas taças, dois pratos; num dos pratos, um garfo, com um pedaço de carne putrefata, que certamente
alguém levava à boca quando ocorreu o acidente. Ao lado do bule, uma lata de leite condensado. Algum velho oficial misturava o leite a seu chá na hora do sinistro.
Jamais coisas mortas foram tão eloqüentes.
A cena reconstituía-se facilmente: o comandante havia provavelmente acabado o seu lanche e o imediato atacava o seu, quando foi descoberto que o navio estava
fazendo água, ou quando se produziu o abalroamento. Era evidente que, depois daquele abandono, nenhuma tempestade atingira o navio, pois isso teria perturbado a
ordem do mobiliário.
Mestre Button e Dick procediam à exploração, mas Emelina ficou fora. O encanto do velho navio a atraía tanto como a Dick, mas dominava-a uma impressão desconhecida
ao menino. Um navio desabitado sugere idéias estranhas. Emelina tinha medo de entrar naquele lúgubre alojamento e temia também ficar sozinha no convés; ela transigiu;
sentando-se, colocou o pequeno pacote ao lado, tirou às pressas a boneca de pano, mergulhada em seu bolso de cabeça para baixo, baixou-lhe a saia que subira até
a cabeça, apoiou-a contra o umbral da porta e recomendou-lhe que não tivesse medo.
Não havia grandes tesouros no alojamento: duas cabinas pequenas abriam-se ao fundo, constituíam sem dúvida o alojamento do capitão e do imediato. Lá dentro,
uma porção de velharias, roupas antigas, sapatos cambaios, um chapéu alto desse modelo que se encontrava nas ruas de Pernambuco, imensamente alto e largo, e estreitando-se
na parte inferior, um telescópio sem lente, um volume de Hoyt, um almanaque náutico, um grande pedaço de flanela listada, uma caixa de anzóis e, a um canto maravilhoso
achado! um rolo de uma espécie de corda negra, que parecia medir uma dezena de metros.
Fumo! Fumo! gritou Pat, apoderando-se da sua conquista.
Era o que chamam "rabicho". Vêem-se enormes rolos nos entrepostos das cidades marítimas. Um cachimbo cheio dessa droga faria vomitar um hipopótamo; entretanto,
os velhos marinheiros o fumam, mascam e acham excelente.
Nós carregaremos tudo isso para o convés e veremos o que se deve levar e o que se deve deixar, disse Mestre Button, apoderando-se em primeiro lugar do enorme
rolo de fumo.
Dick arrastava o chapéu.
Olha! gritou ele, assomando à porta olha o que eu achei!
Ele plantou sobre a sua cabeça o terrível monumento, que lhe entrou até os olhos.
Emelina deu um grito.
Tem um cheiro engraçado! continuou Dick, aplicando-o contra o nariz da menina. Cheira a escova de cabelo. Toma. Experimenta.
Emelina recuou e refugiou-se a um canto, onde ficou parada, sem dizer palavra. O medo sempre a emudecia (exceto quando provinha de um pesadelo ou de um choque
súbito). Aquele chapéu, cobrindo o rosto de Dick pela metade, fê-la perder a cabeça, por cúmulo, ele era negro, e ela detestava tudo o que fosse preto: os gatos
negros, os cavalos negros, sobretudo os cachorros negros. Um dia, nas ruas de Boston, ela encontrou um carro fúnebre; e, embora ignorasse o seu uso, teve uma crise
de nervos.
Nesse meio tempo, Mestre Button ia trazendo todos os objetos para o convés. Depois sentou-se perto do monte, em pleno sol, e acendeu o cachimbo. Ele não tinha
procurado água ou provisões. Estava satisfeito, de momento, com os tesouros que Deus lhe concedia; as necessidades materiais estavam esquecidas. Mas, se tivesse
procurado, não teria encontrado senão meio saco de batatas na cozinha, pois a despensa estava submersa e a água das cisternas cheirava mal.
Como Dick prometesse que não poria o chapéu na cabeça de Emelina, ela deixou o seu refúgio e sentaram-se os três em torno da pilha.
Eis um par de sapatos disse o velho marinheiro, levantando os sapatos velhos, para examiná-los com um ar entendido. Eles valem meio dólar, todos os dias
da semana, em qualquer porto do mundo. Passa-os para aí, Dick, toma também essas calças pela ponta e põe-nas ao sol.
As calças foram estendidas, examinadas, aprovadas e postas ao lado dos sapatos.
Eis um telescópio cego disse Mestre Button, tomando o instrumento quebrado e manobrando-o como um acordeão.
Coloca-o perto das calças, pode servir para alguma coisa.
Eis um livro.
Atirando ao menino o almanaque náutico:
Conta-me o que isso diz.
Dick estudou desesperadamente as páginas.
Não posso ler, são números.
Lança-o dentro d'água.
Dick obedeceu de boa vontade e eles retomaram o trabalho.
Paddy experimentou o grande chapéu, o que fez rir as crianças. Sobre a cabeça de seu velho amigo, ele cessou de amedrontar Emelina. Tinha ela dois modos de rir:
o sorriso angélico, acima citado, uma coisa rara; e quase tão raro era o riso que entremostrava os pequenos dentes brancos, enquanto cerrava as mãos, a esquerda
completamente fechada e a outra acima da primeira.
Paddy pôs o chapéu de lado a continuou suas pesquisas, revirando os bolsos das roupas sem nada encontrar dentro.
Depois de Mestre Button haver feito a escolha, eles lançaram o resto ao mar e guardaram os objetos preciosos na cabina do capitão.
Foi então que a idéia de que o navio pudesse ter comestíveis a bordo ocorreu ao espírito imaginativo de Mestre Button. E ele começou a procurar. A despensa não
era senão um tanque cheio de água do mar, como não era mergulhador, Paddy não pôde dizer se havia outra coisa lá dentro. No caldeirão da cozinha apodrecia um pedaço
de porco ou doutra carne. O depósito de provisões salgadas continha apenas cristais de sal. Toda a carne tinha sido retirada. Entretanto, as provisões e a água trazidas
no barco bastavam para uma dezena de dias e, até então, muitas coisas poderiam acontecer.
Mestre Button debruçou-se sobre o mar; o barco roçava no brigue como um patinho contra a mãe-pata, cujo porta-enxárcias podia representar a asa. Verificou se
a amarra estava bem atada. Persuadido de que tudo ia bem, subiu lentamente até a grande verga e observou o mar.
ao luar /9
Papai está demorando observou Dick, de repente.
Eles estavam sentados sobre as pilhas de madeira que, de cada lado da cozinha, atulhavam o convés do brigue. Era um poleiro ideal.
O sol deitava-se na direção da Austrália, sobre um mar que se assemelhava a um oceano de ouro em fusão. Uma estranha miragem fazia borbulhar a água como animada
por um calor intenso.
É verdade disse Mestre Button mas antes tarde do que nunca; não penses nele, isto não servirá para trazê-lo cá, olha ali o sol que vai mergulhar dentro
d'água, não digas uma palavra e verás como ele chia.
Silenciosos, mas abrindo os olhos e os ouvidos, eles viram o grande escudo ardente tocar as ondas que pareceram estremecer. Com suficiente imaginação, podia-se
ouvir o ferver da água. Tendo tocado o mar, o astro abaixou-se tão rapidamente como um homem apressado que desce uma escada. Desaparecido o sol, esparziu-se um crepúsculo
dourado e leve, uma luz lindíssima, mas excessivamente triste. Em seguida o Pacífico se tornou de um violeta sombrio, o ocidente escureceu como se tivessem baixado
uma cortina, e as estrelas iluminaram-se.
Senhor Button perguntou Emelina, voltada para o poente que há do outro lado?
O Oeste, a China, as índias e o resto.
Para onde foi o sol agora, Paddy?
Ele saiu em perseguição da lua, que trota o mais depressa que pode, ele corre sempre atrás dela e não pode nunca alcançá-la.
Que faria ele se a pegasse? perguntou Emelina.
Certamente que lhe havia de dar uma boa sova.
Por quê? indagou Dick, que estava disposto a fazer perguntas.
Porque ela prega peças às pessoas e as deita a perder, como aconteceu com aquele pobre Buck Mac Cann.
Quem é?
Era o idiota da aldeia em que eu vivia. Ele sempre queria a lua, embora já tivesse vinte anos e seis pés e quatro polegadas. Sua boca estava sempre aberta
como uma ratoeira quebrada. Quando fazia lua cheia, não havia meio de segurá-lo. Ele saía atrás dela e iam encontrá-lo, ao fim de um dia ou dois, perdido na montanha,
verde de fome e de frio, pois lá ele só se alimentava de ervas. De modo que era preciso pôr-lhe maneias...
Eu já vi um burro maneado! exclamou Dick.
Bem, tu viste o irmão gêmeo de Buck Mac Cann. Uma noite estava o meu irmão Tim sentado junto ao fogo, pronto para fumar o seu cachimbo e pensar em seus pecados,
quando chega Buck, aos saltos, com as suas maneias.
" Tim disse ele afinal peguei! " Que foi que tu pegaste? " A lua. " E onde está?
" Num balde perto do banhado disse o outro e direitinha! Não se estragou!
"Tim o seguiu e, naturalmente, perto do banhado, havia um balde cheio d'água, onde se refletia a lua.
" Eu a retirei do banhado explica Buck. Psiu... Não faças barulho... Eu vou escorrer a água devagarinho e nós a pegaremos no fundo, viva como uma truta.
"E então ele começa a esvaziar o balde com todo o cuidado. Depois olha para o fundo.
" Ela escapou-se, a desgraçada! disse ele.
" Experimenta ainda uma vez aconselha o meu irmão.
"Buck mergulhou de novo o balde e, naturalmente, quando a água sossegou, a lua lá estava outra vez.
" Muito bem disse meu irmão faz escorrer de novo a água, mas com cuidado, se não ela te prega outra partida.
" Um momento diz Buck eu tenho uma idéia. Ela não me escapará desta vez. Espera-me aqui.
"Então ele vai saltando até a casa de sua velha mãe, a um grito dali, e volta com uma peneira.
" Olha diz ele eu vou filtrar a água por aqui. Se ela se escapa do balde, fica presa na peneira.
"Ele põe-se a esvaziar o balde com tantas precauções como se fosse uma forma de creme. Uma vez vazio, ele espia, vira-o, revira-o, sacode-o.
" O diabo me carreguei diz ele ela fugiu outra vez.
"E vai ele e lança o balde no banhado, e a peneira também, no momento em que a velha mãe chegava apoiada no seu bastão.
" Onde está o meu balde? pergunta ela.
" No banhado diz Buck.
" E a minha peneira?
" Junto com o balde.
" Tu vais é ganhar uma boa sova disse ela. E o saiu correndo a bastonadas, aos gritos, e o encerrou no quarto a pão e água durante sete dias para tirar-lhe
a lua da cabeça. Trabalho perdido! Pois no mês seguinte ele recomeçava a mesma lida..."
Olhem! Lá está ela!
A lua, esplêndida, argentada, enorme, subia do oceano e a sua luz iluminava quase tanto como a do dia. As sombras das crianças e a sombra estranha de Mestre
Button, negras e duras como silhuetas, se projetaram sobre a parede da cabina.
Olha as nossas sombras! gritou Dick, agitando o seu chapéu de palha de abas largas.
Emelina, por sua vez, estendeu sua boneca, e Mestre Button levantou o seu cachimbo.
Agora venham!
E, pondo o cachimbo na boca, ele ergueu-se.
Depressa para a cama, já é tempo de estarem dormindo.
Dick gemia:
Eu não quero ir para a cama, eu não estou cansado. Paddy, deixa-me ficar ainda um pouco.
Nem um minuto mais replicou Mestre Button, com toda a decisão de uma ama nenhum minuto mais, depois que o meu cachimbo tiver terminado!
Enche outra vez implorou Dick.
Um gluglu do cachimbo anunciou a sua última tragada.
Emelina fungava, com o narizinho no ar. Sentada ao vento, fora do ar envenenado pelo fumo, o seu olfato muito sensível percebia um odor inexistente para os outros.
Que é que há, minha querida?
Eu estou sentindo um cheiro.
Que cheiro?
Um cheiro bom.
Com que se parece? perguntou Dick, aspirando fortemente. Eu não sinto nada.
Emelina refletiu um momento.
São flores disse ela.
A brisa, que tinha variado diversas vezes depois do meio-dia, trazia um leve cheiro, um aroma de baunilha e de cravo, tão vago, que só podia ser percebido por
um olfato extremamente sensível.
Flores! exclamou o velho marinheiro.
E batendo com o cachimbo no cano da bota para despejar a cinza:
É boa! Foste agora descobrir flores no meio do mar?! Estás sonhando! Vamos agora para a cama!
Enche de novo gemeu Dick, pensando no cachimbo.
Uma sova é que eu vou te dar, se dentro de dois segundos não te portares bem respondeu o marinheiro, arrancando-o das vigas, depois estendeu a mão para a
menina:
Vem depressa, Emelina.
E ele dirigiu-se para dentro, com uma pequena mãozinha em cada uma das suas.
Quando passaram pelo sino de bordo, Dick pegou o ferro que ficara ali por perto e vibrou-lhe um grande golpe. Era o último divertimento antes do sono.
No alojamento, Paddy havia limpado a mesa e escancarado as janelas para expulsar o ar impuro, e preparara leitos para si e para as crianças, estendendo os colchões
e cobertas do capitão e do imediato. Logo que os pequenos adormeceram, ele foi debruçar-se no parapeito a estibordo, pensando nos navios e muito pouco na mensagem
perfumada que a brisa lhe trazia: a mensagem recebida e transmitida por Emelina. Pôs-se então de costas para o mar, com os cotovelos fincados no parapeito e as mãos
no bolso. Ele não pensava mais: ruminava.
O fundo do caráter de Paddy era uma grande preguiça, mesclada a uma grande melancolia; no entanto, embora desajeitado, trabalhava a bordo tão rijamente como
qualquer outro; e, no que concerne à melancolia, era o animador do castelo de proa. Não obstante, nele coexistiam preguiça e melancolia, não esperando senão ocasião
de manifestar-se.
Como estivesse ali parado, com as mãos profundamente mergulhadas no bolso, à moda dos carregadores, a contar as tábuas do chão, que os raios da lua iluminavam,
pusera-se a rememorar os velhos tempos que lhe evocara a história de Mac Cann e, além dos mares salgados, ele podia ver o astro da noite a alumiar as montanhas de
Connemara, ele ouvia as gaivotas gritarem nas costas rumorosas onde cada vaga tem atrás de si mil quilômetros d'água.
De súbito, Mestre Button regressou das colinas de Connemara para se encontrar sobre o convés do "Shenandoah", e novamente os seus terrores o assaltaram. Ao fundo
do convés branco e deserto, atravessado pelas sombras dos mastaréus ainda de pé, ele distinguia a porta da cozinha. Imaginou que de repente saía de lá uma cabeça,
ou pior ainda, um fantasma! Regressou para o alojamento e, ao cabo de alguns minutos, roncava perto das crianças. Toda a noite o brigue foi embalado pelo Pacífico
e a brisa trouxe o perfume das flores.
a tragédia dos barcos /10
Quando o nevoeiro se dissipou depois da meia-noite, os náufragos da chalupa perceberam a grande canoa a meia milha a estibordo.
O senhor avista o pequeno barco? perguntou Lestrange ao capitão que, de pé, explorava com o olhar a superfície das águas.
Absolutamente! respondeu Le Farge. Maldito irlandês! Se não fosse ele, os barcos teriam tempo de receber provisões, e eu ignoro o que pudemos embarcar.
Jenkins, que tem você aí?
Dois sacos de pão e um barril d'água.
Um barril? replicou outra voz. Meio barril, queres tu dizer.
O despenseiro respondeu:
É verdade, ele não contém mais do que dois galões.
Meu Deus! gemeu Le Farge. Maldito irlandês! Isto representa duas taças pequenas para cada um. A canoa grande talvez esteja melhor apercebida. Abordem-na.
Ela vem vindo em nossa direção disse o mestre remeiro.
Capitão! indagou Lestrange. Tem certeza de que o barco não está em nenhuma parte à vista?
Sim.
Começava uma tragédia, que melhor seria calar do que narrá-la.
Quando as embarcações ficaram ao alcance das vozes:
Alô, da canoa!
Alô!
Que quantidade d'água tem aí?
Nenhuma.
Estas palavras correram sobre o mar plácido e leitoso. Ao ouvi-las, os marinheiros da chalupa deixaram de remar e podia-se distinguir, ao luar, as gotas d'água
tombarem dos remos como diamantes.
Olá, da canoa, parem de remar! ordenou o indivíduo que se achava à frente da chalupa.
Cala-te, marinheiro d'água doce! repreendeu Le Farge. Quem és tu para dar ordens?
Marinheiro d'água doce é você! retrucou o outro.
Rapazes, virem de bordo!
Os remadores de estibordo cessaram a marcha para à frente e o barco girou sobre si mesmo. Pusera o destino sobre a chalupa as mais duras cabeças do "Northumberland".
Eram a verdadeira ralé dos portos e, para saber até que ponto essa gente se apega à vida, é preciso ter estado em sua companhia sobre um barco perdido em alto-mar.
Le Farge não tinha mais autoridade sobre eles do que tu que estás lendo agora estas páginas.
Rapazes! Descansem os remos! ordenou o homem da proa. De pé, ele parecia um mau gênio que tivesse tomado momentaneamente a direção dos acontecimentos.
Esperem os companheiros, é melhor que eles tentem a sorte agora!
A canoa por sua vez cessou de remar, parando a pequena distância.
Que quantidade d'água tem aí? perguntou o imediato.
Não dá nem para uma pequena distribuição entre nós.
Le Farge quis levantar-se. Um golpe de remo o prostrou sem sentidos ao fundo da chalupa.
Dêem-nos um pouco d'água, por amor de Deus! insistiu o imediato. Não podemos mais.
Como se tivesse recebido uma ofensa, o marinheiro da frente vomitou uma torrente de injúrias.
Dêem-nos um pouco suplicou ainda o imediato ou eu juro que abordaremos a chalupa.
Mal as palavras foram ditas e os homens da canoa puseram a ameaça em execução. O conflito foi brevíssimo. A canoa estava muito sobrecarregada para lutar. Os
homens, a estibordo da chalupa, combatiam com seus remos, ao passo que os de bombordo mantinham a embarcação. A grande canoa afastou-se, metade da sua equipagem
estava ferida, e dois homens jaziam inanimados.
No dia seguinte, ao pôr-do-sol, a chalupa seguia à mercê das águas: a última gota d'água tinha sido distribuída oito horas antes. Tal um barco fantasma, a grande
canoa a obsedava, perseguia-a, para obter a água que ela não tinha. Devem-se ouvir, no inferno, súplicas daquele gênero. Os homens da chalupa, tristes, e sem palavras,
acabrunhados por uma espécie de remorso, eles próprios torturados pela sede, repousavam sobre os remos quando o outro barco se aproximava.
De tempos a tempos, os homens gritavam juntos: "Não temos água!". Mas os da canoa não acreditavam. Em vão se lhes mostrava o barril aberto e emborcado, para
provar-lhes que estava vazio. Os infelizes, tomados de delírio, tinham a idéia fixa de que seus camaradas lhes ocultavam uma água imaginária.
Quando o sol tocou o mar, Lestrange sacudiu o torpor que o amodorrava. Soerguendo-se, ele olhou por cima da borda. Viu a grande canoa vogando perto. Avermelhados
pelos últimos raios, os demônios que a guarneciam lhe dirigiram uma silenciosa súplica, mostrando-lhe as suas línguas negras.
Impossível descrever a noite seguinte. A sede não era nada em comparação com a tortura imposta à equipagem pelas vociferações que lhe chegavam a intervalos.
Quando enfim o "Arago", um baleeiro francês, os recolheu, os ocupantes da chalupa viviam ainda, mas três dentre eles estavam loucos. Quanto aos da grande canoa,
nenhum se salvou.
livro 1/segunda parte
a ilha /11
Meninos! chamou Paddy, enforquilhado sobre as barras em plena aurora.
Dick e Emelina, de pé sobre o convés, levantaram a cabeça para ele.
Há uma ilha lá defronte!
Hurra! aplaudiu Dick.
O menino não sabia senão teoricamente em que consistia uma ilha, mas sempre era algo de novo, e a voz de Paddy rejubilava.
Terra! Terra! exclamou ele, descendo para o convés. Venham comigo para a frente.
Ele trepou sobre as pilhas de madeiras, erguendo Emelina nos braços. De lá, pôde ela perceber, muito ao longe, uma vaga silhueta de cor indecisa, mas tirante
para o verde. Aquele ponto não estava absolutamente defronte mas a estibordo avante, ou, como teria ela dito mais simplesmente, à direita.
Depois de Dick ter olhado e manifestado o seu desapontamento por ver tão pouca coisa, Paddy começou seus preparativos de partida. Não foi senão nesse momento,
à vista da terra, que ele reconheceu até certo ponto o horror da sua posição atual. Enquanto mordiscava uma bolacha, tendo-as distribuído também ás crianças, com
um pouco de carne em conserva, para uma refeição ás pressas, ele andava rapidamente pelo convés, juntando os objetos e colocando-os no pequeno barco. Este, sob tal
carga, mergulhou alguns centímetros. Paddy naturalmente, não esqueceu o barril, nem os restos de bolacha e de conserva.
Carregado o barco, ele foi para a proa do "Shenandoah", certificar-se da exata posição da ilha. Ela se aproximara durante a última hora, estava também mais para
a direita, o que provava que uma corrente bastante rápida arrastava o brigue. O navio passaria além da ilha, deixando-a a duas ou três milhas a estibordo.
Era uma felicidade que Mestre Button tivesse o pequeno barco à sua disposição.
O mar a cerca disse Emelina que, a cavalo sobre os ombros de Paddy, segurava-se a ele, contemplando a ilha, cuja verdura era agora reconhecível. Um oásis
de sombra fresca no azul seráfico.
E nós vamos para lá, Paddy? interrogou Dick.
Sim, vamos. Chegaremos pelo meio-dia, talvez antes.
A brisa aumentava, soprando diretamente da ilha, como se esta quisesse afugentá-los.
Mas que brisa fresca e perfumada! Todas as plantas do trópico confundiam seus aromas.
Olhem murmurou Emelina, dilatando as suas pequenas narinas. Era isto que eu estava sentindo ontem, mas é mais forte agora.
A última longitude, levantada a bordo do "Northumberland", indicava que o navio jazia a sudeste das Marquesas. Aquela, evidentemente, era das mais belas e solitárias
dentre as pequenas ilhas que dormem nas paragens desse arquipélago.
À medida que eles olhavam, a ilha se projetava, cada vez maior, para a direita. Via-se que era montanhosa e de um verde nuançado, se bem que as árvores não fossem
ainda distintas. Parecia pousada sobre um pedestal de mármore branco formado pela espuma que se quebrava contra a barreira dos recifes. Dentro de uma hora as palmas
dos coqueiros seriam visíveis e o velho marinheiro julgou azado o momento para se transferirem para o pequeno barco.
Ele ergueu Emelina e seu pacote por cima do parapeito, colocando-a no porta-enxárcias. Em seguida foi a vez de Dick.
Um momento depois, de mastro erguido, o barco vogava suavemente, abandonando o "Shenandoah" à sua misteriosa viagem, ao capricho das correntes marinhas.
Mas tu não vais para a ilha, Paddy! gritou Dick, vendo que Mestre Button manobrava a bombordo.
Queres dar lições à tua avó? Como diabo queres tu que eu alcance a ilha, se fico morto "no olho do vento"?
Mas o vento tem olhos?
Paddy não respondeu. Seu espírito estava preocupado. E se a ilha fosse habitada? Tendo passado vários anos nos mares do sul, ele freqüentara os habitantes das
Marquesas e das Samoas, e deles gostava; aqui, porém, estava em terra desconhecida. Mas que adiantavam contrariedades? Devia escolher entre a ilha e o alto-mar.
Fazendo virar o barco, acendeu o cachimbo, enquanto, inclinado para trás, mantinha a cana do leme com o braço dobrado. Do alto do "Shenandoah", descobrira ele uma
abertura nos recifes e para lá dirigia o barco, para franqueá-los a remo.
À medida que se aproximavam, a brisa trazia um ruído flébil e sonoro, que parecia um rumor de sonho. Eram as ondas batendo nos recifes. Naquele local, o mar
se erguia com um ímpeto mais vivo.
Emelina, com o pacote sobre os joelhos, olhava, sem falar, o panorama que se desdobrava a seus olhos.
Apesar do sol radioso, apesar da verdura, era um espetáculo desolador.
Uma praia branca, aonde iam quebrar as vagas, enquanto as gaivotas revoluteavam, lançando gritos agudos, dominados pelo fragor da ressaca.
Súbito, desenhou-se o recorte dos recifes, deixando entrever além deles um lençol de água azul e tranqüila.
Mestre Button suspendeu o leme, desmontou o mastro e tomou os remos. À medida que eles se aproximavam, a ressaca se tornava mais furiosa, o mar mais ativo, vivo
e selvagem. A abertura se alargava.
Podia-se ver a água espumejar em torno das pontas de coral, porque a maré subia, inundando a laguna; ela carregou o barco e o impeliu mais rapidamente do que
o poderiam fazer os remos. As gaivotas gritavam em torno do barco. Dick gritava de admiração e Emelina fechava os olhos.
Então, como se uma porta se tivesse subitamente fechado, abrandou o ruído nos recifes, e o barco flutuou sobre águas serenas.
Nesse momento, a menina abriu os olhos e viu que se encontrava no país das fadas.
o lago azul/12
À direita e à esquerda desdobrava-se uma vasta extensão de água azul, quase tão calma como um lago; aqui, tinta de safira; além, de alga marinha; uma água tão
límpida que, a várias braças de profundidade, se distinguiam os galhos de coral, as evoluções dos peixes, as sombras desses peixes sobre os bancos de areia.
Diante deles, as águas claras lavavam uma praia de alabastros. Tendo o barqueiro repousado os remos, pássaros azuis se levantaram em bandos do cimo das árvores
e passaram silenciosos como uma nuvem de fumo, em demanda das frondes que ornavam uma paragem afastada.
Olhem! gritou Dick, achatando o nariz contra a borda do barco. Olhem os peixes!
Senhor Button perguntou Emelina onde estamos agora?
Palavra que não sei, mas poderíamos estar num lugar muito pior, parece-me respondeu o velho, passeando o olhar pela laguna azul e tranqüila e a margem encantada.
Nos dois sentidos da vasta praia que se desenrolava diante deles, os coqueiros desfilavam como dois regimentos, inclinando-se sobre o espelho das águas. Além,
ondulavam espessos bosques, onde as vinhas selvagens uniam os coqueiros às árvores de fruta-pão e de canela.
Sobre um banco de coral, como sentinela avançada, uma palmeira se curvava para as águas.
Mas a alma de tudo aquilo, o indescritível do quadro, era a luz.
Lá, sobre o mar, era o ofuscante páramo cruel, sem pouso, sem nada que fixasse o olhar, salvo infinitos espaços azulados. Ali, porém, o ar era um cristal através
do qual o espectador via o esplendor da ilha e dos recifes, o verde das palmeiras, o branco do coral, as contínuas evoluções das gaivotas, a laguna de cobalto, tudo
nitidamente delineado, aceso, colorido, arrogante e no entanto delicado, de uma beleza comovedora, pois ali residia o espírito da eterna manhã, da eterna felicidade,
da juventude eterna.
O barqueiro pôs-se a remar para a praia, nem Paddy nem as crianças perceberam, a certa distância atrás da cauda, uma coisa que durante um segundo insultou o
dia e desapareceu, uma coisa que se assemelhava a um pequeno triângulo de pano escuro, que turvou a água e se esvaiu, como um mau pensamento.
Não levaram muito tempo para atingir a margem.
Mestre Button mergulhou na água até os joelhos, ao passo que Dick se deixava escorregar por cima da proa.
Pega-o como eu gritou ele, segurando a platiborda da direita, enquanto Dick, imitador como um macaco, segurava a da esquerda. Vamos, em compasso!
E lá vai uma! E já se foi! Lá se foi uma! E lá vai outra!
E lá vão duas...
Basta. Está bastante alto.
Paddy carregou Emelina para a areia. De lá se podia admirar toda a beleza da laguna, aquele lago de água do mar, protegido para sempre das tempestades pela sua
muralha de coral.
Mestre Button correu os olhos desde as leves ondas que vinham morrer mansamente a seus pés, até a abertura nos rochedos, dominada pela palmeira solitária. Além
da abertura, percebia-se o mar palpitante. A laguna poderia ter três quartos de milha de largura. Colocando-se alguém perto da palmeira, erguendo um braço e chamando
a outra pessoa sobre a margem oposta, levava o som um tempo quase perceptível para atravessar a água. O sinal e o apelo coincidiam quase, mas não inteiramente.
Dick, entusiasmado com a sua nova residência, galopava como um cão ao sair da água. Mestre Button desembarcou a carga sobre a areia seca e branca. Sentada contra
o precioso pacote, Emelina observava as operações de seu amigo. Ela experimentava uma estranha sensação. Pelo que sabia, tudo aquilo devia constituir os acidentes
ordinários de uma viagem por mar.
A intenção de Paddy era não assustar as crianças, e o bom tempo o ajudava, mas no fundo do coração, a menina pressentia que as coisas não iam assim tão bem:
a partida precipitada do navio, o nevoeiro no qual seu tio desaparecera, isto e outras coincidências lhe revelavam um desastre, mas Emelina não dizia nada.
Ela não teve tempo de pensar muito sobre o caso. Dick corria para ela com um caranguejo vivo que tinha pegado e gritava-lhe que o ia fazer picá-la.
Leva-o suplicou Emelina, escondendo o rosto entre as mãos. Senhor Button! Senhor Button!
Deixa-a tranqüila, maroto, ou eu te vou às costelas!
Que é isso, um maroto, Paddy? perguntou Dick, com a respiração entrecortada pelo exercício.
Tu me matas com as tuas perguntas, eu estou que não posso mais e quero descansar os ossos.
Deitou-se à sombra, picou o fumo, encheu o cachimbo acendeu-o.
Emelina veio sentar-se junto dele, e Dick se estirou sobre a areia, ao lado de sua prima.
Mestre Button tirou o casaco e fez dele um travesseiro, que apoiou a um tronco. Tinha descoberto o paraíso dos fatigados. Com a sua prática dos mares do sul,
bastou-lhe um rápido olhar lançado à vegetação, para ver que havia ali com que alimentar a um esquadrão inteiro.
Uma depressão que se notava no meio do terreno era, sem dúvida, na estação chuvosa, o leito de um alegre arroio. Agora, o pequenino rio não era bastante forte
para alcançar a laguna, mas além, no bosque, devia estar escondida a fonte, ele a descobriria oportunamente, o conteúdo do barril bastava para uma semana; e, depois,
era só dar-se ao trabalho de trepar para conseguir o sumo fresco dos cocos.
Emelina admirava Paddy, enquanto ele fumava e descansava, depois lhe ocorreu uma grande idéia, retirou o pequeno xale que embrulhava o pacote, descobrindo assim
a caixa misteriosa.
Oh! A caixa! exclamou Mestre Button, interessado, apoiando-se sobre os cotovelos. Eu bem devia saber que tu não ias esquecê-la.
A Senhora James disse Emelina me fez prometer que não a abriria até chegar em terra, porque as coisas de dentro podiam perder-se.
Bem, tu estás em terra insinuou Dick. Abre, então.
É o que eu vou fazer.
Ela desatou cuidadosamente o barbante, recusando a faca de Paddy e, retirando o papel pardo, deixou a descoberto uma simples caixa de cartão; ergueu um pouco
a tampa com o polegar, lançou um olhar para dentro e tornou a fechá-la.
Abre! gritou Dick, impaciente de curiosidade.
Que há aí dentro, querida? perguntou o velho marinheiro, tão interessado como o menino.
Coisas respondeu Emelina.
Então, tomando uma grande resolução, ela retirou a tampa, expondo à luz um minúsculo serviço de chá, havia um bule com tampa, uma leiteira, pires, taças e seis
pratos microscópicos, ornados cada um com um malmequer.
É um serviço de chá disse Paddy.
Olha só os pratinhos, com flores!
Bah! exclamou o menino, desapontado eu pensava que fossem soldados.
Pois eu não quero saber de soldados retrucou Emelina, com um ar satisfeito.
Ela desenrolou um pedaço de papel de seda, tirando uma pinça para açúcar e seis colheres, e arranjou tudo sobre a areia.
