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sexta-feira, 6 de julho de 2012

A Criança na Fase Inicial da Escrita - Ana Luiza Bustamonte

A CRIANÇA NA FASE INICIAL DA ESCRITA
ANA LUIZA BUSTAMANTE SMOLKA

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Alguns pontos de partida


Leitura, livros, alfabetização, escrita, escolarização , quais são, efetivamente, as condições atuais de leitura e escrita no contexto das sociedades letradas onde
domina a indústria cultural? E, nessas condições, quem pode possuir e dominar este objeto cultural, instrumental, que é a escrita? Nessas condições, ainda, quem
lê? Quem escreve? Para que? E por que?
Estas perguntas se fazem pertinentes quando constatamos que a leitura é uma atividade social cuja funcionalidade se evidencia e se propaga cada vez mais, mas que,
contraditoriamente, uma grande parcela da população não aprende seu funcionamento porque a escola, como lugar de ensino, acaba sendo extremamente seletiva.
Se o contexto cultural, sobretudo urbano, é permeado pela escrita, isto é, se existem e se ampliam fora da escola condições que propiciam a leitura, como e o que
a escola tem ensinado para que um enorme contingente de crianças não aprenda a "ler e a escrever" na escola? É preciso ir à escola para aprender a ler e a escrever?
Enquanto as autoridades se desgastam e as comissões se debatem em discussões sobre o "ensino da língua e da gramática", sobre a alfabetização, a volta ao tradicional,
a disciplina e a informática, o que acontece nas escolas com relação à alfabetização e quais as condições de trabalho e de vida das crianças e dos professores?

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A alfabetização tem constituído uma das questões sociais mais fundamentais por suas implicações político-económicas e por se evidenciar instrumento e veículo de
uma política educacional que ultrapassa amplamente o âmbito meramente escolar e acadêmico. A ideologia da "democratização do ensino" anuncia o acesso à alfabetização
pela escolarização, mas, efetivamente, inviabiliza a alfabetização pelas próprias condições da escolarização: oculta-se e se esconde nessa ideologia a ilusão e o
disfarce da produção do maior número de alfabetizados no menor tempo possível. Nesse processo da produção do ensino em massa - "Há vagas para todos!", "Nenhuma criança
sem escola!" -, as práticas pedagógicas não apenas discriminam e excluem, como emudecem e calam.
E, então, pergunta-se: alfabetizar? Para que? Como? Em que condições?
Durante as décadas de 60 e 70, foi difundida e implementada no Brasil, pelo governo, a idéia da educação compensatória que, confundindo convenientemente "diferença"
como "deficiência", criava mitos com relação ao fracasso escolar e propunha como panacéia a educação pré-escolar.
Aos poucos, contudo, começou a surgir a necessidade de se reconsiderar a educação compensaria: a política da "carência cultural" e os "métodos" decorrentes dessa
política não haviam, efetivamente, diminuído os índices da evasão e da repetência escolar.
Do mito da incapacidade da criança começou a surgir o mito da incompetência do professor: era ele, então, o malformado, mal-informado, desatualizado e, "por isso",
mal pago. Para "compensar" novamente essa deficiência, era necessário implementar os cursos de treinamento e os manuais para o professor. Nesse contexto, o livro
didático passou a ser um recurso imprescindível, indispensável: virou programa e, mais do que programa, virou método. Como método, adquiriu o "estatuto da cientificidade";
e, como ciência, sua utilização passou a ser inquestionável.
Numa surda situação de simulacro - em que os professores desconfiam das crianças e dos pais; os pais não confiam nos próprios filhos nem nos professores; as crianças
aprendem a não confiar em si mesmas nem nos adultos -, as relações interpessoais vão sendo camufladas, interrompidas e ninguém parece questionar as condições ou
duvidar dos métodos: a escola se mantém enquanto as crianças evadem.
Mesmo no contexto das escolas particulares, a situação não é muito diferente: só que a "evasão" é substituída pela "mudança de escola" devido a insistência dos pais;
e/ou a "incapacidade" ou as dificuldades das crianças são corrigidas ou trabalhadas por "profissionais competentes", num sistema paralelo e de "apoio" ã escola,
graças às possibilidades financeiras das famílias.

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Em suma, falhando na sua tarefa pedagógica, a escola passa a apontar cada vez mais uma série de "patologias" nas crianças.

Mas o que é pedagógico e o que é patológico? Como distinguir? Como diagnosticar? Quem faz ou pode fazer este diagnóstico? O patológico é sempre originário na criança?
Ou pode ser produzido pelas condições sociais e pela inculcação pedagógica?.

Na época do ingresso na escola, as crianças vivem geralmente sob rígidas e austeras condições de ensino, onde as atividades são as menos variadas possíveis, porque
tudo o mais é interrompido e suspenso em prol do ensino da leitura e da escrita. As atenções se concentram na escrita como uma complicada habilidade motora a ser
desenvolvida, e as preocupações se encontram voltadas para os "pré-requisitos da alfabetização", apoiando-se nas noções de "maturidade" e na aquisição dos "mecanismos
de base" como coordenação motora, lateralidade e outros. Além disso, em salas desnudas e superpopulosas, a imposição do silêncio, da imobilidade, da esterilidade
e da estagnação acaba sendo uma "opção" a que o professor recorre para poder sobreviver, contidamente, disciplinadamente, com quarenta crianças, onde parece não
haver as mínimas condições de espaço, de tempo e de ampliação de conhecimentos.

0 livro didático é apresentado para o aluno como uma 'Fonte de conhecimento do mundo", ao invés de ser um dos objetos de conhecimento no mundo. E as atividades de
leitura e escrita, baseadas no livro didático, são totalmente desprovidas de sentido, e totalmente alheias ao funcionamento da língua, contrastando violentamente
com as condições de leitura e escrita das sociedades letradas e da indústria cultural de um final de século XX,

Nesse contexto, nessa situação contraditória, começam a "surgir" nas crianças as dislexias, os problemas psicomotores, foniátricos, neurológicos; o desinteresse
total, a apatia, a falta de motivação...

Em 1980, começou a ser divulgado no Brasil o trabalho pioneiro de Emilia Ferreiro sobre os processos de aquisição da linguagem escrita em crianças pré-escolares
argentinas e mexicanas, levantando e difundindo fundadas suspeitas com relação aos métodos de alfabetização.

Apoiada em teorias psicolingüísticas (Chomsky, Goodman, Smith, Read) e assumindo a perspectiva da epistemologia genética piagetiana, Ferreiro desenvolveu uma pesquisa
inovadora, pois reveladora de aspectos até
então não considerados na relação das crianças com a linguagem escrita.

Com base numa sólida evidência empírica, e demonstrando uma grande honestidade intelectual, o trabalho de Ferreiro e Teberosky (1979) aponta várias contradições
e conflitos, tanto do ponto de vista psicolingüístico quanto do ponto de vista pedagógico.


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As implicações pedagógicas deste trabalho são inumeráveis, e as concepções e preocupações lançadas por Ferreiro começam agora a fazer parte do discurso oficial no
Brasil.
É interessante notar, no entanto, que, simultaneamente à pesquisa de Emilia Ferreiro (1979), estavam sendo desenvolvidas várias outras pesquisas com relação á aquisição
da linguagem escrita em vários países: Mary Clay (1972-75) na Austrália, começa a organizar e teorizar sobre a produção escrita espontânea de crianças de cinco anos,
investigando também a percepção e interpretação da escrita em livros.
Goodman (1978) investiga a leitura incidental de rótulos de embalagens de produtos industrializados atentando para as estratégias de interpretação das crianças.
Read (1978) começa a sistematizar os erros ortográficos das crianças americanas, mostrando a lógica e a coerência dos mesmos.
Foucambert (1978) e Lentin (1979) desenvolvem na França pesquisas sobre o processo de leitura em crianças pequenas, e sobre procedimentos pedagógicos.
Scribner e Cole (1981) partem para um estudo etnográfico, numa aldeia na Libéria, procurando entender as condições e os processos de instrução e aquisição da escrita
numa comunidade letrada, mas não escolarizada.
Isto para não falar em estudos anteriores: Gibson e Levin (1976), Lavine (1972), Freinet (1977) e outros.
Como e por que as constatações e as contestações de Ferreiro se legitimam e se convencionalizam neste momento? Pela validade, fidedignidade, rigor científico da
pesquisa? (Os outros estudos não são válidos, científicos? Qual a concepção de cientificidade que qualifica uma pesquisa?). Pelo enfoque construtivista piagetiano
que ganha a dimensão pedagógica e alcança a escola? (É este enfoque, no momento, o único, ou o mais adequado psicológica, pedagógica, política e socialmente? Por
que?). Pelo trabalho pioneiro de investigação do processo inicial de aquisição da escrita em crianças latino-americanas? O fato é que o trabalho de Ferreiro está
tendo, no Brasil, a maior repercussão.
É interessante, contudo, atentar para o movimento histórico destas pesquisas, no campo da psicologia, da lingüística e da pedagogia, analisando as relações entre
as mesmas e as suas implicações sociais e políticas.
Hoje, por exemplo, fala-se muito (num discurso anônimo, difuso) da importância de se "partir da experiência da criança e dar a palavra a ela"; de se levar em conta
a variação lingüística e aceitar os "erros" que a criança produz; fala-se da necessidade de se conhecer os processos de aprendizagem, de se reconsiderar os procedimentos
de ensino, de se rever os métodos de alfabetização. Fala-se também da falta de condições, de reivindicações . . .

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Mas por que isto começa a ser dito? Nestas colocações. o que é dito? O que não é dito (e é portanto ocultado pelo/no discurso)? O que se quer dizer com esta fala?
Ou seja, mais especificamente, quando jornais, livros e revistas lançam a polêmica sobre o ensino da língua, sobre alfabetização, sobre escolarização, o que está
realmente em jogo? Quais as condições ou as situações sociais que possibilitam, viabilizam ou produzem este discurso, hoje? E, neste momento histórico, o que se
faz ou se tem feito no Brasil?
É com a intenção de analisar os processos de aquisição da escrita nas crianças, nas relações de ensino e no movimento das transformações histórico-sociais que me
proponho a comentar e a discutir o trabalho que venho realizando desde 1980, tomando como pontos de partida algumas reflexões e inquietações tanto teóricas quanto
práticas.
Um breve percurso do trabalho
Desde 1980 comecei a desenvolver um estudo sobre a aquisição da linguagem escrita com o objetivo de: a) "investigar processos e estratégias que crianças na faixa
pré-escolar usam para interpretar a escrita no meio em que vivem ; e b) identificar conceitos que o pré-escolar desenvolve a respeito deste tipo de linguagem antes
do início de uma instrução formal".
Baseado numa proposta de pesquisa-piloto de Goodman & Cox (1978), este estudo consistia numa série de seis entrevistas com crianças de vários contextos sócio-econômicos,
partindo-se, primeiramente, da linguagem escrita interpretada no contexto imediato (por exemplo, produtos num supermercado). A cada etapa, a linguagem escrita ia
sendo descontextualizada (fotografia, rótulo, logotipo), até o signo escrito ser apresentado para as crianças sem o apoio de elementos contextuais como desenho,
cor ou forma. A última entrevista com cada criança consistia numa conversa sobre tipos, processos e funções da escrita (Smolka, 1980).
A análise dos dados, tendo em vista algumas categorias previamente estabelecidas, mostrou-se muito mais difícil e complexa do que se previa inicialmente. As sutilezas
e idiossincrasias de cada criança surpreendiam e indicavam a necessidade de uma revisão do procedimento de trabalho, levantando sérias questões sobre as condições
de interação das crianças, não apenas com a escrita, mas fundamentalmente com seus interlocutores.



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Foram entrevistadas doze crianças, entre três e sete anos, das quais quatro da classe média, que freqüentavam diferentes pré-escolas particulares duas crianças de
classe social baixa, que freqüentavam o Parque Infantil da Prefeitura, num período de oito horas diárias; e seis crianças que moravam num internato infantil ligado
a uma entidade filantrópica.
As seis primeiras crianças, apesar da diferença de nível sócio-econômico, tinham contato com a escrita de vários modos, dentro e fora da escola: iam a supermercados,
viam televisão, andavam de 8nibus pela cidade, ouviam histórias lidas pelas mães ou professoras. As respostas destas crianças em relação à escrita corresponderam
às minhas expectativas, pois a crianças conheciam os produtos, tinham informações e interpretavam os signos contextualmente.
As seis crianças intimas não tinham nenhuma, ou tinham pouquíssimas dessas experiências, dependendo da idade e do momento em que haviam ingressado na instituição.
Vários dos produtos apresentados a elas eram referidos como "maizena", "de fazer mingau", ou "sabão", "de lavar roupa". Isto indicava, no entanto, que mesmo nas
condições restritivas e limitadas do contexto em que viviam, essas crianças procuravam interpretar os produtos ou signos escritos, com base no que conheciam e já
haviam experienciado. Na situação de entrevista, as caixas dos produtos e as cartelas de escrita ou viravam brinquedo, ou constituam o "desconhecido"
, causando medo, insegurança e frustração. A interação pessoal, a ligação afetiva, a relação a dois e a possibilidade da atenção exclusiva para cada criança durante
um determinado período de tempo acabavam sendo primordiais num contexto onde tudo era feito em bloco, em conjunto.
"Pesquisar' sobre a linguagem escrita, naquele contexto, revelou que a escrita praticamente não existia ali para as crianças. Pedagogicamente, então, fazia mais
sentido experiências e trabalhar com as crianças as diversas funções e possibilidades de diversos materiais e recursos, inclusive a escrita, além das quatro paredes
da instituição.
Assim, o que de fato se evidenciou, foi a inegável influência das condições de vida das crianças no processo de elaboração e construção do conhecimento do mundo.
E, nestas condições de vida, o significado da presença ou da ausência de adultos ou pessoas mais experientes, como interlocutores e informantes das crianças.
Dei-me conta de que, possivelmente, minhas preocupações iniciais se limitavam aos aspectos funcionais e configuracionais da escrita. Partia do pressuposto de que,
numa sociedade letrada, a escrita "é dada", isto é, devidas às diversas situações de escrita, todas as crianças são "naturalmente' chamadas a interpretar os signos
escritos antes mesmo do seu ingresso . na escola. E que, desta forma, conhecendo-se os modos de apreensão e
interpretação da escrita pela criança, poder-se-ia proceder de modo mais adequado durante o processo de alfabetização.


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De fato, as funções e as configurações da escrita são evidentemente apreendidas pela maioria das crianças em idade pré-escolar que interagem com esse objeto cultural.
Mas só estes aspectos certamente não dão conta do processo de alfabetização. De repente, evidenciavam-se claramente situações de privilégio, de dominação, de conveniências,
de ignorância . . . e
eu não havia considerado, no designa inicial da pesquisa, o aspecto fundamental da interação social, ou melhor, das situações sociais, e mais ainda, movimentos de
interlocução nestas situações.
Não encontrava, por exemplo, no procedimento da descontextualização dos signos, elementos adequados para analisar o processo de apreensão do caráter simbólico da
escrita pelas crianças, e isto levantava novas questões. Meu suporte teórico naquela época, não exclusiva, mas marcadamente piagetiano, não me auxiliava, e mesmo
me confundia neste aspecto: a apreensão do caráter simbólico da escrita é dependente do pensamento lógico-matemático? Em que medida? A criança só pode ser alfabetizada
depois de estar comprovadamente no nível do pensamento operatório concreto? Não era isto que eu observava! E do ponto de vista da elaboração social, como se colocaria
o problema?.
Comecei a suspeitar, a duvidar do meu trabalho. Comecei a perceber a amplidão da questão. Vi que pensar o processo de aquisição da escrita nos remete a buscar historicamente,
sócio-culturalmente, psicologicamente, raízes e origens desta forma de linguagem. Levanta a questão do signo, da
capacidade humana de criar sinais e símbolos. Leva-nos a considerar, na sua gênese, do ponto de vista da nossa cultura ocidental, a relação pensa
mentolinguagem no movimento das interações humanas ... Mas falar da relação pensamento linguagem nos remete às teorias do conhecimento, ao aspecto filosófico da
questão; e falar no movimento das interações humanas
, nos abre à dimensão política .. . Na busca de sentido para minhas indagações, procurava na psicologia, na lingüistica e na pedagogia alguns possíveis delineamentos
para questões que surgiam das observações e registros do trabalho com as crianças.
Nesse momento conheci a perspectiva da Análise do Discurso; li o trabalho de Emilia Ferreiro e resolvi retomar entre outras, a leitura de Vygotsky [1975), que já
conhecia, mas não aprofundara.
Em 1982, atendendo à necessidade de estágio e ao interesse de uma das alunas do curso de pedagogia em observar o comportamento lúdico de crianças pré-escolares,
aliados à vontade de prosseguir as investigações sobre aquisição da linguagem escrita num contexto mais espontâneo, informal e não-acadêmico, iniciei um trabalho
com crianças e mães num Centro de Atendimento ao Pré-Escolar em Campinas.


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Para tanto, parti do pressuposto de que o jogo tem uma função fundamental no desenvolvimento das crianças e, como tal, possui um significado, um sentido, no processo
de organização das experiências, elaboração de pensamentos, expressão de sentimentos, construção de conhecimentos. Tinha como pontos de fundamentação teórica os
estudos de Huizinga (1971), Piaget (1975, 1976 e 1978), Vygotsky (1975 e 1978), Wallon (1978 e 1979), Freinet (1976 e 1977) e Bruner (1975), entre outros.
Já havia observado crianças pré-escolares respondendo e interpretando a escrita em embalagem de produtos, rótulos e propaganda5 e havia conversado com elas sobre
leitura e escrita. Queria, então, trabalhar mais profundamente com pré-escolares a função do livro de história, partindo do pressuposto, também, de que a literatura
infantil, como uma torna essencialmente lúdica de linguagem escrita, constituía importante elemento mediador no processo de aquisição da escrita.
Além dos objetivos de contar e ler histórias para as crianças, brincar e representar de várias formas, dramatizar e criar histórias, procurava registrar, na medida
do possível a fala das crianças em situações de brincadeira espontânea, para elaborar depois, com elas, livros de histórias. Esses livros
, escritos e confeccionados com as crianças, iniciariam a organização e montagem de uma biblioteca infantil no Centro (Smolka, 1985).
A divulgação oral do desenvolvimento desse trabalho, dos procedimentos utilizados e alguns resultados suscitaram a demanda, por parte de professores da rede oficial,
de se iniciar este tipo de trabalho também em primeiras séries do 1 ° grau. Coincidentemente, várias alunas de graduação e de pós-graduação interessadas em participar
do trabalho, propuseram a ' criação de um grupo de estudos, através do qual se pudesse trabalhar efetivamente, a titulo de estágio, em classes de 1° grau, e, ao
mesmo tempo, fazer pesquisa.
Com base em algumas concepções inovadoras (Goodman, 1970; Smith, 1973); Foucambert, 1971) sobre leitura, formalizamos então um projeto que se caracterizou essencialmente
pelo "incentivo à leitura", nos seus aspectos mais abrangentes. Nesse projeto, era nosso interesse acompanhar os processos de aquisição da linguagem escrita na criança,
seus primórdios, sua evolução no contexto acadêmico, procurando conhecer a variedade de conhecimentos que as crianças traziam para a escola, e procurando entender
como elas elaboravam os conhecimentos transmitidos pela escola. Emilia Ferreiro havia apontado pistas interessantes e aspectos fundamentais nesse processo. Mas o
que fazer? E como?
Surgiu assim a proposta de trabalhar com as professoras em sala de aula, estudando e buscando com elas novas alternativas de ensino. Nossa proposta pedagógica era
fazer isto enquanto brincávamos, líamos, escrevíamos e encorajávamos as crianças a lerem e escreverem de diversas
formas, em contato com vários materiais e recursos. Nossos procedimentos incluíam a literatura infantil como uma das alternativas centrais de articulação do trabalho
com as crianças.


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Era também essencial ir organizando dados do cotidiano para ir tecendo as relações e conversando com as professoras sobre eles. Nesse processo, fui, cada vez mais,
mergulhando na questão acadêmica da alfabetização.
Na tentativa de situar e contextualizar os problemas da minha pesquisa, apoiei-me nos estudos psicolingüísticos e nas práticas pedagógicas de vários autores: Emilia
Ferreiro (1979 e 1982), Kenneth & Yetta Goodman (1970 e 1976), Frank Smith (1972) Gibson (1976), Van Allen (1976), Mary Clay (1975 e 1976), Vygotsky (tg7g e 1980),
Luria (1983), Foucambert (1976), Lenlin (1978) e Read (1975).
No desenrolar desse processo, começaram a surgir os conflitos e os questionamentos. Surgiram as perguntas que foram delineando melhor os objetos da investigação.
Como vemos as crianças, hoje? O que sabemos delas, dos seus processos de desenvolvimento, da construção de seus conhecimentos, da ampliação de suas visões de mundo?
Como essas crianças vêem o mundo em que vivem? Quais as suas condições de vida? O que dizem sobre o mundo? Sobre a vida? Como? O que conhecem sobre a escrita no
contexto em que vivem? Como adquirem esses conhecimentos? Como interagem com esse objeto cultural - a escrita - e como interpretam o ato de leitura? Qual a função
do adulto nesse processo? Qual a função da escola nesse processo?
Considerando então o contexto acadêmico das primeiras séries do 1° grau, e trabalhando com um grupo de alunas e professoras interessadas, retomei a idéia inicial
da descontextualização da escrita (agora muito mais ciente das limitações da primeira proposta de pesquisa) e, como grupo, optamos por ter uma entrevista com cada
criança, com o objetivo de conhecer e evidenciar os conhecimentos e as estratégias das crianças ingressantes e repetentes da 1 série, com relação à linguagem escrita.
Com base nos estudos e observações anteriores, colocavam-se então como pressupostos para o nosso trabalho:
A) A escrita está inserida em diversos contextos. Tem vários tipos, formas, tamanhos e cores. Estes "detalhes" ou configurações constituem importantes elementos
de leitura, para os quais as crianças atentam e procuram organizar (mas, nesse contexto, o que as crianças percebem como comunicando uma mensagem? A escrita esta
onde e para que?).



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B) Os conhecimentos que as crianças possuem quando entram para a escola dependem de v9rios fatores:
1. Experiência pessoal da criança em interação com o meio: a) condições de vida;
b) nível de desenvolvimento, modos de percepção e organização do mundo;
c) linguagem oral (formas e condições de interação verbal com outras pessoas).
2. Características ou indicadores ambientais:
a) quantidade de linguagem escrita presente no meio;
b) funções da escrita evidenciadas nas trocas e nas comunicações;
c) valores expressos e/ou esclarecidos sobre a escrita.
C) Os conhecimentos que as crianças revelam, além dos fatores' acima, vão depender também daquilo que se torna ou aparece como "referente", no momento da interpretação
da criança.
Os estudos de Ferreiro & Palácio (1982), Clay (1975), Goodman (1980), Carraher & Rego (1981), Goes & Martlew (1983) deram-nos os parâmetros para elaborar um instrumento
inicial de pesquisa (Anexo I) e proceder à análise de dados.
Mas na organização e sistematização dos dados deparamo-nos com inúmeras dificuldades:
1. Que tipo de categorias estabelecer diante da variedade dos dados coletados? Como construir um quadro que revelasse ao mesmo tempo o perfil de cada classe e os
conhecimentos e as estratégias individuais de cada criança? Era necessário construir tal quadro?
2. Com relação ao próprio instrumento na consideração do que é "marca", "produto', "símbolo", etc., surgiram questões que remetem a um estudo muito mais aprofundado
de semiologia, hermenêutica, comunicação de massas . . .
3. E o problema da interpretação? As características individuais próprias de cada pessoa, o que cada entrevistador percebe e considera relevante no momento, a relação
ou interação que se estabelece no momento da entrevista com a criança, a experiência passada do entrevistador e da criança, o que cada criança interpreta como expectativa
do adulto entrevistador, são alguns fatores que interferem obviamente nos "resultados" da sondagem.


