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sábado, 5 de maio de 2012

Roobin Hood - Henry Gilbert

Robin Hood ou ROBIN DOS BOSQUES
Henry Gilbert


Robin dos Bosques é o fora-da-lei mais amado de todos os tempos: lutador, irreverente, habilidoso no manejo do arco, o ladrão que roubava os ricos para dar
aos pobres tornou-se símbolo de justiça e de liberdade, e foram muitas as baladas e muitos os poetas que cantaram os seus feitos.
Henry Gilbert, em 1914, procurou reunir alguns dos melhores episódios atribuídos pela tradição àquele herói. Encontramos, assim, nesta edição belamente ilustrada,
o romance que resultou desse trabalho: as aventuras dos alegres companheiros da floresta de Sherwood, que povoaram o imaginário de pessoas de todo o mundo - Robin
dos Bosques, João Pequeno, Frei Tuck, Lady Marian.
ÍNDICE
Prefácio ........................................................................................................................ 9
CAPÍTUlO 1 - De como Robin se transformou num fora-da-lei .................................. 11
CAPÍTUlO 2 - De como João Pequeno roubou o jantar do guarda florestal e
conheceu Robin dos Bosques .............................................................. 52
CAPÍTULO 3 - De como Robin lutou contra o mendigo-espião e apanhou o
xerife ..................................................................................................... 86
CAPÍTULO 4 - De como Robin dos Bosques conheceu Frei Tuck ........................... 119
CAPÍTULO 5 - De como, com a ajuda de Robin dos Bosques e de Jack, filho de
Wilkin, Alan-a-Dale se casou com Lady Alice ........................................145
CAPÍTULO 6 - De como Robin prestou auxílio a Sir Herbrand ................................. 172
CAPÍTULO 7 - De como Robin dos Bosques salvou Will Stuteley e fez justiça em
relação a Richard Illbeast, o mendigo-espião ...................................... 198
CAPÍTULO 8 - De como Robin dos Bosques matou o xerife ..................................... 232
CAPÍTULO 9 - O rei Ricardo conhece Robin ............................................................. 263
CAPÍTULO 10 - O incêndio no Forte do Mal .............................................................. 287
CAPÍTULO 11 - Da morte de Robin dos Bosques ..................................................... 308

PREFÁCIO

Tempos houve em que a maior parte dos ingleses não eram livres. Não podiam viver onde queriam nem trabalhar para quem lhes agradasse. Nesta época feudal, a
sociedade dividia-se em dois grandes grupos: senhores e camponeses. Os senhores recebiam a terra das mãos do rei e os camponeses, ou servos da gleba, eram encarados
como parte do solo, sendo obrigados a cultivá-lo para se sustentarem, a eles e aos respectivos amos. Caso homens como John ou Dick, servos de uma propriedade feudal,
não gostassem da forma como o senhor ou o seu administrador os tratavam, não se podiam mudar para outro lado e arranjar trabalho sob as ordens de um amo mais simpático.
Caso alguém tentasse levar a cabo uma coisa destas, seria considerado um criminoso, devendo ser levado de volta ao local de onde fugira, onde seria castigado com
o chicote ou um ferro em brasa, existindo ainda a hipótese de ser encarcerado.
Quando as colheitas eram abundantes e o amo bondoso ou despreocupado, não creio que o camponês sentisse a sua condição de servo tão insuportável como em
outras alturas. Contudo, quando a fome alastrava pelos campos e o servo e a sua família nada tinham para comer, ou quando o amo possuía uma natureza austera ou exigente,
sendo o servo obrigado a trabalhar de um modo excessivo, ou ainda sempre que era maltratado, então, julgo eu, o velho sangue teutônico ou galês, que corria nas veias
do camponês inglês, começava a fervilhar, pondo-se ele a ansiar pela liberdade.
Naqueles dias, o silêncio e a paz verde das florestas estendiam-se ao longo das muitas léguas, onde agora cresceriam grossas espigas de milho amarelo, as
vacas vagueiam ao longo de pastos ricos, até mesmo onde, hoje em dia, os muros pertencentes aos subúrbios das cidades se estendem pelo campo. Estas florestas devem
ter funcionado como locais de terror e de fascínio para o pobre servo, que as podia ver sempre que caminhava pelos campos. Nas suas clareiras silenciosas corria
o veado real e nas suas terras densas e espinhosas vagueavam os javalis, criaturas cuja caça estava reservada ao rei e a alguns dos seus amigos, aos grandes nobres
e aos príncipes da igreja. Qualquer pobre, fosse ele peão ou camponês encontrado a matar um destes animais reais que viviam na floresta era cruelmente mutilado como
castigo. Ou, no caso de não ser apanhado, fugia e escondia-se na floresta, transformando-se assim num fora-da-lei, num "cabeça-de-lobo" (tal como se dizia na época),
pois assim, qualquer um o ficava autorizado a matar.
Foi nestas condições que viveu Robin dos Bosques, praticando os atos de coragem que lemos nas baladas e nas tradições que chegaram até nós. Como não é possível
encontrar o seu nome nos intrincados registros dos advogados e de outros homens desse gênero, algumas pessoas expressaram as suas dúvidas quanto à existência real
de Robin dos Bosques. Pela minha parte, tenho a certeza que sim, que houve um tempo em que Robin não poderia estar mais vivo. É possível que os poetas anônimos que
compuseram as baladas o tenham idealizado um pouco, ou seja, que o tenham descrito um pouco mais ousado, mais bem sucedido, talvez mais parecido com um herói do
que aquilo que ele realmente foi. Contudo, é isto que se espera que os poetas e os escritores façam.
São cerca de quarenta, as baladas que nos chegaram relativas a Robin dos Bosques e ao seu bando de foras-da-lei. As mais antigas são as melhores, posto que
são mais naturais e excitantes. A maioria dos poemas tardios é muito pobre, sendo muitos repetições enfadonhas de um ou dois incidentes, enquanto outros não passam
de versos toscos, destituídos de espírito ou de imaginação.
Para escrever as histórias que conto neste livro, servi-me de alguns dos melhores episódios relatados nas baladas, embora tenha inventado outras histórias
relativas a Robin. Acrescentei também incidentes e acontecimentos que foram elaborados com vista a oferecer um quadro verdadeiro da época em que ele viveu.
HENRY GILBERT
Londres, Julho, 1912
1.
DE COMO ROBIN SE TRANSFORMOU NUM FORA-DA-LEI

O Sol ia alto num dia de Verão e a floresta parecia dormir. Só muito raramente um sopro de brisa agitava os grandes leques constituídos pelas folhas dos
carvalhos e o único som que ali se fazia sentir era o zumbido baixo dos insetos que voavam de um lado para o outro sem parar, à sombra fresca que se estendia por
baixo dos vastos ramos das árvores.
Parecia tudo tão calmo e tão abandonado, que era possível pensar que nada, para além do veado selvagem e do seu feroz inimigo, o lobo furtivo, percorrera
alguma vez aqueles caminhos desde o princípio do mundo. Havia um carreiro, estreito e gasto, que corria entre os espessos arbustos de avelaneiras, clematites e erva-de-cão,
mas tão estreito e gasto era ele, que podia bem ter sido feito pelas patas leves e esguias das corças, ou até mesmo pelas lebres e coelhos que tinham feito a sua
casa numa grande rampa situada entre as raízes de uma faia próxima.
De fato, e visto ser aquela a zona mais isolada da floresta de Barnisdale, eram poucas as pessoas que por ali passavam. Para mais, quem é que tinha o direito
de ir até ali para além dos guardas-florestais ao serviço do rei, ocupados a vigiar atentamente os veados reais? Fosse como fosse, os coelhos que deviam estar a
comer frente às suas tocas, ou entregues às suas brincadeiras, pareciam ter-se refugiado nos seus esconderijos, como que assustados por algo que por ali tivesse
passado.
Só agora, de fato, um ou dois apenas se atreviam a espreitar, certificando-se de que as coisas estavam calmas outra vez. Então, de repente, um coelhinho aventureiro
saltou para fora da toca, sendo de pronto seguido por outros.
Apenas um pouco mais à frente do local onde os coelhos estavam agora a mastigar ou a correr de um lado para o outro a uma velocidade louca, o carreiro descrevia
uma curva e os troncos gigantescos das árvores escasseavam, deixando assim passar mais luz vinda do céu. As árvores cessavam de forma abrupta e o pequeno carreiro
escondido desembocara numa vasta clareira onde a erva crescia, vendo-se também maciços de azevinho e avelaneiras espalhados aqui e ali.
Junto ao carreiro, atrás de uma árvore, um homem examinava a clareira. O indivíduo envergava uma túnica feita de um tecido verde, grosseiro, aberta no topo,
fazendo-o assim exibir um pescoço bronzeado. Em torno da sua cintura via-se um cinto de couro, bastante largo, no qual se encontrava um punhal e três flechas compridas.
As suas coxas estavam cobertas por calções de pele macia e, por baixo deles, o homem usava um par de meias verdes, que Lhe chegavam aos pés. Quanto a estes, estavam
enfiados em fortes sapatos de pele de porco.
A cabeça, repleta de caracóis castanho-escuros, encontrava-se coberta por uma boina de veludo, boina esta que, num dos lados, exibia uma pequena pena, arrancada
da asa de uma tarambola. O seu rosto, bronzeado e curtido pelo sol e pelo vento, era aberto e franco, os seus olhos brilhavam como os de uma ave selvagem, e havia
neles tanto de destemido quanto de nobre. Tratava-se de um indivíduo de membros grandes, aparentando possuir uma força superior àquela que seria de esperar em alguém
da sua idade, a qual deveria rondar os vinte cinco anos. Transportava um arco comprido numa das mãos, enquanto a outra descansava no tronco macio da faia que se
erguia à sua frente.
O seu olhar cravava-se num maciço de arbustos que se erguiam num ponto não muito longe daquele onde ele estava, e, enquanto observava, nem um músculo se
movia. Por vezes, deitava uma olhadela ao lado oposto da clareira onde, na margem do bosque, dois ou três veados corriam à sombra das árvores, avançando na direção
do local onde ele se encontrava.
Subitamente, viu os arbustos agitarem-se sorrateiramente. Uma cabeça desgrenhada surgiu por entre as folhas e o rosto macilento de um homem espreitou cuidadosamente
de um lado para o outro. No momento seguinte, voou uma flecha saída do arbusto onde o homem se escondia. Aquela correu direita aos veados e alojou-se no peito da
corça que mais perto se encontrava. O animal deu uns quantos passos apressados antes de cair. Quanto aos outros, assustados, embrenharam-se entre as árvores.
Demorou algum tempo até o homem abandonar o seu esconderijo e reclamar o animal que abatera. Aguardou pacientemente durante um período de tempo em que seria
possível contar até cinquenta, pois sabia que, caso andasse por ali algum guarda-florestal, bastar-lhe-ia ver os veados que tinham fugido depois de a sua companheira
ter sido abatida, para, a partir do seu ar assustado, compreender estar-se a passar qualquer coisa de errado, e logo trataria de procurar o causador de semelhante
reboliço.
O tempo passou devagar e nada se moveu, nem o homem que se encontrava escondido nem aquele que o observava. Também não surgiu nenhum guarda-florestal na
orla do bosque por onde os veados tinham fugido. Assim, sentindo-se em segurança, o homem abandonou o arbusto atrás do qual se escondia. Porém, na sua mão não se
via nem o arco nem as flechas, uma vez que as deixara em segurança no respectivo esconderijo, para serem recolhidas num outro dia.
Estava vestido com as roupas grosseiras e esfarrapadas, de fabrico caseiro, características dos servos, uma corda em redor da túnica castanha, os membros
inferiores meio cobertos por um par de calças largas feitas com o mesmo tecido da túnica, se bem que estivessem mais esburacadas e remendadas. Sempre a olhar de
um lado para o outro, dobrado sobre si mesmo, o homem dirigiu-se para junto da corça e, debruçando-se por cima dela, tirou a faca do cinto e começou a cortar, quase
freneticamente, os pedaços mais tenros da carcaça.
Quando o homem que estava atrás da árvore o viu, pareceu reconhecê-lo, pois murmurou: "Pobre rapaz!"
O servo embrulhou a carne do animal num pedaço de pano grosseiro, endireitou-se e desapareceu por entre as árvores. De seguida, com passos rápidos e silenciosos,
o homem que o estava a observar regressou ao atalho e também ele se dirigiu para a floresta. Passados alguns instantes, o servo, cravando aqui e ali os seus olhos
cautelosos, caminhava com ligeireza por entre os troncos das árvores. De vez em quando, parava e esfregava as mãos vermelhas de sangue nas ervas compridas e úmidas,
tentando assim limpar as manchas que o incriminavam.
De súbito, quando contornava o tronco gigantesco de um carvalho a forma alta do homem que o vigiara surgiu à sua frente. De forma instantânea, o servo levou
a mão à faca, parecendo prestes a saltar sobre o outro.
- Homem - disse aquele que envergava a túnica verde -, que loucura te leva a fazer isto?
O servo de pronto reconheceu aquele que falara e soltou uma gargalhada selvagem.
- Loucura! - exclamou. - Desta vez isto não é para mim, mestre Robin. Mas o meu rapazinho está a morrer de fome e, enquanto houver veados na floresta, ele
não morrerá.
- O teu rapazinho, Scarlet? - perguntou Robin. - Isso quer dizer que o filho da tua irmã está a morar contigo?
- Sim - respondeu Scarlet. - Estiveste fora três semanas e é impossível que tenhas ouvido falar no caso. - Falava com uma voz dura, e os dois lá iam descendo
um carreiro de tal forma estreito que, sempre que Robin se adiantava, Scarlet era obrigado a caminhar atrás dele. - Há uma semana - prosseguiu Scarlet -, o marido
da minha irmã, John Green, ficou doente e morreu. Que fez o administrador do nosso amo? Disse: "Já daqui para fora, seus inúteis, e desenvencilhem-se sozinhos. A
casa é para um homem que trabalhe de forma a merecê-la".
- É típico de Guy de Gisborne fazer uma coisa dessas - disse Robin. - O traidor sem coração!
- E lá se foi ela, sem outra coisa para além dos farrapos que os cobriam, a ela e aos petizes - declarou o outro com firmeza. - Se eu lá tivesse estado,
não me teria contido e espetava-lhe uma faca no pescoço. Ela veio ao meu encontro. Estava desorientada e doente. Sofria de fome, adoeceu e morreu a semana passada.
Os dois pequeninos ficaram com os vizinhos, mas eu fiquei com Gilbert. Sou um homem solitário, adoro o rapaz e, caso lhe aconteça alguma coisa de mal, então, tratarei
de fazer com que Guy de Gisborne pague por isso.
Enquanto Robin escutara a história breve e trágica da destruição do lar de um pobre servo, o seu coração ardera de raiva contra o administrador, Sir Guy
de Gisborne, que governava a propriedade de Birkencar em nome dos Monges Brancos da Abadia de Santa Maria, fazendo-o com mão pesada. No entanto, estava consciente
de que o administrador outra coisa não fazia para além daquilo que o abade e os monges lhe permitiam. Amaldiçoando-os a todos, ricos e orgulhosos como eram, ocupados
a caçar e a viver regalados à custa dos serviços e das rendas que eram extorquidas aos pobres servos, os quais eram olhados como se pertencessem ao terreno das propriedades
por eles amanhadas.
Robin, ou Robert de Locksley, como era conhecido pelo administrador e os monges, era um homem livre e, para os padrões da época, era não apenas jovem como
rico. Tinha a sua casa e a sua propriedade, uma quinta com cerca de cento e sessenta acres da melhor terra, situada nos confins da propriedade senhorial, e sabia
bem que os monges há muito que lançavam olhares cobiçosos à sua pequena parcela. Esta ficava junto à floresta e recebera o nome de Outwoods. Há várias gerações que
esta terra era mantida pela sua família, primeiro para os senhores que haviam recebido a propriedade de Birkencar das mãos do rei Guilherme, e, a partir da última
geração, para a Abadia de Santa Maria, a quem o último proprietário, lorde Guy de Wrothsley, a deixara em testamento.
A terra de Robin era sua mediante o pagamento de uma renda, e, enquanto a pagasse, os monges não o podiam despejar legalmente da sua quinta, por muito que
o gostassem de fazer. O abade considerava ser Robin um homem malicioso e descontente. Haviam sido muitas as vezes em que se dirigira ao mosteiro para enfrentar o
abade, dizendo-lhe cara a cara que ele e os administradores que para ele trabalhavam tratavam os servos e os rendeiros pobres da propriedade de forma perversa.
Naqueles dias, semelhante ousadia constituía algo de raro, e os monges e Guy de Gisborne, o administrador por eles nomeado em Birkencar, detestavam Robin e
os seus modos de falar tanto quanto este os detestava pela sua tirania e opressão.
- É uma pena que isso se tenha passado quando eu estava fora - disse Robin, respondendo desta forma às últimas palavras de Scarlet. - Mas podias ter ido
até Outwoods e Scadlock tinha-te dado comida.
- É verdade, mestre Robin - retorquiu Scarlet -, tens sido sempre um amigo bom e verdadeiro para todos nós. Mas eu também tenho vivido como um homem livre,
logo, não posso mendigar o meu pão. Tal como as coisas estão, já fizeste inimigos que cheguem, e não serei eu quem te vai dar mais trabalho. Não! Enquanto houver
veados no bosque, nem eu nem o meu rapazinho passaremos fome. Para mais, mestre Robin, tens de te cuidar. Caso os teus inimigos soubessem que estarias fora durante
tanto tempo, ter-te-iam declarado um fora-da-lei (pelo menos, é o que consta), tirar-te-iam a terra que te pertence, matando-te quando regressasses.
Robin riu.
- Sim, essa história chegou-me aos ouvidos enquanto estive fora.
Surpreendido, Scarlet fitou-o. Julgara estar a revelar qualquer coisa de surpreendente ao amigo.
- Já sabias disto? - disse ele. - Ora aí está algo que é muito estranho.
Robin não respondeu. Sabia bem que os seus inimigos apenas esperavam uma oportunidade para o arruinar. Muitos homens que haviam partido para efetuar longas
viagens tinham regressado apenas para descobrir que, na sua ausência, um qualquer inimigo jurara perante a justiça ter ele fugido por ter praticado qualquer coisa
de errado, levando-o desta forma a ser declarado proscrito, alguém cuja cabeça podia ser cortada por qualquer um.
Scarlet permanecia calado, a pensar nas muitas e estranhas histórias que os servos contavam a respeito do amigo de todos eles, Robin, quando se sentavam
para beber uma cerveja depois do trabalho.
De súbito, de um ponto não muito longe à frente de ambos, elevou-se um ruído semelhante ao de um esquilo a resmungar. Depois, seguiram-se alguns instantes
de silêncio, os quais foram quebrados pelo uivo distante e solitário de um lobo. Nesse mesmo instante, Robin parou, pousou o grande arco que tinha na mão junto às
raízes de um enorme carvalho, fazendo o mesmo com as flechas que tirara do cinto. De seguida, virando-se para Scarlet, dirigiu-se-lhe numa voz baixa e dura:
- Põe a carne de veado que guardas na túnica ao lado destas coisas. Depressa, homem, antes que os guardas-florestais reparem no chumaço que tens no peito.
Vais recuperá-la muito em breve.
Quase mecanicamente, obedecendo ao tom de comando do outro, Scarlet tirou o pedaço de pano rude, feito de sizal, onde embrulhara a carne da corça por dentro
da túnica, e pousou-o ao lado do arco e das flechas. No momento seguinte, Robin retomou a caminhada. Depois de terem dado alguns passos, Scarlet olhou em volta,
para o lugar onde haviam deixado as coisas. Tinham desaparecido!
Algo de muito frio pareceu gelar-lhe o coração e quase se imobilizou, mas a voz dura de Robin disse:
- Vamos, homem, avança! - O pobre Scarlet, certo de se encontrar na presença de bruxaria, fez o que lhe pediam, mas não sem se benzer, com vista a manter
afastado o mal.
No instante seguinte, o carreiro estreito que se estendia frente a ambos ficou bloqueado pelas formas de dois guardas-florestais corpulentos, com os arcos
às costas e cajados compridos nas mãos. Os olhos duros deles cravaram-se em Robin e em Scarlet e, por um momento, era como se estivessem a pensar em barrar-lhes
o caminho. Porém, o olhar desafiador com que Robin avançava fê-los mudar de ideias e deixaram-nos passar.
- Quando um homem livre e um servo andam juntos - troçou um dos guardas - é porque devem andar a tramar alguma contra o amo.
- E quando dois guardas-florestais andam juntos - replicou Robin, soltando uma risada - é porque a vida de um qualquer pobre está prestes a mudar para pior.
- Conheço-te bem, Robin de Locksley - disse o guarda que falara primeiro -, e sei que és um daqueles homens com fama de ter a língua comprida.
- Eu também te conheço, Black Hugo. - retorquiu Robin. - Consta que arruinaste o teu melhor amigo só para juntares uns quantos acres que lhe pertenciam aos
teus.
A raiva escureceu o rosto do homem, isto enquanto o outro guarda se pôs a troçar do seu mal-estar. Quanto a Black Hugo, cravou os olhos em Robin como se
quisesse atirar-se a ele. Porém, o olhar destemido deste acabou por levar a melhor, e, mal-humorado, o homem virou-se sem pronunciar uma só palavra.
Robin e Scarlet puseram-se de novo a caminho, não demorando muito a sair da floresta, e, depois, trataram de abrir caminho por entre os arbustos que cresciam
nos baldios e que separavam da floresta as quintas pertencentes à propriedade.
Por fim, ei-los chegados ao cimo de um declive. Na sua frente a terra estendia-se até aos terrenos cultivados e ao pasto que rodeava a pequena aldeia das
cabanas dos servos, encontrando-se a mansão senhorial a uma certa distância, a meio caminho de uma outra encosta.
Scarlet olhou com atenção à sua volta, ansioso por verificar se alguém que se encontrava nos campos o vira sair da floresta. O certo é que abandonara o seu
posto de trabalho na construção do dique e parara à caça do veado. Agora, interrogava-se sobre se a sua ausência fora descoberta. Se assim fosse, não tinha medo
nem do poste dos açoites nem do chicote nas suas costas nuas, e este podia ser o seu destino no dia seguinte, quando os homens do administrador descobrissem estar
o seu trabalho apenas a meio. Fosse como fosse, o seu rapazinho, Gilbert da Mão Branca, teria nessa noite um jantar digno de um rei.
Ou não? Tomado de uma lembrança súbita, o medo voltou a sufocá-lo. Como é que o arco e as flechas de Robin, assim como a sua carne, tinham desaparecido?
Teria algum elfo ou duende ficado com as coisas, ou teria ele olhado para o local errado? E se os guardas-florestais já as tivessem encontrado? Comprimiu os maxilares
e olhou para trás, a mão na faca, como se estivesse à espera de ver os dois guardas a persegui-lo.
- Olá! - saudou Robin em tom despreocupado. - Ali estão o meu cinto e as minhas flechas, sem esquecer o teu veado, rapaz.
Dando meia volta, Scarlet viu todas estas coisas junto a um tufo de erva situado a uma certa distância, o mesmo sítio para onde estava certo de ter olhado
há apenas alguns instantes e de nada ter visto!
- Mestre - disse ele numa voz onde era possível detectar admiração -, isto é pura feitiçaria. Eu... eu... tenho medo que os teus inimigos saibam que contas
com a ajuda dos espíritos malignos que habitam no bosque.
- Scarlet - disse Robin -, julguei-te um homem sensato, mas, tal como todos os outros, pareces não ser mais do que um tonto. Não tenhas medo por mim. Os
meus amigos da floresta são bastante inofensivos, não sendo piores do que eu ou tu.
- Mestre - retorquiu Scarlet, lamentando o seu discurso impensado -, peço desculpa pelas minhas palavras tontas. A minha língua andou mais depressa do que
os meus pensamentos, pois assustei-me quando vi aquelas coisas no sítio onde, há apenas um bocadinho, não estava nada. Porém, sei que não pode haver na floresta
nada pior do que aquilo que existe nos castelos e nos palácios dos abades, onde os senhores oprimem e mutilam os servos pobres. Mestre, diz-me só se aquela coisa
que nos ajudou agora mesmo é... um duende?
Robin fitou o rosto do outro durante alguns instantes sem falar.
- Scarlet - acabou ele por dizer -, parece-me estar a antever uma altura em que tu e eu vamos passar uma longa temporada na floresta. Quando isso acontecer,