Muito bem continuou Paddy a verdade é que estou com fome. Quando é que me vais convidar para tomar chá contigo?
Um dia disse Emelina.
E, tomando os objetos, colocou-os cuidadosamente na caixa.
O cachimbo de Mestre Button se apagara, ele o guardou no bolso.
Eu vou arranjar uma espécie de barraca disse ele, levantando-se para nos abrigar do sereno esta noite, mas é preciso primeiro explorar o mato, para ver
se descubro água. Deixa a caixa com as outras coisas aí, Emelina, não há ninguém que possa vir tirá-la.
Emelina depôs o seu tesouro sobre o monte de objetos que Paddy colocara à sombra dos coqueiros, tomou a mão do marinheiro, e os três náufragos entraram no bosque.
Julgar-se-ia penetrar num bosque de pinheiros. As grandes colunas simétricas pareciam matematicamente dispostas a igual distância umas das outras, qualquer caminho
que se tomasse, avistava-se uma alameda crepuscular, guarnecida de pilares. Erguendo a cabeça, percebia-se, a uma imensa altura, uma abóbada de um verde pálido,
constelada de pontos luminosos que ofuscavam, nos interstícios dos ramos que a brisa agitava.
Senhor Button murmurou Emelina a gente não vai se perder?
Perder-nos? Por certo que não. Nós vamos subir a colina, e tudo o que temos a fazer é descer quando quisermos dar volta. Cuidado com os cocos!
Um coco verde destacou-se do alto com estrépito, saltando sobre o solo. Paddy agarrou-o.
É um coco fresco disse ele. Servirá para o lanche. E guardou-o no bolso. Não era maior que uma laranja de Jaffa.
Não é um coco retificou Dick. Os cocos são marrons. Um dia, eu tinha cinco cêntimos, eu comprei um, quebrei e comi.
Quando o Dr. Sims fez o Dick ficar doente, ele disse que não compreendia como era que Dick podia suportar tudo o que engolia.
Venham depressa interrompeu Mestre Button e bico calado! Senão os Cluricaunos vêm aí atrás da gente.
Mas quem são os Cluricaunos?
Uns homens assinzinhos e que fazem sapatos para a gente boa.
Mas como é que eles fazem?
Psiu... Não falem mais.
Cuidado com a cabeça, Emelina, os galhos vão te arranhar o rosto.
Eles avançavam para o coração da mata. A penumbra ali era mais profunda. Toda a sorte de árvores emprestava suas folhagens para fazer sombra. O artu, com o seu
tronco delicado, a grande árvore do pão, alta como uma faia e sombria como uma caverna, o paletúvio e o eterno coqueiro, todos ali fraternizavam. Cordões de vinha
selvagem torcicolavam de uma árvore a outra como a serpente de Laocoonte, e coloriam a penumbra inúmeras espécies de flores, desde as orquídeas abrindo as suas asas
de borboleta, até os hibiscos vermelhos.
Súbito, Mestre Button estacou.
Psiu! fez ele.
No silêncio cheio de zumbidos e murmúrios, misturados à flébil canção dos recifes, ouvia-se um bisbilho d'água. Ele pôs-se à escuta, para saber donde vinha o
ruído e procurá-lo. Ao cabo de um instante, encontraram uma pequena clareira coberta de grama. Uma cascata, não mais larga do que a mão aberta, tombava de um rochedo
negro e polido como ébano. Este era cercado de fetos, e, de uma árvore em cima, pendiam campânulas em guirlandas, abrindo suas corolas no crepúsculo encantado. As
crianças extasiavam-se ante aquela beleza e Emelina correu para mergulhar as mãos na corrente.
Uma bananeira, carregada de frutos maduros e dourados, erguia-se à borda da pequena queda-d'água, suas imensas folhas mediam mais de seis pés.
Num ápice, Mestre Button, desembaraçando-se das botinas, escalou a rocha a pique com a agilidade de um gato.
Hurra! gritou Dick. Emelina, olha o Paddy!
Emelina ergueu a cabeça, mas apenas viu o balancear das folhas.
Cuidado aí embaixo! gritou Mestre Button.
Quase em seguida, um enorme cacho de bananas caiu ao pé das crianças. Dick pulou de alegria. Mas Emelina não manifestou nenhuma emoção. Ela acabava de fazer
uma descoberta.
a morte oculta sob o líquen /13
Senhor Button disse ela, quando este desceu olhe um barrilzinho ali.
Ela designou entre duas árvores um objeto coberto de limo, olhos menos agudos que pupilas de criança o teriam tomado por uma pedra redonda.
Oh! É mesmo um velho barril! exclamou Mestre Button, enxugando o suor que emperiava sua fronte. Um navio com certeza andou por aqui e o esqueceu, servirá
de assento durante a refeição.
Ele sentou-se em cima, distribuindo bananas às crianças, que se estenderam sobre a relva.
O barril tinha um ar tão miserável, que Mestre Button o julgou vazio. Vazio ou cheio, não importava, dava ele um banco excelente, enterrado um quarto na terra
mole e verde, era irremovível.
Se aqui vieram navios, aqui hão de voltar considerou Paddy.
E o navio de papai não vem?
Sim, decerto que vem. Agora corram por aí, divirtam-se e deixem-me fumar em paz o meu cachimbo. Depois, iremos para o alto da colina, para lançar um olhar
em redor.
As crianças puseram-se a correr entre as árvores, Dick desenrolava os fios das trepadeiras, Emelina colhia as flores ao seu alcance.
Quando Mestre Button terminou a sua cachimbada, chamou, e as pequenas vozes lhe fizeram eco. As crianças voltaram perseguindo-se. Emelina ria e entremostrava
os seus dentinhos brancos, com um grande ramalhete na mão. Dick não tinha flores, mas trazia qualquer coisa que se assemelhava a uma grande pedra limosa.
Olha como é engraçado: tem buracos.
Joga fora isso! exclamou Paddy, erguendo-se do barril como se lhe tivessem fincado um espinho. Onde o achaste? Por que o trazes? Dá-mo aqui.
Ele tomou o objeto entre as mãos. Era um crânio revestido de líquen, com um grande entalhe atrás, como se um machado ou qualquer outro instrumento cortante o
tivesse fendido. Paddy arremessou-o o mais longe possível para debaixo das árvores.
Que é aquilo? perguntou Dick, entre atônito e assustado da atitude de seu amigo.
Não é nada de bom.
Há mais outros dois que eu queria ir buscar.
Deixa-os em paz. Oh! Meu Deus! Cometeram horrores aqui há tempos. Que há, Emelina?
Emelina estendia-lhe o seu ramalhete para ele admirar, Paddy tomou uma grande flor vistosa e a pôs na botoeira. Depois subiu para a colina, resmungando ao longo
do caminho. As árvores se tornavam mais esparsas e os coqueiros mais raros.
O coqueiro ama o mar, e os que na ilha havia se inclinavam para ele.
Atravessaram um bosque de cana-de-açúcar, onde caniços de vinte pés de altura murmuravam ao vento, depois um aclive relvoso, privado de árvores e de moitas,
os elevou rapidamente uma centena de pés até o ponto culminante da ilha, era um grande rochedo, alto de uns vinte pés e fácil de escalar de seu cimo achatado, espaçoso
como uma mesa ordinária de sala de jantar, a vista se estendia sobre toda a ilha e sobre o mar.
Por sobre os trêmulos cimos das árvores, o olhar mergulhava até a laguna, e mais além, até os recifes, e até o infinito do Pacífico. Os corais circundavam a
ilha, aqui mais próximos, além mais afastados. Subia até eles a canção do mar, semelhante ao ruído que se ouve numa concha; mas, coisa estranha, embora a balada
da praia fosse contínua, dali ela parecia intermitente, dir-se-ia que os escolhos uns após outros se suicidavam, precipitando-se no mar.
Já vistes um campo de trigo agitado pelo vento; assim, do alto da colina, podia-se ver a passagem do zéfiro sobre a folhagem que o sol radioso iluminava. A brisa
vinha de sudoeste, embalando as bananeiras e os coqueiros, os artus e as árvores de fruta-pão. Tão lindo era o espetáculo do mar varrido pelo vento alegre, da laguna
cristalina, dos recifes escumosos, das árvores ondulantes, que se imaginava haver surpreendido a natureza num dia de gala, nalgum festival mais alegre que de ordinário.
Para aumentar essa impressão, passava de tempos a tempos, acima das árvores, umesfuziarde estrelas multicores; eram revoadas de pássaros; pássaros azuis, vermelhos,
cor de rola, brilhantes, mas sem voz.
Às vezes, as gaivotas se elevavam dos recifes, semelhantes à baforadas brancas de fumo.
A superfície da lagoa apresentava tonalidades de azul-celeste e de azul-marinho. As partes mais largas eram as mais pálidas, por menos profundas, e num que outro
lugar podiam-se distinguir os leves vestígios dos bancos de coral, que quase tocavam a tona d'água. A ilha media três milhas na sua maior diagonal. Nenhum sinal
de casa ou de habitação, nenhuma vela visível sobre a imensidade do Pacífico. Era estranho estar ali a fumar cachimbo, cercado pelas ervas, pelas folhas, pelas árvores,
por toda a beleza da natureza, e sentir a brisa soprar, e lembrar que se estava num deserto, num lugar aonde nenhuma mensagem chegava, salvo as que traziam o vento
ou as gaivotas.
No meio daquela solidão, o escaravelho era tão caprichosamente pintado, e a flor tão bem recortada, como se todos os príncipes da civilização ali estivessem
para admirar ou para fazer crítica. Em parte alguma se poderia apreciar tão bem como ali a esplêndida indiferença da natureza no tocante às grandes ocupações do
homem.
O velho marinheiro não pensava em nada semelhante, suas pupilas se contraíam sobre um ponto quase imperceptível a su-sudoeste. Sem dúvida era uma outra ilha,
quase arqueada pela convexidade do oceano. Tirante aquela pequena mancha, o mar era vazio e sereno.
Emelina não subira para o rochedo, andava por entre as urzes onde se ostentavam grandes cachos de bagas de arita, como para mostrar ao sol o que produzia aterra
em matéria de veneno. Ela colheu uma grande braçada.
Joga isso fora! exclamou Mestre Button. Não ponhas isso na boca. São frutos "de que a gente não acorda".
Ele desceu e arrancou-lhe os cachos negros, arremessando-os longe, depois examinou a pequena boca de Emelina, que aliás não continha senão uma linda língua,
recurvada como uma pétala de rosa e virgem de qualquer veneno. Ele ralhou um pouco com a menina, como teria feito uma governanta em tais circunstâncias, depois,
subindo sobre o rochedo, foi buscar a Dick e os conduziu a ambos para a praia.
ecos do país das fadas /14
Como sabe, Senhor Button, os gatos dormem observou Emelina, naquela tarde. Sentados sobre a areia, perto da tenda improvisada, as crianças tinham interrogado
o velho marinheiro, a propósito dos frutos "de que a gente não acorda".
E quem é que diz o contrário? retrucou Paddy.
Eu quero dizer tornou Emelina que eles vão dormir e não se acordam nunca mais. Foi o que fez o nosso. Tinha um peito branco, raias sobre as patas e anéis
em torno da cauda. Ele adormeceu no jardim, ficou lá estirado e mostrava os dentes; eu disse a Jane, e Dick saiu correndo para contar a meu tio. Eu fui tomar chá
em casa da Senhora Sims, a mulher do doutor, quando voltei, perguntei a Jane onde estava Pussy, ela me respondeu que ele estava morto e enterrado, mas que eu não
devia repetir isso a meu tio.
Eu me lembro interrompeu Dick era no dia em que eu fui ao circo e tu me fizeste prometer que eu não contaria a papai que o gato estava morto e enterrado,
mas eu vi o homem da Senhora James quando ele veio trabalhar no jardim e perguntei a ele para onde iam os gatos quando estavam mortos e enterrados e ele me respondeu
que iam para o inferno, pelo menos assim esperava, pois eles arrancavam sempre as suas flores. Então ele me proibiu de repetir que tinha dito aquilo. Então eu perguntei
o que ele me dava, se eu não repetisse, e ele me deu cinco cêntimos. Foi nesse dia que eu comprei um coco.
A barraca consistia em dois remos e um galho cortado por Mestre Button a um paletério anão, estava coberta com a vela trazida do brigue e erguia-se no centro
da praia, fora do alcance dos cocos que poderiam cair se o vento aumentasse durante a noite.
O sol tinha desaparecido e a lua ainda não subira. Apenas a luz sideral alumiava os náufragos.
Quais são as coisas que tu disseste que faziam sapatos, Paddy? inquiriu Dick.
Que coisas?
Tu disseste no mato que eu não devia falar, senão...
Oh! Sim! Os Cluricaunos, os homenzinhos que consertam os sapatos da gente boa. É isso que queres dizer?
Sim respondeu Dick, sem saber exatamente se era deles ou doutra coisa que se tratava, mas desejando mais amplas informações, que adivinhava curiosas.
E quem é essa gente boa?
Mas onde foste tu educado, menino, para não saberes que "gente boa" é o outro nome das fadas, salvo na sua presença?
Não há fadas, a Senhora Sims disse que não existem.
A Senhora James disse que há interrompeu Emelina. Ela disse que gosta de ver as crianças acreditarem nas fadas. Ela falava com uma outra senhora que tinha
uma pluma vermelha no chapéu e um regalo de peles. Elas tomavam chá e eu estava sentada no tapete. Ela dizia que o mundo se tornava muito... não sei o que, e a senhora
respondeu que era verdade... e perguntou à Senhora James se ela não tinha visto a Senhora Machini com o horrível chapéu que ela usava para o Dia de Ação de Graças.
Elas não disseram mais nada sobre as fadas, mas a Senhora James...
Que me acreditem ou não interrompeu por sua vez Paddy o fato é que existem mesmo, e talvez elas tenham saído do bosque atrás de nós e estejam a escutar-nos,
embora eu duvide que venham até a estas paragens. Mas no Connaught havia tanta fada como cerejas no mato. Agora, vocês podem me acreditar ou não, mas o meu velho
pai, que Deus haja!, voltava para casa uma noite antes do Natal, com uma garrafa de uísque numa das mãos e um ganso depenado e destripado na outra, e que ele tinha
tirado numa rifa, quando, ouvindo umas vozes a cantar, não mais forte que o trilar de uma abelha, imaginem o que ele viu? Em torno de uma grande pedra, lá estava
a "boa gente" a dançar de roda, de mãos dadas e batendo com os tacos. Os olhos deles brilhavam como vaga-lumes, e um indivíduo do tamanho do meu dedo estava sentado
sobre uma pedra e tocava berimbau. Então meu pai dá um grito, solta o ganso e dispara pra casa, saltando cercas e valos, pulando como um canguru e com a cara branca
que nem farinha. Quando ele entrou esbarrando na porta, nós estávamos todos em roda do fogo, queimando castanhas para ver quem se casava primeiro.
" Santa Mãe de Deus! Que foi que te aconteceu? disse a minha mãe.
" Eu vi a 'boa gente' disse ele lá no campo, e eles ficaram com o ganso: mas, louvado seja Deus! eu salvei a garrafa. Tira a rolha, mulher, e dá-me um pouco,
pois eu estou com o coração atravessado na garganta, e a língua seca, pior que forno!
" E quando nós fomos desarrolhar a garrafa, não havia nada dentro, e quando, no outro dia de manhã, fomos procurar o ganso, ele tinha se sumido. Mas lá estava
a pedra e tinha em cima a marca dos sapatos do sujeitinho que tocava berimbau. E quem pode duvidar das fadas e dos gênios, depois disso?"
As crianças ficaram um momento silenciosas, depois Dick pediu:
Fala-nos dos Cluricaunos e conta-nos como é que eles fazem os sapatos.
Quando eu te falo dos Cluricaunos, é a pura verdade que te digo, e de acordo com a minha própria experiência, pois eu falei com um homem que teve um na mão.
Era o irmão da minha mãe e se chamava Kan-Coyan que Deus haja! Kan tinha seis pés e duas polegadas, e uma cara comprida e pálida. Sua cabeça tinha sido quebrada
numa briga qualquer, antes de eu nascer, e os doutores a tinham remendado com uma moeda de cinco xelins.
Dick arriscou uma pergunta a propósito do processo de remendar cabeças com cinco xelins; mas Mestre Button não lhe deu resposta.
Ele já era muito ruim para ver fadas antes de lhe remendarem a cabeça, mas depois ficou pior ainda. Eu era um pedaço de gente naquela época, mas os meus cabelos
ficaram quase brancos com as histórias que ele me contava a propósito da "boa gente" e das suas ações.
Uma noite, eles o transformaram em cavalo e o fizeram percorrer a galope a metade da região, com um homem sobre o lombo e outro correndo atrás, a fincar-lhe
espinhos debaixo do rabo para fazê-lo escoicear. Uma outra noite, ele se virou em burro, atrelado a uma pequena carroça, e davam-lhe lacaços na barriga e o faziam
carregar pedras. Pouco depois, ele foi mudado em ganso, e gingava, e gritava, de pescoço estendido, enquanto uma velha fada o perseguia, com uma faca na mão. E tanto
o atormentaram, que ele começou a beber para esquecer. Mas, cá entre nós, eu acho que ele não precisava que o atormentassem para isso. E quando o dinheiro acabou,
sabem o que ele fez? Arrancou a moeda de cinco xelins com que lhe tinham tapado o cocuruto da cabeça e trocou-a por uma garrafa de uísque. Foi o seu fim.
Mestre Button parou para acender o cachimbo, e o silêncio retombou.
A lua se levantara, a melodia da ressaca enchia a noite. A vasta laguna palpitava, acolhendo a maré montante. Assim entrevista à claridade da lua ou das estrelas,
parecia duas vezes maior que em pleno dia. De tempos a tempos, o mergulho de um grande peixe turbava por um segundo o silêncio e produzia um leve borbulhar na água
plácida. Na água se passavam dramas noturnos, invisíveis para os espectadores da margem. O bosque estava, no entanto, cheio de luz. Uma floresta dos trópicos, sob
uma lua dos trópicos, é tão verde como uma caverna do oceano. Poder-se-iam contar os ramos e as flores, as orquídeas e os troncos de árvores, iluminados como em
pleno dia.
Mestre Button tirou uma longa corda do bolso.
Está na hora de deitar disse ele e eu vou amarrar Emelina, para impedi-la de passear durante o sono e sair vagabundeando pelo mato.
Eu não quero ser amarrada suplicou Emelina.
É para teu bem que eu faço isso retrucou Mestre Button, amarrando a corda em torno da cintura da menina.
Agora, vem disse ele.
Ele a conduziu, como a um cãozinho acorrentado, até a tenda e fixou a outra extremidade da corda no remo que sustentava o seu abrigo.
Agora, se tu te levantares e saíres a caminhar de noite, a tenda cairá sobre nós.
O que não deixou de suceder as primeiras horas da madrugada.
as lindas imagens do azul/15
Eu não quero as minhas calças velhas! Eu não quero as minhas calças velhas!
Dick saiu a correr quase nu sobre a areia. E Mestre Button atrás, com umas pequenas calças na mão. Assim um caranguejo teria tentado perseguir um antílope. Já
fazia quinze dias que estavam na ilha, e Dick tinha descoberto a maior alegria da vida: andar nu! Andar nu e debater-se na água da laguna! Andar nu e secar ao sol!
Não ter nenhuma vestimenta para incomodar! Despojar-se da civilização sob a forma de calças, sapatos, casaco e chapéu. Andar nu pela praia, exposto ao vento, ao
sol, ao mar!
No dia seguinte ao da sua chegada, a primeira ação de Mestre Button foi banhar as crianças. Dick resistira a princípio, e Emelina, que raramente chorava, pusera-se
a soluçar sob a sua pequena camisa. Mas a teimosia era uma das qualidades de Mestre Button.
Se a grande dificuldade foi a princípio obrigá-los a entrar na água, agora era fazê-los sair. Desnuda como a estrela da manhã, Emelina, sentada à luz do sol
nascente, observava a ginástica de Dick na praia.
A laguna oferecia mais atrações às crianças do que a terra firme. Os matos cheios de bananas maduras, prontas para serem colhidas e devoradas, as areias onde
passeavam os lagartos que, com um pouco de precaução, se podiam agarrar pela cauda, uma colina donde se podia, para usar da expressão de Paddy "avistar o lombo do
outro lado"! Tudo isso era decerto muito lindo, mas nada valia em comparação com a laguna.
Todo um mundo se agitava nos fundos de areia e entre os galhos de coral; havia esses estranhos crustáceos, a que chamam "soldados", que, depois de terem despojado
certos moluscos de suas conchas, com elas se paramentavam cinicamente; anêmonas-do-mar, grandes como rosas, flores que se fechavam dolorosamente ao serem tocadas,
extraordinários moluscos que marchavam a tatear, acotovelando os caranguejos, aterrorizando os búzios, senhores do fundo do mar, e que, no entanto, se se lhes tocava
com uma pedra atada a um fio, tombavam achatados, ficavam sem movimento algum e pareciam mortos. Havia nas profundezas da laguna toda a gama dos sentimentos humanos,
desde a comédia até a tragédia.
Certas bacias de rocha, na Inglaterra, encerram maravilhas, mas imaginem as daquele vasto aquário, medindo nove milhas de perímetro e variando de um terço a
meia milha de largura, formigante da vida dos trópicos, onde passavam cardumes de peixes coloridos, onde o radioso albícora deslizava como um fogo-fátuo, onde a
sombra do barco se projetava tão nitidamente como se a água fosse ar, onde o mar, protegido pelos recifes, contava seus sonhos como uma criança.
Paddy Button, como incorrigível preguiçoso que era, não seguia nunca a margem da laguna além de meia milha de cada lado da praia.
Ele trazia a sua pesca para a praia e, munido do isqueiro e de um pouco de lenha seca, acendia o fogo. As crianças ajudavam-no a cozinhar os peixes, os frutos
da árvore do pão e as raízes de taro.
Eles ergueram a tenda entre as árvores, à orla da mata, acimentaram-na e tornaram-na mais confortável, graças à vela do barco.
Entre essas ocupações, essas surpresas e esses prazeres, os pequenos perderam toda a noção da fuga do tempo; raramente falavam de Lestrange. Depois, não pronunciavam
mais seu nome... As crianças esquecem...
livro 1 /terceira parte
a poesia das lições/16
Para esquecer a fuga dos dias, é preciso viver-se ao ar livre, num clima quente, vestido o mais sumariamente possível e obrigado a procurar e preparar o próprio
alimento. Depois de certo lapso de tempo, se não se está especialmente ligado à civilização, a natureza se nos mostra tão clemente como para os selvagens. Reconhecer-se-á
a possibilidade de ser feliz sem livros, jornais, cartas ou faturas, compreender-se-á a parte que o sono tem na existência.
Ao fim de um mês, Dick, cheio de seiva e de atividade, ajudava Mestre Button a arrancar raízes de taro, ou em qualquer outro mister. Um minuto depois, deitado
em arco, ele dormia como um cão. O mesmo acontecia a Emelina; a intervalos de sono prolongados, sucedia-se um súbito despertar num mundo de ar puro e de luz ofuscante
que a cercava da alegria das cores.
A natureza abriu os braços àquelas crianças. Era como se ela quisesse tentar uma experiência, dizendo: "Deixai no meu regaço esses rebentos da civilização e
vereis como eles se expandem e o que sucederá". Tal como Emelina tinha trazido a sua caixa, Dick conservava preciosamente um saquinho que tilintava quando o sacudiam
e que continha bolinhas de gude: umas pequenas, de mármore verde-oliva; outras médias, irisadas; outras de cristal, com corações esplendidamente coloridos; e uma
velha, enorme, muito grande para servir de brinquedo, mas digna de respeito, uma deusa-bola.
Naturalmente, não se pode jogar bolita a bordo de um navio, mas pode-se brincar com elas, e elas foram uma grande consolação para Dick durante a viagem. Ele
as conhecia pessoalmente, fazia-as rolarem sobre a coberta de seu leito, e passava-as em revista quase todos os dias, enquanto Emelina as olhava.
Um dia, Mestre Button viu as crianças ajoelhadas uma defronte à outra, num trecho de areia dura. Aproximou-se para ver o que faziam: jogavam bolita. Ele ficou
com as mãos no bolso e o cachimbo à boca, a observar os golpes, contente com a alegria das crianças. Pôs-se logo de quatro pés, para tomar parte no jogo; Emelina,
desajeitada, sem entusiasmo, desistiu em seu favor.
Depois disso, não era raro encontrá-los divertindo-se juntos; o velho marinheiro de cócoras, visando, com um olho fechado, uma bolinha e com outra sobre a unha
de seu polegar. Dick e Emelina, de olho alerta, verificavam se ele não fazia alguma trapaça. Suas vozes agudas despertavam ecos entre os coqueiros, assim como os
gritos repetidos de: "Joga com os polegares, Paddy, joga com os polegares!".
Ele se imiscuía em todos os seus brinquedos, como se fosse também uma criança.
Em grandes e raras ocasiões, Emelina abria a sua preciosa caixa, dispunha o seu conteúdo sobre o chão e oferecia chá às visitas. Mestre Button, segundo o caso,
era convidado ou fazia as honras.
Vosso chá está do vosso gosto, Medéme? informava-se ele.
Emelina, fazendo trejeitos com os lábios, respondia invariavelmente: "Eu me servirei de um outro tablete de açúcar. Senhor Button".
Paddy retrucava: "Tomai uma dúzia, a vosso gosto, Medéme, e uma taça à vossa vontade".
Em seguida, Emelina lavava os pequenos objetos, tornava-os a colocar na caixa. E eles perdiam as maneiras mundanas, tornando-se perfeitamente naturais.
Paddy, tu nunca viste o teu nome? perguntou Dick uma manhã.
Vi o quê?
O teu nome.
Ah! Lá vem ele com as perguntas! Como diabo poderia eu ver o meu nome?
Espera, que te mostrarei.
Dick foi procurar uma vara e, sobre a areia, de um branco brilhante como sal, desafiando o sol e a ortografia, apareceram estas letras desiguais:
Sim senhor! Podes dizer que és um rapazinho aproveitável! disse Mestre Button, apoiando-se contra um coqueiro e admirando a obra-prima de Dick. É o meu
nome, não é? Quais são as letras que tem dentro?
Dick enumerou-as.
Eu te ensinarei a escrever, Paddy. Não tens vontade de escrever teu nome?
Eu? Não replicou Mestre Button, não aspirando a outra coisa senão fumar em paz o seu cachimbo. O meu nome não me serve para nada.
Mas Dick, com a infatigável tenacidade da infância, não se desencorajava assim tão facilmente, e o infeliz Paddy, malgrado seu, teve de ir para a aula.
Em breve pôde ele desenhar sobre a areia caracteres que se assemelhavam vagamente aos impressos mais acima mas não sem relutância.
Dick e Emelina, imóveis de cada lado, retinham a respiração, temendo um erro.
E que mais? perguntou o escriba, extenuado, transpirando por todos os poros que mais? Despacha-te, porque vou me derreter.
Oh! Mas tu fazes o "N" ao contrário. Isto! Agora está bem.
Hurra! Hurra! gritava o aluno, sacudindo o velho chapéu acima do seu nome.
E o eco das palmeiras repetia "hurra!", enquanto os hi! hi! longínquos das gaivotas ressoavam sobre a laguna azul, como se elas tivessem tomado conhecimento
do fato e o aplaudissem. O gosto das lições vem com a continuação.
O exercício mental mais agradável para as crianças consiste em ensinar as pessoas mais velhas. A própria Emelina o experimentava. Um dia, ela inaugurou timidamente
o curso de geografia, pondo a sua mãozinha na mão rugosa de seu amigo:
Senhor Button!
Que há, querida?
Eu sei geografia.
E que vem a ser isso?
Emelina ficou um momento atrapalhada.
É onde estão os lugares disse ela.
Que lugares?
Todas as espécies de lugares. Senhor Button...
E então?
Será que o senhor não quer aprender geografia?
Eu não desejo aprender disse ele precipitadamente a cabeça me anda à roda quando ouço as coisas que vêm nos livros.
Paddy! chamou Dick, que, naquele dia, estava disposto a desenhar. Olha aqui!
Ele traçou sobre a areia o objeto seguinte:
É um elefante disse ele, com a voz um tanto insegura.
Mestre Button emitiu um vago grunhido e a sua falta de entusiasmo desapontou a Dick, que, lentamente e com pesar, apagou o elefante, enquanto Emelina olhava
abatida. Depois, de súbito, a fisionomia da menina se transfigurou, o sorriso seráfico iluminou-a, ocorrera-lhe uma idéia luminosa: " Dick disse ela mostra
o Henrique VIII".
Dick também rejubilou. Alisou a areia e eis o que saiu:
Isto ainda não é Henrique VIII, mas vai ser daqui a pouco. Papai me ensinou como é que se faz. Isto não é nada até a gente botar um chapéu em cima.
Põe-lhe o chapéu disse Emelina, olhando alternativamente para a imagem sobre a areia e para o rosto de Mestre Button, espiando o sorriso alegre com o qual
o velho marinheiro acolheria decerto o grande rei, quando este surgisse em toda sua glória.
Então Dick, com um só traço, pôs o chapéu no soberano.
E nenhum retrato poderia parecer-se mais com essa Majestade que tiranizou os monges, mas Mestre Button ficou insensível.
Eu o fiz para a Senhora Sims exclamou Dick, ressentido e ela disse que era exatamente ele!
Talvez o chapéu não esteja bastante grande insinuou Emelina, inclinando a cabeça de um lado e de outro, para examinar o desenho, que ela achava bom, mas
ao qual, todavia, devia faltar alguma coisa, visto que Mestre Button não o tinha aprovado.
Mas qual é o verdadeiro artista que não passa por transes análogos ante o silêncio de um crítico?
Paddy sacudiu a cinza do cachimbo, levantou-se e a classe seguiu toda para a beira da laguna, abandonando Henrique VIII e seu chapéu à mercê do vento.
Mestre Button continuou suas lições por hábito e as crianças supriam sua ciência com pequenas invenções que eram talvez mais úteis que o saber, naquela esplêndida
poesia das palmeiras e do céu.
Os dias tornaram-se semanas e as semanas meses sem que a silhueta de um navio apontasse no horizonte, o que pouco preocupava a Mestre Button, e muito menos às
crianças, muito ocupadas e divertidas para se atormentarem.
A estação das chuvas chegou rapidamente para eles.
Depois das tempestades, o velho marinheiro anunciou que construiria uma casa de bambus antes que chegassem as próximas chuvas, mas que talvez nessa época eles
já tivessem abandonado a ilha.
Entretanto acrescentou ele eu vou desenhar o modelo para vocês verem.
E esta obra artística saiu do seu cérebro:
Tendo assim traçado o plano de sua futura residência, apoiou-se contra uma árvore e acendeu o seu sempiterno cachimbo. Entretanto, ele não contara com Dick.
O garoto não sentia o mínimo desejo de habitar uma casa, mas tinha uma impaciente vontade de ver construir uma e ajudar nesse trabalho. A habilidade é uma das bases
do caráter americano.
Mas como é que tu vais impedir de escorregarem? perguntou ele, depois de Paddy haver explicado o seu método.
Que é que escorrega?
Os bambus.
Os bambus? Mas depois de arranjá-los em cruz, atravessa-se a cruz com um prego, e ata-se. Pronto!
E tu tens pregos, Paddy?
Não, não tenho.
Então, como vai ser?
Não me faças mais perguntas, agora eu quero fumar o meu cachimbo.
Mas ele próprio tinha arranjado umas botas difíceis de descalçar. De manhã, de tarde, à noite, era aquilo:
Paddy, quando é que vais começar a casa?
Ou então:
Paddy, parece que arranjei um meio para prender os bambus.
Até que enfim, um dia, de desespero, Mestre Button começou a sua cabana, como um castor. Houve um grande massacre de caniços no mato, depois de terem cortado
em quantidade suficiente, Mestre Button fez greve durante três dias. E assim ficaria indefinidamente, se não tivesse encontrado um enérgico contramestre.
O infatigável Dick, jovem e ativo, sem preguiça original, sem velhos ossos a repousar, sem cachimbo a fumar, o apuava como um marimbondo, era em vão que ele
procurava distraí-lo com histórias de fadas e de Cluricaunos. Dick queria a todo custo construir uma casa. Mestre Button pouco se importava com isso, ele queria
era descansar. Era-lhe igual pescar ou trepar num coqueiro, operações que executava com igual maestria, passando uma corda de nós em torno de si e da árvore e servindo-se
desta como dum suporte durante a ascensão. Mas construir uma cabana era uma obra monótona. Ele objetou que não tinha pregos.