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4. O número de relações e correlações que se podem estabelecer perante os dados tabulados de uma pesquisa vai depender do ponto de vista do pesquisador; vai variar
ou se ampliar de acordo com aquilo que lhe interessa mais especificamente; vai depender daquilo que o pesquisador pode ou quer ver como resultado. Mas uma outra
perspectiva se abre se, ao invés de nos centrarmos nos "resultados", explorarmos o conjunto de circunstâncias e procurarmos analisar as múltiplas relações que "produzem"
determinados resultados . .. Em se tratando da produção oral e escrita na escola quantas posições e quantas relações deveríamos levar em conta.
Após um longo estudo do material, e considerando a sondagem, realmente, como um dos pontos iniciais do trabalho, optamos por organizar as respostas das crianças
em categorias, que evidenciassem seus conhecimentos e indicassem, tentativamente, uma progressão em termos de desenvolvimento de noções infantis sobre a escrita
(Anexo II). O que se evidenciou, claramente, é que, se existe uma progressão neste sentido, ela é absolutamente alterada e transformada em função- dos contextos
de interação, informação e ensino nas escola. De qualquer forma, a organização dessas categorias gerou, posteriormente, a elaboração de um roteiro básico de observação,
com o objetivo de indicar para as professoras alguns aspectos e detalhes que merecem atenção no processo de alfabetização escolar. Esse roteiro básico tem sido objeto
de estudo e discussão de vários grupos de professoras e tem sido complementado, trabalhado e transformado de várias formas (Anexo III).
O trabalho de Ferreiro evidenciava bem as contradições entre os métodos de ensino empregados na escola e os processos de aprendizagem vividos e elaborados pelas
crianças. E, de fato, pudemos perceber, nesta sondagem inicial com as crianças, alguns pontos de conflito no contexto escolar da alfabetização (evidenciados depois,
no trabalho em sala de aula) nas primeiras séries:
1. As crianças tem, basicamente, noções das funções da escrita para nomear, identificar, mostrar, indicar, informar, comunicar. Mas esta noção é muitas vezes truncada
pela maneira como a escrita é apresentada na escola. (Os objetivos da escrita, na escola, alteram e limitam as noções das funções da escrita.)
2. As crianças não revelam "conhecimentos metalingüísticos", no sentido de um "distanciamento" da linguagem. Pelo contrário revelam tentativas de aproximação e interpretação,
levantando hipóteses e suposições (o que não é considerado pela escola,


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pois essas tentativas implicam ."erros" e a escola não aceita erros). As crianças usam os termos "letra", "sílaba", "palavra", "oração" indistintamente, e indicam
não terem esclarecimentos sobre isso: muitas vezes, as letras são apresentadas por "desenhos", por associaçi5es figurativas ou sonoras - "C" é "a onda vai"; "é'
é a "tromba de elefante"; "a" é "abelhinha". Muitas vezes, também, letras e sílabas são confundidas: o "C" não é "ce", é o "ca" do cavalo o "M" não é "eme", é o
"ma" do macaco; o "lha" não é "ele, agá, a", é o "lha" do palhaço. Ora, temos observado que isto, em muitos casos, dificulta a compreensão do mecanismo da escrita
(na medida em que é ensinado como "método" deixando de funcionar como referência). Evidencia uma grande confusão entre "imagem" e representação gráfica e escrita,
no que diz respeito ao ensino por parte dos professores; nos remete a uma discussão mais aprofundada do realismo nominal (Carraher 8 Rego, 1981) e do "conflito cognitivo"
(Ferreiro 8 Teberosky, 1979); aponta para investigações sobre o "lógico" e o "lúdico" nos processos de aprendizagem infantil.
3. Quanto menos conhecimento especifico sobre a linguagem escrita (metalingüístico) a criança tem, mais noção da funcionalidade da linguagem escrita ela demonstra.
HA um período (e isto é coincidente com as pesquisas de Emíia Ferreiro) em que a criança "perde o sentido", em prol da decifração. Aos poucos, ela consegue conciliar
decifragem e sentido. O que se pode perguntar então é o seguinte: esta perda de sentido é "via de regra", isto é, é estágio de desenvolvimento ou é condição de ensino?
Temos comprovado que a criança que aprende a "ler sozinha" não perde o sentido, mas precisamente busca sempre mais sentido enquanto decifra.
4. O sentido que as crianças atribuem à escrita, seus esquemas de interpretação, são variados e dependem das experiências passadas bem como dos conhecimentos adquiridos.
O problema maior é que a escola desconhece o valor de tais esquemas, chegando mesmo a confundir "falta de conhecimento" com "incapacidade mental e motora". O pior
é que "falta de conhecimento" tanto por parte da escola como por parte das crianças leva a uma avaliação das crianças como inaptas a adquirir os conhecimentos acadêmicos,
isto é, serve de justificativa para que "não se ensine nada a elas". Em suma, um tipo de "carência" serve de pretexto para uma "carência" maior.
5. Apareceu, por exemplo, uma distinção nítida entre crianças que fizeram e crianças que não fizeram a pré-escola. Pode-se concluir que a pré-escola tem transmitido
alguma informação sobre letras e
números para as crianças. Isso não quer dizer que essas informações sejam sempre "claras e adequadas", no que diz respeito A função e ao mecanismo da leitura. Pelo
contrário, vemos crianças com informações ambíguas e inadequadas e já muito preocupadas com o "desempenho acadêmico".


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6. Por outro lado as crianças repetentes revelam o mesmo nível de conhecimento das crianças ingressantes que fizeram pré-escola e, como elas, demonstram desconhecimento
metalingüístico, falta de percepção da relação entre dimensão sonora e extensão gráfica, inadequação de várias informações sobre a escrita além de muitos "vícios"
devidos aos métodos de alfabetização empregados. Os perfis das classes de crianças ingressantes com pré-escola e crianças repetentes assemelham-se bastante. E este
é um dado extremamente preocupante: o que fez a escola durante o ano (ou nestes anos, no caso de mais de um ano de repetência) com relação às crianças e à linguagem
escrita? Por que as crianças não se desenvolveram? Como a escrita foi apresentada para elas? E para que servia?
7. Outro problema que se evidenciou foi com relação a crianças repetentes alfabetizadas, que liam e escreviam tudo no início do ano ,
mas cometiam vários "erros" de ortografia. Isto indica o desconhecimento, por parte das professoras, dos processos de aquisição da linguagem escrita na criança;
a rigidez com relação "ao cumprimento do programa", cujo parâmetro é o "término da cartilha", e a inflexibilidade no processo de avaliação, que levam estas crianças
a repetirem a 1 série. Mais do que isso, indica um padrão de "escrita ideal, correta e adulta", diante da qual as crianças são avaliadas...
Nosso trabalho, como já foi dito, não se limitou à sondagem inicial. Havia, fundamentalmente, uma proposta pedagógica que norteava e articulava este trabalho. Interagindo
com as crianças durante o ano, não em situações de leste, mas convivendo com elas e com as professoras, fomos registrando, dentro do possível, dados que considerávamos
relevantes e significativos (e que não dizem respeito apenas a leitura e escrita).
Obviamente, isto dependia do que vamos ou podíamos ver no momento. E o que percebamos, observávamos e procurávamos analisar era justamente os complexos contextos
de situações que não apenas interferem, mas efetivamente produziam certos resultados ou efeitos no processo escolar da alfabetização das crianças.
Novamente se evidenciava a necessidade de se buscar conhecer e compreender os processos de leitura e escritura no jogo das interações sociais. E isso nos levantava
novos problemas.


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Salas de aula, relações de ensino
Foi precisamente a necessidade de analisar o contexto, de pensar a alfabetização (ou o desenvolvimento/ensino/aquisição da escrita) em termos de interação e interlocução,
que fui evidenciando ao longo destes anos de trabalho - para situar essa tarefa pedagógica no seu 2mbito técnico, prático, mas sobretudo teórico e poético. Embutida
nessa necessidade, a procura do que era relevante e significativo. Ou seja, na diversidade dos métodos, na diferença das práticas, na variedade das técnicas, na
dificuldade das condições, na dispersão dos interesses, na atribuição de valores, na contingência de situações e momentos, o que importa, realmente? Pode-se assegurar
ou determinar isso?
A partir dessas preocupações, a perspectiva de uma Teoria da Enunciação e a Análise do Discurso sugeriram-me alguns parâmetros ou pontos de apoio para a análise
que eu buscava fazer. Por que a Teoria da Enunciação e a Análise do Discurso na consideração de questões pedagógicas? Primeiro, porque, para mim, a alfabetização
implica leitura e escritura que vejo como momentos discursivos. Segundo, porque o próprio processo de aquisição também vai se dando numa sucessão de momentos discursivos,
de interlocução, de interação. A Teoria da Enunciação (Bakhtin, 1981) aponta para a consideração do fenômeno social da interação verbal nas suas formas orais e escritas,
procurando situar essas formas em relação as condições concretas de vida, levando em conta o processo de evolução da Língua, isto é, sua elaboração e transformação
sócio-histórica. A Análise de


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Discurso (Orlandi, 1983; Pécheux, 1969) indica pistas concretas para uma análise dos elementos e das condições da enunciação. É necessário observar, contudo, que
não se trata da aplicação da AD como tal a um objeto de reflexão pedagógica, mas de, a partir da reflexão sobre princípios teóricos e metodológicos da AD, pensar
as relações pedagógicas.
Deste ponto de vista, então, como analisar o processo de alfabetização no contexto escolar, no cotidiano da sala de aula?
Em "Para quem é o discurso pedagógico?", Orlandi (1983) nos dá uma pista quando faz um recorte metodológico para realizar uma análise do percurso estrito da comunicação
pedagógica. Esquematiza, assim, do ponto de vista do professor e da escola, a função de ensinar, mostrando a equivalência ensino I inculcação e apontando para a
"elisão (ilusão) do referente" . . .
Quem Ensina O que Para quem Onde
Considerando que esta função pedagógica implica, no seu bojo quem aprende o que para que como e onde, e que isto é constitutivo da interação pedagógica, podemos
iniciar a discussão da questão.
Pécheux (19%) argumenta que todo o processo discursivo supõe, da parte do emissor, uma antecipação das representações do receptor, isto é, sua habilidade de imaginar,
de pensar onde seu ouvinte o "enquadra", e que esta antecipação de "o que o outro vai pensar' do lugar em que ele se representa como tal parece constitutiva de todo
discurso. Ora, quem é essa criança para quem eu falo? Quem eu acho que ela é, do ponto de vista do professor que eu sou? Que imagem se fazem, mutuamente, professor
e aluno? Qual é o lugar do professor na escola? E qual o lugar da criança, do aluno? Que lugares ocupam e que posições assumem? Qual é o "lugar" a eles atribuído
no sistema de representações sociais (na instituição escola)?
O problema se complexifica na análise quando procuramos evidenciar expectativas e pressuposições nessas relações.
Pécheux sistematiza este jogo de relações com o conceito de "formações imaginárias", em que jogam, precisamente, relações de lugares e antecipações. O que quer dizer
isso? Tentemos analisar duas situações:
1. Uma criança de sete anos, na 1 série primária, ano escolar da alfabetização, conversando com um adulto, fora da escola:
- Então, L., como vai a escola? -pergunta o adulto. - Médìo.
- Por que? Você não está gostando?
- Estou. Só que já sei tudo o que a tia ensina.
Então eu finjo que eu não sei para ela pensar que foi ela que me ensinou, e ficar contente (Situação 1).

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Numa pré-escola, as crianças começaram a colecionar pedras e arrumaram um lugar para organizar e guardar a coleção. A professora lembra que tem um amigo geólogo,
"que estuda pedras", e sugere As crianças a possibilidade de uma conversa com ele. As crianças votam se querem a vinda do geólogo. Todos querem. Escrevem então,
uma carta para ele (a professora é a escriba), com várias perguntas. O geólogo vem à escola. Estão todos sentados num círculo, e ele vai lendo e respondendo as perguntas.
L., seis anos, sentada ao lado da professora, cutuca a "tia" e pergunta baixinho: - Tia você já sabia tudo isso?
- De algumas coisas, já. Mas a maioria eu estou aprendendo agora.
- Ah! era isso que eu queria saber: se professor já sabe tudo! (Situação 2).
A clareza com que a criança da Situação 1 analisa a relação com a professora na situação escolar, e a indagação levantada pela criança da Situação 2 suscitam, no
mínimo, uma séria reflexão sobre a ilusão em que vivem os professores que assumem a tarefa, a eles atribuída pelo corpo social, de ensinar.
Analisando essa ilusão, fui percebendo, cada vez mais, a necessidade de distinguir entre a tarefa de ensinar e a relação de ensino. A relação de ensino parece se
constituir nas interações pessoais. Mas a tarefa de ensinar é instituída pela escola, vira profissão (ou missão). Será que vira mesmo profissão? A tarefa de ensinar,
organizada e imposta socialmente, baseia-se na relação de ensino, mas, muitas vezes, oculta e distorce essa relação. Desse modo, a ilusão e o disfarce acabam sendo
produzidos, não pela constituição da relação de ensino, mas pela instituição da tarefa de ensinar. Em várias circunstâncias, a tarefa rompe a relação e produz a
"ilusão". Ou seja, da forma como tem sido vista na escola, a tarefa de ensinar adquire algumas características (é linear, unilateral, estática) porque, do lugar
em que o professor se coloca (e è colocado), ele se apodera (não se apropria) do conhecimento; pensa que o possui e pensa que sua tarefa é precisamente dar o conhecimento
à criança. Aparentemente, então, o aprendizado da criança fica condicionado à transmissão do conhecimento do professor.
Desse modo, o professor tende a monopolizar o espaço na sala de aula: seu discurso predomina e se impõe. Daí sucede que o estatuto do conhecimento passa pela escolarização,
isto é, que a escolarização é constitutiva do conhecimento. O que quer dizer: "quem não vai à escola não possui conhecimentos".
Mas, nesse sentido, ainda, a ilusão não significa apenas um "engano', no sentido do professor achar que está ensinando alguma coisa e, na realidade, o aluno não
estar aprendendo; ou do professor achar que o aluno só aprende se o professor ensina. Essa ilusão significa, mais profundamente, o



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professor estar ensinando algo do qual ele não está consciente , algo que está implícito na sua tarefa, na sua prática, e que diz respeito ao que é dito, divulgado
(inculcado) e pensado ao nível do senso comum. A ilusão do professor parece decorrer, então, da não-consideração ( e do ocultamento) de vários aspectos , componentes
(e detalhes) cruciais no processo de convivência, interação, e relação com os alunos, pais, colegas de trabalho, funcionários , superiores, no cotidiano da instituição
escola. É decorrente da sua falta de conhecimento e posicionamento crítico com relação ao seu próprio papel e sua função, como professor , no contexto e funcionamento
sociais. A sua ilusão acaba sendo efeito de sua posição no sistema de representações sociais.

A própria criança da situação 1 participa da produção desta ilusão na medida em que finge que não sabe para a professora pensar que é ela que ensina . Ou seja, uma
criança de sete anos , no contexto escolar, consegue imaginar, do lugar do professor , o que é esperado dela criança como aluna: que não saiba.

Na situação 2 a dúvida da criança se coloca de outra maneira: ela questiona e pergunta sobre o saber da professora , numa sala de aula onde há condições para isso.

A primeira criança fala, de fora da escola, sobre o seu saber e a sua relação com a professora. A Segunda criança fala com a professora sobre o saber de duas, na
escola.

Pode-se perceber que as relações de ensino e as condições do falar ou do dizer de cada criança são muito diferentes em cada uma das situações . Será decido ao fato
de a primeira criança estar numa 1 série e a Segunda numa pré-escola ? Sem dúvida , este é um dado relevante na análise , mas só isso não dá conta de todas as relações
e pressuposições...é apenas um dado no contexto.

Tentemos analisar como o implícito funciona nas salas de aula com relação ao processo de alfabetização.

Para evidenciar algumas das relações , posições e pressuposições no que diz respeito à alfabetização , opto aqui por transcrever um trecho de uma observação feita
em sala de aula , ressaltando que se trata, obviamente do meu ponto de vista e de um recorte que faço, intencionalmente, para analisar a questão. Deste ponto de
vista , também essa descrição constitui um protótipo da situação escolar e acadêmica que pude constatar nos diversos contextos onde trabalhei.

As professoras de duas classes de 1 série , com o apoio da orientadora educacional da escola , solicitaram auxílio do nosso grupo de estudos que estava trabalhando
com aquisição da linguagem escrita. A queixa era de que pelo menos 50% das crianças eram incapazes de acompanhar a classe e , portanto, eram inaptas para prender
a ler e escrever durante aquele ano escolar.

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As professoras solicitavam um programa de recuperação para os alunos mais fracos, e recusavam a nossa proposta de trabalhar junto com elas, sem separar as crianças
introduzindo uma outra dinâmica em sala de aula . Como era importante naquele momento do nosso trabalho observar e demonstrar que as crianças não eram débeis mentais
, e que todo um contexto deveria ser levado em conta na análise do problema , assumimos o trabalho com as crianças indicadas pelas professoras em pequenos grupos
de cinco e sete alunos , duas ou três vezes por semana , adotando procedimentos pedagógicos diferentes dos usados em sala de aula.

Isto se deu durante todo o segundo semestre letivo, e ao final, do ano embora algumas crianças desses grupos estivessem completamente alfabetizadas foram retidas
assim mesmo, porque não apresentavam em sala de aula um desempenho eram lentas demais nos ditados , trocavam letras e cometiam muitos erros.

O que aconteceu em sala de aula?

São 35 crianças na sala de aula de uma 1ª série . Os ruins ocupam duas fileiras à esquerda, mais distante da mesa da professora, que se encontra no canto à direita.
A professora começa a escrever na lousa, em linha horizontal e letra cursiva: ma, me, mi, mo, mu , mão . Pede para as crianças terem a última sílaba dizendo:
- Aqui vocês vão ler
As crianças lêem.
A professora escreve uma Segunda linha e pede para que as crianças leiam: na, ne, ni, no, nu não.
AS crianças repetem . A professora pede para as crianças copiarem cada linha no caderno de classe e depois no de casa.
A professora escreve na lousa:

bo- né, la, neca, de, ca, ta
na - da, dou, pa, na, dava, vio
ma- la, ca, pa ,, to, ná, mou
e diz que tem que completar. De frente para a lousa e de costas para as crianças , a professora pergunta:
- Se eu puder isso (aponta bo) aqui (na frente do né) , como é que fica?
- Uma crianças fala: - boneca.
A professora pergunta , virando-se para as crianças:
- Quem falou boneca?
Ninguém responde.

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BIBLIOTECA CENTRAL
A professora dirige-se ao primeiro aluno da primeira fila e pergunta:
- R., se eu colocar isso (aponta na) aqui (aponta o traço à frente de da), o que fica? R. responde: - Nada.
A professora repete: - No de casa, vocês só copiem direitinho pra fazer em casa. Agora no de classe completa.
S1 mexe em alguma coisa em cima da carteira, vira o caderno, arranca uma folha.
Prof. para S1: -quedê, vocé não fez nada? Nem o cabeçalho?
A professora passa pelas fileiras vendo os cadernos de carteira em carteira:
Prof. para S4: - Tem que fazer. Você não deixou espaço. Olha lá. Eu deixei espaço lá.
Para S5: - Esse aqui é bo. Tá errado, tá errado. Olha bem lá! JA copiou errado.
Para S6: - Aqui a senhora nem colocou. Fez tudo misturado. Não colocou nem fez Tá tudo malfeito. Tem que fazer bem-leito.
Para s13: - Isso aqui tá escrito na lousa?
Para S14 e 515: -Tá indo, tá indo.
Para s16: - Fez muito perto do risco. Assim não dá.
Para s17: - Pra não fazer misturança tem que copiar só o primeiro . . . Vocês copiam tudo junto. . .
Para S8: -TA leio! Feio, leio. Seu O parece uma. Tem que melhorar bem a letra.
Para s14: -Ai, ai. quem falou que eu coloquei mamãe! É boné.
Para s15: - Aqui eu fiz ma com a e na com a. Olha o que você fez aí!
Para s18, 17, 23: -Ok.
Para S28: -Assim eu não gosto. Tem que fazer certinho, senão fica aquela misturança.
Para s26: - Já fez as palavrinhas? ma com o, na com o. Dá uma olhada na lousa e vê se está igual. Você não percebe nada?
Para s20: - Parece que tá tudo com maiúscula. Eu não pus maiuscula. Apaga e faz de novo.
Para S25: - Aqui em cima devia ter o bo, o na e o ma. A senhora não colocou. Aqui tá bo, aqui tá ca, aqui tá ta (Situação 3).

Se perguntarmos, neste contexto: - quem I faz o que I a quem I onde / quando - temos como resposta que: - o professor l ensina a escrita I aos alunos I na escola
I durante a aula.

Mas se, atém disso, perguntarmos: Por quê? Para quê? Como? Colocamos questões que só poderão ser discutidas e analisadas por alguns indicadores observados nas atividades
de sala de aula. É justamente a análise desses indicadores que vai revelar as diferenças nas práticas pedagógicas. E é pela análise desses indicadores que podemos
distinguir função aparente e funcionamento implícito (Pêcheux, 1969) no jogo das relações de ensino.

Quais são esses indicadores e como se evidenciam? Podemos começar a responder pela seguinte observação: um determinado espaço físico, delimitado por quatro paredes,
onde 36 pessoas se encontram por um período de quatro horas diárias. Este espaço constitui o lugar de uma classe de 1


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série primária numa instituição escolar. Como 1 série primária, a função deste lugar social é promover a alfabetização. (Será mesmo? Isto acontece de lato?).
Nesse lugar, a professora ocupa uma posição de responsável pelo processo de alfabetização e assume a tarefa de ensinar crianças a ler e a escrever. Nesse mesmo lugar,
as crianças ocupam uma posição de alunos, e assumem a tarefa de aprender a ler e a escrever.
Uma certa concepção dessas tarefas está implícita no jogo das relações acadêmicas, ou seja, espera-se (e isto faz parte do senso comum) que a professora e os alunos
assumam suas condições e executem suas tarefas de acordo com as representações sociais. Isto parece claro e transparente, ou seja, não se questiona, porque faz parte
das "formações imaginárias".
Por exemplo: quando a professora escreve na lousa e propõe às crianças um exercício como o descrito, vê-se que ela está desempenhando a função a ela atribuída e
imagina-se que ela está alfabetizando as crianças; vê-se que ela está escrevendo na lousa as famílias silábicas (M e N) e imagina-se que as crianças estão aprendendo
as famílias silábicas. Imagina-se também que, aprendendo as fam0ias silábicas, as crianças aprendem a ler e a escrever. Vê-se que a professora fala para as crianças
e imagina-se que as crianças entendem o que ela diz. Observa-se que a professora propõe algumas tarefas específicas (copiar os exercícios e montar as palavras),
e supõe-se que as crianças saibam o que é para fazer.
Mas, pelos comentários da própria professora ao verificar o trabalho das crianças, observa-se que as crianças não correspondem às suas expectativas, ou seja, não
entendem o que é para fazer, não realizam a tarefa proposta com era esperado. O que isto indica? Indica que as "pressuposições" não se confirmam. Indica que existe
algo nesta situação que não está sendo revelado. Indica que é necessário observar e atentar para alguns "detalhes" e procurar outras "pistas" que geralmente passam
despercebidas e são tidas como irrelevantes na análise das relações de ensino. Esses detalhes vão acabar constituindo os próprios indicadores.
O que a professora diz? A professora diz muitas coisas, e o dizer da professora é um indicador importantíssimo na medida em que revela sua relação com as crianças
e sua relação com a escrita.
Atentemos para a fala da professora: de que, sobre o que ela tala aos alunos .
- ela fala sobre partes da estrutura das palavras (ma com a, na com o, bo, ca, ta, etc.). Quando se refere especificamente à linguagem escrita, a professora revela
uma concepção de linguagem e uma concepção de aprendizagem que vão influir diretamente no seu


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modo de ensinar: ela apresenta a escrita como uma mera transcrição fala (quando iguala, não distingue e não esclarece sobre o valor O, por exemplo, em boné e em
bola); ela apresenta silabas sol, e não trabalha com as crianças a função e o sentido da escrita; essa inclusive informações inadequadas e não esclarece sobre o
ne e os sons das letras quando chama o m de ma, o n de na.