apresento-te aos meus amigos. Mas, até lá, Scarlet, nem uma palavra a respeito do que se passou hoje. Juras?
- Pela doce Virgem! - exclamou o interpelado, erguendo a mão ao pronunciar o juramento.
- Amen! - retorquiu Robin, tirando a boina e baixando a cabeça ao escutar aquele nome. - E agora - prosseguiu ele -, pega na carne que te pertence e dá-me
o meu arco e as minhas flechas. Tenho de voltar à floresta. E diz ao teu rapazinho, ao Gilbert, que Robin deseja que ele se ponha bom quanto antes, pois quero ir
outra vez com ele para as terras altas caçar tarambolas.
- Claro - assentiu Scarlet, e o seu rosto macilento e faminto iluminou-se com doçura assim que começou a falar. - O garoto não pára de falar em ti desde
que mostraste tanto interesse por ele. As tuas palavras vão fazer-lhe muito bem.
Assim que os dois homens se separaram, Robin deu meia volta e embrenhou-se nos arbustos, embora desta vez numa direção diferente daquela por onde viera na
companhia de Scarlet. Ergueu os olhos para o céu e estugou o passo, pois compreendeu passarem duas horas do meio-dia. Não demorou muito a chegar junto às árvores,
e, pondo-se a caminhar entre elas sem hesitações, dirigiu-se para sul, rumo à estrada que, ao longo de vários quilômetros, atravessava a floresta que partia de Barnisdale
e seguia rumo ao condado de Nottingham.
Era com passadas rápidas e ansiosas que Robin percorria os caminhos, pois preparava-se para visitar a senhora que mais amava no mundo. O nome dela era Marian,
a bela Marian, e era filha de Richard Fitzwalter, de Malaset. Desde que, ainda rapaz, Robin caçara e se divertira em Locksley Chase, perto do local onde nascera,
que Marian era a sua companheira de brincadeiras, e, muito embora ela fosse filha de um conde e Robin não passasse de um pequeno proprietário rural desprovido de
fortuna, amavam-se com paixão e haviam jurado não casar exceto um com o outro.
Naquele dia, era suposto ela viajar desde o castelo do pai, em Malaset, para Linden Lea, perto de Nottingham, onde passaria algum tempo no castelo do tio,
Sir Richard de Lee, e Robin prometera escoltá-la ao longo da floresta.
Não demorou muito a chegar a um caminho largo por onde passavam as carroças, coberto por um espesso tapete de erva e marcado por sulcos profundos causados
pela passagem das rodas. Embrenhou-se por ele a grande velocidade e não descansou até ter percorrido uns oito quilômetros. Depois, ao alcançar o ponto onde uma outra
estrada o atravessava, parou, olhou à sua volta com atenção, desaparecendo em seguida por entre algumas avelaneiras que encimavam uma elevação situada junto aos
quatro caminhos.
Depois de caminhar durante mais algum tempo, acabou por chegar a uma clareira onde não havia um único arbusto. Foi para aqui que Robin de pronto se dirigiu.
No solo viam-se alguns ramos quebrados que, aos olhos de uma pessoa qualquer, dariam a sensação de para ali terem sido arrastados pelo vento. Contudo, Robin baixou-se
e, apoiado nas mãos e nos joelhos, examinou-os com cuidado.
- Um com a ponta dobrada e oito ramos direitos - murmurou ele, entre dentes. - Um cavaleiro na sua montada e oito pajens a pé. Estão parados na estrada a
ocidente, não muito longe daqui. Que poderá isto significar?
Ergueu-se e, virando-se, atravessou rapidamente a estrada que ali o conduzira, mergulhando na floresta que ladeava o caminho da direita.
Com muito cuidado, avançou entre as árvores, certificando-se de que não pisava nenhum ramo enquanto avançava pela erva com passos rápidos, os olhos inteligentes
movendo-se em todas as direções, tentando captar a luz que se escoava por entre a espessa floresta que o rodeava.
De súbito, ei-lo que se deixou cair de joelhos, embrenhando-se ainda mais no meio das árvores. Escutara o tênue tilintar de um freio mesmo à sua frente.
Pouco depois, espreitando por entre os ramos de um jovem teixo, viu um grupo de homens armados imobilizado no ponto onde a sombra das árvores era mais densa. No
meio deles encontrava-se um cavaleiro envergando uma cota de malha e montado num cavalo.
Foi com avidez que os observou, tentando descobrir qual o senhor que serviam, mas os peões usavam simples gibões de couro, ao passo que o escudo do cavaleiro
era liso, em forma de papagaio de papel.
Durante alguns instantes, viu gorados os seus esforços no sentido de descobrir quem estes homens eram, assim como o motivo que os levava a esconderem-se
na floresta, tal como se estivessem prontos a atacar um qualquer grupo de viajantes que soubessem estar quase a passar por ali. Foi então que o cavaleiro examinou
a floresta em seu redor e, esboçando um gesto de impaciência, ao mesmo tempo que soltava uma praga, acalmou a montada, a qual se mostrava inquieta.
Bastou o som da sua voz para Robin o reconhecer, e, então, o seu rosto endureceu e os seus olhos iluminaram-se-lhe friamente.
"Com que então, Roger de Longchamp", disse ele de si para si, "queres ficar com a minha dama nem que seja pela força, já que não consegues conquistar a bem
os seus favores?!"
Pois a verdade é que este Sir Roger era um cavalheiro orgulhoso e tirânico, que pedira a mão da bela Marian, mas cujo pai o recusara. Fitzwálter amava a
filha e, embora o amor que ela sentia por Robin o levasse a troçar dela, nunca a entregaria a um homem com tão má fama como Roger de Longchamp, irmão de um prelado
orgulhoso, o bispo de Fécamp, e o favorito do duque Ricardo.
Muitas vezes, quando Robin se punha a pensar no modo como Sir Roger de Longchamp, ou qualquer outro homem, por muito perverso que fosse, podia visitar Sir
Richard Fitzwalter e falar abertamente com Marian, ficava de mau humor e perguntava-se se havia algum fundo de verdade nas histórias que o velho Stephan de Gamwell,
o seu tio, lhe contara a respeito da sua linhagem nobre. Segundo ele, e há três gerações, os antepassados de Robin haviam sido donos de vastas terras e de muitas
propriedades, sendo os senhores da cidade de Huntingdon. Mas depois de terem participado numa qualquer revolta dos ingleses contra o conquistador normando, as suas
terras tinham sido confiscadas pelo rei, o conde fora executado e os seus parentes perseguidos até ficarem reduzidos à obscuridade.
Agora, todos sabiam que o condado e as terras de Huntingdon estavam nas mãos do próprio rei, e que o título fora dado a David, irmão do rei escocês. Todavia,
Robin interrogava-se muitas vezes sobre se seria possível recuperar algo das honras e da posição da sua família. Se assim fosse, iria de imediato pedir a mão de
Marian, recusando-se a aceitar um "não" como resposta.
Um movimento esboçado entre os homens que se encontravam emboscados fê-lo regressar à realidade. Um homem saiu de entre as árvores a correr e, precipitando-se
em direção ao cavaleiro, disse em voz baixa:
- Vêm aí! A senhora e um escudeiro estão a cavalo, os outros seguem a pé. São nove ao todo e não passam de criados.
- Ótimo! - exclamou o cavaleiro. - Quando se aproximarem, sairei ao seu encontro e agarro as rédeas da senhora. Caso o vilão que está a cavalo me tente seguir,
então, deves derrubá-lo.
Ao ouvir isto, Robin esboçou um sorriso sombrio, tirando, depois, uma das flechas que trazia presa ao cinto. Quase no mesmo instante, escutaram-se vozes
masculinas elevando-se na estrada coberta de erva, bem como o bater dos cascos dos cavalos. Passado pouco tempo, o coração de Robin alegrou-se ao ver por entre as
folhas a figura doce e feminina de Marian, montada a cavalo, o capuz puxado para trás, revelando-lhe deste modo o rosto. Conversava com Walter, o escudeiro do pai,
que cavalgava junto a ela.
No instante seguinte, seguido dos seus homens, o cavaleiro tratou de se precipitar por entre as árvores. De forma instantânea, o valente Walter empurrou
o seu cavalo para a frente da montada da sua senhora e, servindo-se do sólido bastão que transportava consigo, preparou-se para a defender, isto enquanto os outros
guardas que a acompanhavam também se colocaram à frente dela. Sir Roger usou a sua espada para agredir o escudeiro, tendo aquela cortado um enorme pedaço do bastão
que este segurava. Tratou-se de um golpe de tal forma certeiro, que a arma caiu das mãos de Walter. Contudo, ficou-lhe presa ao pulso por uma correia, e, soltando
um grito furioso, o homem recuperou o controle do punho. Bastaria apenas um segundo para que a espada trespassasse o corpo do valente escudeiro, mas, de repente,
ele foi atirado da sela por um dos homens de Roger, caindo desmaiado no solo. A luta entre os homens de Marian e os do cavaleiro estava agora a aquecer, mas o certo
é que os pobres criados, munidos de bastões ou de pequenas lanças, poucas hipóteses tinham contra as espadas dos assaltantes.
As rédeas que Marian segurava já estavam nas mãos de Sir Roger e, com os olhos a faiscar, ela tentava fazer recuar o cavalo. Foi então que se escutou um
som semelhante ao zumbido de uma enorme abelha, e, quando ela olhou para as barras que constituíam a viseira do cavaleiro, apercebeu-se de que algo se enfiava por
entre elas, porque, no momento seguinte, viu a haste amarela de uma flecha a palpitar frente a elas.
O cavaleiro deixou escapar um gemido profundo, oscilou e depois caiu do cavalo. Nesse mesmo instante, os seus homens pararam de lutar. Um deles, o chefe,
correu para junto do cavaleiro morto, arrancou a flecha manchada de vermelho do olho do amo, e todos se puseram a examinar com atenção a estrada larga e a floresta
verde e densa que a ladeava.
- Tem de ser um só homem! - declarou um deles. - Veio daqui, do lado esquerdo.
- Sim, mas eu conheço esta flecha! Trata-se de... – começou aquele que continuava a segurar a haste, mas não conseguiu concluir a frase. O ar voltou a zumbir
à passagem de uma espécie de assobio, desta feita semelhante ao pio de uma ave da floresta, e o homem caiu no chão, uma flecha com uma haste negra cravada no peito.
O projétil fora disparado do lado direito, revelando-lhes estarem eles a ser observados por mais de um arqueiro.
Nesse mesmo instante, os outros dispersaram e fugiram para a floresta, mas, antes que o último aí pudesse chegar, uma flecha de pequenas dimensões voou a
partir das árvores situadas à direita, cravando-se no ombro do último dos fugitivos, que lançou um grito mas continuou a correr.
No momento seguinte, Marian viu Robin, com a boina na mão, saindo da floresta e aparecendo junto dela. Chegou-se a ela que, com as faces coradas, se baixou
para ele e disse:
- Querido Robin, eu sabia que podia contar contigo. Foi um dos teus disparos certeiros que derrubou aquele cavaleiro cruel. Mas, meu doce amigo, se ele é
quem eu penso, a sua morte vai trazer-te muitos problemas.
Ela estendeu-lhe a mão e Robin beijou-a ternamente.
- Trata-se de Roger de Longchamp, minha querida - replicou ele. - Mas nem que fosse o próprio rei Henrique quem se preparasse para te fazer mal, nem mesmo
assim eu teria guardado a minha flecha.
- Mas, Robin, meu querido - prosseguiu Marian, os olhos úmidos, embora orgulhosos -, o bispo, seu irmão, irá perseguir-te por isto e declarar-te um fora-da-lei.
Acabarás por perder as terras e o nome, tudo por minha causa! Oh, Robin, Robin! Seja como for, irei aconselhar-me com Sir Richard de Lee, que tanto te estima, e
tentarei saber qual a melhor maneira de fazer com que o bispo te conceda o seu perdão.
- Minha doce Marian - disse Robin, a voz e o rosto muito duros -, não quero o perdão de nenhum prelado orgulhoso pelo mal que eu possa fazer à descendência
malvada desses padres. Mais cedo ou mais tarde, sabia que ia acabar por fazer qualquer coisa contra os bandidos que se sentam nas suas fortalezas ou dormitam nas
abadias e oprimem e enganam os pobres e os fracos... Acabou por acontecer e sinto-me contente. Não te preocupes comigo, minha querida. Mas, agora, vamos colocar-te
em segurança antes que aqueles patifes que fugiram dêem o alarme e venham atrás de mim. Wálter - disse Robin, voltando-se para o pobre escudeiro, que, atordoado
xxe muito fraco, se sentava agora na estrada -, vê se te recompões, meu bravo, e cuida da tua senhora. Rapazes - prosseguiu, virando-se para os criados, a maior
parte
dos quais estava ferida -, deixem de pensar nessas feridas até que a vossa senhora esteja em segurança. O cavaleiro que aqui foi abatido tem amigos, amigos tão perversos
quanto ele, logo, é possível que não demorem muito a perseguir-nos, e talvez então não consigamos escapar com tanta facilidade. E, agora, sigam até ao local onde
a estrada se bifurca. É lá que me juntarei a vocês.
Robin ajudou Wálter a subir para o cavalo e a bela Marian e os seus fiéis criados seguiram viagem. Assim que desapareceram, Robin puxou o cavaleiro morto
para fora da estrada e enfiou-o na floresta, depois, levantando-lhe a viseira do elmo, pousou a espada do morto no seu peito e tratou de cruzar os seus braços sem
vida sobre ela, dando assim a impressão de que o morto estava a beijar a cruz da espada. De seguida, com a cabeça descoberta, ajoelhou-se e disse uma breve oração
pelo descanso da alma do cavaleiro. Fez o mesmo com o cadáver do salteador que fora morto pela segunda flecha, após o que, tendo pegado em ambas as flechas, tanto
a que lhe pertencia quanto a outra, deu uma palmada no flanco da montada do cavaleiro, ficando a vê-la descer um carreiro da floresta que a levaria para longe daquele
lugar. Tudo isto foi feito no intuito de manter os perseguidores afastados da pista correta durante o máximo de tempo possível.
Depois, dando alguns passos na floresta, na direção em que os homens do cavaleiro tinham fugido, levou aos lábios uma corneta feita de chifre e fez soar
um som agudo, culminando numas quantas notas quebradas, deveras estranhas. Finalmente, apressou-se a regressar para junto da bela Marian e, colocando a mão no freio
do seu cavalo, foi abrindo caminho a partir do carreiro batido e, avançando por caminhos secretos e carreiros estreitos semi-invisíveis, não demorou muito a conseguir
um bom avanço, encontrando-se nas profundezas da floresta, onde ninguém dos que com ele se encontravam alguma vez estivera.
A bela Marian, feliz por saber que Robin se encontrava junto a si, não via nada a recear no silêncio e nas sombras que os rodeavam. Porém, muitos dos servos,
enquanto avançavam em fila indiana ao longo do carreiro estreito feito pelos cascos dos cavalos, benziam-se frequentemente ao passarem por um qualquer maciço sombrio
de árvores, até mesmo quando contornavam as clareiras solitárias onde as coisas eram de tal forma silenciosas e pardas, que era como se ali não tivesse existido
vida desde o princípio do mundo.
Para aquelas mentes simples, não estavam a arriscar apenas a perda das suas vidas mas também as suas almas imortais, isto ao se aventurarem naqueles locais
selvagens, covis dos demônios da floresta, dos duendes e também das bruxas. Mantinham-se juntos e, dominados pelo medo, o último da fila não parava de olhar para
trás, enquanto todos eles lançavam olhares furtivos nesta ou naquela direção, espreitando por entre os troncos daquelas árvores cobertas de musgo, sempre à espera
de, a qualquer momento, verem os olhos maldosos dos duendes cravarem-se neles, ou ainda, receando que bruxas ou feiticeiras, as bocas vermelhas contorcidas em esgares
trocistas, saíssem a correr por detrás de qualquer uma das enormes cortinas de hera suspensas daquelas árvores antigas.
Os únicos sons que ali se podiam escutar eram os produzidos pelos passos abafados por sobre a erva espessa, ou, então, aqui e ali, o estalar de um ramo.
Por vezes, lá bem no alto, através da folhagem densa por sobre as suas cabeças, conseguiam escutar o grito de uma ave, ou, aqui e ali, elevando-se de um arbusto,
soava um chip! chip! estranho, sobrenatural. Contudo, era impossível ver fosse o que fosse. Uma ou duas vezes, chegou-lhes aos ouvidos o murmúrio da água a correr,
até que chegaram junto de um pequeno riacho solitário, meio escondido entre a vegetação rasteira.
A dada altura, atravessaram uma vasta clareira, no meio da qual, próximos um do outro, estavam dois montículos de terra cobertos de vegetação, uma visão
que deixou particularmente assustados aqueles pobres rústicos.
- São casas de duendes! - murmuraram eles entre si, apontando e tratando de seguir mais depressa.
- Duvido que hoje consigamos escapar daqui com as nossas almas - disse um deles, murmurando.
- Por que razão é que o nosso guia nos traz para estes lugares horríveis? - queixou-se outro. - Os duendes vão estar a espiar-nos enquanto passamos, fazem-nos
um qualquer feitiço e os nossos ossos vão acabar por ficar a apodrecer nesta floresta pagã até ao dia do Juízo Final.
Estavam de tal forma aterrorizados, que se comprimiram contra os quartos traseiros do cavalo de Walter, a tal ponto que este se viu forçado a avisá-los:
- Para trás! Sabem bem que o meu cavalo é impetuoso e, se vos dá algum coice, as vossas cabeças, se bem que duras, não o serão suficientemente para resistir
aos seus cascos.
Por esta altura, a luz que se filtrava do céu indicava estar a tarde a chegar ao fim. Robin pouco falara desde que começara a percorrer a floresta. Porém,
a dada altura, acabou por se voltar para Marian e, com um sorriso, disse:
- Desculpa, senhora minha, a minha aparente grosseria. Acontece que os amigos de Roger de Longchamp, reunidos no seu castelo, o Forte do Mal, não são homens
que possam ser desprezados. Os seus feitos cruéis não são próprios para os teus ouvidos e apressei-me a escapar deles quanto antes. Não te obriguei a ir além das
tuas forças?
- Não, não, Robin, meu querido - respondeu Marian com um olhar doce. - Sabia o que ia no teu coração, logo, não te incomodei com conversas. Mas que queres
dizer com esse Forte do Mal? Não sabia que esse era o nome do castelo de Roger de Longchamp, em Wrangby.
- É assim que os pobres que o têm como amo o chamam - retorquiu Robin. - Tudo devido aos atos impossíveis de nomear que aí são praticados por ele e pelos
seus alegres companheiros: Isenbart de Belame, Niger le Grym, Hamo de Mortain, Ivo de Raby e outros.
Aqueles nomes fizeram com que Marian estremecesse e se tornasse muito pálida.
- Já ouvi falar deles - disse ela, em voz baixa. - É melhor continuarmos - prosseguiu Marian. - Não estou cansada, meu amigo, e de bom grado te verei em
segurança no castelo de Sir Richard.
- Não tenhas medo por mim - disse Robin, rindo. - Enquanto tiver o meu arco e a floresta para me proteger, poderei troçar de todos os que me desejam mal.
Já falta pouco para que possas saudar o teu tio, em segurança, dentro das suas fortes muralhas.
De súbito, de um qualquer ponto da floresta semi-iluminada que se estendia frente a eles, elevou-se um grito, tal como se um animal ou uma ave estivessem
nas garras de um falcão. Robin imobilizou-se e perscrutou o silêncio à sua frente. Foi então que se escutou o uivo solitário de um lobo, o que fez estremecer os
servos que seguiam atrás e que, por sua vez, também semicerraram os olhos, tentando alcançar as profundezas sombrias das árvores.
Robin deu alguns passos em frente e, ao fazê-lo, deu um grito, tal como se fosse um galo silvestre a chamar a companheira. De seguida, tratou de conduzir
o cavalo de Marian, desta feita a um passo lento. Não demoraram muito a chegar a uma colina e, quando se aproximaram do cume, viram o sol-poente escoando a sua luz
vermelha por entre as árvores. Uma vez no topo, descobriram que as árvores davam agora lugar a uma encosta suave, coberta de erva. Ali, frente a eles, para lá de
alguns prados, estava um castelo, e, num caminho não muito longe da floresta, viam-se dois cavaleiros que para lá se dirigiam.
- Acho - disse Robin - que aqueles cavaleiros ali são Sir Richard e o seu parente, Sir Huon de Bulwell.
- São mesmo eles - concordou Marian. - Deviam estar à minha espera junto à estrada principal, e sem dúvida que se estão a interrogar sobre o que me aconteceu.
Vai avisá-los, por favor, meu querido Robin. Quanto a ti, Walter, avança e diz-lhes que, graças ao meu amigo Robert de Locksley, estou sã e salva.
Robin puxou da trombeta e soprou por ela. O som fez com que os cavaleiros voltassem as cabeças e Marian, fazendo avançar a montada, acenou-lhes com um lenço.
Eles de imediato a reconheceram e, acenando em jeito de saudação, puseram-se a cavalgar em direção ao grupo.
- Diz-me uma coisa, Robin - começou Marian quando, depois de ter desmontado com vista a descansar os membros entorpecidos, se pôs a caminhar junto ao amigo
-, qual o significado dos gritos que ainda agora escutamos? Era como se alguém estivesse a fazer sinais e tu lhe tivesses respondido.
- Significa, querida - respondeu Robin -, que um amigo meu ali naquela floresta viu estes cavaleiros e pensou que talvez pudessem ser nossos inimigos. Porém,
calculei que não lhes teria sido possível chegarem a este ponto com a mesma rapidez que nós, e que as pessoas que ele viu eram seguidores de Sir Richard que andavam
à tua procura. Foi então que lhe comuniquei que pensava estar tudo bem, e, de fato, foi o que sucedeu.
- Quem são estes amigos que te vigiam assim, desta maneira, quando atravessas a floresta? - quis ela saber. - São os mesmos que dispararam aquelas setas
mais pequenas contra os homens de Sir Roger?
- Vou contar-te quem eles são, querida - retorquiu Robin. - Tratam-se de habitantes da floresta a quem salvei de uma morte tenebrosa às mãos de homens cruéis
e perversos. É desde essa altura que são meus amigos, estando sempre dispostos a velar e a cuidar de mim quando estou na floresta.
- Fico feliz por teres amigos destes, Robin - retorquiu Marian. - Alegra-me o coração saber que podes contar com sentinelas assim tão fiéis. O certo é que
receio já não faltar muito para que venhas mesmo a precisar delas.
Contudo, Sir Richard de Lee e o seu parente estavam agora junto deles, e os recém-chegados não tardaram a demonstrar o quanto se sentiam felizes por ver
que a bela Marian estava em segurança, já que se haviam sentido muito preocupados ao não encontrar sinais dela na estrada que a jovem costumava utilizar. De momento,
regressavam ao castelo no intuito de reunir um grupo de homens para a procurarem nas estradas da floresta.
Quando contaram a Sir Richard e a Sir Huon a respeito da tentativa de raptar Marian levada a cabo por Sir Roger, e de como Robin o matara, o rosto de ambos
os cavaleiros adquiriu uma expressão grave e Sir Huon abanou a cabeça. Contudo, Sir Richard, um homem de cabelo grisalho e porte nobre, voltou-se para Robin e apertou-lhe
a mão calorosamente.
- Libertaste a terra de um opressor vil e de um cavaleiro cruel - disse ele - e estou-te grato por isso. O mal que ele fez aos pobres, o que roubou aos órfãos,
as crueldades que praticou contra as mulheres... há muito que estes crimes clamavam por vingança. Sinto-me feliz por a tua flecha se ter cravado naquele cérebro
perverso.
- Isso é verdade - concordou Sir Huon, gravemente -, mas estava a pensar no quanto o Robin pode vir a sofrer. O bispo não deixará de vingar o irmão e os
camaradas desse Roger não descansarão enquanto não capturarem Robin e o levarem para a sua câmara de tortura, a que muito bem chamam o Forte do Mal.
- Não receiem por mim - disse Robin numa voz suave, mas firme. - Não tenho dúvidas de que escaparei a todas as ciladas e armadilhas que me montarem. Porém,
peço-vos, bem como ao pai da minha querida senhora, para que se certifiquem de que esses malvados cavaleiros não capturem a bela Marian, vingando-se assim na sua
pessoa. Pela parte que me toca, farei tudo o que estiver ao meu alcance para a proteger.
- Acabaste de dizer uma grande verdade - disse Sir Richard. - Não tinha pensado nisso, mas de certeza que Isenbart de Belame e Niger le Grym vão querer ficar
com a nossa bela senhora como prêmio. Que Deus e a Virgem nos protejam a todos dos seus desejos perversos.
- Ámen! - disse Robin. - E, entretanto, tratarei de manter o Castelo de Wrangby e os seus infames proprietários debaixo de olho.