Dick lhe mostrou que bastava fazer um entalhe nas canas para sustê-las.
De fato, tu és um rapaz habilidoso! disse Paddy.
Depois Mestre Button observou que não tinham cordas e disse que no dia seguinte ou no outro pensaria na maneira de dispensá-las. Mas Dick provou que a fibra
parda com que a natureza cobre o tronco dos coqueiros substituiria a corda se a cortassem em filamentos. Então Paddy renunciou à luta e puseram-se a trabalhar juntos
durante uns quinze dias.
Ao fim desse tempo, uma espécie de cabana primitiva se elevava na orla da mata. Além, sobre os recifes até os quais eles iam muitas vezes em canoa, a maré baixa
deixava grandes charcos palpitantes de peixes. Paddy lamentou não ter um arpão para caçar alguns, como ele tinha visto fazerem os naturais do Taiti.
Dick indagou da forma do referido arpão, e no dia seguinte trazia uma vara de dez pés de comprimento, aguçada na ponta à maneira de uma pena de pato.
Que queres fazer com isso? disse Mestre Button. Poderás fincá-lo num peixe, mas ele escapará em dois tempos; é a barba que o prende.
No dia seguinte, o engenhoso menino afilou a vara a mais ou menos três pés da ponta e afiou-a de um lado o suficiente para arpoar um pequeno peixe que se encontrava
naquela tarde ao fundo de uma vasa que o sol poente iluminava.
Certa manhã, depois das contínuas chuvas, Dick notou que não havia mais batatas.
Nós as comemos todas, há meses disse Paddy.
Como nascem as batatas? indagou Dick.
Como nascem as batatas? Mas nascem na terra. Como queres tu que elas nasçam? Cortam-se em pedacinhos, de modo que haja um olho por pedaço, depois põem-se os
pedaços na terra; os olhos grelam, surgem brotos verdes, e então seis meses depois a gente arranca e pode encontrar um alqueire de batatas debaixo da terra, umas
do tamanho de cabeças, outras pequenas; tal qual uma família de irmãos, umas maiores, outras menores. Mas estão na terra e só o que tens a fazer é tomar a enxada
e tirar que dê para uma marmita, como eu tantas vezes fiz, antigamente.
E por que não fizemos isso?
Fizemos o quê?
Por que não plantamos algumas batatas?
E onde poderíamos encontrar uma pá para plantá-las?
Acho que podíamos fabricar uma. Uma vez eu fiz uma, em casa, com uma tábua velha, papai me ajudou.
Bem. Então, some-te, e vai fazer uma pá, agora tornou Mestre Button, que desejava ficar em paz. Você dois poderão cavar na areia.
Emelina, sentada perto, confeccionava, com uma liana, uma guirlanda de flores magníficas. Meses de sol e de ozônio tinham-na mudado consideravelmente: ela estava
morena como uma cigana, toda constelada de sardas; não muito maior, mas duas vezes mais gorda. Seus olhos perdiam a expressão longínqua com que pareciam contemplar
o futuro e a imensidade, não como abstrações, mas com imagens concretas; e ela não era mais sonâmbula. O choque da tenda, caindo-lhe em cima na primeira noite a
haviam curado, bem como suas novas condições de existência, os banhos de mar e a vida ao ar livre são os melhores calmantes.
Dick também se havia transformado durante aqueles meses de meia selvageria, tinha crescido duas polegadas desde o dia em que ali desembarcaram. Bronzeado e sardento,
parecia ter doze anos e prometia tornar-se, senão um homem belo, pelo menos um belo homem, são e alegre, vigoroso e ousado.
A questão das roupas começava a preocupar o velho marinheiro. O clima por si mesmo servia de indumentária. Ficava-se muito mais à vontade sem nada por cima.
Naturalmente, havia mudanças de tempo, mas eram passageiras. Um verão sem fim, interrompido por chuvas torrenciais e, excepcionalmente, uma tempestade. Apesar disso,
pensava ele, as crianças não deviam andar nuas.
Tomou um pedaço de flanela listada e pôs-se a fazer uma saia para a menina.
Era divertido vê-lo assentado na areia, Emelina de pé diante dele, experimentando a veste que lhe cingia os rins, e ele com a boca cheia de alfinetes e o mais
que era necessário ao lado.
Vira um pouco a bombordo. Isto! Fica quieta. Onde está a tesoura? Dick, segura esta guita, enquanto eu dou um ponto atrás. Cai bem? Estás à vontade? Levanta
o pé. Vamos ver se tapa os joelhos. Agora, despe-a, e deixa-me costurar as amarras.
Aquela saia era inspirada numa vela, pois tinha duas ordens de garcetas, disposição engenhosa que permitia pô-la nos rizes quando a menina quisesse patinhar
n'água ou correr contra o vento.
o tonel do diabo / 17
Mais ou menos uma semana após o dia em que o velho marinheiro, para empregar seus próprios termos, tinha "envergado" uma saia em Emelina, Dick, descendo do morro,
atravessou correndo o mato e as areias.
Paddy! gritou ele para o marinheiro, que prendia um anzol a uma linha aí vem um navio!
Mestre Button não tardou em alcançar o alto do morro; de fato, um navio dirigia-se diretamente para a ilha.
A nau tinha sua aparelhagem, suas canoas, seu saco de calafetagem, estava perfeitamente apetrechada e tudo nela revelava um baleeiro. Era um navio, sem dúvida,
mas Paddy teria de melhor vontade trepado num barco dirigido por Lúcifer, do que num baleeiro dos mares do sul. Ele ocultou as crianças debaixo de uma bananeira,
proibindo-lhes que se movessem até a sua volta, porque era, lhes disse, o navio do Diabo em pessoa e, se os homens de bordo os pegassem, certamente os esfolariam
vivos.
Em seguida foi até a praia, juntou tudo o que havia na cabana, bem como as provisões de sapatos velhos e roupas, e colocou tudo no barco.
Teria destruído a casa, se pudesse, mas não havia tempo para isso. Fez a canoa descer uma centena de metros, no braço esquerdo da laguna, amarrando-a a um paletúvio,
cujos galhos roçavam a água. Em seguida voltou, atravessou o bosque e pôs-se a olhar para a laguna, para ver o que sucederia.
O vento soprava na direção do canal e o velho baleeiro chegou, lutando contra a maré com a sua grossa proa. Não havia piloto, e ele entrou como se conhecesse
perfeitamente o caminho; possivelmente sim, pois todos esses baleeiros sabem de cor os menores recantos do Pacífico. A âncora tombou, fazendo saltar leques de gotas
e o navio, virando, ficou a flutuar sobre o espelho azul. A única palmeira do recife fazia um gracioso fundo ao quadro. Sem esperar que as canoas fossem baixadas,
Mestre Button voltou para junto das crianças e, aquela noite, os três acamparam no mato.
Ao despontar da aurora, o baleeiro já tinha partido, deixando, como lembranças da sua passagem, pegadas na areia, uma garrafa vazia, a metade de um jornal velho
e a destruição da cabana!
O velho marinheiro amaldiçoou-o, a ele e à sua equipagem, pois o incidente trouxera um novo exercício para a sua preguiçosa vida. Agora, diariamente, ao meio-dia,
ele escalava a colina para ver se avistava baleeiros. Esses navios enchiam as suas noites de pesadelos, embora eu duvide que ele avistasse com mais alegria um vapor
da Mala Real inglesa. Ele estava perfeitamente satisfeito com a sua sorte. Depois de longos anos sobre as águas, a ilha era um paraíso. Tinha fumo por tempo infinito,
as crianças por companheiros e víveres ao alcance da mão. E seria completamente feliz se a natureza tivesse provido a ilha de uma taverna.
Todavia, os espíritos que presidem à alegria e á boa vida, descobrindo esse erro da natureza, não deveriam tardar em retificá-lo, como em seguida se verá.
A demolição da casa pouco importava; o pior foi o desaparecimento da caixa de Emelina. Procurou-se o objeto por toda parte, mas em vão. Na sua precipitação em
tudo meter no barco, Mestre Button devia tê-la esquecido; em todo caso, não foi mais vista. Era provável que um dos marinheiros a tivesse encontrado e levado.
Durante uma semana Emelina ficou muito aborrecida. Ela amava apaixonadamente as coisas coloridas, as flores sobretudo; costumava trançá-las em lindas coroas
que punha sobre a sua cabeça, ou na de seus companheiros. Desenvolvia-se nela o instinto da modista e da florista; era, sem dúvida, um instinto bem feminino, pois
Dick não fazia nada semelhante. Certa manhã, estando ela sentada perto do velho marinheiro, entretida a enfiar conchinhas, chegou Dick a correr. Ele saía do mato
e parecia procurar qualquer coisa; descobrindo o que desejava, uma grande concha, partiu em seguida.
Seu vestuário compunha-se de um pedaço de fibra de coqueiro, amarrada em torno dos rins. Por que o trazia ele? Ninguém o sabia, pois andava a correr nu a maior
parte do tempo.
Encontrei uma coisa, Paddy! gritou ele, desaparecendo entre as árvores.
Que foi que tu encontraste? indagou Emelina, num tom agudo, que trata o seu interesse.
Uma coisa engraçada respondeu sua voz no mato.
Pouco depois voltou, mas desta vez caminhava lentamente, carregando a concha como se ela contivesse um líquido precioso que temia derramar.
Paddy, eu virei o barril velho, tinha uma rolha, eu destapei, e o barril está cheio de uma droga que cheira muito mal. Eu trouxe um pouco para provares.
Ele depôs o recipiente entre as mãos do velho marinheiro, havia dentro um pouco mais de um meio decilitro de um líquido amarelo. Paddy cheirou, provou-o e exclamou:
Rum, meu Deus do Céu!
O que é? perguntou Emelina.
De onde tiraste? Do velho barril?
E Mestre Button parecia ofuscado e tonto, como se tivesse recebido uma pancada.
Sim, eu tirei a rolha.
E puseste-a de novo?
Sim.
Ah! Graças a Deus! E dizer que eu ficava sentado sobre um velho tonel que supunha vazio, com a língua caída até os calcanhares, de sede, quando o tonel estava
cheio de rum!
Ele tomou um gole na concha, depois emborcou-a de um trago, apertou os lábios para guardar-lhe o perfume e fechou um olho.
Emelina pôs-se a rir. Mestre Button ergueu-se; eles o seguiram através do mato até a fonte onde jazia o pequeno tonel. Seu batoque olhava as folhas acima dele.
Podia-se ver o buraco que ele fizera no solo, no transcorrer dos anos. Estava tão verde e se assemelhava de tal modo a um objeto natural, tronco de árvore ou pedra
cheia de limo, que os marinheiros do baleeiro não tinham adivinhado a sua verdadeira natureza.
Mestre Button bateu-lhe em cima com o lado espesso da concha: dava um som cheio. Por que fora ele deixado ali? Por quem? Como, quando? Apenas os velhos crânios
cobertos de limo é que poderiam responder.
Vamos levá-lo para a praia propôs Paddy, depois de ter bebido mais um pouco do seu conteúdo.
Ele deu um gole a Dick, mas o menino cuspiu, careteando.
Então ele e Dick começaram a rolar o barril colina abaixo ate a praia. Emelina, coroada de flores, corria na frente.
a caça dos ratos /18
O almoço efetuou-se ao meio-dia. Paddy sabia preparar o peixe à moda das ilhas, envolvia-o de folhas e fazia-o cozer num buraco previamente aberto e aquecido.
Com mais as raízes de taro cozinhadas da mesma forma, e cocos frescos, fizeram um excelente almoço, após o qual Mestre Button encheu uma grande concha de rum e acendeu
o seu cachimbo.
O rum, já bom na sua adolescência, tornara-se maravilhoso ao envelhecer. Para Paddy, habituado aos "venenos" vendidos nas bodegas das costas de Barbaria e de
S. Francisco, ou nas tavernas das docas, aquela bebida era um néctar.
Sua alegria comunicativa irradiou sobre as crianças, contentes de o verem de tão bom humor.
Habitualmente, o seu amigo cochilava e não queria senão uma tranqüilidade completa. Mas agora ele lhes contava histórias do mar e cantava velhas canções ritmadas
pela manobra:
Vim de Hong Kong E de Peiping
E do Cantão. Ai de vocês, Sou um chinês, Não sou eu não!
Vim de Lisboa, Andei à toa Por toda parte, Sou tubarão, Peixe que voa. Boto, espadarte,
E é só no tapa, Na bofetada, No cachação, Que não escapa Nem o cachimbo Do capitão!
Lá do alto das árvores os pássaros espiavam com seus olhos brilhantes aqueles alegres convivas, que pareciam gente em piquenique. Os coqueiros devolviam a canção
e os ventos carregavam-na para além da laguna, até onde as gaivotas dançavam a farândola sobre as vagas marulhosas.
Naquela tarde, Mestre Button, inclinado à jovialidade, e não desejando que as crianças o vissem sob a influência do álcool, rolou o tonel através do bosque até
uma pequena clareira à beira d'água.
Depois que Emelina e Dick adormeceram, ele lá voltou com alguns cocos e uma concha. Geralmente a embriaguez o tornava músico. Emelina, acordada durante a noite,
ouviu sua voz, que o vento espalhava no bosque enluarado:
Seis ou sete marinheiros Beberam dias inteiros Em todos os taverneiros E andam armando salseiros Pelas ruas aos berreiros. Seis ou sete marinheiros.
Canta, canta, rapaziada, Canta, canta, horas a fio, Que Babilônia caiu E ficou livre a negrada!
A aurora encontrou o cantor deitado ao lado do barril. Não sentia peso nem indisposição alguma, mas deixou os cuidados da cozinha a Dick. Estendido à sombra
das palmeiras, a cabeça sobre um travesseiro feito com um velho casaco enrolado, a virar seus polegares e a fumar seu cachimbo, ele declamava, metade para seus companheiros,
metade para si mesmo, discursos sobre os bons tempos de outrora.
Durante uma semana, ele deu assim saraus musicais a seu bel-prazer, depois começou a perder o apetite e o sono, e, uma manhã Dick encontrou-o sentado na areia,
com um ar muito esquisito. E não era para menos, porque, desde a aurora, que ele vinha tendo visões.
Que há, Paddy perguntou o menino, que chegava a correr, seguido de Emelina.
Mestre Button fixava um ponto na areia a seu lado, e sua mão direita erguia-se como a de uma pessoa que tenta apanhar uma mosca. De súbito, ele fez como se tivesse
pegado qualquer coisa e abriu a mão para ver sua presa.
Que é, Paddy?
O Cluricauno! disse Mestre Button. Ele estava todo vestido de verde. Ora, meninos! Mas eu estava brincando, apenas.
O mal de que ele sofria oferece a estranha particularidade de mostrar ratos, serpentes e outras alucinações, fazendo ao mesmo tempo o enfermo compreender quase
imediatamente que é vítima de uma ilusão.
As crianças romperam às gargalhadas e Mestre Button fez o mesmo, com uma expressão atoleimada.
Sem dúvida que era mesmo um brinquedo que eu estava fazendo para vocês. Não havia Cluricauno algum. É quando eu bebo que me dá na veneta fazer desses brinquedos.
Meu Deus! Olhem ali aqueles ratos vermelhos que saem da areia!
Ele arrastou-se de joelhos até os coqueiros, sacudindo a cabeça com um ar de pavor. Ter-se-ia levantado para fugir, mas não se animava a pôr-se de pé.
As crianças faziam roda em torno dele, batendo palmas enquanto ele se arrastava por terra.
Os ratos, Paddy, os ratos! gritava Dick.
Eles estão agora diante de mim! exclamou o visionário, tentando agarrar pela cauda um daqueles fantásticos roedores. Anda, espanta os animais! Ah! Já se
foram... Mas que imbecil eu sou!
Continua, Paddy pediu Dick não pares, há outros ratos que correm atrás de ti.
Oh! Cala-te, por favor suspirou Mestre Button, sentando-se na areia e enxugando a fronte. Eles agora me deixaram em paz.
As crianças ficaram a seu lado, muito desapontadas com o fim do espetáculo, a comédia bem representada agrada às crianças como à gente grande.
Dick e Emelina ficaram, pois, esperando que o ator fosse dominado por um outro acesso, e sua espera não foi longa.
Desta vez, aos olhos de Mestre Button, foi uma espécie de cavalo escorchado que saiu da laguna e subiu para a praia, mas Paddy não se arrastou mais, ele ergueu-se
e saiu correndo.
É um cavalo que está atrás de mim, é um cavalo que está atrás de mim! Dick, Dick, bate-lhe no focinho! Dick! Dick! Espanta-o!
Hurra! Hurra! gritou Dick, perseguindo o alucinado, que galopava em círculo, com a face vermelha voltada sobre o ombro esquerdo.
Continua, Paddy, continua, Paddy!
Salva-me do animal! suplicava Mestre Button. Santa Maria, Mãe de Deus, ele vai me dar um coice! Ele está bem atrás de mim! Emelina! Emelina! Separa-nos!
Ele deu um passo em falso e caiu sobre a areia. O infatigável Dick batia-o com uma varinha para fazê-lo continuar.
Eu me sinto melhor agora, mas estou quase morto disse Mestre Button, sentando-se. Palavra! Se eu for ainda perseguido por coisas como essas, posso garantir
que será o meu fim. Dick, dá-me o braço.
Ele se apoiou ao braço de Dick e dirigiu-se para o bosque. Lá, lançou-se por terra, dizendo às crianças que o deixassem tranqüilo. Eles compreenderam que o brinquedo
tinha terminado e abandonaram o velho marinheiro. Então Paddy dormiu durante seis horas consecutivas. Era o primeiro sono verdadeiro que, desde há muito, ele conseguia
dormir. Quando despertou, estava curado, mas ainda trêmulo das pernas.
a espuma dos recifes sob a claridade das estrelas/19
Com grande desapontamento de Dick, Mestre Button não tornou a avistar ratos no dia seguinte. Curado da sua embriaguez e fortalecido por um segundo sono, ele
levantou-se para ir passear à beira da laguna. A abertura dos recifes era orientada para Leste, e a luz da aurora veio dançar na maré montante.
Tu não passas de uma besta dizia ele de si para consigo, arrependido tu não passas de uma reverenda besta!
Ele se julgava muito desfavoravelmente, não sendo senão um homem obsedado e traído durante um instante pelo álcool e pelos que o vendem; tomou a resolução de
acabar de uma vez por todas com a tentação.
Tirar o fundo do barril e deixar escapar o rum! Semelhante idéia não lhe veio provavelmente, ou, se veio, ele logo a rejeitou como um sacrilégio. Se um velho
marinheiro pode algumas vezes amaldiçoar a bebida, ela, ainda assim, é sagrada para ele, e o infanticídio lhe pareceria um crime apenas um pouco mais grave que o
de lançar metade de um barril de bebida ao mar. Ele colocou o barril no barco levando-o até o recife. Lá o depôs cuidadosamente ao abrigo de um grande pedaço de
coral, e voltou.
Toda a sua vida, Paddy estivera sujeito a uma embriaguez intermitente. Quatro ou seis meses, conforme a extensão da viagem, espaçavam habitualmente as suas crises.
Seis meses se passaram antes que ele experimentasse o desejo de ir dar uma vista de olhos no barril, que punha uma mancha carregada no recife. Ainda bem, porque,
durante aqueles seis meses, um outro baleeiro chegou, ancorou e foi evitado.
Que o diabo o carregue disse Paddy o mar aqui engendra baleeiros, nada mais que baleeiros, é como percevejo na cama, a gente mata um, vem outro. Em todo
caso, estamos agora livres por um momento.
Ele foi até a laguna, olhou o ponto sombrio e pôs-se a assobiar. Então voltou para preparar o almoço, mas o pequeno barril tomou conta de seus pensamentos durante
algum tempo. Os dias que, antes, eram tão curtos e agradáveis, tornaram-se-lhe compridos e monótonos. Para as crianças, o tempo não existia. Dotados de perfeita
saúde, eles gozavam da felicidade, tanto quanto o podem experimentar os mortais. O sistema nervoso de Emelina produzia, em verdade, uma dorzinha de cabeça de tempos
a tempos, quando ela se demorava muito ao sol, mas tais acidentes eram raros.
Havia muitas semanas já, que o espírito, no tonel, vinha murmurando, e Mestre Button percebia o seu apelo. Por fim, o espírito pôs-se a gritar, e, para me servir
de uma metáfora, Paddy tapou as orelhas. Ocupou-se o mais possível das crianças, fez outra saia para Emelina e cortou os cabelos de Dick, cerimônia que se realizava
geralmente de dois em dois meses.
Uma noite, para tratar de esquecer a história do barril e seu conteúdo, ele lhes contou a história de Jack Dogerty e da sereia, tão conhecida na costa ocidental
da Irlanda. A sereia convida Jack para cear no fundo do mar, então eles comem, e a sereia destampa um garrafão de rum.
Esta história lhe devia ser fatal. Logo que seus ouvintes deitaram e adormeceram, a imagem da sereia e de Jack cambaleante levantou-se ante seus olhos, excitando
nele uma irresistível sede de alegria.
Ele tinha amontoado sob uma árvore uma meia dúzia de cocos. Tomou alguns, bem como uma concha, desamarrou o barco e pôs-se a remar.
A laguna e o céu estavam cheios de estrelas, nas profundezas tenebrosas da água poder-se-ia ver o rastro fosforescente dos peixes. E o acalanto das ondas enchia
a noite com a sua canção.
Fixou solidamente a corda da canoa em torno de um pilar de coral, desceu, e, com uma concha cheia de rum e de leite de coco, acocorou-se sobre um grande rebordo,
donde ele dominava o mar e os bancos de coral.
Era bom estar sentado ali, ao luar, e ver as ondas avançarem, como nuvens, estriadas com as irisações das cristas e das bolhas de espuma. Sua neve e sua canção,
sob a luz difusa das estrelas, produziam um estranho efeito, de indescritível beleza.
Agora a maré baixava e Mestre Button, fumando o seu cachimbo e bebendo o seu grogue, percebia, de um lado e de outro, uns espelhos brilhantes, nos lugares onde
a água ficava nas bacias formadas pelos rochedos. Depois de considerar esse espetáculo por um pedaço, ele voltou para o recife e sentou-se perto do barril. Da margem
oposta, poder-se-ia ouvir, ao fim de certo lapso de tempo, parcelas de canções que pairavam sobre a água fremente.
Navegando, navegando Na costa da Barbaria...
Que a costa de Barbaria em questão fosse a de S. Francisco, ou a própria, isto pouco importa, mas quando sobre uma costa de coral, ou sobre um cais de granito,
ouve-se essa velha canção, pode-se ficar certo de que quem a está cantando é um marinheiro do tempo antigo, e que este marinheiro está meio bêbado.
Dentro em pouco o barco deixou o recife, os remos fenderam as águas que as estrelas iluminavam, e grandes círculos de luz deram respostas ritmadas aos golpes
lentos e seguros dos remos. Paddy amarrou o barco ao paletúvio, verificou se os remos estavam bem colocados no barco, respirou fortemente e tirou os sapatos para
não acordar as crianças que dormiam a duzentos metros, precaução esta tanto mais inútil quanto era areia mole que os separava.
Uma mistura de leite de coco e de rum é bastante agradável de beber-se, no entretanto, estes dois ingredientes são melhores em separado. Misturados, nem mesmo
o cérebro de um velho marinheiro pode retirar de tal mescla senão um nevoeiro e confusão mental em matéria de ação física, por outro lado, leite de coco e rum incitam
o bebedor a grandes empreitadas. Tanto assim que levaram Paddy a nadar na laguna.
Enquanto ele avançava para a cabana, veio-lhe de repente a idéia de que tinha deixado o bote amarrado aos recifes. Em verdade, o barco se achava, são e salvo,
atado ao paletúvio, mas a memória difusa de Mestre Button assegurava-lhe que o barco estava perto do recife. Como seria então que ele, Button, tinha atravessado
a laguna? Isto não tinha importância alguma. O fato de tê-la atravessado sem barco e sem molhar-se não o espantou nada. Ele não tinha tempo de ocupar-se com tais
ninharias, era preciso ir procurar o barco. Então voltou para a praia, tirou o casaco e jogou-se n'água. A laguna era bastante larga, mas, no estado de espírito
em que se achava, teria atravessado o Helesponto a nado.
A laguna estava de tal maneira iluminada pelas estrelas que se poderia ver a cabeça do nadador movendo-se em meio de anéis de claridade. À medida que ele se
aproximava do recife, poder-se-ia ver igualmente um triângulo escuro a nadar sob a palmeira da barra. Era a patrulha da noite, misteriosamente avisada de que um
velho marinheiro ébrio perturbava as águas.
O espectador, com o coração a bater, teria esperado o grito do infeliz, mas esse grito não se fez ouvir. O nadador escalou os recifes; exausto, tendo certamente
esquecido o motivo por que voltara, encontrou o barril de rum e tombou a seu lado, como se fosse o sono, e não a morte, que acabara de roçar por ele.
o homem adormecido no recife/20
Eu queria saber por onde andará o Paddy! exclamou Dick, no dia seguinte de manhã, ele saía do mato e arrastava um galho seco. Ele deixou o casaco com o
cachimbo na areia. Eu vou fazer fogo. Não vale a pena esperá-lo, que diabo!
Fez estalar o galho seco sob o seu pé nu, e quebrou-o em pedaços.
Emelina, sentada, contemplava-o. Ela possuía duas divindades: Paddy Button e Dick. Paddy era quase um deus esotérico, envolvido pelas nuvens do fumo e do mistério,
o deus dos navios oscilantes e das cordoalhas rangedoras (os mastros e as grandes velas do "Northumberland" tinham ficado impressos na sua memória), o deus que a
tinha raptado num pequeno barco para trazê-la para aquele lugar maravilhoso, onde os pássaros eram coloridos e os peixes pintados, onde, sob um céu raramente empanado,
a vida não era jamais monótona.
Dick, a outra divindade, era um personagem mais compreensível, mas não menos admirável como companheiro e protetor. Em dois anos e cinco meses de vida na ilha,
ele tinha crescido perto de três polegadas, forte como um menino de doze anos, podia fazer fogo e remar no barco tão bem como Paddy.
Com efeito, durante aqueles últimos meses, Mestre Button, ocupado em descansar seus ossos e em contemplar o rum como uma idéia abstrata, tinha deixado a Dick,
o mais possível, o cuidado de cozinhar, pescar e procurar víveres.
Afinal, isso diverte o menino: imaginar que está trabalhando pensava ele, observando Dick, que cavava a terra para fazer um pequeno forno segundo o método
das ilhas, e que ali cozinhava peixe ou outras coisas.
Vamos, Emelina disse Dick, empilhando a lenha partida sobre um monte de hibiscos apodrecidos. Passa-me o isqueiro.
Obteve uma pequena faísca e soprou sobre a mecha, semelhante a Éolo tal como o representam as velhas cartas holandesas que cheiram a "schiedam" e a rapé. Logo
o fogo ardeu, e ele amontoou uma profusão de pedaços de madeira, porque combustível não faltava e ele queria cozinhar frutos da árvore do pão.
Os frutos da árvore do pão variam de tamanho segundo a sua idade e de cor segundo a estação. Os que Dick preparava eram do tamanho de pequenos melões. Dois bastavam
para a refeição de três pessoas. Eram verdes e cheios de bossas no exterior e faziam pensar mais em cidras não maduras do que em pão.
O menino os pôs sobre as cinzas, exatamente como se faz com batatas, em breve, eles incharam, expelindo pequenos jatos de vapor, em seguida se abriram, e a substância
branca do interior fez-se visível. Ele os cortou, tirou o miolo, que não se pode comer, e a fornada ficou pronta.
Durante esse tempo, Emelina trabalhava sob a sua direção. Havia na laguna, da mesma forma que em várias lagunas dos trópicos que me são conhecidas, um peixe
que eu não poderia chamar de outra forma senão de arenque dourado. Quando está em terra, parece um arenque de bronze, mas quando nada entre os galhos de coral ou
sobre os leitos de areia, tem reflexos de ouro brunido. É tão bom de comer como bonito de olhar, e Emelina cozinhava vários deles, atravessados por um bambu. A gordura
dos peixes impedia que o bambu se carbonizasse. Produziam-se às vezes incidentes, quando, por exemplo, um peixe caía no fogo. Dick, então, saudava essa desgraça
com interjeições zombeteiras.
A menina fazia um lindo quadro, assim ajoelhada como estava, a saia que lhe cingia os rins dava idéia de uma pequena toalha de banho; com a fisionomia atenta,
ela apertava os lábios sob as radiações da fogueira.
Está tão quente! gemeu ela, depois da primeira catástrofe.
Por certo que há de estar quente replicou Dick se tu te paras contra o vento da chama. Quantas vezes Paddy já te disse que é preciso ficar a favor do vento?
Eu nunca sei qual é o lado confessou Emelina, cujo temperamento era absolutamente refratário às questões práticas e que não podia nem nadar, nem remar, nem
pescar, nem mesmo lançar uma pedra, embora estivessem na ilha há mais de vinte e oito meses.
Queres dizer que não sabes donde vem o vento?
Sim, eu sei.
Pois bem, esse é que é o lado a favor do vento.
Eu não sabia.
Pois de agora em diante ficas sabendo.
Sim, agora eu sei.
Então vem para o lado do vento. Por que não pediste explicação antes?
Eu perguntei um dia ao Senhor Button e ele me respondeu uma porção de coisas, que se um navio ficasse no vento ia dar contra os rochedos e por isso era preciso
saber retirar-se a tempo do vento e que, mesmo assim, muita gente vivia de brisa e que as mulheres eram cata-ventos, uma porção de coisas que não entendi direito.
Paddy! chamou Dick, parando de abrir a sua fruta.
Responderam-lhe os ecos do seio dos coqueiros, mas nada mais se ouviu.
Ora! murmurou Dick eu não vou esperá-lo. Com certeza ele foi ver as redes que armou para a noite! Deve ter ficado a dormir por lá.
Se Emelina honrava Mestre Button como um semi-deus, Dick não tinha ilusões a seu respeito. Admirava a Paddy porque este sabia fazê-los trepar nos coqueiros e
utilizava sua habilidade de marinheiro em diversos sentidos não menos admiráveis, mas ele sentia os limites intelectuais do seu velho amigo. Assim, bem que eles
podiam ter batatas, se, em lugar de comê-las todas, tivessem semeado algumas. Jovem como era, Dick reconhecera a gafe. Emelina não o notara, pouco se importava ela
com batatas, mas poderia dizer a cor de todos os pássaros da ilha.
E, depois, tendo a casa necessidade urgente de reparações, Mestre Button prometia cada dia começar no dia seguinte e, no outro dia, ficava ainda para o dia seguinte.
As necessidades da vida eram estimulantes para o espírito ativo e empreendedor do menino, mas, contrariado pelo "quem importísmo" de Paddy, ele se impacientava.
Descendia ele de homens que tinham criado as máquinas de coser e de escrever, Mestre Button provinha de um povo conhecido por suas baladas, seu coração terno
e seu uísque. Era toda a diferença que entre eles havia.
Paddy! chamou ainda o menino, quando acabou de comer. Alô! Paddy! Onde estás?
Eles puseram-se à escuta, mas tudo continuou silencioso. Um pássaro de plumagem vistosa voou acima deles; um lagarto correu sobre a terra sonora, o vento murmurou
no cimo das árvores, mas Mestre Button não respondeu.
Dick atravessou a mata a correr, foi até o paletúvio onde costumavam amarrar o barco, em seguida voltou.
O barco está no lugar disse ele onde diabo se terá metido o Paddy?
Não sei respondeu Emelina, que experimentava uma sensação de desamparo.
Vamos para o morro. Talvez o encontremos lá.
Eles subiram a colina, através do mato, e passaram pela fonte. De tempos a tempos, Dick chamava e os ecos devolviam a sua voz. Eram ecos do bosque espesso, estranhos
e como que unidos. Ou então um bando de pássaros fugia, numa revoada. A pequena cascata murmurava, e as grandes folhas de bananeira estendiam a sua sombra.
Vem, Emelina continuou Dick, desacoroçoado.
Eles rodearam o cimo da colina, onde o grande rochedo projetava a sua sombra. Soprava a brisa matinal, o mar reverberava, os recifes ofuscavam a vista, as palmas
da ilha ondulavam como flamas verdes. Como que uma profunda respiração se elevava do seio do Pacífico. Qualquer furacão para além das ilhas dos Navegadores ou do
arquipélago Gilbert vinha repercutir ali no pára-choque dos recifes. Em nenhuma parte do mundo se poderia encontrar tal combinação de esplendor estival e de frescura,
de força e de beleza.