- ela faz comentários sobre a (des)organização das crianças no espaço do caderno: "não deixou espaço, não colocou, já copiou errado , vocês copiam tudo junto, fez
muito perto do risco, pra não fazer ;misturança ..." Esses comentários revelam também o que as crianças fazem e deixam de fazer. A professora reclama, aponta o i
modelo na lousa, mas efetivamente não aponta para as crianças uma possível torna de organização no caderno (supõe que as nas de organização na lousa e no caderno
são óbvias e diretamente relacionadas, e que as crianças tem obrigação de saber).
a situação, o ato de ensinar se caracteriza e se reduz ao falar e erro; o ato de aprender se caracteriza pelo tentar copiar e pelo
professora faz três perguntas que são respondidas verbalmente as crianças: uma, dirigida à classe como um todo , recebe a resta de uma criança: "Boneca". Como essa
resposta é tida como inadequada, gera outra pergunta da professora: "Quem falou boneca

A sutileza" da entonação, com o caráter de repreensão, provoca o do das crianças. Nesse momento há uma certa "cumplicidade" a contra a professora, pois ninguém responde.
A professora então especificamente a uma criança que ela sabe que sabe responder ta: "R, se eu colocar isso aqui, o que fica?" R. responde: "Nada


No que diz respeito ã relação da professora com as crianças, o seu dizer - á indo; tá errado; tá feio, feio; tá tudo malfeito; a senhora não colocou faz de novo
.. - revela sua irritação e frustração diante da eu esforço, seu trabalho, não surtem efeito, não produzem o recado. Por que?

Falando do ma, do ca, do na, falando de aqui (caderno) e lá (lousa), a desloca, dispersa o referente da sua fala: sobre o que ela fala afinal, por sua vez, não conseguem
"se ligar" no que a professora fala , porque a relação com o referente se dissolve, se dilui, desaparece. Assim a relação de ensino se rompe, o referente se perde,
o efeito é o caos. A professora não consegue apreender a apresentar a escrita como um objeto de estudo e de conhecimento, nem consegue usa-la como mediadora ou instauradora
de conhecimentos ...


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No entanto, ela faz o que sabe. E aqui começa a surgir o trágico e dramático da situação. Sua impaciência e irritação com as crianças acaba provindo também do seu
não saber o que fazer: a evidência da não-compreenção das crianças ameaça e abala sua posição e torna desagradável, insuportável a tarefa de ensinar. Isso gera um
certo sentimento de incapacidade, incompetência e fracasso, que ela transfere para as crianças. Como a tarefa suplanta ou apaga a relação de ensino, evidencia-se,
então, a luta de poder: sem entender "do que se trata,
afinal", e sendo cobradas pelo que não entendem, as crianças desenvolvem esquemas e buscam estratégias de sobrevivência no sistema. Poucas - de seis a dez - crianças
desempenham a tareia de acordo com a expectativa da professora. Várias tentam se adequar as "normas" e copiam da lousa mesmo sem saber como e por que. Outras se
recusam a copiar: ficam paradas, observando alguma coisa; desenham, rabiscam e arrancam folhas do caderno; trocam "cochichos"; procuram outras coisas para fazer.
Surge o espaço ideal para a chamada "indisciplina " na sala de aula.
A professora sem entender ou conseguir explicar estes comportamentos e a falta de atenção das crianças, assume como parte de sua tarefa solicitar o auxílio de uma
psicóloga para uma testagem nos alunos mais "fracos". 0 resultado dos testes aplicados (WISC e Goodenough) vem confirmar as suspeitas da professora: dezessete crianças
são avaliadas como "deficientes ", "marginais" ou "lentas", com a recomendação de serem encaminhadas para uma classe especial. A professora "suspira aliviada". A
"culpa" não é dela. As crianças é que "tem problemas".
Configuram-se, assim, as condições de produção da repetência e da evasão escolar, legitimadas pelo "conhecimento cientifico (testes) da "psicologia atual".
No entanto, torna-se importante questionar essa "legitimidade" e analisar a função da professora no sistema escolar. Tanto a legitimidade do conhecimento científico
quanto a posição que a professora ocupa e a tarefa que ela assume foram e estão sendo forjados e constituídos historicamente no jogo das relações sociais. A realidade
cotidiana escolar e acadêmica e as inúmeras situações de sala de aula como esta são, hoje, insultados ou produtos de um complexo conjunto de condições e circunstâncias
em que pesam, obviamente, fatores sócio-econômicos, políticos e ideológicos. Nesse contexto, o ensino da escrita tem se reduzido a uma simples técnica, enquanto
a própria escrita é reduzida e apresentada como uma técnica, que serve e funciona num sistema de reprodução cultural e produção em massa. Os eleitos desse ensino
são tragicamente evidentes, não apenas nos índices

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de repetência, mas nos resultados de uma alfabetização sem produz uma atividade sem consciência: desvinculada da práxis de sentido, a escrita se transforma num
instrumento de seleção e alienação.
situação de redução e restrição da escrita, o que as crianças muito claro, segundo depoimentos de várias delas:
Para que você vem a escola?
Para aprender a ler e escrever.
Mas para que você vai aprender a ler e a escrever?
Para tirar boa nota.
Pra não ficar burro.
Pra passar de ano.
Pra não precisar pegar no serviço pesado quando crescer.


Ou seja, a escrita, sem função explícita na escola, perde o sentido; e até faz desaparecer o desejo de ler e escrever. A escrita, na serve para coisa alguma a não
ser ela mesma. Evidencia-se uma redundância: alfabetizar para ensinar a ler e a escrever. Um exemplo aumentar esta análise, do ponto de vista de uma criança:

Foi desenvolvido um trabalho paralelo ao programa escolar, durante várias semanas vezes por semana, numa 1 série considerada a mais fraca, com livros a infantil
e atividades lúdicas.

A uma certa altura do trabalho, as crianças solicitaram levar os livros para casa. Conversou-se então sobre a biblioteca, "lugar onde os livros são guardados, e
aos que querem ou precisam ler alguma coisa vão lá, e pedem os livros emprestados".
- Tem biblioteca aqui na escola?
- Não sei, tia.
- Bem, então como é que a gente vai saber?
- Tem que procurar.
- Então vocês vão procurar até a semana que vem, porque hoje não dá mais tempo
- Mas a gente vai esquecer, a tia.
- Como é que a gente pode fazer para não esquecer?
- A gente pode escrever um bilhete.
- ótimo ! Então vamos escrever no caderno: - Durante esta semana, procurar saber se tem biblioteca na escola. (A estagiária escreve na lousa e as crianças copiam
Uma criança se aproxima e pergunta:
- Tia, este bilhete é de verdade ou de mentira? (Situação 4).

Ou seja
- o que eu estou escrevendo vale como lembrete, mensagem real?
- o que estou escrevendo tem função de registro, de memória? Ou tem apenas uma função de treino motor?

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- Este bilhete diz alguma coisa? Deve dizer? Ou é apenas mais um disfarce?
Dadas as condições, a criança revela o simulacro em que se vive na escola. Mas como, em geral, não se pode observar o desejo (motivação), o empenho das crianças
"em aprender" neste sistema (simulacro); como elas não conseguem realizar as expectativas da professora, supõe-se e conclui-se que: as crianças têm problemas; que
elas são incapazes; que elas não prestam atenção e não têm os pré-requisitos desenvolvidos; consequentemente, não podem ser alfabetizadas.
Essas conclusões e suposições, que na realidade se caracterizam como pressuposições, transformam-se em preconceitos. E é isso que tem permeado, implicitamente, as
relações de ensino, na escola.
A questão que não se analisa é que, na maioria das vezes, existe, sim, um enorme desejo das crianças, desconsiderado e excluído sutilmente pelos pressupostos implícitos,
ocultado nas formações imaginárias em que jogam preconceitos ideológicos.
É o que revela muito claramente uma situação vivida por nós, numa grande escola estadual de periferia, com treze classes de 1 série. As vinte e cinco "piores" crianças,
as mais fracas de todas (segundo o que foi observado pelas professoras após a aplicação de um teste - adaptação de Metropolitano e WISC), compuseram o grupo da 1á
série M.
A classe era considerada "a mais fraca" porque: - nenhuma criança havia cursado pré-escola; - todas tiraram zero nu teste aplicado;
- mal sabiam pegar no lápis;
- mal entendiam o que se falava com elas;
- tinham muita dificuldade em aprender e tinham, portanto, "problemas de aprendizagem".
Eram "tão fracas" e "pobres" que "nem adiantava pedir cartilha". As crianças iriam fazer, durante o ano, apenas atividades de pré-escola e período preparatório,
pois eram consideradas incapazes para aprender a ler e escrever.
No início de março, enquanto nas demais classes as crianças repetiam o a - e - i - o - u, na 1 série M as crianças rasgavam páginas de revistas, picavam as folhas
com as mãos, em pequenos pedaços, para enrolar, depois em pequenas bolinhas que seriam coladas na copa de uma árvore que a professora desenharia numa folha de papel.
As crianças não tinham idéia desse "projeto", ou seja: rasgar, picar e enrolar papel para que?
Para a professora, o objetivo era claro: era necessário treinar o movimento dos dedos, para as crianças poderem, posteriormente, segurar o lápis direito



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Aparentemente, então, nesta classe, as crianças estavam sendo para aprender a ler e a escrever", mas de fato, implicitamente, o : a negação do conhecimento a quem
ainda não o possuía, imagem que se tinha ou se formou das crianças que compunham o grupo
Essas crianças não sabem ... (Mas não sabem o que?)
Não sabem fazer . . .( Mas fazer o que?)
lápis, copiar da lousa, responder às questões do teste, discriminar sons, falar direito .
Não podem aprender a ler e a escrever." (Ou seja, não podemos ensinar porque elas ainda não sabem).

Como apontou Emilia Ferreiro (1982), as professoras esperam as crianças já cheguem à escola sabendo!
Uma entrevista com cada criança durante os primeiros meses de aula revelou que:

Todas tinham experiências diversas com a escrita;
porém não tinham esclarecimentos ou conhecimentos sobre a escrita
sabiam que não sabiam: - Eu não sei ler. Tem coisa escrita mas eu não sei ler. - Não dá para ler porque eu não sei muito bem usar letra.

tinham expectativa de aprender, de que alguém (a professora) lhes ensinasse... (mas isso lhes havia sido negado a priori).

Com base nos dados das entrevistas individuais, das quais a profesticipado, começamos primeiramente a conversar com ela e procurar diluir "falta de conhecimento'
de "incapacidade mental".

Analisando as respostas das crianças, procuramos mostrar para a crianças de seis ou sete anos, que vivem em precárias com e têm sua primeira experiência escolar,
não são "débeis respondem e interpretam, por exemplo, a seguinte cartela
AU - 0123
como:
- Não sei. É letra. Serve pra colocar nas coisas pra vender, pra saber


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- Já vi num caminhão. Tava escrito atrás, na rabeira . .
- É letra de carro novo.
- Isso é um prédio que tá escrito - aponta o A.
- É uma coisa que tá coisada pra baixo - aponta o U.
- É uma roda - aponta o 0.
- É um pau - aponta o 1.
- É uma cobrinha - aponta o 2.
- É uma violinha - aponta o 3.
- Tá escrito arroz.
- É Uemura.


Na sala de aula, as crianças eram excessivamente tímidas, quietas; procuravam fazer o que era solicitado, e muitas vezes ficavam paradas, observando sem talar.
A sala, razoavelmente espaçosa, era totalmente desnuda. Os poucos materiais (revistas, lápis de cor, cola), a professora trazia de casa. Não havia nada escrito na
sala: nem os nomes das crianças, nem um calendário, nem
mesmo o convencional cabeçalho.
Propusemos à professora desenvolver um trabalho usando uma dinâmica diferente em sala de aula. Para iniciar o processo de alfabetização, ela poderia, entre outras
coisas:
- trazer a escrita para dentro da sala de aula, trabalhando as funções da escrita em todas as suas possibilidades: utilizando crachás, calendários, livros, revistas,
bilhetes, rótulos de produtos e embalagens, etc.;
- dar espaço e encorajar as crianças a falarem, formando pequenos grupos de crianças, o que facilitaria o diálogo e o trabalho em conjunto;
- ler é escrever para as crianças;
- expor os trabalhos das crianças de forma organizada, utilizando a escrita para a organização;
- esclarecer e informar as crianças sobre a escrita, respondendo às perguntas que as crianças fizessem . . .
A professora se entusiasmou com a proposta, mas muito mais pelo feedback das próprias crianças.
Em sala de aula uma das pesquisadoras conversou com as crianças sobre "causos" e histórias que elas sabiam, e as crianças contaram a historia do Chapeuzinho Vermelho.
A pesquisadora, então, escreveu na lousa: "O lobo comeu Chapeuzinho", e leu para as crianças. Distribuiu folhas de papel sulfite e pediu às crianças que desenhassem
o que quisessem sobre a história. Ao recolher os desenhos, o que se pode constatar? Que vinte e três crianças (92%) haviam tentado copiar a escrita da lousa. Escrita
espelhada



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ou não, subindo ou descendo na folha de sulfite, letras o pequenas, o fato é que as crianças confirmaram o desejo aprender a ler e a escrever. Isto s6 aconteceu,
no entanto supôs que eles eram capazes e abriu espaço para a s uma.
Prosseguindo na análise podemos evidenciar alterações: o que significa supor que a criança é capaz e o que significa levar em conta a capacidade da criança?
Se pensarmos nas situações de sala de aula comentadas anteriormente - que são apenas protótipos do que ocorre geralmente ou indicadores das formações imaginárias
- vamos ver que as professoras como um todo, "levavam em conta a capacidade das consideravam que elas não eram capazes, baseadas fraco desempenho motor, na "dificuldade
na execução das tarefas", na "desorganização das crianças" etc...

O problema se evidencia, pois, quando, em termos do discurso pedagógico, fala-se sempre em "levar em conta a capacidade da criança e aceitar seu ritmo de desenvolvimento",
mas esse "levar e precisamente: "coitada, ela (ainda) não é capaz de aprender a ler e a escrever, então não se pode (ainda) ensinar.

A escola como instituição e a professora, do seu lugar dentro desta instituição, lavam, novamente, as mãos.


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O que a professora "ensina" quando soletra para e com a Criança alguma coisa que a criança pede?
Ela vai apontando e nomeando as letras como instrumental necessário s dizer as coisas por escrito. Desse modo, ela vai informando sobre o lugar das letras nas palavras
e vai esclarecendo sobre o valor das letras com a posição destas nas palavras (dependendo da posição do R muda, por exemplo? Ela trabalha o funcionamento, sua estrutura
e sua função, simultaneamente. Ou seja, ela usa a escrita para registrar, marcar, e, ao mesmo tempo, interagir e processo ela vai, implícita ou explicitamente, ensinando
os aspectos mecânicos e estruturais da escrita.
Quando a criança tenta escrever sozinha (processo de elaboração individual ) ela analisa a escrita do ponto de vista do conhecimento que já posa algumas convenções
sociais).

Do ensino da professora, então, não resulta, necessariamente, do aluno. Há um espaço para a elaboração individual da criança . A professora ensina porque esclarece,
não oculta, não disfarça (não chama o m de ma do macaco, por exemplo). Ela informa adequando que a criança é capaz de aprender a ler do funcionamento da escrita,
a professora traba0 outro, a interação, a relação com a criança.

No caso, entre outras coisas, a criança aprende a escrever, e revela :ver sozinha. A professora, também entre outras coisas de aprender da criança. A professora
aprende a do que ouvir, a entender o que a criança tem a dizer. criança rabisca, desenha, escreve.

no caso, oletan, por exemplo, essa escrita seria praticamente ilegível fora do contexto. No entanto, com base em informações lógicas mais recentes, a professora
é capaz de interpretar a escrita , vendo e reconhecendo as aproximações (agoira evidentes para ele) com a escrita convencional. Ou seja, a escrita da criança faz
sentido no contexto . (E, ao mesmo tempo, abre o espaço para se trabalhar a convenção)

Quando a professora soletra as palavras e mostra as letras do alfabeto , ela esta destacando apontando e nomeando elementos do conhecimento para a criança indicando
uma forma de organização deste conhecimento . quando a criança fala pergunta ou escreve, é ela quem aponta para a professora o seu modo de perceber e relacionar
o mundo. Nessa relação se constrói.
Inúmeras outras situações de ensino, nos diversos contextos das salas


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de aula, foram nos apontando, cada vez mais, a relevância dos movimentos de interação e dos momentos de interlocução nos espaços de elaboração do conhecimento.
Era o nosso primeiro contato com as crianças. Para conhecer e guardar os nomes das crianças, fomos escrevendo o nome de cada uma na lousa, seguindo a posição das
crianças nas fileiras. A sétima criança da primeira fileira disse que o nome dela não era "daquele jeito". Foi, então, à lousa para mostrar como se escrevia. Escreveu
em cursivo. Mostramos, então, o que aconteceu quando se "juntavam" as letras do nome em script. Logo, todas as crianças queriam ir a lousa, para mostrar cara se
escrevia o nome. De repente, havia mais de 15 crianças escrevendo na lousa (escrever na lousa, em geral, não é permitido às crianças . Diante da perturbação gerada
(e, de certo modo, esperada) propusemos às crianças que cada uma escrevesse o seu nome numa folha de papel sem a oportunidade para desenharem e escreverem o que
quisesse:

Nesta situação tão simples, tão corriqueira, considerada muitas vezes absolutamente irrelevante, ou absolutamente desconsiderada do ponto de vista pedagógico (necessidade
do professor saber por que, o que), a escrita, como forma de linguagem, foi: instauradora da relação (o nome de cada um foi escrito na lousa); funcionou como marca,
registro, forma de organização (indicava e representava a posição de cada criança na sala); constituiu uma situação nova naquela sala de aula e provocou movimentações
e interações na sala (as criança saíam dos lugares para escreverem seus nomes na lousa, trocavam comentários e opiniões); gerou interlocução, barulho e excitação
das crianças ( todos queriam falar e mostra o que sabiam).

Neste mesmo contexto uma criança "emburra" por causa da disputa de algum material e se recusa a fazer qualquer coisa. Um adulto se aproxima da criança e pergunta:
- Por que você está bravo? Nenhuma resposta.
- Você não quer conversar comigo?
A criança olha para o adulto sem responder.
O adulto pega o lápis e começa a escrever enquanto pergunta:
- Você quer que eu escreva alguma coisa para você?
- Não.
- Você sabe o que eu estou escrevendo? - Não.
- Você quer saber o que eu estou escrevendo? - quero.
- Eu estou escrevendo a nossa conversa. - 0 que?
I - Eu estou escrevendo o que a gente está falando. - Você quer que eu leia para você?
- quero.
O adulto faz, então, a leitura do diálogo. A criança, ainda surpresa pergunta - Como é que sai igualzinho, tia?


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o adulto faz uma nova leitura, acompanhando com o dedo o que está escrito, e vai mostrando os travessões (quando cada um deles fala) e os pontos de interrogação
(quando cada um deles pergunta). Outras crianças se chegam. A criança pega a folha entusiasmada, e vai "lendo", mostrando e explicando para os colegas o que to na
tolha. (Situação 7).

Nessa situação, além de instauradora de uma relação, a escrita foi provocação surpresa, marcando um momento especial de interação e interlocução. Desse modo, a escrita
não é apenas um "objeto de conhecimento na escola. Como forma de linguagem, ela é constitutiva do conhecimento na interação. Não se trata, então, apenas de "ensinar"
(no sentido de transmitir) mas de usar e fazer funcionar a escrita como interação interlocução na sala de aula, experienciando a linguagem nas suas várias possibilidades.
No movimento das interações sociais e nos momentos das interlocuções a linguagem se cria, se transforma, se constrói, como conhecimento humano.

Essas situações, evidentemente, mostram uma outra dinâmica em sala de aula, que rompe, quebra o esquema linear e escrito da "comunicação pedagógica, assim, ao invés
de termos: quem - ensina - o que - para quem - onde, podemos representar as relações de ensino (na escola e fora dela) de
onde os lugares do quem podem ser preenchidos tanto pelo aluno como ou pelo professor ou qualquer pessoa. Mas, aí, a questão que se coloca, é: quem pode ocupar
que lugar, quando e por que?" E voltamos à análise da intitucionalização da tarefa de ensinar: da posição e do papel do professor na escola; das representações sociais,
das formações imaginárias e do funcionamento implícito; das condições politico-economicas no movimento das transformações históricas. (Seguramente, um dos "critérios"
de ocupação desses lugares tem sido a linguagem falada ou escrita.) E aqui se abrem novas questões a serem discutidas ...



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Discutindo pontos de vista


Consideremos uma situação em sala de aula, no nosso contexto de escola pública na década de 80.
Final de maio. Classe com trinta e uma crianças, dez repetentes, 1 série, considerada a mais fraca da escola.
As crianças, sentadas nas carteiras enfileiradas, estão colorindo um palhaço mimeografado. Na parede está pendurado um grande palhaço colorido. Na lousa, está escrito
em letra cursiva:
Palhaço - Telha - Palha - Toalha - Folha
Dois adultos entram na sala, apresentam-se as crianças, começam a conversar. No meio da conversa olham para a lousa e perguntam, apontando a primeira palavra: Quem
sabe ler o que está escrito aqui?
Duas crianças respondem: palhaço!
E a turma em coro, repete: palhaço
Um dos adultos aponta a segunda palavra e as crianças "lêem": palhaço
O adulto aponta a terceira palavra. As crianças lêem:
Palhaço
As crianças lêem "palhaço" também para as outras palavras escritas na lousa, A professora estava na lição do "lha" do "palhaço".
O desânimo da professora foi evidente. Ela havia escrito, apontado, lido, ensinado, as crianças repetirem e copiarem. Por que as crianças não liam direito? Por
que aprendiam?



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Numa primeira análise, de um determinado ponto de vista didático pedagógico, poderíamos dizer que a professora usa técnicas de motivação:
pendura o palhaço na parede; distribui o desenho do palhaço para as crianças colorirem; lê a "história do palhaço" (mas acha que as crianças não gostam de ouvir
histórias porque elas prestam pouca atenção a leitura do texto). No entanto, o texto lido para as crianças é um texto montado por adultos, especialmente para evidenciar
determinadas propriedades estruturais da escrita. Não é um texto escrito para ser ouvido curtido, um texto para " funcionar" como história. É um texto que faz parte
de um método alfabetização e tem a função específica de trabalhar prioritariamente a estrutura gráfico-sonora das palavras.

Ainda desse ponto de vista, podemos dizer que a professora usa um método de alfabetização e acompanha um programa misto global silábico que se baseia na apresentação
e fixação de cada vogal com as consoantes simples (tipo a pata nada), acrescentando, aos poucos, os conjuntos consonantais e as consideradas "dificuldades". Nesse
processo a professora utiliza estratégias de ensino, baseadas em determinadas concepções de como as crianças aprendem a ler e a escrever: estabelece uma relação
entre a sílaba ensinada e um objeto "concreto" que ela supõe ser conhecido das crianças; "fixa" (repete) bem um fonema, uma sílaba de cada vez e gradua o nível
das dificuldades. Escreve palavras com a mesma sílaba na lousa procurando garantir que as crianças copiem certo para não gravarem errado. Isso revela que a professora
supõe que o que é "igual" é necessariamente, perceptualmente, mais "simples", mais "fácil", e que ela espera que as crianças não só identifiquem as semelhanças entre
as palavras mas estabeleçam a identidade gráfico-sonora do "lha". Com isso ela revela também ignorar que a identificação se dá na comparação, na contraposição na
diferença; que não há uma relação grAfico-sonora unívoca e imutável tanto na fala quanto na escrita da palavra "palhaço": escrever "paliasso tem exatamente o mesmo
"efeito sonoro, como falar "paiaço" tem o mesmo efeito semântico ( se bem que não tenha o mesmo "efeito" social;

Deste ponto de vista também podemos dizer que professora sabe o que faz e acredita no que faz: ela foi formada dentro de uma aprendizagem e de linguagem que é tida
como pressuposta que faz parte do senso comum e por isso não é questionada.