Nos três dias que se seguiram, Robin e Marian, na companhia de Sir Richard e Lady Alice, a esposa, divertiram-se imenso, indo caçar aos campos com os falcões
ou caçando javalis na floresta. À noite, no salão, jogavam à cabra-cega, dançavam ao som da viola, jogavam às damas ou ao xadrez, ou escutavam os menestréis cantarem-lhes
canções ou contarem-lhes as histórias do rei Artur, de Rolando e de Olivier, o seu amigo querido, ou, então, de Ogier, o dinamarquês, ou de Graelent, e de como todos
eles haviam desaparecido no reino da Rainha das Fadas.
Porém, no quarto dia, Robin embrenhou-se na floresta, disposto a matar passarinhos e, mal se sentou numa elevação, escutou um ruído semelhante às pancadas
de um pica-pau. Erguendo os olhos para os ramos de um olmo-escocês, viu o rosto de um homem pequenino a espreitar por entre as folhas.
- Desce, Ket, o Duende - pediu ele -, e conta-me as novidades, rapaz.
No momento seguinte, o homenzinho descera da árvore e estava frente a Robin. Ket não era mais alto do que um rapaz de catorze anos, de estatura mediana,
mas, apesar disso, tratava-se de um homem feito, de peito largo, pernas e braços compridos e peludos, e com músculos que lembravam nervos de ferro. O cabelo era
preto, espesso e encaracolado. Estava descalço, e as únicas roupas que vestia eram um casaco de couro grosseiro, apertado à frente, e uns calções de pele de corça
que lhe chegavam aos joelhos. O rosto, largo e bem disposto, iluminou-se num sorriso quando o homem retribuiu o olhar amável de Robin, e os olhos, vivos e brilhantes,
se bem que tão doces quanto os de uma cria de veado, cravaram-se no rosto do outro com uma expressão de respeito que chegava a raiar a reverência.
- Seguiste os homens que fugiam? Para onde é que eles foram? - inquiriu Robin.
- Seguiram pela esquerda e atravessaram a floresta rumo ao norte, até que chegaram ao regato - disse Ket. - Atravessaram-no a vau nos Stakes e cruzaram a
charneca até à zona de Ridgeway. Depois, seguiram pela floresta de Hag, atravessaram Thicket Hollow, e foi tudo o que precisei para saber para onde eles se dirigiam:
o Forte do Mal, passando por Hoar Tree e pela pedra Cwelm, indo além de Gallows Hill e pelo Mark Oak, até acabarem por chegar a Dead Mans Hill. Depois, só tiveram
de percorrer a vereda de Red Stones. Passei a noite de vigia em Mark Oak e, ao nascer do dia, vi três cavaleiros abandonarem o castelo. Um deles meteu-se pela direita
e seguiu para sul, e, com ele, montados nos seus cavalos, estavam dois dos tratantes que eu seguira. Dois deles dirigiram-se para oriente, e foi a estes que segui.
Junto com eles seguiam dez pajens a cavalo. Atravessaram a floresta de Barnisdale e acabei por deixá-los na estrada que segue para Doncaster.
- Agiste bem, Ket - retorquiu Robin. - E depois?
- Fui até tua casa, Outwoods, seguindo pela floresta de Barnisdale - respondeu o outro. - Acabei por encontrar o teu homem, o Scadlock, no Old Nicks Piece,
e ele estava bastante triste, tudo porque disse ter visto Guy de Gisborne e dois monges a atravessarem a cavalo as tuas terras, o que acontecera no dia anterior.
Não paravam de falar e apontavam para os teus campos. E ele está convencido de que a maldição daquele judas, Sir Guy, está agora na tua terra, e que a ruína não
tardará a bater-te à porta. Era isso que o deixava triste e ansioso, por ver a tua cara.
Robin deixou-se ficar calado durante algum tempo, mergulhado em pensamentos.
- Não sabes de mais nada? E quanto ao Scarlet e ao rapazinho?
- Não os vi, mas, à noite, esgueirei-me até à aldeia e escondi-me junto da cabana com o arbusto em frente à porta (a taberna da aldeia), encostei o ouvido
a uma fresta e pus-me à escuta. Como havia muita mágoa e raiva nas bocas dos servos, acabaram por beber pouco.
- E que disseram eles? - inquiriu Robin. - Quantos é que calculas que lá estavam?
Ket ergueu ambas as mãos e mostrou dez dedos, depois, baixou uma e mostrou cinco dedos, juntando-lhe em seguida outros dois.
- E os homens eram velhos ou novos?
- Como a maior parte só tinha palavras inflamadas, acho que eram novos - prosseguiu Ket. - Aqueles com as costas doridas eram os que falavam com maior amargura.
Naquele dia, parece que os espancamentos junto ao poste tinham sido cruéis. Um deles ainda estava no fosso, demasiado dorido para se mexer. Nesse dia, um outro homem
fora marcado com um ferro em brasa porque o administrador garantira que ele era um ladrão... e era este homem quem mais inflamado se mostrava. Muitos disseram ser
as suas vidas demasiado amargas para poderem ser suportadas. O trabalho que eram obrigados a fazer na terra do senhor era demasiado para eles e, como os seus próprios
xxcampos não eram cultivados, acabavam por passar fome. Alguns garantiram que se escapariam para a cidade, onde, caso pudessem permanecer escondidos durante um ano
e um dia, acabariam por se tornar homens livres. Outros ainda disseram que as epidemias e a peste eram tão fáceis de apanhar tanto na aldeia quanto na cidade, daí
que preferissem ir viver para a floresta e alimentarem-se de veados reais.
- E mesmo assim! - comentou Robin com uma voz amarga. - Hoje em dia, os pobres não têm amigos. Os filhos do rei rebelam-se e combatem o pai, os senhores
e os monges lutam para conquistar o poder e mais terras, e esmagam os rostos dos servos de encontro ao solo que eles mesmos amanham, e espremem-nos para que eles
paguem rendas e pratiquem serviços que vão contra as tradições. Ket! - gritou ele, ao mesmo tempo que se levantava. - Vou para casa hoje mesmo. Vai juntar-te ao
Hob, o teu irmão, e, assim que me despeça dos meus amigos, irei juntar-me a vocês.
E, uma vez pronunciadas estas palavras, Robin pegou nas aves que caçara e regressou ao castelo de Sir Richard, disposto a despedir-se de Marian. Quanto a
Ket, o Duende, deslizou por entre as árvores e desapareceu.
Nesse dia, quando as sombras das árvores se espalhavam pelos campos, anunciando o pôr do Sol, e quando no calor e sossego do dia que findava parecia não
haver lugar naquele mundo calmo para outra coisa a não ser pensamentos felizes, Robin, caminhando com passos suaves e velozes, surgiu na orla da floresta de Barnisdale,
junto ao ponto onde ela se juntava às suas terras.
A parte ocupada pela floresta situava-se num ponto elevado, o qual descia numa inclinação ligeira até se unir aos campos que lhe pertenciam. Deitou um olhar
sincero e demorado à sua própria casa, e deixou-o seguir até às cabanas dos cinco servos que pertenciam à propriedade. A casa, bem como o pátio situado à sua volta,
tinha um ar pacato, tal como era próprio da época. Talvez Scadlock, o seu beleguim, estivesse lá dentro, mas os seus servos deviam estar ainda a trabalhar nos campos.
Foi então que lhe ocorreu a sensação de que talvez aquilo estivesse calmo de mais. Não se viam as crianças a correr e a brincar no espaço poeirento frente às cabanas
dos servos, e a verdade é que as portas das cabanas estavam fechadas e bem fechadas. Ali não havia sinais de vida.
Estava prestes a seguir o seu caminho por sob a copa das árvores, no intuito de alcançar o carreiro que o levaria até à porta de casa, quando viu uma figura
feminina, a mulher de um servo, esgueirar-se por entre a porta da sua cabana e seguir sorrateiramente ao longo da vedação. Foi no extremo desta que se deixou ficar,
e era como se estivesse à espera de alguém que viesse a atravessar os campos, mesmo no lado oposto da casa. De súbito, Robin viu-a agitar ambas as mãos, tal como
se estivesse a fazer sinais a alguém para que não se aproximasse. Deixou-se ficar assim durante muito tempo, mas, do ponto em que se encontrava, Robin não conseguia
ver a quem é que ela estava a fazer sinais.
Ao fim de algum tempo, depois de, pelo menos aparentemente, ter sido bem sucedida, regressou a casa com todas as cautelas, fechando a porta sem fazer barulho.
Alguma coisa estava mal. Robin não tinha dúvidas a esse respeito. Lançando olhares desconfiados nesta e naquela direção, embrenhou-se entre as árvores e
foi com muita cautela que se aproximou do carreiro. De súbito, quando espreitou por detrás de uma árvore, escondeu-se de novo. Junto à árvore seguinte, cujos ramos
vastos se estendiam sobre o caminho, encontrava-se um soldado.
Escondido atrás do tronco da faia, Robin observou atentamente o homem, cujas costas se encontravam viradas para ele. Sem dúvida que fora ali colocado para
vigiar o caminho da floresta. Do ponto em que se encontrava, o soldado podia ver a entrada da casa, e o que ali estava a suceder parecia atrair-lhe as atenções.
Por vezes, deixava escapar uma gargalhada ou um grunhido de satisfação.
Os olhos de Robin endureceram. Sabia que o homem, vestido com uma túnica de tecido vermelho e usando um elmo, era membro da guarda armada do abade de Santa
Maria, senhor da propriedade, guarda esta cujo objetivo era aumentar a dignidade do abade e o seu séquito de lacaios preguiçosos e opressivos. Com todas as cautelas,
Robin esgueirou-se entre duas árvores, movendo-se de forma a fazer com que o tronco contra o qual o homem se encostava o ocultasse.
Com a agilidade e a suavidade de um gato bravo, Robin arranjou maneira de fazer com que o tronco da árvore fosse a única coisa a separá-lo do soldado desprevenido.
Endireitou-se, mas, quando o fez, a sua perna partiu um ramo que ressaltava da árvore. Ao escutar o barulho, o homem deu meia volta, mas, no instante seguinte, os
dedos de Robin cravaram-se-lhe no pescoço, e, face àquele abraço férreo, o soldado revelou-se impotente.
Este acabou por desfalecer e, tendo-o deitado, Robin de pronto lhe amarrou as mãos e os pés, colocando-lhe uma mordaça grosseira na boca, isto para que,
quando ele voltasse a si, o que não demoraria muito a suceder, não estivesse em condições de lhe fazer nada de mal.
Quando Robin se virou no intuito de descobrir o que tanto chamara as atenções do outro, um gemido escapou-se-lhe dos lábios. Amarrados a postes colocados
frente à casa, estavam Scadlock e três dos pobres servos. Tinham as costas nuas e, frente a cada um deles, via-se um soldado corpulento segurando um chicote comprido,
repleto de nós.
Um pouco afastado do grupo, estava um outro cavaleiro e o respectivo chefe, Hubert de Lynn, alguém que, devido à sua insolência e crueldade brutais, Robin
há muito detestava. No ar calmo da tarde, os ouvidos apurados de Robin conseguiram distinguir as gargalhadas soltadas por Hubert e pelos seus homens. Por fim, quando
tudo parecia pronto, escutou-se a voz do chefe:
- Primeiro, cem chicotadas para estes cães, que se preparavam para resistir aos homens daquele que é o seu senhor. Depois, uma flecha para cada um. E agora...
comecem!
Quase como se tivessem sido levantados por um único homem, os quatro chicotes ergueram-se nos ares e foram abater-se naquelas costas nuas que, desde que
Robin era o seu amo, nunca haviam conhecido a crueldade do chicote.
Robin, oculto pelos ramos da faia, pegou no arco e nas flechas compridas que usava para matar veados, coisas estas que colocara no chão quando se preparara
para saltar sobre o homem à entrada do carreiro. Experimentou a corda do arco, certificou-se de que este estava em condições de disparar e colocou as flechas uma
a uma à sua frente.
De seguida, com um joelho pousado no solo, murmurou uma prece dirigida a Nossa Senhora.
- A luz não é boa, doce e bela mãe de Cristo - disse ele -, mas conduz as minhas flechas até aos corações maldosos destes homens. São seis as flechas que
tenho, e, levado pela compaixão que sinto pela minha pobre gente, começarei por matar aquele que possui o coração mais amargo, Hubert de Lynn, e só depois aqueles
quatro com os chicotes. Escuta-me, ó minha doce Senhora! Fá-lo em lembrança do teu Filho, que se mostrou tão implacável face ao mal e tão cheio de compaixão pelos
fracos. Ámen!
De seguida, pegou na primeira haste e apontou-a ao peito de Sir Hubert. Soltando o seu zumbido profundo, como se exultasse, a enorme flecha voou pelos ares
descrevendo a devida trajetória. Quando se encontrava a meio caminho, uma outra, emitindo um som igualmente triunfante, surgiu a assobiar atrás de si.
Soltando um grito, Hubert afundou-se no chão, apoiado num joelho, a haste a sair-lhe do peito. O homem ainda se esforçou por a arrancar, mas a sua vida estava
prestes a desvanecer-se. Acabou por cair para o lado, morto. Nesse mesmo instante, era como se o local estivesse recheado de abelhas. Primeiro, um dos homens deixou
cair o chicote, fez girar as mãos em torno da flecha que se lhe cravara no flanco e depois caiu. Um outro deixou-se cair sem soltar um murmúrio. Outro, ainda, saltou
pelos ares à semelhança de um coelho. Quanto ao último, com um braço preso ao flanco por uma flecha, pôs-se a correr pelo campo, balançando de um lado para o outro,
até que caiu num rego e não se voltou a mexer.
Quatro deles não sofreram um único arranhão, mas, sentindo-se de tal forma consternados, separaram-se e fugiram, correndo em todas as direções. Um deles
estava tão entontecido, que se pôs a subir o carreiro ao cimo do qual Robin se encontrava ajoelhado, terrível na sua fúria, a última flecha presa à corda do arco.
O homem corria de braços abertos, o terror refletido nos olhos, sem pensar sequer para onde se estava a dirigir.
- Mestre, quer sejas homem ou demônio, não dispares! As tuas flechas enfeitiçadas falam quando atravessam o ar. Rendo-me! Rendo-me!
E o homem deixou-se cair frente a Robin, gritando:
- Serei um dos teus homens, senhor. Ainda há dois dias era um homem honesto, filho de um homem honesto, e o meu coração revoltava-se contra o mal que eu
mesmo fazia.
Robin pôs-se de pé e o homem agarrou-lhe as mãos e colocou a cabeça entre elas, fazendo-o como prova de fidelidade.
- Vê se te manténs fiel à tua palavra - disse Robin com dureza. - Há quanto tempo é que andavas com Hubert e os seus homens?
- Há apenas dois dias, senhor - respondeu o outro, cujos olhos simples e honestos não estavam agora tão abertos de terror. - Chamo-me Dudda, ou Dodd, e sou
filho de Alstan, um bom servo de Blythe. Acabei por fugir para a floresta devido à frequência com que o meu mestre me batia sem razão. Mas sentia fome e, como precisava
de comer, saí de lá e fui sentar-me à porta da abadia a pedir pão. Eles alimentaram-me e, ao verem que os meus membros eram fortes, disseram que eu podia pegar em
armas. E, durante algum tempo, a verdade é que me senti feliz. Contudo, os atos cruéis que eles se gabavam de ter cometido contra servos pobres como eu acabaram
por me levar a odiá-los.
- Levanta-te, Dodd - disse Robin. - E, de hoje em diante, lembra-te do teu sangue de servo e nada faças contra os teus iguais. Vem comigo.
Robin dirigiu-se para o pátio da sua casa, libertou o pobre Scadlock e os outros homens, e entrou em casa em busca de unguentos, com os quais esfregou as
costas feridas e doridas dos outros.
- Foi ontem, mestre - disse Scadlock, respondendo à pergunta de Robin sobre o que acontecera -, que eles te declararam proscrito a partir da cruz de Pontefract,
e esta manhã Hubert de Lynn veio tomar posse das tuas terras em nome do abade. Nós, os que aqui estamos, Ard, Godard, Dunn e o John, não conseguimos suportar semelhante
injustiça e, como pobres idiotas, tentamos mandá-los embora usando paus e forquilhas.
- Oh, meus pobres rapazes, tontos e fiéis, sem dúvida que esse ato vos teria custado a vida! - disse Robin. - Mas, agora, entrem e comam qualquer coisa,
depois trataremos de discutir quais as medidas a tomar.
O dia chegara ao fim e estava escuro. Foi chamada uma mulher das cabanas dos servos, acendeu-se um bom lume numa das salas de grandes dimensões que constituíam
a casa de Robin e, passado pouco tempo, esvaziavam-se tigelas de comida quente e boa, e os humores lá se animaram. Nem mesmo o soldado capturado foi esquecido. Também
ele foi levado para casa e alimentado, e alojado num anexo, para que aí pudesse passar a noite em segurança.
- Mestre - começou Scadlock, quando, junto com Robin, regressavam os dois a casa depois de terem cumprido a tarefa de alojar aquela espécie de prisioneiro
-, que estás a pensar fazer? Será que não te resta outra hipótese para além das florestas e da vida desprovida de lar típica de um fora-da-lei?
- Não há outra saída. - disse Robin, soltando uma gargalhada dura. - E ficarei bastante satisfeito por, uma vez na floresta, estar em condições de fazer
os possíveis para fazer sentir aos ricos e aos poderosos uma amostra do tratamento que eles dão aos pobres que governam.
- Eu irei contigo, mestre, e será com o coração a transbordar de alegria que o farei - disse Scadlock. - E os outros farão o mesmo, já que, depois deste
dia, não poderão esperar qualquer clemência da parte de Guy de Gisborne.
Subitamente, elevando-se dos campos que se estendiam em direção à aldeia, chegou-lhes aos ouvidos o som de muitas vozes, e, depois de prestarem um pouco
mais de atenção, foi-lhes possível ouvir o ruído de passos.
- É Guy de Gisborne e os seus soldados! - exclamou Scadlock. - Mestre, temos de fugir para a floresta imediatamente!
- Não, não. - contrapôs Robin. - Achas que Guy de Gisborne apareceria por aqui a cacarejar com o seu bando de gansos, para me avisar que chegara? São os
servos da propriedade, embora não faça a mínima ideia do que os levará a andar por aí a estas horas tardias. Contudo, até aposto que amanhã, quando o administrador
vier a saber o que aconteceu, vão pagar bem caro pelos seus atos.
- Não, mestre - disse uma voz elevando-se do escuro. - Se consentir em ajudar-nos, então, esse amanhã não chegará.
Era a voz de um dos servos mais velhos, que se colocara frente à multidão. Tratava-se de Will de Stutele, mais conhecido por Will, o Arqueiro, um homem calmo
e pensativo de que Robin sempre gostara. No seu tempo, exercera as funções de bailio, ou chefe da aldeia.
- Will - começou Robin -, que querem eles de mim? Para onde os deverei guiar?
- Consinta em escutá-los, mestre Robin - pediu o outro. - Têm os corações a transbordar, mas os estômagos estão vazios de tanto trabalharem durante o Inverno
e o Verão. Primeiro, foram as colheitas que falharam, depois, um Inverno duro, um Verão sem alimentos, e um amo que não pára de os sugar. Digo-lhe que, velho como
estou, já não aguento mais.
- Ora bem, Will, cá estão eles - retorquiu Robin, ao ver uma multidão de formas escuras entrar no pátio. - Ora bem, rapazes, que querem de mim? - gritou
ele.
- Vamos fugir para a floresta, mestre - gritaram alguns.
- Estamos cansados e fartos da vida dura que levamos, e já não aguentamos mais - gritaram outros.
Visto não estarem habituados a falar muito, não conseguiram continuar a explicar os seus sentimentos e puseram-se à espera, na esperança de que aquele que
era muito mais sábio, embora tão amável, pudesse compreender toda a mágoa que lhes inundava o coração.
- Bom - disse Robin com toda a sinceridade -, caso fujam para a floresta, que acontecerá às vossas mulheres e aos vossos filhos?
- Não lhes acontecerá nada de mal - responderam. - A nossa partida só os tornará mais valiosos aos olhos do nosso amo e do administrador. Eles não nos pertencem.
São propriedade do amo de corpo e alma. Se partirmos, haverá mais comida para eles.
Tal como Robin bem sabia, havia alguma verdade nestas palavras. O proprietário e o administrador não fariam sentir a sua vingança nas mulheres e nos filhos
dos servos que fugissem. O trabalho nas terras tinha de prosseguir e as mulheres e as crianças ajudavam nas tarefas. Algumas das mulheres mais velhas tinham mesmo
alguns talhões, os quais eram amanhados pelos filhos ou pelos homens mais pobres da aldeia, que não possuíam terras, pois, para ganharem o sustento diário, se sentiam
felizes por trabalhar para quem quer que lhes desse comer e os abrigasse.
- Quantos é que vocês são? - quis saber Robin. - Há homens de idade convosco?
- Ao todo, somos trinta. A maior parte de nós é jovem e mais sensata do que os nossos pais - resmungou um dos homens.
- Ou, então, é com maior facilidade que perdemos a cabeça nos tempos que correm - acrescentou outro.
- Nesse caso, isso quer dizer que estão dispostos a deixar cair nos ombros dos velhos, das mulheres e das crianças o trabalho dos campos e os serviços que
vos compete prestar aos vossos amos? - inquiriu Robin, que se queria certificar de que, caso estes homens rompessem com o proprietário, o faziam conscientes de todas
as consequências dos seus atos. - Vamos lá, rapazes! Será que é próprio de um homem salvar a pele e deixar as canseiras do trabalho cair nas costas daqueles menos
aptos a suportar o calor do meio-dia e a chuva que cai no Inverno?
Muitos dos que ali estavam haviam sido influenciados pelas palavras dos homens com quem haviam estado sentados na taberna e, agora, no escuro da noite, expostos
à brisa fria, a sua coragem começava a evaporar-se e não paravam de olhar de um lado para o outro, como se quisessem descobrir uma maneira de regressar às suas cabanas,
onde dormiam as mulheres e os filhos.
No entanto, outros, os que eram feitos com um material mais forte ou, então, porque tivessem sofrido mais e sentido as coisas com maior profundidade, não
estavam dispostos a deixar-se demover. Alguns disseram que não eram casados, outros que já não conseguiam suportar o regime duro que lhes era imposto por Guy de
Gisborne.
De súbito, chegou-lhes aos ouvidos o som de passos ligeiros que corriam na direção onde se encontravam e, sustendo a respiração, todos se puseram à escuta.
Aos menos corajosos, bastou-lhes isto para que se afastassem do grupo e desaparecessem.
Um homenzinho saltou a vedação e quase caiu aos pés de Robin.
- Está na hora de pôr fim à conversa - disse ele, arquejando, a voz estranhamente embargada.
- É Much, o filho do moleiro! - disseram todos, ficando depois à espera. Sentiam que acontecera algo de terrível, uma vez que aquele era um homenzinho corajoso,
que não se impressionava com facilidade.
- É tempo de pararem com as vossas conspirações, rapazes - teimou o outro, com uma curiosa quebra na voz. - Vocês não passam de servos e não valem mais do
que o gado que limpam e os porcos cinzentos que alimentam. Nos pergaminhos dos advogados estão registrados junto com os arados, os enxadões, as carroças e as cabanas
onde se deitam, e podem ser vendidos se o amo assim o desejar!
A paixão com que falava era tão grande, aquilo que sabia comovia-o de tal maneira, que havia lágrimas na sua voz.
- Digo-vos que devem voltar para as cabanas onde vivem - continuou ele - e nada de fingirem que têm alguma coisa a dizer no que respeita ao vosso destino.
O amo está farto de servos rebeldes, e amanhã... amanhã vai vender-vos e tirar-vos das terras que lhe pertencem!
Surpreendidos e furiosos, os homens que estavam à sua frente sustiveram a respiração.
- Vender-nos?! - exclamaram. - Ele vai vender-nos?
- Sim, vai vender cerca de dez. Já está escrito no pergaminho que ele vos vai entregar ao lorde Arnald de Shotley Hawe.
- Mas esse sujeito é o diabo em pessoa! - exclamou Robin. - É um inimigo de Deus! Um flagelador da pele dos camponeses pobres! Justos céus, rapazes, vender-vos!
Como isso é vil!
Um enorme rugido, semelhante ao de uma manada de touros enraivecidos, ergueu-se das gargantas dos servos. Oh, era verdade que, em termos legais, os servos
pobres podiam ser vendidos como gado, mas, naquela propriedade, nunca tal sucedera. Eram-lhes concedidos pequenos talhões pelos serviços prestados e dizia a tradição
dever tudo ser feito como sempre se fizera naquela propriedade.
Porém, era-lhes agora dito que deviam ser arrancados à terra em que eles e os seus viviam há várias gerações, para depois serem vendidos no mercado como
se fossem gado! Oh, tal seria insuportável!
- Homem - disse um deles -, onde é que foste buscar esta terrível notícia?
- Contou-me o Rafe, um dos homens do administrador de lorde Arnald - retorquiu Much. - Encontrei-o em Blythe, na taberna, e ele disse-me a rir que Guy de
Gisborne contara ao administrador que nós éramos um bando de patifes indisciplinados e com mau feitio, e que domar-nos daria um grande prazer ao seu senhor.
- Estás a dizer que vão vender dez de entre nós? - inquiriu uma voz tímida vinda dos fundos. - E sabes quem é que eles são?
- E que importância tem isso? - rugiu um dos homens. - Trata-se de algo que diz respeito a todos. Pela parte que me toca, juro pela Cruz Sagrada que fugirei
para a floresta, mas, antes disso, deixarei a minha marca no administrador.
- O Rafe não sabia os nomes - disse Much. - Mas, tal como o Hugh de Forde disse, isso também não interessa. São dez de vocês. São aqueles que pronunciaram
as palavras mais duras contra Guy de Gisborne e que sentiram com maior frequência o chicote nas costas quando os amarraram ao poste.
- Quantos de nós estão aqui? - quis saber Will, o Arqueiro, com voz dura.
- Éramos trinta ainda há pouco - respondeu um deles com uma gargalhada amarga. - Mas agora, e contando com o Much, não passamos dos catorze.
- Onde é que está Scarlet e o rapazinho? - inquiriu Robin. Apercebeu-se subitamente de que o amigo não se encontrava entre os outros. No entanto, Scarlet
fora sempre aquele que com maior energia se opusera às exigências injustas e às formas de opressão exercidas pelo administrador.
- Will Scarlet está no fosso! - exclamou Much. - Deram-lhe cem chicotadas e está à beira da morte. Vão levá-lo amanhã para Doncaster, onde funciona um dos
tribunais do rei, e será aí que lhe cortarão a mão direita como castigo por ter morto um veado real.
- Virgem Santíssima! - gritou Robin. - Isso não pode acontecer! Eu mesmo o irei tirar do fosso esta noite.
- Levantou-se de um salto, mas muitas mãos o retiveram.
- Mestre, nós vamos contigo! - gritaram os outros.
- Repara numa coisa, mestre Robin - disse Will, o Arqueiro, e a sua voz era suave, embora nela houvesse uma nota de aço. - Somos catorze homens cansados
do mal que sofremos todos os dias. Se nada fizermos contra o tirano que nos oprime, nunca deixaremos de ser escravos. Por mim, prefiro morrer à fome que continuar
a sofrer desta maneira. Que têm vocês a dizer a este respeito, rapazes?
- É isso mesmo! É isso mesmo! Vamos para a floresta! - gritaram os outros. - Quer o mestre Robin nos lidere, quer não.
Contudo, este não demorou muito a decidir-se.
- Rapazes - começou ele em voz alta -, irei convosco. A verdade é que pratiquei um ato que já devia ter praticado há muito, e agora sou não apenas um proscrito
como um homem a abater. Os soldados do abade vieram até aqui quando eu não estava e reclamaram as minhas terras. Scadlock e os meus bons rapazes resistiram-lhes
e arriscaram-se a ser mortos por isso. Usando o meu bom arco, matei cinco dos esbirros do senhor, e os corpos deles estão aí, numa fila, junto a esse muro.
- Vi-os quando vinha a entrar - disse Will, o Arqueiro - e foi um espetáculo a que valeu a pena assistir. Caso não tivesses morto Hubert de Lynn, eu tinha
comigo uma flecha abençoada por um santo eremita, flecha essa que se destinava ao seu coração perverso, tudo devido ao mal que ele causou ao meu querido, querido
filho, o Christopher. E, agora, rapazes, que cada um levante a mão e jure ser fiel até à morte ao nosso valente chefe, Robert de Locksley.
Ergueram todos as mãos e o juramento foi pronunciado em tons solenes.
- E agora, rapaziada - disse Robin -, venham daí! Depressa!
Passados alguns instantes, o pátio estava vazio e as formas escuras de Robin e dos seus homens podiam ser vistas a avançar pelos campos, debaixo de um céu
repleto de estrelas.
Nem um só homem olhou para trás quando atravessaram a floresta de Fangthief e foram dar à charneca que ficava atrás da aldeia. Do ponto onde se encontravam,
era-lhes possível distinguir um pequeno grupo de cabanas dispostas junto à igreja, as águas calmas do rio brilhando um pouco mais além e o rugido da água a correr
por entre as pás da roda do moinho chegava-lhes aos ouvidos como que vindo de muito longe.
Naqueles dias, sempre que um servo erguia as costas curvadas dos sulcos feitos pela charrua, e os seus olhos, doridos devido ao clarão do sol ou ao cair
da chuva, procuravam a cabana a que ele chamava lar em busca de calor e de conforto, vinha-lhe igualmente ao espírito que o seu amo tinha meios de punir imediatamente
toda e qualquer ofensa que ele pudesse cometer. Pois, erguida numa colina situada o mais perto possível das cabanas dos servos, via-se a forca e junto desta o fosso.
A Forca ou a Colina da Forca continua a ser o nome de muitas encostas verdes que se erguem junto de belas aldeias, embora a terrível árvore que deu semelhante fruto
há muito que tenha apodrecido ou sido derrubada. Quanto aos cepos, eram colocados na rua que atravessava a aldeia, isto para que aquele que ali fosse amarrado não
escapasse ao desprezo, à troça, ou até mesmo aos insultos daqueles que o conheciam.
Era assim que as coisas se passavam na aldeia de Birkencar. No descampado que se estendia para norte ficavam a forca e o fosso, a apenas algumas jardas de
distância da mansão senhorial, em cujo gabinete Guy de Gisborne se encarregava de ditar aquilo a que gostava de chamar "justiça". De momento, a mansão estava escura
e silenciosa. Sem dúvida que o seu proprietário dormia a bom dormir, satisfeito com o negócio que fizera e que lhe permitia ver-se livre dos seus servos mais rebeldes.
Amortecidos pela erva espessa que cobria os pastos, os passos de Robin e dos seus companheiros não faziam qualquer ruído e, uma vez chegados perto do local
onde a forca se erguia, Robin pediu aos outros que esperassem até que ele lhes fizesse um sinal. Então, movendo-se tão silenciosamente como se fosse um fantasma,
Robin aproximou-se da prisão construída num subterrâneo, um local onde os servos eram confinados enquanto esperavam por uma pena ainda mais dura do que aquela que
o seu amo lhes podia aplicar.
Entrava-se na prisão através de uma porta situada ao fundo de uma fila de degraus escavados no solo. Robin esgueirou-se até ao degrau de cima e olhou para
baixo. Não estava à espera de encontrar qualquer guarda junto à porta, já que não passaria pela cabeça do administrador que alguém pudesse ter a coragem suficiente
para tentar salvar fosse quem fosse que se encontrasse naquela prisão.
À medida que Robin examinava atentamente o buraco escuro que se abria a seus pés, buraco este que a luz das estrelas mal conseguia iluminar, surpreendeu-o
ver uma pequena figura agachada junto à porta. Escutou um gemido vindo da prisão, e a forma que se encontrava a seus pés pareceu chegar-se ainda mais para a porta.
- Oh, tio - disse uma voz suave, que ele reconheceu como pertencendo ao pequeno Gilbert da Mão Branca -, julgava-te adormecido e não sabia que as tuas feridas
te incomodavam tanto. Foi por isso que me mantive sossegado e não chorei. Oh, se ao menos aqui estivesse o mestre Robin!
- Rapazinho, tens de ir para casa - disse a voz enfraquecida de Scarlet elevando-se da prisão. - Se Guy ou os homens dele te apanham aqui, batem-te. E eu
não suportaria uma coisa dessas. Rapazinho, meu querido rapazinho, sai daqui e esconde-te num outro lugar qualquer.
- Oh, tio Will, não posso - choramingou o garoto. - Ficaria com o coração partido caso te deixasse aqui... Pensar que ficavas para aí, deitado no escuro,
com as costas feridas e a doer, e que não havia ninguém por perto para te dizer uma palavra simpática. Tio, esta noite tenho rezado tanto por ti!... Estou certo
de que já não falta muito para que nos venham ajudar. De certeza que a Virgem, tão querida e tão doce, e o bondoso São Cristóvão, não fariam orelhas moucas às orações
de um pobre rapaz, pois não?
- Mas, rapazinho, tu também estás doente - ouviu-se Scarlet dizer. - Se aqui ficares toda a noite, vais piorar muito e...
- Oh, e isso que importa se te levarem para longe de mim? - perguntou o garoto, a chorar, toda a sua coragem deitada por terra. Chorava agora amargamente,
ao mesmo tempo que empurrava a porta com as mãos. - Se eles te matarem, então, arranjarei maneira de me matarem também a mim, já que sem ti, querido, querido tio
Will, a minha vida não terá qualquer sentido!
- Olá, garoto, a que propósito é que vem a ser esta barulheira?! - inquiriu Robin numa voz firme, ao mesmo tempo que se endireitava e começava a descer os
degraus.
Meio aterrorizado, o pequeno Gilbert pôs-se em pé de um salto. Depois, ao compreender de quem se tratava, correu em direção a Robin e, agarrando-lhe as mãos,
cobriu-as de beijos. De seguida, regressando a correr para junto da porta, encostou os lábios a uma fenda e, deliciado, gritou:
- Eu bem disse! Eu bem disse! Deus, os Seus Santos e a Virgem, todos me ouviram. Chegou Robin para te tirar daí!
- Bateram-te muito, Will? - perguntou Robin.
- Mesmo muito, Robin, meu bom amigo - respondeu o outro, soltando uma tênue gargalhada. - Mais do que uma dona de casa a matar o seu porquinho.
- Fica quieto um bocado, rapaz - retorquiu Robin -, e eu verei se o machado pode desfazer aquilo que o machado fez.
E, com os seus olhos perspicazes, pôs-se a examinar os grampos por onde passava o cadeado. Então, com duas pancadas secas desferidas com o machado e o auxílio
da adaga, partiu o cadeado e empurrou a porta, abrindo-a. O rapazinho de pronto se precipitou lá para dentro e, com uma faca, pôs-se a cortar cuidadosamente as cordas
que manietavam o tio.
Robin emitiu um pio semelhante ao de uma tarambola, e Scadlock, acompanhado por dois dos seus servos, correram para ele.
- Depressa, rapazes - pediu o homem. - Tragam Will Scarlet cá para fora. Temos de o levar para Outwoods, lavá-lo e tratar-lhe das feridas.
Pouco depois, com o máximo das cautelas, trouxeram o pobre Scarlet para fora da prisão, deitando-o na erva. Robin e ele trocaram um aperto de mão silencioso,
embora repleto de significado, isto enquanto o pequeno Gilbert, os olhos a brilhar, (se bem que a gratidão lhe tivesse emudecido os lábios), não parava de beijar
a mão de Robin.
- Onde é que estão os outros? - perguntou Robin, dirigindo-se a Scadlock, no momento em que ambos apoiavam Scarlet nos ombros e começavam a descer a encosta.
- Não sei - respondeu Scadlock. - Quando o mestre se afastou, puseram-se a bichanar entre eles e, de repente, quando olhei em volta, vi que tinham desaparecido.
Pensei que talvez um feiticeiro os tivesse feito desaparecer, mas acabei por ver alguns à luz das estrelas, enquanto seguiam a correr pela colina.
- Para onde é que iam? - quis saber Robin, uma suspeita a formar-se-lhe na mente.
- Rumo à mansão - retorquiu o outro.
- Segue imediatamente para Outwoods - ordenou Robin. - Encarrega-te de cuidar do Scarlet e espera lá por mim.
Com passadas rápidas, Robin pôs-se a caminho, enquanto os outros, carregados com o seu fardo, se dirigiam para a floresta de Fangthief. Quando chegou ao
topo da colina, Robin viu a mansão erguer-se à sua frente, uma forma escura recortando-se contra as estrelas. Precipitou-se para o declive alto que a rodeava e não
viu ninguém. De seguida, deu com o enorme portão, que estava aberto, e entrou no pátio e deu alguns passos ao longo do caminho espaçoso que seguia até à porta.
Subitamente, uma forma surgiu à sua frente. Tratava-se de Much, o filho do moleiro.
- Oh, é o mestre Robin - disse ele em voz baixa, como se estivesse a falar com outras pessoas. Pouco depois, vindos por detrás de umas árvores, surgiram
Will Stuteley e Kit, o Ferreiro.
- Que se passa, rapazes? - quis saber Robin. - Estão a pensar em entrar à força e despachar o Guy? Aviso-vos de que esta casa pode aguentar um cerco montado
por um exército bem armado, e vocês outras armas não têm para além de paus e de facas.
- Mestre Robin - disse Will, o Arqueiro -, gostava muito que se mantivesse longe disto e que não fizesse nada no que respeita a este caso. Trata-se de um
assunto que deve ser resolvido pelos servos. Temos o direito de o fazer. Amanhã, quando estivermos na floresta, faremos o que nos mandar e não receberemos ordens
de mais ninguém.
De repente, ergueu-se uma chama num monte formado por arbustos secos, que estavam empilhados contra um dos postes da casa. Perto daquele via-se um outro
montículo, e outro ainda. O sol brilhara furiosamente durante as duas últimas semanas e estava tudo muito seco. Visto ser feita quase que exclusivamente de madeira,
a casa seria uma presa fácil para as chamas.
- Mas ao menos deixem sair as mulheres - pediu Robin. - Há aquela senhora de idade, Makin, e a criada... Será que já não se importam de queimar mulheres
inocentes?
Nesse momento, já os habitantes da casa se haviam apercebido do perigo a que estavam expostos. Surgiu um rosto à janela. Era Guy. Enquanto ele espreitava,
uma pedra bateu no caixilho, não lhe acertando apenas porque o homem recuou.
Enormes montículos feitos de arbustos secos tinham sido colocados em torno da casa e, em muitos pontos, aqueles ardiam furiosamente, tendo as placas e as
paredes pegado fogo, ardendo e crepitando com convicção.
- Guy de Gisborne! - chamou a voz forte de Will, o Arqueiro. - Os teus dias estão contados. Estás encurralado, como se fosses uma raposa no covil. No entanto,
não temos vontade nenhuma de queimar as mulheres. Deixa-as sair, mas nada de tentares uma das tuas jogadas.
Escutaram gritos e, passado pouco tempo, a porta da frente abriu-se de supetão, e, à entrada envolta em chamas, surgiram duas mulheres. Munido de uma vara
comprida, um dos homens afastou o maciço de arbustos que ali ardia para assim lhes dar espaço para que escapassem. Elas correram para a frente e a porta fechou-se.
Mas logo depois voltou a abrir-se e através dela surgiu uma lança que atingiu o pescoço do servo que segurava a vara, e, com um gemido, o homem deixou-se cair.
Um grito de raiva elevou-se das gargantas dos que ali se encontravam e alguns chegaram mesmo a precipitar-se para a porta, dispostos a derrubá-la.
- Parem com isso e voltem para trás! - ordenou a voz severa de Will, o Arqueiro. - Não há mais ninguém em casa para além do administrador, e ele vai acabar
por morrer queimado. Empilhem a madeira e mantenham-se atentos à porta das traseiras e às janelas.
Uma flecha partiu de uma das janelas do piso superior, cravando-se numa árvore junto ao ponto onde Will se encontrava. O homem puxou a haste que ainda tremia
e examinou-a com calma.
- Diz-me uma coisa, Makin - começou ele, dirigindo-se à mulher de idade que abandonara a casa -, lá dentro está algum dos arqueiros do abade?
- Não - respondeu a velha governanta. - Só lá está o amo.
- Bem me queria parecer - disse Will. - De qualquer dos modos, ele tinha a obrigação de saber disparar melhor do que isto.
- O teu destino não é o de seres morto por uma flecha - retorquiu a velha senhora, e soltou uma gargalhada, mostrando as gengivas amarelas e desdentadas.
- Talvez sim, talvez não - ripostou o homem. - Não estou disposto a dar ouvidos aos teus disparates, Makin.
- Nem o amo vai morrer neste incêndio que arranjaste tão bem para ele - prosseguiu a velhota, soltando outra gargalhada.
Will, o Arqueiro, cravou os olhos nas paredes que ardiam a bom arder e não respondeu. Porém, esboçou um sorriso sombrio. Como é que alguém conseguiria escapar
com vida no meio daquela massa de chamas que não paravam de se contorcer?
De súbito, vindos das traseiras da casa, elevaram-se gritos de terror. Robin, seguido por Will, contornou o edifício e, à luz da casa que ardia, viu os rostos
assustados dos servos que ali estavam. Viu-os também apontar para um ponto situado à distância. Ambos os recém-chegados se viraram na direção indicada, vendo aquilo
que parecia ser um cavalo castanho afastando-se a galopar pelo campo.
Quando olharam para trás, viram que a porta de um armazém vizinho à mansão se encontrava aberta, embora tanto a armação como a madeira que a constituíam
estivessem em chamas. Soltando um grito de raiva, Will, o Arqueiro, começou a correr na direção do cavalo.
- Volta! Volta! - gritaram os servos, aterrorizados. - É a Besta Fantasma! Vai fazer-te em pedaços!
Contudo, o homem continuava a correr e, à medida que o fazia, viram-no a tentar fixar uma flecha ao arco que segurava na mão.
- De onde é que aquilo saiu? - perguntou Robin, dirigindo-se aos servos.
- Saiu de casa de rompante, com a crina em chamas, os olhos a flamejar e a boca aberta - responderam eles. - Correu ao encontro de Bat, o Carvoeiro, e eu
fiquei com a sensação de que ele estava condenado a ser feito em pedaços, mas a criatura deu meia volta e precipitou-se para os campos.
- Penso que foi Guy quem acabou de se escapar de vocês - disse Robin, que suspeitava do que sucedera.
- Que queres dizer com isso? - inquiriu Bat, o Carvoeiro.
- Não tenho quaisquer dúvidas de que Guy de Gisborne se embrulhou num qualquer disfarce, vos assustou e conseguiu escapar - explicou Robin.
- Mas aquilo era a Égua Fantasma! - gritaram os servos. - Vimos a sua crina a arder, os seus olhos vermelhos e a sua boca escancarada.
Robin não respondeu. Sabia que não valia a pena lutar contra as superstições daqueles pobres servos. Em vez disso, regressou ao local onde deixara Makin,
a mulher de idade.
- Makin - disse ele -, o teu amo esfolou algum cavalo castanho nos últimos tempos?
- Sim, há dois dias.
- E onde é que estava a pele?
- No armazém, atrás da casa.
- Disseste que o teu amo não ia morrer no incêndio, não foi, Makin?
- É verdade - respondeu a mulher, e, naquele rosto amarelo e engelhado, os pequenos olhos negros estreitaram-se quando se cravaram em Robin.
- Will, o Arqueiro, foi matar o teu amo - prosseguiu Robin -, mas a verdade é que não creio que ele o consiga apanhar. Quanto a ti, acho que não devias esperar
aqui até que ele regresse, Makin. Deve vir furioso e, caso suspeite de alguma coisa, não hesitará em fazer um disparate.
A velha sorriu, soltando uma gargalhada abafada. Então, os olhos subitamente iluminados devido à raiva que de si se apoderara, virou-se para Robin e, em
voz baixa, declarou:
- E que é que eu podia fazer? É um homem duro, e será um homem duro até ao fim dos seus dias. Até comigo se mostra tão duro quanto um estranho. Mas estes
braços embalaram-no quando ele não passava de uma coisa pequenina. Fui eu quem lhe disse o que devia fazer com a pele da velha égua. Será que podia ter feito outra
coisa?
- É verdade - concordou Robin -, sei que tens sido a mãe de um homem com um coração de lobo. Mas, agora, é melhor saires daqui antes que chegue o Will Stuteley.
E, sem mais uma palavra, a mulher deu meia volta e precipitou-se rumo à escuridão.
Will, o Arqueiro, regressou passado pouco tempo, e sem dúvida que vinha mesmo cheio de raiva.
- Seus estúpidos! - gritou ele. - Será que as vossas cabeças são assim tão ocas ao ponto de se esquecerem que um homem tão manhoso quanto este está cheio
de truques? Com que então um fantasma? Não passam de mulheres velhas, cujo único préstimo é ordenhar vacas e ser vendidos como se fossem vacas! Não viram as suas
pernas aparecer por baixo da pele de cavalo com que se cobriu? Um lobo com pele de cavalo, é isso que ele é. Voltem para as vossas vidas de servos. Não merecem ir
para a floresta e ser tratados como homens Livres.
E, furioso, afastou-se, recusando dizer uma só palavra fosse a quem fosse.
Foi só passado algum tempo que Will contou a Robin que correra atrás da figura vestida de cavalo, e que vira distintamente as pernas humanas por baixo da
pele. Tentara acertar-lhe com uma flecha, mas falhara, depois, a figura correra para o pasto dos cavalos, situado na charneca. Aí, as suas suspeitas provaram estar
certas, uma vez que vira Guy de Gisborne arrancar a pele que o cobria, saltar para um dos cavalos que por ali andavam e desaparecer, não sem levar consigo o disfarce.
- Bom, rapazes - disse Robin, dirigindo-se aos servos -, não vale a pena perdermos mais tempo aqui. O lobo escapuliu-se e não falta muito para que toda a
região se erga contra nós. Há que fugir para a floresta, pois não há memória de que alguma vez se tenha feito algo assim contra um administrador nomeado pelo amo.
- Tens toda a razão, mestre - disseram eles. - Agora, há que correr, se queremos salvar a cabeça. Mas tal como disse o Will, não há dúvida de que somos mesmo
estúpidos! Nunca devíamos ter deixado que aquele homem perverso nos tivesse escapado das mãos recorrendo a um dos seus truques.
Contudo, a conversa ficou por ali. Todos se apressaram a abandonar a mansão que continuava a arder, embora a maior parte fosse agora um monte de ruínas escuras
que as chamas consumiam lentamente. Desceram a colina a correr e, depois de se juntarem a Scadlock e aos outros servos, sem esquecer Scarlet e o rapazinho, Robin
guiou-os até junto da linha profunda e escura da floresta que se erguia ao lado dos campos, sob a luz das estrelas que esmoreciam.