A pequenez da ilha constituía talvez o seu encanto e perfeição. Dir-se-ia uma corbelha de folhagem e de flores, a brilhar, multicolorida, no meio do verde e
do azul.
De súbito, Dick, que estava de pé sobre o rochedo, ao lado de Emelina, apontou para o recife, perto da abertura do canal:
Lá está ele!
guirlanda de flores/ 21
Distinguia-se, sobre o recife, um vulto estendido perto do barril.
Ele está dormindo observou Dick.
Da praia, não pensara ele em olhar para os recifes, senão já o teria avistado.
Dick!
Que há?
Como foi que ele pôde ir até lá, se o barco está amarrado à árvore?
Não sei. Só o que sei é que ele lá está, agora. Vamos até lá, de barco, para acordá-lo. Eu vou dar um grito na orelha dele e tu hás de ver o salto que ele
dá.
Desceram do rochedo e voltaram pelo mato. Ao longo do caminho, Emelina, colhendo flores, começava a tecer guirlandas. Alguns hibiscos vermelhos, algumas campânulas,
um par de papoulas desmaiadas, com hastis felpudos e um perfume amargo.
Por que fazes essas coisas? perguntou Dick, que considerava aquela mania de Emelina com uma mistura de piedade e desgosto.
Eu vou colocá-la na cabeça do Senhor Button; e quando tu lhe gritares no ouvido, ele pulará com a sua guirlanda.
A idéia desta farsa fez Dick dançar de prazer, e seu espírito admitiu por um momento a utilidade de coisas tão simples como coroas de flores.
O barco repousava à sombra do paletúvio, com a amarra ligada a um dos galhos que pendiam sobre a água. Esses rizóforos anões projetavam para o solo ramos lisos
como corrimãos de escada. A árvore formava um bom abrigo para a pequena embarcação, protegendo-a a um tempo dos possíveis pilhadores e do sol. Para maior segurança,
Paddy mergulhava de vez em quando o barco na água pouco profunda. Sendo o barco bastante novo ao principiar esta história, poder-se-ia esperar que durasse muito
ainda.
Entra ordenou Dick a Emelina, puxando a amarra, de maneira que a proa do barco viesse a tocar na terra.
A menina entrou com precaução e foi sentar-se atrás; Dick seguiu-a, impulsionou o barco e tomou os remos. Um instante depois o barco flutuava em plena água.
Dick remava sem ruído, com medo de despertar o homem que dormia. Ele lançou a amarra sobre o pilar de coral que a natureza ali parecia haver colocado de propósito;
trepou para o recife e, deitado por terra, conseguiu trazer o barco para a areia, de modo que Emelina pudesse descer. Ele não tinha sapatos, a planta de seus pés
tornara-se como um couro.
Também Emelina não tinha sapatos, mas a sola de seus pés continuara sensível; é, de resto, o caso das pessoas nervosas; e ela caminhava delicadamente, escolhendo
os lugares melhores e levando a coroa na mão direita.
A maré era alta, e o impetuoso marulhar das vagas sacudia o recife era mais ou menos como numa igreja, quando o organista toca o trecho mais grave e profundo
o solo e o ar abalam-se, muros e abóbadas fremem.
O vento trazia os borrifos do mar, e o clamor melancólico das gaivotas evocava o grito de marinheiros fantasmas manobrando as driças do sonho.
Estendido sobre o lado direito, Paddy parecia mergulhado num profundo sono, o rosto escondia-se no braço direito curvado, sua mão esquerda, morena e tatuada,
jazia sobre a coxa esquerda, com a palma para o ar. Não trazia chapéu, e a brisa agitava os seus cabelos grisalhos.
Dick e Emelina aproximaram-se na ponta dos pés. Então Emelina, a rir, lançou a sua guirlanda de flores sobre a cabeça do velho, e o menino, ajoelhando-se, gritou-lhe
no ouvido. Mas o homem adormecido não se moveu, não agitou nem mesmo um dedo.
Paddy repetia Dick acorda, acorda!
Ele puxou-lhe o ombro até que o corpo tombasse sobre o dorso. Os olhos estavam vidrados, a boca pendia, aberta. E, de dentro da sua boca, escapou-se um caranguejo,
que deslizou pelo queixo e desapareceu no meio do coral.
Emelina deu um grito e teria caído se seu primo não a amparasse em seus braços. Um lado da face de Paddy estava destruído pelas larvas dos rochedos.
Dick fixou aquela terrível coisa que estava ali estendida, com os braços em cruz. Então, louco de terror, ele arrastou a menina até o barco. Esta se debatia,
arquejava e sufocava, como uma pessoa que se está afogando na água gelada.
Dick não tinha senão um pensamento, fugir, fugir... não importava para onde...
Então, desamarrou a canoa. Se o recife se houvesse subitamente inflamado, ele não teria feito mais esforços para escapar e para salvar a sua companheira.
Um instante depois, vagavam ambos sobre a laguna, ele remava com todas as suas forças.
Ele não sabia o que tinha acontecido, mas não parava para refletir. Fugia daquele horror, um horror sem nome, enquanto Emelina, a seus pés, com a nuca apoiada
contra a platiborda, muda, os grandes olhos abertos, olhava o céu azul, como se qualquer coisa medonha lá estivesse desenhada. O barco rangeu sobre a areia branca,
e o movimento da maré montante lançou-o de lado.
Emelina, perdendo os sentidos, tombou para a frente.
sozinhos!/22
O pensamento da vida futura deve ser inato no espírito humano. Durante aquela noite terrível, as crianças ficaram aconchegadas uma contra a outra na sua pequena
habitação. Seu grande terror era de que lhes aparecesse de um momento para outro o seu velho amigo.
Eles nada falaram a respeito. Acontecera-lhes um acidente espantoso. Uma catástrofe terrível tombara sobre o mundo. Mas eles não ousavam comunicar um ao outro
as suas impressões.
Deixando a canoa, Dick tinha levado a menina até a sua casa. Lá ficou escondido com ela. Passou-se o dia e veio o crepúsculo, logo seguido das trevas. Sem tocar
em nenhum alimento, Dick cercou sua prima de cuidados, suplicando-lhe que não tivesse medo e prometendo que velaria por ela. Mas nenhuma palavra sobre aquilo que,
para eles, não tinha nome nem precedentes. Eles tinham tocado a morte real e nua, a morte que nenhuma religião velava e que não vinha enfeitada pelas teorias dos
sábios e dos poetas.
Eles não conheciam a filosofia que no-la mostra como a sorte comum dos vivos e a conseqüência natural do nascimento, eles ignoravam a religião que no-la representa
como o umbral de uma outra vida.
O cadáver de um velho marinheiro, estendido sobre um rebordo de coral, como uma carcaça apodrecida, as pupilas vazias e vítreas, uma boca aberta, que, outrora,
dizia palavras alegres e consoladoras, e de onde, agora, só saíam caranguejos!
Eis a obsessão que os perseguia. Eles não discutiam sobre isso, e, embora aterrorizados, eu creio que o seu silêncio vinha não do medo, mas antes de um vago
sentimento de que o que tinham visto era obsceno e impossível de contar.
O catecismo de Lestrange resumia-se assim: um Deus bom, que se ocupava do mundo. Resolvido, tanto quanto possível, a excluir do seu espírito o demônio, o pecado
e a morte, ele apenas lhes ensinara que um Deus perfeito velava sobre o universo, mas sem explicar como esse Deus os castigaria durante a eternidade, se eles não
acreditassem nele ou não obedecessem a seus mandamentos.
Esta noção do Criador não era senão um meio-conhecimento e a mais vaga das abstrações. Mesmo que tivessem sido educados numa severa escola calvinista, esta teologia
não os teria consolado naquele momento. A crença em Deus não é um apoio para uma criança assustada; ensinai-lhe, como a um papagaio, quantas orações quiserdes, mas,
no desamparo ou nas trevas, o seu apelo será para a sua ama ou para a sua mãe.
Durante aquelas horas terríveis, as pobres crianças não podiam achar em todo o infinito da criação outro consolo a não ser em si mesmas. Emelina sentia-se sob
a guarda de Dick, o qual bem sabia que era, desde então, o seu protetor. A varonilidade do menino, maior e mais bela que a força física, desenvolveu-se naqueles
cruéis instantes como uma planta que, sob circunstâncias extraordinárias, se apressa em florescer.
Pela aurora, Emelina descansou; quando, pela sua respiração regular, Dick se certificou de que ela dormia, saiu da habitação e dirigiu-se para a praia.
A aurora começava a dealbar e a brisa soprava do oceano.
Na véspera, Dick tinha levado o barco para a terra com maré alta; a água, retirando-se, deixara-o sobre a areia. Agora, o mar tornava a subir, e o pequeno barco
estava em breve a flutuar.
Emelina, durante a noite, suplicara a Dick que a levasse, que a levasse para qualquer parte, desde que fosse longe dali; ele jurou que o faria, mas sem saber
como havia de cumprir tal promessa. Ele olhava a praia desolada, estranhamente diferente da véspera, e procurava o meio de cumprir sua palavra.
Foi até o local onde o pequeno barco repousava sobre a areia, com o casco lambido pelas águas.
Todos os seus tesouros, constituídos de velhas roupas, velhos sapatos, mil pequenos nadas, amontoavam-se ao abrigo de uma palmeira. O precioso fumo cosido num
pedaço de tela, a caixa com agulhas e linha, tudo aquilo estava oculto num buraco aberto na areia e protegido do sereno pela vela trazida do "Northumberland".
Agora, o sol surgira por detrás das ondas e os grandes coqueiros murmuravam sob a brisa cada vez mais forte.
mudança /23
Dick transportou todas as suas posses para a canoa. Tomou a vela de estai e o mais que podia ser útil. Depois de haver tudo arrumado ao fundo do barco, encheu
o barril com água da fonte; em seguida, encontrando os restos do almoço da véspera, que ele havia posto entre duas folhas de areca, colocou-os também no barco.
A água estava bastante alta para que, ajudado de um esforço, o barco pudesse flutuar. Dick voltou para levar Emelina, ela dormia um sono tão profundo, que não
se acordou quando ele a agarrou e a depôs delicadamente à popa do barco, com a cabeça sobre a vela enrolada; depois, de pé na proa, impeliu o barco com um remo.
Virando a proa do barco para a esquerda da laguna, ele remou costeando a terra, mas, ainda mesmo que a sua vida disso dependesse, não pôde evitar de erguer os
olhos para o recife. Havia um grande ajuntamento de pássaros em torno de uma mancha sobre o coral branco. Alguns pareciam enormes, e a brisa trazia os seus gritos
agudos; disputavam, agitando as asas no ar. Dick virou a cabeça, até que uma curva da margem lhe ocultou à vista aquela cena.
Mais abrigados desse lado que diante da passagem do canal, os artus ali cresciam até a beira d'água, e as árvores de fruta-pão estendiam sobre as ondas a sombra
de suas grandes folhas denticuladas. As moitas das clareiras, as árvores de canela, os cacaueiros, tudo aquilo fugia, tomado de vertigem, enquanto, margeando a praia,
o barco avançava na laguna.
Sem o longínquo atrôo do Pacífico, poderia supor-se estar sobre um lago tranqüilo, e mesmo o rumor do oceano, em vez de destruir essa impressão, lhe dava um
encanto estranho.
Um lago, em meio do oceano, eis a imagem da laguna. Coqueiros miravam seus troncos esguios refletidos na seda azul e desenhavam suas silhuetas sobre a areia,
que se estendia a uma braça de fundo.
Dick costeou a margem o tanto quanto possível, a fim de aproveitar da sombra. Desejava um bom local para ali erguer definitivamente a sua tenda. Mas as clareiras,
embora muito lindas, não ofereciam conforto, tinham muitas árvores, ou então as moitas eram demasiado altas. Ele desejava ar e espaço e, de repente, encontrou o
seu sonho.
Dobrando um pequeno cabo abrasado pela púrpura dos cacaueiros selvagens, o barco penetrou num novo mundo. Diante dele estendia-se um grande lençol do azul mais
pálido, frisado pelo vento e um fargo tabuleiro de relva descia até as águas, bordado de cada lado por bosques profundos. Acima do verde imóvel das árvores de fruta-pão,
as palmeiras agitavam os seus leques. O desmaiado da água era devido aos baixios; ela era, com efeito, tão pouco profunda, que se podiam perceber as manchas escuras
dos corais apodrecidos. O recife estava a mais de meia légua distante, o suficiente, parecia, para que sua influência ficasse para sempre anulada. Ali, a laguna
dava a impressão de um mar largo e contínuo.
Dick apoiou-se sobre os remos, deixando flutuar o barco e examinando a paisagem. Tinha remado quatro milhas e meia e achava-se agora atrás da ilha. E, tendo
o barco tocado a terra, Emelina acordou, sentou-se e olhou em derredor.
livro 2/primeira parte
sob o artu/1
Sobre o relvado, via-se uma pequena casa encravada entre um artu de tronco quadriculado e uma frondosa árvore de fruta-pão. Ela não era maior que um galinheiro,
mas, naquele clima de eterno verão, era suficiente para duas pessoas. Construída de bambus, com um duplo teto de folhas de areca entrançada, era tão bem feita que
podiam tomá-la por uma obra-prima de hábeis operários.
A árvore de pão era estéril, às vezes esses vegetais cessam de produzir, por uma misteriosa razão conhecida apenas da natureza. Agora estava verde, mas quando
sofria sua mudança anual, as grandes folhas festo nadas tomavam incríveis colorações de ouro, de âmbar e de bronze.
Além do artu havia uma pequena clareira, que tinham cuidadosamente capinado para plantarem taros.
Diante da porta estendia-se o relvado e, sem a natureza tropical da vegetação, julgar-se-ia a gente nalgum parque inglês.
À direita, a vista se perdia na mata, onde se ostentava toda a gama dos verdes e onde as moitas de cacaueiros selvagens fulgiam como bagas de azevinho.
A habitação tinha uma entrada sem porta, e a folhagem da árvore do pão fornecia-lhe um segundo teto, precioso na estação das chuvas. Interiormente, era assaz
desnuda. Ervas secas e odorantes tapizavam o chão. Dois pinos de vela enrolavam-se de cada lado de entrada e, subir um grosseiro aparador fixo à parede, enfileiravam-se
meias feitas de cascas de coco. Evidentemente, os proprietários só a habitavam de noite, para se protegerem do sereno.
Perto da entrada, estava uma moça sentada sobre a relva, e os raios do sol do meio-dia banhavam-lhe os pés nus. Parecia ter quinze ou dezesseis anos, uma pequena
saia de pano listado descia-lhe até os joelhos, cobrindo parte da sua nudez; um fio de liana elástica lhe prendia os cabelos negros e uma flor vermelha, colocada
como uma caneta de guarda-livros, ornava a sua orelha direita. Pequenas sardas salpicavam seu rosto encantador, sobretudo em torno dos olhos, que eram de um gris
azulado, profundo e tranqüilo. Ela se apoiava sobre o cotovelo direito, enquanto por perto dela passeava um pássaro de plumagem azul, de bico vermelho e olhos brilhantes
e curiosos.
Era Emelina Lestrange. Ela dava de comer ao passar o conteúdo de uma casca de coco. Dick recolhera aquele lindo volátil no bosque, pequeno ainda, abandonado
de sua mãe e quase morto de fome. Há dois anos que eles o criavam e o bicho fazia parte da família. De noite, ele se empoleirava sobre o teto, nunca se afastava
muito e aparecia regularmente à hora das refeições.
Emelina estendeu-lhe a mão e o delicioso animal trepou para o seu dedo, mergulhando a cabeça em seus ombros e lançando o grito que formava todo o seu vocabulário
e ao qual devia o seu nome.
Koko! indagou ela onde está Dick?
O pássaro virou o pescoço para todos os lados, como para procurar o seu dono. Depois Emelina, conservando-o sempre sobre o seu dedo, como uma jóia de esmalte
que quisesse admirar um pouco mais de longe, tornou a deitar-se caprichosamente sobre a relva, rindo e conversando com o pássaro. Formavam assim um belo quadro,
à sombra cavernosa da árvore do pão.
Era difícil compreender que evolução havia transformado a simples e pequena Emelina naquela mulher de tão harmoniosas formas, e tão maravilhosamente bela. A
transformação estética era sobretudo notável depois dos últimos seis meses...
metade criança, metade selvagem/2
Cinco vezes passara a estação das chuvas após a tragédia do recife. Há cinco longos anos que as ondas murmuravam e as gaivotas gritavam em torno do esqueleto
cujo mistério tinha traçado uma intransponível barreira através da laguna.
As crianças não tinham mais voltado a seu antigo acampamento; sua vida se desenrolava no lado oposto da ilha; a mata, uma parte da laguna e do recife constituíam
para eles um mundo suficientemente vasto e belo, mas onde não tinham nenhum socorro a esperar da civilização, porque dos poucos navios que poderiam tocar a ilha
durante o curso dos séculos, nenhum talvez exploraria a laguna e a mata.
Dick, no entretanto, de tempos a tempos, fazia uma excursão de barco até sua antiga terra de adoção, mas Emelina sempre se recusava a acompanhá-lo; ele lá ia
principalmente para colher bananas, pois a ilha possuía um único bosque de bananeiras, situado perto da fonte, no local onde tinham descoberto os velhos crânios
e o pequeno barril.
A menina jamais se refizera completamente do drama, cujo significado apenas vagamente compreendia. Não experimentava senão horror pelos lugares que foram teatro
da catástrofe; quanto a Dick, ao contrário, o grande medo que ele sentira a princípio se dissipara com o tempo.
Durante aqueles cinco anos, tinha ele construído sucessivamente três casas e plantara um canteiro de taro. Conhecia todas as bacias dos recifes, a duas milhas
em cada sentido, bem como os seus habitantes, e, embora não soubesse os nomes destes últimos, tinha estudado a fundo os seus hábitos. Viu coisas espantosas nesse
lapso de tempo, desde uma batalha entre uma baleia e dois tubarões, que se travou fora dos recifes e que durou uma hora, tingindo as vagas de sangue, até o envenenamento
dos peixes da laguna, produzido pelo excesso de água doce, trazida numa estação excessivamente chuvosa.
Sabia os bosques de cor, como os diferentes aspectos das vidas que neles se agitavam: borboletas, falenas, pássaros, lagartos, insetos estranhos e orquídeas
extraordinárias, algumas das quais, repugnantes, pareciam carne putrefata, ao passo que outras eram magníficas e fantásticas.
Encontrou melões e goiabas, frutos de árvores do pão, maçãs vermelhas de Taiti, grandes ameixas do Brasil, grande quantidade de taro, e uma dúzia de outros legumes
ou frutos, mas do lado em que moravam ultimamente não havia bananas, e isso o tornava infeliz.
Emelina interrogara Koko a propósito de Dick, apenas para dar-se ao prazer de ver o pássaro responder à sua maneira, mas sabia muito bem que ele estava ali perto,
pois o ouvia agitar-se derrubando caniços. Ao cabo de alguns minutos, Dick apareceu, arrastando dois deles, recentemente cortados, e enxugando, com o braço nu, o
suor de sua fronte. Estava apenas vestido de um velho par de calças encontrado no "Shenandoah". Mas sob o ponto de vista estético, ele valia a pena ser observado.
Alto e bronzeado, parecia antes ter dezessete anos do que dezesseis, com uma expressão viva e ousada, metade criança, metade homem, um ser meio civilizado, meio
selvagem, tendo progredido e retrogradado durante aqueles cinco anos de vida rústica. Depôs os caniços perto de si, e sentou-se ao lado de Emelina examinando o gume
da velha faca de açougueiro de que se servia; depois, tomando um dos caniços, começou a entalhá-lo.
Que é que tu estás fazendo? perguntou Emelina, dando liberdade ao pássaro, que a aproveitou para ir empoleirar-se num dos galhos do artu e ali ficar, como
uma turquesa encravada em esmalte verde.
Um arpão replicou Dick.
Sem ser taciturno, ele raramente desperdiçava as suas palavras. A existência era-lhe uma ocupação contínua. Falava sempre laconicamente com a sua prima e adquirira
o hábito de interpelar as coisas inanimadas: o arpão que talhava ou o vaso que esculpia numa casca de coco.
Mesmo na sua infância, Emelina nunca fora muito expansiva, um quê de reserva e de mistério pairava sobre a sua personalidade. Seu espírito parecia perpetuamente
mergulhado no crepúsculo, perdido pelos campos da abstração ou a errar no país das quimeras. O que por lá encontrava, ninguém o sabia, e ela talvez menos que os
outros. As conversas de ambos referiam-se quase que exclusivamente a seus atos quotidianos.
Muitas vezes Dick resmungava entre dentes como quem sonha mas, se a gente pudesse surpreender suas palavras, veria que elas apenas se relacionavam a bagatelas
do momento. Unicamente ocupado com a hora presente, ele parecia ter esquecido o passado, tão completamente como se este nunca houvera existido. No entretanto, punha-se
a devanear às vezes. Durante uma hora, ficava ele de bruços sobre um rochedo, a contemplar os seres esquisitos que se agitavam na laguna, ou então, sentado no bosque
imóvel como um deus de pedra, ele observava os pássaros e os lagartos rápidos. Os pássaros se lhe aproximavam de tal modo, que poderia facilmente pegá-los, mas ele
nunca lhes fazia mal e não intervinha de nenhum modo na vida selvagem da mata.
Para ele, como para Emelina, mas sob um ponto de vista diferente, a ilha, a laguna, e os recifes constituíam os três volumes de um grande livro de imagens. Na
alma da moça, a cor e a beleza ambientes respondiam a uma necessidade misteriosa. Sua existência era um longo devaneio, uma esplêndida visão, turbada às vezes por
sombras. Através dos espaços azuis e coloridos que eram os meses e os anos, ela podia ver, como por um vidro opaco, o "Northumberland" fumando contra o fundo de
bruma, a fisionomia de seu tio, Boston, uma imagem vaga e sombria sob uma tempestade e, mais perto, o trágico cadáver estendido sobre o recife.
Ela, no entanto, nunca falava de tais coisas a Dick. Tinha outrora ocultado o conteúdo da caixa, bem como o seu desespero quando a perdera, agora ela guardava
para si os seus pensamentos.
De tudo aquilo nascia um vago terror, que a perseguia incessantemente: o medo de perder Dick, de vê-lo esvair-se como um sonho, assim como tinham passado Madame
Stannard, seu tio, as pessoas conhecidas de Boston e aquele outro, o último que desaparecera, e de modo tão terrível.
Que aconteceria, se lhe tomassem Dick? Esse medo, um pouco pessoal, vinha-a atormentando ultimamente: em realidade, ela temia a solidão numa ilha deserta. Mas,
naqueles últimos tempos, o seu pavor tornara-se mais lancinante. Dick transformava-se para ela, e ela temia por ele, sua própria personalidade fundira-se com a de
seu primo. A idéia de viver sem ele era-lhe inconcebível e o medo continuava como uma nuvem no azul. Às vezes sua angústia tornava-se cruciante.
Naquele dia, por exemplo, em que Dick fabricava os arpões, a angústia aumentara, como se um perigo, desde a noite, os estivesse a espiar, de perto. Entretanto,
nenhuma sombra obscurecia o céu nem o mar, o sol brilhava sobre as árvores e as flores, o vento do oeste trazia, como um acalanto, a longínqua melodia dos recifes.
Nenhum sinal suspeito justificava aquela inquietude. Terminado o arpão, Dick levantou-se.
Aonde vais? perguntou Emelina.
Ao recife. A maré está baixando.
Eu irei contigo.
Ele guardou a faca em casa e saiu, trazendo o arpão numa das mãos e na outra uma liana de cerca de meia toesa, destinada a atar os peixes, se a pesca fosse abundante.
Desceram pelo relvado até a laguna, onde se encontrava o barco, preso a um pau fincado no chão. Emelina entrou, e Dick, tomando os remos, impeliu o barco. A maré
baixava.
Já se disse acima que naquele ponto os recifes ficavam muito afastados da margem, a laguna, pouco profunda, poderia dar vau com a maré baixa, se não houvesse
poços d'água, verdadeiras armadilhas de dez pés de profundidade, disseminados no coral apodrecido, sem falar nas actínias, que picavam como urtigas. Encontravam-se
ali outros perigos: as bacias tropicais estão cheias de selvagens surpresas em matéria de vida e de morte.
Há muito tempo que Dick conhecia as sondagens da laguna, ele possuía felizmente esse sentido especial da direção, que é o guia mais seguro do caçador e do selvagem,
pois, com a disposição dos corais, a água formava avenidas, das quais apenas duas conduziam da margem ao recife, seguindo as outras, mesmo com um barco de pouco
calado, corria-se o risco de ficar preso a meio caminho.
Pouco a pouco o ruído dos escolhos se acentuou e a brisa lhes trouxe o eterno e monótono grito das gaivotas.
Já a praia parecia muito afastada, e a angústia da solidão os invadiu. Mas o recife estava ainda mais desolado.
Dick amarrou o barco a uma projeção de coral e ajudou Emelina a descer. O sol baixava para o poente, a maré estava já na metade de seu descenso, e grandes bacias
de água quieta reverberavam ao sol como escudos de estanho polido. Dick, com o precioso arpão ao lado, sentou-se tranqüilamente à borda do coral e começou a despir
a sua única vestimenta.
Emelina voltou a cabeça, contemplando a praia, que parecia três vezes mais afastada do que na realidade.
Quando ela olhou para Dick, este corria, beirando a ressaca e seu vulto se destacava, com o arpão, contra a espuma fulgurante.
Emelina o viu agachar-se, agarrando-se a uma ponta de coral, enquanto as ondas saltavam em torno dele, depois ergueu-se, fungou como um cão, e tornou a agachar-se,
arpão em punho, com o corpo luzente d'água.
Às vezes o seu grito se confundia com a melopéia das vagas e os gemidos dos goelanos. Emelina via-o então mergulhar o arpão e erguê-lo, com qualquer coisa que
brilhava e se debatia na ponta.
Ali, sobre os recifes, o seu caráter diferia completamente do que era em terra, o ambiente despertava em sua alma a crueldade do homem primitivo. Ele matava
pelo simples prazer de matar, destruindo mais peixes do que o necessário.
o demônio do recife/3
O romance do coral ainda está por escrever.
Subsiste ainda essa opinião tão difundida de que os recifes e ilhas de coral seriam obra de um industrioso bichinho. Este fabuloso entezinho, dotado do gênio
de Brunel e da paciência de Jó, tem sido irrisoriamente apresentado a várias gerações de crianças como um admirável exemplo a seguir.
Mas, em verdade, nada é mais preguiçoso, mais lento, mais dado a uma vida fácil e degenerada do que pólipo construtor para dar-lhe o seu nome científico. Ele
é o mendigo do reino animal, um mendigo que nem se dá ao trabalho de pedir o seu pão. Ele vegeta sob a forma dum verme gelatinoso, adquirindo na água os elementos
calcários indispensáveis para a construção de sua casa. Mas note bem, quem a constrói é o mar. E o pólipo morre deixando a sua habitação e uma sólida reputação do
trabalho, diante da qual empalidecem as da formiga e da abelha.
Sobre um recife de coral, pisa-se uma necrópole abandonada há séculos pelas larvas, como prova de sua indolência e de sua existência aparentemente inútil. Poder-se-ia
acreditar, daí, que o recife é construído de matéria morta. Nada disso, e é aqui que o caso se torna curioso: uma ilha madrépóra é meio viva no interior. Se não
o fosse, ela não resistiria dez anos à ação do oceano. A parte viva do recife é limitada ao lugar aonde vêm bater as vagas e à sua superfície submarina. Expostos
ao sol ou descobertos, os gelatinosos construtores de rochedos morrem quase imediatamente.
Avançando o mais longe possível, pode-se perceber, na maré baixa, as madréporas vivas massas semelhantes ao granito formam a colméia de coral e seus escaninhos,
cujas células os pólipos habitam. As regiões superiores, geralmente vazias, são os cemitérios, as mais baixas são as cidades vivas. Incessantemente mortos e substituídos,
devorados pelos peixes, atacados pelas vagas eis a existência dos recifes de coral. Eles são tão vivos como uma couve ou uma árvore. Cada tempestade quebra-lhes
pedaços, que o coral vivo regenera, feridas abrem-se e cicatrizam como num corpo humano.
Não existe talvez nada mais misterioso na natureza do que esse dique vivo, que repara as suas brechas por si próprio e resiste por sua própria força ao eterno
embate do mar. Ficamos estupefatos ao considerar a extensão de um desses atóis em luta perpétua com as vagas.
Diversamente da ilha onde se passa essa narrativa (e que é uma terra central cercada de uma barreira de coral ou recife circular, tendo, entre ambas, certa extensão
de mar calmo e pouco profundo, a laguna), é o próprio recife que forma a ilha: o recife pode ser coberto de árvores ou quase estéril, ou ainda dividido em ilhotas,
algumas das quais podem surgir no lagoão, mas este, geralmente, é um lago vazio, com fundo de areia e de coral, habitado por uma fauna especial, ao abrigo das vagas.
Se refletirmos em que o atol palpita, que ele constitui uma unidade orgânica, um todo tão vivo como uma tartaruga, embora menos superiormente organizado, não
podemos deixar de ficar impressionados ante a imensidade de semelhante estrutura.
O atol de Vliegen, no arquipélago polinésico, mede, de uma borda interior à outra do lagoão, sessenta milhas de comprimento sobre vinte milhas de largura máxima.
Nas ilhas Marshall, Rimsky Korsakoff tem cinqüenta e quatro milhas de comprimento sobre vinte de largura. E Rimsky Korsakoff é uma coisa viva, com suas secreções,
suas excreções, seu contínuo crescimento, uma coisa cuja organização é muito mais complicada que a dos coqueiros que crescem sobre o seu dorso ou a das flores de
seus bosques.
A história do coral é a de cem mundos, e o capítulo mais longo da sua história é aquele que trata das variedades e das formas infinitas do coral.
À beira do recife, no lugar de onde Dick arpoava os peixes, podia-se ver sob as águas uma rocha coberta de uma espécie de limo rosa-pálido. Era uma variedade
de coral. E nas bacias ao longo do mar havia outros espécimes daquele mesmo tom de flor de pessegueiro. A menos de cem metros de Emelina, as bacias continham-nos
de outras cores, desde o vermelho de laça até o branco de alabastro, mas as formas mais extravagantes achavam-se atrás dela, na laguna.
Dick, depois de ter arpoado vários peixes, deixou-os sobre o recife, para carregá-los mais tarde. Fatigado de matar, ele passeava, examinando as diversas criaturas
que ia encontrando, enormes lesmas da forma e da grossura de pepinos ali habitavam, havia medusas globulares, semelhantes a laranjas, do tamanho de laranjas, estranhos
ossos de peixes, chatos, brilhantes e brancos, dentes de tubarão, espinhas dorsais de ouriços marinhos, às vezes um escaro morto, com o estômago dilatado pelos pedaços
de coral de que se alimentara. Caranguejos, ouriços marinhos, algas de colorido e desenho espantosos, estrelas-do-mar, umas pequenas, coloridas como pimentas de
Caiena, outras gigantescas e pálidas. Todas essas coisas e centenas de outras, esplêndidas e fantasistas, se encontravam sobre os recifes.
Abandonando o arpão, Dick explorava uma bacia profunda, em forma de banheira, entrou até os joelhos e ia mergulhar mais, quando se sentiu preso por um pé. Era
como se tivesse pisado numa armadilha cuja mola fortemente se fechara. Deu um grito de dor e de medo e eis que de repente a corda de um látego enlaçou-lhe o joelho
esquerdo, distendeu-se e manteve-o firme.
o que a vasa ocultava / 4
Emelina tinha quase esquecido a Dick naqueles últimos momentos, o sol tocava o horizonte e a sua luz palhetava de ouro as bacias rochosas. À hora do poente e
da maré baixa, o recife tomava um aspecto particular, tinha o cheiro das algas expostas ao ar. O ímpeto das vagas serenava, o coral era acariciado pela água constelada
de gemas, e o grande Pacífico tornava-se um resplandecente cristal, que avançava suavemente para a praia, sobre a qual espumava cantando.
Ali, como sobre o cimo da colina, do outro lado da ilha, auscultava-se o ritmo das vagas. Elas pareciam fazer: sempre e sempre!... sempre e sempre!...