Ainda analisando a situação do ponto de vista do senso comum surge a pergunta: por que, apesar dos "cuidados" e da competência da professora as crianças lêem "palhaço
inadequadamente, para toda as palavras escritas na lousa? Poderíamos concluir, de acordo com esta análise que tudo parece estar "tecnicamente correto" ou "conforme
a norma o problema deve estar nas crianças, que são "fracas".

Desta perspectiva, as falhas ou os erros estão sempre nas crianças e nunca


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nos procedimentos adotados pela escola, que são sempre "cientificados e legitimados.

Porém uma análise de um outro ponto de vista pode nos revelar, entre outras coisas que o que está implícito nas práticas da professora são concepções de aprendizagem
e de linguagem que não levam em conta o processo de construção, interação e interlocução das crianças, nem as necessidades e as atuais condições de vida das crianças
fora da escola e, por isso mesmo pode ser consideradas historicamente ultrapassadas.

Que movimentos de interação puderam ser observados, por exemplo, na situação de aula descrita anteriormente?

As crianças em silêncio, coloriam o palhaço e copiavam as palavras na lousa quando as crianças falavam umas com as outras, agitavam-se ou saíam do lugar, a professora
repreendia e pedia silêncio. 0 movimento das tanto, restrito e contido. As ações permitidas eram: sentar, copiar, colorir e calar.
as conversas entre as crianças eram interrompidas pela fala da professora impondo silêncio. Desse modo, a professora não conversava também com as crianças havia
uma "elocução" da professora com respeito à disciplina. Na situação de escrita, o que as crianças estavam escrevendo? Para que, para quem as crianças não escreviam
para registrar uma idéia, nem fato, nem por necessidade ou prazer de comunicar ou interagir com alguém. As crianças copiavam palavras soltas, provavelmente com algum
significado para elas, mas sem articulação e sem sentido tende por motivo aprender a ler e a escrever'. A intenção da professora era mostrar a semelhança gráfico-sonora
entre as palavras. Mas onde estavam, por exemplo a dimensão simbólica, a dimensão pragmática, a dimensão lúdica , dialógica da escrita nesse contexto?

Nesta situação como em inúmeras outras do contexto escolar, o ensinar a aprender ler e a escrever se deslocam e se diluem nas questões disciplinares. assim, sendo,
o processo de alfabetização como interação e interlocução convivência e diálogo) é totalmente desconsiderado. A alfabetização na escola contrasta violentamente com
as condições de leitura e escrita movimentação e saturação de estímulos sonoros e visuais fora da escola. A leitura e a escrita produzidas pela/ na escola pouco
tem a ver com a experiências de vida e de linguagem das crianças. Nesse sentido, é estéril e estática porque baseada na repetição, na reprodução, na manutenção
do status quo funciona como um empecilho, um bloqueio à transformação e


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á elaboração do conhecimento critico. A alfabetização, na escola reduz-se a um processo, individualista e solitário, que configura um determinado tipo de sujeito
e produz a "ilusão da autonomia' ("autônomo" é aquele que entende o que a professora diz; aquele que realiza, sozinho, as tarefas aquele que não precisa perguntar";
é aquele que "não precisa dos outros revela seu mito da auto-suficiência que, além de camuflar a cooperação aponta os "fracos e incompetentes").

Ora, se as práticas pedagógicas na escola restringir limitam esse espaço de elaboração, como fica, então, o processo de construção do conhecimento sobre a escrita?

De um ponto de vista construtivista, essa mesma situação escolar se colocaria como insustentável. Por que? Porque não considera o ponto de vista da criança que aprende,
não leva em conta os processo de elaboração do conhecimento sobre a escrita.

Na recente pesquisa de Ferreiro & Teberosky (1979) sobre a psicogênese dá linguagem escrita, as autoras apontam justamente de alfabetização e os procedimentos de
ensino baseados em concepções adultas não estão de acordo com os processos de aprendizagem e as progressões das noções infantis sobre a escrita. Partindo do pressuposto
de que a criança é sujeito ativo e conhecedor, elas indicam a importância de se compreender a lógica interna das progressões das noções infantis da escrita, mostrando
que as crianças exigem de si mesmas uma coerência rigorosa no processo de construção do conhecimento.
Assumindo a perspectiva de epistemologia piagetiana e observando, desta ótica, o esforço das crianças para a compreensão da correspondência entre a dimensão sonora
e a extensão gráfica na escrita alfabética Ferreiro & Teberosky (1979) evidenciam o que elas chamam de conflito cognitivo o processo de construção do conhecimento
sobre a escrita. Nesse processo elas mostram a importância do erro como fundamentalmente construtivo na superação de contradições e conflitos conceituais, explicitando
uma progressão, etapas e hipóteses que as crianças levantam sobre a escrita.
Assim também, Ferreiro & Palácio (1982:131 ) argumentam que:
apesar dos esforços dos docentes para fazerem as crianças compreenderem de imediato as correspondências fonéticas que estão na base do sistema de escrita alfabética,
isto não ocorre, o que não quer dizer que as crianças não aprendem elas aprendem e avançam. Recebem informação e a transformam... o processo de aprendizagem não
é conduzido pelo professor, mas pela criança.

Mas aqui se situam algumas questões: o que Ferreiro e Teberoski querem dizer com "sujeito ativo e conhecedor", "lógica interna , coerência rigorosa"?


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do ponto de vista do construtivismo - do processo de estruturação do pensamento - píagetiano, o sujeito é o construtor do conhecimento. O sujeito epistemológico
é o mesmo em todas as culturas (Piaget, 1979), A construção desse conhecimento é norteada por uma exigência (intrínseca) lógico matemática, o que consistiria num
universal cognitivo. A função simbólica, como possibilidade de representação, é analisada por Piaget como um processo individual , distinta e paralelamente ao desenvolvimento
lógico-matemático, Piaget, 1975, e a linguagem, como um caso particular da função simbólica e par a Piaget, um "produto da inteligência": "A formação da função
simbólica é uma derivação necessária da inteligência sensório-motara Piaget 1979. como se dá essa "passagem" na teoria piagetiana - isto é, como a linguagem deriva
das ações sensório-motoras - constitui grande polêmicas Wallon , 1979); De Lemos, 1982; De Castro Campos, 1985).

Apesar de Ferreiro & Teberosky (1979) não explicitarem suas condições de linguagem, essas concepções se revelam nas análises e discussões das questões centrais
da pesquisa que concerne à aquisição da escrita.
do ponto de vista construtivista, cognitivista, então, Ferreiro & Palácio
1982:153) dizem que:

o que resulta mais relevante na evolução estudada é a identidade - não mera analogia entre processos de apropriação do conhecimento no campo da linguagem escrita
e os processos de apropriação do conhecimento estudados por Piaget e seus colaboradores no domínio dos objetivos físicos e lógico-matemáticos . É inegável que surgem
problemas de natureza lógico-matemática a propósito da compreensão da escrita.



Nesse sentido, trabalho de Ferreiro & Teberosky (1979) também argumenta a favor de um processo de construção individual do conhecimento, processo este que supõe
obviamente, uma interação do sujeito da aprendizagem com um determinado objeto do conhecimento, que é a escrita. Delineia-se assim, na perspectiva piagetiana uma
"subjetividade constituidora" assumida por Ferreiro & Teberosky com relação ao conhecimento da escrita. Deste ponto de vista, elas ainda sugerem que "se das progressões
histórica e psicogenética (da aquisição da escrita numa análise dos obstáculos que devem ser superados para chegar a uma tomada de consciência de certas propriedades
fundamentais da linguagem" (Ferreiro e Teberosky 1979)
As autoras ressaltam que esta questão é apenas especulativa e que permite elaborar uma série de novas hipóteses ·

Mas quando Ferreiro e Teberosky falam num processo de "apropriação da escrita como um objeto de conhecimento; e falam em tomada de consciência de certas propriedades
fundamentais da linguagem",

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pode-se perceber, nestas colocaç8es, uma adequação do estruturalismo lingüístico de Chomsky ao estruturalismo construtivista de Piaget, na medida em que a linguagem
é considerada, aprioristicamente, com suas propriedades como objeto a ser conhecido (consideração, essa, característica de um lingüista e característica, também,
do "sujeito epistemológico" piagetiano)

Como se configura, mais específicamente, essa adequação? Ela se revela , na realidade, de caráter metodológico. Os pontos de partida e os objetivos - a preocupação
de Chomsky em explicar a linguagem e a preocupação de Piaget em explicar o conhecimento - distingem, obviamente, os enfoques teóricos. Mas os dois sistemas se "eqüivalem"
no sentido de que totalidade, transformação e auto-regulação permeiam ambas as teorias . O ponto de vista estruturalista serve de apoio tanto para o a priori lingüístico
chomskyano - "gramática universal", "locutor ideal" - como para piagetiano - "inteligência geral", "sujeito epistemológico".

No interior do grande debate Piaget-Chomsky, permanece como problema central o noya dur de cada uma das teorias, que diz respeito, em última questão da origem:
para Piaget, a vida é, essencialmente, auto-regulação:

Não existe mais, no homem, estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o funcionamento da inteligência é hereditário e não engendra as estruturas senão por uma
ação de ações sucessivas exercidas sobre os objetos. Disto resulta que uma epistemologia conforme os dados da psicogenese não poderia ser nem empirista, preformista,
mas não pode consistir senão num construtivismo, com a elaboração contínua de operações e de estruturas novas (Piaget, 1979:53).

Chomsky, por outro lado, diz que precisamente o estudo da linguagem humano levou-o

a considerar que uma capacidade de linguagem geneticamente determinada, que é um componente do espírito humano. específica uma cena classe de gramáticas humanas
acessíveis (Chomsky, 1979:65).


Para Chomsky, "toda estrutura surge do interior e o meio revela esta , questão é, no caso, decidir se "as gramáticas são propriedades t linguagem, ao cérebro do
locutor ou aos dois ao mesmo tempo".

Vemos, então, que o debate gira em torno da lógica e da gramática, da origem e do funcionamento das estruturas. Mas, na proposta inatista chomskyana , a questão
do conhecimento fica deslocada. No sistema construtivista a questão da linguagem permanece marginal. Ou seja, nem um m outro, dão conta, consistentemente, das relações
pensamento construção do conhecimento, se bem que ambos os pesquisam, num dado momento histórico, concepções inovadoras tanto
na lingüística quanto na psicologia cognitiva. Em ambas as teorias, o aspecto das elaborações sócio-históricas é deixado de lado.


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Para Ferreiro, então, o que se constrói é o conhecimento, no sentido estritamente piagetiano, não a linguagem, que constitui um a priori na concepção chomskyana.

E aqui podemos perguntar: qual a função da linguagem no processo de construção do conhecimento? E qual a função da escrita como forma de linguagem?

Ferreiro & Teberosky (1979) e Ferreiro & Palácio (1982) mencionam e remetem o leitor a refletir sobre as funções e a funcionalidade da escrita no processo de alfabetização.
Mas elas analisam aspectos da construção desse conhecimento específico numa situação "experimental", ou seja, numa situação construída de pesquisa. Procurando estabelecer
"padrões evolutivos enquanto seqüência de níveis", elas apresentam um modo de organização dos conhecimentos infantis em termos de hipóteses pré-silábicas, silábicas,
silábico-alfabéticas e alfabéticas, inferidas pelas respostas das crianças nas situações de entrevista.

Ferreiro & Palácio (1982;6) falam, no entanto, em "linhas evolutivas discrepantes" e "regressões" com referência aos "procedimentos específicos da investigação psicológica".
E constatam que algo ocorre com a "seqüência evolutiva", por exemplo, com relação à escritura de orações. Novas dificuldades parecem surgir e as hipóteses não se
mantém. Deve-se ter claro aqui que as "hipóteses" são uma "construção de adultos" com base em indicadores verbais (orais e escritos) das crianças. Mas por que esses
padrões parecem não se manter, ou por que é difícil identificá-los na escritura de orações?
Quando se fala em "discrepância", "regressão" "lógica interna" e "coerência rigorosa", tem-se como pressuposto um "padrão evolutivo" que era justamente o que Ferreiro
& Teberosky e Ferreiro & Palácio se propuseram a pesquisar.
Ferreiro & Teberosky (197g) e Ferreiro & Palácio (1982) analisam a relação da criança com a escrita - como objeto de conhecimento - independente das condições de
interação social e das situações de ensino. Assim, como elas mesmas afirmam, o trabalho se caracteriza como uma pesquisa no âmbito da psicologia cognitiva. Mas o
trabalho em sala de aula, portanto, o aspecto pedagógico da questão, nos indica a necessidade de se considerar, além disso, as funções da escrita socialmente mediada
e construida, e constitutiva do conhecimento rio jogo das representações sociais.
que informações, por exemplo as crianças recebem (de quem?) e como as transformam? Quantas hipóteses podem surgir e com relação a que aspectos da escrita? Funções
sociais? Configurações? Dimensão
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simbólica? Mecanismos? Metalinguagem? Além disso, de que crianças lançam mão? Quantos esquemas elas desenvolvem não só com a escrita, mas com os "outros" que usam,
veiculam e ensinam a escrita?

Minha preocupação com estas questões decorre do trabalho com crianças de pré à 4 série primária, sobretudo com as crianças da 1 série, nas mais diversas situações
de sala de a pedagógico consistia, mais especificamente, em encorajarem e escreverem com base nos conhecimentos que elas achavam que tinham e encorajar e argumentar
com as professoras e as e do encorajamento da leitura e escritura das crianças, analisando com elas os dados e os fatos, as produções e as relações nas sala: disso,
levando em conta que a propaganda e os meios de massa constituem novos instrumentos que alteram as estruturas e as relações psicossociais dos homens, surgia a indagação:
cano esses novos instrumentos e a elaboração de novas técnica e transformando os processos de apreensão e aprendiz escrita nas crianças? No contexto da indústria
cultural, a e aspecto predominantemente icônico e se confunde com representação: ao caráter de simbolização mediada da es o caráter de representação imedista. O
que ocorre, então, que os signos escritos, imersos que estão num complexo conjunto significaste, simbolizam diretamente, remetendo as crianças à ai ficado, sem que
elas necessariamente se dêem conta do c da escrita e do caráter intermediário da fala.

que implicações tem isso para o ensino da escrita no contexto escolar? Alguns autores hoje sugerem que, da convivência e experiências dessas situações de leitura
e da apreensão das regularidade, as poucos, destacando, descolando traços ou característica distintivas da escrita, desenvolvendo o que se chama "leitura incidental",
e sozinhas.


Mas essa "inconicidade" da escrita na industria cultural também quebra, rompe com alguns aspectos tradicionais da escrita: linearidade, direcionalidade, continuidade,
etc., tidos como estáveis ou imutáveis sobretudo no contexto acadêmico). E o que vemos hoje, no ambiente urbano é a fragmentação, a variedade, a pluraridade, a polissemia
.

O que é então "regular"? Ou seja, o que as crianças, percebem como "regular"? Para o que elas atentam? Quem mostra ou aponta as regularidade para elas? E nesses
fragmentos e nessas regularidade o que se faz relevante? Como ? Em que situações? Por quê?
Diante de uma fotografia de uma lata de Leite Moça, por exemplo, as


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crianças apontam a figura da moça , ou o nome moça, dizendo que é leite ou leite moça.
Diante do rótulo do açúcar união , onde união é escrito perpendicularmente e em vermelho, as crianças lêem açúcar e apontam a escrita da marca união.

O logotipo da coca-cola recortado de um copo vermelho em forma retangular é lido ou interpretado pelas crianças como:
- coca-cola
- guaraná taí ou fanta
- colgate chokito

em uma cartela escrita AU 0123, AS CRINÇAS VEEM
- UMA PLACA DE CARRO
- arroz
- água
- avião
- números
- letras
- uemura

DIANTE de uma cartela com o escrito OMENINOCOMMEBALA, as crianças dizem:
- é um monte de letras
- pipoca
- jabuti
- omem ia no..
- o menino come bala

Em O BEBÊ BEBE LEITE as crianças vêem:
- o = c de certo que a tia dá
- bebê = erer
- bebe = zaza
- leite = lata
- o bebê bebe leite

O que isso indica?

- Que as crianças desenvolvem e usam uma variedade de modos e recursos par interpretar e fazer sentido da escrita (adivinhação , reconhecimento, nomeação, associação,
decodificação, predição, leitura...)
- Que o que elas vêem ou percebem como relevante ou significativo não pé sempre a mesma coisa, e não é a mesma coisa para todos.

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ou seja, elas se baseiam em diferentes indicadores em diferentes momentos.
que os "recortes" que as crianças fazem dependem das informações e conhecimentos adquiridos é elaborados, dependem das suas experiências, da sua história de vida.
- que as interpretações ou leituras que as criança: do contexto das situações; dependem das funções que elas fazem da escrita; dependem dos seus esquemas interpretativos.

Assim, enquanto Ferreiro fala em "identidade" e "similitude" as semelhanças indicando um "paralelismo entre a história cultural e a psicogénese", coerente com o
pressuposto epistemológico lingüístico piagetiano, impõe-se para mim, neste trabalho, a necessidade de evidenciar e compreender precisamente as diferenças assumindo
que as constantes mudanças e a incessante elaboração dos sistemas simbólicos leva reestruturação da atividade mental dos homens no processo histórico. Essa constante
reestruturação não é apenas formal e individual, ela é fundamentalmente sociocultural, constituída, trabalhada e produzida social.
Isso nos remete a uma análise das inúmeras condições e situações de leitura e escritura que se diversificam contextualmente constantemente.
Quando digo "se diversificam contextual várias funções e formas de realização da escrita. Quando digo se diversificam constantemente", penso no dinâmico
processo de conceitualização de experiências; penso no processo de transformações elaboradas pelos grupos sociais em interação; penso no movimento de intercâmbio
na amplitude e na abrangência de significações, de interpretações, de portanto, na escrita como uma torna de representação e Nesse sentido, então,
é Vygotsky quem nos fornece os pressupostos e indica alternativas para a consideração da questão.

Vygotsky considera que os processos de conceitual e o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, especificamente humanas implicam a dimensão simbólica,
cuja elaboração é fundamentalmente sócio-histórica e cultural. E diz:

Na elaboração histórico-social , um processo interpessoal se transforma em processo intrapessoal... e essa transformação é resultado de uma longa série de eventos
em desenvolvimento . Isto se aplica a funções como a atenção voluntária , a memória lógica, a formação de conceitos. Todas as funções psicológicas especificamente
humanas se originam nas relações entre indivíduos . a internalização das formas culturais de comportamento envolvem a reconstrução da atividade psicológica através
de signos. (Vygotski)

Os signos - gestos, desenho,linguagem falada, escrita, matemática

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constituem um instrumental cultural, através do qual novas formas de relacionamento e pensamento humanos vão sendo elaborados . Nesse processo , "a natureza do
próprio desenvolvimento humano se transforma do biológico para o sócio-histórico" (Vygotsky, 1975:51). De acordo com essa perspectiva, então, não se falaria apenas
numa "subjetividade conhecimento (no sentido piagetiano), mas se falaria também e sobretudo numa intersubjetividade constitutiva, pois a relação entre os indivíduos
constitui a dimensão, o trabalho simbólico.


Do ponto de vista da psicologia dialética de Vygotsky, então, a colocação da questão muda fundamentalmente: a linguagem é uma atividade criadora e constitutiva de
conhecimento e, por isso mesmo, transformadora. aquisição e o domínio da escrita como forma de linguagem acarretam uma crítica mudança em todo o desenvolvimento
cultural da criança.

Mas, há mais de cinqüenta anos atrás, Vygotsky perguntava: "por que razão a escrita é tão difícil para as crianças que, em certos períodos, há uma ou oito anos
entre as suas idades lingüísticas escrita e sonoridade e entonação, a necessidade de substituir parte palavras, a necessidade de recriação e representação da situação
, o interlocutor ausente, imaginário, constituem circunstancias que tomam a escrita mais difícil (Vygotsky, 1975:98).


Quando Vygotsky se refere à defasagem, ele está considerando que a escrita como um simbolismo de segunda ordem que tem a mediação da fala, apresenta dificuldades
óbvias para as crianças, como uma forma de representação . Só aos poucos o elo intermediário (que é a linguagem falada) desaparecendo, até que se torna possível
a apreensão simbólica e imediatamente através dos signos escritos.

Para evidenciar a apreensão do caráter simbólico da escrita pelas crianças , Luria desenvolveu, em 1928, um estudo que consistia basicamente na apresentação de
algumas tarefas-problemas para crianças entre quatro e nove anos de idade, de modo a suscitar a resolução de problemas que implicavam a utilização de marcas, sinais
ou registros escritos como desse estudo Luria conclui que, no processo de aquisição da escrita as crianças pré-escolares passam por uma série de tentativas, invenções
e estágios, antes mesmo da instrução formal, e nisso consiste a pré-história da sua escrita. Mas Luria constata também que, inicialmente as crianças assimilam a
experiência escolar apenas externamente, ida o sentido e o mecanismo de utilização das marcas simbólicas.

Mas nesse caso a questão que se levanta é: como se dá essa assimilação sem entendimento, sem sentido e sem função? Não será isso também uma decorrência
um efeito, um resultado das condições escolares?



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Ë interessante notar que enquanto Ferreiro & Teberoski e Ferreiro & Palácio (1982) falam em "conflito cognitivo" no são entre a dimensão sonora e a extensão gráfica,
isto é na compreensão do mecanismo da escrita, Vygotsky (1978) e Luria (1980) falam em defasagem" na apreensão do caráter simbólico. A diferença de enfoque na
consideração da questão obviamente se relaciona as questões lingüísticas mais profundas.


Analisando as posições teóricas e observando a podemos chegar à conclusão de que tanto o "conflito cognitivo como a "defasagem" implicam um espaço de elaboração
que se situa entre o ensinar e o aprender a escrita como forma de linguagem. Espaço este que delinearia a própria relação de ensino e constituiria (marcaria, caraterizaria)
a dimensão pedagógica. É justamente nesse espaço de elaboração que surgem as grandes controvérsias, os grandes dilemas pedagógicos.


As concepções da relação pensamento /linguagem esquemas teóricos vão resultar, também, em diferentes respeito às relações de ensino. Ao falarem da construção individual
do conhecimento, Piaget e Ferreiro enfatizam o ponto de vista que a criança aprende. Ao falar da "internalização das formas culturais de comportamento (papéis
e funções sociais), Vygotsky enfatiza o papel do adulto como regulamentado" na relação com a criança. As implicações pedagógicas se distinguem e se esclarecem quando
Piaget nos diz, por exemplo, q alguma coisa ã criança, a impedimos de realizar um mesma, enquanto Vygotsky, elaborando o conceito de desenvolvimento", afirma que
a criança fará amanhã, sozinha , o que hoje faz em cooperação.

Este "confronto" pedagógìco-epìstemológico traz, a discussão: que papéis, que funções, que posições os ou crianças - assumem na relação de ensino, dentro da escola?
Por que? Para que?


Diante disso, a questão pedagógica da alfabetização merece ser analisada não apenas em relação ao processo de construção individual do conhecimento, proposto por
Piaget e Ferreiro, mas precisa ser situada levando-se em conta o processo de internalização dos papéis e funções apontados por Vygotsky. Ganha força aqui o caráter
construção, no jogo das representações sociais e políticas.

Nesse sentido, as análises epistemológicas de Ferreiro Teberoski e Palácio não podem dar conta, em termos político-pedagógicas da alfabetização escolar; Porque,
se bem que elas apor do e a importância das interações, elas investigam e processo individual do desenvolvimento das noções infantis sobre a escrita



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independentemente das relações sociais e das situações de ensino (formais ou informais) Elas mostram mais um fator que precisa ser conhecido e observado no processo
de alfabetização, mas não resolvem - nem pretendem resolver - o problema.

No entanto, os estudos de Ferreiro, Teberosky e Palácio, divulgados e incorporados pelas universidades e pelas redes de ensino, tem sido adequados e adaptados a
realidade educacional brasileira sem, necessariamente transformá-la. Assim sendo, o conceito maturacìonista de "prontidão" e o conceito de carente cultural", da
educação compensatória, passam a ser substituídos por conceitos de uma avaliação "cognitiva' (incontestável porque psicológica, cientifica"). Ouve-se então: "Essa
criança é pré-silábica! Quantos silábicos você tem na sua classe?" Em suma, os rótulos se a culpar a criança pela não-aprendizagem, pela não-compreensão.