2.
DE COMO JOÃO PEQUENO ROUBOU O
JANTAR DO GUARDA-FLORESTAL
E CONHECEU ROBIN DOS BOSQUES

- Ora bem, rapazes, aqui é que se está bem!
Fora Much, o filho do moleiro, a proferir estas palavras. Deixou escapar um enorme suspiro de satisfação e rolou sobre a erva no intuito de ficar ainda mais
confortável do que já estava. As suas palavras foram acolhidas com grunhidos ou suspiros de satisfação, os quais se elevaram de entre as outras vinte formas deitadas
ao comprido debaixo da sombra profunda das árvores. Porém, algumas destas formas responderam com roncos, uma vez que o gamo que tinham comido fora dos bons, e o
jogo do pau com que se tinham distraído naquela manhã se revelara cansativo. Logo, quando a cabeça se sente pesada, o sono é o melhor remédio.
Aquela era uma pequena clareira, bem no coração da floresta de Barnisdale. Era ali que os fora-da-lei se reuniam, tendo-lhe dado o nome de Stane Lea, ou
Stanley. Num dos lados, um riacho gorgolejava ao correr sobre os seixos, enquanto do lado oposto se via uma enorme pedra, colocada na vertical, verde devido ao musgo
que a cobria, aonde, sem dúvida, há muitas eras, guerreiros envoltos em peles se haviam deslocado para dirigir orações ao espírito do grande chefe que repousava
debaixo dela. Junto ao riacho ajoelhavam-se Scadlock e o seu colega cozinheiro, ocupados a limpar as escudelas de madeira que haviam sido usadas, e isto mediante
o simples processo de as esfregar com areia e de deixar aquela água cristalina passar por elas.
A luz do Sol daquele dia quente de Julho batia na água por entre os espaços abertos nas folhas ligeiramente descaídas, e, no meio de todo aquele verde-profundo,
os raios brilhavam como barras de ouro. A maior parte dos servos deitava-se de costas, gozando a visão que lhes era proporcionada pela massa de folhas que ondulava
sobre as suas cabeças, massa esta através da qual, à semelhança de cabeças de lança flamejantes, a luz se esgueirava de quando em vez ao sabor da suave brisa estival
que agitava as profundezas das árvores. Depois de uma refeição farta e com o vento a brincar-lhe nas bochechas, estes pobres foragidos experimentavam uma felicidade
que nunca antes haviam conhecido. O pequeno Gilbert, as faces rosadas de tão saudável se sentia ele, sentava-se junto ao tio, entretido a afiar setas com uma faca.
Sentado com as costas apoiadas ao tronco de um ulmeiro caído, estava Robin, o porte altivo, os olhos perspicazes e destemidos, a expressão nobre do costume.
Era como se não tivesse passado um mês desde o momento em que fora declarado proscrito, ou "cabeça-de-lobo", assim rezava a expressão da época, a quem qualquer indivíduo
cumpridor da lei podia matar e reclamar um prêmio pela sua cabeça.
A forma como chefiava estes homens que o haviam acompanhado quando se refugiara na floresta e o haviam escolhido como chefe só podia ser considerada severa.
Apesar de todos eles serem ágeis e velozes, Robin sabia que as suas vidas dependiam da rapidez com que aprendessem a usar o varapau, a espada e o arco. Assim, diariamente,
obrigara-os a levar a cabo uma série de tarefas.
Habituados a trabalhar duro com o arado, o enxadão e a faca do mato, foi com alguma dificuldade que as suas mãos se dedicaram a tarefas mais delicadas, nomeadamente,
o manejo da espada, do pau e do arco. Contudo, e na sua maioria, tratava-se de homens jovens, e Robin tinha esperança de que, muito em breve, adquirissem a rapidez
nos olhos e a destreza nas mãos, bem assim como o saber que lhes diria como distinguir a trilha do veado fulvo e como enfrentar e dominar o lobo feroz e o javali
de presas brancas em toda a sua raiva.
- Que estaríamos nós a fazer neste momento - murmurou Dickon, o Carpinteiro - se não nos tivéssemos libertado e ainda estivéssemos na aldeia?
- Eu estaria a dar de comer aos porcos cinzentos do senhor ou a arar as suas terras - respondeu Peter, o Conde -, isto enquanto as minhas próprias terras
se encheriam de ervas daninhas.
- E eu - disse Will Stuteley com amargura - estaria a amaldiçoar o abade que partiu o coração do meu pobre filho. Quando sinto que nunca fui tão feliz, lembro-me
dele e lamento-o mais do que nunca. Oh, se ao menos ele aqui estivesse!
Ninguém disse nada durante alguns instantes. Sentiam que, embora todos tivessem sofrido, Will, o Arqueiro, fora quem mais sofrera com a crueldade do abade
de Santa Maria e os atos traiçoeiros de Sir Guy de Gisborne. Will tivera um filho, filho este que, claro, tal como o pai, também era um servo. Porém, o rapaz fugira
para Grimsby, vivera aí durante um ano e um dia ao serviço de um armador e, desta forma, conquistara a sua liberdade. De seguida, pusera-se a economizar todo o dinheiro
que podia, trabalhando duro noite e dia, no intuito de poupar o suficiente para comprar a liberdade do pai. Chegou mesmo a passar fome para ganhar as vinte moedas
que significavam o fim da servidão para o pai. Acabou por conseguir poupar o suficiente, partindo ao encontro do abade, oferecendo-lhe o dinheiro em troca da liberdade
do progenitor. Perante isto, o abade apanhou-o e mandou-o para a prisão, ficando-lhe com o dinheiro. De seguida, foi preciso arranjar testemunhas dispostas a jurar
em tribunal que o jovem fora visto na cabana do pai durante aquele ano e um dia de exílio, o que levou o abade a reclamá-lo como servo. Quanto ao dinheiro que ele
poupara, "tudo o que um servo consegue, consegue-o para o seu senhor". Era uma lei antiga que ninguém podia negar. O jovem, com o coração e o espírito despedaçados,
acabara por ser solto, trabalhara nas terras da propriedade num estado de apatia geral causada pelo desgosto, e uma noite fora encontrado morto na sua enxerga de
palha.
- Quanto a mim - disse Scarlet, apoiando-se no cotovelo esquerdo e erguendo no ar o punho direito -, estaria a ceifar o trigo do senhor e, a cada golpe da
minha foice, sonharia com o dia em que acabaria por cravar o meu punhal no malvado coração de Guy de Gisborne, que fez de mim um servo quando, antes de a pobreza
tomar conta de mim, eu era um homem livre.
Também isto era verdade. Scarlet fora um homem livre, mas as colheitas tinham sido más e o administrador obrigara-o a executar trabalhos que não eram próprios
de um homem da sua condição, até que, gradualmente, os campos que lhe pertenciam tinham sido deixados ao abandono e Scarlet acabara por perdê-los, transformando-se
num servo como tantos outros.
- Mestre - disse Much, o filho do moleiro -, parece-me bem que somos um grupo de homens pobres que muito sofreram às mãos dos poderosos. Agora que somos
fugitivos, não nos devias dar uma espécie de código para que pudéssemos saber a quem bater e aprisionar e a quem deixar em liberdade? Será que não devemos arranjar
maneira de os ricos e poderosos conhecerem um pouco da pobreza e das dores dos deserdados?
- Era minha intenção falar-vos destas coisas - disse Robin. - Em primeiro lugar, não devem atacar mulher alguma nem as pessoas que a acompanhem. Tenho sempre
presente a imagem da Virgem, e nunca deixarei de rezar para que Ela nos proteja e ajude, logo, quero que vocês protejam as mulheres. Tenham também o cuidado de não
molestar nenhum camponês honesto que amanhe as suas terras em paz, o mesmo se passando com os homens livres decentes com quem se cruzarem. Façam o mesmo com os cavaleiros
e os proprietários rurais que não se mostrem orgulhosos, antes boa gente. Contudo, uma coisa vos digo, e quero que dela não se esqueçam. Abades e bispos, priores
e cônegos, sem esquecer os monges... com estes podem fazer o que entenderem. Quando os despojarem do ouro e das outras riquezas que eles têm, estão apenas a apropriar-se
daquilo que eles roubaram e extorquiram aos pobres. Logo, despojem-nos das suas riquezas e não tenham medo de usar os bastões nas suas costas. Com a boca repetem
os ensinamentos de Jesus, mas a gordura dos seus corpos e os seus corações negros negam-nO a toda a hora.
- Sim, sim! - gritaram os fora-da-lei, entusiasmados com o ardor que estivera presente na voz e nos olhos de Robin. - Assim faremos com toda a gente desse
tipo que se atreva a passar pelas estradas da nossa floresta.
- E agora, rapazes - prosseguiu Robin -, embora sejamos fora-da-lei, logo, para além das leis dos homens, continuamos a estar à mercê da misericórdia divina.
Assim, gostava que viessem comigo à missa. Iremos até Campsall, onde o padre escutará as nossas confissões e nos lerá passagens do Livro de Deus.
Passado pouco tempo, os bandoleiros seguiam em fila indiana atrás do chefe, percorrendo os caminhos da floresta, serpenteando por entre as árvores gigantes,
atravessando as clareiras repletas de fetos, onde o veado fulvo e a corça descrevem os seus saltos assustados, cruzando riachos e pequenos cursos de água, contornando
um qualquer rochedo alto ou um pequeno vale rochoso. No entanto, embora o caminho fosse tortuoso e, para a maior parte deles, desconhecido, todos sentiam confiança
em Robin.
Subitamente, Much, que caminhava junto ao chefe, imobilizou-se à entrada de uma pequena clareira.
- Olhem! - exclamou ele, apontando para o lado oposto. - É um duende... um desses seres escuros! Vi-o andar por ali. Não é maior do que um rapaz. Está escondido
atrás daquele feto. Mas, se ele lá estiver mesmo, então, esta seta acabará por o encontrar.
Ergueu o arco e preparou uma flecha, mas Robin deu-lhe uma palmada no pulso e a flecha caiu na terra, a apenas algumas jardas de distância.
- Os duendes são meus amigos - disse Robin, esboçando um sorriso - e também serão vossos. Basta que mereçam a sua amizade. Presta atenção, Much, e o mesmo
se aplica a todos vocês, meus foliões. Não disparem contra seja o que for nesta floresta que não revele qualquer intenção de vos atacar, a menos, claro, que seja
por comida. Desta forma, conseguirão conquistar os serviços de todos os espíritos e poderes positivos que habitam aqui e no céu.
Os homens interrogaram-se sobre o que Robin queria dizer com aquilo e, durante o resto do percurso, mostraram-se atentos, procurando descobrir o duende de
Much. Porém, nem sequer de raspão o viram, e, passado algum tempo, começaram a meter-se com o outro, dizendo haver ele comido demasiada carne de veado, tendo confundido
as manchas que lhe apareciam frente aos olhos com fadas. Porém, o outro teimava em garantir que vira um homem pequenino, "com o cabelo e o rosto escuros, do tamanho
de uma criança".
- Um raio de sol iluminou-o enquanto ele se mexia – disse Much -, e vi um braço peludo banhado de luz.
- Devia ser um esquilo! - exclamou um deles. - E o Much confundiu-lhe o rabo com o braço de um homem.
- Ou, então, se calhar, é o Much que está enfeitiçado - disse outro. - Eu cá digo que esta noite ele dormiu num círculo mágico.
- Pois eu cá digo que devia ser o duende Puck em pessoa ou, então, o irmão dele! - retorquiu Much, deixando escapar uma gargalhada, já que até mesmo ele
começava a duvidar dos seus olhos, pondo assim ponto final à troça de que vinha a ser alvo e juntando-se ao coro de vozes que o rodeava.
Uma vez na pequena aldeia da floresta, situada numa clareira rodeada de ulmeiros e de carvalhos, os homens separaram-se e, um a um, foram confessar-se junto
do velho padre que ali oficiava.
Pouco depois, Robin pediu que a missa se realizasse. Antes de se ajoelhar, Robin examinou a pequena igreja de madeira e viu ajoelhado atrás de si um homem
jovem e bem-parecido, envergando uma cota de malha. Segurava um elmo de aço numa das mãos e, a seu lado, encontrava-se uma espada. Era alto e elegante, mas de forte
constituição, e só podia ser um jovem senhor de boas famílias. Robin olhou-o com atenção e gostou da expressão franca que os seus olhos encontraram.
A missa estava a meio quando na igreja entrou um homem pequeno, esguio, de rosto moreno. O seu olhar percorreu aquele espaço mal iluminado e depois, quase
que instintivamente, pousou em Robin, que, na fila da frente e junto com os seus homens, estava ajoelhado em frente ao padre. Veloz, com a agilidade de um gato,
o homenzinho subiu a nave lateral, passando pelos fora-da-lei ajoelhados. Assim que os olhos destes detectaram aquela pequena forma em movimento, ergueram as cabeças,
alguns com o olhar cheio de admiração, ao passo que outros cravavam um olhar quase que aterrorizado naquela estranha figura.
Viram-no chegar junto a Robin e tocar-lhe no cotovelo. De seguida, o chefe baixou a cabeça e o homenzinho não perdeu tempo a segredar-lhe umas quantas palavras
ao ouvido.
- Dois daqueles cavaleiros sinistros seguiram-te, mestre - foram as palavras por ele pronunciadas. - Estão separados da porta da igreja por qualquer coisa
como a distância de um tiro de arco. Um vilão tem-te andado a espiar nestes últimos dias. E com os cavaleiros estão cerca de vinte soldados.
- Fica de guarda à porta - disse Robin num sussurro. - Até mesmo os malvados têm de esperar que o serviço de Deus chegue ao fim.
O homenzinho virou-se e, sem fazer ruído, descreveu o percurso inverso ao que ali o levara, acotovelando-se os fora-da-lei à sua passagem ao mesmo tempo
que o fitavam, estupefatos. Much, o filho do moleiro, sorriu, triunfante.
A missa prosseguiu e os fora-da-lei responderam de forma apropriada às palavras do padre. As últimas frases foram proferidas e os homens estavam a levantar-se
quando, com um zumbido que fazia lembrar um enorme zângão, uma flecha fez a sua entrada na igreja através da fenda estreita de uma janela e, atravessando o edifício
a grande velocidade, cravou-se na parede do lado oposto, aí ficando a vibrar.
- Que São Nicolau nos proteja! - exclamou o padre, assustado, fugindo por uma porta situada ao fundo da igreja.
- Bom, rapaziada - anunciou Robin -, é hoje que vamos provar se as vossas lições diárias com o arco serviram para alguma coisa. Corram para as janelas! Os
cavaleiros do Forte do Mal cercaram-nos e por certo lhes daria um grande prazer ter os nossos corpos na sua câmara de torturas.
Aquelas palavras fizeram com que os rostos dos bandoleiros se ensombrassem. Por toda a região de Barnisdale e de Peaks, pedintes, menestréis e romeiros,
todos eles haviam espalhado as histórias das crueldades e torturas praticadas pelos senhores de Wrangby. Há muito que o sangue dos servos e dos pobres que aqueles
cavaleiros cruéis haviam ferido, mutilado, ou morto clamava por vingança. Os homens correram para as janelas, enquanto Robin e Scarlet, uma vez tendo fechado a enorme
porta de carvalho, se puseram a olhar para as seteiras abertas nos grossos painéis de carvalho. Naqueles dias duros, as igrejas tinham tanto de fortalezas quanto
de lugares de culto, e Robin compreendeu que este pequeno edifício de madeira podia ser defendido durante horas contra qualquer inimigo exceto o fogo.
O jovem senhor dirigiu-se para Robin e disse:
- Quem é esta gente, meu bom homem, que tanto mal te deseja?
- São senhores de alta posição - retorquiu o interpelado. - Mas têm os modos de ratoneiros e de brigões de taberna. Tratam-se de Niger le Grym, Hamo de Mortain...
- O quê? - interrompeu o cavaleiro, irado. - O bando de Isenbart de Belame, neto do demônio de Tickhill?
- Esse mesmo - assentiu Robin.
- Nesse caso, meu bom homem - disse o jovem, e havia ansiedade no seu discurso -, peço-te que me deixes ajudar-te a resolver este problema. Isenbart de Belame
é o mais infame dos cavaleiros que alguma vez matou um homem honesto ou oprimiu uma mulher fraca. É o meu pior inimigo e gostava bastante de o matar.
- De fato - replicou Robin -, e vendo que a tua raiva é tão grande, bem que me podes ajudar. Quem és tu?
- Sou Alan de Tranmire, escudeiro do senhor meu pai, Sir Herbrand de Tranmire - respondeu o outro. - No entanto, prefiro que me chamem pelo nome que os meus
amigos me dão: Alan-a-Dale.
Enquanto o outro estivera a falar, o fora-da-lei não desviara os olhos da seteira à sua frente e vira que os soldados colocados nos extremos da floresta
se organizavam de forma a constituir um corpo, encabeçado por dois cavaleiros e as respectivas montadas, o qual se mostrava pronto a se precipitar contra a porta
da igreja, disposto a derrubá-la.
- Espero, jovem senhor - disse Robin -, que não seja necessário usar a tua espada. Aquilo que realmente espero é que os meus homens consigam impedir aqueles
patifes de se aproximarem a ponto de estarem em condições de poder usar as espadas, pois, e sou obrigado a confessá-lo, os meus homens estão longe de saber usar
semelhante arma de forma conveniente.
- Mas eu adoro o arco - disse Alan -, e, na floresta junto à propriedade do meu pai, divirto-me bastante a atirar.
- Ótimo! - exclamou Robin, e o seu olhar mostrava que a admiração que sentia pelo jovem aumentara ao escutar as suas palavras. - Tu aí, Kit, o Ferreiro!
Entrega a este cavalheiro aqui, a Alan-a-Dale, um dos teus arcos sobressalentes, bem assim como um molho de flechas. E agora - prosseguiu o chefe dos bandoleiros
assim que a operação em causa chegou ao fim - vamos todos para as seteiras que dão para aquele grupo de patifes que ali está, mesmo na orla do bosque. O plano deles
passa por arrombar esta porta, convencidos de que não passamos de um grupo de servos renegados que nada sabe sobre armas e a quem podem chacinar como se fossem cães
de caça a perseguir ratos. Foi-vos dada hoje a ocasião de provar que são bons arqueiros. Marquem com antecedência aquele que será a vossa vítima e não os deixem
chegar junto à porta.
Os homens não se fizeram rogados em se precipitar para as seteiras que davam para o lugar onde, à sombra do bosque, os soldados pareciam atarefados com qualquer
coisa. A certa altura, foi possível vê-los levantar qualquer coisa pesada do chão e as suas intenções tornaram-se claras. Tinham derrubado um jovem carvalho que,
uma vez desprovido dos ramos, deveria ser usado como aríete quando eles tentassem abrir a porta.
Passado pouco tempo, foram vistos a avançar. Eram cerca de doze do grupo de vinte, agarrados ao tronco que transportavam. Cada uma das seteiras foi ocupada
por dois salteadores, o mais baixo à frente e o mais alto atrás, ambos os homens espreitaram pela fresta com uma luz sombria no olhar, a flecha colada ao arco com
a mesma impaciência com que os cães aguardam que os soltem da trela que os impede de se precipitarem sobre a presa que se encontra à sua frente.
- Much, Scadlock, Dickon, e vocês os doze aí à direita, escolham um homem entre aqueles que transportam a árvore - ordenou Robin, falando em voz baixa e
com tons firmes -, e certifiquem-se de que não falham. Quanto aos oito restantes, apontem as setas ao peito dos outros. Pobres homens! - exclamou ele, reparando
na forma confiante como os homens dos cavaleiros avançavam pela clareira. - Devem achar que perseguir servos foragidos é como caçar coelhos. Não disparem até que
eu vos diga para o fazerem! - pediu ele. - É hoje que vocês, meus rapazes, me vão perdoar o quanto vos obriguei a suar durante estas últimas semanas.
- Oh, mestre! - exclamou um dos homens, tremendo de excitação. - Diabos levem esta espera! Se não disparo depressa, a flecha acabará por me saltar das mãos.
- Não dispares até eu ordenar! - contrapôs Robin com dureza. - Estou confiante de que conseguem acertar a uma distância de quarenta passos, mas estes oito
patifes estão para lá desta marca. Preparados, rapazes?
Durante um momento terrível, todos os nervos como que se retesaram à espera da ordem. Quanto aos soldados, que avançavam agora a passo de corrida, estavam
prestes a chegar à porta quando Robin gritou:
- Disparar!
Vinte e uma flecha saltaram das seteiras abertas na parede de madeira e, com um zumbido, cobriram um espaço de cerca de sessenta pés. Para os homens que
se encontravam dentro da igreja a espreitar lá para fora, a respiração em suspenso, o efeito assemelhava-se bastante a feitiçaria. Viram oito dos homens que transportavam
o tronco imobilizarem-se, vacilarem e acabarem por cair. Dos restantes, três atiraram-se ao chão, um levantou-se e fugiu, e os outros dois, descrevendo meia volta,
regressaram à floresta arrancando flechas dos braços. A montada de um dos cavaleiros caiu ao chão com um barulho seco, arrastando consigo aquele que a montava, o
qual, depois de se pôr outra vez em pé e atordoado devido ao choque ou à ferocidade inesperada da defesa, cravou os olhos na igreja durante breves instantes.
Quanto ao outro cavaleiro, que nada sofrera, gritou qualquer coisa ao companheiro e, fazendo o cavalo descrever uma curva sobre si mesmo, galopou de volta
ao abrigo que lhe era proporcionado pela floresta, para onde todos os homens que ainda podiam correr já tinham fugido. Uma seta tratou de o perseguir, mas falhou
o alvo e este em breve desapareceu.
Na erva pisada que crescia frente à igreja estavam agora dez figuras imóveis e o cavalo morto, atingido por uma seta no coração.
- E agora, rapazes - disse Robin -, vamos correr até à floresta.
A porta não demorou muito a ser destrancada e os fora-da-lei embrenharam-se na floresta, no ponto exato onde os atacantes tinham desaparecido. Não era difícil
para os perseguidores seguirem a rota da sua fuga precipitada, já que os perseguidos haviam deixado muitos traços atrás de si. Alan-a-Dale juntara-se a eles e Robin
tratou de lhe agradecer o auxílio prestado.
- Se alguma vez precisares de um punhado de bons arqueiros, não te esqueças de o comunicar a Robert de Locksley, ou a Robin de Barnisdale, uma vez que me
conhecem por ambos os nomes.
- Agradeço-te, Robin de Barnisdale - disse Alan -, e bem pode dar-se o caso de me ver obrigado a pedir-te ajuda.
- Como?! - exclamou o outro, soltando uma gargalhada. - Será que um escudeiro tão jovem e galante quanto tu pareces ser já arranjou um inimigo?
- É verdade - retorquiu Alan, e o seu rosto bem-parecido ficou sombrio. - E, de momento, vejo poucas hipóteses de vencer o meu inimigo, já que ele é poderoso
e prepotente.
- Conta-me a tua história - pediu Robin -, pois serei teu amigo e tratarei de te ajudar no que puder.
- Estou-te muito grato, meu bom Robin - disse o outro. - O meu caso é o seguinte: estou apaixonado por uma donzela bela e doce, cujo pai possui algumas terras
perto da floresta de Sherwood. O nome dela é Alice de Beauforest. O pai ocupa uma propriedade pertencente a esse grande ladrão e opressor, Isenbart de Belame, que
quer casar a bela Alice com um cavaleiro velho, rico e tão malvado quanto o próprio Isenbart.
O cavaleiro de Beauforest teria antes preferido casar a filha comigo, já que ela me escolheu em troca do amor que lhe tenho. Contudo, o senhor De Belame ameaça
que, caso não se cumpra a sua vontade, fará com que o fogo e a ruína se abatam sobre as terras do seu inquilino. É por isso que não sei o que fazer com vista a conquistar
a minha querida dama. É tão corajosa quanto bela, e, por mim, faria qualquer sacrifício. Acontece que tem um grande amor pelo pai, que há muito deixou para trás
os seus dias de guerreiro e tudo o que deseja é viver em paz. Por tudo isto, a lealdade que ela sente em relação ao pai joga contra o amor que nutre por mim.
- E já há alguma data marcada para esse casamento? - perguntou Robin.
- Belame jura que, caso não tenha lugar dentro de um ano, Beauforest pode assar um ganso na fogueira em que se transformará a sua casa - respondeu Alan.
- Isso dá-nos tempo de sobra - replicou o outro. - Quem sabe se, entre este dia e essa data futura, muita coisa não poderá acontecer? Estou certo de que
és corajoso. Deverás também ser paciente. Dentro em breve viajarei para a alegre Sherwood, e lá tratarei de saber mais a este respeito. Depois voltaremos a ver-nos
e a discutir de novo o assunto. Mas repara... quem são estes? Um cavaleiro e um vilão a conversarem de forma tão íntima!
Robin e Alan tinham-se separado do grupo principal dos fora-da-lei e estavam prestes a entrar numa pequena clareira quando, à entrada de um carreiro situado
no lado oposto, viram um homem apeado, envergando uma armadura, a conversar com um homem de testa baixa e aspecto sinistro, vestido com a túnica grosseira dos vilões,
túnica esta que, aliás, constituía todo o seu vestuário, excetuando os sapatos de pele não curtida.
Enquanto Robin falava, o cavaleiro virou-se e viu-os, tendo sido imediatamente reconhecido por eles como o homem que perdera a montada em frente à igreja.
O vilão apontou para eles e disse qualquer coisa ao cavaleiro.
- Ah, patifes! - exclamou este, avançando pela clareira em direção aos recém-chegados. - Se não me engano, vocês os dois fazem parte daquele bando de escravos
fugidos.
- Até podemos ser escravos fugidos - admitiu Robin, colocando uma flecha no arco -, mas, Sr. Cavaleiro, a verdade é que vos pusemos em fuga, e isto sem que
nenhum de vocês o esperasse.
- Valha-me Nossa Senhora! - exclamou o patife, a rir. - Não haja dúvida de que o teu falar é atrevido, velhaco. Mas quem é que temos aqui? - troçou ele,
ao mesmo tempo que deitava um olhar a Alan. - Um senhorito atrevido que, creio, está mesmo a precisar de um corretivo.
Por seu turno, Alan-a-Dale já colocara o escudo no braço, dado que, até ao último momento, aquele lhe estivera preso às costas por intermédio de uma correia,
e, desembainhando a espada, tratou de avançar rapidamente na direção do outro.
- Conheço-te bem, Ivo le Ravener - disse ele, pronunciando as palavras com clareza. - Sei que és um falso cavaleiro, alguém que rouba os desamparados, um
opressor de mulheres, um saqueador dos bens dos mercadores. Com a ajuda de Deus e de Nossa Senhora, eu mesmo me encarregarei de te dar uma lição.
- Seu patife descarado! - gritou o outro, dominado pela raiva. Então, furioso, deu um salto na direção de Alan, e aquela clareira sossegada encheu-se de
sons metálicos, à medida que os golpes se abatiam nos escudos.
Rápida e furiosa foi aquela luta e eles arremetiam um contra o outro como veados num combate mortal. Alan era o mais ágil, isto porque o outro levava uma
vida dissoluta na qualidade de amante do vinho e da boa mesa. E, embora fosse o mais velho dos dois e soubesse manejar melhor a espada, a agilidade de membros do
mais novo, a sua perspicácia visual, bem como a força dos seus golpes, tudo isto o colocava em vantagem. Alan evitava ou repelia os ataques mais perigosos do adversário
e, recorrendo a fintas e a recuos, procurava desgastar o outro. Contudo, era-lhe impossível evitar as feridas. Usava uma cota de malha bastante leve e um elmo de
aço com um protetor para o nariz, enquanto o outro vestia uma pesada armadura e um elmo com viseira preso ao corpete.
Por fim, Sir Ivo deixou tombar o braço que segurava o escudo, malgrado todos os seus esforços no sentido de o manter frente a si, e os golpes desferidos
pela sua espada enfraqueceram, tornando-se a sua respiração arquejante. De repente, Alan lançou-se sobre ele e, desferindo um golpe em sentido descendente, enterrou
a espada na garganta daquele cavaleiro perverso.
Nesse preciso momento, Robin, que estivera a observar atentamente o combate entre Alan e o cavaleiro, escutou um assobio semelhante ao de uma cobra, assobio
este que se elevou à sua frente, seguido pelo som de passos atrás de si. Apressou-se a desviar, e a lâmina de um punhal passou mesmo ao seu lado. Quando se virou,
viu que o vilão que estivera a falar com o cavaleiro quase se estatelara no chão devido à força com que atirara o punhal contra as costas de Robin. De seguida, recuperando
rapidamente, o homem precipitou-se em direção às árvores.
À medida que o fazia, uma pequena forma escura como que saltou por detrás de um feto plantado à sua frente. O vilão tropeçou e caiu pesadamente, e aquela
figura pequena, semelhante a um gnomo, agarrou-se a ele. Durante alguns instantes foi como se estivessem envolvidos num abraço mortal e, depois, de repente, o vilão
caiu como se de um tronco abatido se tratasse. Então, o duende levantou-se, sacudiu-se e limpou a lâmina do punhal na folha de um feto.
- Estou-te muito grato, Hob da Colina, tanto por teres usado o assobio da cobra para me avisar, como por teres desferido o golpe com a rapidez necessária
- disse Robin. - Devia ter-me mantido atento ao que se passava à minha volta. Quem é este sujeito, Hob?
- É o Grull, o vilão do Forte do Mal - replicou Hob. - Tem andado a rondar a floresta para os lados do lago Stane, onde o teu acampamento esteve montado
durante estes três últimos dias. Pensei que fosse um servo em busca de liberdade, mas trata-se de um espião.
Hob da Colina era irmão de Ket, o Duende, mas, apesar de serem do mesmo tamanho, tanto no que respeitava à estrutura física quanto às feições, os dois não
podiam ser mais diferentes. Os membros de Hob eram mais delicados do que os do irmão. O seu corpo era esguio e tinha o rosto pálido, o que fazia ressaltar o negro
pouco comum dos olhos, do cabelo encaracolado e da sua barba bem aparada. Os braços eram compridos e as mãos, quase tão delicadas quanto as de uma rapariga, continuavam
a ser fortes. Também ele usava uma túnica de couro e calças de pele que lhe chegavam aos tornozelos, encontrando-se os seus pés enfiados num par de sapatos grosseiros.
Robin acabou por se reunir a Alan, a quem foi encontrar sentado no chão, junto ao corpo sem vida do seu inimigo. Estava muito fraco e prestes a desmaiar
devido a uma ferida no ombro. Robin encarregou-se de a ligar, servindo-se de um pedaço de pano arrancado à camisa de linho do outro, quando lhe perguntou o que estava
ele agora a pensar fazer.
- Penso que vou regressar a casa, a Werrisdale - respondeu Alan. - De momento, estou em Forest Hold, a casa do meu irmão adotivo, Piers de Lucky mas já não
falta muito para que se arme uma enorme confusão por eu ter morto este maldito cavaleiro, e não gostaria nada que acontecesse algo de mal ao meu irmão por minha
causa.
- Já ouvi falar do Piers - disse Robin, que, de fato, sabia sempre um pouco a respeito dos que moravam nas suas adoradas florestas (ou perto delas) - e não
me parece que ele tenha qualquer vontade de que o evites, caso esteja nas suas possibilidades fazer algo para te ajudar.
- Eu sei - retorquiu Alan. - Mas não queria nada que esse Belame e o seu bando diabólico se vingasse de mim queimando o meu irmão adotivo uma destas noites,
quando ele estiver a dormir. Não, de maneira nenhuma. Se conseguir chegar até ao meu cavalo, que ficou na casa de um guarda-florestal, então, será para a minha casa
que irei.
E, juntos, Robin e Alan puseram-se a caminho, rumo à cabana do guarda.
Enquanto decorriam os acontecimentos aqui descritos, um homem avançava ao longo de um carreiro situado a cerca de um quilômetro de distância. Tratava-se
de um indivíduo alto, de membros grandes, o que indicava ser ele muito forte. Estava vestido com um traje grosseiro, de fabrico caseiro, próprio de um camponês.
Parecia bastante bem disposto. De vez em quando, fazia girar o enorme varapau que segurava nas mãos e recomeçava a assobiar ou, então, e para variar, punha-se a
cantar a plenos pulmões.
- João, João - acabou ele por dizer, falando consigo mesmo -, não passas de um idiota chapado! Devias estar tão calado quanto um peixe e esgueirar-te silenciosamente
de arbusto em arbusto. Em vez disso, meu tonto, cantas como se fosses um homem livre, embora não passes de um servo foragido em cujo corpo idiota o ar fresco da
floresta entrou como se fosse vinho. No entanto, só uns trinta quilômetros te separam do poste e do chicote do velho lorde Mumblemouth e do seu bailio, e aqui vais
tu a cantar e a assobiar como se não pudesses ser interpelado por um guarda-florestal, ansioso por receber uma recompensa da parte do teu senhor. Comporta-te, idiota,
presta atenção ao que fazes e... Com a breca! Que cheiro maravilhoso! - Interrompeu-se e, erguendo a cabeça, pôs-se a cheirar o ar ensolarado da floresta, apontando
os seus divertidos olhos castanhos nesta e naquela direção. - Só posso ter descoberto a cozinha de algum abade gordo! - declarou ele. - É um desperdício deixar que
um cheiro assim tão bom se perca no ar. Virgem Santíssima, estou esfomeado! Deixa-me ir procurar o sítio de onde se ergue este odor delicioso. Talvez ele se compadeça
de um pobre viajante e me dê um pouco da sua fartura.
E, dizendo isto, João afastou os arbustos e tratou de avançar na direção do cheiro. Não foi preciso andar muito para dar consigo a espreitar para uma clareira,
no meio da qual havia uma árvore onde se encontrava amarrado um cavalo, enquanto, não muito longe dos arbustos, se via uma cabana de madeira, o telhado coberto de
turfa onde cresciam goivos amarelos, morugem e queijadilho.
Em frente à porta desta casa ardia uma fogueira que não fazia chama e, a seu lado, enfiados no chão, viam-se espetos contendo nacos de carne, que o calor do
lume fazia estralejar e crepitar. Era dali que se elevava o cheiro que levara o desconhecido a sentir ser ele um homem esfaimado, pois já há muito que caminhava
sem nada comer.
Cravou os olhos nos pedaços de carne que pingavam gordura e sentiu água na boca. Durante alguns instantes, julgou que ninguém vigiava aquela carne crepitante.
Depois disse para si mesmo que não devia ser considerado pecado um homem com fome levar consigo um naco ou mesmo dois. No entanto, enquanto assim meditava, um homem
saiu da cabana e, baixando-se, virou dois dos espetos para que, deste modo, a carne ficasse melhor cozinhada.
O rosto do desconhecido tornou-se sombrio. O homem era um dos guardas-florestais do rei, como bem o demonstravam a sua túnica verde e as calças de malha
castanhas, bem como o distintivo de prata que lhe ornamentava o chapéu e onde estava representada uma corneta de caça. Como se isto não bastasse, o seu rosto era
mal encarado - o rosto de alguém que preferia ver um homem morrer de fome que ceder-lhe uma parte da sua refeição. Tratava-se de Black Hugo, o guarda que abordara
Robin e Scarlet com modos grosseiros quando os encontrara na floresta.
O desconhecido refletiu durante alguns instantes, afastando-se depois devagar, para não fazer ruído, e recuando até um ponto situado a alguma distância da
clareira. De seguida, pondo de lado as cautelas, voltou a avançar e, ao alcançar a clareira, entrou nela de rompante, imobilizando-se, como que surpreendido pelo
que tinha diante dos olhos. Deixara o varapau nos arbustos.