A brisa trazia de mistura os borrifos da água e os gritos das gaivotas. Esses pássaros assombravam o recife como almas penadas, sem repousar nunca em parte alguma,
nem jamais interromper a sua queixa, mas, ao crepúsculo, o seu gemido parecia mais longínquo e menos triste, talvez porque a essa hora a ilha inteira parecia inundada
de paz.
Emelina desviou a vista do oceano para olhar a terra atrás da laguna, ela podia reconhecer a clareira verde, onde se encontrava a pequenina casa aconchegada
contra o artu e meio escondida pela sombra da árvore de fruta-pão. Na mata, as palmas dos grandes coqueiros ultrapassando as outras árvores, recortavam o seu rendilhado
sobre o cobalto sombrio do oriente. Aquele quadro parecia irreal, e mais maravilhoso do que um sonho.
À aurora (e Dick partia sempre antes da aurora, se a maré era propícia), a vista era talvez ainda mais bela, porque, acima da ilha mergulhada na sombra, e contra
um fundo estrelado, os cimos das palmeiras se embebiam da luz matinal. Esta, como um espírito, atravessava o céu azul, as árvores verdes e a laguna de turquesa,
expandindo-se e como que se encorpando para aflorar a espuma branca e deslizar sobre o mar; ela estendia-se então, semelhante a uma cauda de pavão que se abre, até
que, de repente, a noite se tornasse dia. As gaivotas gritavam, e as vagas coroadas de ouro fremiam, o vento da aurora soprava, e as palmeiras ondulavam como só
sabem ondular as palmeiras.
Emelina imaginava sempre estar sozinha na ilha com Dick, mas a beleza ali igualmente se encontrava, e a beleza é uma grande amiga. A moça sentia-lhe o encanto,
quando ouviu chamarem-na. Voltou-se vivamente. Lá longe, Dick, mergulhado até os joelhos, imóvel, com os braços erguidos, pedia socorro. Ela ergueu-se de um salto
e pôs-se a correr.
Outrora, sobre aquela parte da ilha, tinha havido uma ilhota, um átomo de ilhota, que consistia nalgumas palmeiras e num punhado de vegetação, talvez fora destruída
por alguma violenta tempestade. Faço-lhe aqui referência, porque sua existência contribuiu indiretamente para a salvação de Dick, visto que nos lugares onde existiram
semelhantes ilhotas, subsistem plataformas, feitas de corais aglomerados.
Sobre esse fundo rugoso, Emelina, com seus pés nus, não se teria jamais aproximado a tempo de Dick, se entre ambos não se encontrasse felizmente uma superfície
plana e comparativamente lisa.
Meu arpão! gritou Dick, logo que avistou Emelina.
A princípio, pareceu à moça que seu primo estava enredado nas sarças, depois de supor ver cordas que se enrolavam em torno do corpo dele. Qualquer que fosse
a natureza da coisa que o retinha ao fundo, a situação era terrível, horrorosa como um pesadelo. Ela chegou, com a rapidez de Atalanta, à extremidade do rochedo
onde se encontrava o arpão, avermelhado pelo sangue dos peixes mortos.
Quando chegou perto de Dick, empunhando a arma, ela notou, opressa de terror, que as cordas que o enlaçavam eram vivas, que elas deslizavam e se enrugavam sobre
o corpo do rapaz, uma delas ligava seu braço esquerdo ao flanco, o braço direito continuava livre.
Depressa, depressa! gritou ele.
Em um segundo Emelina estendeu-lhe o arpão, depois, ajoelhada, fixou, com os olhos dilatados de horror, o charco de onde emergiam as cordas. Malgrado o seu pavor,
ela estava disposta a lançar-se ali dentro e bater-se com o horrendo ser, qualquer que ele fosse.
A tragédia não durou mais que um instante. Do seio da água profunda, surgiu uma face lúgubre, que procurava magnetizar Dick. Os olhos eram grandes, redondos,
imóveis e fixos, uma tromba pesada e larga, semelhante a um bico de papagaio, pendia entre eles, e essa tromba trabalhava, gesticulava, parecia fazer sinais, mas
o que petrificava o coração era a expressão dos olhos, de tal modo frios e sinistros, tão desprovidos de paixão e de especulação, e no entanto tão carregados de
vontade e de fatalidade.
De muito longe, das profundezas insondáveis, o polvo tinha-se elevado com as águas, ele se alimentava de caranguejos, quando a vazante o esqueceu no charco.
Talvez adormecido, tinha sido despertado por um ser nu e sem defesa que invadia o seu leito. Era jovem, e pequeno, como o são os octópodes, mas bastante forte para
afogar um touro.
Os polvos não foram reproduzidos senão uma vez em escultura, por um artista nipônico, essa imagem é uma das mais terríveis obras-primas da estatuária, representa
um banhista que acaba de ser atacado. O homem, em delírio, num grito, ameaça com o braço livre o espectro que o oprime. Os olhos do polvo estão fixos nele, olhos
mortos, mas horríveis pela fria intensidade do seu desejo.
Uma outra corda saiu do meio de um jato d'água para prender Dick pela coxa direita. No mesmo instante, este último mergulhou a ponta do arpão através do olho
do monstro, e a enterrou profundamente, varando a carcaça gelatinosa, até que a extremidade do arpão veio, resvalando, quebrar-se contra o rochedo. Ao mesmo tempo
o charco se tingiu de tinta e as cordas relaxaram. Dick estava livre.
Emelina, precipitando-se, enlaçou-o, soluçando e apertando-se contra ele, ela o abraçava febrilmente.
Maquinalmente, ele passou seu braço esquerdo em volta dela, como para protegê-la, mas não pensava em sua companheira. Louco de raiva, lançando gritos roucos,
ele mergulhou o arpão quebrado, várias vezes, nas profundezas tenebrosas da bacia, procurando aniquilar o inimigo que, apenas há um instante, o tinha em seu poder.
Então, lentamente, tornou a si, enxugou a fronte, e olhou o arpão quebrado.
Bruto! exclamou. Viste os seus olhos? Viste os seus olhos?! Eu queria que ele tivesse uma centena deles e eu cem arpões para furá-los!
Ela apertava-se sempre contra ele, chorando e sorrindo, dir-se-ia que era ele o salvador.
O sol desaparecia quase completamente. Dick levou a sua companheira até o lugar onde o barco repousava, em caminho ele enfiou as calças. Ajuntou o produto de
sua pesca, e, enquanto atravessava a laguna a remo, falava e ria, rememorando os incidentes do combate, tomando toda a glória para si e parecendo completamente esquecido
do papel desempenhado por Emelina.
Não era ciúme ou ingratidão, mas simplesmente porque, durante aqueles últimos cinco anos, tudo, na sua pequena comunidade, se reportava a ele. Ele era o senhor
imperial. Ele não teria pensado em agradecer-lhe por lhe haver alcançado o arpão, da mesma forma que não teria pensado em agradecer à sua mão direita por haver mergulhado
a arma no monstro.
Quanto a Emelina, inteiramente satisfeita, não desejava nem louvores nem ações de graças: ela era a sua escrava e a sua sombra, ele era o sol.
No momento de deitar-se, Dick recordava os pormenores do combate, enumerava os seus feitos, anunciando o que faria num próximo encontro daquela espécie e continuou
falando por muito tempo antes de adormecer, o que teria acabado por tornar-se fastidioso para qualquer outro ouvinte, mas, para Emelina, era mais interessante que
a Odisséia.
O espírito humano não progride no sentido intelectual quando se está isolado do mundo, mesmo quando se leva a existência bárbara e feliz dos selvagens.
Dick, enfim, estendeu-se sobre as ervas secas, cobriu-se com o pedaço de flanela listada que servia de coberta e, dentro em breve, estava a roncar como um justo.
Emelina, deitada perto dele, continuou acordada: ela pensava. Um novo terror entrara na sua vida. Ela encontrara a morte pela segunda vez, mas uma morte ativa e
combatente.
o som de um tambor /5
No dia seguinte, Dick, à sombra do artu, com uma linha ao lado, abria uma caixa de anzóis. A princípio, continha a caixa duas dúzias de anzóis de vários tamanhos,
mas agora apenas restavam seis, quatro pequenos e dois grandes. Era um dos grandes que o adolescente fixava à sua linha, pois tencionava voltar no dia seguinte ao
antigo acampamento para colher bananas e, pelo caminho, pensava pescar na laguna.
A tarde avançava e o calor começava a diminuir. Sentada sobre a relva, perto dele, Emelina segurava a extremidade da linha, enquanto ele retificava os falsos
nós. De súbito ela ergueu a cabeça.
Não havia um frêmito no ar; salvo o frufru de asas do pássaro pousado sobre o artu, o único ruído perceptível vinha dos recifes afastados. De repente, um outro
som se juntou ao acalanto das vagas: um leve bater como o de um tambor ao longe.
Escuta! disse Emelina.
Dick cessou de trabalhar. Todas as sonoridades da ilha eram familiares; aquela parecia estranha.
Ora lento, ora rápido... de onde vinha aquele rufar? Ninguém o podia dizer. Às vezes parecia vir do mar, às vezes da mata, conforme a imaginação do observador.
Dick e Emelina escutavam, silenciosos. Nisto um suspiro atravessou os ares: era o vento da tarde que recém nascera. Ele fez tremer as folhas das árvores e, exatamente
como se passa a esponja sobre uma imagem traçada numa ardósia, o zéfiro apagou os rufos do tambor.
No dia seguinte, de manhã, Dick embarcou na canoa, levando consigo o anzol, a linha e iscas de peixe cru. Emelina ajudou-o a impulsionar o barco e ficou sobre
a margem, dando-lhe adeus com a mão, enquanto ele dobrava o pequeno cabo coberto de cacaueiros. As expedições do seu primo eram um dos incômodos de Emelina; ficar
assim sozinha era horrível, entretanto ela nunca se queixava. Ela vivia num paraíso, mas uma secreta intuição lhe dizia que, além de todo aquele sol, além daquele
esplendor do mar azul e do céu, além das flores e da folhagem, além da aparência amável da natureza, espreitava, oculto e ameaçador, o dragão da adversidade.
Dick remou durante quase uma milha, depois descansou os remos e deixou o barco à mercê da correnteza. A profundidade da água, ali, dissimulava o fundo. O sol
iluminava o recife, batendo-lhe em diagonal e semeando-o de faíscas.
O jovem pescador enfiou a isca no anzol e arremessou-o, em seguida amarrou a linha à cavilha do remo e, sentado ao fundo do barco, inclinou a cabeça por cima
da borda, para olhar as águas. Algumas vezes não havia nada a ver, salvo o azul carregado da água; e depois um enxame de cabeças em forma de flecha atravessava do
círculo visual de Dick e desaparecia, pois vinha em sua perseguição qualquer coisa que se assemelhava a uma barra de ouro. Então um grande peixe se materializava
e flutuava na sombra do barco, imóvel, salvo o movimento de suas guelras. Um instante depois partia, com um golpe de cauda.
De súbito, o barco se inclinou e teria virado se Dick não se achasse do lado oposto àquele de onde pendia a linha, depois o barco tomou o prumo, a linha se estendeu
algumas braças além, a superfície da laguna se agitou como se a batessem por baixo com um bastão de prata. Um albicora acabava de morder. Atando a extremidade da
linha a um remo, Dick destacou-a da cavilha onde estava presa, e lançou o remo à água. Ele fez tudo isso com maravilhosa rapidez, enquanto a linha estava ainda frouxa.
Um instante depois, o remo corria sobre a superfície da laguna, ora na direção dos recifes, ora na da praia, flutuando no nível ou mergulhando por uma extremidade;
mergulhava completamente, desaparecia um momento, depois reaparecia.
Era uma divertida comédia, porque o remo parecia dotado de uma vida demoníaca e animado de um desejo de destruição; a mais inteligente, a hábil das criaturas
vivas não teria melhor combatido o grande peixe. O albicora debatia-se freneticamente, procurando talvez atingir o mar alto, para desembaraçar-se de seu inimigo;
ele parava perplexo, ia de um lado para outro, depois investia energicamente rumo à laguna para voltar da mesma maneira. Procurando as profundezas, ele arrastava
os remos a algumas braças debaixo d'água; em seguida, em busca d'água, saltava ao sol como um crescente de platina e o ruído que fazia ao retombar repercutia por
entre as árvores que bordavam as encostas. Passou-se uma hora antes que o monstro manifestasse sinais de fraqueza.
Até ali a batalha tivera lugar perto da margem, mas em seguida o remo derivou sobre o lençol d'água e lentamente descreveu grandes círculos que, no azul sereno,
se tornaram pequenas vagas orladas de nácar.
Dick, manejando o remo que restava, aproximou-se e puxou o outro, até que o vulto luzidio do peixe aparecesse à flor d'água, debatendo-se.
A luta foi ouvida a várias milhas pelos habitantes de laguna. O senhor do domínio teve conhecimento dela. Uma barbatana sombria fendeu a água e, enquanto Dick,
puxando a linha, arrastava a sua presa, uma sombra monstruosa manchou as profundezas, e o sulco brilhante formado pelo albicora desapareceu como envolvido por uma
nuvem. E quando Dick levantou novamente a linha, não restava mais que a cabeça do peixe, que fora seccionada do corpo como por gigantescas tesouras.
O monstro gris-escuro deslizou perto do barco; Dick, furioso, esbravejou, mostrando-lhe o punho, depois tomando a cabeça do vencido, separada do corpo, lançou-a
na água, ao ladrão. Com um rápido movimento, o tubarão fez turbilhonar a água e oscilar a canoa; depois, virando-se sobre o dorso, engoliu a cabeça e mergulhou lentamente.
velas sobre o mar/6
Dick ajustou o anzol e tomou os remos. Devia remar três milhas contra a maré, o que era difícil. Enquanto isto, ele falava e resmungava consigo mesmo. Há algum
tempo, vinha sentindo-se incomodado, principalmente por causa de Emelina. Naqueles últimos meses, ela mudava de maneiras e mesmo de fisionomia. Tinha a impressão
de que uma nova pessoa tomava o lugar de sua companheira de infância, esta parecia diferente. Não notava que ela se ia tornando deveras encantadora sabia unicamente
que era outra e que seus modos lhe desagradavam, por exemplo, ela ia banhar-se sozinha.
Antes daqueles seis últimos meses, andava ele inteiramente satisfeito, a comer, a dormir, a procurar e a preparar o alimento, a construir e reconstruir a casa,
a explorar a mata e os recifes, mas, agora, um enervamento o dominava, não compreendia exatamente o que queria, tinha um vago desejo de deixar o local onde se encontravam,
não a ilha, mas o lugar no qual tinham construído a sua morada.
Era talvez a civilização atávica que o fazia pressentir as coisas que lhe faltavam: as cidades, as ruas, as casas, as preocupações, a caça ao ouro, a conquista
do poder! Era talvez simplesmente o homem que desejava o amor, sem saber que o amor estava ao seu alcance.
A canoa costeou a margem, ultrapassando as clareiras revestidas de moitas e a obscuridade de catedral das árvores de fruta-pão; então, atingindo o promontório,
Dick chegou ao canal do recife.
Via-se uma pequena faixa de areia branca, mas seus olhos procuravam no recife um ponto sombrio, invisível para quem não o conhecesse. Sempre que vinha àquelas
paragens, ele descansava sobre os remos, examinando lugar onde revoavam as gaivotas e murmurava a ressaca Outrora aquela mancha o enchia de medo, tanto quanto de
curiosidade, mas, com o hábito e essa penumbra com que o tempo envolve as coisas, o medo desaparecera, e apenas subsistia a curiosidade; a curiosidade que leva uma
criança a ficar olhando enquanto matam um animal, apesar da revolta de sua alma.
Ao cabo de um momento recomeçou a remar e o barco se aproximou da praia. Ali acontecera alguma coisa, pois a areia se achava pisada e manchada de sangue, centro,
os restos de uma grande fogueira fumavam ainda onde as vagas expiravam, havia dois fundos sulcos produzidos por botes. Um prático dos mares do sul, baseando na forma
desses sulcos e os sinais dos balancins, concluiria com justa razão, que duas pirogas tinham ali abordado.
No dia anterior, logo no início da tarde, dois barco pertencentes talvez à ilha longínqua que punha uma sombra no horizonte de su-sudoeste, tinham entrado na
laguna, um em perseguição do outro.
Mas é melhor velar os fatos que ali se desenrolara. Um tambor de pele de tubarão encheu a floresta com seu rufo. Toda a noite, os vencedores celebraram a vitória
e, pela aurora, voltaram para a sua terra ou, antes, para seu inferno natal.
Observando atentamente a praia, achar-se-ia um sinal desenhado, além do qual não havia mais pegadas: isto queria dizer que, por uma razão qualquer, o resto da
ilha era tabu.
Dick desembarcou. Recolheu uma lança quebrada, de madeira dura, com ponta de ferro. À direita, alguma coisa jazia entre os coqueiros. Dick se aproximou. Era
um montículo de entranhas, aparentemente de uma dezena de carneiros; entretanto, não havia desses animais na ilha e, em geral, as pirogas de guerra não os transportam.
A areia contava tudo: o pé que perseguia e o pé perseguido, os sinais do joelho, da fronte e dos braços abertos do vencido, o calcanhar do chefe que tinha matado
a seu inimigo, cosendo-lhe o corpo à terra, arrancando-lhe, depois, as entranhas e furando-o de lado a lado, para passar a cabeça através do corpo e servir-se deste
como de um manto; depois os sinais da volta do vencedor, carregando o inimigo.
A areia evocava a história da batalha, os gritos e os brados, o choque das maças e das lanças tinham-se esvaído e no entanto o fantasma da guerra ainda subsistia
ali: o ar, ou talvez o éter, ficara impregnado de violência e de massacre.
Dick, olhando em torno de si, estremeceu, sua intuição advertia-o de que ele acabava de escapar de um grande perigo. Alguém tinha vindo e partira, compreendia-se
facilmente, mas restava saber se os visitantes tinham tomado o mar alto ou o braço direito da laguna.
Dick subiu ao cimo do monte e percorreu com o olhar a extensão das vagas. Longe, para o sudoeste, ele distinguiu as velas sombrias de duas pirogas, sua aparência
tinha qualquer coisa de indescritivelmente desolado, assemelhavam-se a folhas fanadas pelo outono, a falenas escuras arrastadas pelas águas. As sombras longínquas
confirmavam os indícios observados sobre a areia e o espectador se horrorizou dos próprios pensamentos.
As embarcações vogavam rapidamente, tendo cumprido a sua missão satânica. Elas bem podiam parecer solitárias, velhas e tristes, semelhantes a folhas mortas derivando
sobre as águas: seu aspecto não fazia mais que sublinhar o seu caráter horrível.
Dick nunca tinha visto pirogas, mas sabia que aquelas embarcações longínquas carregavam homens e que esses homens tinham cometido crimes horrendos. Até que ponto
o sinistro da tragédia ter-se-ia revelado à sua inteligência semi-consciente?
Tendo escalado o rochedo, ele estava agora sentado por terra, com as mãos juntas em torno dos joelhos encolhidos; de cada vez que ele abordava aquela parte da
ilha, sobrevinha qualquer acidente. Da última vez, quase chegara a perder o barco, insuficientemente avançado sobre a areia, de maneira que a maré o ia arrastando;
quando voltou, carregado de bananas, tivera de meter-se n'água até os joelhos, conseguindo com grande dificuldade salvar a embarcação. De outra feita, caíra de uma
árvore e só por um milagre tinha escapado à morte. Depois, desencadeara-se um furacão, fustigando a laguna com uma espécie de nevada de espuma, e abatendo os cocos,
que saltavam e voavam como bolas de tênis. Agora ele escapava a uma desgraça, embora sem saber exatamente qual fosse; era como se a Providência lhe proibisse ir
até lá.
Ele viu diminuírem as velas, que o vento alontanava no azul; em seguida desceu para colher bananas; cortou quatro grandes cachos, que o obrigaram a fazer duas
viagens. Depois de colocadas as bananas no barco, partiu.
Há muito tempo já que uma grande curiosidade o vinha dominando, o que lhe causava uma vaga vergonha. Fora o medo que produzira tal curiosidade. E foi talvez
esse medo, que ainda não o abandonara de todo, e o terrível prazer de afrontar o desconhecido, que o levaram a deixar-se dominar pela sua necessidade de saber.
Depois de ter remado uma centena de metros, dirigiu o barco para o recife. Mais de cinco anos haviam passado desde a manhã em que ele atravessara a laguna, com
Emelina sentada à proa, com sua guirlanda de flores na mão. Podia ter sido ontem, apenas, porque cada coisa parecia idêntica: as ondas, as gaivotas, o sol ofuscante,
o cheiro fresco e salgado do mar, a palmeira à entrada da laguna continuava curvada sobre as águas; tudo era igual, e, em torno da ponta de coral à qual tinha ele
amarrado o barco na última vez, encontrava-se ainda um fragmento da corda que cortara na sua precipitação.
Talvez tivessem entrado navios na laguna, mas nenhum devia ter notado o esqueleto do recife, não se podia vê-lo completamente senão do cimo da colina, e assim
mesmo era preciso saber para onde olhar. Da praia, um pequeno ponto era apenas visível e parecia um velho destroço ali abandonado por uma tempestade, um velho destroço
sacudido durante anos e anos de um lado para outro e que por fim encontrara um lugar de repouso.
Dick amarrou o barco e escalou o recife. A maré subia como outrora, a brisa soprava fortemente, e uma fragata, de plumagem de ébano e bico vermelhão, chegou,
num vôo planado. Ela voava em círculo, gritando furiosamente, como que incomodada pela presença do intruso, depois deixou-se levar pelo vento, revoluteou sobre a
laguna e sumiu-se no mar.
Dick se aproximou do local que tanto o impressionava. Lá se encontrava ainda o velho barril, rachado pelos ardores do sol, com as aduelas disjuntas, os arcos
quebrados; todo o álcool se evaporara há muito. Perto do barril jazia um esqueleto em torno do qual tombavam alguns trapos. O crânio estava virado de perfil e a
mandíbula inferior tinha-se desprendido, os ossos das mãos e dos pés se articulavam ainda e as costelas não estavam separadas.
O sol iluminava com igual indiferença o coral faiscante e aquela carcaça branca e polida, aquela armação humana. Aquele espetáculo inspirava a Dick menos horror
que espanto. Ele, que não estava iniciado no pensamento da morte, não o associava às idéias de sepultura, de luto, de eternidade e de inferno. Aquele mistério lhe
falava de outro modo que não a nós.
Em seu espírito formavam-se associações: ele revia os esqueletos dos pássaros que encontrara no mato, os peixe que tinha matado, e mesmo as árvores tombadas,
mortas e apodrecidas, mesmo os restos dos caranguejos.
Se lhe perguntassem o que estava contemplando, ele teria respondido: a mudança.
Toda a filosofia do mundo não teria podido, naquele momento, ensinar-lhe mais a respeito da morte, de que ele ignorava até o nome. Ele estava hipnotizado por
aquele milagre e por uma multidão de pensamentos que se atropelavam no seu espírito, como uma turba de espectros a quem acabassem de abrir uma porta. Exatamente
como uma criança que, por uma lógica sem réplica, compreende que o fogo que a queimou a queimará ainda e queimará a qualquer outra pessoa, ele adivinhou que o seu
corpo e o de Emelina se tornariam semelhantes às ossamentas que via diante de si. Veio-lhe então a vaga pergunta, que nasce, não no cérebro, mas no coração, e que
é a base de todas as religiões.
Para onde irei?
Sua inteligência não era especulativa, e a interroga cão não fez mais do que atravessar a sua imaginação por um momento e desaparecer. O espanto, contudo, o
paralisara, e pela primeira vez na vida ele começou a devanear. Outrora aquele cadáver semeara, no seu espírito confuso e aterrorizado, germes de idéias que o esqueleto
agora fazia amadurecerem. E veio-lhe, de súbito, a noção da morte universal.
Ficou por muito tempo imóvel, depois, com um profundo suspiro, voltou-se para o barco e partiu, sem olhar para o recife uma única vez. Ele atravessou a laguna
e remou para a cabana, ficando, o tanto quanto possível, ao abrigo das árvores.
Olhando-o, mesmo da praia, ter-se-ia notado uma diferença nele. Um selvagem rema com rapidez, lançando os olhos para todos os lados, entrando em contacto com
a natureza por todos os poros, embora seja preguiçoso como um gato e durma a metade do dia, acordado, ele é todo olhos e todo ouvidos, uma criatura sempre dominada
pela última impressão.
Dick, remando, não olhava agora em torno, ele pensava e recordava: sua barbárie acabara de receber um golpe.
Ao passar pelo pequeno cabo onde flamejavam os cacaueiros, ele olhou por cima do ombro. Alguém estava de pé sobre a margem, à beira d'água. Era Emelina.
a escuna / 7
Eles levaram as bananas para casa, pendurando-as a um galho do artu. Dick, ajoelhado, acendeu o fogo, para preparar a refeição da tarde. Depois de tudo terminado,
desceu até o lugar onde estava amarrado o barco, e trouxe qualquer coisa. Ele não tinha dito palavra a Emelina acerca do que vira.
Sentada sobre a relva, ela trazia, à guisa de mantilha, um pedaço de flanela listada e embainhava outro.
O pássaro saltitava, bicando uma banana que lhe haviam lançado. Uma leve brisa fazia dançar por terra as moedinhas de luz dourada; as folhas denticuladas da
árvore de fruta-pão roçavam-se docemente, com um rumor de garoa.
Onde encontraste isso? perguntou Emelina, designando os pedaços de azagaia que Dick lançara ao chão, quase ao lado dela, enquanto ele entrava na casa para
ir buscar a faca.
Na praia respondeu o jovem, sentando-se, e examinando os dois fragmentos para ver como poderia emendá-los.
Emelina examinou também os pedaços de azagaia, reunindo-os mentalmente, ela não gostava daquele objeto tão agudo, tão selvagem, e com a extremidade manchada
de sangue, na altura de mais de um palmo.
Andou gente por lá continuou Dick, juntando os dois pedaços e estudando a fratura.
Onde?
Lá na praia. Achei isto na areia, e a areia estava pisada.
De onde vieram?
Não sei. Eu subi ao monte e avistei os barcos, longe.
Dick, lembras-te do ruído de ontem?
Sim.
Eu o ouvi, de noite.
Quando?
Antes da lua sair. O barulho continuava no mato. Eu pensei que estivesse sonhando, mas depois compreendi que estava acordada. Tu dormias, eu te sacudi para
que ouvisses também, mas tu não conseguias acordar, então a lua partiu, e o ruído desapareceu com ela. Como fazem eles aquele barulho?
Não sei, mas eram eles, e deixaram isto sobre a areia, e a areia estava revolvida, e do alto do monte eu vi os seus barcos ao longe.
Supus também ouvir vozes continuou Emelina mas não estou bem certa.
E ela pôs-se a pensar, observando o seu companheiro, que ligava os dois pedaços da arma com essa espécie de tecido pardo que envolve o tronco dos cacaueiros.
Depois de ter emendado a arma, com uma habilidade maravilhosa, ele fincou a lança na terra mole, para limpá-la; em seguida, com um pedaço de flanela, começou
a poli-la, até que ela brilhasse. Ficou encantado. Era inútil como arpão, porque não tinha farpa, era inútil como arma, porque não havia inimigos com quem bater-se.
Mas sempre era uma arma!
Quando acabou de esfregar, levantou-se, apertou a cinta de fibra de coqueiro que Emelina lhe fizera, entrou na casa, tomou o arpão e dirigiu-se para o barco,
dizendo a Emelina que o seguisse. Foram até o recife, onde, segundo o seu hábito, ele despiu-se.
Ali, coisa estranha, ele andava sempre nu, ao passo que, sobre a ilha, vestia sempre alguma coisa. Contudo, não era tanto de se estranhar o caso.
O mar é um purificador do corpo e da alma; diante desse grande e suave gênio, a gente não pensa mais como no interior das terras. Qual a mulher capaz de exibir-se
numa cidade ou numa estrada do campo, ou mesmo num rio, como se mostra numa praia de mar?
Qualquer instinto levava Dick a vestir-se em terra e a ficar nu diante do mar. Dentro de um minuto, abordava ele os recifes, com a azagaia numa das mãos e o
arpão na outra.
Emelina sentou-se ao lado de uma pequena bacia, cujo fundo era tapetado de galhos de coral. Ela olhava-lhe as profundezas e se perdia num vago sonho semelhante
àqueles em que nós caímos quando estamos a observar a dança das chamas na lareira.
Um grito de Dick fê-la estremecer; ela deu um salto, olhou para a direção que ele designava e ficou atônita. Uma coisa espantosa ali se via: a leste, seguindo
a curva dos recifes, e apenas afastada um quarto de milha, chegava uma grande escuna; era lindo vê-la, inclinada sob a brisa, com todas as velas enfunadas e frisando
sob a sua quilha a espuma cor de neve.
Dick, com a azagaia na mão, estava de pé; deixou cair o arpão e permaneceu imóvel. Emelina alcançou-o a correr. Nenhum dos dois falava. O navio estava tão perto
agora, que se percebiam os menores detalhes, desde as grades do tombadilho até as garcetas dos rizes sobre a grande vela, toda batida de sol e branca como uma asa
de gaivota.
Uma multidão de homens se acotovelava a bombordo, olhando a ilha e os vultos sobre o recife. Emelina estava tisnada e brunida pelo sol e o vento, seus cabelos
flutuavam na brisa, a ponta da azagaia de Dick fulgurava.
Vistos do convés da escuna, eles pareciam um parzinho ideal de selvagens.
Eles vão embora disse Emelina, com um grande suspiro de alívio.
Dick não respondeu nada, a contemplar silenciosamente a escuna durante um momento. Então, certo de que ela ia embora mesmo, pôs-se a correr ao longo do recife,
chamando violentamente, gesticulando, como para fazer voltar o navio.
Um instante mais tarde, a brisa trazia um flébil grito de resposta; uma bandeira foi hasteada e depois baixada, como por irrisão, e o navio continuou o seu caminho.
Na verdade, ele estivera a ponto de voltar; seu capitão hesitou por um momento, sem saber se se tratava de náufragos ou de insulares: mas a azagaia fez pender
a balança da sua opinião em favor da teoria dos selvagens.
o amor /8
Dois pássaros se achavam empoleirados sobre um galho do artu. Koko tinha tomado uma companheira. Eles construíram um ninho com fibras de coqueiro, raminhos e
musgos, com um pouco de tudo, até com parcelas de folhas de areca arrancadas ao teto da casa. Esses furtos e essas construções do povo alado, que deliciosos incidentes
do grande episódio primaveril!
Os pilriteiros jamais floriam ali, naquele eterno verão, no entanto, ali vinha ter o espírito de maio, da mesma forma que vem para os campos ingleses ou para
as florestas alemãs. O que se passava nos ramos da árvore interessava muito a Emelina.
Os amores e a construção do ninho foram conduzidos segundo as regras habituais da natureza que seguem os homens e os pássaros. Toda espécie de sons bizarros
filtravam-se através da folhagem, provenientes, ou do poleiro onde os amorosos, vestidos de safira, repousavam lado a lado, ou do galho em forquilha onde o ninho
começava a tomar forma. Murmúrios e convites, espanejamentos de asas em leque, notas de querelas, seguidas de outros ruídos que lhes indicavam o fim. Às vezes, em
conseqüência disso, uma ou duas plumas sedosas e azuladas flutuavam no ar, ficavam presas no telhado ou caíam sobre a relva.
Alguns dias depois do aparecimento da escuna, Dick se preparava para ir colher goiabas no mato. Toda a manhã estivera ocupado a confeccionar um cesto para carregá-las.
A julgar por sua aptidão para os trabalhos manuais, ele, na vida civilizada, seria um engenheiro e construiria pontes e navios, em vez de fazer cestos de folhas
de palmeira e casas de bambus. Mas quem sabe se seria mais feliz?
O mais forte do calor já passara, quando Dick, carregando o cesto ao ombro, na extremidade de uma vara, partiu para o mato, em companhia de Emelina.
O lugar aonde eles iam, e que Dick descobrira num dos seus passeios, enchia Emelina de um vago medo, ela não iria lá sozinha nem por um império.