Mas, de fato na maioria das vezes, as situações de ensino produzem m, no contexto escolar, as condições "ideais" e absolutamente favoráveis à "assimilação externa",
sem função e sem sentido, apontada por Luria a mesmo provocam a "defasagem" entre linguagem oral o Vygotsky. Tomemos um exemplo:
na lousa


a professora escreve na lousa
A mamãe afia a faca
e pede para uma criança ler. a criança lê corretamente.
um adulto pergunta a criança:
- Quem que é a mamãe?
- É a minha mãe, né?
- E o que é afia?

A criança hesita, pensa e responde:
- Sou eu , porque ela (a mamãe) diz: vem cá, minha fia.
- Não , afia é amola a faca.

(mas amola também tem por sua vez, pelo menos três possibilidades de interpretação: a mola, amola=afia, amola= chateia.)




Tentando analisar a situação, podemos ver que a criança tem (entre outras coisas objeto de conhecimento, a palavra "afia ", da qual espera-se que ela elabore um
conceito adequado. Mas levanta-se aqui, no mínimo, uma polêmica lingüística, semântica, psicológica, social. Se consideramos como Piaget (que assume a concepção
saussureana de língua como conceitos verdadeiros" que a criança precisa assimilar e adquirir somos logicamente obrigados a admitir e constatar a inadequação da criança
. Em termos cognitivos, então, o conflito não diz respeito apenas a questão correspondências gráfico-sonoras, do mecanismo da ortografia e da segmentação da escrita,
mas diz respeito à estruturação e conceituação da palavra no contexto da frase (ressalte-se que



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não há, no contexto da situação, indicadores que apoiem esclareçam o significado e o sentido de "atia").
No entanto, mesmo desconhecendo o significado de "afia" no contexto da frase, a criança levanta hipóteses com base no uso que ela faz de "afia" no seu contexto social
e funcional. Evidencia-se, nesta situação, uma diferença de linguagem que revela uma diferença social. Pedagogicamente, a professora, não sabendo como trabalhar
a diferença, procura escondi-la ou ignorá-la, enquanto a criança se esforça para fazer sentido do que é apresentado na escola. (A criança faz o que aprendeu a fazer
na escola: trabalhar com palavras soltas, isoladas, sem sentido).
Ora, isso nos aponta para um outro aspecto da "defasagem" que diz respeito às condições de ensino na escola: o processo de elaboração mental da criança na construção
do conhecimento sobre a escrita, que inicialmente passa pela linguagem falada, fica terrivelmente dificultado porque a escrita apresentada na escola é completamente
distanciada da fala das crianças, e, na maioria das vezes, é o que não se pensa, o que não se fala. Ou seja, a "defasagem" não é apenas uma contingência da forma
escrita de linguagem, mas é também produto das condições de ensino.
O que ocorre de fato, mas permanece implícito, é que o ensino da escrita, cristalizando a linguagem, neutralizando e ocultando as diferenças, provoca (e oculta)
um conflito não meramente cognitivo, mas fundamentalmente social. O conflito cognitivo se dá no social e implica a dimensão política. Porque não se "ensina" ou não
se "aprende" simplesmente a "ler" e a "escreve. Aprende-se (a usar) uma forma de linguagem, uma forma de interação verbal, uma atividade, um trabalho simbólico.
Portanto, para além da concepção inovadora de aprendizagem como construção do conhecimento, assumida por Ferreiro e Teberosky e Ferreiro & Palácio, é fundamental
considerar a concepção transformadora da linguagem, uma vez que não se pode pensar a elaboração cognitiva da escrita independentemente da sua função, do seu funcionamento,
da sua constituição e da sua constitutividade na interação social.

A "inadequação" da leitura da criança poderia ter sido interpretada e discutida de várias formas, mas foi apontada pelo desconcerto da professora. E por que o desconcerto?
Porque, do seu ponto de vista, há uma gramática e uma lógica, apenas uma leitura prevista e um sentido possível. As suas pressuposições com relação à linguagem,
ao aprendizado da criança e ao seu próprio papel dentro da escola a impedem de considerar a possibilidade de outras leituras. O desconcerto é um indicador no contexto,
na relação e, por sua vez, também é "lido" e interpretado pela criança. (Numa outra situação, fora da escola, essa mesma "leitura" da criança poderia ser tranqüilamente
aceita e passaria inclusive a fazer parte do anedotário familiar).

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Ora, isso nos revela então que a construção do conhecimento sobre a escrita (na escola e fora dela) se processa no jogo das representações sociais, das trocas simbólicas,
dos interesses circunstanciais e políticos; é permeada pelos usos, pelas funções e pelas experiências sociais de linguagem e de interação verbal. Nesse processo,
o papel do "outro" como constitutivo do conhecimento é da maior relevância e significado (o que o outro me diz ou deixa de me dizer é constitutivo do meu conhecimento).
Se pensarmos, portanto, o "conflito cognitivo' e a "defasagem" imbricados na questão dos papéis, das funções e das interações sociais, vemos surgir no contexto das
salas de aula o dilema especifico da relação pedagógica: pelo que se aponta e o que se deixa de apontar; pelo que se diz e o que se deixa de dizer; pelo que se explicita
e o que se deixa de explicitar; pelo que se faz e o que se deixa de fazer. Não que se deva ter "prescrições" do que se "deve fazera, mas que se tenha consciência,
precisamente, do trabalho de elaboração, de produção do conhecimento nas interações.
Pedagogicamente, então, é fundamental observar e considerar, no processo de alfabetização, as situações e as condições em que se processa e se produz o conhecimento
escolar sobre a escrita. (quem usa a escrita na sala de aula? Para quê? Como? Por que?) Mas esse aspecto da análise ainda não dá conta da amplitude
do problema e nos remete a outras questões.
Na leitura de "A mamãe afia a faca", a criança revela que, do seu ponto de vista, não há uma "lógica" explícita pela "gramática", mas há necessidade de articulação
de um sentido. Para a criança, não existem elos sintáticos óbvios nessa leitura (em geral, a leitura e a escrita na escola não querem dizer nada mesmo), mas ela
estabelece elos semânticos, pragmáticos, discursivos, com base no seu esquema inter-relativo. Ou seja, a oração que a professora escolheu (copiou da cartilha) para
ensinar a ler e a "fixar a letra F", foi lida e interpretada pela criança de acordo com a sua experiência de vida e de linguagem, e (aparentemente) decomposta em
termos isolados - a mamãe, "a fiá" (a filha), a faca. Mas nessa decomposição a criança revela precisamente a tentativa de preencher os vazios, de articular e relacionar
os termos - porque ela (a mãe) diz: "Vem cá, minha filha, (traz) a faca".
É aqui que se evidencia então o que Vygotsky procura nos mostrar no último capítulo do se livro Thougth and langoage: como, por trás das palavras, existe uma gramática
própria do pensamento, existe uma sintaxe dos sentidos das palavras. Essa gramática, essa sintaxe, tem origem nas formas sociais de interação verbal, mas é permeada
por uma realidade psicológica, individual. (Em que medida 5intaxe e sentido coincidem? Ou em que medida há correspondência entre organização gramatical e realidade
psicologia? São questões que nos remetem a outros campos de investigação.)

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Assim sendo, sentidos completamente diferentes podem estrutura gramatical, e mesmo um enunciado considerado "e de vista sintático pode ter encanto e valor estético
(Vygotsky)
Abre-se então a dimensão do lúdico, do imaginário, além da lógica e da gramática, fazem parte do esquema em crianças. O pensamento não é só lógico, a fala nem sen
"gramatical". O processo inicial da leitura que passa pela es inicial da escrita que passa pela tala, revelam fragmentos I "discurso interior", da "dialogia interna"
das crianças, nessa ação verbal. O papel, o lugar do "outro" nessa interação começa a delinear. Sobretudo na escrita inicialmente truncada das criança e na impossibilidade
de uma explicação "lógica" em termos de níveis a questão da "discursividade", a dimensão discursiva dos "textos ganham lugar e relevância. Emerge a fascinante questão
da mentolinguagem, da "interdiscursividade" no processo de alfabetização.

Poderíamos, então, analisar o processo de aquisição crianças sob diferentes pontos de vista:
1. Um ponto de vista seria o da "carência" ou da "incompetência" quando se assume que a língua é um sistema que padrões fixos imutáveis. A essa concepção da escrita
está associada uma concepção de aprendizagem da baseia na repetição, no treino, na memorização (se a não ser treinar, copiar, memorizar e reproduzir a I ponto de
vista, as crianças são consideradas passivas no seu aprendizado e suas primeiras tentativas de leitura e são desprezadas como são reprimidas ou proibidas, crianças
"aprenderem" (gravarem) errado. Nesse leitura e a escrita das crianças são sempre avaliada um suposto modelo "correto", "adulto", "final" de e: isso existisse).
Um outro ponto de vista (que se contrapõe ao primeiro)seria o da construção individual do conhecimento, que considera a escrita como um objeto de conhecimento,
que analisa o "conflito cognitivo no processo de aprendizagem e vê o erro como fundamentalmente construtivo no processo. Leva em conta as tentativas e as hipótese
infantis relativas à escrita como representação da fala (relação dimensão sonora/extensão gráfica), analisando a escrita inicial em


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termos de níveis de desenvolvimento. As implicações pedagógicas desse ponto de vista começam, agora, a se esboçar, a partir do trabalho de Ferreiro e Teberosky
& Palácio. Contudo, ao invés de se Ferreiro & Teberosky como contribuição para o processos de aquisição da escrita, tem-se reduscrita à questão da correspondência
gráficos de crianças e turmas de crianças em termos de , quando o processo de leitura e escrita abrange outras dimensões. O conflito cognitivo apontado de, sem dúvida
alguma, ser ignorado. Mas o que levado em consideração é que, entremeados são os aspectos das funções e configurações da simbólica e do processo de conceitualìzação
experiências, da Metalinguagem, além do conflito anteriormente.

3. Um terceiro ponto de vista (que abrange o segundo), da interação, da interdisciplinaridade , inclui o aspecto fundamentalmente social condições e do funcionamento
da escrita (para que,para quem, onde como, por quê). O que aparece também como relevante nesse terceiro ponto mencionado é a consideração da criança no processo
de alfabetização não apenas como atividade cognitiva, no sentido de estruturação piagetiana idade discursiva, que implica a elaboração Assim ganham força as funções
interativa, possuidora do conhecimento na/pela escrita. Nesse sentido a alfabetização é um processo discursivo: a criança entender o outro pela leitura; aprende
a falar, a esta escrita. (Mas esse aprender significa fazer, praticar conhecer. Enquanto escreve, a criança aprende a sobre a escrita). Isso traz para as implicações
s aspectos sociais e políticos. Pedagogicamente se colocam, então, são: as crianças podem na escola? Podem escrever como falam? Quando? Por que?



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A EMERGÊNCIA DO DISCURSO NA ESCRITA INICIAL



Para discutir as questões levantadas anteriormente - relacionadas ao discurso interior e à interdiscursividade - retomo as concepções de linguagem de Piaget e Vygotsky.
Considerando uma "continuidade funcional" entre inteligência sensório-motora e pensamento conceitual, Piaget evidencia a função representativa da linguagem, dizendo
que, na fala inicial, a "palavra se limita quase a traduzir a organização de esquemas serisório-motores que poderiam passar sem ela" (Piaget, 1975:285). Na sua perspectiva,
o acesso à linguagem como um sistema de signos possibilita a construção de "conceitos gerais" e a inserção do pensamento individual numa "realidade objetiva e comum".
Nesse processo, então, o período da fala egocêntrica, caracterizado pelos pré-conceitos, pelas traduções, pelos monólogos solitários ou coletivos, revela a irreversibilídade
e o egocentrismo do pensamento infantil, a impossibilidade de a criança se colocar do ponto de vista do outro. Esta tala, individual na origem, socializa-se e desaparece
na altura da idade escolar.
De um outro ponto de vista, Vygotsky enfatiza as funções constitutiva e constituidora da linguagem, e argumenta, por sua vez, que "o momento de maior significado
no curso do desenvolvimento intelectual, que dá origem às formas puramente humanas de inteligência prática e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prática,
então duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem" (Vygotsky, 1978:24). Ou seja, a palavra transforma e redimensiona a ação humana.



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Vygotsky contesta e discute a explicação piagetiana da fala ca, dizendo que o discurso egocêntrico da criança é uma forma o discurso social, e constitui, fundamentalmente,
um período c do "discurso social" externo para o "discurso interior'. Ao invés o movimento de socialização da fala individual, como Piaget, argumenta que o que
se dá é a internalização do discurso social e a sua transformação em discurso interior.

Nessa perspectiva, então, não é o "pensamento individual serem na realidade objetiva e comum", mas é a realidade social e 1 "palavra" que, entre outras coisas, constitui
a subjetividade. Ne: o discurso interior traz as marcas do discurso social. Vygotski procura identificar e analisar, no movimento das interações e ações conjuntas
o processo de internalização, isto é, a transformação de um processo: pessoal num processo intrapessoal. (Vygotsky, 1978:57), enfatiza que:

o pensamento verbal não é uma forma inata, natural, de comportar determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedade e leis que não podem ser encontradas
nas formas naturais do pensamento Vygotsky, 1975:511.
Nesse processo, Vygotsky fala na linguagem egocêntrica como "um período de transição" do discurso social para o discurso Contudo, aqui podemos levantar uma questão:
enquanto aprendizagem e desenvolve a linguagem social do grupo, a criança não vai um discurso interior? Crianças que "não talam", que são considerada co verbais",
não elaboram um discurso interior? Ao invés então c o discurso egocêntrico "precede" o discurso interior, não poderia que ele justamente revela (não apenas no sentido
do egocentrismo versibilidade lógicas como Piaget propõe, mas no sentido das inúmeras possibilidades de articulação e visão de mundo) a elaboração do discurso interior?

E como se relacionam e se articulam discurso interior e discurso escrito? O período da fala egocêntrica manifesta-se aproximadamente de três e seis anos, e seu fim
coincide com o início da escolaridade tem início também a instrução formal da escrita. Ora, a linguagem parte do discurso social no contexto das sociedades letradas
e i cultural. Levando em conta o próprio processo de elaboração si co-cultural da escrita e suas condições e funções hoje, discurso linguagem escrita interagem e
se constituem. Se esses dois tipo se constituem e interagem, que implicações tem isso no processo de leitura e como se dá esta relação na gênese da produção contato
cem a escrita interfere ou transforma a elaboração do discurso interior? Em que medida?



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Vygotsky analisa e compara as formas de discurso-interior e escrito que seria exatamente o oposto do outro:
o discurso interior é uma linguagem completamente desabrochada em toda a sua ao, é uma linguagem mais completa do que a falada. O discurso interior é completamente
predicativo porque a situação, o assunto pensado é sempre do de quem pensa. A linguagem escrita, pelo contrário, tem que explicar completamente a situação para ser
inteligível. A transformação do discurso interior, ao máximo, em linguagem escrita, pormenorizada ao máximo, exige o que poderíamos designar por semântica deliberada
- estruturação deliberada do significado (Vygotsky, 1975:100).
e levanta uma indagação: será mesmo que a linguagem escrita explicar completamente a situação para ser inteligível?" Se pensarmos na literatura, na poesia, podemos
perguntar: em que contexto a linguagem precisa ser, explicativa? Em que contextos ela é, ou pode ser remissiva, provocadora?
A questão é que o "deciframentó' do leitor se faz "através de um repertório de normas que permitem a sua compreensão da literatura e do mundo um código que o situa
no real, transporta-o para o âmbito do texto estabelecendo-se um diálogo entre a circunstância do leitor e a do lida( a peculiaridade da literatura que se vincula
à sua construção a permeabilidade à introdução das normas de novos contextos incorporados pelo leitor" (Zilberman, 1982:83).
Importante, então, levar em conta, numa análise da linguagem essas condições e funções: a escrita De quem? Para quem? Para que? Onde? Ser "explicativa" não é uma
característica, uma expectativa da escrita. É um efeito do seu uso em determinadas circunstâncias. Nesse particular, Vygotsky parece ter considerado algumas circunstâncias
da escrita e não ter considerado outras.
Thought and Language (1975), por exemplo, quando Vygotsky comenta sobre discurso interior e discurso escrito, ele considera a escrita como um processo já adquirido
e dominado e analisa a escrita inicial da criança a um padrão já elaborado. Dai ele falar em "discrepância", "atraso e defasagem" na escrita inicial. No entanto,
em trabalho posterior Society (1978) - após as investigações de Luria, Vygotsky coe a pré-história da escrita, delineando um percurso do simbolismo )esto indicativo,
passa pelo jogo, pelo desenho, até que a criança a também se pode "desenhar a fala", apreendendo a função mediadora da escrita.
Assim, sua concepção da própria escrita como constitutiva do discurso interior se esboça e se sustenta quando ele diz que:
linguagem escrita adquire, gradualmente, o caráter de simbolismo



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direto, passando a ser percebida da mesma maneira que a linguagem falada

2. que a escrita exige "a estruturação deliberada do significado".
Ora, i. implica que o processo de leitura transforma, enquanto constitui, os modos de percepção da própria a escrita, enquanto trabalho de explicitarão e organizações
também transforma e constitui o movimento discursivo interior. Desse modo, a escrita, como instrumental elaborado pelos ma, pela sua utilização, as estruturas psicossociais
dos próprios homens.

Vygotsky analisa a escrita como uma forma de linguagem , levando em conta a dimensão discursiva, mas sem explicitar a passagem que ele chama de "simbolismo de segunda
ordem", o que consiste, precisamente no núcleo de investigação de Ferreiro & Teberosky (1979). Ferreiro (1979) e Ferreiro & Palácio (1982), no entanto, analisai
sem darem relevância à dimensão discursiva da escrita. exemplo, quando Ferreiro & Palácio (1982) comparam a , e a escrita de orações em crianças de nível silábico:
Em conclusão, a escrita de palavras e a de orações não implicam dificuldades nesta última, a criança pode retroceder no nível também pode perder o valor sonoro convencional
das grafia Ferreiro e Palácio, 1982,

Por que isso ocorre? Ferreiro & Palácio dizem que , quantidade de silabas com as quais (as crianças) tem dúvida, esse é um aspecto relevante na questão. Contudo
temos observar que, tanto crianças consideradas "silábicas" que consideradas "alfabéticas" produzem "omissões", "truncamentos não-correspondências" na escritura
de orações. Isso nos faz levantar outras perguntas: o que é "retroceder no nível da escrita?" Por que o' ria que ser marcado pela escrita de palavras isoladas?"
Observemos o texto de uma criança no início de uma 2ª série . a professora, que assumiu a classe no final de março, começou a trabalhar com a literatura infantil,
lendo e contando histórias, dispondo livros de aula, encorajando as crianças a registrarem suas observações a registrarem seus relatos e suas próprias histórias.
Eis o texto


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O CASTELO. A PRINCESINHA DO CASTELO RAINHA...CASOU COM PRÍCIPE...AMARAM PARA A PRINCESA...SE CASARAM E VIVERAM FELIZES PARA SEMPRE.
OPRINCESA ... FIZERAM O CASAMENTO E DEPOIS DO CASAMENTO VIVERAM FELIZES E SURGIU UM RATO E ASSUSTOU A PRINCESA.


Analisando este texto, vemos que a criança escreve sobre um "castelo, sobre uma princesa e um príncipe que se amaram e se casaram e viveram felizes para sempre"
e "surgiu um rato e assustou a princesa". Podemos observar repetições, omissões, aglutinações que, ao mesmo tempo, revelam e entrecortam o fluir do significado.

Apesar de este texto não corresponder às expectativas das professoras de 2 série e nem de 1 série), depoimentos de quase todas elas confirma inúmeros casos como
este: "as crianças voltam das férias completamente esquecidas. "Elas 'desaprendem a escrever". Mas o que é "desaprender a escrever.

Que escrita é essa que a criança aprende na escola que faz com que ela regrida quando escreve o que pensa? Assim se comprova, mais uma ensina as crianças a repetirem
e reproduzirem palavras e cola ensina palavras isoladas e frases sem sentido e não crianças, no ano escolar da alfabetização, o "fluir do significado a estruturação
deliberada do discurso interior pela escritura.
então, é que a alfabetização não implica, obviamente, apenas a aprendizagem da escrita de letras, palavras e orações. Nem apenas uma relação da criança com a escrita.
A alfabetização implica desde a sua gênese, a constituição do sentido. Desse modo implica, mais profundamente, uma forma de interação com o outro escritura - para
quem eu escrevo o que escrevo e por que? A criança pode escrever para si mesma, palavras soltas, tipo lista, tipo repertório, para organizar o que já sabe. Pode
escrever um texto, mesmo fragmentado, para registrar,narrar, dizer... Mas essa escrita precisa ser sempre permeada por um interlocutor.


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Ora, isso nos remete a um outro ponto crucial na discussão que diz respeito à representação do interlocutor no movimento discursivo.

Quando a este aspecto, Vygotsky (1975) considera tanto o interior quanto o discurso escrito como "monólogos", pela ausência interlocutor imediato, em oposição à
fala, que é "diálogo. Mas quando Bakhtin nos fala da natureza social da enunciação - dos atos de fala - e discute o valor da "palavra" como signo social (ideológico)
e material (in1 à tona o problema filosófico do discurso interior, dizendo que:
não é por acaso que os pensadores da Antigüidade já concebiam o como um diálogo interior. Essas unidades prestam-se muito pouco a uma análise sob a forma de constituintes
gramaticais (a rigor, em certos casos, mas com grandes precauções) e não existe entre elas, assim como de um diálogo, laços gramaticais; são laços de uma outra ordem
que as regem. Essas unidades do discurso interior, que poderiam ser chamadas impressões globais de enunciações, estão ligadas umas As outras, e sucedem-se uma as
outras, não segundo as regras da lógica ou da gramática, mas segundo leis convergência apreciativa (emocional), de concatenação de diálogos, etc... e numa estreita
dependência das condições históricas da situação social e de todo o e da existência. Somente a explicitação das formas do discurso dialogado pode esclarecer as formas
do discurso interior e a lógica particular do itinerário que elas seguem na vida interior. (8akhtin, 1981:63).
Na tentativa de investigar esse "itinerário" e caracterizar o discurso ~ interior como atividade simbólica de natureza social, Vygotsky procura descrever alguns
indicadores:
- o discurso interior parece desconexo e incompleto;
- o discurso interior é quase completamente predicativo porque a situação, o assunto pensado é sempre conhecido de quem pensa a sua sintaxe, portanto, é abreviada;
- há a predominância do sentido sobre o significado; há aglutinação de palavras;
- há integração de sentidos (influxo de sentidos). (Vygotsky, 1975:144 ).
Mas Vygotsky não destaca a presença de interlocutor sentação (formações imaginárias) nem o silencioso (ou barulhento ) movimento de interação verbal consigo mesmo
ou com os outros tensa dialogia interna. Ora, essa dialogia, que caracterìza a relação inter-intradiscurso, também é constitutiva do ato de fala impresso, do trabalho
de escritura.
Assim, o que evidencio é a necessidade de levar em conta as contribuições dos autores referidos acima, procurando analisar a dimensão (inter) discursiva, dialógica,
no processo de aquisição da linguagem escrita, ou seja, procurando investigar os processos de constituição das crianças como



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leitoras e escritoras nas situag6es e contextos escolares.
Não poderíamos, então, considerar que:
no processo inicial da escrita, o discurso interior é "escrito", marcado, ou seja, a escrita assume características e marcas do movimento discursivo enquanto
dialogia interna, intradiscursividade? Ou,
de outro modo: quando a criança percebe que pode escrever qualquer coisa, na tentativa de apreender e recortar o fluxo da experiência pelo trabalho de escritura,
ela começa, aglutina, omite, hesita,
retorna, repete... e nesse esforço, nesse trabalho, ao mesmo tempo de conhecimento de um c6digo convencional e registro e distanciamento do seu próprio discurso
(interior), as crianças apreendem
fragmentos tanto do c6digo quanto do fluxo, bem corno modos e
momentos do discurso?