O guarda carrancudo cravou nele um olhar indignado, fitando-o do lado de lá da floresta.
- Que se passa? - inquiriu ele. - Seu gigante palerma! Quem és tu para andares por entre os arbustos como se fosses um porco? Será que não receias o castigo
que o rei dá aos que perturbam os seus veados?
- Peço desculpa, Sr. Guarda - disse o outro, afastando uma madeixa do cabelo, fingindo não ser mais do que um simplório. - Não sabia para onde ia, mas chegou-me
ao nariz o cheiro da tua carne e pensei que talvez se tratasse de um grupo de monges ou do séquito de algum senhor que aqui estivesse a preparar o jantar, e que
talvez não se importassem de partilhar uma parte com um pobre caminhante que não come nada desde o nascer do dia.
- Vai à tua vida, vilão! - disse o guarda, e o seu rosto tornou-se ainda mais carrancudo quando o escutou pedir um pouco de carne. - Bem vês que não sou
nem monge nem senhor e que estou a preparar a minha própria refeição. Logo, faz-te ao caminho antes que te corra a pontapé. Não sabes que não tens o direito de sair
da estrada? Desaparece, vamos!
Havia raiva na voz de Black Hugo, que olhava de forma feroz para aquele vilão aparentemente assustado, dando alguns passos em frente, como se estivesse prestes
a levar as suas ameaças por diante. Quanto ao outro, pôs-se a puxar outra vez a madeixa de cabelo e tratou de se afastar rapidamente, tal como se estivesse mesmo
a morrer de medo. Black Hugo ficou à escuta durante alguns momentos, ouvindo os passos pesados do camponês esmagarem os arbustos que levavam à estrada, e, de regresso
à cabana, tirou de um armário um grande pedaço de pão, cortando-lhe uma grossa fatia. Depois, dirigindo-se para a fogueira, baixou-se e pegou num dos espetos, dele
tirando os pedaços de carne com a ajuda de uma faca, fazendo-os cair no pão. Fez o mesmo com o segundo espeto e baixou-se em seguida para o terceiro.
De repente, uma pequena vara pareceu saltar como se fosse uma lança do arbusto que mais próximo de si se encontrava e, voando através do espaço, uma das
extremidades atingiu o guarda na cabeça, provocando uma pancada seca. O homem tombou de lado, quase caindo em cima da fogueira, atordoado, e o espeto com a carne
elevou-se no ar.
John, saltando por detrás do arbusto, apanhou o espeto antes de ele cair, dizendo:
- Não gosto de terra na minha comida, guarda antipático.
Pôs a carne no pão, junto dos outros pedaços, e, dirigindo-se para o guarda sem sentidos, voltou-o, pondo-se então a examinar o ponto onde a vara o atingira.
- Sem dúvida que foi um golpe e tanto! - exclamou ele, a rir.
- Acertou em cheio no sítio certo! Uns centímetros mais abaixo e tinha-o matado e uns centímetros mais acima e tinha-lhe rebentado o crânio. Como as coisas
se passaram, ele vai acabar por recuperar os sentidos a tempo de me ver comer o seu jantar!
Ergueu o guarda com a mesma facilidade com que ergueria uma criança e, depois de o colocar na posição de sentado, encostado a um dos postes da cabana, aí
o amarrou, utilizando para isso uma corda que descobriu dentro da habitação. De seguida, com o varapau ao seu lado, sentou-se junto à fogueira e pôs-se a devorar
aqueles três suculentos nacos de veado.
Passado pouco tempo e com um suspiro profundo, Black Hugo abriu os olhos, levantou a cabeça e olhou em volta algo atordoado. Contudo, bastou-lhe ver o desconhecido
a devorar o pão com grandes dentadas para se recordar de tudo.
- Seu patife fugitivo! - exclamou, as faces a arder de indignação. Tentou libertar as mãos da corda, mas tudo em vão. - És um homem marcado, meu reles ladrão!
Irás pagar por isto e farei com que te arrependas de me teres derrubado com esse teu varapau nojento. Começo por te arrancar as orelhas e depois mato-te, meu salteador!
- Não guinches tanto, meu bode velho! - ripostou o outro, soltando uma gargalhada. - Pensa antes em como te sentirias feliz caso tivesses partilhado comigo
a tua refeição. Vê se metes na cabeça, meu cão do mato, que se perdeste tudo foi porque quiseste ficar com tudo. As tuas costeletas estão muito bem assadas. És um
bom cozinheiro... diria mesmo que és melhor como cozinheiro que como guarda-florestal. E olha, aqui está o último pedaço. Repara bem!
E, ao dizer isto, o desconhecido colocou o último pedaço de carne no último pedaço de pão e, abrindo a sua enorme boca, enfiou tudo lá dentro, rindo a bom
rir ao ver a expressão sombria com que o outro o fitava.
- Agradeço-te, meu bom guarda, pelo excelente jantar que preparaste para mim - prosseguiu ele. - Simpatizo contigo, embora me tenhas olhado com maus olhos.
Não duvido que estejas com vontade de me bater e gostaria de te dar uma oportunidade para o fazeres. Que me dizes a um combate com o varapau?
- Tudo bem - disse Black Hugo, os olhos a chispar de fúria. - Deixa-me deitar-te a mão, meu rafeiro, que não ficará um só osso inteiro nessa carcaça ruim.
- Valha-me São Pedro! - exclamou o outro, rindo. - És mesmo assim tão bom com o varapau? Por Deus, estou ansioso por te ver lutar. Sendo assim, vamos lá
a isso!
Levantando-se, John aproximou-se do guarda no intuito de o desamarrar, quando, vindo da floresta, lhe chegou aos ouvidos o ruído de vozes. O fato fê-lo imobilizar-se
e pôr-se à escuta, enquanto os olhos de Black Hugo se iluminavam com um brilho triunfal. Sem dúvida que, como era de prever, os viajantes que se aproximavam só podiam
ser indivíduos cumpridores da lei, e, então, ele não demoraria muito a ser solto, podendo depois vingar-se à vontade daquele patife.
O barulho das vozes e dos passos aproximou-se e, surgindo por entre os arbustos situados num dos lados da clareira, surgiram Alan-a-Dale e Robin, que lançaram
um olhar à figura alta do servo e fitaram o guarda amarrado ao poste.
O desconhecido pegou no varapau e, voltando-se para Black Hugo, disse:
- Meu bom guarda, tenho sérias dúvidas em relação à tua honestidade se, como a tua cara maldosa indica, estes dois forem teus amigos. De qualquer dos modos,
não receies que me esqueça de ti. Faremos este combate quanto antes. Mais uma vez, obrigado pelo jantar.
E, dizendo isto, o desconhecido embrenhou-se por entre os arbustos, afastando-se sem fazer barulho.
Robin e Alan-a-Dale acabaram por se aproximar e foram incapazes de conter o riso perante a expressão amarga de Black Hugo.
- Que se passa? - quis saber Robin. - O guarda-florestal do rei amarrado a um poste por um qualquer vagabundo?! E, não me digas, homem, que ele também te
roubou o almoço?!
O silêncio ameaçador do guarda confirmou o que eles tinham adivinhado a partir das últimas palavras pronunciadas por aquele vilão enorme, e tanto Robin como
Alan se riram a bom rir do desconforto do guarda que, por seu turno, não parava de se contorcer.
- Pára de rir, cabeça-de-lobo! - gritou ele, dirigindo-se a Robin.
Porém, este riu ainda com mais força e o seu riso ecoou pela clareira.
- Solta-me! - exigiu Black Hugo. - Eu cá tratarei de arranjar maneira de te mostrar qual o preço a pagar quando um patife foragido como tu troça de um guarda
do rei!
Contudo, Robin não parava de rir, divertido com a raiva fútil do guarda, cujo rosto não podia estar mais vermelho.
- Olha, amigo - disse Alan com toda a amabilidade, esforçando-se por parar de rir -, acho que te estás a portar como um idiota ao ameaçar este homem, sobretudo
porque estás amarrado. Seria mais sensato guardares as ameaças para quando te encontrasses em liberdade. És demasiado corajoso, amigo.
- Por acaso não sabes quem é esse patife? - gritou Hugo. – É o chefe de um bando de servos fugitivos que, depois de terem pegado fogo à casa do seu senhor
e matado os seus homens, têm como único futuro a forca ou a espada de qualquer homem que lhes consiga fazer saltar dos ombros aquelas cabeças de lobos.
- Digas o que disseres deste meu amigo - retorquiu Alan, exprimindo-se com frieza -, posso garantir que tanto ele como os seus homens são indivíduos corajosos
e honestos e, caso tenham fugido de um senhor que os tiranizava, então, não os posso culpar.
E com uma expressão altiva, Alan dirigiu-se para o seu cavalo. Quanto a Robin, parou de rir e dirigiu a palavra ao guarda.
- O meu coração transborda de simpatia por aquele patife de pernas e braços grandes que te amarrou e comeu o teu jantar - disse ele. - Tu, que como outros
da tua laia vives à custa dos pobres recorrendo à extorsão e às ameaças, experimentaste agora um pouco daquilo que costumas fazer aos que não te conseguem enfrentar.
Vou dar-te tempo para que reflitas nos teus pecados e no castigo que recebeste. É melhor que fiques aqui amarrado até que escutes o piar dos mochos esta noite.
Juntos, Robin e Alan-a-Dale abandonaram a clareira, tendo o guarda ali ficado para, desta forma, acalmar os ânimos. O sol incidiu na sua cabeça descoberta
e, quanto mais ele se procurava desembaraçar das cordas, mais as moscas o rodeavam e atormentavam. Então, pôs-se a gritar por socorro, na esperança de que um outro
guarda pudesse andar ali por perto ou que um qualquer viajante que fosse a passar na estrada principal o ouvisse e o fosse libertar.
Contudo, não apareceu ninguém e ele acabou por se cansar. O sol aquecia-lhe as pernas cobertas pelas suas calças de malha, a língua e a garganta não podiam
estar mais secas e os braços, puxados para um dos lados e amarrados por cordas, haviam perdido quase toda a sensibilidade. À sua volta, a floresta parecia ter mergulhado
no silêncio. Por vezes, um raio de luz semelhante ao brilho de uma jóia atravessava a clareira. Tratava-se de uma borboleta que, ao sol, ondulava por sobre os arbustos,
como se de uma chama se tratasse. Depois, foi a vez de as aves descerem e irem saltitar e esgravatar entre as brasas da sua fogueira, chegando mesmo junto dos seus
pés. Noutras ocasiões, era um furão que saía da sua toca situada debaixo de uma árvore e, encorajado pelo silêncio, se punha a correr pela clareira, avançando de
esconderijo em esconderijo, até acabar por desaparecer na floresta que se estendia em frente.
A tarde acabou por chegar ao fim, o Sol pôs-se atrás das árvores, na margem ocidental da clareira, e as sombras foram-se alongando até tudo ficar mergulhado
numa luz acinzentada. Então, foi como se a floresta parecesse despertar. Empoleiradas nas árvores, as aves puseram-se a chamar umas pelas outras e a brisa típica
do fim da tarde fez com que as folhas se pusessem a restolhar e todo o bosque pareceu agitar-se.
Aos poucos, o azul do céu passou a cinzento, a escuridão aumentou debaixo das árvores e era como se, ao lusco-fusco, uma série de coisas estranhas parecessem
estar em movimento. Apareceu uma grande ave voando com asas silenciosas, que se pôs a pairar sobre a clareira. A dada altura, deixou-se cair e, durante alguns breves
momentos, um guincho elevou-se nos ares, fazendo pensar em algo a quem tivessem arrancado a vida. De seguida, escutou-se um grito estranho, algo como "Tu-eee...tu-ooo!".
O guarda estremeceu. Sem saber como, ficou com a sensação de que o grito fora lançado por um demônio. Como se isso não bastasse, um vento frio começava a
invadir a clareira. Fez um movimento com os braços, que pareciam quase mortos, e, para seu grande espanto, os nós cederam e ele descobriu que estava livre. Olhou
para trás e para dentro da cabana, mas não viu ninguém. Então, com os dedos entorpecidos, pegou na corda que o mantivera preso ao poste e descobriu que aquela fora
cortada com uma faca afiada.
Assustado, olhou em volta e benzeu-se. Robin, o Fora-da-lei, dissera que ele seria libertado quando o mocho piasse, mas quem se teria esgueirado até ali
e cortado a corda sem que ele tivesse dado por isso?
Black Hugo abanou a cabeça e pôs-se a pensar. Acreditava em duendes tanto quanto acreditava na sua própria existência, mas, e até ao momento, nunca lhe passara
pela cabeça que os duendes usassem facas. Voltou a abanar a cabeça e friccionou os membros gelados, e quando o sangue por eles pôde voltar a circular, a dor que
o fato lhe provocou levou-o a sentir vontade de gritar em voz alta.
Concluiu que, mais dia menos dia, se vingaria do patife gigante que lhe roubara o almoço e o amarrara. Quanto a Robin, o Fora-da-lei, ganharia quatro dinheiros
cortando-lhe a cabeça e levando-a até Londres, ao principal responsável pelos tribunais do rei.
Enquanto isso, Robin e Alan-a-Dale tinham seguido o seu caminho, discorrendo sobre muitas coisas. Descobriram que ambos adoravam a floresta e que nunca se
tinham divertido tanto como quando, munidos do arco, perseguiam os veados reais ou, na companhia de cães valentes, levavam o feroz javali a abandonar o seu esconderijo.
Robin acabou por conduzir o outro até um atalho que levava à sua casa de Werrisdale e despediram-se com um aperto de mão, tendo ambos prometido que se voltariam
a encontrar dentro em breve.
De seguida, Robin regressou ao ponto de encontro de Stane Lea, onde sabia que os outros estariam à sua espera depois de terem perseguido os soldados, prontos
a partilharem a última refeição do dia.
Robin estava quase a dar a viagem por concluída quando chegou junto ao ribeiro que, num ponto situado mais acima, corria mesmo junto à clareira onde os seus
homens por certo estariam atarefadíssimos, ocupados a preparar o comer. Contudo, neste local concreto, o ribeiro era bastante largo, sendo a corrente muito rápida.
Aqui, a única maneira de o atravessar era passando por cima do tronco estreito de um carvalho. Este era apenas suficientemente largo para dar passagem a um homem
de cada vez, e, claro, não possuía qualquer vedação.
Depois de subir os dois degraus de madeira que levavam até ele, Robin avançou dois ou três passos quando um homem alto surgiu na outra margem e, saltando
para a ponte, também se pôs a atravessá-la. Pelo tamanho, Robin reconheceu-o de imediato como sendo o sujeito que amarrara o guarda ao poste e lhe roubara o almoço.
Teria gostado de saudar o gigante como se este fosse um amigo, mas o homem avançava para si com um ar de tal forma teimoso, que era como se estivesse a dizer: "Sai
da minha frente, baixote, ou passo por cima de ti."
Robin media trinta a trinta e cinco centímetros menos do que o outro, e uma vez que todos o consideravam alto e forte, o tamanho do outro e o seu ar de desafio
irritaram-no grandemente.
Quando se encontravam a cerca de dez passos de distância um do outro, pararam e, de sobrolho carregado, fitaram-se nos olhos.
- Será que não tens maneiras, criatura? - inquiriu Robin, altivo. - Não viste que eu já estava na ponte quando puseste as patorras em cima dela?
- Patorras tens tu, idiota! - replicou o outro. - Não sabes que são os pequeninos que devem dar lugar aos grandes?
- Tu és novo nestas paragens, meu cabeça de abóbora, vindo sabe-se lá de onde - disse Robin. - A tua língua traiu-te. Caso não dês meia volta e me deixes
passar, serei obrigado a aplicar-te um corretivo à moda de Barnisdale.
E, palavras não eram ditas, Robin tirou uma flecha do cinto e ajustou-a à corda do arco. Este era grande e forte, uma arma que poucos homens conseguiam manobrar,
e o homem alto, com os olhos a brilhar meio de raiva, meio de puro gozo, deitou-lhe uma olhadela.
- Caso toques nessa corda - disse ele -, garanto-te que te arranco a pele.
- És mesmo estúpido! - ripostou Robin. - Como é que podes arrancar a pele a quem quer que seja se tiveres esta pena de ganso cinzento espetada nessa tua
carcaça, imbecil?
- Se é assim que vais aplicar um corretivo à moda de Barnisdale - replicou o desconhecido -, então, essa forma só pode ser a dos cobardes. Aqui estás tu,
com um bom arco nas mãos, pronto para disparar contra mim, quando a única arma de que disponho é o varapau.
Robin imobilizou-se. Era verdade que estava furioso com o desconhecido, mas havia neste gigante qualquer coisa de honesto, viril e bem humorado de que ele
gostava.
- Nesse caso, seja feita a tua vontade - disse ele. - Nós, os homens de Barnisdale, não somos cobardes, como terás ocasião de constatar dentro em pouco.
Vou pousar o arco e cortar um varapau. Depois, cá me encarregarei de testar a tua coragem, e, se não te bater a ponto de te deixar a deitar fumo, então, que o duende
que vive neste ribeiro me venha buscar.
E, dizendo isto, Robin deu meia volta e regressou à margem, e, servindo-se da faca, cortou uma sólida haste de um dos melhores carvalhos de Barnisdale. Uma
vez tendo-a transformado num varapau com o peso e o comprimento por si desejados, regressou à ponte onde o desconhecido continuava à sua espera.
- Agora - disse Robin -, vamos os dois brincar um bocadinho.
- Aquele que for derrubado da ponte e cair ao rio perderá o combate. E agora... Vamos!
Bastou Robin desferir o primeiro golpe para que o desconhecido pudesse constatar não se encontrar perante um qualquer novato, e, à medida que os varapaus
batiam um contra o outro sempre que aqueles que os manejavam ou atacavam ou se defendiam, sentiu que os golpes de Robin eram quase tão fortes, se não mesmo tão fortes,
quanto os seus.
Durante muito tempo, as varas que ambos manejavam foram girando pelo ar como se de braços de um moinho se tratassem, e as lascas de madeira que saltavam
dos bastões voavam por entre as árvores situadas em ambas as margens do ribeiro. De repente, o desconhecido lançou dois ataques simulados. Por muito rápido que Robin
se apressasse a defender-se, não conseguiu evitar um terceiro golpe e o bastão do gigante acabou por acertar na sua cabeça.
- O primeiro sangue vai para ti - gritou ele, sentindo um fio quente a escorrer-lhe pelo rosto.
- E o segundo para ti! - replicou o gigante, soltando uma gargalhada bem humorada.
Robin, que perdera completamente a cabeça, servia-se do varapau como se este fosse um malho. Os seus golpes sucediam-se com a rapidez de relâmpagos, ora
aqui, ora ali, e nem toda a vivacidade do adversário o conseguia impedir de receber umas pancadas tais, que os seus ossos chegavam a ranger.
Os dois homens tinham de enfrentar uma dificuldade acrescida, a saber, o fato de terem de se equilibrar numa ponte estreita. Cada passo que davam, quer fosse
para a frente, quer para trás, tinha de ser dado com muito cuidado, e quando desferiam ou defendiam um golpe, a força que punham no ato quase os fazia cair à água.
Não obstante a força enorme daquele que era o maior dos dois, a destreza de Robin começava a levar a melhor. De fato, ei-lo que começava a "fumegar", o rosto
enchendo-se de suor, que começou a correr em grandes gotas. De súbito, Robin conseguiu acertar na cabeça do outro, mas logo no instante seguinte e com um golpe furioso,
o desconhecido fez com que Robin perdesse o equilíbrio e, com um ruído enorme, o fora-da-lei acabou por mergulhar na água.
Durante alguns instantes, o gigante pareceu surpreendido por não ver qualquer inimigo à sua frente. Depois, limpando o suor dos olhos, gritou:
- Onde é que estás, meu bom amigo?
Preocupado, debruçou-se e perscrutou a água que corria por baixo da ponte.
- Valha-me São Pedro! - exclamou ele. - Só espero que aquele homem corajoso não se tenha magoado!
- Há que ter fé, amigo! - exclamou uma voz vinda de um ponto mais abaixo. - Estou aqui, calmeirão, e são que nem um pêro. Ganhaste o dia - prosseguiu Robin,
soltando uma gargalhada -, e eu já não preciso de atravessar a ponte.
E lá tratou Robin de se içar para a margem. Ajoelhando-se, lavou a cabeça e o rosto. Quando se pôs em pé, descobriu que o desconhecido estava praticamente
ao seu lado, atirando água para a sua própria cabeça e também para o seu rosto.
- O quê?! - exclamou Robin. - Não seguiste viagem? Ainda há pouco estavas com tanta pressa em atravessar a ponte que nem me querias dar passagem, e tudo
para acabares por regressar!
- Não troces de mim, amigo - disse o outro, ao mesmo tempo que deixava escapar uma gargalhada envergonhada. - Não tenho para onde ir. Não passo de um servo
que fugiu da propriedade a que pertencia, e esta noite, em vez do meu ninho confortável, tenho de encontrar um maciço de arbustos ou uma clareira onde não haja muitas
correntes de ar. Ainda assim, gostava de te apertar a mão antes de partir, já que não há dúvida de que és o melhor lutador que conheci.
Nesse mesmo instante, a mão de Robin estava entre os dedos enormes do outro e ambos se cumprimentaram, demonstrando o respeito e a admiração que sentiam
um pelo outro. De seguida, o desconhecido deu meia volta e preparou-se para atravessar a ponte.
- Deixa-te ficar mais um pouco - disse Robin. – Talvez queiras comer qualquer coisa antes de te fazeres ao caminho.
Palavras não eram ditas, o fora-da-lei levou a corneta aos lábios e fez soar um som que despertou toda a espécie de ecos, levando os melros a levantar voo
dos arbustos, soltando gritos desagradáveis, ao mesmo tempo que os animais que andavam pela floresta correram a procurar abrigo. O desconhecido parecia maravilhado,
e Robin deixou-se ficar ali, imóvel, à escuta. Passado pouco tempo, foi possível escutar uma série de sons, tal como se os veados ou as corças estivessem a correr
por entre os arbustos, e, pouco depois, movendo-se entre as árvores, foi igualmente possível distinguir as silhuetas de homens que corriam na sua direção.
Will Stuteley, o Arqueiro, foi o primeiro a chegar à margem onde Robin se encontrava.
- Que se passa, meu bom mestre? - inquiriu ele. - Que te aconteceu? Estás molhado até aos ossos!
Ao reparar no desconhecido, Will lançou-lhe um olhar furioso.
- Isto não é nada - disse Robin, rindo. - Estás a ver aquele rapaz ali? Lutamos na ponte, usando os varapaus, e ele derrubou-me.
Nesta altura, Much, o filho do moleiro, Scarlet, bem como muitos outros, já se encontravam na margem, e ao escutar as palavras de Robin, Scarlet precipitou-se
para o desconhecido, e, usando as mãos e os pés com rapidez e destreza, fê-lo cair. De seguida, também os outros se atiraram ao desconhecido, e, depois de o agarrarem,
gritaram:
- Vamos balançá-lo um pouco, rapazes! Vamos atirá-lo à água!
- Não, nada disso! - gritou Robin, sempre a rir. – Tenham calma, rapazes. Não sou vingativo... Para mais, apertei-lhe a mão, já que se trata de um homem
corajoso. Levanta-te, rapaz! - disse ele, dirigindo-se ao desconhecido, que se vira impotente às mãos de tantos e já se imaginava a aterrar no meio do ribeiro. -
Escuta uma coisa, grandalhão - disse Robin. - Somos fugitivos, rapazes corajosos que escaparam de amos cruéis. Somos vinte e dois. Caso te juntes a nós, poderás
partilhar as nossas lutas, uma dose considerável de boa disposição, e tudo o que de bom conseguirmos tirar a esses padres podres de ricos, aos prelados orgulhosos,
aos senhores perversos e aos mercadores de coração empedernido que se aventurem na floresta. És bastante bom com o pau... farei com que sejas ainda melhor com o
arco. E agora, camarada, diz de tua justiça!
- Por tudo o que há de sagrado no céu e na terra! Claro que serei um dos teus homens! - exclamou o desconhecido, dando uns passos em frente e estendendo
a mão para Robin, que de pronto a segurou e apertou. - Nunca ouvi palavras mais doces do que aquelas que pronunciaste, e tratarei de te servir, a ti e ao teu bando,
com todo o meu coração.
- Como te chamas, meu bom homem? - inquiriu Robin.
- João de Stubbs - retorquiu o outro. - Mas - e começou a rir - todos me chamam Pequeno João.
- Ah! Ah! Ah! - riram os outros, rodeando-o, apertando-lhe a mão e exclamando: - Pequeno João, dá cá a tua mão enorme!
- O nome dele será modificado - disse o imponente Will, o Arqueiro -, e lá trataremos de o batizar com uma boa caneca de cerveja preta. E agora, mestre,
que tal regressarmos ao acampamento e celebrarmos a ocasião?
- É isso mesmo, rapazes - concordou Robin. - Esta noite vamos fazer uma festa. Temos um novo elemento no bando, logo, há que o abençoar com uma cerveja e
um veado suculento. Foi a grande velocidade que regressaram ao acampamento, onde, ao lume, Scadlock colocara um enorme caldeirão, sendo que dele se elevavam os
odores mais apetitosos, sobretudo para aqueles homens a quem o ar da floresta abrira o apetite. Robin trocou as suas roupas molhadas por outras secas, as quais foram
retiradas de um armazém secreto situado numa gruta ali perto, e depois, colocando-se em volta do Pequeno João, que os suplantava a todos em altura, os bandoleiros
ergueram as suas canecas de madeira, todas elas a transbordar com uma boa cerveja preta.
- E agora, rapazes - disse Stuteley -, chegou a hora de batizarmos o camarada que se vem juntar a este grupo de homens livres. Até ao momento tem sido chamado
de Pequeno João, e, de fato, estamos perante um lindo bebê. Mas a partir de hoje, passará a chamar-se João Pequeno. E pronto, rapazes, três vivas ao nosso João Pequeno!
Como aquela floresta ressoou ao entardecer! As folhas que se erguiam por cima das cabeças deles estremeceram com os seus gritos. De seguida, desembaraçaram-se
das canecas de cerveja e, reunidos em volta do caldeirão, mergulharam as escudelas de metal naquele guisado suculento, dando início ao festim.
Mais tarde, João Pequeno pô-los ao corrente do seu encontro com o guarda-florestal, de como o agarrara e lhe comera a refeição mesmo em frente aos seus olhos.
Esta história fez com que todos soltassem enormes gargalhadas, já que ali não havia quem não nutrisse um certo rancor por Black Hugo e os restantes guardas, não
fazendo estes outra coisa para além de oprimir os camponeses pobres que viviam nas margens da floresta. Declararam ser o recém-chegado um homem forte e corajoso,
e disseram que, caso pudessem contar com cinquenta como ele, teriam força suficiente para destruir o Forte do Mal, em Wrangby, ou o castelo dos ladrões, em Hagthorn
Waste.
De seguida, foi a vez de Robin dar continuidade à história de João Pequeno, contando como deixara o guarda amarrado para que "pudesse meditar nos seus pecados
até que o mocho piasse".
- Que queres dizer com isso, chefe? - inquiriu João Pequeno. - Voltaste atrás e soltaste o patife?
Agora, a escuridão era total e somente as chamas da fogueira iluminavam as faces duras e bronzeadas dos homens ali presentes.
- Não, não soltei o patife! No entanto, ele já está livre, neste momento, e, disso não tenho qualquer dúvida, a chorar os músculos doridos e a jurar que
se vai vingar de nós os dois.
- Nesse caso, mestre, como? - quis saber João Pequeno, a boca aberta de espanto, enquanto os outros também escutavam as palavras do chefe, dominados por
um sentimento de maravilha.
- Tenho amigos na floresta - disse Robin - e eles ajudam-me em muitas coisas. No entanto, têm vergonha dos desconhecidos, e não será de boa vontade que se
mostrarão. Será preciso que vos conheçam melhor. Hob da Colina, aparece, rapaz!
Então, para horror de todos, elevando-se de uma sombra escura situada junto aos pés de Robin, surgiu um homem pequenino, cujo rosto, comprido e pálido, brilhava
à luz da fogueira, e cujos olhos negros cintilavam como abrunhos. Alguns dos presentes, sem deixar de o fitar, afastaram-se imediatamente. Enquanto isso, houve quem
se benzesse. Quanto a Much, o filho do moleiro, ei-lo a despir a túnica e a virá-la do avesso.
- Valha-me São Pedro! - murmurou ele. - Por favor, protege-nos contra o poder dos espíritos malfazejos!
- Vamos parar com isto tudo! - exclamou Robin, uma nota de dureza na voz. - Hob não é nenhum espírito malfazejo, mas sim um homem igual a vocês. Talvez tenha
os membros mais pequenos, é certo, mas é muito mais ajuizado.
- É um gnomo, mestre - disse um dos fora-da-lei -, um gnomo ou, como também lhes chamam, um demônio. Ele é dos que conduzem os homens até aos pântanos ou,
então, fá-los vaguear pela charneca durante a noite.
- Eram os da raça dele - disse Rafe, o Carreteiro – que tinham o costume de entrançar as crinas dos cavalos durante a noite, o que os levava à loucura.
- E - continuou outro - o povo maldito a que ele pertence traça aqueles círculos verdes nos prados onde, se os animais aí pastarem, acabam por ficar envenenados.
- Não falem ao elfo - disse ainda um outro, fazendo figas frente ao rosto, tentando assim proteger-se contra o "mau-olhado" do duende - ou, então, é bem
certo que morrerão.
- Velhas! Umas velhas é o que vocês são todos! – ripostou Robin, desdenhoso. - Dou-vos a minha palavra em como Hob é um homem capaz de sofrer como vocês.
Tem o mesmo sangue para derramar, os mesmos membros para torturar, até mesmo para sentir as queimaduras provocadas pelo fogo. Escutem! - E a sua voz mal podia conter
a raiva. - Hob tem um irmão chamado Ket. Ambos são meus amigos. Ajudam-me com muita frequência e já me salvaram a vida muitas vezes. Ordeno-vos que não os tratem
mal nem os desprezem.
- Mas, mestre, como foi que conseguiste que eles se tornassem teus amigos? - inquiriu João Pequeno, que brindava Hob com um sorriso bem humorado. - Como
foi que conquistaste a sua estima?
- Eu conto-vos - respondeu Robin. - Foi há dois Verões. Eu ia a caminhar pelo coração desta floresta e vi-me numa clareira solitária onde os guardas-florestais
nunca vão, pois dizem que está assombrada, e até mesmo os mais corajosos tratam de se manter longe dela. E, nessa floresta, existem duas pequenas colinas ou montículos
verdes. Passei por eles e vi três cavaleiros apeados e dois estendidos no chão, mortos. Quanto aos três cavaleiros, lutavam com dois duendes: este homem e o irmão.
Hob estava gravemente ferido, o mesmo se passando com o irmão, e os cavaleiros acabaram por os dominar. Interroguei-me sobre o que iriam eles fazer e vi-os fazer
uma fogueira. Aproximei-me em silêncio e ouvi-os dizer que queriam ver se estes dois duendes também ardiam, à semelhança do que se passara com o pai deles em Hagthorn
Waste, ou se, pelo contrário, eram demônios do fogo e acabariam por se escapulir, transformados em fogo. Depois, enquanto arrastavam os dois homens para a fogueira,
vi abrir uma porta coberta de relva situada no flanco de uma das encostas, e de lá saíram três mulheres, uma idosa e aleijada, as outras duas ainda novas. Estas,
apesar de pequeninas, eram muito belas. Atiraram-se as três aos pés dos cavaleiros, imploraram-lhes que tivessem piedade dos irmãos e a mulher de idade chegou ao
ponto de se oferecer para ser queimada em lugar dos filhos. A princípio, a maravilha que constituía semelhante visão deixou os cavaleiros sem fala, mas o certo é
que acabaram por pegar nas três mulheres, jurando que também elas seriam queimadas juntamente com os duendes masculinos da família. Foi então que deixei de me conseguir
conter e, com as três flechas que tirei do cinto, liquidei aqueles cavaleiros malvados. Tirei os dois pobres homens da fogueira e, desde esse dia, eles e a sua gente
têm sido os meus melhores amigos, aqui, na floresta.
- Mestre - disse João Pequeno, falando com sobriedade -, foi muito corajoso da tua parte fazer o que fizeste, e a verdade é que provaste que homem algum
deverá recear as consequências dos seus atos, bastando que estes sejam honestos e generosos.
E, dizendo isto, levantou-se e inclinou a sua forma gigantesca na direção do Pequeno Hob, estendendo-lhe depois a mão.
- Rapaz - disse ele -, dá-me a tua mão, pois serei amigo de todos os que são amigos do nosso bom Robin.
- Eu também - disse o valente Will Stuteley, de pronto secundado por Scarlet, que acompanhara o outro quando este avançara.
O homenzinho apertou-lhes a mão à vez, fitando-lhes atentamente o rosto enquanto o fazia.
- Hob da Colina será um irmão para todos os que são irmãos de Robin dos Bosques - declarou ele.
- Escutem, amigos - prosseguiu Robin. - Assim como vocês sofreram a opressão e a malícia de senhores que se portam como tiranos, assim sofreram o nosso amigo
aqui presente e o irmão.
Os cinco cavaleiros que eu e ele matámos pertenciam àquele bando cruel que pôs Hagthorn Waste a ferro e fogo. Sei que Ranulf de Waste praticou um qualquer
ato cruel em relação ao pai destes nossos amigos e talvez já não falte muito para que possamos ajudar Hob e o irmão a vingarem-se do senhor impiedoso que é responsável
pelas torturas a que o pai deles esteve sujeito. Que dizes a isto, Hob? Recorrerás a nós caso precises de ajuda?
- Se for necessário, sim - retorquiu Hob, cujos olhos se mostravam agora ferozes e cuja voz era grave. - Mas nós, homens do Mundo Inferior, preferimos ocuparmo-nos
pessoalmente das nossas vinganças. Na devida altura, faremos o que tiver de ser feito e não vamos estar com meios termos. Ainda assim, Robin, agradeço-te, bem como
a estes teus amigos, a ajuda que nos ofereceste.
O homenzinho expressara-se com dignidade, tal como se estivesse a dirigir-se a um igual.
Chegou então a vez de o pequeno Gilbert entrar em cena, entregando a mão ao aperto firme do outro. Seguiu-se-lhe Much, o filho do moleiro. Então, os restantes,
vendo que Robin e João Pequeno nada receavam, puseram de lado o medo do desconhecido e também eles se aproximaram, declarando a sua amizade a Hob da Colina.
- Agora - disse Robin -, somos todos irmãos do povo livre da floresta. Jamais terão de recear afastar-se da fogueira durante a noite e, durante o dia, poderão
percorrer até mesmo a mais solitária das clareiras. A floresta dá-vos toda a liberdade, e todos os que nela habitam são vossos irmãos.
- E eu digo o mesmo - afirmou Hob. - Eu, cujo povo em tempos governou toda esta terra. Agora, nós, o Povo Pequeno, reconhecemo-nos derrotados. Somos meio
temidos e meio desdenhados. Nós bem como os nossos feitos inofensivos, acabamos por nos transformar em histórias sem pés nem cabeça, contadas pelas mulheres idiotas
e crianças assustadas quando, à noite, se reúnem junto à lareira. Mas a vocês, que são irmãos do meu irmão, dou-vos a velha palavra de paz e de fraternidade, a mesma
palavra que, antes de os homens altos e louros terem profanado a nossa terra, nós, o Povo Pequeno, oferecíamos àqueles que nos ajudavam eram nossos amigos. Eu, cujos
antepassados foram Senhores do Mundo Inferior e do Mundo Superior, o Povo dos Outeiros, o Povo das Pedras e também o Povo das árvores, concedo-vos, meus irmãos,
o dom de partilharem a mesma porção de terra, de verde, de água e também de ar, isto desde que façam parte da floresta e da charneca.
E com estas palavras, o homenzinho escuro deslizou para longe do círculo de luz emanada das chamas, parecendo fundir-se de forma imediata com a sombra das
árvores.