Entraram na mata e passaram por diante de um pequeno poço, com um fundo de areia fina e seca. Como se formara ali a areia? Impossível adivinhá-lo, a areia, no
entanto, ali estava, na borda cresciam moitas, que se refletiam na água cristalina. Deixaram o poço à direita e avançaram para o coração da floresta. Lá ainda reinava
o calor do meio-dia. Distinguia-se entre as árvores uma espécie de rastro, como se, em tempos antiqüíssimos, ali houvesse um caminho, através desse caminho pendiam
lianas, meio perdidas na sombra, meio batidas de sol. O hotoo, carregado de flores delicadas, vicejava em todo o seu esplendor, na penumbra, hibiscos vermelhos abriam
suas corolas sangrentas; artus, coqueiros e árvores de pão bordavam o caminho.
À medida que avançavam, as árvores se tornavam mais frondosas e a avenida entenebrecia. De súbito, numa volta, o caminho terminava num vale tapizado de relva.
Era o lugar que amedrontava a Emelina. Um lado era construído em terraços com enormes blocos de pedra, blocos de granito tão monstruosos, que não se podia compreender
como tinham sido ali colocados. A seus pés, levemente inclinada para diante, como sob o peso dos séculos, erguia-se uma enorme estátua de pedra grosseiramente esculpida,
de trinta pés de altura, pelo menos, e que parecia o espírito misterioso daquele estranho templo.
A figura e a plataforma, o vale e mesmo as árvores inspiravam a Emelina uma profunda curiosidade, misturada a uma vaga apreensão. Outrora, homens deviam ter
ali habitado por momentos, ela imaginava ver sombras se moverem no meio das árvores e o murmúrio das folhas parecia esconder vozes, como se as sombras dissimulassem
fantasmas. Com efeito, era uma paisagem impressionante para uma pessoa que estivesse sozinha, mesmo em plena luz do dia.
Por toda parte, no Pacífico, numa extensão de várias centenas de milhas, se encontram, disseminadas nos bosques, relíquias do passado, semelhantes àquele antigo
ídolo. Essas espécies de templos são quase todas semelhantes: grandes paredes rochosas, deuses maciços, a desolação recoberta por uma flora exuberante. Elas sugerem
uma religião que data de uma época em que o Pacífico era um continente, que, afundando lentamente no curso das idades, deixou somente visíveis, sob a forma de ilhas,
os planaltos e os cimos de seus montes.
Em torno dessas capelas, a mata, mais espessa, faz pensar em antigos bosques sagrados. Os ídolos são enormes, as suas fisionomias apagadas; o sol, a chuva, as
tempestades milenares lançaram um véu sobre elas. A esfinge é um brinquedo compreensível comparada a esses ídolos de um povo para sempre desaparecido, alguns dos
quais atingem a cinqüenta pés de altura e cuja ereção continua envolvida no mais completo mistério.
O homem de pedra tal era o nome que Emelina dera ao ídolo do vale; e, muitas vezes, de noite, quando os seus pensamentos erravam à toa, ela se imaginava
sozinha, de pé sob os raios da lua ou das estrelas, com as pupilas fixas nele.
Ele parecia escutar perpetuamente, e, sem querer, a gente começava a escutar também; então o vale parecia mergulhado num silêncio sobrenatural. Com um deus daqueles,
um tête-à-tête não era nada tranqüilizador. Enervada, Emelina sentou-se na sua base. Quando se estava perto dele, ele perdia o seu ar de vida e não era mais do que
uma grande pedra estendendo a sua sombra no esplendor do dia.
Dick deitou-se por terra para repousar; um momento após ergueu-se, mergulhou por entre as goiabeiras e encheu o cesto com seus frutos. Desde que avistara a escuna,
com seus grandes mastros e suas velas, com os homens brancos sobre o seu convés, sua imaginação andava perturbada com desconhecidos pensamentos de liberdade e de
aventura; ele se tornava mais moroso e inquieto. Talvez na sua memória ligasse ele a escuna à visão longínqua do "Northumberland"; o desejo de outras terras se infiltrava
nele com uma necessidade de mudança. Ele voltou com o cesto cheio de frutos maduros, ofereceu-os à sua companheira e sentou-se perto dela.
Quando acabou de comer, Emelina tomou a vara de que Dick se servira para carregar o cesto e, brincando, distraidamente, ela a curvava em forma de arco. Nisto
a vara, escapando-se-lhe, foi bater violentamente contra a face direita de Dick. Imediatamente, ele aplicou-lhe uma palmada nas costas. Ela olhou-o, atônita e perturbada,
depois um soluço subiu-lhe à garganta. No mesmo instante, pareceu-lhes que um véu se rasgava, que um mágico lhes tocava com a sua varinha de condão, que um frasco
se quebrava, espalhando o seu filtro. Como Emelina ficasse a olhar para o jovem, este súbita e furiosamente estreitou-a nos braços.
Um momento ele a conservou assim, deslumbrado, estupefato, sem saber o que fizesse dela.
E então os lábios de Emelina encontraram os seu num interminável beijo...
o sono do paraíso/ 9
A lua levantou-se aquela noite como de costume, dardejando as suas flechas de prata contra a casa. A casa estava vazia. A lua atravessou o mar e o recife. Iluminou
a laguna até o mais profundo de seu coração entenebrecido. Aclarou os cérebros de coral, os leitos de areia e os peixes que nele projetavam a sua sombra. O guardião
da laguna fez a sua ronda para saudá-la, as barbatanas do animal quebraram em mil pedaços a sua imagem refletida no espelho polido da água. Ela viu as costelas brancas
do esqueleto sobre o recife, e, espiando por cima das árvores, examinou o vale onde o grande ídolo de pedra velava solitário há milhares e milhares de anos.
A seus pés, na sua sombra, dois seres humanos e nus se confundiam, dormindo profundamente sob a sua proteção.
Não seriam de lamentar as suas vigílias se, de tempos a tempos, no curso dos séculos, semelhantes cenas se desenrolassem diante de si. Tudo aconteceu exatamente
como se passam os assuntos amorosos dos pássaros. Foi tão natural, tão casto, que não houve pecado.
Era um casamento segundo a natureza, sem festa nem convidados, e consumado com um maravilhoso cinismo, à sombra de uma religião desaparecida.
Eles eram tão felizes na sua ignorância, que não sabiam senão uma coisa, e era que de repente a vida se transformara, que o céu e o mar estavam mais límpidos
e que, por um poder mágico, eles faziam parte um ao outro.
Os pássaros na árvore acima deles eram igualmente felizes na sua simplicidade e no seu amor.
livro 2/segunda parte
uma lua-de-mel insular /10
Dick, certo dia, trepando sobre o artu, fez sair Dona Koko do ninho onde ela chocava e olhou para o interior deste, onde se encontravam vários ovos de um verde
pálido. Não lhes tocou, mas desceu, e o pássaro retomou o seu lugar como se nada tivesse acontecido. Tal aventura teria aterrorizado um pássaro afeito aos hábitos
humanos, mas ali o povo alado não era medroso, e tinha tal confiança, que, muitas vezes, uma daquelas lindas criaturas seguia Emelina pelo mato, olhando-a por entre
as folhas, chegando-se bem para perto dela, uma vez mesmo um pássaro lhe pousou no ombro.
Os dias passaram. Dick tinha perdido seus modos taciturnos, e o seu desejo de viajar desaparecera. Não tinha mais nenhum motivo para querer partir. Em todo o
vasto universo não encontrava nada mais desejável do que o que ele possuía.
Em vez de encontrar um selvagem seminu, seguido por sua companheira como por uma galguinha, agora, ao crepúsculo, teríeis visto um par de amorosos a passear
pelos recifes. Eles tinham ornamentado a sua casa com uma trepadeira trazida do mato, ela dava uma florzinha azul e curvava-se em ogiva acima da entrada.
Até então Emelina fazia quase toda a cozinha, agora Dick nunca deixava de ajudá-la. Ele não lhe falava mal em frases curtas, lançadas como a uma serva, e ela
ia perdendo a estranha reserva em que se ocultava desde a infância, e entremostrava agora a sua alma. Era uma mentalidade estranha a sua, a de um artista, quase
a de um poeta. No seu mundo interior habitavam os Cluricaunos evoluíam formas vagas, oriundas de coisas com que ela sonhara ou de que tinha ouvido falar, tinha idéias
sobre mar e as estrelas, as flores e os pássaros. Dick ouvia-a falar, como se presta ouvidos ao bisbilho de um arroio. Sua inteligência prática não podia tomar parte
nos sonhos de sua metade, mas a sua palestra lhe agradava.
Absorto numa profunda meditação, ele olhava-a longamente. Ele a admirava! Os cabelos de Emelina, longos e lustrosos, o prendiam nos seus anéis, ele os acariciava
com os olhos e puxava-os a si, mergulhando o rosto nas suas ondas, o seu cheiro intoxicava-o e ele o aspirava como o perfume de uma rosa. As pequeninas orelhas dela
eram semelhantes a conchinhas, o seu amante as tomava entre o polegar e o índice e brincava com elas, ele lhes puxava o lobinho ou tentava dobrar-lhes a concha.
Perdida num vago sonho de que ele era o objeto, ela o deixava fazer, depois, de repente, seus braços o procuravam e enlaçavam. Aquilo se passava em plena luz do
dia, sob o olhar vivo dos pássaros.
Contudo, todos os seus dias não se podiam perder assim. Dick continuava sempre um pescador entusiasta. Improvisou um arado com um dos bancos do barco e preparou,
perto do canteiro de taro, uma extensão de terra, onde plantou sementes de melão. Refez o teto da casa. Eles andavam sempre o mais ocupados que era possível naquele
delicioso clima. Mas o amor lhes vinha por acessos e eles esqueciam tudo. Como se visita um lugar para rememorar uma lembrança agradável ou penosa, eles voltavam
seguidamente ao vale do ídolo e passavam a seus pés tardes inteiras. Gozavam a delícia de caminhar juntos pela mata, perdendo e achando o caminho, descobrindo novas
flores. O prazer desses passeios ultrapassava a toda expressão.
Dick descobrira uma vez de súbito o amor, mas agora ele prolongava as carícias.
Um dia, ouvindo um novo ruído na árvore que abrigava a casa, Dick subiu a ela. O ruído provinha do ninho que a mamãe pássaro tinha temporariamente abandonado.
Eram gritinhos convulsivos e asmáticos que saíam de quatro bicos escancarados, tão ansiosos por serem alimentados, que se percebia até o fundo a garganta dos proprietários.
Aquilo representava a família de Koko. Antes de um ano, cada um daqueles horríveis animalzinhos felpudos, seria, com a ajuda de Deus, um esplêndido pássaro azul,
com algumas plumas irisadas na cauda, um bico de coral e olhos brilhantes e inteligentes. Ainda há poucos dias aquelas coisas estavam aprisionadas num ovo verde
pálido. E, um mês antes, não existiam.
Uma carícia roçou a face de Dick: era a mãe que voltava com o almoço de seus filhotes, Dick inclinou a cabeça para um lado e, sem mais se incomodar, ela encheu
as gargantas esfaimadas.
o desaparecimento de emelina /12
Meses se passaram. Já não havia mais que um pássaro nos galhos do artu. Koko ficara sozinho. Sua companheira e seus filhos tinham levantado vôo. A folhagem da
árvore de fruta-pão passou do verde sombrio para o ouro pálido, depois para o amarelo carregado; agora as folhas novas saudavam a primavera.
Dick tinha na cabeça o mapa completo da laguna, conhecia todas as suas profundidades e as regiões mais piscosas, a localização das urtigas de mar e as passagens
vadeáveis na vazante. Certa manhã, ele se preparou para uma pescaria; o local aonde ia achava-se a duas ou três milhas da sua casa e, para lá chegar, era preciso
atravessar a ilha; o trajeto era penoso, Emelina não o acompanharia.
Ela acabava de mudar o fio do colar de pérolas que às vezes usava. Este tesouro tinha uma história. Nos baixios mais afastados, Dick percebera um dia um banco
de conchas e colheu algumas na maré baixa para examiná-las. Eram ostras. A primeira que abriu causou-lhe tal repugnância, que seria sem dúvida a última, se na pele
de molusco não tivesse encontrado uma pérola quase duas vezes maior que uma ervilha; embora não suspeitando do seu valor, não pôde deixar de admirar-lhe os reflexos.
Ele lançou ao chão as ostras não abertas e levou a jóia para Emelina.
No dia seguinte, lá voltando casualmente, viu as ostras que esquecera, mortas e entreabertas ao sol. Examinou-as: uma gota de nácar achava-se encerrada em cada
uma delas. Então ele tomou uma porção daqueles moluscos, deixando-os abrirem-se e morrer. Veio-lhe a idéia de fazer um colar para a sua amiga; ela já possuía um
de conchinhas, mas ele queria oferecer-lhe outro.
Foi um longo trabalho. Ele furava as pérolas com uma agulha grossa, ao fim de quatro meses a obra estava terminada. As pérolas na sua maioria eram grossas, e
havia-as de um branco irisado, negras, róseas, algumas perfeitamente redondas, outras em forma de lágrimas, outras irregulares. A jóia valia talvez de quinze a vinte
mil libras, pois Dick só utilizava as mais belas, jogando fora as pequenas.
Emelina acabava de tornar a enfiar as suas pérolas; pálida, ela parecia indisposta. Toda a noite estivera inquieta. Como Dick partisse, armado de seu arpão e
demais petrechos de pesca, ela disse-lhe adeus com a mão, sem levantar-se. Habitualmente o acompanhava um trecho pela mata, mas naquela manhã continuou sentada diante
da porta da pequena habitação, com o colar sobre os joelhos, e olhando seu amigo até que este desaparecesse sob as árvores.
Não possuía nenhuma bússola para orientar-se, o que aliás não lhe fazia falta. Ele conhecia a mata de cor: a linha misteriosa além da qual não havia quase mais
artus; a grande faixa de sapotizeiros de uma centena de metros e que ia do meio da ilha até a laguna; as clareiras, algumas quase circulares, onde os passos se enredavam
nas altas moitas. Dick logo alcançou o mais embrenhado da floresta. Ali a flora estava em revolução. Toda espécie de caules cheios de seiva, pertencentes a plantas
desconhecidas, barravam o caminho e prendiam os pés; havia lugares pantanosos, onde era fácil cair-se, como numa armadilha. Se se parava para enxugar a fronte, os
ramos e lianas abatidos tornavam a levantar-se, encerrando o viandante na sua prisão.
Os ardores de todos os meios-dias que tinham pesado sobre a ilha pareciam haver deixado ali um pouco do seu torpor. Pairava no ar um calor de estufa, o monótono
e perpétuo zumbido dos insetos enchia o silêncio, sem destruí-lo. Uns vinte foiceiros teriam podido abrir um caminho, mas um mês ou dois mais tarde não se encontraria
o mínimo sinal dele. A vegetação ter-se-ia fechado sobre a estrada como a água sobre o sulco de um navio.
Lá, uma orquídea copiava às vezes um jarro, munido de sua tampa e contendo água. Outras vezes, na rede de lianas que ligava duas árvores, balançava-se uma outra
dessas parasitas que se assemelhava a um pássaro morto. As orquídeas ali cresciam como numa estufa e as árvores grandes, bastante raras, tinham uma aparência especial
e miserável. Estavam meio mortas de fome devido ao insólito crescimento das plantas gigantescas.
A imaginação amedrontava-se naquele lugar, pois não se tinha a impressão da completa solitude. A cada momento parecia que uma mão ia surgir do emaranhado dos
vegetais...
Dick, bastante desprovido de medo e de imaginação, experimentou essa angústia. Levou mais de três quartos de hora para atravessar o labirinto, por fim tornou
a encontrar o ar bendito, a verdadeira luz, e avistou a laguna azul entre os troncos das árvores.
Se não fora até lá de barco, era porque, na maré vazante, os acidentes do norte da ilha formavam uma barreira intransponível; naturalmente, teria podido fazer
a volta pela praia, mas isto representava um percurso de pelo menos seis milhas. Quando chegou à margem da laguna, eram quase onze horas e a maré atingia ao máximo.
Ali o recife ficava apenas a um quarto de milha da margem. O fundo da laguna não descia em rampa, mas caía a pique, numa profundidade de umas cinqüenta braças,
e podia-se pescar da margem como de uma ponte. Dick colocou suas provisões sob uma árvore, e atou um pedaço de coral à extremidade da linha, para servir de peso.
Depois de pôr a isca no anzol, lançou-o através dos ares até uma centena de pés da margem. Um pequeno coqueiro crescia à beira d'água.
Ele atou a linha àquele frágil tronco, para maior segurança, depois sentou-se, segurando também a linha. Prometera a Emelina voltar antes do pôr-do-sol, mas
ele era um pescador, isto é, tinha a longa paciência do gato e da ostra, a inconsciência do tempo. Vinha ali por puro amor do desporte mais do que pelo peixe.
Havia grandes peixes naquela parte da laguna, da última vez ele pescara um monstro que tinha a forma de um gato-marinho do Mississipi, intragável, embora divertido
de pescar.
A maré descia, e era então que se podia fazer melhor pesca. Não ventava mais, e o espelho da laguna frisava-se apenas sob a corrente da jusante.
Enquanto pescava, ele pensava em Emelina e na pequena casa sob as árvores. Mal se poderia chamar àquilo um pensamento. As imagens passavam diante do seu espírito,
imagens agradáveis e felizes, o esplendor do sol, o luar, a luz das estrelas...
Três horas se passaram sem que um peixe mordesse, ou sem o menor indício de que a laguna contivesse outra coisa senão água do mar e desapontamento. Mas ele não
se agastou. Era um pescador!
Deixou a linha atada à árvore e fez a sua refeição. Mal acabara o repasto, quando o frágil coqueiro estremeceu e curvou-se. Dick não precisou tocar a linha tensa,
para ver que seria inútil tentar erguer o animal que se debatia à sua ponta.
Nada mais havia a fazer senão deixar a presa agitar-se e cansar. Ficou, pois, estirado no chão, a olhar. Após alguns minutos, os movimentos da linha se tornaram
mais lentos e o coqueiro retomou sua atitude meditativa. Dick puxou a linha e trouxe apenas o anzol. Nem resmungou, pôs-lhe nova isca e tornou a lançá-lo, certo
de que o animal morderia ainda. Cheio dessa esperança e descuidoso da hora, ele ficou à espera.
O sol se inclinava para o ocidente. Ele não lhe deu atenção. Tinha completamente esquecido a promessa que fizera a Emelina. Agora o astro estava no seu declínio.
Súbito, por trás dele, do seio da mata, uma voz gritou:
Dick!
Deixou cair a linha e voltou-se sobressaltado. Ninguém se achava lá. Correu pela mata, chamando Emelina, mas apenas os ecos respondiam. Voltou para a margem
da laguna, persuadido de que fora vítima de uma alucinação, mas como o sol já se deitava, ele enrolou a linha, tomou o arpão e partiu.
Quando chegou à passagem difícil, teve medo, atormentado pela idéia de que tivesse acontecido alguma desgraça a Emelina. Estava sombrio ali, e jamais a vegetação
lhe pareceu tão espessa, a obscuridade tão triste, e as lianas tão tenazes. Perdeu-se na mata, ele que sempre estava certo do seu caminho! O instinto do caçador
o traiu e, durante algum tempo, errou de um lado para outro, como um navio sem bússola. Enfim conseguiu orientar-se e viu que se achava muito à direita do lugar
em que devia estar. Sentia-se como um animal escapado de uma armadilha e estugou o passo, guiado pelo ruído do recife.
Quando chegou à clareira que conduzia à laguna, o sol acabava de desaparecer por detrás da linha do horizonte.
Dick percebeu vagamente a casa sob o artu e correu para ela, atravessando o relvado em diagonal. Quando voltava após uma ausência, era sempre o vulto de Emelina
que ele primeiro avistava; ela ficava a esperá-lo, ora perto da laguna, ora à porta da casa. Naquela tarde ela não estava lá. Depois de penetrar na casa, parou,
tomado da mais atroz ansiedade, incapaz, durante um momento, de refletir ou de agir.
Depois do choque provocado pelo incidente do recife, Emelina ficara sujeita a crises de enxaqueca; quando a dor se tornava insuportável, ela ocultava-se. Então
Dick saía a procurá-la pela mata, chamando-a em altos brados. Ouvindo-o, ela respondia por um pequeno grito e ele a encontrava sob uma árvore ou uma moita, com a
cabeça entre as mãos, verdadeira personificação do sofrimento. Lembrando-se disso, seguiu a orla do mato, chamando e parando para escutar. Não lhe veio resposta
alguma.
Foi até o pequeno poço, acordando em vão os ecos, depois voltou lentamente, olhando em torno de si, no crepúsculo profundo, que agora dava lugar à claridade
das estrelas. Então, desesperado, deixou-se cair à porta da casa, aparentemente exausto.
Os profundos sofrimentos e os grandes cansaços exprimem-se da mesma forma. Ele estava abatido, com o queixo sobre o peito e os braços pendentes. Podia ainda
evocar o grito de Emelina tal como o ouvira. Sentindo-se em perigo, sua companheira chamara por ele, e, durante esse tempo, inconsciente, ele pescava com toda a
tranqüilidade!
Este pensamento o galvanizou. Pôs-se de pé de um salto e correu para o barco.
Remou até o recife, era o ato de um louco, pois ali Emelina não podia absolutamente estar.
Não havia lua, as estrelas iluminavam e ensombravam o mundo ao mesmo tempo, não se ouvia outro rumor senão o tom majestoso das vagas. De pé, batido pelo vento
noturno, borrifado pela espuma das vagas, ele ergueu os olhos para Canopo, que fulgia no zênite silencioso; sentiu-se cercado por uma tremenda e profunda indiferença,
e o desânimo pesou sobre o seu espírito ignorante.
Voltou para a praia; a casa continuava deserta. Uma pequena tigela, feita de uma casca de coco, jazia sobre a relva, ao pé da porta; era o último objeto que
ele vira nas mãos de Emelina; tomou-o e, durante um momento, apertou-o com frenesi contra o peito. Depois estendeu-se diante da porta, com o rosto contra a terra,
a cabeça entre os braços, na atitude de uma pessoa que dorme profundamente.
Durante a noite, sem dúvida, andou a vagar como um sonâmbulo, pois a madrugada o encontrou no vale, diante do ídolo. Surgiu a aurora, enchendo o universo de
claridade e colorido. A essa hora, ele estava sentado à porta da casa, meio morto de fadiga. Levantando de repente os olhos, avistou Emelina, que surgia da mata.
o recém-chegado /13
Ficou um instante paralisado, depois, levantando-se, correu para ela. Pálida e aturdida, ela trazia nos braços qualquer coisa envolta na sua manta, Como Dick
a abraçasse, o pacote se agitou contra o seu corpo e lançou um vagido. Ele recuou, entreabrindo suavemente a manta, Emelina mostrou-lhe uma face minúscula, enrugada
e de um vermelho de tijolo, com dois olhos brilhantes e um punhado de cabelos sombrios. Então os olhos se fecharam, a face se enrugou e o pequenino ente espirrou
duas vezes seguidas.
De onde o tiraste? perguntou Dick, sem saber absolutamente o que pensar, enquanto ela recobria o bebê.
Eu o encontrei no mato.
Mudo de espanto, o jovem ajudou Emelina a entrar em casa, onde ela sentou-se apoiando a cabeça contra os bambus da parede.
Eu me senti muito doente explicou ela então fui descansar no mato e não me lembro de mais nada, quando me acordei, ele estava lá.
É uma criança.
Eu sei.
O bebê da Senhora James, conhecido nos velhos tempos, ressuscitou na memória deles, mensageiro do passado vindo para explicar-lhes o presente. Então ela lhe
contou pormenores que destruíam completamente a teoria dos "canteiros de couves", substituindo-a por uma verdade muito mais maravilhosa e mais poética para quem
pode apreciar o mistério da vida.
Há qualquer coisa esquisita presa nele continuou Emelina, como se falasse de um "colis" recém-recebido.
Mostra-me pediu Dick.
Não, deixa-o tranqüilo.
Ela estava sentada, embalando ternamente o recém-nascido e parecia esquecer o resto do mundo. Dick ficara igualmente absorto na sua contemplação. Um médico teria
estremecido, mas, talvez por felicidade, não havia nenhum na ilha, e a natureza conduzia as coisas à sua maneira.
Depois de se haver embasbacado o suficiente, Dick pôs-se na obrigação de acender o fogo. Ele nada comera desde o dia anterior e estava quase tão fatigado como
a sua companheira. Cozinhou alguns frutos da árvore do pão, que serviu sobre duas largas folhas, com bananas e um pouco de peixe frio que sobrara da refeição precedente,
fez Emelina comer primeiro.
Antes do fim da refeição, a criatura empacotada começou a vagir, como se tivesse sentido o cheiro da comida. Emelina abriu a manta, o bebê parecia esfomeado,
sua boca ora estava apertada ora aberta e uns olhos se abriam e fechavam. Emelina roçou-lhe os lábios com o dedo e ele o abocanhou, pondo-se a chupá-lo. Os olhos
de Emelina encheram-se de lágrimas, ela recorreu a Dick, que estava ajoelhado ali perto, este tomou uma banana, descascou-a, cortou-lhe um pedaço e estendeu-lhe.
Ela o aproximou da boca do bebê, que tentou chupar sem sucesso e pôs-se a chorar.
Espera um momento prometeu Dick.
Na véspera, ele tinha colhido alguns cocos verdes Tomou um, furou-lhe um dos olhos e fez uma abertura do lado oposto da casca. A infeliz criança engoliu gulosamente
o suco leitoso, enchendo o estômago de um líquido que vomitou violentamente, num berreiro de cortar o coração.
A mãe, desesperada, estreitou-a contra o seio nu. Um segundo depois a criança estava aderida ao seio como uma sanguessuga. Pois ela era muito mais entendida
que os seus pais em matéria de bebês...
ana/14
Ao meio-dia, sob o sol abrasador, a água ficava quente. Eles levavam então o bebê até a sombra do recife, e lá Emelina o lavava com um pedaço de flanela. Ao
fim de alguns dias, ele quase não gritava mais, nem mesmo quando o esfregavam. Ficava sobre os joelhos de sua mãe durante a operação, esgrimindo o ar com os braços
e as pernas e olhando o céu. Em seguida, quando Emelina o virava, ele conservava-se deitado de cabeça para baixo, rindo e babando sobre o recife, e parecendo examinar
o traçado do coral com uma atenção filosófica.
Dick, sentado, com os joelhos à altura do queixo, observava a cena. Ele sentia-se, com justiça, co-proprietário... O mistério daquele caso pairava sempre sobre
eles. Há uma semana atrás estavam ambos sozinhos, e eis que de súbito o novo indivíduo tinha chegado de parte alguma.
Que admirável era ele, com os seus cabelos, as suas unhas, as suas mãozinhas! Tinha uma porção de maneiras só dele, e cada dia adquiria novas. Em uma semana,
desaparecera a extrema fealdade do recém-nascido; sua fisionomia, que parecia o retrato de um macaco esculpido num pedaço de terracota, tornou-se o rosto de um bebê
feliz e saudável.
Ele parecia ver coisas, às vezes ria e casquinava gostosamente como se lhe tivessem contado alguma boa piada. Seus cabelos negros tombaram todos e foram substituídos
por uma espécie de penugem. Ele não tinha dentes. Ficava de costas, a dar pontapés e a coaxar; em seguida, fechando os punhos, procurava engoli-los alternadamente;
depois, cruzando as pernas, brincava com os dedos dos pés. Em realidade, era igual aos mil e um bebês que nascem a cada tique-taque do relógio.
Como o chamaremos? perguntou Dick um dia, olhando o seu filho e herdeiro, que engatinhava sobre a relva, à sombra da árvore do pão.
Ana! respondeu prontamente Emelina. Viera-lhe ao espírito a lembrança de um outro bebê, cujo nome ela ouvira uma vez. Era um nome que, afinal de contas,
valia tanto como qualquer outro, naquele lugar solitário, embora Ana fosse rapaz.
Koko se interessou muito pelo novo habitante. O pássaro virava a cabeça de lado para examiná-lo, e Ana arrastava-se atrás dele, tentando pegar-lhe a cauda. Em
alguns meses, o menino se tornou tão forte que perseguia seu pai, quando este marchava de quatro patas, e poder-se-ia ver o pai, a mãe e o filho brincarem juntos,
como três crianças; o pássaro revoava algumas vezes acima, ou juntava-se a seus folguedos; ou então Emelina, de repente, sentava-se, chocando Ana com os olhos, com
uma expressão angustiada e um olhar vago. Voltara-lhe o antigo temor de um acidente, o medo daquele fantasma invisível que a sua sensibilidade adivinhava por detrás
do sorriso da natureza. Sua felicidade era tão grande, que tinha medo de perdê-la.
Não há nada mais sublime que o nascimento de um homem e tudo o que o prepara. Ali, naquela ilha, no próprio coração do oceano, entre o sol e as árvores curvadas
pelo vento, sob o grande arco do céu, e numa perfeita pureza de espírito, Dick e Emelina discutiam esta questão do começo ao fim. O assunto de suas palestras rolava-se
diante deles, procurando arrancar as plumas da cauda de Koko.
Era a solidão daquele deserto, bem como a ignorância em que eles estavam da vida, que tornava tão estranho e tão novo o velhíssimo milagre, tanto mais belo para
eles quanto mais horrível lhes parecia o prodígio da morte. Em pensamentos vagos e inexprimíveis, eles ligavam aquele novo fato ao antigo acontecimento que se passara
no recife há seis anos atrás: o desaparecimento e o advento de um homem.
Apesar do seu nome infeliz, Ana era o bebê mais varonil e mais encantador que se pudesse ver. Seus cabelos negros, que tinham aparecido e desaparecido uma
alegre facécia da natureza deram lugar a uma penugem amarela como o trigo desbotado pelo sol, ao fim de alguns meses tornaram-se castanhos.
Certa manhã naqueles últimos tempos Ana andava inquieto e mordia os polegares Emelina, olhando para a sua boca, descobriu-lhe na gengiva um ponto branco,
semelhante a um grão de arroz. Era um dente. Agora ele podia comer bananas e frutos da árvore do pão, muitas vezes mesmo lhe davam peixe, o que produziria calafrios
num pediatra, no entanto ele vicejava e tornava-se mais forte dia a dia.
Com uma sabedoria profunda e natural, Emelina deixava-o completamente nu, vestido unicamente de oxigênio e de sol. Levando-o para o recife, ela permitia-lhe
chapinhar nas bacias pouco profundas, segurava-o pelas axilas, enquanto ele fazia borrifar a espuma, às risadas e aos gritos. Agora se produzia um novo fenômeno,
tão espantoso como o nascimento do corpo: a eclosão da inteligência, o aparecimento da pequena personalidade, com suas predileções, seus gostos, suas ojerizas.
Ele distinguia Dick de Emelina, e, depois de Emelina havê-lo atendido nas suas necessidades materiais, se Dick se achava ali por perto, ele estendia-lhe os braços
para acompanhá-lo. Ana considerava a Koko como um amigo, e quando um camarada de Koko um pássaro com uma mentalidade curiosa e três plumas vermelhas chegou um
dia para observar o novo habitante da ilha, este se ressentiu da intrusão e protestou.
Amando apaixonadamente as flores e a tudo que brilhava, ele ficava encantado de passear pela laguna e queria saltar à água para colher os corais ricamente coloridos
que lhe pavimentavam o fundo.
Ah! Nós rimos das jovens mamães e de todas as proezas dos seus bebês que elas nos contam! Elas vêem o que nós não podemos perceber, o desenvolvimento dessa flor
misteriosa: a inteligência.
Um dia, na laguna, Dick, cessando de remar, deixou o barco flutuar um pouco à mercê das águas, Emelina fazia o menino dançar sobre os seus joelhos, quando, de
repente, ele estendeu os braços para o barqueiro e articulou:
Dick!
A pequena palavra, tantas vezes ouvida e tão facilmente repetida, foi a primeira que ele pronunciou neste mundo.
Uma voz que não tinha ainda falado acabava de articular a sua primeira palavra. Ouvir assim murmurar seu nome por um ser a quem criou é a coisa mais doce e mais
triste que um homem possa conhecer.
Dick tomou o menino nos seus braços e, a partir daquele momento, o seu amor por ele foi mais forte que o seu amor por Emelina, ou por qualquer outro ser sobre
a Terra.
a laguna de fogo/15
Depois da morte de Paddy, uma espécie de profunda desconfiança se desenvolvia no espírito de Emelina. Ela nunca fora inteligente, as lições a aborreciam e fatigavam,
sem contudo torná-la mais sábia. Malgrado isto, seu espírito era daqueles nos quais as grandes verdades entram por choques.
Uma verdadeira ciência pode insinuar-se na mentalidade de um ser humano sem que este o saiba. Age assim por intuição, ou antes como que levado pelo mais sábio
raciocínio.