Não poderíamos considerar que as primeiras tentativas infantis de
produção da escrita, obscuras e desconhecidas dos adultos, vão se organizando, se explicitando, se tornando textos para o outro, inclusive o "outro
eu?" E, nesse processo, não são inúmeras e variadas as possibilidades e
os esquemas que as crianças desenvolvem e usam para começar a ler e a
escrever? Nesta perspectiva, al6m de dizermos que o discurso interior traz
as marcas do discurso social, n5o poderíamos dizer que o discurso escrito,
sobretudo na sua g6nese, traz as marcas do discurso interior?

A. Observando as marcas, delineando as pistas

0 nosso trabalho pedagógico desde o início, com os pré-escolares,
passando pelo trabalho de pesquisa e as atividades em sala de aula com as
crianças de 1 série, até os alunos de 4 série, foi nos revelando a relevância de um processo de construção do conhecimento, na interdiscursividade,
isto é, numa prática dialógica, discursiva, num espaço de elaboração inter (intra) subjetivo.

Daí que as nossas experi6ncias de ensino encontram apoio e ao
mesmo tempo se redimensionam numa teoria da enunciação e na análise do
discurso .

Por outro lado, isto também suscitou novas indagações a respeito do
processo inicial da escrita nas crianças porque, mesmo no momento das
entrevistas que realizamos, a questão pedagógica da relação de ensino era
extremamente significativa para nós. Isso se exemplifica na seguinte situação

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Entrevistadora: Paulo, como você acha que se escreve "pão"? Paulo: -Ah, pão eu não sei escrever. Mas eu sei escrever isso, 6: E.: - Muito bem, agora lê pra mim.
P.: - Ah, ler eu não sei. Lê você, tia. E.: - Alao
P.: - Alao? Isso existe? E.: - Eu não sei . . .
P.: - Então vou escrever outra coisa: P.: - O que tá escrito?
E.: - iceiar.
P.: - Iceiar, iceiar, o que é isso? E.: - Eu também não sei.
(Se concentra e escreve outra "palavra") P.: - E aqui, o que está escrito?
E,: - Se você colocar um tracinho aqui, ó (corta o t com o dedo), fica Pata - julgando importante que nesta tentativa a escrita da criança tivesse um significado
para ela
P.: - Oba! Oba! Era isso mesmo que eu queria escrever! E eufóríco ainda, escreve:
que a entrevistadora lê.
Ora, nesta situação de "pesquisa", ao invés de a criar que a entrevistadora solicitava, a entrevistadora lia o que a c escrever. A relação com a criança, no momento
da entrevista o papel do entrevistador. Havia situações, por exemplo, em c se recusavam, terminantemente, a escrever e não ousavam qualquer tentativa. Havia situações
em que elas diziam que não sabiam e adulto escrever, para elas copiarem. Tudo isto servia de ir trabalho posterior em sala de aula.
As situações em sala de aula, no entanto, constituíam interações infinitamente mais ricas do que nas entrevistas e provocavam outros questionamentos. Deste modo,
a análise das relações de ensino, s sala de aula e a perspectiva da interdiscursívidade nos abriam e nos indicavam


73

muitas outras possibilidades de consideração e interpretação da escrita período inicial (além do aspecto investigado por Ferreiro, Teberosky e Palácio). Do movimento
ao gesto indicativo, à representação pelo jogo simbólico e pelo desenho, à escrita imitativa e pseudoletras, aos fragmentos correspondentes à escrita convencional
até à elaboração da escrita de acordo com as normas da convenção, podemos perceber um processo de simbolização e conceitualização das experiências na interação e
na interlocução. Assim, as crianças viam pessoas mais experientes lendo e escrevendo, por várias razões e diferentes funções; essas pessoas liam e escreviam para
e com as crianças. Aos poucos, as crianças iam tentando ler e rever, incorporando os papéis sociais de "leitor" e "escritor", até serem azes de ler e escrever para
si e para os outros.
Com o objetivo de explicitar e entender esse processo, nos reunimos professoras de infantil à 4 série, estagiárias e auxiliares de pesquisa - para analisar, discutir
e organizar amostras do material escrito das crianças. Vamos como ponto de partida os dados da sondagem e o roteiro de anexos e as discussões foram ampliadas pelos
relatos de situações e pelos relatos de trabalhos realizados em sala de aula.
Primeiramente, e em acordo com vários autores (Lavine, apud Gibson e Levin, 1976; Freinet, 1977; Clay, 1975) encontramos uma sucessão de rabiscos e/ou pseudoletras,
em formas de zigue-zague ou conjunto de formas lidas. As crianças repetem determinados padrões em várias situações, e exploram direcionalidade, posição, lateralidade
dos sinais escritos. Copiam e organizam de várias formas o repertório que vão adquirindo.
Encontramos também várias letras ou conjunto de letras sem possibilidade de identificação da intenção da criança. A criança não sabe dizer o que quis escrever, se
quis escrever alguma coisa específica, e o adulto não tem pistas para interpretar.
Pudemos evidenciar várias letras ou conjuntos de letras com alguma possibilidade de identificação da intenção da criança (provável início da hipótese silábica?).
A criança começa a combinar letras para formar palavras, continua organizando o próprio repertório de sinais que já conhece. No entanto, o relato de uma situação
pode nos mostrar como a posição de um outro como interlocutor da criança constitui um elemento-chave no processo elaboração e organização do conhecimento:

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- O que ei escrevi?
ad.: - Ediib. Mas tenta de novo. Paaarree (pronuncia alongando cada som pronunciado).
a.: - É o E? (pergunta fazendo o E). ad.: - Tem o E em algum lugar.
cr.: - E tem o pa, né? (lazendo o PA). E agora?
ad.: - Tá escrito EPA.
cr.: - Ah, vamos deixar assim mesmo. Num outro dia:
cr.: - Diz uma palavra para eu escrever. ad.: - Carro.
cr.: (Falando alto) - Carro, carro, é o aaaaa; carru, carru é o uuuuu. Faz oA e o U. Mostra para o adulto e pergunta:
- É assim?
ad.: - Agora você lê, que você sabe.
cr.: - aaauuu, au, au . . . ah, eu quero fazer cachorro latindo.


Num primeiro momento, a análise desses exemplos nos aponta hipótese silábica caracterizada por Ferreiro. Mas outras coisas acontecem nesse processo que se constitui
pela interação. Na situação, o adulto lê para a criança o que ela escreve e a crianças duas tentativa, abandona o "projeto de escritura" e resolve "d mesmo". Na
segunda situação, o adulto sugere que a leitura se criança e a criança assume a troca de papéis: de escritora, ela a leitora do seu "texto'. O distanciamento da
própria escritura I outra leitura. Ou seja, a leitura da própria escritura altera, transformação da criança. Essa troca de papéis, explicitada nessa relação característica
também da dialogia interna que, por sua vez, é internalização e a elaboração das interações discursivas com os outros. Num primeiro adulto - ou um "outro" - lê
para a criança; depois, sugere a criança ou lê com ela; até que a criança faça esse movimento por si própria. Esse processo vai envolvendo uma gradual construção
da representação dos interlocutores e a interpretação dos papéis sociais de "leitor e escritor


O que a análise dessas instâncias começa a nos apontar são interdiscursiva, a importância da relação dialógica no trabalho da escritura. É a emergência da escritura
como prática discursiva internaliza a "dialogia" falando com os outros, a criança vai também elaborando a escrita como uma forma de diálogo.
A passagem desses primórdios da escrita para um trabalho de escritura "para o outro apresenta uma variedade, muitas vezes imprevisível de percursos. Esquemas visuais,
motores, auditivos, mnemônicos vos, cognitivos, interpretativos entram em jogo, além das condições de interação e interlocução das crianças.



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Observamos também, na escrita das crianças, conjunto de letras com consciências parciais às convenções (início da hipótese alfabética?), mas que não são analisáveis
apenas em termos de hipótese silábica, silábica ou alfabética. Mais do que isso, indicam a elaboração do pensamento através de fragmentos escritos. As crianças conseguem
representar através da escrita partes e momentos do discurso; o fluxo contínuo de experiência é representado pela escrita fragmentada, ou pela escrita também contínua
e sem recortes, ou pela série de recortes não-convencionais. nessa fase, demostram um enorme empenho e esforço , e muitas vezes não conseguem e se recusam a ler
o que escreveram. Só aos poucos as crianças começam a duvidar da própria escrita a suspeitar do próprio "erro", perguntando e procurando adequar sua escrita convencional.
As crianças começam a perceber a necessidade de convenção para a leitura dos próprios textos.
momento da organização dos dados da sondagem (e, portanto, de entrevista e verbalização pelo adulto, quando perguntávamos as crianças como elas achavam que se escrevia
"A mamãe faz o pão") pudemos esquematizar o processo da seguinte maneira:
Amofu
Amafeobo
Amamaifaisopam
A mamãe faso pu
A mamãe faz o pão


o que poderíamos interpretar como um processo gradativo de explicitação da
observando posteriormente a escrita das crianças nas salas de percebendo, em várias instâncias (o que acabei caracterizando como ) marcas" do discurso interior.
Quando a crianças escrevem palavras soltas ou ditadas pelos adultos tipo nomeação, lista, repertório ou ditado), a característica da produção é uma, evidencia-se
, mais facilmente, a correspondência entre a dimensão extensão gráfica. Mas quando as crianças começam a escrever , o que querem dizer, contar, narrar, elas escrevem
porções, fragmentos do "discurso interior" (que é sempre diálogo consigo mesmo ou com outros )

A escritura então adquire novas características: o ritmo, a entonação, rupturas, a fluência, as contrações, as interferências ... também são marcados na escritura
inicial de modo peculiar. E na medida em que ~a escritura passa pelo "discurso interior, ela começa a revelar também as discurso social internalizado: suas normas,
suas formas, sua

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legitimidade e aceitabilidade (o que "é dito?" O que é "possível se pode ou se deve dizer? Como? Quando? Onde? Por que?;
Procurando trabalhar com as crianças o processo inicial escritura na interdiscursividade (num jogo de negociações discursiva se troca de saberes), começamos a criar,
nas salas de aula, situa( interação verbal, abrindo espaço para a elaboração do diálogo entre as crianças e os adultos presentes.
Desse modo, o conhecimento sobre a escrita e o conhecimento a aquisição da escrita se construíam numa interação, numa prática discursiva, numa tácita, recíproca
- muitas vezes, tensa - relação de precisamente nessas "tensões", nessas interações discursiva elaboram as transformações culturais). Momentos de tensão se caracterizavam,
por exemplo, nas situações de escrita espontânea (no contexto escolar), quando as crianças escreviam textos como esse:


Uma veis eu fui trabaia comeupai nucapo eufui coiergudam

(Uma vez eu fui trabalhar com meu pai no campo. Eu fui colher algodão


Como "ler" essa escrita? Como analisar? Como avaliar? Como corrigir? Entre a tarefa da escola, de ensinar a forma convencional processo de construção do conhecimento
e utilização da escrita pela criança, que passa pelo discurso interior (que, por sua vez, passa social), qual a posição do professor? Que atitude tomar? Como fazer?
Como se dá esse encontro, ou esse confronto lingüística e social ? e como isso é, ou pode ser, trabalhado na escola? Sendo "possível porque é realizável, porque
foi realizada -, essa forma de escrita aceitável na escola? Por que?


A escola não concebe a possibilidade desta escrita das crianças desconhecem sua capacidade de elaboração pois tentativas, baseadas que estão nas restrições - implícitas
foi dos adultos. De modo geral, a escola não tem considerado a como um processo de construção de conhecimento nem como de interação, um processo discursivo, dialógico.
Com isso, a e dimensão da linguagem, limita as possibilidades da escritura, espaços de elaboração e interlocução pela imposição de um só modo de fazer e de dizer
as coisas. Mas essa imposição acaba sendo, de ou ilusória. Pois existe ainda um espaço, um movimento, um discursivo no interior da escola. Mesmo bloqueando a fala
, a escola não consegue bloquear o discurso interior.
Isso se revela nos textos das crianças, coletados circunda nas escolas em que trabalhamos. Nosso objetivo pedagógico transformar as condições das salas de aula
para que essa escrita inicial pudesse


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acontecer como um modo de interação e, então procurar indicadores para análise dessa forma de discurso. De fato, essa escrita aconteceu, nas diversas situações e
das mais variadas formas. (Um estudo longitudinal sobre a aquisição da escrita, que leve em conta as interações e as relações ensino na escola, faz-se imprescindível
neste aspecto.)

Observemos alguns exemplos de escrita de crianças da 1 série que nos indicam a dimensão discursiva dos textos. De posse de alguns conhecimentos da escrita convencional,
as crianças são encorajadas a escreverem seus relatos e histórias.


Situação 1 - Após uma pesquisa sobre grãos e cereais, as crianças fizeram pão na escola. Cada uma, então, procurou registrar e relatar a experiência por escrito.
o pão estava na mesa comemos a massa e acabou (Situação 1 ).
Situação 2 - Texto espontâneo: a criança começa a escrever (a cazaqero?), interrompe e se dispersa. Pega um bonequinho de plástico, faz o contorno no papel, recomeça
a escrever:
um homem forte tem um (bração?) muito cheio de músculo Tarzã - rio (Situação 2).



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Situação 3 - Texto espontâneo de uma criança no mesmo dia: primeira parte (A) do texto apresenta-se razoavelmente legível . Segunda parte, ilegível. A "leitura"
de baseada em comentário posterior da criança.


era uma vez o macaco pegou a mulher e levou para a caverna. O gato atacou a mulher dal pegou ela? ... (B) (Situação 3)

Situação 4 - Numa análise da produção do seguinte texto não se pode deixar de considerar que a F havia conversado com as crianças sobre o sol, as plantas, o calor.
Durante a conversa, comentaram que "o sol seca a roupa do varal". Além um ano atrás, a irmã desta criança queimar óleo e ainda estava em recuperação.
a mulher passou óleo na roupa e queimou a roupa do varal... do sol... do óleo queimou a roupa (Situação 4).


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esses exemplos revelam uma escrita que parece desconexa e incompleta, apresenta uma tendência à condensação e à abreviação, apresenta aglutinação e contração de
palavras. Eles revelam também porções, fragmentos de idéias, influxo de sentidos - marcas que Vygotsky atribui :urso interior. Essa escrita inicial não pode ser
analisada apenas seis regras lógicas, ortográficas ou gramaticais. Se bem que se possa ima análise segundo as hipóteses propostas por Ferreiro e Teberoski) e Ferreiro
& Palácio (1982) , essas hipóteses não dão conta desse de escritura. Essa escrita aponta para o que Bakhtin chama de "impressões globais de enunciação' e há que
se buscar outros indicadores para uma análise.
Uma análise, então, dos processos e das circunstâncias de produção pode revelar, além de condições do cotidiano da criança, aspecto de sua atividade mental, discursiva,
bem como a relação que ela vai desenvolvendo com a própria escrita - para que e como ela pode usar (e ampliar a utilização de) esta forma de linguagem?


Trabalhando a leitura e a escritura como prática discursiva


Emergem aqui, no entanto, alguns pontos de "tensão" na prática esposa sociedade traz as marcas da indústria cultural, pela neutraliza as diferenças, pela produção
em massa, pela mistificação da própria como independente do processo de sua produção (e consumo). Os processos de alfabetização e escolarização não ficam isentos
dessas marcas e pelo contrário, as assumem e incorporam. Isso se revela no uso propagandeado e indiscriminado das cartilhas e dos livros didáticos, nos "métodos
anunciados como os mais eficazes para reduzir os índices ;são e repetência, na (ilusão da) "produção do maior número de alfabetizados no menor tempo possível". Contudo,
na medida em que incorpora algumas marcas da indústria
1, a escola reluta em atualizar as suas condições e procedimentos de , alegando sistematicamente falta de verbas e recursos financeiros.

Enquanto isso, a leitura e a escrita ganham fora da escola, outras
se realizam de outras formas no contexto da indústria cultural: não funções, mas seus usos se modificam, se transformam. Nesse processo de transformação, a linguagem
verbal, linear, escrita, literária, se


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contra e se confronta com a "linguagem global" do corpo, com de das informações, com a multiplicidade de formas de dizer. Não só a palavra, mas o corpo, adquire
o estatuto de signo. São as marcas de, que a escola tem medo de assumir, mas não pode impedir que se revelem. A dimensão funcional, pragmática, fragmentada, contraditória
e lúdica da escrita (pensemos na propaganda) é experienciada no cotidiano e transparece no trabalho de escritura das crianças, Aqui, cabe, então perguntar não só:
o que as crianças fazem com a escrita, mas: o que a cada pela indústria cultural, faz com as crianças? E ainda: o escola tem feito com a escrita e com as crianças,
num final d num contexto marcado pela indústria cultural?

A tensão se evidencia quando percebemos que, mesmo da indústria cultural, com toda a "produção" para as crianças; escola, com toda restrição e normatização, a escrita
inicial é muitas diferenças, abre espaço para muitas leituras, aponta F de muitas mudanças. Por isso, sobretudo no contexto escolar, produz constrangimentos. Desestabiliza.
Questiona. Revela pressuposições e preconceitos na medida em que revela também (e documenta) a variedades nos modos de dizer. Variedade essa que, precisamente, descobre
e manifesta os espaços de elaboração e os movimentos de transformação do discurso social.
Buscando, então, transformar algumas condições e procedimentos de ensino nas escolas, começamos a usar, como uma das formas de articulação das atividades e de constituição
da interdiscursividade, a literatura infantil. Além da literatura procurávamos implementar as várias formas de linguagem (plástica, corporal, etc.) possíveis e viáveis
nas situações por que a utilização da literatura? Porque a literatura, como discurso escrito revela, registra e trabalha formas e normas do discurso social; tempo,
instaura e amplia o espaço interdiscursivo, na medida outros interlocutores - de outros lugares, de outros tempos - criando novas condições e novas possibilidades
de troca de saberes, convocando os ouvintes/leitores a participarem como protagonistas no diálogo que se estabelece.
Mas trabalhar com a literatura infantil na escola implica além de conhecer e considerar o caráter originariamente pedagógico, ético e pragmático desse gênero como
produto cultural (Zilberman, 1982) constituir a dimensão lúdica e estética, fantástica e maravilhosa das atividades de leitura e de escritura com as crianças; implica
trabalhar não Só a leitura, mas a autoria do texto escrito.
Assim, dentre os recursos utilizados em sala de aula, muitas vezes, um bem característico da indústria cultural - as historias em quadrinhos - como provocador de
um trabalho de escritura. Por que começamos


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a usar histórias em quadrinhos? E por que optamos por um determinado tipo de histórias em quadrinhos?
Quando, em junho de 1982, trabalhávamos praticamente só com pré-escolares , lemos para as crianças uma história elaborada a partir das experiências da fala do grupo,
e propusemos às crianças que ilustrassem a história (Smolka, 1985). Diante da recusa das crianças em desenhar sobre o vivido, ou de ilustrar o que estava escrito,
assumimos a tarefa mar o texto em livro (organizando texto, ilustrações e capa), De mesmo tempo, trabalhar com as crianças histórias em quadrinhos, texto escrito,
a fim de explorar com elas a leitura do "icônico", a te de inúmeras leituras,
Trabalhando, portanto, funções e possibilidades da linguagem, nossas opções revelaram-se oportunas: o livro teve a maior repercussão entre as criadas as histórias
em quadrinhos nos indicaram noções e concepções que as crianças estavam construindo sobre a escrita. Ao apresentarmos, por exemplo, a seqüência de quadrinhos para
um grupo de crianças, uma delas indagou: Cadê a história, tia?" (História significa escrita? História significa livro De quantas formas posso contar histórias? De
quantos modos História?)
Recorremos às publicações semanais de Eva Furnari no suplemento olha de São Paulo, por várias razões: peto fato de ser uma publicação em jornal pelo tato de serem
seqüências de quadrinhos, sem escrita; sugerirem a mágica, a transformação, o nonsense; pelo caráter lúdico, mítico , fantástico, imaginativo. Os desenhos tem uma
característica atual e estilizada, guardando, no entanto, arquétipos tradicionais: bruxa ou fada varinha de condão, magia . Ao mesmo tempo, ou por isso mesmo, no
espaço, mas convidam as crianças a se posicionarem como nas histórias.


Nas primeiras séries, o trabalho com os quadrinhos ganhou nova relevância: era queixa constante das professoras que as crianças não sabiam "escrever logicamente",
que não tinham "seqüência de pensamento', e que a escrita era portanto, "incorreta" e "sem sentido". Propondo às crianças um trabalho com quadrinhos, podíamos, em
sala de aula, observar não tanto a seqüência lógica", mas muito mais as diferentes possibilidades de articulação de sentidos.

O caráter "atualizado" ou "estilizado" da personagem de Furnari dissolve o maniqueismo da figura, que pode ser, então, tanto bruxa quanto fada. A bruxa ou fada"
opera transformações e isso é marcado por traços e sinais característicos da linguagem icónica dos quadrinhos: círculo ou caracol pontilhados nuvem", "estrelas",
traçado indicando percurso, desaparecimento etc. Essa personagem, no entanto, faz muitas outra coisas, além de

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mágicas . . . Como as crianças lêem e interpretam os indicadores dos movimentos, das seqüências, das ações, das transformações?

Como elas dialogam com os desenhos Como elas ocupam o lugar de interlocutoras? e de escritoras? E de co-autoras? O seguinte texto (1), escrito por
uma criança a partir de um conjunto de quadrinhos (1) que ela poderia ordenar como quisesse ( os quadrinhos foram entregues recortados às crianças), nos sugere vários
aspectos e alterações para a realização de uma análise.


1. Era uma vez... Não! Ó, para de jogar, velha maluca
2. Está muito gostoso. Mas (você acertou?) na cabeça do gato.
3. Não está vendo a lata de lixo
4. Agora durmo sossegado.
5. Que lugar gostoso!
6. Como dói a minha cabeça! (Texto 1 )


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Muitas coisas acontecem simultaneamente e, por questões de método terminamos sempre por distinguir, separar ou recortar partes do todo para proceder a interpretação.
A questão que se levanta, então, é: o que se unidade de análise, e de que ponto de vista?
Do ponto de vista da ortografia e segmentação, podemos observar, coisas, no texto:

A aglutinação e contração de palavras, que se pode interpretar pela ausência rítmica e entonacional da fala. Por exemplo:
"éuva" - introdução marcando o inicio de uma narrativa que é, no entanto, logo abandonada no trabalho de escritura quando o dialogo toma forma - percebida, muitas
vezes, como uma só palavra pelas crianças
"oparaudijoga x velhmaluca" - a criança marca a pausa entre duas seqüências rítmicas com uma cruzinha.
"cilugaicotoo" - a escrita revela um comentário apreciativo que flui de uma só vez.
a contração, recorte e omissão, que provocam uma perda de sentido em "maivo a séu na cabé do gato".
em "A gora du mosusé gado"
separação de "A gora" pode ser interpretada pela visualização internalização do "a" como artigo. Em "du mosusé gado" o presentimento de um signo não-identificado
pela criança em "durmo', sugere o espaço deixado (este é um recurso comumente usado as Crianças nos casos de n, s, r intercalados). O recorte em sé gado" pode ter
várias interpretações: segmentação arbitraria criança sabe que a escrita convencional implica espaços); reconhecimento da palavra "gado"; ritmo e acentuação.
a supressão das últimas silabas em "cabé(ça) do gato" e ve (ndo)alata" pode ser explicada pela acentuação tônica das palavras.
"cilugaicotoo" a criança revela uma opção ortográfica entre c e qu , e indica uma análise fonética de acordo com pronúncia característica da região onde mora: o
r em "lugar' adquire a característica de i (como em "Taiza - Tarzã - no texto anterior; como em caine" - carne).
lixo era a única palavra escrita nos quadrinhos e a criança não a, mas escreve licho, no seu texto.