3.
DE COMO ROBIN LUTOU CONTRA O
MENDIGO-ESPIÃO E APANHOU O XERIFE
xx
Fora-se o Inverno, a luz suave da Primavera fazia incidir os seus raios por entre as árvores nuas, de troncos castanhos, da floresta de Sherwood, a brisa
agitava as avelaneiras, os salgueiros e também os choupos. Quanto ao tordo, que já vivia, há cinco Invernos, na charneca, foi colocar-se no topo do mais alto dos
ulmeiros e pôs-se a gritar a todos os que o quisessem ouvir que não via neve em lado nenhum, que os rebentos em todas as árvores cresciam com a maior das velocidades,
que as minhocas começavam a espreitar por entre a turfa, e que, de fato, os alimentos, a vida e o amor, tudo isto ia regressando a um mundo que, durante muitas e
longas semanas, parecera morto, para sempre embrulhado no seu sudário.
Uma vasta clareira, estranhamente desprovida de arbustos, estendia-se à sua frente, e, num dos lados, viam-se dois grandes cômoros verdes, posicionados quase
lado a lado. Um deles erguia-se de forma bastante visível, se bem que as sombras que se estendiam a partir da orla da floresta acabassem por pousar na outra direção.
Parecia não haver um só vestígio de vida humana naquela clareira. Por certo que um pequeno carreiro dava a impressão de querer despontar num determinado
ponto da vertente verde do cômoro mais distante, embrenhando-se depois na floresta. Contudo, a verdade é que aquilo podia muito bem tratar-se de um trilho de lebres
que tinham encontrado refúgio na encosta, e que, como todos sabem, costumam sempre correr ao longo do mesmo trilho quando se dirigem para o local onde é hábito comerem.
De repente, eis que, vindo da floresta, um homem de pequena estatura fez a sua entrada em cena no ponto mais largo da clareira. Tão ligeiro quanto uma lebre,
correu pela erva, trepou ao cômoro mais próximo e, uma vez chegado ao topo, deu a sensação de que se afundava subitamente no solo. Era Hob da CoLina. Passados alguns
instantes, e naquele lado do cômoro que dava para a zona mais próxima da floresta, um pedaço de turfa verde pareceu abater-se subitamente sobre si mesmo, dando passagem
a duas pequenas formas: Hob da Colina e Ket, o irmão. Olharam em volta com atenção, a turfa atrás deles voltou a fechar-se e, com passos rápidos, ei-los a correr
pelo pequeno carreiro. De vez em quando, olhavam para trás no intuito de se certificarem de que ninguém na floresta observava o cômoro de onde haviam emergido.
Não demoraram muito a chegar à zona da floresta que mais perto deles ficava, pondo-se a correr pelos seus caminhos sombrios sob os troncos nus e castanhos
das árvores. Durante um breve espaço de tempo, o mesmo que demora até que um homem conte até vinte, não se registaram quaisquer movimentos na clareira. Então, na
zona onde Hob surgira pela primeira vez, elevou-se nos ares o som de cascos, o brilho das armas e, descendo o carreiro estreito, surgiram oito cavaleiros que, uma
vez na clareira, se imobilizaram, pondo-se a olhar em frente.
Quem seguia à cabeça do cortejo era um homem elegante, quase aristocrático, com feições agradáveis. Trazia um elmo de aço na cabeça, o peito largo estava
coberto por uma cota de malha e transportava uma lança na mão direita. A seu lado, montado num palafrém, via-se um indivíduo de feições suaves e gentis que parecia
ser capelão, já que envergava o traje semimonacal dos eclesiásticos.
Atrás deles cavalgavam seis homens, cada um com a sua lança, a sua cota de malha e elmo de aço, aljavas às costas e arcos presos às selas em pontos em que
era extremamente fácil agarrá-los. Tinham o ar franco e aberto de homens livres, sendo óbvio constituírem a guarda pessoal de rendeiros independentes.
- Bom, mestre Gammell - disse o eclesiástico, olhando de um lado para o outro -, qual é o caminho a seguir? Nesta confusão de árvores, clareiras e vales,
não consigo compreender como é que ainda tens esperança de encontrar esse teu parente renegado.
- É claro como a água - respondeu mestre Gammell, soltando uma gargalhada. – "Para lá dos dois montes", foi o que disse aquele bom vilão em Outwoods, "há
que atravessar a floresta durante quilômetro e meio, onde encontrarão uma encruzilhada. Depois, há que procurar os penedos que formam os montes Clumber e que ficam
do outro lado do rio." - aqui, o mestre Gammell voltou a rir, bem disposto – "... prepara-te para uma flecha nas costas, vinda sabe Deus de onde, te dizer que o
teu homem te viu, embora dele não tenhas encontrado um só vestígio." Assim, meu bom Simon - concluiu ele -, o caminho que nos levará ao local onde Robin passou o
Inverno não tem nada que enganar. Logo, o melhor é avançarmos.
E, esporeando o cavalo, o chefe, Alfred de Gammell, ou Gamwell, avançou pela clareira, seguido do religioso e dos seis arqueiros.
- É melhor não nos aproximarmos muito destes montículos verdes - disse Simon. - Consta que são habitados por demônios, e é bem provável que nos enfeiticem,
se passarmos pelo seu círculo poderoso.
- Não és nenhum campônio - troçou o mestre Gammell. São muitos os cômoros deste tipo espalhados nesta zona e, pelo que sei, nunca ninguém se magoou ao entrar
em contato com eles. De fato, havia um no meu baldio de Locksley, e, embora me lembre perfeitamente de como os meus vilões me vieram implorar que não o destruísse,
respondi-lhes que não me podia dar ao luxo de desperdiçar terra fértil. Acabei por o destruir, e a verdade é que não se encontrou nada de estranho lá dentro, a não
ser um buraco no meio do qual havia uma bilha contendo uns quantos ossos chamuscados, bem assim como umas quantas pontas de seta e pedaços de pedra. Estas coisas
não passam de sepulturas antigas.
- No entanto - prosseguiu o outro -, li que é dentro destes cômoros situados em locais isolados que se entra nas terras enfeitiçadas do crepúsculo verde,
onde habitam demônios encantadores e onde terríveis feiticeiros realizam toda a espécie de atos de magia e de encantamentos.
- Pela parte que me toca - disse Gammell -, receio bem que essas histórias sejam tão verdadeiras quanto as canções e os contos dos trovadores, que apenas
servem para passar uma ou duas horas de lazer, não merecendo a atenção de nenhum homem sensato.
Ainda assim, o eclesiástico não desviou os olhos das pequenas colinas verdes à medida que por elas passavam, tal como se estivesse à espera que, a qualquer
momento, algo de misterioso e terrível se escapasse de dentro delas, prendendo-os nas correntes de um qualquer estranho encantamento. Mesmo depois de terem entrado
na floresta em frente, era como se ele não conseguisse deixar de se mostrar vigilante. De fato, Simon não gostava de florestas escuras. Tratava-se de um homem que
vivera quase sempre em cidades, não havendo para ele som mais doce do que os gritos dos homens e das mulheres que discutiam nos mercados, nem paisagem mais agradável
que a de uma rua estreita, o céu recortando-se a custo por entre os telhados.
Tinham percorrido cerca de meio quilômetro quando, subitamente, um grito agudo ressoou por sobre as suas cabeças. Lembrava o grito de uma ave nas garras
de um falcão e, quase sem que de tal se apercebessem, todos eles levantaram os olhos para presenciar a caçada. Quando o fizeram, escutou-se uma voz profunda trovejando:
- Parem, estranhos, e não se mexam!
Bastaram estas palavras para que todos os olhos se baixassem, e, olhando em volta, viram que, onde antes tinham apenas visto os troncos escuros das árvores,
estavam agora cerca de vinte homens envergando túnicas castanho-escuras, calças de malha e capuzes, todos eles empunhando um arco esticado, a pena de uma flecha
encostada à orelha.
Um ou dois dos soldados que cavalgavam atrás do amo praguejaram e lançaram um olhar feroz em seu redor, como que à procura de um ponto por onde pudessem
fugir. Contudo, olhando com atenção, compreenderam estar cercados de arqueiros. As suas túnicas e calças escuras, sendo da cor das árvores, tornavam-nos tão parecidos
com os troncos que, por breves instantes, alguns dos soldados pensaram estar a olhar para um espinheiro nodoso ou para um jovem carvalho, até que a luz a brilhar
na ponta de uma seta afiada os fizera compreender o seu erro.
Alfred de Gammell mordeu o lábio e os seus olhos faiscaram de raiva. Contudo, fazendo com que o bom humor levasse a melhor sobre a mortificação, disse:
- Bom dia, meus bons homens. Que querem vocês de mim?
- Deitem as armas ao chão - respondeu um homem alto e forte que se encontrava junto ao tronco de um carvalho, mesmo em frente a eles.
Muito a contragosto, os seis arqueiros fizeram o que o ladrão lhes ordenara e, quando quase todas as armas se encontravam por terra, escutou-se uma outra
ordem:
- Avancem dez passos! - Uma vez feito isto, aquele que falara deu ordens a três dos seus homens para que recolhessem as armas.
- Agora - disse ele, dirigindo-se ao mestre Gammell – está na hora de te encontrares com o nosso chefe, que é quem manda nestas paragens.
- E quem é o teu chefe, grandalhão? - quis saber Gammell, zangado, enquanto o outro lhe agarrava a rédea do cavalo e o obrigava a avançar.
- É ele quem te irá responder - retorquiu o ladrão. - Contudo, seria bom que a tua bolsa estivesse bem recheada, já que, embora tu e a tua companhia possam
estar certos de que vos iremos servir uma boa refeição, o certo é que terão de pagar por ela.
Mestre Gammell viu-se impedido de responder quando, de entre as árvores que se estendiam à sua frente, se elevou um grito. Olhando nessa direção, viu um
homem que avançava para junto deles, na companhia de dois homens pequeninos. O indivíduo alto estava vestido de verde, envergando uma capa que lhe chegava aos joelhos,
enquanto um capuz lhe cobria a cabeça e lhe escondia o rosto.
Ao ver aproximar-se o homem vestido de verde, o salteador que segurava a rédea fez com que o cavalo de Gammell se imobilizasse e disse:
- Mestre, está aqui um grupo de homens armados e muito tontos que entraram na tua floresta como se para tal lhes tivesses dado autorização, algo que nem
o próprio rei tem. Estás a pensar em lhes oferecer o jantar ou será melhor que lhes tiremos as bolsas e os deixemos seguir viagem, desta eita mais leves e mais sensatos
do que quando aqui chegaram? Durante alguns instantes, o homem de verde deixou-se ficar de lado, fitando o rosto do cavaleiro que seguia na frente. De seguida, com
uma gargalhada franca, aproximou-se dele com a mão estendida, puxando o capuz para trás e fazendo com que o seu rosto se tornasse visível, disse:
- Dá-me a tua mão, primo, e desculpa os meus homens pela sua rudeza.
Surpreendido, Gammell olhou atentamente para o rosto de Robin, já que era ele o homem vestido de verde, e, apertando a mão do fora-da-lei entre as suas,
comentou, sorridente:
- Robin, Robin, meu patife! Devia ter adivinhado que estes homens eram os teus fiéis servidores. Foi a ti que vim visitar.
Gammell saltou do cavalo e os dois homens abraçaram-se e beijaram-se em ambas as faces. De seguida, Gammell afastou Robin de si e pôs-se a observá-lo, os
olhos bem dispostos e admiradores percorrendo-lhe as faces bronzeadas, o olhar inteligente e destemido, os cabelos castanhos e escuros e os membros compridos e fortes.
- Pelo altar de Walsingham! - exclamou Gammell. - Mal te conhecia, tão fortes se tornaram os teus membros desde a última vez que nos vimos, faz agora cinco
anos, em Locksley. Robin, lamentei imenso saber que havias sido obrigado a fugir para a floresta. É uma pena que nunca tenhas tido cuidado com as palavras e que
te mostrasses sempre tão pronto a agir!
- Vamos lá, rapaz - contrapôs Robin, mostrando-se sóbrio -, deixa-te disso. Nunca estivemos de acordo nesse ponto. Achaste melhor dares-te bem com o senhor
poderoso cujas terras confinam com as tuas e fechar os olhos perante muitas coisas contra as quais me senti obrigado a lutar. E agora, primo, conta-me o que te trouxe
por cá.
- Vim visitar-te, Robin. Visitar-te e agradecer-te - respondeu o outro. - E também avisar-te.
- Agradecer-me?
- Sim, pelo feito nobre que praticaste em Havelond! - exclamou Gammell. - Tratou-se de um ato de justiça aquilo que fizeste com os traidores e ladrões que
maltrataram a nossa pobre prima, isto depois de ela ter ido procurar justiça no tribunal do rei... de fato, no próprio trono real! Este fora, sem dúvida, um ato
que, quase tanto quanto a sua primeira fuga, ou seja, depois de ter morto os soldados do abade, contribuíra para que a fama de Robin se espalhasse pelas terras do
Yorkshire, de Derby e até mesmo de Nottingham, as quais se estendiam junto à enorme floresta.
Tudo se passara no Outono passado, pouco antes de o Inverno cobrir a terra de gelo e de neve, usando para isso da sua mão de ferro. Robin tinha uma prima,
uma dama chamada Alice de Havelond, que casara com Benett, um próspero proprietário rural com residência em Scaurdale, no Yorkshire. Dois anos antes, as hordas de
invasores escoceses, acompanhadas pelos ferozes homens de Galloway, cruéis e selvagens como gatos bravos, haviam ali surgido vindas do norte, tudo destruindo e queimando.
Um cavaleiro escocês capturara Benett e fizera dele seu refém, atirando-o para uma prisão até receber o dinheiro do resgate. Na sua ausência, Thomas de Patherley
e Robert de Prestbury, vizinhos da esposa, apoderaram-se das terras de Havelond, dividiram-nas entre si e deitaram as casas abaixo, chegando ao ponto de expulsar
Alice da sua residência.
A pobre senhora não conseguira que lhe fosse feita justiça, nem mesmo no tribunal do rei, o mesmo se passando junto do administrador do homem a quem as
suas terras pertenciam. Então, depois de o marido ter passado um ano na prisão, lá conseguira pagar o resgate que por ele pediam. O homem regressara, furioso ao
tomar conhecimento de que as suas terras haviam sido roubadas, mas fizera questão de entrar nelas na sua qualidade de legítimo proprietário. Os seus inimigos armaram-lhe
uma cilada e deram-lhe uma sova tão grande que por pouco não o mataram. A esposa seguiu até ao tribunal do rei, onde, ao fim de uma espera longa e cansativa, lhe
disseram que teria de ser Benett em pessoa a apelar - embora a sova que recebera tivesse deixado o pobre homem em tão mau estado, que seria um inválido para toda
a vida. Assim, tudo levava a crer que Thomas de Patherley e Robert de Prestbury, depois de se terem mostrado fortes e desprovidos de escrúpulos, acabariam por ficar
na posse das terras que tinham roubado.
Fora então que Alice se lembrara de recorrer aos familiares. Procurara Alfred de Gammell, que lhe prometera levar outra vez o caso ao tribunal real, mas
a senhora já não confiava naquele tipo de justiça. Então, montara um cavalo e, na companhia de uma criada e de um vilão, embrenhara-se na floresta onde constava
que o seu corajoso primo, Robin dos Bosques, vivia. Depois de muitas peripécias, acabara por o encontrar, contando-lhe então todos os seus problemas e pedindo-lhe
ajuda.
Robin conseguiu mandá-la de volta a casa com promessas de que tudo se arranjaria, mas a senhora nada disse a respeito da visita que fizera ao primo. Passaram
alguns dias, e então, certa noite, os homens que viviam em Scaurdale viram duas casas a arder, lá longe, na charneca, e ficaram a saber que, de uma forma ou de outra,
a vingança acabara por cair sobre os dois ladrões. No dia seguinte, todos sabiam o que acontecera, e o fato enchia-os de alegria. Robin dos Bosques matara Thomas
de Patherley e Robert de Prestbury, restituindo deste modo a Benett de Havelond os campos que os dois patifes lhe haviam roubado.
- Deixa-me confessar-te uma coisa - disse Alfred de Gammell, a admiração que sentia pelo primo levando a melhor relativamente à aversão que sentia pelos
atos de violência -, os teus atos fizeram com que todos os homens influentes que vivem perto da floresta pensem duas vezes antes de oprimirem com demasiada crueldade
os fracos, já que a sua vez pode vir a seguir.
- Espero sinceramente que assim seja - disse Robin, e havia amargura no seu rosto. - Se deixarmos que uma injustiça tão grande como a que foi cometida contra
o Benett e a nossa prima passe sem castigo, então, junto de quem é que os oprimidos podem procurar ajuda? Nunca junto dos teus padres de falinhas mansas, primo,
que espremem os pobres com a mesma maldade com que qualquer barão ratoneiro o faz, e enchem as bolsas com o dinheiro que roubam aos rendeiros de fracos recursos.
Mas diz-me uma coisa, contra quem é que me querias avisar?
- Contra Sir Guy de Gisborne e as suas conspirações diabólicas - replicou Gammell. - Estive ontem em Outwoods, que agora se encontra nas mãos do beleguim
do rei, até que passe um ano e um dia desde que foste considerado fora-da-lei. Uma vez aí, fui à procura do Cripps, o velho bailio, que sabia ser teu amigo, e ele
contou-me nutrir Sir Guy uma enorme aversão contra ti e os teus homens. Já era um indivíduo amargo antes de lhe teres queimado a casa, mas agora mostra-se ainda
mais perverso e duro. E, recorrendo a juras pavorosas, declarou que te acabaria por capturar, vivo ou morto.
- De que conspirações falou o velho Cripps?
- Ele tornou-se unha com carne com Ralph Murdach, o xerife de Nottinghamshire, e os vilões contaram que alguns vigilantes lhe disseram que ambos, Sir Guy
e mestre Murdach, andam a subornar uma série de maus elementos para que se disfarcem de pedintes, romeiros e bufarinheiros, e que se ponham a percorrer a floresta
em busca dos teus esconderijos, isto para que, um dia, estejam em condições de reunir os seus soldados e de te atacar.
- Agradeço-te o aviso - disse o fora-da-lei, embora aparentasse não lhe ter prestado qualquer atenção especial. - Mas chegou a hora de tu e de os teus homens
virem almoçar comigo.
Nesta altura, encontravam-se já num local secreto, situado numa encosta coberta de árvores que se elevava abruptamente na floresta, junto de um rio, e numa
gruta já alguém tratara de servir o festim, sentando-se todos eles no intuito de lhe fazer a devida justiça.
Robin e os seus homens perguntaram a Gammell se Sir Guy tratava agora os vilões que viviam na propriedade de forma ainda mais cruel do que anteriormente.
- Os homens dizem que não - retorquiu o outro - e por uma boa razão. Consta que quando o abade Robert, de Santa Maria, tomou conhecimento de que mataras
os soldados e fugiras com os teus homens, ele se zangou a sério com Sir Guy, acusando-o de ter tratado muito mal as pessoas da propriedade, e que devia ter cuidado,
caso contrário deixaria de o tolerar enquanto administrador. Assim, os camponeses não são tão maltratados quanto antes, embora Sir Guy lhes seja ainda mais odioso.
- Milagre! - exclamou Scarlet, desdenhoso. - Uma palavra de misericórdia da parte do gordo e orgulhoso abade de Santa Maria!
- Talvez, tio - começou o pequeno Gilbert da Mão Branca que sempre quisera ser padre e aprender a ler -, talvez o abade nunca tenha dito a Sir Guy para oprimir
os camponeses e que Sir Guy o tenha feito obedecendo ao seu coração de tirano.
E, de fato, era isto que muitos dos bandoleiros sentiam no fundo dos seus corações, e, a partir daquele dia, não voltaram a pensar no abade em termos tão
negativos.
Passado pouco tempo, Gammell e os seus homens acabaram por partir, e Robin e alguns dos seus companheiros escoltaram-nos até à orla da floresta, colocando-os
no caminho rumo à aldeia de Locksley, situada a sudoeste da pequena cidade de Sheffield.
Três dias depois, durante a tarde, Robin caminhava junto à estrada larga que, partindo de Pontefract, atravessava a floresta até chegar a Ollerton e a Nottingham.
Meditava no que o primo lhe dissera a respeito dos esquemas de Sir Guy de Gisborne destinados a capturá-lo, morto ou vivo, e, enquanto caminhava por entre as árvores,
escutou o arrastar de passos. Quando ergueu os olhos, viu um mendigo que descia a estrada.
Do ponto onde se encontrava, Robin podia ver o homem sem se arriscar a ser visto e, enquanto observava o pedinte caminhar com passos vigorosos, levando consigo
um enorme bastão, interrogou-se sobre se, de fato, este homem era mesmo um pedinte ou se, pelo contrário, era um dos espiões a quem Guy de Gisborne dera ordens para
o vigiar.
A capa do desconhecido estava remendada em cinquenta lugares diferentes, antes parecendo uma coleção de capas diferentes. As pernas estavam enfiadas em calças
de malha esfarrapadas, enquanto nos pés levava um par de enormes botas de couro. A rodear-lhe o corpo, e presa por uma enorme correia, estava a sacola onde ele guardava
a comida, enquanto que, presa ao cinto e dentro de uma bainha de couro, se via uma faca comprida. A cobrir-lhe a cabeça, a criatura tinha um chapéu de copa baixa,
de tal forma grosso e pesado que era como se fosse feito com três chapéus diferentes, cozidos uns aos outros.
Robin sentiu-se dominar pelas suspeitas, uma vez que o homem parecia estar vestido para representar o papel de mendigo, estando longe de parecer um mendigo
de verdade. Como se isto não bastasse, os seus olhos não paravam de olhar de um lado para o outro, enquanto caminhava ao longo do carreiro irregular.
Como o mendigo já tivesse deixado para trás o lugar onde Robin se encontrava, o bandoleiro gritou-lhe:
- Pára, mendigo! Para quê tanta pressa?
O outro não respondeu, antes estugou o passo. O fora-da-lei correu ao seu encontro e o homem virou-se, zangado, brandindo o bastão. Tratava-se de um indivíduo
com um péssimo aspecto, uma cicatriz profunda numa das faces, cicatriz esta que lhe chegava à sobrancelha.
- Que queres de mim, homem da floresta? - gritou o mendigo. - Será que um homem já não pode andar em paz e sossego pela estrada do rei sem que um qualquer
vagabundo o incomode?
- Estás a ser mal-educado, pedinte - disse o outro. - Mas eu vou explicar-te por que te pedi para que parasses. Se queres seguir viagem para a floresta,
então, tens de pagar portagem.
- Portagem! - exclamou o outro, soltando uma enorme gargalhada. - Caso fiques à espera que te pague essa tal portagem, gafanhoto, bem que aí podes ficar
parado durante um ano.
- Pronto, pronto - retorquiu Robin -, abre lá a tua capa, homem, e mostra o que tens na tua sacola. A avaliar pelas roupas, és um pedinte rico... isto se
fores mesmo um pedinte e não um patife disfarçado de mendigo honesto.
O homem franziu a testa e deitou um olhar suspeito ao fora-da-lei, apertando o bastão.
- Vamos lá, rapaz - disse Robin, bem humorado -, não é preciso apertares o bastão com tanta força! Por certo que tens uma moeda decente nessa bolsa e com
ela poderás pagar a portagem que te pede um pobre homem que vive na floresta.
- Vai roubar o que é teu, meu velhaco! - rugiu o mendigo. - De mim não levas nada. Não tenho medo das tuas flechas e ficarei muito contente quando te vir
pendurado na forca... o que, espero, já não falta muito para acontecer.
- E, sem dúvida, que não hesitarás em fazer todo e qualquer trabalho sujo, desde que a tua traição te faça ganhar nem que seja uma só moeda - comentou Robin.
- E eu a pensar que eras um pedinte honesto! Traidor e patife, aí está o que tens escrito nessa cara malvada. E agora, escuta-me! Sei que és um traidor e que estás
a ser pago por um homem cruel, mas, ainda assim, não vou renunciar à minha portagem. Atira a bolsa para o chão, caso contrário espera-te uma flecha.
Enquanto falava, Robin preparou-se para ajustar uma flecha à corda do arco. Contudo, os seus dedos não conseguiram encontrar a corda, e baixou os olhos,
para ver o que fazia. Aquele instante revelou-se fatal. Com movimentos que lembravam os de um gato selvagem, o mendigo deu um salto para a frente e, fazendo girar
o bastão, arrancou o arco e a flecha das mãos de Robin.
O bandoleiro recuou e puxou da espada, mas, com a rapidez de um relâmpago, o pedinte conseguiu assestar-lhe um golpe na cabeça. Atordoado, Robin caiu ao
chão, no preciso instante em que se ouviam gritos entre as árvores que ladeavam o carreiro. O mendigo olhou de um lado para o outro e tratou de levar a mão ao cabo
do punhal afiado que levava preso ao cinto, e durante um breve instante agachou-se, parecendo prestes a saltar sobre o indivíduo que se encontrava caído e a matá-lo
imediatamente.
Um homem vestido de castanho saltou de entre os arbustos, logo seguido por outros dois. Cravaram os olhos no pedinte, que tratara de compor um ar inocente
e retomara a sua marcha, de pronto desaparecendo de vista quando, depois de uma curva, as árvores ocultaram o caminho.
Dois dos homens eram jovens recrutas do bando de foragidos, ao passo que o terceiro era Dodd, o soldado que se rendera a Robin quando este matara Hugo de
Lynn. Assim que começaram a percorrer o carreiro, Dodd não demorou muito a descobrir o arco e a flecha que haviam sido arrancados das mãos de Robin, e parou.
- Ora bem - começou ele -, que se terá passado aqui? Este é o arco do nosso chefe. Conheço-o pelo tamanho, já que nenhuma outra mão é capaz de o manejar.
- Reparem! Reparem! - gritou um dos outros, ao mesmo tempo que empurrava o arbusto onde Robin caíra. - Está aqui um homem ferido... Virgem Santíssima, é
o nosso mestre! Valha-me São Pedro! Quem é que pode ter praticado um ato tão hediondo?
Dodd não perdeu tempo e ajoelhou-se junto ao chefe, colocando-lhe a mão no seu gibão, tentando desta forma ver se o coração do outro ainda pulsava. Então,
gritou:
- Rapazes, Deus seja louvado! Ele ainda está vivo. Corram até ao riacho que passa junto àquele espinheiro branco e alguém que encha uma boina com água.
Uma vez tendo sido atirada água ao rosto do fora-da-lei, este não demorou muito a recuperar os sentidos. Soltou um suspiro profundo, levou a mão à cabeça
dorida e abriu os olhos.
- Oh, mestre! - exclamou Dodd. - Diz-nos quem foi que te tratou assim tão mal. Por certo que uma coisa destas só pode ter sido feita à traição. Quantos foram
os que se abateram sobre ti?
Robin esboçou um sorriso pálido na direção dos três rostos ansiosos que se debruçavam sobre ele, e não demorou muito para se sentir suficientemente recomposto
para se sentar.
- Apenas um homem se abateu sobre mim - disse ele. - Tratava-se de um rufião entroncado, vestido de mendigo. Agrediu-me com o seu enorme bastão quando eu
me preparava para ajustar uma flecha ao arco e, antes que me pudesse defender, já tinha desmaiado e caído ao chão.
- Macacos me mordam! - disse Dodd. - Foi aquele mendigo com mau aspecto que vimos quando chegamos à estrada. Parecia tão inocente! Vamos, rapazes - prosseguiu
ele, virando-se para os outros dois companheiros -, provem o que valem, capturem-no e tragam-no de volta, para que o nosso mestre o possa matar, se assim o desejar.
- Mas - interrompeu Robin - tenham cuidado com a forma como se aproximam do patife. O meu mal foi ter cometido o disparate de me chegar demasiado perto do
seu bordão. Caso o deixem servir-se do varapau, então, ele vai acabar por vos aleijar.
Os dois jovens prometeram aproximar-se do pedinte com todas as cautelas, e depois partiram, cheios de entusiasmo, deixando Dodd a fazer companhia a Robin
até que este se sentisse com forças suficientes para se levantar e, com a ajuda do outro, regressar ao acampamento.
Entretanto, os dois jovens bandoleiros, sabendo que o mendigo podia apenas seguir pela única estrada que atravessava a floresta, não demoraram muito a se
lançar em sua perseguição. Contudo, um deles, Bat, ou Bart, de seu nome, sugeriu que seria melhor meterem por um atalho ali perto, o que lhes permitiria armar uma
emboscada ao outro numa parte estreita do caminho. O companheiro concordou, e os dois embrenharam-se na floresta. Tratava-se de dois rapazes fortes, e, se o seu
raciocínio fosse tão agudo quanto os seus sentidos, tudo teria corrido bem com eles. Porém, tinham deixado o arado há apenas três semanas, já que até essa data tinham
trabalhado duro nos campos pertencentes ao amo, e não se mostravam ainda tão desenvoltos quanto o estariam caso convivessem há um pouco mais de tempo com os perigos
da floresta.
Enquanto corriam por entre as árvores, atravessando clareiras e terrenos pantanosos, não se incomodavam nem com os charcos nem com as poças, nem com qualquer
obstáculo que lhes pudesse surgir pela frente.
Acabaram por entrar de novo na estrada, justamente no ponto em que esta passava por um pequeno vale arborizado. Mesmo ao fundo deste, a floresta era bastante
cerrada, e a estrada tornava-se mais estreita. Foi ali que eles se posicionaram, cada qual escondido atrás da sua árvore.
Ali agachados, à espera, não demoraram muito a escutar o arrastar de passos que desciam a encosta e, quando espreitaram pelo caminho, viram o mesmo mendigo
que tinham visto perto do local onde o chefe de ambos jazia, desfalecido.
Assim que o homem chegou frente ao ponto onde os dois homens se escondiam, ei-los a saltar sobre ele, e antes mesmo que o indivíduo pudesse pensar em fugir,
um deles arranca-lhe o bastão das mãos, enquanto o outro lhe tira a faca do cinto, tratando de lhe encostar ao peito.
- Vilão traidor! - gritou o bandoleiro. - Não resistas, caso contrário serei eu mesmo o padre que te mandará para o outro mundo.
A raiva encheu de sombras o rosto do mendigo, que tanto olhava de um para o outro, como tentava encontrar uma forma de sair dali. Todavia, compreendeu não
ter qualquer hipótese de fuga e resolveu servir-se de artimanhas para levar a sua avante.
- Meus bons homens - disse ele, falando com humildade -, não me tirem a vida! Tirem daqui essa faca feia e afiada, ou ainda acabo por morrer de medo. Que
foi que vos fiz para que me queiram matar? E que poderão vocês ganhar com os meus farrapos, caso matem um mendigo velho e pobre?
- Estás a mentir, patife! - gritou Bat, zangado. - Penso que o melhor seria enfiar-te já esta faca entre as costelas. Quase mataste o melhor e o mais corajoso
dos homens que existe em Sherwood e Barnisdale. E é para junto dele que te vamos levar de volta, atado e manietado, competindo-lhe a ele dizer se te deveremos usar
como alvo para as nossas setas ou se será melhor pendurarmos-te numa árvore, pois talvez não valha a pena gastar boas setas com a tua carcaça ruim.
- Meus bons homens, estão por acaso a falar daquele homem a quem agredi e que me dizem quase haver morto? - inquiriu o falso pedinte em voz chorosa. - Oh,
mas se foi em legítima defesa que lhe bati! Peço desculpa se o meu golpe desajeitado quase o matou.
- Acontece que não o mataste! - exclamou Bat. - Imaginem só se seria o teu varapau nojento a tirar-lhe a vida! Como terás ocasião de constatar, ele está
vivo e bem vivo e vai dar-te o que mereces dentro da próxima hora. E agora, Michael – disse ele, voltando-se para o camarada -, vamos amarrar este patife com a corda
que ele traz à cintura e depois vamos levá-lo de rastos até junto do nosso mestre. Já és bastante feio, bandalho - prosseguiu Bat -, mas vais ficar ainda mais feio
quando estiveres pendurado na forca, a sorrir por entre o laço.
O mendigo compreendeu ser Bat um homem determinado, e que, a menos que arranjasse rapidamente um expediente que lhe permitisse escapar, as coisas ficariam
muito feias para si.
- Oh, meus bravos! - exclamou ele, a voz a tremer. - Mostrem-se magnânimos e salvem a vida a um pobre e velho mendigo. Lamento se fiz algum mal ao homem
nobre a quem vocês chamam chefe. Porém, estou pronto a dar-vos uma boa recompensa por qualquer mal que lhe tenha feito. Se me soltarem, dou-vos vinte dinheiros que
trago na minha sacola, bem como uns quantos pedacinhos de prata que trago escondidos entre os farrapos.
Bastaram estas palavras para que os olhos de Bat e de Michael se pusessem a brilhar. Nunca antes haviam tido dinheiro e a oportunidade de ficarem com dez
dinheiros cada um (uma soma fabulosa para eles) era mais forte do que a lealdade que sentiam pelo chefe.
- Deixa-nos ver o dinheiro, velho patife! - disse Bat. - Aposto que estás a mentir. Ainda assim, mostra-nos as moedas!
Soltaram o mendigo, e ele desabotoou a capa, pousando-a no chão. Agora que o crepúsculo se aproximava, o vento soprava com força e o homem ficou com as costas
voltadas para ele. De seguida, ei-lo a desenvencilhar-se de duas sacolas, nas quais os outros supunham guardar ele a farinha, o pão e a carne, colocando-as no chão
à sua frente.
Por último, desamarrou a correia que trazia a tiracolo, de onde pendia uma outra sacola.
- É aqui que guardo o dinheiro - disse ele. - Está cheia de farrapos velhos com que forro as roupas para me proteger do vento e do frio, bem assim como os
sapatos, pois gosto de sentir os pés quentes.
Enquanto o homem passava a correia sobre a cabeça, Bat viu que, por baixo do seu braço esquerdo, estava uma pequena bolsa suspensa por um fio de couro. Aquela
parecia de tal forma bem escondida que o bandoleiro calculou conter ela algo de muito valioso, só que lhe veio à mente uma suspeita: a de que o mendigo, com todos
aqueles preparativos desajeitados, se estava a preparar para ficar com o melhor quinhão para si.
Inclinou-se para a frente, agarrou o fio e, com um movimento destro da faca, cortou-o, depois, a bolsa caiu-lhe na mão. O outro tentou recuperá-la, mas foi
impedido de o fazer devido à enorme sacola que tinha entre as mãos. Debateu-se no intuito de a agarrar, mas ambos os fora-da-lei lhe encostaram as facas ao peito.
- Pára, velhaco! - gritou Bat. - Caso contrário, tiro-te a vida e fico com as tuas coisas. É melhor que não tentes nenhum truque, caso contrário vai tudo
ficar muito feio para ti.
O mendigo compreendeu estar Bat a ficar desconfiado e desistiu de tentar agarrar a bolsa que o outro tratava agora de enfiar dentro do peito da sua túnica.
Com olhares sombrios e os olhos brilhantes, o mendigo pousou a enorme sacola no chão, baixando-se em seguida para a abrir. Os dois bandoleiros também se baixaram,
dispostos a certificarem-se de que o outro não os enganava.
E foi então que ele enfiou as mãos na sacola e atirou à cara dos outros uma enorme nuvem de farinha. Os dois bandoleiros de imediato ficaram incapacitados
para ver fosse o que fosse, tendo recuado, sempre a soltar imprecações e a proferir ameaças contra o mendigo, embora não fizessem a mínima ideia onde ele se encontrava.
No entanto, não demoraram muito a sentir o peso do seu bastão nas suas cabeças, já que o outro de pronto agarrara o varapau, atacando-os com pancadas violentas.
Bat, ainda com os olhos a arder devido à farinha que neles entrara, sentiu a mão do mendigo rasgar-lhe a túnica, mas ele tratou de se servir do punhal para a ferir,
apercebendo-se, vagamente, que o outro recuava, uma mão aleijada, mas pronto a usar o bastão para desferir uma pancada mortal na cabeça de Bat.
Foi então que o fora-da-lei ficou a saber haver naquela bolsa alguma coisa de valioso. E conseguiu desviar-se no preciso momento em que o varapau se abateu
com uma força tal que, caso lhe tivesse acertado na cabeça, tal como queria aquele que o manejava, por certo lhe teria rebentado o crânio. Bat deixou de olhar para
trás, antes começando a correr o mais depressa que podia, seguido pelo camarada. O mendigo perseguiu-os durante algum tempo, mas as suas roupas eram de tal forma
pesadas que não demorou muito a desistir.
A escuridão rodeava-os quase completamente, e foi com grande pesar que os dois bandoleiros se fizeram ao caminho de volta ao acampamento.
- Somos dois idiotas - disse Bat - e de boa vontade entregarei as costas ao chicote do mestre Robin.
- Sinto os ossos a doer tanto - retorquiu Michael - do cacete daquele bruto que, durante uns tempos, quero tudo menos apanhar pancada. Acho que me vou esconder
até me sentir menos dorido e a raiva do mestre acalmar.
- Nesse caso, burro, foge! - exclamou Bat, furioso consigo mesmo e com o companheiro. - Fica a morrer de fome na floresta, como sem dúvida será o caso, ou,
então, volta à propriedade a que pertences, meu servo foragido, e deixa que o capataz do teu amo te encha de pancada.
Mas Michael receava tanto a floresta solitária quanto o braço forte do carrasco do amo, e acabou por optar por permanecer junto a Bat e a aceitar o castigo
que Robin decidisse aplicar-lhes.
Chegaram ao acampamento no momento em que os bandoleiros se preparavam para jantar e, revelando com a sua franqueza estar envergonhado do que fizera, Bat
contou-lhes tudo. Robin ouviu-o pacientemente e disse:
- Ainda tens contigo a bolsa que tiraste ao patife?
Bat não voltara a pensar na bolsa, mas, levando a mão à túnica, acabou por a encontrar e, puxando-a para fora, entregou-a a Robin. O fora-da-lei pediu a
Bat que fosse buscar um archote para o iluminar enquanto ele examinava o conteúdo da bolsa.
Primeiro, tirou de lá três moedas de ouro embrulhadas num pedaço de tecido, depois, um anel com um padrão gravado, e, por último, mesmo do fundo da bolsa,
ei-lo a tirar um pergaminho dobrado de forma a ficar pequeno. Abriu-o e, pousando-o no joelho, alisou-o e começou a lê-lo, devagar, é certo, já que Robin, embora
tivesse aprendido latim em criança, quando estava na casa do tio, em Locksley, pouco se servira dele depois de ter alcançado a idade adulta.
Lentamente, lá foi ele lendo as palavras em latim e, assim que o significado das mesmas se lhe tornou claro, o seu rosto ficou duro e sombrio. Uma vez traduzido,
o texto era o seguinte:
Para o respeitável Senhor Ralph Murdach, xerife dos condados de Nottingham e Derby, as minhas saudações.
Ficai a saber que o portador desta mensagem, Richard Malbête, é o mesmo indivíduo de que já vos falei, e que me foi recomendado pelo meu amigo, Sir Niger le
Grym. Trata-se de um homem com uma mente ousada e laboriosa, disposto a tudo desde que lhe paguem bem, não hesitando perante qualquer ação desesperada. É perspicaz
e muito inventivo no que respeita a esquemas e a emboscadas. Porém, há que o manter afastado do vinho, caso contrário perderá toda e qualquer utilidade. É ele quem
te irá ajudar a capturar esse selvagem, Robin, e a desmantelar esse bando crescente de ladrões que o acompanham. Espero ter boas notícias dentro em breve.
A carta não estava assinada, pois nesses dias não era costume os homens assinarem as cartas usando os seus nomes, antes selos, e esta missiva estava selada
com um pedaço de cera azul, representando o brasão de Sir Guy de Gisborne: a cabeça de um selvagem e uma espada por baixo.
Robin cravou os olhos em Bat e em Michael, que, com as cabeças baixas, pareciam muito envergonhados, dando ainda a sensação de estarem à espera de ser castigados.
- Vocês não servem para foras-da-lei - disse ele, falando com dureza. - Não passam de vulgares ratoneiros e deviam ir para a cidade e andar pelas tabernas,
entretidos a roubar homens demasiado bêbados para se defenderem. Quando vos mando fazer uma coisa, essa coisa deve ser feita, independentemente das tentações com
que sejam confrontados. Mas como deixaram o arado há pouco, desta vez desculpo-vos. Pronto - prosseguiu ele, desta feita num tom mais moderado -, vão jantar e não
se esqueçam de que, de hoje em diante, espero que se mostrem espertos e obedientes.
Bat, que nunca ouvira uma palavra amável da parte de um superior, ficou profundamente comovido com o modo como Robin se expressara.
- Mestre - disse ele, dobrando um joelho -, portei-me como um idiota e mereço ser castigado. Mas, se não o quiseres fazer, então, encarrega-me de uma tarefa
difícil, para assim poder apagar da memória quaisquer vestígios do meu ato vergonhoso.
- E deixa-me acompanhá-lo, meu bom mestre - pediu Michael -, pois tratarei de te servir corajosamente.
Robin examinou-os durante um momento e a ansiedade deles fê-lo sorrir.
- Vá lá, rapazes, vão comer - acabou ele por dizer. – É provável que não falte muito para que vos encarregue de uma tarefa qualquer.
Uma vez concluída a refeição, Robin chamou João Pequeno para junto de si e disse:
- João, será que o orgulhoso oleiro de Wentbridge já se pôs a caminho?
- Sim, mestre - retorquiu o outro -, pôs-se ontem a caminho, ele, o seu cavalo e a carroça, esta carregada de potes e panelas. Trata-se de um homem arisco,
e, assim que a neve se vai, não é pessoa para se deixar ficar ao borralho.
Robin perguntou onde é que o oleiro ia passar aquela noite, e João disse-lhe. De seguida, o chefe chamou Bat e Michael.
- Vocês pediram que vos desse uma missão - começou ele - e é o que vou fazer. Pode revelar-se difícil, mas terão de a levar a cabo de uma maneira ou de outra.
Conhecem bem os caminhos da floresta que seguem daqui até Mansfield, já que ambos fugiram da propriedade do vosso amo em Warsop. Quero que sigam esta noite até Mansfield
e procurem o orgulhoso oleiro de Wentbridge. Digam-lhe que quero fazer uma sociedade com ele. Gostaria que ele me emprestasse as suas roupas, os seus potes, a carroça
e o cavalo, pois quero ir disfarçado ao mercado de Nottingham.
- O prazer será todo nosso, mestre - disse Bat. - Levaremos os bastões, as espadas e também os broquéis, e estaremos a caminho quanto antes.
João Pequeno começou a rir, genuinamente divertido.
- Vocês falam como se pensassem que esta será uma tarefa tão fácil como enxotar um ganso - disse ele. - Mas caso não conheçam o orgulhoso oleiro de Wentbridge,
ele não demorará muito a remediar essa falta servindo-se do varapau.
- Sei muito bem, João Pequeno - retorquiu Bat, risonho -, que foi essa a lição que ele te deu.
- É verdade - assentiu o honesto João. - As coisas correram-me mal quando lhe pedi que pagasse o tributo devido aos fora-da-lei durante a última ceifa, e
ele deu-me três bordoadas que nunca esquecerei.
- Soube-se do caso em toda a Sherwood - disse Bat. - Mas, tal como ouvi dizer, o orgulhoso oleiro é também um homem educado. Seja como for, quer ele queira
quer não, acabará por fazer a vontade ao mestre Robin.
- Sendo assim - retorquiu Robin -, encontro-me convosco amanhã, na floresta de Herne, no ponto em que a estrada se bifurca para lá de Mansfield, depois da
hora do amanhecer.
- Aí nos encontrarás com tudo o que pediste - replicou Bat. Depois, ele e Michael, à luz das estrelas, fizeram-se ao caminho rumo a Mansfield.