Depois de termos aprendido a dar os nomes de tempestades às tempestades, de morte à morte e de nascimento ao nascimento, quando conhecemos o abecedário dos marinheiros
e a lei dos ciclones de Peddington, a anatomia de Ellis e a arte das parteiras de Lewer, nós ficamos meio cegos. Hipnotizados por palavras e nomes, nós pensamos
por meio de nomes e palavras, em vez de pensar por meio de imagens e aí o chavão universal domina e a verdadeira inteligência quase que se aniquila. Emelina já vira
desabar tempestades sobre a ilha e o que lhe ficara no espírito podia-se exprimir assim:
A manhã fora alegre e feliz, nunca o sol havia mostra do tal esplendor, nunca estivera a brisa mais perfumada e a laguna mais tranqüila. E eis que, de súbito,
como um louco impaciente por entrar em ação, um monstro obscurecia o sol e, urrando, estendia a sua mão para devastar a ilha, enraivecendo as vagas, quebrando os
coqueiros, matando os pássaros. Um pássaro se salvara, outro era arrastado, uma árvore caíra, outra continuava de pé. A fúria da tempestade amedrontava menos que
o seu cego poder e a sua indiferença.
Uma noite, enquanto o menino dormia, no momento em que a última estrela acabava de abrir, Dick apareceu à porta da casa; ele tinha descido até a margem e voltara;
fez sinal a Emelina para que o seguisse; pousando o bebê no chão, ela obedeceu.
Vem e olha disse ele.
Levou-a até a praia; aproximando-se, Emelina notou um fenômeno anormal. A certa distância, a laguna parecia sólida; dava a impressão de que era de mármore cinzento
com estrias negras. Chegando à margem, a jovem percebeu que a aparência suja e gris era apenas uma ilusão ótica. A água flamejava, ao contrário, abrasada por uma
fosforescência interna: cada galho de coral era uma tocha, cada peixe uma lanterna. A maré montante, movendo as águas, fazia tremer o fundo esplendente, e as pequenas
vagas que acariciavam a areia deixavam atrás de si fulguracões de vaga-lume.
Olha! repetiu Dick.
Ele ajoelhou-se e mergulhou o braço na laguna. A parte submersa fumegava como uma tocha mal extinta. Emelina a distinguia tão nitidamente como em dia claro.
Retirou o braço: a parte que tocara a água estava coberta de uma espécie de verniz brilhante.
Eles já tinham visto a laguna fosforescente, todas as noites, quando a lua se deitava, seus habitantes se transformavam em peixes de prata, mas o espetáculo
atual era novo e deslumbrante. Emelina pôs-se a brincar com as ondas, soltando exclamações de prazer. Era divertidíssimo aquele fogo que não queimava. Dick molhou
o rosto e sua face apareceu coberta com uma esplêndida máscara luminosa.
Espera ordenou ele.
Correndo à casa, trouxe Ana consigo e, dando a criança a Emelina, impulsionou o barco e deixou a margem. Os remos pareciam barras de platina e, sob eles, os
peixes circulavam como cometas, cada pedaço de coral era uma lucíola que dava a sua claridade para que a laguna se iluminasse como um palácio em festa.
De pé sobre os joelhos de sua mãe, Ana gritava diante da maravilha. Eles abordaram o recife e caminharam pela sua superfície, o oceano estava branco e brilhante
como uma geleira e as espumas pareciam feixes de fogos-de-bengala. Enquanto eles admiravam aquele encantamento, quase tão rapidamente como se extingue uma lâmpada
elétrica, a fosforescência do mar desapareceu. A lua se levantava, sua crista emergia das ondas e sua face se mostrou por detrás de uma cinta de vapores; deitada
sobre o horizonte ela aparecia, vermelha, feroz, turbada de fumo, como a face de um demônio.
o ciclone/16
O dia seguinte amanheceu sombrio. Uma cúpula gris-ferro pesava sobre o oceano, fechando hermeticamente o horizonte. Nem uma ruga, nenhum movimento. Os pássaros
voejavam inquietos, como se um inimigo invisível os tivesse expulsado da mata.
Enquanto Dick acendia o fogo para preparar o almoço, Emelina caminhava de um lado para outro, apertando o filho contra o peito; ela estava nervosa, opressa por
um mal-estar indefinível.
À medida que a manhã avançava, mais escuro ficava o dia, ergueu-se uma brisa e as folhas da árvore de fruta-pão entrebateram-se como vidraças sob a ventania.
Ameaçava a tempestade, mas a sua aproximação não se assemelhava à das tempestades ordinárias. Como a brisa aumentasse, um ruído vindo de muito longe, de além do
horizonte, encheu o ar, assemelhava-se ao murmúrio de uma grande multidão; era, no entanto, tão vago, que o barulho da brisa na folhagem acabou por abafá-lo. E não
se ouviu mais nada além do agitar dos galhos e do crepitar das folhas sob o vento do oeste, que aumentava e soprava furiosamente, convulsionando a laguna e lançando
verdadeiras nuvens de espuma sobre o recife. O céu, antes sólido como um zimbório de chumbo, estremeceu e depois se precipitou para leste como uma torrente impetuosa.
De vez em quando, adivinhavam-se as pragas e resmungos dos capitães da tempestade, mas era ainda tão longínquo, tão indeterminado e tão pouco terrestre, que
parecia um sonho.
Sentada sobre as ervas secas, Emelina, abatida e silenciosa, aconchegava contra si o menino adormecido, e Dick permanecia na abertura da porta, com a alma transida,
mas não querendo deixar transparecer a sua comoção.
A ilha encantada parecia agora coberta de uma capa de chumbo e de um véu de cinza. Sua beleza esvaíra-se: não restava mais que tristeza e angústia. Sob o vento
desenfreado que soprava em rajadas, as palmas dos coqueiros retorciam-se em todos os sentidos, em atitudes de angústia; é preciso ter assistido a um furacão tropical
para compreender o desespero trágico que podem exprimir os coqueiros sacudidos pelo vento.
A casa, felizmente, estava tão bem localizada, que tanto a abrigava a espessa folhagem da árvore de fruta-pão como a espessura do bosque que a separava da laguna.
Súbito, rebentou um raio, como se Thor tivesse arremessado o seu martelo sobre o mundo. Partiram-se as nuvens e a chuva desceu em grandes lâminas cristalinas e oblíquas;
ela crepitou sobre as árvores, e as folhas, inclinando-se uma após outra, formaram um teto inclinado, por onde ela se despenhava sem cessar, como uma cascata.
Dick entrou precipitadamente e sentou-se perto de Emelina, que entrebatia os dentes e segurava o menino, acordado pelos estrondos. Durante uma hora assim permaneceram.
Às vezes a chuva cessava um momento, e os trovoes faziam vibrar a terra e o oceano. O vento passava sobre a cabeça deles, com um assobio monótono.
De repente, o vento acalmou-se, a chuva parou e uma luz espectral, pálida como a luz da alba, filtrou pela porta.
Acabou-se! exclamou Dick, levantando-se.
Oh! Escuta arquejou Emelina, agarrando-se a ele e estendendo-lhe o bebê, como se o contacto do jovem fosse uma proteção. Ela havia pressentido que se aproximava
uma força mais violenta que a do furacão.
Eles ouviram no silêncio um rumor vertiginoso como o de um pião colossal que viesse girando do outro lado da ilha.
Era um ciclone.
Um ciclone é uma tempestade circular, um furacão em forma de anel.
Este anel viaja através do oceano com uma rapidez e fúria inconcebíveis; entretanto, o seu centro é um oásis de paz.
O som aumentou, tornou-se mais agudo e ensurdecedor; era uma sonoridade imensa, trêmula, de ímpeto e de velocidade, trazendo consigo o rumor das frondes revolvidas
e dos galhos que se quebravam; finalmente rebentou sobre o teto da cabana com um bruaá que aturdia o cérebro como um golpe de maça. Em um segundo, a casa foi arrancada;
seus pobres moradores, surdos, cegos e semi-mortos, agarravam-se às raízes da árvore do pão.
O terror e o choque prolongado os nivelaram aos animais em pânico, cujo único instinto é o da conservação.
Eles não poderiam dizer há quanto tempo durava aquele horror, quando, como um louco furioso que se imobiliza um instante em meio de seu acesso, o vento se acalmou
e voltou a tranqüilidade.
O centro do ciclone passava sobre a ilha. Nos ares, percebia-se uma visão feérica. Uma multidão de pássaros, de borboletas, de insetos, pairava no coração da
tempestade, viajando sob a sua guarda. Embora a atmosfera fosse tranqüila como um dia de verão, do norte, do sul, de leste e do oeste, de todos os pontos cardeais
chegavam os gemidos dos ventos. Era chocante a inverossimilhança.
Sob o terrível ímpeto de um furacão, não se tem tempo de pensar. Mas, ao centro de um ciclone, fica-se numa calma absoluta. O caos nos cerca por todos os lados
e nos deixa em repouso, temos então lazer para observar o ciclone como a um tigre enjaulado, de escutar os seus urros e observar a sua ferocidade.
Emelina, apertando o bebê contra o seio, sentou-se arquejante. O menino não sofrera coisa alguma, tinha gritado ao cair o primeiro raio, mas agora parecia tranqüilo
e quase de bom humor. Dick saiu debaixo da árvore e olhou o prodígio aéreo.
No seu trajeto, o ciclone tinha arrastado os voadores da terra e do mar, havia gaivotas brancas e fragatas negras, e borboletas; pareciam todos aprisionados
sob uma grande cúpula de vidro em movimento. E assim seguiam eles, semelhantes a átomos sem vontade.
Com espantoso estardalhaço, a parte sudoeste do ciclone varreu a ilha, recomeçando seu trabalho de devastação.
Aquilo durou horas; depois, pela meia-noite, o vento parou; e, quando o sol se ergueu, seus raios atravessavam um céu imaculado. O astro, sem uma escusa pela
destruição causada por seus filhos, os ventos, mostrou as árvores desenraizadas, os pássaros mortos; três ou quatro bambus os restos da cabana a laguna cor de
turquesa e o mar de um verde-garrafa, coroado de espuma, a murmurar contra o recife.
a floresta devastada /l7
A princípio, Emelina e Dick supuseram-se arruinados, mas em seguida Dick encontrou o velho isqueiro sob uma árvore e, ao lado dele, a faca de açougue; dir-se-ia
que os dois utensílios, procurando fugir juntos, haviam fracassado na sua tentativa.
Pouco a pouco, foram recolhendo a sua propriedade esparsa.
A flanela tinha sido tão bem enrolada em volta de um esguio coqueiro, que o tronco parecia uma perna vestida de uma fazenda de cor alegre. Encontraram a lata
de anzóis enterrada num fruto cozido da árvore do pão, e os dois outros objetos incrustados pelos dedos do vento na própria árvore; a vela do "Shenandoah" jazia
sobre o recife, com um pedaço de coral cuidadosamente colocado em cima, como para retê-la; quanto à vela do barco, nunca mais foi vista.
Há por vezes humor num ciclone, nenhuma outra perturbação atmosférica poderá acaso produzir efeitos mais esquisitos.
Ao lado do grande turbilhão existem pequenos turbilhões secundários, cada um animado pelo seu gênio especial.
Duas vezes Ana fora quase arrancado dos braços maternos por aquelas ferozes correntes de ar em espiral, e Emelina guardou, talvez, no fundo do coração, a crença
de que o único desígnio daquele ciclone era arrancar-lhe o filho para levá-lo para o mar.
O barco teria sido destruído, se o primeiro pé-de-vento não o tivesse emborcado, deixando-o preso entre as rochas do fundo. Dick pôde reavê-lo logo que a maré
baixou e, como não tivesse avaria alguma, flutuou tão bem como dantes. Mas fora enorme o estrago causado entre as árvores. Olhando a massa dos matos, notavam-se
aqui e ali algumas brechas, mas só no meio da floresta é que se podia fazer idéia do desastre. Magníficos coqueiros agonizavam, derrubados por um pé titânico. Às
vezes se encontrava uma meia dúzia de lianas trançadas, formando um grosso cabo. O solo estava juncado de cocos, não se podia dar um passo sem tropeçar contra um
deles. Era fácil assim recolhê-los, grandes, médios e minúsculos, pois, em um mesmo pé, os há de todas as idades e em todas as condições. Nunca se vê um tronco de
coqueiro perfeitamente vertical, eles se inclinam todos mais ou menos, é talvez por isso que o ciclone tem mais efeito sobre eles do que sobre as outras árvores.
Os artus, tão lindos outrora, com sua casca quadriculada em losangos, estavam fendidos. Através dos sapotizeiros, no mais embrenhado da floresta, abrira-se uma
larga estrada, como se, indo de uma margem à outra da laguna, por ali tivesse passado um exército de cavalaria, artilharia e infantaria. Era o caminho aberto pelo
grande pé do furacão; mas, procurando de um lado e de outro na mata, viam-se os caminhos praticados pelas correntes de menor importância, onde tinham estado a divertir-se
os bebês-turbilhões.
Do seio da mata elevava-se para o céu, como um incenso de oferenda, um perfume de folhas arrancadas e disseminadas, de lianas partidas; o cheiro das folhas úmidas,
dos artus, das bananeiras e dos coqueiros sacrificados.
Teríeis encontrado, na mata, borboletas e pássaros mortos, mas, sobre o grande caminho da tempestade, encontraríeis asas de borboletas, plumas, grandes folhas
cortadas como por tesouras, galhos de paletúvios, pedaços de hibiscos triturados.
Bastante forte para partir um navio, desenraizar uma árvore, aniquilar uma cidade, bastante delicado para desfolhar flores, pétala por pétala, eis o ciclone.
Emelina errou pela mata, no dia seguinte, com Dick, olhando os cadáveres da grande árvore como da pequena borboleta; ela se lembrou dos pássaros terrestres que
percebera na véspera, arrebatados pela tempestade até o mar, onde seriam afogados. E sentiu-se aliviada de um grande peso. A desgraça viera, mas os poupara a todos
três. O infinito falara, mas não os tinha chamado. Ela ficou certa da existência de qualquer coisa, essa qualquer coisa que a civilização chama de "fatalidade".
O ciclone os havia tratado quase que amavelmente. Tinha levado a casa, mas lhes deixara todas as suas pequenas provisões. A perda do isqueiro teria sido muito
mais séria que a de uma dúzia de casas, porque sem ele não saberiam acender fogo. O furacão não lhes fizera pagar suficientemente essa misteriosa dívida que nós
devemos aos deuses.
um ídolo tombado/18
No dia seguinte, Dick começou a reconstruir a cabana. Armou uma tenda provisória com a vela encontrada no recife.
Era um árduo trabalho cortar bambus e arrastá-los até a clareira. Emelina ajudava-o, enquanto Ana, sentado por terra, brincava com o pássaro, que desaparecera
durante a tempestade para voltar na tarde seguinte. Ele e o menino tinham logo travado boas relações. Desde o princípio, haviam-se mutuamente simpatizado, mas agora
Koko permitia às vezes que as pequenas mãos o enlaçassem, pelo menos o quanto estas o poderiam fazer.
É raro que um homem possa ter um pássaro prisioneiro nas mãos sem que o pássaro se amedronte e se debata, é a sensação tátil mais agradável depois da que consiste
em apertar uma mulher nos braços. Ele experimenta a necessidade de estreitá-lo contra o coração, se possuir um. Ana apertava Koko sobre o seu pequeno estômago moreno,
como para mostrar onde se encontrava o seu coração.
Era um menino extraordinariamente vivo e inteligente. Não prometia ser muito tagarela, porque, depois de ter aprendido a palavra "Dick", deu-se por muito tempo
satisfeito antes de avançar mais no labirinto da conversação, mas, embora não utilizasse a sua língua, ele falava de diversas outras maneiras. Com seus olhos, que
brilhavam tanto como os de Koko, e que eram cheios de toda espécie de malícias, com suas mãos e seus pés e todos os movimentos do corpo. Tinha um método especial
de agitar as mãos quando estava contente, era a sua maneira de formular quase todas as nuanças do prazer: quanto à cólera, ele a exprimia raramente, mas a exprimia
bem.
Ele atravessava agora a fronteira do país dos brinquedos. Em plena civilização, teria possuído um cachorro de borracha ou uma ovelhinha de lã, mas ali não havia
dessas coisas. Emelina abandonara a sua velha boneca quando haviam fugido do outro lado da ilha e Dick, numa das suas excursões, a tinha encontrado meio enterrada
na areia da praia.
Ele a trouxera como curiosidade, guardando-a em casa. O ciclone a tinha dependurado por irrisão no galho de uma árvore vizinha e, quando a apresentaram a Ana,
este a rejeitou, desgostado. Mas ele brincava com flores, conchinhas de cores vivas ou fragmentos de coral, fazendo com eles vagos desenhos sobre a relva. E nada
mais lhe teria dado tanto prazer como aqueles simples objetos, brinquedos dos filhos dos trogloditas, das crianças da Idade da Pedra. Bater uma contra a outra duas
valvas de ostra e fazer ruído, que é que uma criança pode desejar de melhor?
Uma tarde, quando a casa começava a tomar forma, eles interromperam seu trabalho e penetraram na mata, carregando Ana alternativamente. Dirigiram-se para o vale
do ídolo.
Desde a chegada de Ana, e mesmo antes, que aquela figura de pedra, hirta na sua terrível e misteriosa solidão, cessara de ser um espantalho para Emelina; e parecia
até que se tornara vagamente benévola. O amor nascera à sua sombra e, à sua sombra, a alma da criança entrara na sua mãe. De onde vinha aquela alma? Quem o sabia?
Certamente, ela havia atravessado o céu! Decerto o monólito, que foi outrora o deus de um povo desconhecido, inspirou a Emelina o instinto da religião; neste caso,
fora ela a sua última adoradora, pois, penetrando no vale, o encontrou caído, com o rosto por terra. Grandes blocos o cercavam; evidentemente, houvera um desabamento
de terra, uma catástrofe preparada durante séculos e determinada talvez pela chuva torrencial do ciclone.
Em Ponape, Huahine, na ilha da Páscoa, podem-se ver grandes ídolos tombados da mesma maneira; templos ruem, e terraços que pareciam sólidos como montanhas se
desagregam em informes montículos de pedra.
a expedição/19
No dia seguinte, a luz da manhã, filtrando-se entre as árvores, despertou Emelina na sua barraca improvisada.
Naquele lado da ilha, a aurora era mais tardia do que no lado oriental: pelo menos o parecia, pois há uma enorme diferença entre a aurora através da mata e a
que desliza pelo mar.
No outro lado, se estivésseis sentados sobre a areia, defronte à abertura dos recifes que olha para o oriente, apenas veríeis o céu mudar de cor antes que a
linha do mar se inflamasse. Então o firmamento se aclara da gama ilimitada dos azuis, os raios do sol inundam a laguna e palhetas de luz perseguem os frisos d'água.
Mas no lado de cá é diferente. O céu sombrio está cheio de estrelas, e as árvores formam grandes massas de sombra aveludada. Nesse instante as folhas do artu
lançam um suspiro, as da árvore do pão estremecem e o ruído do mar nos recifes torna-se mais fraco. A brisa do mar desperta e, como se alguém as tivesse soprado,
as estrelas se extinguem e o céu transforma-se num velum do azul mais pálido. Essa indireta aproximação da aurora nos impregna de uma misteriosa doçura. Pode-se
enxergar, mas as coisas vistas são indecisas e vagas, exatamente como no crepúsculo de um dia de verão na Inglaterra.
Apenas Emelina se erguera, Dick também despertou; foram até a margem. Dick pôs-se a nadar e ela, segurando a criança, ficou sobre a margem a olhá-lo.
Sempre, depois de uma grande tempestade, a temperatura da ilha se tornava mais vivificante e mais leve; naquela manhã, o ar parecia o de uma manhã de primavera.
Emelina o sentiu enquanto observava os gestos do nadador, ela ria e levantava o menino para que ele os visse. Estava encantadora; a brisa, impregnada de todos os
perfumes da mata, fazia revoar os seus cabelos, na plena luz que os envolvia. A natureza parecia acariciar aquelas criaturas.
Dick subiu para a margem, para secar o corpo ao vento; examinou o barco, tinha decidido abandonar, até o meio-dia, a construção da casa, e ir até o antigo acampamento,
para ver como as bananeiras se haviam comportado durante a tempestade. Sua ansiedade a seu respeito era bem compreensível. Na despensa que era a ilha, forneciam
as bananeiras um alimento apreciável. Ele experimentava por elas os sentimentos de uma boa dona-de-casa, e não podia ficar tranqüilo antes de verificar a extensão
dos estragos, se é que os havia.
Examinou o barco e foi fazer a refeição matinal com Emelina. O gênero de vida que levavam tornava-os previdentes. Eles guardavam, por exemplo, as cascas de coco,
as quais lhes serviam de combustível. Na véspera, com sua prudência habitual, Dick pusera a secar ao sol uma porção de galhos molhados pela chuva, e assim dispunham
sempre de combustível em quantidade.
Terminada a refeição, Dick muniu-se da faca para cortar as bananas que houvesse, bem como da azagaia e dirigiu-se para o barco, acompanhado pela mulher e pelo
filho até a margem.
Entrando no barco, já ia desamarrar, quando Emelina o interrompeu.
Dick!
Que há?
Eu quero ir contigo.
Tu! exclamou ele.
Sim... Eu não tenho mais medo.
Era verdade. Depois da vinda da criança, ela perdera o medo que lhe inspirava o outro lado da ilha.
A morte é uma grande escuridão, a nascença é uma grande luz, ambas se haviam confundido no seu espírito. E neste, se a escuridão ainda persistia, já não era
tão terrível, pois a claridade nela se infiltrava. O que resultava era um crepúsculo triste mas esplêndido, e ermo dos terríveis fantasmas.
Outrora, ela vira uma porta misteriosa do mundo fechar-se sobre um ser humano. E isso a enchera de um inexprimível terror, pois não conhecia nem palavras para
expressá-lo nem religião ou filosofia que o explicasse ou comentasse. Agora, recentemente, uma outra porta, igualmente misteriosa, havia admitido um ser humano e,
no fundo do seu espírito, no lugar onde se encontram os sonhos, cada uma destas grandes realidades tinha justificado a outra. A vida se esvaíra no vácuo, mas do
vácuo a vida voltara. O vácuo continha vida: já não era mais terrível.
Talvez tenham nascido as religiões no dia em que uma mulher, sentada sobre um rochedo, ante um mar pré-histórico, olhara para o seu recém-nascido, lembrando-se
do homem que haviam matado, e encerrando assim entre dois milagres a idéia de uma vida futura.
Emelina, com o filho nos braços, sentou-se atrás, enquanto Dick empurrava o barco. Mal tomara ele os remos, um novo passageiro veio para bordo. Era Koko; o pássaro
os acompanhava muitas vezes até os recifes, embora, coisa singular, nunca lá fosse por si mesmo. Traçou um ou dois círculos acima deles e foi pousar na platiborda
da proa, ali se empoleirando, encolhido, pendendo sobre a água as longas penas de sua cauda. Emelina arrancou um ramo, mas, em lugar de um ramo de cacaueiro, colhera
uma penca desses terríveis frutos "de que a gente não desperta", conforme a expressão do velho Paddy, e cuja absorção produz um sono e sonhos de quem ninguém acorda,
até a morte.
Lança-os fora! gritou Dick, que se lembrava.
Daqui a um instante respondeu ela.
Ela os suspendia adiante da criança, que ria e tentava agarrá-los. Em seguida, esquecendo-os, deixou-os cair ao fundo do barco, pois alguma coisa se havia chocado
contra a quilha e a água espadanava em redor. Uma luta selvagem se desenrolava embaixo.
Na estação dos amores, travam-se grandes batalhas na laguna; os peixes têm, como os homens, seus ciúmes, suas questões de amores, suas inimizades.
Percebiam-se vagamente dois grandes vultos, um em perseguição do outro; eles aterrorizavam Emelina, que pediu a Dick para remar mais depressa. Deslizaram ao
longo das formosas ribas que Emelina jamais tinha visto, pois ela dormia no terrível dia em que Dick a transportara no barco.
Antes de afastar-se, ela voltara a cabeça, para olhar o artu que abrigava a sua casa em construção, e agora que contemplava essas clareiras e esses bosques desconhecidos,
a imagem da cabana se elevava no seu espírito. Era bem pouca coisa, mas era a casa deles, e Emelina tinha tão pouco o hábito da mudança, que já começava a invadi-la
uma espécie de saudade; mas aquilo passou depressa, ela não pensou mais senão nas paisagens da redondeza, para as quais procurava despertar o interesse da criança.
Chegando ao lugar onde tinha pescado o albicora, Dick descansou sobre os remos e contou a história. Era a primeira vez que fazia menção daquilo, o que bem denotava
o seu grau de mutismo e de selvageria. Tinha falado das pirogas para explicar a Emelina a procedência da azagaia, mas quanto a contar-lhe os incidentes da pesca,
ele nisso não pensava, da mesma forma que o pele-vermelha não pensa em detalhar à sua squaw as anedotas de uma caça ao urso. O desprezo à mulher é a primeira regra
dos selvagens, e talvez a última lei de alguma velha e profunda filosofia.
Ela escutou, e o capítulo do tubarão fê-la estremecer.
Eu queria ter um anzol bem grande para pegá-lo continuou Dick, olhando a água como para lobrigar o seu inimigo.
Não penses mais nele retrucou Emelina, apertando mais estreitamente a criança contra o seu seio. Continua a remar.
Ele retomou os remos, mas sua expressão dizia que estava a rememorar o incidente. Depois de passarem o último promontório e terem avistado a praia e a abertura
do canal, Emelina teve um pequeno sobressalto de espanto.
O local tinha mudado, de maneira sutil; as coisas ali eram as mesmas, e, no entanto, tudo parecia diferente; a laguna parecia mais estreita, o recife mais próximo,
os coqueiros tinham diminuído de metade. Ela comparava a realidade com a recordação. A mancha escura sobre o recife desaparecera, varrida pelo ciclone.
Dick puxou o barco para a rampa da areia, deixando Emelina sentada à popa, enquanto ele partia em busca de bananas; ela, de bom grado, lhe teria feito companhia,
mas o menino estava adormecido. Quando Ana dormia era ainda mais lindo do que acordado. Parecia Cupido, moreno, privado de asas, sem seu arco e suas flechas. O sono
o perseguia sempre e o atingia nas posições mais imprevistas, enquanto ele se divertia, ou em qualquer outro momento. Algumas vezes Emelina o encontrava assim adormecido,
tendo na mão a concha colorida ou o pedaço de coral com que estava brincando.
Tendo apanhado uma enorme folha de árvore do pão, Dick a deu a Emelina para abrigar-se do sol. Ela a erguia sobre a cabeça, olhando as areias brancas e batidas
de sol. O vôo de um sonho não se efetua em linha reta. O de Emelina evocava toda sorte de pinturas sugeridas pelo quadro que tinha diante de si. A água verde sob
o casco de um navio e a palavra "Shenandoah" vagamente a refletir-se nela. A chegada à ilha. O pequeno serviço de chá devidamente arrumado sobre a areia branca.
Oh! Ela distinguia ainda as margaridas, pintadas no prato, e a sua memória contava as colheres de estanho. Via as grandes estrelas que cintilavam à noite sobre os
recifes, os Cluricaunos e as fadas, o barril perto do poço, onde floriam as campânulas e as árvores curvadas sob o vento, ao alto da colina. Todas essas visões desfilavam
diante dela, trazendo-lhe uma tristeza mesclada de prazer. Sentia-se em paz com o mundo. Toda pena parecia abandonada lá muito longe, atrás deles, como se o grande
furacão que os deixara indenes fosse um embaixador das potências superiores, mensageiro de proteção e de amizade.
De repente ela percebeu, entre a proa do barco e a areia da margem, uma faixa de água azul que se alargava. O barco estava flutuando.
o guardião da laguna/20
Daquele lado da ilha, os estragos, embora grandes, tinham sido menores que os do outro lado. Para chegar ao lugar desejado, teve Dick de fazer a escalada de
árvores tombadas, lutando contra o emaranhamento das lianas, que outrora pendiam no ar. As bananeiras pareciam ter sido poupadas, por uma especial concessão da Providência,
até mesmo os grandes cachos estavam quase intactos, e o jovem pôs-se na obrigação de trepar para colhê-los. Cortou dois e, carregando um às costas, voltou para a
canoa.
Tinha atravessado já metade das areias, com a cabeça inclinada sob o fardo quando um apelo longínquo lhe chegou aos ouvidos; levantando os olhos, avistou o barco
vogando na laguna com o vulto de Emelina, que lhe fazia sinais da proa.
Entre o barco e a praia, um remo flutuava sobre as águas, sem dúvida ela o havia perdido quando tentava reconduzir a embarcação. Lembrando-se que a maré ia baixar,
ele lançou o carregamento por terra, e atirou-se à água. Emelina, de pé, olhava-o. Dispondo de um único remo, ela se encontrava sem recursos para ir ao seu encontro,
pois não sabia remar com um remo só. A princípio não se assustara, pois sabia que Dick viria em breve em seu auxílio, mas a distância entre o barco e a margem continuava
a aumentar. A praia parecia já muito afastada e, para o lado do recife, a vista era terrificante: o canal se abria como uma goela hiante, pela qual o alto-mar atraía
a barca. Nesse momento, Dick saíra do mato, com o carregamento às costas e Emelina chamou-o. A princípio, ele não pareceu ouvir, em seguida olhou, deixou cair as
bananas, correu pela areia até a margem, lançando-se à água e agarrou o remo flutuante.
Rebocando o remo e nadando com um só braço, ele se aproximava rapidamente do barco. Dez pés apenas o separavam da embarcação, quando Emelina viu através das
ondas claras um triângulo sombrio, semelhante a um pano envolvendo uma espada, que avançava rapidamente na direção de Dick.
Quarenta anos antes, tendo a forma e a semelhança de um pequeno pinhão, o monstro flutuava ao acaso sobre o vasto oceano. Presa fácil para qualquer animal que
pudesse abocanhá-lo de passagem, tinha ele escapado às mandíbulas do cação, tinha escapado do albicora e do calamar; sua vida era uma longa série de milagres que
o salvaram da morte; sobre um milhar de seus semelhantes, nascidos no mesmo ano, apenas ele e alguns outros tinham sobrevivido. Há trinta anos dominava ele sozinho
a laguna, como um tigre feroz reina sobre a jângal. Conhecera a palmeira do recife quando esta apenas ia nascendo, e conhecia o recife mesmo antes do aparecimento
da palmeira. Se se pudesse juntar as vítimas que ele devorara, formariam uma montanha.
Era o guardião da laguna.
Apontando para o animal, Emelina lançou um grande grito. Dick voltou-se, viu o inimigo, largou o remo e nadou desesperadamente para o barco, enquanto Emelina,
tomando o remo que restava, arremessava-o, com a pá para a frente, sobre o animal, então já bastante próximo de Dick. Ela seria incapaz de lançar uma pedra convenientemente;
no entanto, semelhante a uma flecha, o remo atingiu seu alvo, fazendo o tubarão mergulhar e salvando a Dick.
Um segundo depois, este trepava para o barco. Estava são e salvo, mas perdera o remo.
o braço do mar/21
Nada, no barco, podia substituir os remos e as vagas o arrastavam para o alto-mar; o remo estava afastado apenas uns cinco ou seis metros, mas Dick não podia
tentar alcançá-lo, porque, sem esforço, o tubarão nadava agora a bombordo com a mesma velocidade do barco; percebia-se o animal meio velado pela água.
O pássaro, empoleirado na platiborda, pareceu adivinhar o perigo; ele se elevou no ar, voou em círculo e retomou o seu lugar, com as penas todas arrepiadas.
Dick, desesperado, apertava a cabeça entre as mãos: sem que nada pudesse fazer, ele via fugir a margem e ouvia o rumor dos cachões.
A ilha lhes era tirada assim pelo grande braço do mar. Súbito, a pequena embarcação foi tomada pela jusante combinada dos dois braços da laguna.
O ruído do recife aumentou de súbito, como se uma porta se tivesse aberto bruscamente. De cada lado as vagas marulhavam, as gaivotas gritavam e o oceano pareceu
hesitar um momento se devia levá-los para o largo ou arremessá-los contra a barreira de coral. Essa hesitação não durou mais que um instante. A força da maré prevaleceu,
e o pequeno barco vogou graciosamente para o mar.
Dick deixou-se cair ao fundo do barco, perto de Emelina, que, sentada, embalava a criança nos braços.