Essa criança (por alturas de setembro/outubro no ano letivo da 1 série revela um certo domínio do instrumental alfabético e do mecanismo da



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escrita. O que faz, por exemplo, com que ela escreva "motugostoso) e "cilugaicotoo" (que lugar gostoso), "na cabé do gat do gato) e "comodoiaminha ca Besa" (co dói
a minMa cabeça texto?
São ocorrências como essa que, do ponto de vista "ad explicação "lógica" (são interpretadas, muitas vezes, como "desleixo", "falta de atenção das crianças"), que
começam a processos e interferências na escritura inicial, É interessante cortes que a criança faz na sua escritura, e como ela usa o que ela já possui da convencional
para marcar o fluxo do pensamento. A criança não meramente "grava" fonemas e grafemas, não meramente copia ou repete, mas ela processa, elabora esse conhecimento
dinamicamente discursivamente. E isto se dá a cada passo, a cada momento criança "escreve" de modos diferentes em diferentes momentos de um mesmo texto.
Mas é interessante, também, atentar para a leitura que a criança ordenou os quadrinhos da seguinte forma: 2 - 3 - 4 escreveu uma frase para cada quadrinho. O fato
de o primeiro quadrinhos estar marcado pela escrita ( "Historinha", "Filomena", "Eva Furnari um indicador para a criança. No entanto, se atentarmos para o qual
a criança escreveu "está motugotoso maivo na cabe do gato ", vamos perceber que a personagem, de língua de fora, como que lambe os beiços" depois de comer a maçã
e jogar fora o cabinho gato. (Quem fala, no entanto, para a "velha maluca"? É o gato? é o autor? Do mesmo modo, o gato, debaixo da tampa do lixo, de olhos fechados
acha "gostoso" esse lugar (quadro 6), enquanto que, com o olhar , lado e também de língua de fora, sente dor de cabeça,
Se tomarmos, então, o texto - e suas condições de unidade de análise, isto é, se da análise fonética, ortográfica , lógica ou gramatical, deslocarmos o enfoque para
a questão da constituição no sentido e perguntarmos: como a criança se colocou nesse espaço e Que posição ela assumiu para escrever o que escreveu? indicadores de
uma intensa atividade mental, cognitiva, discursiva que revelam uma dialogia, que revelam a elaboração da relação pensamento/linguagem no processo de escritura.
Assim, no texto acima, assumindo o papel de escritora coloca do ponto de vista (assume o lugar e o dizer) do personagem atribuindo a palavra ao gato: o gato "reclama"
com a "velha maluca (o para de jogar; não está vendo a lata de lixo?) e "conversa" consigo mesmo ) agora durmo sossegado; que lugar gostoso; como dói a minha cabeça
. Esse gato", ao reclamar com a "velha maluca', revela imagens e pressuposições , bem como regras de comportamento social. E um trabalho de estruturação


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deliberada do fluir do significado" pela escritura, que traz as marcas da dialogia instancia primeira na interdiscursividade .

No caso, essa criança não caracteriza, descreve ou explicita o contexto dos quadrinhos por escrito, ou seja, ela não narra, não situa os evento no tempo e no espaço
para o leitor da sua escrita. Os desenhos em quadrinhos dispensam essa explicitação? Possivelmente. d4as tornam, isso, o texto dependente dos quadrinhos.


Uma outra criança (texto 2), no mesmo contexto de sala de aula, coloca os quadrinhos na seguinte ordem: 5 - 2 - 4 - 1 - 6 - 3. Também para essa criança e irrelevante
a escrita no quadrinhos 1.
A vovó estava parada na rua quando ela pegou uma maça e comeu a maca . Depois a vovó jogou a maça fora lá no lixo. A gata (manhosa?) foi pegar a maça. Ela derrubou
a lata e caiu. Ela jogou outra maçã. Ai o gato disse; lá vamos nós outra vez (Texto 2).

A caracteriza a personagem como "vovó" e assume o papel e adora, usando marcas especificas para contar e desenvolver a historia quando", "depois", "ai. A escrita
revela o fluxo continuo e o aglutinação de palavras:
paradonaura (parada na rua)
aiogatodise (ai o gato disse)


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que pode ser interpretada como a apreensão das vogais (como artigos ou Conjunções) na escrita de palavras ou frases, e a generalização desses casos.

A escrita desta criança não apresenta omissões e truncamentos apresenta trocas ortográficas que também provocam uma perda de sentido
maso (maçã) mochosa (manhosa)

Nessas situações, entretanto, o intercâmbio e a troca em sala de aula possibilita várias leituras, gera discussão e pesquisa sobre a escrita: "Como se pode escrever
maçã?" E as tentativas surgir: "massam , massa , maçam, maçan,
são formas possíveis porque legíveis (como maça) se bem que incorretas porque não aceitas como convenção. Ao contrário , maso, masão, mason, masa não dizem maçã,
e não tem portanto, o caráter da legibilidade.




O texto (3) de uma outra criança ilustra a legibilidade e quase legitimidade" da escrita que se aproxima do convencional, e ainda, marcas da "fala ("vinu", "comenó',
"dormino"); da ambigüidade da ortografia ("ci", "in sima); da dúvida sobre o recorte do flux "domuro", "caiunaca besa"). Para essa criança, a personagem é um "muléque",
e os quadrinhos são colocados na seqüência: 2- 3 -1-4-5-6

Uma vez vinha vindo um moleque comendo uma maça e gato que estava dormindo em cima do muro, e a maçã caiu
(Texto 3 ).



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É dessa/nessa diversidade de interpretações, de organizações e de s possíveis que se pode trabalhar o uso e o funcionamento das nesse espaço mesmo que se pode propor
mudanças, trabalhar estabelecer pactos.
Numa proposta de trabalho em pequenos grupos (no mês de junho), usando também o recurso de seqüências em quadrinhos (quadro 2), as crianças escreveram os seguintes
textos:

A bruxa e tava felizi
A bruxa ve um Galinha
a bruxa feis a Galinha dezaparezareseu
a bruxa fez a Galinha de zapares ca taxa pegou no bole
a bruxataxa pegou no bole dai caiu um ovo .


As crianças, nesse grupo, haviam decidido que cada uma escreveria para um quadrinhos. Perguntaram ao adulto como se escrevia "bruxa e galinha ". Uma rápida observação
nos mostra que a primeira criança usou um espaço como recurso para o intercalado em "estava"; a segunda, em "uma"; a terceira e a quarta discutiram como se escreve
"fez" e escreveram a mesma frase, mas de modos diferentes: a terceira criança a escrever "dezapare ... interrompeu, retomou a escritura e seu. A quarta, analisou
de outra forma essa "palavra desconhece (como preposição?), "zapares" "cá' (s0aba muitas vezes tomada


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como letra c). A quinta criança "transformou" a palavra bruxa em "brutaxa" (por quê? Confusão entre o t e o x escritos em letra cursiva?); usou ainda hipercorreção
em "bule" (escreveu "bole"); retomou a primeira parte da sentença e terminou: "dai caiu um ovo.
A forma de divisão de tarefas, nesse grupo, determinou a repetição de "A bruxa", dado que cada criança procurou explicitar o referente na sua escritura. Ou seja,
é interessante notar que o que aparece como padrão nas cartilhas (a repetição é usada como técnica de "fixação") é, no caso, um resultado da forma de trabalho das
crianças.
Em um dos grupos, uma das crianças começou a escrever. As outras tentaram ler. Não conseguindo, apagaram e tentaram escrever novamente. Cada criança tentava ler
o que a outra havia escrito e, não entendendo, apagava e tentava escrever. Nesse processo, o resultado foi o seguinte:
ofada penou nagaliha e no bule e peobu e aída niglia (Texto B).
que as crianças "leram" como: 1. A fada pensou na galinha e no bule; e 2 pegou o bule na mão e caiu uma pedra, um ovo, do bule. Ou seja, isto é o que elas queriam
ter escrito.
Num outro grupo, o texto foi o seguinte:
A fada mexeumexna variha mexenavariha feis um bule é lapego o bule
é pego o bule de baxo do o bule debao o bule idebaxodete
ti um ovo de baxobo bule (Texto C).
Duas crianças alternaram-se para escrever, mas todas, no grupo, participaram falando, comentando, ditando e repetindo o texto, Ora, o texto revela justamente as
interferências, as repetições das crianças enquanto acompanhavam o trabalho de escritura das que se dispuseram a escrever: A fada mexeu na varinha. Fez um bule.
Ela pegou o bule é debaixo do bule tinha um ovo". Não houve, no entanto, nesse momento, um distanciamento e uma leitura do texto, o que provocaria a dúvida e a tentativa
de reelaboração do mesmo.
Ainda num outro grupo, a criança "que já sabia ler e escrever" assumiu o papel do escritor, também com a participação dos demais elementos
Era uma baruxa depois
viu uma galinha depegou
a varinha abcacadaba depos
apareceu um bule depos
levanto o bule daí ela a
biruaboca e vium ovo

era uma (vez uma) bruxa
depois (ela) viu um agalinha
(depois) pegou a varinha
abracadabra. depois apareceu
um bule
Depois levantou o bule
daí ela abriu a boca e viu

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de ouro e depois ela jogou
bule no depois sentu na varinha (Texto D),


um ovo de ouro e depois ela jogou o bule depois ela sentou
na varinha


Pedagogicamente, o mais importante, nesse momento, do ponto de a da análise que estamos fazendo, não são tanto os textos como eles se apresentam, mas o que os textos
nos revelam, o processo de elaboração destes textos, o espaço de troca de idéias e conhecimentos, as alternativas participação que surgem numa proposta de trabalho,
a variedade de formações possíveis.
É fundamental, então, observar e considerar como as diferentes formas de organização e interação das crianças, e os diferentes materiais e recursos, acabam como
que provocando ou delineando a elaboração dos texto mostra-se como imprescindível a análise das condições de elaboração e funcionamento da escritura, para a compreensão
e avaliação (do processo de produção) dos textos.
Numa outra classe de 1á série, já no final do ano letivo, um exemplo é indicador da importância dessas observações e análises:
O leão tava passando perto da bruxa.
Ele parece que estava com medo.
Prarque estava com medo de que ela fagia guma mágica
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E ela reagio tão rapido que feis o rabo dele desaparece, ele ficou muito triste.

Ele deitou querendo o rabo dele de volta

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E ele comesou chora.
E a fadinha ficou com dó.
E a fadinha perdoou
E ele não parava de chora

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E a fadinha fez que o rabo dele de vauto.

Uma análise desse trabalho nos revela que a criança ordenou os quadrinhos exatamente na seqüência desenhada pela autora. Por uma falha na cópia xerox, o rabo não
aparece, ou é "cortado", nos quadros 2, 3 e 4. Essa "falha técnica' produz alguns efeitos: a ausência do rabo no leão é interpretada pela criança como indicador
relevante na história. A criança não atenta ou dá relevância, por exemplo, ao detalhe, no quadro 4, do espinho na pata do leão, marcado pelos traços ao redor da
mesma. A criança chama de "bruxa" a personagem sentada na pedra - pois, pela sua leitura, ela vai fazer o rabo do leão desaparecer - e atribui ao leão o " medo de
ela fazer alguma mágica". A criança interpreta a reação da bruxa (quadro 2) não como susto, mas como a própria possibilidade, rápida e inesperada, da mágica. Bruxa
e leão se enfrentam: o leão parece ser a vítima; a bruxa, o vilão, na história . . .
Mas a bruxa - de vestido de bolinha e florzinha no chapéu - vira fada, no texto, quando fica "com dó" do leão, "E a fadinha perdoou . . .' Perdoou o quê? E por quê?
(Há, implicitamente, uma troca de posições dos personagens.) Estão subjacentes e implícitos modelos, arquétipos, pressuposições: bruxas são más, não perdoam, nisso
fazem "bondades" (lembro aqui um ótimo livro de Sylvia Orthoff, Uxa, ora fada, ora bruxa), não devolvem o rabo . . . Isso é tarefa para fada! A transformação da
bruxa em fada é, assim, uma imposição do sentido. A questão não é a da lógica ou da permanência do sujeito na frase (no texto) como categoria gramatical. A questão
é a da posição (da sugestão) das personagens (da autora), da indeterminarão do sentido, e, portanto, da possibilidade de inúmeras interpretações. É a questão da
condição - momento e espaço - da interlocução, lugar de

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um jogo de representações onde a criança, na sua intenção, na sua imaginação, na sua atividade como leitora e/ou escritora, organiza os traços, ocupa os espaços
. . .
É a ocupação desses espaços pela atividade da criança que dá a ela estatuto de leitora e escritora.
O problema é que a escola só acredita e aceita ser possível a ocupação desses lugares depois que a criança já é (considerada) leitora e escritora. E o que é ser
"leitora e escritora" na escola? É decodificar e codificar mensagens por escrito; é ler e escrever "com sentido". Mas ler com sentido é a última etapa que a escola
espera da criança no processo de alfabetização. A escola não trabalha o ser, o constituir-se leitor e escritor. Espera que as crianças se tornem leitoras e escritoras
como resultado do seu ensino. No entanto, a própria prática escolar é a negação da leitura e da escritura como prática dialógica, discursiva, significativa.
Como, então, dentro da escola, a criança pode ocupar os espaços de leitora e escritora? Primeiro, ou concomitantemente, ela precisa ocupar o espaço como protagonista,
interlocutora, como alguém que fala e assume o seu dizer.
Pedagogicamente, então, trabalhar as diferenças no processo da elaboração do conhecimento com as crianças - transformando o espaço da sala de aula em lugar e momento
de encontro e articulação das histórias e dos sentidos de cada um, e de todos - requer, necessariamente, uma outra dinâmica, um outro modo de proceder na escola
. . .
Observemos a situação de mais uma classe de 1 série, segundo relato da professora: trinta e nove crianças; nenhuma cursou a pré-escola. Não tinham experiência acadêmica
anterior (a não ser os dois primeiros meses de aula, quando uma outra professora trabalhou o "período preparatório"). Apresentavam os seguintes comportamentos: falavam
todos juntos e não se ouviam; provocavam-se e usavam apelidos e nomes pejorativos para se referirem uns aos outros; agrediam-se, acusavam-se, destruíam e roubavam
materiais; não atentavam para o que a professora falava. Não revelavam nenhum conhecimento específico sobre a linguagem escrita, mas revelavam experiências com a
escrita; não revelavam experiência com o registro ou marcadores de tempo (relógio, calendário). Apresentavam problemas de higiene, saúde, alimentação e vestuário.
Apresentavam dificuldade de organização e utilização de materiais acadêmicos. Demonstravam não compreenderem várias propostas de trabalho, explicações e solicitações,
sobretudo quando colocadas pela professora para a classe como um todo. Cobravam "lição" (exercícios de coordenação motora) . .Quando a professora relata que há trinta
e nove crianças numa sala de 1 á série, ela revela a política do "há vagas para todos", o que, na realidade

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de, tira o espaço de cada um, na escola; quando ela aponta os problemas de higiene, saúde, alimentação e vestuário, ela evidencia o problema sócioeconômico seríssimo;
quando ela diz que as crianças não tiveram experiência acadêmica anterior, ela indica a não-existência dos "pré-requisitos" exigidos pela escola. Quando ela diz
que todos "falam juntos", é porque, nesta sala, as crianças podem falar. Quando ela fala da agressão, provocação e destruição de materiais, ela evidencia comportamentos
que revelam posições e esquemas de sobrevivência das crianças numa opaca luta de poder. Ela observa a falta de conhecimentos específicos das crianças com relação
a conteúdos e procedimentos escolares e, ao mesmo tempo, aponta a "cobrança' e a demanda (desejo de aprender?) das crianças para "fazerem lição" (obviamente, existem,
por parte das crianças, expectativas e pressuposições com relação à escola). Ora, nestas situações, quando não há condições e não se' evidenciam os "pré-requisitos"
para a alfabetização, o que fazer? Qual a tarefa do professor alfabetizador? O que ensinar? Como proceder? Por onde começar? Como se posicionam professor e aluno,
para iniciar um trabalho de alfabetização?
Nesta sala de aula, a professora começou a alterar, diariamente, a disposição das carteiras, sugerindo e propondo, depois, às crianças, sucessivas mudanças e modos
de organização da classe que viabilizassem o trabalho em grupos. Devido ao alto consumo, destruição e desaparecimento de materiais, a professora propôs também a
colocação e a utilização dos materiais em comum, conversando sobre a responsabilidade de cada membro do grupo e de cada grupo, com relação aos materiais. Simultaneamente,
a professora procurava organizar o espaço da sala de aula usando a escrita para isso: quadro de presença, crachás, calendário, trabalhos das crianças, rótulos de
embalagens, alfabetário, textos das crianças, normas de convivência discutidas em comum e aprovadas pelo grupo.
Um dia, nesta sala, uma criança passava pelas mesas provocando as outras de várias maneiras. A professora tentava conversar com a criança, sugerindo algumas atividades
nas quais a criança não conseguia se engajar. A certa altura dessa provocação, desencadeia-se um processo de agressão física na classe, e a professora, brava, tem
que intervir e apartar. Uma das crianças sugere:
- Por que você não bate nele também, tia?
Após restabelecida a calma na classe, a professora conversa com as crianças: - Vocês acham que eu posso bater em vocês?
- Pode.
- Por que vocês acham que eu posso bater? . ah, porque tia é que nem mãe, né?
- Todo mundo aqui já apanhou? - Já.
- Quem bate em vocês?
. . . o pai, a mãe, o irmão, o tio, a avo . . .

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De uma situação problemática, e mesmo limite (agressão física), em sala de aula, a professora inicia um diálogo e abre espaço para que as crianças falem e emitam
suas opiniões. Nesse momento, além de interlocutora das crianças, ela é também catalizadora das opiniões e articuladora das idéias. Trabalhando problemas vitais
dentro da sala de aula - formas de interação entre pessoas e alternativas de soluções de problemas - a professora aproveita a oportunidade e lança mão de um recurso
fundamental para registro das experiências e idéias das crianças. Ela se torna escriba, e vai organizando na lousa o que as crianças falam. Vai surgindo o primeiro
texto coletivo da turma:
Todo mundo já apanhou De cinta.
De chinelo. De vara. De correia. De borracha. De fia,
e também de mão.
Apanhou do pai, da mãe, da tia, da avó e até dos irmãos.
Como interlocutora e escriba, a professora imprime também um caráter ao texto. Ela não se anula nessa relação. Ela assume a relação de ensino que sustenta e dá sentido
à sua tarefa de ensinar. Nesse contexto, a escrita não é uma mera transcrição da fala, e o texto não é uma "gravação do que foi dito". O texto é uma forma de organização
das idéias. É um trabalho que se realiza. É constituição da memória, documentação, história, pois possibilita um distanciamento e um retorno, propicia uma leitura
. . . (uma, não! Várias!).
As crianças, em conjunto, começam a assumir, com a professora, a autoria do texto escrito.
Mas existem inúmeras formas de se trabalhar a leitura, a escritura, a autoria com as crianças . . . Numa outra classe de 1 série, um gravador foi levado para a sala
de aula. As crianças brincaram e exploraram as possibilidades desse recurso, gravando canções, falas, disputas e discussões. Ao ouvirem a gravação, elas puderam
perceber também as dificuldades de compreensão quando todos falam ao mesmo tempo, e a necessidade de organizarem turnos para falar. Foi então proposto às crianças
que se sentassem num grande círculo, para a elaboração de uma história em conjunto. "Era uma vez . . . uma menina que caiu num buraco . . . Como podemos continuar
essa história?" A "regra com jogo" era: cada criança pegaria o gravador e falaria alguma coisa, acrescentando, completando, transformando a história. A primeira
criança a falar, disse: ". . . e morreu!" Breve momento de ansiedade


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para os adultos presentes: morte significa "fim", "término", "No ponto final", "acabou a história"!
Mas, daí, as crianças elaboraram uma narrativa que foi gravada e cuja gravação foi ouvida por elas. Essa narrativa foi reelaborada num texto escrito pelos adultos
e lido para as crianças. Como toda história tem um título, as crianças sugeriram onze opções, das quais a mais votada foi: "O Espirito que foi para o Céu" (Relatório
P.I.L., 1983). As crianças trabalharam, então, a dramatização da história, que foi fotografada em slides, projetados posteriormente para elas. A história foi ainda
desenhada e escrita, semanas depois pelas próprias crianças. Eis o texto coletivo:
"O estrito que foi para o céu '
Era uma vez uma menina que caiu num buraco e, logo depois, morreu. Sua alma foi para o céu. Então as pessoas foram à cidade para comprar coisas para o enterro. Compraram
uma roupa para vestir a menina morta, um véu, um maço de flores e de velas. Compraram também comida e mistura: carne e frango. Enquanto isso, o Pai comprou o caixão.
Todos foram ao cemitério e o coveiro enterrou a menina. A mãe ficou nervosa e desmaiou. Depois do enterro, todo mundo ficou triste e foi para casa com dor de cabeça.
A menina que morreu virou caveira e subiu para o céu e Jesus agarrou a caveira, e quando viu, ficou com medo e jogou a menina dentro do buraco de novo.
O tempo passou e uma outra menina nasceu: irmã da que morreu.
Ela cresceu e foi à igreja rezar pela irmã e o padre disse que era para ela levar flores para a irmã no cemitério.
Mas a menina que estava morta levantou, pegou a vela que estava em cima do caixão, jogou no chão e saiu correndo.
Quando a irmã chegou lá com as flores, levou um grande susto porque a menino não estava mais lá.

Podemos observar, nesta elaboração coletiva das crianças, que elas operam num espaço cultural de percepções e a ações onde as concepções e as questões se constituem
histórica e lingüisticamente. Assim, o problema da morte emerge e, com ele, crenças, rituais, valores. Com ele, também, revelam-se condições e condicionantes sócio-econômicos.
O ritual cultural da morte se explicita, por exemplo, quando as crianças falam em comprar uma roupa para vestir a morta, falam no véu, na vela, nas flores, no caixão.
Para isso, no entanto, é preciso "ir à cidade" (a escola fica num bairro de periferia), e lá também se compra "comida e mistura: carne e frango" (que as crianças
não comem todos os dias).
Emoções e reações, modos de sentir e de se comportar também se revelam: "a mãe ficou nervosa e desmaiou; todo mundo ficou triste e foi para casa com dor de cabeça;
(até) Jesus ficou com medo e jogou a menina dentro do buraco de novo".
Crenças e processos de elaboração conceitual também se evidenciam. "A alma foi para o céu; a menina virou caveira; Jesus agarrou a caveira

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jogou a menina no buraco . .." Os termos "alma", "menina", "espírito", "caveira", acabam se confundindo.
A narrativa é marcada por uma circularidade: "a menina caiu no buraco e morreu, a alma foi para o céu, Jesus jogou no buraco de novo; nasceu outra menina . . .',
o que revela ainda um modo de pensar os opostos nesta circularidade (caiu/subiu, morreu/nasceu).
Surge, então, a tentativa de uma ruptura (?) (não aceitação da morte?): "Mas a menina que estava morta levantou, pegou a vela que estava em cima do caixão, jogou
no chão e saiu correndo . . ." E a surpresa, a interrogação: para onde poderá ter ido?
As crianças reelaboram, então, o texto num novo trabalho de escrita individual. Como se dá a apreensão (e a transformação?) da enunciação "dos outros" no trabalho
de elaboração conjunta - e leitura - de um texto, em que cada um perde a sua voz para ganhar a de todos? E como se dá essa "passagem" da elaboração coletiva para
uma produção individual, em que cada criança assume a palavra, nos papéis de escritora e narradora?
É o próprio movimento interdiscursivo, intertextual, que é marcado na narrativa das crianças. Movimento interdiscursivo porque trabalhado no espaço de elaboração,
de interação enunciativa, na relação dialógica entre as crianças. Movimento intertextual porque incorpora os dizeres de outros, articula várias vozes.
Observemos alguns textos escritos pelas crianças:
A menina que caiu no buraco E logo morreu e foi para o céu E logo seu espirito virou caveira
E as pessoas foram na cidade comprar véu e vela e todo mundo foi para casa com dor de cabeça (Texto 1 ).




