No dia seguinte, o mercado de Nottingham viu surgir um pequeno mas bem alimentado pónei castanho, que puxava uma carroça de oleiro, cheia de potes e panelas
feitas de boa louça de Wentbridge. O oleiro, um homem de membros fortes, corpo rechonchudo e rosto vermelho, envergava uma túnica cor de ferrugem, bem assim como
uma capa, ambas as peças remendadas em vários locais, e quanto ao cabelo, era como se apenas muito raramente tivesse qualquer contato com o pente. De fato, Robin
estava bem disfarçado.
Agricultores, bufarinheiros, mercadores, talhantes, todos se amontoavam no mercado, alguns já com as suas respectivas bancas ou tendas montadas, enquanto
outros se ocupavam a descarregar as carroças ou as albardas transportadas pelos cavalos. O oleiro montou as suas bancas ao lado da carroça, isto depois de dar aveia
e feno ao cavalo, tendo em seguida começado a apregoar a sua mercadoria.
Ocupara um ponto situado a menos de cinco passos de distância da porta da casa do xerife, uma casa que, construída de madeira e decorada com estranhos ornamentos,
ocupava um lugar de destaque num dos lados do mercado. O oleiro não desviava os olhos da porta dessa casa, que se encontrava aberta, não parando de por ela entrar
e sair quem tinha assuntos a tratar com o xerife.
- Tenho bons potes para vender! - Gritou o oleiro. – Comprem os meus potes! Potes e panelas! E hoje está tudo bom e barato. Aproximem-se, meninas e senhoras!
Encham as vossas cozinhas com a minha louça!
Apregoava com tanto ardor que não demorou muito até uma multidão composta por gente do campo que fora fazer compras ao mercado se reunir à sua volta, pondo-se
a regatear com ele. Contudo, o homem não estava para discussões e deixava que cada um ficasse com o pote ou a panela pelo preço que começara por oferecer. O barulho
e o fato de a mercadoria estar tão barata, tudo isto fez com que as notícias depressa se espalhassem, e não demorou muito para que apenas restassem cerca de meia
dúzia de potes.
- É um burro, não um oleiro - disse uma mulher. - Pode fazer potes muito bons, mas não sabe regatear. Este negócio nunca lhe vai dar muito a ganhar.
Robin chamou uma criada que acabara de sair de casa do xerife e pediu-lhe que fosse procurar a dona da casa e, com os cumprimentos do oleiro de Wentbridge,
lhe perguntasse se a senhora aceitaria de presente os potes que haviam sobrado. A Dona Margaret demorou apenas alguns minutos a aparecer na rua, em pessoa.
- Muito obrigada pelos potes, meu bom vendedor - disse ela, e os seus olhos eram muito vivos, ao mesmo tempo que o seu falar era agradável. - Tenho muito
gosto em ficar com eles pois tratam-se de muito bons potes. Quando regressares a esta cidade, meu bom oleiro avisa-me, pois tenciono comprar as tuas mercadorias.
- Senhora - disse Robin, tirando o chapéu e fazendo uma educada vênia - o melhor que houver na minha carroça será para ti. Não te darei objetos com fendas
ou com quaisquer defeitos, e cada peça emitirá uma nota honesta e cristalina sempre que lhe tocares.
A mulher do xerife ficou convencida de que o oleiro era um homem deveras educado e cortês, e pôs-se a conversar com ele. Então, uma enorme campainha ecoou
pela casa, o que levou a senhora a dizer:
- Se assim o desejares, meu bom homem, vem até minha casa. Vem sentar-te à mesa comigo e com o xerife.
Era exatamente isto o que Robin desejava. Agradeceu à senhora e foi por ela conduzido até à divisão interior, onde as aias se mostravam ocupadas a costurar.
Foi então que a porta se abriu, dando passagem ao xerife. Robin deitou-lhe um olhar atento, pois apenas o vira uma vez antes. Sabia que o xerife, Ralph Murdach,
era um sapateiro rico que pagara uma soma avultada ao bispo de Ely, para que este lhe concedesse o posto que ocupava, e que, no intuito de recuperar o dinheiro perdido,
despojava as pessoas de tudo o que podia.
- Repara só no que o oleiro nos ofereceu - disse Dona Margaret, mostrando a louça pousada num tamborete junto a ela. - Seis potes de uma louça excelente,
tão boa como a que se faz nos Países Baixos.
O xerife, um homem alto e com cara de poucos amigos, deitou uma olhadela a Robin, que de pronto tratou de lhe fazer uma vênia.
- Será que este bom vendedor se pode sentar à mesa conosco, xerife? - inquiriu a senhora.
- Será bem-vindo - retorquiu o outro com maus modos, já que estava com fome e acabara de ser enganado quando estivera no mercado a tratar de um negócio.
- Vamos lavar as mãos e comer.
Passaram para o salão da casa, onde cerca de vinte homens esperavam o xerife e a esposa. Alguns eram funcionários e homens de confiança do xerife, enquanto
outros eram vendedores ricos que trabalhavam no mercado.
Quando o xerife e a esposa ocuparam os seus lugares à mesa alta, também o resto da companhia se sentou, tendo Robin sido conduzido a um assento na parte
inferior da mesa baixa. Na mesa, junto a cada um dos comensais, havia uma colher feita de osso, um enorme naco de pão (que recebia o nome de tabuleiro!), mas, para
beber, havia apenas um copo de peltre para cada dois comensais. Foi então que os moços de cozinha do xerife trouxeram tabuleiros de prata contendo carne assada.
Os vários convidados deviam tirar a sua própria faca do cinto, esfregá-la na perna para a limpar um pouco, cortar a quantidade que desejavam a partir da travessa
e colocá-la na espessa fatia de pão. De seguida, e usando os dedos como se fossem garfos, o convidado podia começar a comer, cortando e comendo pedaços do seu "tabuleiro"
junto com a carne, ou, então, guardando-o para o fim, quando já não houvesse carne.
No chão coberto de esteiras do salão, cães e gatos lutavam pela carne e pelos ossos que lhes atiravam, enquanto, à porta, os mendigos espreitavam, pedindo
esmola ou um pedaço de carne. Por vezes, um convidado sentado num dos extremos da mesa atirava um osso a um pedinte, tentando assim atingi-lo com força, mas o mendigo
conseguia agarrá-lo com destreza e punha-se a chupá-lo. Quando, como por vezes acontecia, os mendigos se tornavam demasiado ousados e se aventuravam quase até junto
da mesa, um criado precipitava-se para eles com o bastão e, à paulada e ao pontapé, atirava-os porta fora.
De súbito, eis que um mendigo bastante forte entrou no salão e, caminhando por entre os cães, se dirigiu rumo ao assento principal. De forma instantânea,
um criado precipitou-se para ele e agarrou-o, disposto a pô-lo na rua.
- Quero falar com o xerife! - gritou o pedinte, lutando com o outro. - Trago-lhe uma mensagem da parte de um cavaleiro.
Todavia, o criado não lhe prestava atenção, começando a empurrá-lo na direção da porta. O barulho causado pela luta que se estava a desenrolar entre eles
chamou a atenção de todos os convidados. Quando ergueu os olhos, Robin reconheceu o mendigo. Tratava-se do espião de Sir Guy, com quem se cruzara no dia anterior
e que levara a melhor em relação aos dois salteadores que Robin mandara atrás dele - Richard Malbête ou, como os ingleses lhe chamariam, Illbeast.
O mendigo esforçava-se para se libertar, mas o criado era um homem bastante forte, daí que os esforços de Malbête fossem em vão. De súbito, gritou:
- Paz, Sr. Xerife! Trago uma mensagem da parte de Sir Guy de Gisborne!
O xerife ergueu os olhos e viu o par que lutava.
- Deixa o tratante falar - disse ele. O criado deixou de lutar, mas continuou a segurar o mendigo. Os dois homens ali se deixaram ficar, arquejando, enquanto
Richard Illbeast deitava um olhar homicida ao homem que estava junto a si.
- Fala, tratante, faz o que Vossa Senhoria te manda! - ordenou o criado. - E não me cortes o pescoço com esses olhares maldosos, meu verme.
- Venho da parte de Sir Guy de Gisborne - disse o mendigo, virando-se para a mesa alta - e tenho uma mensagem que só pode ser escutada pelos teus ouvidos,
Sr. Xerife.
O xerife dirigiu-lhe um olhar carregado de suspeitas.
- Diz o que tens a dizer, tratante - acabou ele por dizer, mostrando-se rude.
O mendigo lançou um olhar desesperado aos rostos dos convidados que o rodeavam e que estavam todos virados para ele. Alguns riram ao vê-lo hesitar, outros
esboçaram caretas.
- Ele tem uma mensagem para os teus ouvidos, xerife – gritou um agricultor corpulento, soltando uma gargalhada -, e dedos leves para as tuas jóias.
- Ou - acrescentou outro erguendo a voz sobre o coro de gargalhadas - uma adaga cujo destinatário não é outro senão tu.
- Prova que vens da parte dele, desgraçado! - ordenou o xerife, zangado. - Caso contrário, faço com que corram contigo da cidade à pancada.
- Fui assaltado na floresta por uma dúzia de ratoneiros - explicou Richard Ilbeast. - Roubaram-me a bolsa onde estava a carta que Sir Guy te enviou.
Das bocas dos convidados elevou-se um coro de gargalhadas cujo som lembrava um rugido. Todos consideraram ser aquela uma boa piada e puseram-se a trocar
chalaças uns com os outros.
- Qual o motivo que o fez mandar-te até mim, patife?! - gritou o xerife. - Não haja dúvida de que me contaste uma bela história!
- Ele enviou-me para que te ajudasse a apanhar aquele miserável fora-da-lei... o Robin dos Bosques! - exclamou o mendigo, fora de si, devido à raiva que
lhe provocavam as gargalhadas e as caretas dos convidados, de cabeça completamente perdida.
Aquilo fez com que os homens ainda rissem mais, desta feita incapazes de permanecer quietos.
- Ah! Ah! Ah! - gritaram. - Essa é boa! O caçador de ladrões deixou-se roubar pelos ladrões que vinha caçar! É como se as lebres tivessem levado a melhor
à raposa!
- Ponham-no daqui para fora! - ordenou o xerife, vermelho de raiva. - Expulsem-no da cidade à pancada!
- Não sou nenhum patife! - gritou o outro. - Combati nas Cruzadas! Estive...
Contudo, não lhe foi permitido continuar a dizer o que fizera, já que cerca de uma dúzia de criados se atirou a ele. No momento seguinte, ei-lo na praça
do mercado, despojado da capa e das sacolas. Bordões e paus pareceram saltar de todos os lados e, no meio de uma chuva de golpes, o desgraçado, cujo coração era
tão cruel quanto o de qualquer homem cruel da época, e cujas mãos se encontravam manchadas devido a muitos atos terríveis, foi espancado de forma impiedosa, até
que o expulsaram da cidade e o empurraram para a floresta.
Os convidados sentados à mesa do xerife continuaram durante algum tempo a troçar do episódio protagonizado pelo mendigo, até que a conversa se voltou para
um concurso que teria lugar, uma vez terminada a refeição, no campo de tiro que ficava fora da cidade. Os participantes seriam os homens do xerife, e o prêmio corresponderia
a quarenta xelins.
Assim, uma vez terminada a refeição, a maior parte dos convivas dirigiu-se para o campo, onde os homens do xerife foram disparando à vez. Como seria de esperar,
Robin estava entre o grupo dos observadores atentos, tendo constatado que nenhum dos participantes conseguiu acertar na marca, ficando sempre a qualquer coisa como
meia seta de distância.
- Raios e coriscos! - exclamou ele. - Apesar de agora ser oleiro, houve tempos em que fui um bom arqueiro, e ainda hoje gosto do som do meu arco e do voo
da minha flecha. Não se importa que um desconhecido tente um ou dois tiros, Sr. Xerife?
- De maneira nenhuma - respondeu o outro. - Podes fazer o que quiseres, já que pareces ser forte e corajoso, se bem que, a avaliar pelo teu rosto vermelho,
tudo indica que gostas bastante de levar aos lábios os potes que fazes, isto desde que neles haja bom vinho.
Robin fez coro com os outros quando estes riram da piada que o tinha a si como alvo, e o xerife pediu a um lavrador que fosse buscar três arcos. Robin escolheu
o maior e o mais forte dos três e pôs-se a experimentá-lo.
- Receio bem que não seja lá de muito boa madeira - disse ele, à medida que empurrava o arco e puxava a corda até ao ouvido. - O material é de tal forma
fraco - prosseguiu - que já está a gemer.
Tirou uma flecha da aljava de um dos homens do xerife, ajustando-a em seguida ao arco. Depois, puxando a corda até ao limite, deixou voar a flecha.
Os homens seguiram-na com atenção e os vendedores soltaram um grito ao ver que aquela caíra a cerca de trinta centímetros de distância do alvo, adiantando-se
quase quinze centímetros em relação às restantes.
- Vamos disparar uma outra ronda - disse o xerife, dirigindo-se aos seus homens. - Mas, desta vez, o oleiro vai disparar convosco.
E lá se voltou a disparar, tentando todos eles melhorar os respectivos registos anteriores. Contudo, ninguém conseguiu igualar o oleiro e, quando o último
deles disparou a sua flecha, ei-los que se desviaram, uma expressão sombria no rosto, os olhos cravados no vendedor à medida que ele avançava e ajustava a flecha
à corda.
Desta feita, as coisas pareceram correr-lhe melhor. A flecha partiu a grande velocidade e, no silêncio dos espectadores, foi possível distinguir perfeitamente
o ruído seco por ela produzido quando acertou no alvo, a cento e oitenta metros de distância. Durante breves instantes, os homens não conseguiram acreditar no que
os seus olhos lhes diziam. A seta cravara-se bem no centro do alvo ou, então, ficara lá muito perto.
O homem que se encontrava junto ao alvo e que tinha como missão registar clara e distintamente todos os tiros, aproximou-se do alvo, e, excitado, pôs-se
a correr em direção aos arqueiros.
- Partiu a cavilha em três! - gritou ele.
A cavilha era o pedaço de madeira que ficava bem no centro do alvo. Um grito elevou-se das gargantas de todos os presentes e fez estremecer os ramos dos
altos choupos. Depois, muitos dos vendedores apertaram a mão a Robin ou lhe deram uma palmada nas costas.
- Raios me partam! - exclamou um deles. - Como vendedor ambulante não passas de um tolo, mas como arqueiro és tão bom como qualquer guarda-florestal.
- Ou como o próprio Robin dos Bosques, o rei dos arqueiros, por muito cabeça-de-lobo que ele seja - disse outro, um moleiro bem disposto que vivia na cidade.
Os homens do xerife ficaram com má cara ao compreender que haviam sido derrotados por um oleiro analfabeto, mas o xerife riu-se deles e, aproximando-se de
Robin, disse:
- Oleiro, não há dúvida de que és um homem a valer. És dos que devem andar sempre com um arco onde quer que vão.
- Desde pequenino que tenho uma paixão pelo arco - admitiu o oleiro. - Nessa época, disparava contra aves de pequenas dimensões e derrubava-as sempre. Disparei
junto com muitos arqueiros excelentes e, na minha carroça, tenho um arco que me foi dado por Robin dos Bosques, o fora-da-lei, com quem disparei muitas vezes.
- O quê?! - exclamou o xerife, uma expressão dura no rosto e os olhos carregados de suspeitas. - Disparaste com esse patife? Nesse caso, oleiro, conheces
o lugar da floresta onde ele agora se esconde?
- Penso que seja na floresta de Witch - retorquiu o oleiro sem qualquer hesitação. - Passou lá o Inverno. Pelo menos, foi o que ouvi dizer durante a viagem.
No Outono passado, ele obrigou-me a parar e exigiu que eu lhe pagasse portagem. Disse-lhe que na estrada do rei só o rei tem o direito de me exigir tal coisa, depois,
desafiei-o para andarmos à pancada com o varapau ou para dispararmos uma ronda de vinte flechas, no intuito de vermos qual dos dois era o melhor arqueiro. O patife
disparou quatro vezes e disse que, graças aos meus modos educados, podia percorrer a floresta à vontade, bastando para isso que as minhas rodas continuassem a girar.
De fato, as coisas haviam-se mesmo passado assim, e fora a amizade que existia entre Robin e o oleiro orgulhoso que fizera com que Bat não tivesse qualquer
problema em obter as roupas e os apetrechos do oleiro.
- Ofereço um prêmio de cem libras a quem me levar até junto desse bandido, oleiro! - exclamou o xerife, sombrio.
- Muito bem - retorquiu o outro. - Caso queiras seguir o meu conselho, Sr. Xerife, e decidires acompanhar-me amanhã, tu e os teus homens, levo-te até ao
local onde, segundo ouvi dizer, o velhaco passou o Inverno.
- Juro que te darei uma boa recompensa se assim o fizeres. És um homem corajoso, um autêntico valente.
- Ainda assim, xerife, tenho de te dizer uma coisa. A recompensa que me deres terá mesmo de ser boa, pois, caso chegue aos ouvidos de Robin dos Bosques que
fui eu quem conduziu os cães à sua toca, então, o lobo vai encarregar-se de me fazer em pedaços, e nunca voltarei a estar em condições de atravessar de novo a floresta.
- Dou-te a minha palavra de funcionário do rei em como serás bem pago - retorquiu o xerife.
Contudo, tanto ele como o oleiro sabiam não valer esta promessa de nada, já que o xerife gostava demasiado do seu dinheiro. No entanto, o mercador fingiu-se
satisfeito. Quando o xerife lhe entregou os quarenta xelins que constituíam o pagamento por ter ganho a competição, o homem recusou-os, conquistando assim os corações
dos homens do xerife.
- Não, não - disse o oleiro -, entrega-os àquele que, de entre os teus arqueiros, melhor disparou. O vento pode muito bem ter ajudado a minha flecha a acertar
na cavilha.
O oleiro ceou com o xerife e os seus homens, tendo todos eles bebido à sua saúde enquanto camarada corajoso e bom companheiro.
Tratou-se de uma noite bem passada, no fim da qual Robin foi conduzido a uma cama situada num canto aconchegado do sótão, e todos os outros se retiraram.
Na manhã seguinte, antes mesmo de o dia nascer, estavam todos outra vez a pé. Cada um bebeu uma caneca de cerveja e comeu um naco de pão de centeio. De seguida,
trouxeram os cavalos, bem assim como o pônei e a carroça do oleiro. Este, acompanhado pelo xerife e por dez dos seus homens, fez-se ao caminho, rumo à floresta.
O oleiro tratou de se dirigir bem para o coração do bosque, atravessando carreiros solitários e trilhos de veados, onde nenhum dos outros alguma vez estivera.
Em muitos dos locais onde era possível armar uma emboscada, o xerife e os seus homens lançavam olhares assustados à sua volta, perguntando-se se chegariam inteiros
ao fim do dia.
- Tens a certeza de que não te enganaste no caminho, oleiro? - perguntou o xerife por mais de uma vez.
- Claro que tenho! - riu o outro. - Se não conhecesse o caminho, não podia andar há vinte anos a percorrer Sherwood de um lado para o outro. É natural que
pensem que vos estou a levar para lugares assustadores e desconhecidos. Mas acham que um cabeça-de-lobo teria o seu covil junto à estrada, onde qualquer cão o pudesse
farejar?
- Como é que sabes que esse fora-da-lei passou o Inverno no sítio que disseste? - inquiriu o xerife, as suspeitas a refletirem-se nos seus olhos.
- Foi o que os camponeses me contaram, na aldeia onde parei quando saí de Wentbridge - retorquiu o oleiro. - Vou conduzir-vos até cerca de oitocentos metros
de distância da floresta de Witch, depois, ficará a seu cargo arranjar maneira de falar com o patife.
- E que espécie de local é essa floresta de Witch? – quis saber o xerife.
- Segundo me contaram, trata-se de um local pavoroso - respondeu o oleiro. - É lá que mora uma bruxa horrível e, encontra-se cheia de ossos de homens mortos.
Visto de fora, parece um bosque simpático e cheio de árvores, mas lá dentro existem muitas grutas e penhascos, e é aí que a bruxa e os seus espíritos demoníacos
habitam, rodeados de ossos. Os vilões dizem que Robin dos Bosques é parente dela e que, enquanto está no bosque, a bruxa protege-o, logo, não há mal que lhe possa
suceder.
- Como assim? - quis saber o xerife, enquanto os dez homens lançaram um olhar assustado em seu redor, aproximando-se mais uns dos outros.
- Dizem que ela é o espírito da floresta e que, recorrendo aos seus poderes secretos, pode matar qualquer homem que se aproxime por entre as árvores, encerrá-lo
vivo no tronco de uma árvore ou lançar-lhe um feitiço capaz de o pôr a dormir para sempre.
- Que coisas são aquelas? - inquiriu o xerife, apontando em frente. Acabavam de entrar numa clareira, dando as árvores lugar a uma elevação coberta de arbustos
baixos. Bem no meio, no cimo de uma colina, via-se um enorme carvalho, as raízes imensas cobrindo uma vasta área, e, à sua sombra, erguiam-se três pedras, altas
e lisas, inclinadas umas para as outras como se sussurrassem entre si.
- Estamos em Three Stane Rigg - explicou o oleiro. – Consta que, à luz do dia, aquelas formas que estão a ver são grandes pedras cinzentas, mas à noite,
quando o mocho pia e o vento faz abanar os arbustos, transformam-se em bruxos velhos que se movem à velocidade do vento, cumprindo todos os desejos da grande feiticeira
da floresta, e que trazem consigo as doenças e as pragas que amaldiçoam o milho e que provocam ainda outros males nos homens.
Os outros entreolharam-se e trataram de desviar os rostos, já que se sentiam meio envergonhados por verem o medo estampado nos olhos dos outros e por saberem
que o mesmo medo se encontrava nos seus. Naquela época, todos os homens acreditavam em bruxas e em feiticeiras, até mesmo o rei e os seus mais sábios estadistas.
- Acho - começou o xerife, falando com modos bruscos - que nos devias ter contado tudo isso antes de partirmos, pois eu teria trazido um padre conosco. Como
as coisas estão...
Uma vaga de gargalhadas estridentes ecoou vinda de entre as árvores escuras que os cercavam. Estes sons eram de tal forma súbitos e assustadores que os cavalos
se imobilizaram e ali se deixaram ficar a tremer, enquanto os cavaleiros se benziam e olhavam atentamente para a escuridão da floresta.
- Vamos voltar para trás! - exclamou um deles, enquanto um ou dois já tinham virado os cavalos e dado início à retirada.
Aquele riso histérico não demorou muito a se fazer escutar outra vez, o que levou muitos homens a esporear os cavalos e, malgrado os gritos do xerife, que
lhes ordenava que ficassem, o certo é que todos acabaram por fugir dali a grande velocidade.
O oleiro, de pé na carroça, e o xerife, de expressão sombria, ficaram a escutar o som dos cascos a tornar-se cada vez mais fraco.
- Seus estúpidos! - gritou o xerife, rilhando os dentes. No entanto, apesar de toda a sua fanfarronada, também ele estava assustado, não parando de espreitar
por entre as árvores.
De súbito, o oleiro fez estalar o chicote. Quase no mesmo instante, as notas claras de uma corneta soaram vindas do outro lado daquela vasta clareira e,
no momento seguinte, surgiram cerca de vinte homens vestidos de castanho, os quais pareciam erguer-se do chão e descolar-se dos troncos das árvores. Alguns chegaram
mesmo a deixar-se cair no solo, já que se encontravam pendurados nos ramos das árvores, mesmo por cima da cabeça do xerife.
- Que tal te correram as coisas em Nottingham, mestre oleiro? - inquiriu um indivíduo alto, barbudo, com a cabeça descoberta. - Vendeste toda a tua louça?
- É verdade, por Deus! - exclamou o outro. - Vendi tudo e até me pagaram bem pela mercadoria. Repara, João Pequeno, troquei-a pelo xerife em pessoa.
- Pela minha honra, chefe! A sério que ele é bem-vindo - disse João Pequeno, deixando escapar uma enorme gargalhada, de imediato secundada por todos os fora-da-lei
que ali se encontravam, pois puderam testemunhar a raiva e a surpresa que se misturavam no rosto do xerife.
- Seu patife! - gritou ele, e, debaixo do capacete de aço, o seu rosto ficou vermelho de mortificação e de raiva. - Se ao menos eu tivesse sabido quem eras!
- Sinto-me grato para com a Virgem por não o teres feito - retorquiu Robin, tirando primeiro a capa de oleiro e depois a túnica, sendo que esta se encontrava
cheia de remendos, o que se destinava a fazê-lo parecer mais gordo. - Mas já que estás aqui, xerife, comerás conosco um pedaço de veado real. E depois, para pagares
a portagem que te é devida, deverás deixar aqui o cavalo, bem como a armadura e o resto do equipamento.
E foi assim que as coisas se fizeram. O xerife, meio a contragosto, viu-se forçado a comer um bife cortado de um veado de primeira, tendo acompanhado a refeição
com um excelente vinho branco. Como estava com fome, a comida acabou por fazê-lo sentir-se melhor.
Depois, quando já entregara o cavalo e todas as suas armas a Robin dos Bosques e se preparava para regressar a casa a pé, o fora-da-lei ordenou que lhe levassem
um palafrém, pedindo ao xerife que o montasse.
- Toma o caminho de casa, xerife - disse ele -, e dá cumprimentos meus à tua mulher. Ela tem tanto de amável e simpático quanto tu tens de antipático e de
brusco. O cavalo é um presente que envio à tua esposa. Tenho a certeza de que ela ficará com boa impressão do oleiro, embora não possa esperar o mesmo da tua parte.
Foi sem pronunciar uma só palavra que o xerife partiu. Esperou que escurecesse antes de se dirigir às portas de Nottingham e de exigir que o deixassem entrar.
O guarda admirou-se bastante com o modo estranho como o xerife regressara, montado num palafrém de mulher, e sem uma única arma no cinto ou o elmo de aço na cabeça.
Os muito envergonhados cavaleiros que haviam regressado mais cedo tinham contado a sua história devido à insistência dos demais cidadãos, e o xerife, que esperava
seguir para casa sem dar nas vistas, viu-se desagradavelmente surpreendido ao descobrir as ruas repletas de gente que o olhava, boquiaberta. Foi com maus modos que
respondeu a todas as perguntas, mas, uma vez junto à porta de casa e enquanto desmontava, escutou um riso abafado, transformando-se depois numa estrondosa gargalhada.
Já dentro de casa, foi-lhe impossível ignorar o riso que se elevava de milhares de gargantas.
No dia seguinte, seria impossível encontrar um homem mais zangado do que o xerife Murdach. Toda a cidade sorria, desde o orgulhoso governador do castelo,
com o seu séquito de cem cavaleiros, até aos moços de estrebaria. Todos sorriam quando se lembravam que o xerife partira para capturar Robin, o fora-da-lei, tendo
a conduzi-lo um falso oleiro que não era outro senão o próprio Robin, e que depois fora capturado e despojado dos seus pertences.