O pássaro, levado pelo seu instinto, e vendo afastar-se a terra, ergueu o vôo, descreveu duas ou três voltas em torno do barco e, como um encantador, mas infiel
gênio, voltou para a margem.
juntos/22
A ilha afundava lentamente no mar. Ao sol-pôr, não era mais que um vestígio, um ponto sobre o horizonte do sudoeste. Aproximavam-se da lua nova. O barco passou
da luz do poente para um crepúsculo lilás, depois vogou sob as estrelas.
A jovem, apertando a criança contra o seio, apoiava-se às espáduas de seu companheiro, nenhum deles falava.
Todos os espantos da sua breve existência se resumiam naquela última surpresa, atingiam o seu apogeu naquela viagem para o desconhecido.
Agora que a primeira impressão desaparecera, já não experimentavam nem tristeza nem temor. Estavam juntos: viesse o que viesse, nada os apartaria, mesmo se devessem
adormecer e nunca mais despertar. Se um só fosse levado, ficando o outro em terra! Este pensamento lhes ocorreu ao mesmo tempo. Voltaram-se um para o outro e seus
lábios e suas almas se encontraram, confundindo-se num sonho único, enquanto que lá no alto, o infinito respondia com intermitentes cintilações, e Canopo fulgurava
como a espada aguda de Azrael.
A mão de Emelina segurava o último e mais misterioso presente daquele mundo de mistérios que eles tinham conhecido: o ramo de bagas escarlates.
livro 3
Lestrange, o louco/1
Na costa do Pacífico, tinham-no apelidado de "Lestrange, o Louco". Ele não estava louco, mas uma idéia fixa o atormentava. Uma visão o perseguia, a das duas
crianças e um velho marinheiro arrastados num pequeno barco sobre um grande mar azul.
Quando o "Arago", a caminho de Papeete, recolheu as embarcações do "Northumberland", apenas os marinheiros da chalupa viviam ainda. Le Farge, o capitão, tinha
perdido o juízo, e nunca mais o recuperou. Lestrange estava completamente desequilibrado, o horrível pesadelo dos barcos e a perda das crianças reduziram-no ao estado
de ruína. Os marinheiros, como todos os da sua condição, tinham sido menos atingidos e em breve puderam andar pelo navio e sentar-se ao sol, sobre o convés.
Quatro dias depois do salvamento, o "Arago" encontrou-se com o "Newcastle", que rumava para S. Francisco, e os náufragos passaram para bordo deste. Se um médico
tivesse visto Lestrange no "Northumberland", durante a longa calmaria que precedera o incêndio, declararia que só um milagre poderia prolongar-lhe a vida. E o milagre
aconteceu.
No hospital de S. Francisco, as nuvens, evaporando-se de seu espírito, puseram a descoberto a imagem das crianças no pequeno barco. Essa imagem não o abandonara,
mas ele a via sem compreendê-la; os horrores suportados na chalupa, o esgotamento físico, tinham submergido todos os acidentes do grande desastre, misturando-os
num fato brutal e só pela metade compreendido. Quando o seu cérebro se esclareceu, todos os outros incidentes desapareceram e a sua memória, nada mais percebendo
além das crianças, começou o esboço de uma imagem que ele devia contemplar incessantemente.
A memória não pode criar um quadro sem que a imaginação o retoque, e suas pinturas menos arranjadas são uma obra artística e não fotografias. O inútil é rejeitado,
o principal idealizado. Ela é pintora, mas também poetisa. A imagem que Lestrange via sem cessar estava impregnada dessa poesia diabólica, pois ela representava
o pequeno barco e o seu carregamento humano a vogar sobre um oceano azul e cheio de sol. Um oceano esplêndido, embora terrível, pois que lhe evocava a lembrança
da sede.
Lestrange estava a morrer quando, levantando-se, por assim dizer, sobre os cotovelos, contemplou essa imagem mental. E isto o chamou à vida. Sua vontade retesou-se,
ele recusou morrer. A vontade de um homem, sendo ele bastante forte ainda, é capaz de afastar a morte. Inconsciente de tal faculdade, apenas compreendeu que um interesse
absorvente se apoderara dele: encontrar as crianças.
A doença que o matava cessou seus estragos, ou antes, foi aniquilada por sua vez pela vitalidade crescente contra a qual entrou em luta. Ele deixou o hospital,
instalou-se no Palace Hotel, de onde, como um general em chefe, começou o seu plano de campanha contra a fatalidade.
Quando a equipagem do "Northumberland", tomada de pânico, desobedecera às ordens superiores, baixando precipitadamente os barcos e abandonando-se ao destino,
no mar alto, os papéis do navio, os mapas, os dois livros de bordo, tudo, enfim, que poderia indicar a localização exata do navio, se havia perdido. Dentre os sobreviventes
da equipagem, nenhum, naturalmente, pôde fornecer a mínima indicação útil. Tudo o que se podia saber era que o sinistro se produzira em qualquer parte, ao sul da
Linha.
No cérebro de Le Farge estava impressa a posição exata, mas quando Lestrange foi vê-lo na casa de saúde onde se achava em tratamento, encontrou-o completamente
restabelecido de sua loucura furiosa completamente restabelecido e brincando com uma bola de pano colorida...
Havia ainda o livro de bordo do "Arago", nele se encontraria o ponto onde foi recolhida a chalupa.
O "Arago" dirigia-se a Papeete, Lestrange esperou a sua volta; o navio estava atrasado e Lestrange, dia a dia, consultou a lista dos retardatários, mas sem resultado,
pois nunca mais se ouviu falar desse navio.
Não se pode afirmar que haja naufragado, era simplesmente um desses barcos que não voltam nunca.
o segredo do oceano/2
Perder a um filho amado é, sem dúvida, o pior sofrimento que possa acontecer a um pai. Eu não me refiro à morte.
Um menino passeia na rua, a criada se distrai um instante, ele desaparece. A princípio não se tem noção nítida da coisa, experimenta-se um choque no coração,
as palpitações diminuem ante o pensamento de que uma criança perdida numa cidade civilizada não pode deixar de ser encontrada pelos vizinhos ou pela polícia. Entretanto
a polícia ou os vizinhos ignoram o incidente, as horas passam. Cada minuto pode trazer o vagabundo, os minutos fogem, o dia escurece, a tarde muda-se em noite, a
noite em aurora, e os ruídos de um dia ordinário recomeçam. Não se pode permanecer em casa. Fica-se inquieto, sai-se, para voltar imediatamente a pedir notícias,
anda-se com o ouvido à escuta, mas o que se ouve incomoda os sons habituais, o rolar dos carros, os passos dos transeuntes vêm aumentar a nossa tristeza. A música
transforma a nossa miséria em loucura, e a alegria dos outros é tão monstruosa como uma gargalhada ouvida no inferno. Se alguém traz o corpo do filho morto, pode-se
chorar, mas fica-se aliviado, a incerteza é que mata. Os anos voam, fica-se velho. A gente diz:
Ele teria vinte anos, hoje!
O velho código penal de nossos pais, tão severo todavia, não traz uma punição proporcionada ao crime de raptar uma criança.
Restava uma esperança a Lestrange: que Dick e Emelina tivessem sido recolhidos por algum navio. Não se tratava de crianças perdidas numa cidade, mas no imenso
Pacífico, onde viajam navios de um porto a outro. Para tornar público o desaparecimento, era necessário anunciá-lo pelos quatro cantos do mundo. Ele era rico, e
oferecia mil dólares para ter notícias dos desaparecidos, e vinte mil se lhos trouxessem.
O anúncio apareceu em todos os jornais suscetíveis de cair sob os olhos de um marinheiro, desde o Liverpool Post até o Dead Bird. Os anos passaram, sem trazer
nenhuma resposta nítida.
Certa vez, viera a notícia de duas crianças recolhidas nas proximidades das Gilberts. Era verdade. Mas não se tratava das suas. Este incidente penalizou muito
o pobre homem e também o estimulou, ele dizia: "Se se salvaram aqueles, por que não teria acontecido o mesmo com os meus?". No fundo de seu coração, tinha certeza
de que eles viviam. Sua imaginação lhe sugeria a morte deles de vinte maneiras diversas, mas um murmúrio saía da grande extensão azul, assegurando-lhe, por intervalos,
que os que ele procurava, estavam à sua espera.
Seu temperamento assemelhava-se ao de Emelina. Era um sonhador que estava predisposto a receber as leves ondas misteriosas que povoam o éter, transmitindo-se
de uma inteligência a outra e que emanam mesmo das coisas a que nós chamamos de inanimadas. Uma natureza mais vulgar, embora experimentando igual sofrimento, teria
sem dúvida desesperado, mas ele continuou a procurar. No fim do quinto ano, alugou uma escuna, e fez um estéril cruzeiro de dezoito meses, durante o qual parou em
pequenas ilhas desconhecidas.
Uma vez, sem o saber, chegara a uma terra afastada apenas trezentas milhas do teatro de nossa história.
Se quiserdes saber o pouco de chance que havia naquela busca sem rumo, não olheis um mapa do Pacífico, mas ide lá. Centenas e centenas de milhares de léguas
quadradas de oceano, milhares de ilhas, de recifes e de atóis. Há poucos anos, muitas dessas ilhotas eram completamente desconhecidas, e o são ainda, embora as cartas
do Pacífico sejam o triunfo máximo da hidrografia e a ilha desta narrativa estivesse já marcada nos mapas do Almirantado, de que poderia isto servir a Lestrange?
Enervado pela desolação do mar, ele regressou. Naqueles dezoito meses, o Pacífico lhe revelara sua grandeza, sua discrição e inviolabilidade.
O navio não podia ir senão em linha reta, para esquadrinhar com esperança o deserto do mar, teria sido preciso possuir o dom da ubiqüidade e navegar em todas
as direções ao mesmo tempo.
Muitas vezes ficava ele inclinado sobre o tombadilho, a olhar as vagas, como se quisesse interrogá-las.
Então os crepúsculos começaram a pesar-lhe sobre o coração, as estrelas lhe falaram uma nova linguagem, e ele sentiu que era chegada a hora do regresso, se quisesse
voltar são de espírito.
Chegando a S. Francisco, foi ver seu agente Wannamaker, de Kearney Street, mas não havia novidade alguma.
o capitão fountain/3
Ele alugara vários quartos no Palace Hotel e levava a vida de um homem rico que não se entregava aos prazeres. Nas suas relações com algumas pessoas da melhor
sociedade local, conduzia-se em todas as circunstâncias como um espírito são; um estranho que acaso o visse não teria jamais suspeitado da sua reputação de loucura;
mas, conhecendo-o melhor, perceberia que o seu espírito estava ausente, e, seguindo-o na rua, o ouviria falar sozinho. Uma vez, durante um almoço, ele se levantou,
deixou a mesa, e não voltou mais; esses nadas bastavam, no entretanto, para suscitar murmurações.
Certa manhã, a 2 de maio, oito anos e cinco meses exatamente após o naufrágio do "Northumberland", lia Lestrange no seu gabinete, quando o telefone tilintou.
Alô! gritou uma voz ianque. É Lestrange? Bem. Venha verme. Wannamaker. Tenho notícias para o senhor.
Lestrange conservou um momento o receptor suspenso, depois colocou-o no suporte. Foi até uma cadeira, sentou-se, conservando a cabeça entre as mãos, em seguida
se levantou, foi de novo ao telefone, mas não se animou a utilizá-lo. Tinha medo de matar a sua nova esperança.
Notícias! Que mundo pode conter esta palavra? Em Kearney Street, parou defronte ao escritório de Wannamaker, reunindo as suas idéias e olhando a multidão
passar; então decidiu-se a entrar, subiu uma escada e, empurrando o batente de uma porta, encontrou-se numa grande sala. Atordoava-o o ruído metálico de uma dúzia
de máquinas de escrever, bem como o movimento do escritório. Empregados passavam com pacotes de correspondência. E Wannamaker, que, inclinado sobre a mesa de uma
máquina de escrever, corrigia uma carta, levantou-se. Viu o recém-chegado e levou-o para o seu gabinete.
Que há? perguntou Lestrange.
Isto, apenas respondeu o outro, tomando um pedaço de papel no qual estavam escritos um nome e um endereço, Simon J. Fountain, 4, Rathray Street. É perto
do cais. Diz ele que viu seu anúncio num jornal velho e acredita poder dar-lhe informações. Não especificou coisa alguma, mas sem dúvida vale a pena ir falar com
ele.
Vou, imediatamente.
Conhece Rathray Street?
Não.
Wannamaker, chamando um empregado, deu-lhe algumas instruções; então Lestrange e o rapaz saíram. Lestrange deixou o gabinete sem agradecer nem despedir-se, o
que pouco impressionou a Wannamaker: ele conhecia o seu cliente.
Rathray Street é, ou melhor, era, antes do tremor de terra, bordada por pequenas casas de bom aspecto. Tinha um ar vagamente marítimo, acentuado pelo cheiro
do cais e o rumor das máquinas de vapor carregando e descarregando os navios, ruído que não cessava noite e dia.
O número 45 era semelhante a seus vizinhos, nem melhor nem pior. A porta foi aberta por uma mulher baixa, bem tratada e de meia-idade. Era uma mulher banal,
sem dúvida, menos para Lestrange.
O Senhor Fountain está? perguntou ele. Sou o anunciante.
Oh! Muito bem, senhor replicou ela, fazendo-o entrar para um pequeno salão à esquerda do corredor. O capitão está na cama; é inválido. Tenha a bondade
de esperar um minuto.
Há oito anos que ele não fazia senão isso, esperar; que lhe importavam alguns instantes mais? Mas em nenhum momento, durante aqueles oito anos, tinha sofrido
tanto; seu coração sabia que ali, naquela casa qualquer, de lábios que eram sem dúvida os do marido daquela mulher comum, ouviria o que ele temia ou esperava. Ostentava-se,
numa chaminé, um barco aprisionado numa garrafa e havia conchas oriundas de praias longínquas, todas as coisas que ornamentam em geral a casa de um velho marinheiro.
Lestrange podia ouvir o que se passava no quarto ao lado, provavelmente o do enfermo.
Aquela gente, sem dúvida, estava com as melhores disposições a respeito do visitante. O anúncio deste, sua fisionomia e maneiras, deviam dar-lhes a entender
que não era momento de se fazerem esperar. A mulher, no entanto, pôs-se a arranjar o quarto e compor o leito, como se Lestrange estivesse em estado de notar tais
detalhes.
Por fim a porta se abriu e a mulher lhe disse:
Venha por aqui, senhor.
Ela o conduziu a um quarto de dormir que dava para o corredor. A peça em ordem apresentava o aspecto indefinível de um quarto de doente. Um homem estava deitado
no leito. Seu ventre enorme formava uma montanha sob a coberta, e, sobre esta, pendiam suas barbas negras, suas mãos grandes e inúteis, mãos desejosas de trabalhar,
mas impotentes. Sem mover o corpo, ele voltou lentamente a cabeça para o visitante; a lentidão do movimento não vinha da fraqueza, mas da sua natureza mole e sem
emoção.
Está aqui o senhor, Simon gritou a mulher, por trás dos ombros de Lestrange. Em seguida desapareceu, fechando a porta.
Sente-se, senhor. Não tenho o prazer de saber o seu nome mas a minha patroa disse que o senhor veio por causa do anúncio que eu vi ontem.
Passou um jornal ao visitante. Era um Sydney Bulletin, que datava de três anos.
Sim respondeu Lestrange, examinando o jornal é o meu anúncio.
É esquisito, muito esquisito murmurou o Capitão Fountain que eu só o tenha visto ontem. Há três anos que eu tinha esse jornal no fundo do baú, entre uma
porção de velharias. Ah! Se a patroa não tivesse feito uma limpeza na mala! "Dá-me esse jornal", disse eu, vendo-o nas suas mãos, e me pus a lê-lo, porque um homem
lê tudo quando está de cama há oito meses, como eu, com esta hidropisia. Eu viajei em baleeiros durante quarenta anos; meu último barco foi o "Sea-Horse". Há sete
anos um homem achou qualquer coisa na praia de uma das ilhas a leste das Marquesas; nós fôramos ali fazer provisão d'água.
Sim, sim, e que encontrou ele? interrogou Lestrange.
Patroa! berrou o capitão, com uma voz que sacudiu as paredes do quarto.
A mulher apareceu.
Procura as minhas chaves, no bolso da minha calça.
A calça pendia atrás da porta, como se esperasse ser enfiada. A mulher deu as chaves ao marido, ele escolheu uma que lhe estendeu, designando a gaveta de uma
mesa perto do leito. Ela sabia evidentemente o que o capitão queria, pois abriu a gaveta e retirou uma caixa, uma pequena caixa de cartolina, envolvida num pedaço
de fita. Fountain desfez a atadura e tirou de dentro da caixa um minúsculo serviço de chá, um bule, uma jarra para leite, seis pequenas taças, tudo ornamentado de
margaridas.
Lestrange escondeu o rosto nas mãos. Ele conhecia aqueles objetos, pois Emelina lhos havia mostrado, num acesso de confiança.
Por toda a imensidade do oceano, tinha ele andado a procurar em vão, e eis que aqueles pequeninos nadas lhe voltavam como uma mensagem, cujo estranho e denso
mistério lhe curvava a cabeça, esmagando-o.
O capitão dispunha os objetos sobre o jornal aberto a seu lado, desenrolando o papel de seda que protegia as colherinhas, ele as contou, como se estivesse a
fazer o cômputo de alguma mercadoria, e colocou-as sobre o jornal.
Quando encontraram isso? perguntou Lestrange, falando por entre os dedos.
Há sete anos. Nós tínhamos ido fazer provisão d'água num lugar ao sul da Linha; nossos marinheiros a chamam "a ilha da palmeira" por causa de uma árvore que
há à entrada da laguna. Um dos meus homens trouxe a caixa para bordo. Ele a encontrou numa cabana de bambus, que eles demoliram para divertir-se.
Meu Deus! exclamou Lestrange. E não havia ninguém, ninguém?
Os homens afirmaram que nada viram nem ouviram; a cabana parecia abandonada; não tivemos tempo de desembarcar para procurar os náufragos; nós perseguíamos
baleias.
Qual é o tamanho da ilha?
Oh! Uma ilha de tamanho médio. Não tem habitantes. Ouvi dizer que ela era tabu, por quê? Só Deus sabe. Alguma idiotice dos canacos, sem dúvida. De qualquer
maneira, aí está o que nós achamos. Reconhece os objetos?
Sim.
Parece esquisito tornou o capitão que eu os tenha achado, que seu anúncio tenha aparecido e que a sua resposta estivesse entre as minhas velhas bugigangas;
mas assim é o mundo.
Sim, é mais que esquisito...
Naturalmente, os náufragos ainda podem lá estar, sem que eu ou o senhor saibamos.
Lá estão! afirmou Lestrange, que fixava os brinquedos como se lesse neles algum sentido oculto. Tem a posição da ilha?
Tenho. Mulher, passa-me o meu livro de bordo.
Ela trouxe um calhamaço negro e seboso e o alcançou a Fountain, que o folheou e leu alto a latitude e a longitude.
Eu as anotei no mesmo dia do achado. Veja agora o que escrevi:
"Adarris trouxe para bordo uma caixa de brinquedos por ele encontrada numa cabana que os homens demoliram, ele a trocou comigo por um copo de rum".
O cruzeiro durou três anos e oito meses depois disso. Nós tínhamos partido há três, quando ocorreu o incidente. Esqueci-o, três anos a correr em torno do mundo
atrás de baleias não desperta a memória de um homem. Continuamos e fomos a Nantucket. Então, depois de uma quinzena de pesca, e um mês de reparações, o velho "Sea-Horse"
retomou o mar, e eu com ele. Esta hidropisia me atacou em Honolulu, e eu voltei aqui para casa. Eis a história. Não tem grande importância. Mas, lendo o seu anúncio,
eu pensei que poderia respondê-lo.
Lestrange tomou a mão de Fountain e apertou-a:
Viu a recompensa que eu oferecia? Não tenho o livro de cheques comigo, mas daqui a uma hora estará o senhor com o seu cheque.
Não, senhor, se as minhas informações o conduzirem a um resultado, eu não digo que recuse uma pequena lembrança, mas dez mil dólares por uma caixa de cinco
cêntimos não é a minha maneira de proceder.
Eu não posso obrigá-lo a aceitar dinheiro agora, sinto-me mesmo incapaz de agradecer-lhe devidamente desculpou-se Lestrange. Estou até com febre, mas,
depois de tudo resolvido, acertaremos isto juntos.
Ele tornou a mergulhar a cabeça entre as mãos.
Eu não queria ser indiscreto disse o Capitão Fountain, colocando lenta e cuidadosamente os objetos na caixa mas posso informar-me como pretende o senhor
levar avante a empresa?
Eu vou alugar um navio imediatamente e procurarei...
Sim continuou o capitão, refletindo, enquanto embrulhava as colherinhas talvez seja o melhor.
Em seu foro íntimo, estava o marinheiro persuadido de que aquela busca oferecia poucas probabilidades de sucesso, mas guardou sua convicção para si.
A questão tornou Lestrange é saber o meio mais rápido de lá chegar.
Talvez eu possa ajudá-lo ofereceu-se Fountain, amarrando a caixa. O senhor tem necessidade de uma escuna com "boas pernas" e, se não me engano, estão descarregando
uma neste momento na doca Ô Sullivan. Mulher!
A mulher acudiu ao chamado. Lestrange supunha sonhar, e aquela gente que se interessava por seus negócios lhe parecia dotada de uma natureza sobre-humana.
Pensas que o Capitão Stanistreet esteja em casa?
Não sei, mas posso ir ver.
Vai.
Ela partiu.
Stanistreet mora a alguns passos daqui, é o seu homem. O melhor capitão de escuna que jamais houve em Frisco. O barco se chama "Raratonga", pois é o melhor
que eu conheço. Stanistreet é o comandante. Os proprietários são os MacVitu. Transportou missionários, depois porcos e, em último lugar, copra, agora... está quase
descarregado. Oh! MacVitu o alugaria ao Diabo, se este lhe pagasse; o senhor, se está em condições de não olhar para os gastos, não deve temer uma recusa. Possui
velame novo desde o começo do ano. Oh! Há de convir-lhe às maravilhas, pode fiar-se nas palavras de Fountain. Do meu leito eu conduzirei o negócio, se me permitir
dar-lhe uma ajuda. Eu me encarregarei das provisões e lhe arranjarei uma equipagem um terço menos cara que as desses malditos agentes. Tomarei uma comissãozinha,
mas já me sinto metade pago em prestar-lhe o serviço!
Calou-se, passos martelavam o corredor, e o Capitão Stanistreet foi introduzido no quarto. Era um homem de apenas trinta anos, alerta, de olhar vivo e fisionomia
agradável. Fountain apresentou-o a Lestrange, a quem ele agradou à primeira vista.
Interessou-se imediatamente pela história de Lestrange, e a proposta pareceu convir-lhe infinitamente muito mais que um negócio comercial, tal como copra ou
porcos.
Se quiser acompanhar-me até o cais, senhor, eu lhe mostrarei a escuna propôs ele, depois de terem discutido e assentado a viagem.
Levantou-se, despediu-se de seu amigo Fountain, e Lestrange o seguiu, carregando a caixa de papelão. A doca o Sullivan não era longe.
Um grande navio, construído para dobrar o cabo Horn, e que parecia o irmão gêmeo do "Northumberland", descarregava ferro, à popa deste grande veleiro, encontrava-se
o "Raratonga", gracioso como um sonho e que descarregava copra.
Eis o barco disse Stanistreet o carregamento já está quase todo em terra, agrada-lhe?
Eu o alugo, custe o que custar respondeu Lestrange.
rumo ao sul/4
Sob a direção do capitão inválido, fizeram-se tão rapidamente os preparativos, que, já no dia 10 de maio, o "Raratonga", com Lestrange a bordo, deixava as Portas
de Ouro e singrava para o Sul.
Nenhum meio de locomoção é comparável a um navio a vela. Quem quer que tenha viajado num grande navio, não esquece jamais as vastas superfícies de tela, os madeirames
altos, a fineza com que o vento é captado.
A escuna é a rainha dos veleiros, tem uma agilidade saltitante, que é desconhecida aos navios de vela quadrada, de que ela difere tanto como uma rapariga de
uma matrona. A "Raratonga" não era somente uma escuna, mas a soberana proclamada de todas as escunas do Pacífico. Durante os primeiros dias avançaram facilmente,
depois o vento lhes foi contrário.
Além da excitação febril que o agitava, Lestrange foi atormentado por uma profunda e irritante ansiedade, como se uma voz lhe repetisse que Dick e Emelina se
achavam em perigo.
Aqueles ventos contrários sopravam sobre a angústia do seu coração, parecendo avivar-lhe as brasas. Duraram alguns dias e, então, como se a fatalidade se houvesse
enternecido, uma viva brisa elevou-se a estibordo, assobiando uma canção alegre no velame e nas cordoalhas e erguendo a espuma sob a quilha do "Raratonga" que, com
esse impulso, se inclinava para um lado e deslizava, rumorejando, deixando um rastro em leque sobre as águas.
O vento os arrastou durante quinhentas milhas, silenciosamente e com a rapidez de um sonho; depois parou.
O oceano e o ar estavam sem movimento. O céu era sólido como uma grande cúpula de cristal azulado; lá onde ele se encontrava com a linha d'água do horizonte,
uma gaze o velava.
Dois dias se perderam naquela calmaria podre; pela manhã do terceiro dia, ventava do noroeste; o "Raratonga" retomou seu curso, como uma nuvem de tela.
O Capitão Stanistreet era um gênio na sua profissão; podia obter mais velocidade de uma escuna do que qualquer outro marítimo. Felizmente para Lestrange, aquele
marinheiro era refinado e polido e, o que valia mais ainda, compreendia as coisas.
Uma tarde ele passeava pelo tombadilho, quando Lestrange, que caminhava com as mãos atrás das costas, contando as tábuas do chão, rompeu o silêncio:
O senhor não acredita nas visões nem nos sonhos?
Que sabe o senhor a respeito?
Oh! É uma simples pergunta, a maior parte se gaba de não acreditar nessas coisas.
Sim, mas no íntimo acreditam.
Eu sou desses.
Lestrange ficou silencioso um momento.
O senhor conhece a minha desgraça, não o importunarei contando-a mais uma vez, mas de algum tempo para cá, tenho uma impressão que descreverei assim: eu sonho
acordado.
Qual!
Não posso explicar-me satisfatoriamente; é como se eu visse qualquer coisa que minha inteligência não pode compreender, nem descrever.
Sei o que o senhor pretende dizer...
Não, não... Isto é muito estranho. Tenho cinqüenta anos e, em regra geral, aos cinqüenta anos já se experimentou toda a gama das sensações extraordinárias.
Pois bem, eu nunca senti isto, esta sensação não vem senão por momentos. Eu vejo como se pode imaginar que veja um pequeno bebê, e há diante de mim coisas que não
posso compreender. Não é pelos olhos corporais que se produz tal sensação, ela me chega através de qualquer janela do espírito, diante do qual fosse erguida uma
cortina.
É estranho disse Stanistreet, que não se agradava lá muito desta palestra, pois ele não era mais que um simples capitão de escuna e um homem comum, embora
bastante inteligente e simpático.
Esta qualquer coisa me certifica que um perigo os ameaça...
Ele parou um minuto e, com grande alívio de Stanistreet, disse:
Se falo assim, o senhor vai pensar que estou desequilibrado. Mudemos de assunto, esqueçamos os sonhos e voltemos à realidade. O senhor sabe que eu espero encontrar
o lugar onde o Capitão Fountain encontrou o rastro deles, ele diz que a ilha é desabitada, mas não tem certeza.
Não, ele só falou da praia.
Pois bem: suponha que do outro lado houvesse indígenas e que eles tenham agarrado as crianças...
Se assim for, elas se terão criado na companhia deles.
E ter-se-ão tornado selvagens.
Sim, mas os polinésios não podem realmente ser considerados selvagens. Formam uma população agradável. Eu circulei por eles durante muito tempo. As suas ilhas,
na sua maior parte, estão agora civilizadas. Naturalmente, algumas existem que ainda o não estão, mas suponha mesmo que esses selvagens, como o senhor os chama,
tenham vindo e tenham levado as crianças...
A respiração de Lestrange parou, era esse o temor que ele trazia no coração, embora nunca o tivesse confessado.
E então?
E então eles as teriam tratado perfeitamente bem.
E criado como suas?
Sem dúvida.
Lestrange suspirou.
Escute disse o capitão. Eu, sob minha palavra, acho que nós, os civilizados, somos uns pretensiosos afinal e nos apiedamos inutilmente dos selvagens.
Como assim?
Que mais um homem pode desejar senão a sua felicidade? E então? Haverá alguém mais feliz do que um selvagem nu num clima tropical? Ele anda bastante satisfeito
para que tenha necessidade de ir a festas a toda hora. Goza de uma saúde perfeita. Leva a existência de um homem feito para viver face a face com a natureza. Não
vê o sol pela janela de um escritório ou a lua através do fundo de chaminés de usinas. Um homem ao mesmo tempo civilizado e feliz? Mas, meu Deus, onde o encontrará
o senhor? Os brancos fizeram desaparecer os selvagens, apenas em uma ou duas pequenas ilhas se encontram ainda alguns vestígios destes.
Suponha continuou Lestrange suponha que essas crianças tenham sido criadas em contacto perpétuo com a natureza.
Sim.
Levando a vida em liberdade.
Sim.
Acordando sob as estrelas, dormindo quando o sol se deita, cercados de um ar puro e fresco como este que respiramos neste momento. Lestrange falava, com
os olhos fixos, dir-se-ia, em alguma longínqua visão. Não seria uma crueldade trazê-los para o que nós chamamos a civilização?
Penso que sim respondeu Stanistreet.
Lestrange não replicou, continuando a caminhar, com a cabeça baixa e as mãos atrás das costas.
Uma tarde, ao cair o crepúsculo, Stanistreet declarou:
Segundo os cálculos feitos ao meio-dia, nós estamos a duzentas e quarenta milhas da ilha, com a brisa que está soprando, chegaremos ao lugar indicado amanhã,
por estas mesmas horas, mas se o tempo mudar para melhor, chegaremos antes.
Sinto-me perturbado! suspirou Lestrange.
Ele desceu. O capitão, sacudindo a cabeça, enrolou o braço em volta de uma corda, e abandonou-se ao agradável embalo do navio, que deslizava contra um esplêndido
pôr-de-sol, sinal de bom tempo.
No dia seguinte a brisa arrefecera, mas tinha soprado bem durante toda a noite. Pelas onze horas, era um leve respirar, apenas suficiente para enfunar as velas.
De súbito, Stanistreet subiu alguns pés sobre a escada de mesena e levou a mão em pala sobre os olhos.
Que há? perguntou Lestrange.
Um barco. Dê-me o óculo de alcance.
Ele o graduou e olhou um bom momento, sem dizer palavra.
É um barco à mercê das águas, um barco sem nada dentro. Espere! Eu distingo qualquer coisa branca.
Dirigindo-se ao homem da barra.
Olá! Um ponto a estibordo. Ele desceu para o convés.
Nós vamos direito sobre ele.
Há alguém dentro?
Não distingo muito bem, mas vou mandar descer a baleeira e iremos ver de perto.
Deu ordem de armarem a baleeira. À medida que se aproximavam da embarcação, que parecia ser o pequeno barco de um navio, distinguiam alguma coisa de imóvel,
sem poder verificar ao certo o que fosse. Stanistreet deu um golpe de barra e parou o navio.
Colocou-se à proa da baleeira e Lestrange à popa. A baleeira foi baixada, os suportes recolhidos, os remos mergulharam. O pequeno barco tinha um aspecto lastimável
e não parecia maior do que uma casca de noz. Em trinta remadas, a proa da baleeira tocou a popa do barco. Stanistreet debruçou-se à platiborda. Ao fundo encontrava-se
uma jovem, vestida somente com uma tanga, um dos seus braços enlaçava o corpo de um homem, que ela ocultava em parte, o outro apertava o corpo de uma criança. Eram
decerto indígenas, náufragos, ou gente separada de seu navio por um acidente qualquer. Seus peitos se erguiam e baixavam tranqüilamente, a mulher segurava um galho
no qual restava um único fruto escartate e ressequido.
Estão mortos? perguntou Lestrange que, de pé, na popa, procurava ver.
Não respondeu o capitão estão dormindo apenas...
Fim
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quinta-feira, 5 de julho de 2012
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