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A MENINA QUE FOI PARA O CÉU ELA CAIUI NOM BURACO E VIROU CAVEIRA E DEUS CATOU O JOGO NO BURACO O PAI COMPROU O CAIXÃO E O COVEIRO COMPROU O VÉU E A MÃE COMPROU
A VELA.


A MENINA QUE O ESPÍRITO FOI PARA O CÉU . a MENINA CAIU NO BURACO E MUIRTA GENTE TODA GENTE FOI NA CIDADE COMPRAR CARNE E O VÉU PARA A MENINA DAÍ NASCEU UMA IRMÃ
DA QUE MORREU. O PAI FOI NA CIDADE E COMPROU O CAIXÃO . JESUS PEGOU E JOGOU A MENINA DE NOVO NO CAIXÃO.

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O PAI E A MÃE CHOROU E ABRAÇOU . A MENINA CAIU E MORREU E A SUA ALMA FOI PARA O CÉU E (JESUS? ) AGARROU A SUA ALMA . A MAMÃE COMPROU A VELA PARA A MENINA. O PAPAI
COMPROU O CAIXÃO E A MAMÃE TRISTE COMEU A MAMÃE O LOBO MAU. A MAMÃE PAPAI COMPROU O CAIXÃO . A LATA AMASSOU E A MAMÃE JOGOU A LATA. A MAMÃE COMPROU LATA.

Na primeira destes 4 textos podemos perceber uma variedade de
formulações que marcam algumas passagens e, se consideradas em conjunto, delineiam a organização do texto coletivo.
Assim, o texto de cada criança não repete ou reproduz o texto coletivo, mas inaugura novos momentos de interlocução, pela própria incompletude, pelo que apareceu
como mais importante e relevante para cada uma; pelo que cada uma disse ou deixou de dizer.
O texto 4, no entanto, apresenta-se como o mais provocante, na medida em que deixa entrever (traz as marcas de) o movimento intradiscursivo - a atividade mental
não-linear, com suas imagens, hesitações, interferências, "discursos de outrem" - na medida mesmo em que escapa às regularidades gramaticais, tornando-se opaco e
impermeando o sentido. Isso, contudo, nos remete a novas investigações e estudos sobre a narrativa infantil, a interdiscursividade, a intertextuatidade e a escritura,
que apenas se esboçam nesse trabalho.
Em termos pedagógicos, então, o que se faz relevante é o fato de que, quando se abre espaço para as crianças falarem e se relacionarem em sala de aula, questões
vitais vêm à tona e se tornam "matéria-prima" no processo de alfabetização. Estas questões vitais que se evidenciam na interação e interlocução das crianças geram
(e implicam) barulho e movimentação: as


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crianças conversam e se excitam, trocam informações, favores, segredos. Riem, discutem, brigam. Falam sobre assuntos relevantes para elas. Nessas conversas, concepções,
pressuposições e valores se revelam. É o próprio habitus 2 que transparece: são os modos de perceber, de sentir, de viver, de conviver, de conhecer e de pensar o
mundo que - não só emerge mas - se constituem, também, nas situações de sala de aula.
Nesse processo, a escrita integra o habitus e a possibilidade, a necessidade e o gosto (também forjados socialmente) da interação por escrito ganham força na correspondência
e no registro das experiências. Mas relato e ficção se fundem, se confundem: o imaginário também ganha força. Fatos e crenças, ritos e mitos, medos e desejos são
explicitados. É o discurso cotidiano que começa a ser marcado pelo trabalho de escritura das crianças e que traz, portanto, as marcas da realidade sócio-cultural
dos indivíduos e dos grupos em interação.
Podemos, então, observar nos textos das crianças as marcas dessa realidade, que emerge no tratamento dos temas, dos fatos e dos incidentes cotidianos, registrados
em relatos, mesmo inicialmente, de uma "extensa frase , ou seja, as crianças não escrevem frases curtas e fáceis como o bebê é da babá e Eva viu a uva
















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ERA UMA VEZ UMA MENINA. Ela foi na cidade com o vestido rasgado e os outros davam risadas.

A MINHA FOI NA CASA DA NAMORADA E A NAMORADA BRIGOU E ATACOU A PANELA NA OUTRA MINHOCA



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As crianças arriscam escrever porque querem, porque podem, porque gostam, porque não ocupam o lugar dos "alunos que (ainda) não sabem", mas daqueles que podem ser
leitores, escritores e autores. As tentativas, as experimentações, os recursos e as hipóteses se evidenciam numa variedade de esquemas exploratórios e interpretativos
que marcam (em termos da ortografia e da gramática) a passagem intra/interdiscurso no trabalho de escritura.
A escrita começa a constituir um modo de interação consigo mesmo e com os outros, um modo de dizer as coisas. Nesse dizer, então, não só a emergência de modelos,
de padrões e de organização sociais mas, também, a constituição do sentido.
São os colegas de classe que se transformam em personagens de uma história - em que se revelam as relações e os sentimentos de um namoro, de uma conquista, de um
casamento, de uma gravidez - num texto marcado inteiramente pela fluência da fala. A situação imediata (de sala de aula) se integra num contexto mais abrangente
(cotidiano às relações familiares) e são articulados com outras realidades e outros dizeres (contos de fadas: "E se casaram e viveram juntos para sempre") (Texto
8).
São os bichos (galo, galinha e pintinhos) que vivem uma situação familiar (a relação conjugal, a disputa, o ciúme e a interferência dos filhos) num episódio que
inclui um elemento lançado pela TV (o batom "boca louca" da novela das 7), bem como um dizer disseminado pelos contos de fadas ("foram passear no bosque'). A criança,
que assume o papel de narradora, articula os diálogos dos personagens, deixando transparecer as marcas da sua "fala social" (Texto 9).
É o desejo (?) e um certo desdém "só porque" a vizinha ganhou um conga novo e ficou "exibida" (Texto 10). É o gato atropelado (Texto 5), o vestido rasgado (Texto
6), a briga de namorados (Texto 7). É a imagem da filha mais velha, os preconceitos, a agressividade, a rotina, que se revelam num texto gerado pela leitura de um
livro Pinote, o fracote e Janjão, o fortão, de Fernanda Lopes de Almeida (Texto 11). É o espaço e o momento da alegria e da poesia num texto que decorre da leitura
de João Feijão, de Sylvia Orthof (Texto 12). É a amizade, o carinho e a preocupação com o amigo que sofreu um acidente (Texto 13). É a saudade da vó (Texto 14).
É a (força da) internalização dos valores e das crenças sociais e, junto com isso, o desapontamento que se transforma em reivindicação, o desabafo que busca (se
disfarça em) uma justificativa . . . (Texto 15).





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JOSIMEIRE E CARLOS AUGUSTO
QUANDO A SUA NAMORADA FALOU EM SE CASAR , ELE ACEITOU EM SE CASAR. FICA COMIGO , DISSE CARLOS . EU VOU SE (ME) CASAR DOMINGO. VOU CONVIDAR TODO MUNDO E VAI SER UM
MAU CASA...BONITO


CARLOS, ELE ESTAVA CASADO COM A LUCIANA . E APARECEU UM HOMEM. ELE QUIS SE CASAR COM A LUCIANA . CHEGOU UM HOMEM CHAMADO DEVAIR. O DEVAIR CMEÇOU A NAMORAR A LUCIANA
E SE CASARAM E VIVERAM JUNTOS PARA SEMPRE. TUDO O QUE A LUCIANA PEDIA , O DEVAIR COMPRAVA. A LUCIANA FICOU GRÁVIDA E A LUCIANA TINHA QUE SER INTERNADA PARA TIRAR
O NENÊ.


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A GALINHA FOI NA FEIRA COM O GALO. ELA BEIJOU O GALO. ELA PASSOU BOCA LOUCA. O PINTINHO FALOU: OLHA O NAMORO! O GALO FALOU: PORQUE A SUA MÃE É BONITA DEMAIS " A
GALINHA FALOU: VOCÊ TAMBÉM É. O GALO FALOU: OBRIGADO . A GALLINHA FALOU: OBRIGADO VOCÊ. O GALO: DE NADA . O GALO DEU UM BOUCA LOUCA PARA ELA. O PINTINHO BICOU
O GALO, O GALO PEGOU OS PINTINHOS NO COURO E O GALO CASOU COM A GALINHA E OS DOIS FORAM PASSEAR NO BOSQUE. A GALINHA FICOU CONTENTE. OS PINTINHOS FICARAM CHORANDO.

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LÁ PERTO DA MINHA CASA MORA UMA MENINA. SÓ PORQUE A MAMÃE DELA COMPROU UMA CONGA, ELA FICOU EXIBIDA , SÓ PORQUE TEM UM CONGA. MAS EU NÃO ESTOU NEM AÍ


A MINHA IRMÃ PARECE O JANJÃO E EU NÃO GOSTO DELA ... ELA MEXE QUANDO EU TÔ BRINCANDO DE CARRINHO ELA NÃO DEIXA EU BRINCANDO DE CARRINHO PORQUE ELA NÃO GOSTA QUE
EU NÃO BRINCO COM MOLEQUE DE RUA. MAS EU VOU NA RUA , EU BATO NELA E EU VOU, BATO E A MINHA MÃ BATE EM MIM E EU VOU DORMIR. DEPOIS QUE EU ACORDO , QUANDO MEU PAI
CHEGA, EU FALO PRA ELE, ELE BATE NELA. EU GOSTO QUANDO MEU PAI CHEGA , EU FALO PRA ELE , ELE BATE NELA. EU GOSTOQUANDO MEUPRIMO BATE NELA . EU DOU RISADA. ACABOU.

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João Bolão
João Bolão achou uma semente. Depressa, ele foi correndo para plantar a semente no jardim, para plantar a semente e quando a árvore cresceu, ela ficou linda, que
os pássaros ficavam em volta (Texto 12).
Olá, Adão, como é que você vai? Você está bem? Como que você está, bem?
Adão, volte logo para nossa turma. Adão, nós estamos sentindo muito a sua fala Você vai voltar logo para a escola? Que dia?
Espero que você esteja bem. Nós já começamos o livro (Texto 13). ï06






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Vó, o João está bom, e o Claudio está bom, e o Juca está indo bem na escola e a senhora está boa? Quero que a senhora venha para cá no
dia 30 de dezembro. Adriana (Texto 14).

Eu acharia melhor que todo mundo que viesse na festa, não estragasse as bandeirinhas, os balões todos que tivessem na festa, não estragasse. Guardasse por outro
ano. Porque as folhas são caras, os cartazes também. Cada um ponha as sujeiras no lixo, senão as faxineiras não dão conta... Pape! no lixo conserva a nossa escola.
Porque ontem de ontem eu vim trazer o menino que eu olho, tinha cada balão lindo, cada desenho lindo! Tenha um balão no meio do pátio parecia balão de
verdade! Podia guardar todos os materiais. Pelo jeito que eu vi eu acho que foi uma festa linda! Pena que eu não pude vir aqui! Este cartaz que está na nossa classe,
a gente podia sortear ou senão, guardar como lembrança lá embaixo... Também eu não posso porque eu sou crente da Congregação Cristã do Brasil, eu não posso participar
da
rodinha do escarnecedor (Texto f 5).


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Assim, os saberes e os conhecimentos, as dúvidas e as perguntas (implícitas ou explícitas) - sobre a vida, o nascimento e a morte; sobre as relações familiares e
sociais; a rotina, os preconceitos; o trabalho, a poesia; as emoções, a violência, reivindicações . . . - emergem nos textos em que jogam as condições de vida e
os processos de simbolizarão e representação das experiências infantis. O que se pode perceber, então, é um intenso movimento intertextual - os outros falam no meu
texto, eu incorporo e articulo a fala os outros; eu falo o/no discurso de outros que, ao mesmo tempo, ampliam o meu dizer . . . É o próprio jogo da intersubjetividade
marcado no trabalho de escritura. Cada texto, um momento de enunciação. Em cada momento, muitas vozes. Isso não só sugere, mas impele a investigações mais aprofundadas
sobre linguagem, psicanálise e ideologia, que extrapolam os limites deste trabalho.
Mas tudo, afinal, são coisas corriqueiras, rotineiras. Tão rotineiras e corriqueiras que nem se presta atenção a elas. São coisas "extra-escolares". A escola "não
pode" se incomodar com isso. E, no fundo, incomoda-se de outra forma. Tanto que, para disfarçar o incômodo, reduz suas preocupações aos erros da ortografia e da
gramática, que acabam sendo os únicos pontos que ela consegue ver e, portanto, avaliar.
A própria escola contudo, não se avalia quando avalia e reprova as crianças. O texto espontâneo de uma criança (Texto 16) repetente de 1 série, logo no início do
ano letivo, nos mostra bem isso:

Eu perdi meu pai. Eu fiquei muito triste.
Eu queria 6car com meu pai e com minha mãe. Minha mãe e eu queríamos ficar com meu pai.
Mas eu (nós) não consegui(mos). Bem que eu queria conseguir (Texto 16).
Com todas as hesitações, trocas e tentativas ortográficas, a criança escreve o que ela quer ou precisa dizer. Ela revela o esforço de "estruturação deliberada do
fluir do significado". Sua escrita, no entanto, aponta as


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marcas de um método de alfabetização concentrado na silabação e na palavração, o que produz um excesso de segmentação que interrompe o fluxo da própria escrita.
Essa hiper-segmentação (cujo caráter é bem diferente da dos "esquemas exploratórios" que pudemos observar nos outros textos) é interpretada pela escola como "deficiência
da criança" e não como efeito dos procedimentos de ensino e a escola obriga a criança a "recomeçar tudo de novo". C que significa para essa criança (sabendo ler
e escrever como ela já é capaz) repetir a 1 á série? A escola não se dá conta de que, reprovando essa criança, ela se reprova a si mesma!
O problema, na realidade, mais sutil e mais complexo, pode ser ilustrado na seguinte situação: trabalhando com livros de literatura na 1á série, as crianças
entusiasmaram-se com a leitura O menino maluquinho, do Ziraldo. Assim, crianças de periferia, quase zona rural, têm contato, através também da leitura de livros,
com padrões (de linguagem, de comportamento) tipicamente de classe média e alta. (Aqui pode-se levantar uma questão: qual é a diferença entre este livro
e, por exemplo, a cartilha Caminho Suave, tão criticada, ultimamente, pelos estereótipos apresentados? Podem-se levantar ainda inúmeras discussões
a respeito dos padrões estabelecidos e inculcados pela televisão e outros meios de comunicação de massa em geral.) O fato é que uma das crianças da sala produz o
seguinte texto: 1. Era uma vez um menino maluquinho
6. Ele tinha olho maior que a barriga
7. Tinha fogo no rabo, tinha vento nos pés
8. uma pernas enormes que davam
9. para abraçar o mundo.
10. Ele era engraçado demais para mim
11. Não sei o que vocês acham que ele...
12. que ele era engraçado para vocês,
13. turma. Ele é engraçado, é sim.
14. É verdade, turma, é sim (Texto 17).


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Essa criança copia ao livro o texto às primeiras páginas (linhas 1 a 5). E logo volta a assumir a sua voz, o seu modo de falar, de dizer pela escritura (linhas 6
a 10). Nessa passagem, ela se coloca como mediadora entre o texto e os seus leitores, convidando-os para um diálogo. Ela ocupa o lugar de interlocutora entre o texto
lido por ela e os leitores do seu texto. Assim, a escritura adquire as marcas individuais do seu dizer (e com toda a ênfase: "é sinhi!"), que são marcas, também,
de uma voz social.
Situações como essa geram conflitos e confrontos nas salas de aula entre o que pode ser "legível" e o que pode ser "legítimo" - que assustam, provocam e desarmam
a escola, a qual, como instituição social, faz uso do seu poder normativo e legal para aprovar e reprovar as crianças (muitas vezes dentro de critérios tão rígidos
quanto arbitrários).
No entanto, um dos aspectos mais evidentes na leitura desses textos iniciais é que eles trazem à tona temas e assuntos que nenhum livro didático e, muito menos,
qualquer cartilha ousa considerar. Além disso, eles fogem aos padrões de escrita apresentados nas cartilhas e nos livros didáticos, afrontam e rompem, muitas vezes,
com a organização, segundo os critérios da racionalidade: ordem (princípio, meio, fim), coerência, não-contradição . . . Por isso mesmo, apontam para a possibilidade
de outras análises e revelam a capacidade das crianças registrarem por escrito o que pensam, o que desejam, desde o início da aquisição da escrita. As crianças aprendem
a escrever escrevendo e, para isso, lançam mão de vários esquemas: perguntam, procuram, imitam, copiam, inventam, combinam . . . As crianças aprendem um modo de
serem leitoras e escritoras porque experimentam a escrita nos seus contextos de utilização. Deste modo, as crianças não escrevem "para o professor corrigir". Elas
usam - praticam - a leitura e a escritura. Os textos podem ser ou não corrigidos, dependendo da função e do uso. Alguns são escolhidos e corrigidos para compor uma
coletânea da classe. Outros, corrigidos, são colocados em murais. Como a produção é grande, muitos ficam arquivados nas pastas das crianças sem correção: funcionam
como registro de um momento no seu processo de alfabetização, corno documento para avaliação e futuras leituras . . . Mas na medida em que é documento, essa escrita
constitui uma ameaça: ao trabalho do professor; à função da escola; à homogeneização; às regras da lógica e da gramática; ã institucionalização de uma norma mais
"correta" ou mais "perfeita" de falar ou de escrever . . .
No entanto, a função da escritura "para o outro" e a presença de interlocutores também provocam uma tensão: o esforço de explicitarão do discurso interior, abreviado,
sincrético, povoado de imagens, pela escritura, adquire realmente a característica de um laborioso trabalho gestual e simbólico.
É nesse esforço, nesse trabalho de explicitarão das idéias por escrito


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para o outro, que as crianças vão experienciando e apreendendo as normas da convenção: os interlocutores, as situações de interlocução, vão apontando a necessidade
e delineando os parâmetros consensuais para a leitura. No início, as crianças raramente conseguem ler seus próprios textos, mas elas dizem (sobre) o que escreveram.
Um "outro" tenta ler. É justamente da leitura do outro, da leitura que o outro faz (ou não consegue fazer) do meu texto (não esquecer o "outro" que eu sou como leitor
do meu próprio texto), do distanciamento que eu tomo da minha escrita, que eu me organizo e apuro esta possibilidade de linguagem, esta forma de dizer pela escritura.
A escritura aparece, então, inicialmente, marcada pelo discurso interior, enquanto atividade e elaboração individual, no sentido da apreensão de fragmentos e momentos
desse discurso, que tomam forma, que se constituem - pelo gesto, pelo trabalho de escrever - em signos escritos esparsos ou aglutinados. Gradualmente, estas marcas
iniciais vão se transformando: a escrita truncada e ilegível das primeiras tentativas vai adquirindo o caráter da legibilidade para o outro. Mas essa legibilidade
implica normas, funciona num espaço de regularidades que não são, no entanto, imutáveis e que podem ser negociáveis. (As transformações sócio-históricas se produzem
nestes espaços.)
A quantidade de omissões e aglutinações vai diminuindo e a escritura vai sendo marcada pelo fluxo e pela fluência da fala com suas hesitações, repetições, lapsos
e incertezas. Começam a se delinear as dúvidas com respeito à ortografia e à segmentação. Mas este fluxo e esta fluência também são marcados pela ênfase, pela entonação,
pela emoção, pelas condições do dizer de cada um. É preciso, então, encontrar marcas que "digam" por escrito, que indiquem, que revelem, pela escritura, intenções,
paixões, indignações. Aos poucos, nas situações de interação e interlocução, os trabalhos de leitura e escritura vão se constituindo e as crianças vão encontrando,
no jogo das palavras e da escrita pontuada, a possibilidade da "corporeidade simbolizada" 3 (muito além da "fala desenhada" mencionada por Vygotsky): a raiva, a
alegria, o grito podem ser escritos! Mas isto vai além da legibilidade do texto. Implica a questão da articulação do sentido.
A materialidade das palavras ganha novas formas na medida em que é produzida pelo gesto de escrever e marcada no papel. Ao mesmo tempo, o movimento intradiscursivo
vai adquirindo, pela escritura, novas características: desponta a questão do "estilo" na escritura; do gosto, da opção, da fruição no jogo de formulações possíveis.
Emerge, além da dimensão lúdica, a dimensão estética. Ganham lugar a literatura e a poesia.
3. Em conversa e discussão com o Joaquim sobre o que viria a ser "discurso interior", sobre "interioridade", "exterioridade" do discurso, ele usou esta expressão
que tomei a liberdade de assumir e incorporar no contexto deste trabalho. Agradeço a ele os muitos momentos de diálogo que foram altamente provocadores neste percurso.


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Assim, os textos das crianças, desde as primeiras tentativas, constituem (e geram outros) momentos de interlocução. É nesse espaço que se trabalham a leitura e a
escritura como formas de linguagem. A alfabetização se processa nesse movimento discursivo. Nessa atividade, nesse trabalho, nem todo dizer constitui a leitura e
a escritura, mas toda leitura e toda escritura são constitutivas do dizer.
Aqui, novamente, se coloca a questão da relação pedagógica e dos procedimentos de ensino da leitura e da escritura na escola: a escola tem ensinado as crianças a
escrever, mas não a dizer - e sim, repetir - palavras e frases pela escritura; não convém que elas digam o que pensam, que elas escrevam o que dizem, que elas escrevam
como dizem (porque o "como dizem" revela as diferenças); a escola tem ensinado as crianças a ler um sentido supostamente unívoco e literal das palavras e dos textos
e a escola tem banido aqueles que não conseguem aprender o que ela ensina, culpando-os pela incapacidade de entendimento e de compreensão. O que a escola, como instituição,
não percebe; é que a incompreensão não é fruto de uma incapacidade do indivíduo, mas é resultado de uma forma de interação. Assim sendo, as formas de interação nas
escolas têm produzido tanto os alfabetizados quanto os considerados iletrados e analfabetos. Isto porque o processo de aquisição da escrita nas crianças se realiza
não só na margem ou no percurso do "ilegível" para o legível, mas no espaço do "inter-dito", da "ilegalidade", da provocação até, na medida em que se processa nas
tentativas de legitimação de diferentes modos de dizer pelo trabalho de escrever.
Com o exercício do dizer das crianças pela escritura, das várias posições que elas vão ocupando, dos distintos papéis que elas vão assumindo como leitoras, escritoras,
narradoras, protagonistas, autoras ... - vão emergindo e se explicitando não só as diferentes funções, mas as diversas "falas" e "lugares" sociais.
É este trabalho, então - não apenas de explicitarão, mas de constituição do discurso social enquanto elaboração individual - que as crianças precisam (poder) realizar
nas séries escolares da alfabetização. Desse modo, a escrita, além de "representar", institui e inaugura modos de interação, transformando a realidade sócio-cultural
dos indivíduos. Deste modo, também, as experiências individuais ampliam-se e redimensionam-se nos diferentes espaços e momentos de interlocução. Nestes espaços e
nestes momentos surge a possibilidade da (co)autoria na história de vida.
Mas falar em trabalho de escritura gestual e simbólico, e falar em co-autoria na História levanta suspeitas e faz emergir incertezas e contradições: como se sustentam
este trabalho e esta autoria no contexto da indústria cultural? As incertezas e as contradições provem, entre outros aspectos, da não-garantia, da perda, da ruptura
com o gesto, isto é, da desvalorização
e da redução do momento original do trabalho de escrever a uma mera


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técnica no sistema produtivo, ao mesmo tempo em que a leitura passa a ser um modo de consumir. Este é, no entanto, um risco que se tem que correr. Coloca-se, desse
modo, o desafio político-pedagógico da alfabetização, enquanto prática cotidiana e urgente (que não pode parar e ficar esperando "teorias"), mas que se transforma
- e precisa ser pensada - enquanto se realiza.
Contudo, "acreditar" que a alfabetização seja possível e viável - como trabalho e co-autoria na História - não leva, efetivamente, à sua realização. É preciso, na
prática, conhecer e conceber formas de alfabetização condizentes com o momento histórico em que vivemos para operar transforma
da a magia, o mito, o dogma, o milagre. Mas o conhecimento e a concepção implicam, na praxes , a gênese, a geração do novo..

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