4.
DE COMO ROBIN DOS BOSQUES CONHECEU FREI TUCK

Era outra vez Verão e a vida na floresta era muito agradável. Por muito forte que o sol incidisse nos campos onde os servos labutavam e suavam, havia sempre
sombra na floresta e a brisa soprava docemente sob as árvores, e as moscas, que na sua dança permanente não paravam de andar de um lado para o outro, faziam com
que houvesse sempre no ar um zumbido que parecia convidar quem o escutava a deitar-se e a dormir.
Muitos dos pobres vilões que cavavam e ceifavam debaixo do sol escaldante, pensavam frequentemente nas sombras frescas dos bosques e, erguendo as costas
doridas e cravando os olhos na linha escura formada pelas árvores que balançavam ao vento, pensavam nos homens que haviam escapado à servidão e que não precisavam
agora de trabalhar, nem de pagar impostos, nem de levar pancada. Eram bastantes os que se interrogavam sobre se, também eles, teriam a coragem suficiente para cortar
com os hábitos e a rotina de vários anos e colocarem-se à margem da lei, bastando para isso roubar uma peça de lavoura pertencente aos seus senhores, o que correspondia
à descrição de um vilão aos olhos da lei, tal como esta era praticada naqueles tempos difíceis.
Ao longo dos muitos quilômetros que corriam junto às margens das grandes florestas, espalhara-se a fama de Robin dos Bosques e dos seus homens. Bufarinheiros,
saltimbancos e mendigos, todos eles contavam histórias a respeito dos seus atos de bravura, e já os menestréis, sempre que davam com um grupo de vilões reunidos
na taberna de uma aldeia, tratavam de compor rimas improvisadas a seu respeito - de como não fazia mal aos pobres, antes roubando aos ricos, aos prelados orgulhosos,
aos mercadores e aos cavaleiros.
Então, quando os tempos eram difíceis, quando as tarefas de semear, ceifar ou cavar, impostas aos vilões pobres, pareciam ir além de tudo o que era possível
suportar, um ou dois servos desta ou daquela propriedade decidiam-se a optar pela liberdade e, aproveitando a ocasião, fugiam da sua aldeia composta por casebres
pequenos e miseráveis, escapando-se para a floresta.
Foi assim que o bando de Robin dos Bosques, que começara por contar com vinte membros, acabou por crescer de forma gradual, até que o número de foragidos
alcançou os trinta e cinco, embora estivessem na floresta há apenas um ano. Porém, havia uma outra forma de Robin conseguir arranjar bons homens. Sempre que ouvia
falar de um bom arqueiro, de alguém que sabia manejar bem o varapau ou de um bom espadachim, ia procurar o indivíduo em questão e desafiava-o a bater-se consigo.
Robin ganhava quase sempre, mas às vezes encontrava homens que lhe levavam a melhor, quer porque fossem excepcionais, quer porque a sorte os tivesse ajudado.
Contudo, independentemente do resultado, os modos viris e corteses de Robin acabavam por convencer os outros a unirem-se a ele e ao seu bando na floresta.
Foi assim que ele conquistou o valente tesoureiro Sim de Wakefield, com quem, como diz a canção composta por Jocelyn, o menestrel, lutou...

Um dia estival de tal forma longo,
Que as espadas que seguravam pelos enormes punhos,
Quase se gastaram até da lâmina pouco restar.

Aqui, Robin foi obrigado a confessar que já não podia mais e pediu ao tesoureiro que se juntasse a ele na floresta. O outro estava com bastante vontade de
o fazer, mas, tratando-se de um indivíduo honesto, disse ter sido eleito pelos restantes vilões para exercer as funções de tesoureiro até ao dia de São Miguel, altura
em que receberia o pagamento pelos serviços prestados.
- Depois, meu bom Robin - disse ele, apertando a mão ao fora-da-lei -, pegarei na minha espada e juntar-me-ei a ti na floresta.
Do mesmo modo, Robin enfrentou-se com Arthur-a-Bland, de Nottingham, um homem famoso pela forma como manejava o varapau. Neste caso, a luta traduziu-se por
um empate, e, tendo ambos concordado em ser amigos, Arthur juntou-se aos bandoleiros. Era primo de João Pequeno, e os dois parentes cumprimentaram-se calorosamente
quando se encontraram. Desde esse momento, tornaram-se praticamente inseparáveis, e eram os dois tão altos e tão hábeis a manejar o varapau e o arco, que passou
a ser corrente afirmar que, juntos, valiam por dez.
Quando Robin dos Bosques decidiu partir para a floresta, descobriu viverem aí muitos bandos de ladrões - homens que tinham sido considerados fora-da-lei
pela prática de crimes como o homicídio e o roubo, e que estes tinham recrutado companheiros entre os servos foragidos e os habitantes pobres das cidades, bem como
outros homens desamparados que, embora não fossem realmente maus, tinham fugido para a floresta para não serem castigados.
Robin não se mostrava disposto a tolerar estes bandos de ladrões que não faziam distinção entre ricos e pobres, muito pelo contrário, preferiam tirar a um
pobre servo o seu último pedaço de carne de porco salgada ou saco de farinha a roubar a bolsa, onde um qualquer padre rico levava o ouro. Sempre que tomava conhecimento
da localização do esconderijo de um destes bandos, Robin tratava de seguir até lá com os seus homens, surpreendendo os ladrões antes que estes tivessem tempo de
pegar em armas. Então, quando todos se encontravam ao alcance das suas setas, dizia-lhes:
- Sou Robin dos Bosques, de quem já ouviram falar, e tenho uma proposta a fazer-vos. Ponham fim às vossas pilhagens, durante as quais não respeitam nem os
pobres nem os necessitados, e juntem-se ao meu bando, ou, então, lutem comigo até à morte, deixando assim que a escolha dependa do resultado do combate.
Regra geral, os ladrões optavam por se juntar a ele, fazendo o juramento que todos os salteadores do seu grupo haviam feito - não molestar os pobres, os
rendeiros honestos, nem os cavaleiros e proprietários que se mostrassem decentes, e não incomodar as mulheres, até mesmo qualquer comitiva onde estivesse incluída
uma só mulher. Deviam antes ajudar os pobres e os necessitados, socorrendo-os de todas as maneiras possíveis. Contudo, alguns chefes atreveram-se a desafiar Robin,
tendo lutado com ele. Três destes indivíduos foram mortos, ao passo que quatro outros se acabaram por render, passando-se para as suas fileiras.
Graças a todas estas ações, o seu bando, que começara por não ir além dos vinte elementos, chegava agora aos cinquenta e cinco. Enquanto as árvores tinham
folhas, todos se vestiam de verde, mas, assim que qualquer delas começava a ganhar uma coloração alaranjada e a cair, ao mesmo tempo que a floresta se ia enchendo
com a luz sombria do Outono, os homens voltavam a envergar as túnicas, os capuzes e as calças de malha castanhas ou, então, capotes com capuzes da mesma cor, para
assim poderem andar por entre as árvores sem ser vistos pelos viajantes a quem se preparavam para exigir o pagamento de uma portagem.
Num certo dia de Julho, Robin e muitos dos seus homens estavam nas grutas de Barnisdale, onde, aliás, costumavam estar. Lá fora, tudo estava molhado e com
ar de tempestade, uma vez que a chuva caía como se de grandes lanças cinzentas se tratasse. Cada uma das folhas escorria como se fosse uma goteira, os caminhos estavam
ensopados e uma neblina escura pairava de forma sombria por sobre os pontos baixos, estendendo-se rapidamente através dos longos trilhos da floresta. Ninguém que
o pudesse ter evitado saíra para as estradas, uma vez que estas mais não eram do que rios de lama, e todos os mendigos, bufarinheiros, médicos ambulantes, romeiros,
saltimbancos ou quaisquer outros viajantes se haviam precipitado para a taberna da aldeia ou para as estalagens que, de vez em quando, se podem encontrar junto à
estrada principal.
Sentados nas suas grutas de Elfwood Scar, Robin e o seu bando, secos e confortáveis, contavam histórias uns aos outros ou escutavam o relato das viagens
de um peregrino que Will Stuteley encontrara nessa mesma manhã, com um pé muito inchado e a coxear. Gilbert da Mão Branca lavara a ferida e aplicara-lhe o unguento,
e agora, como pagamento, o peregrino, um homem simples, de cara morena, contava as suas experiências maravilhosas e as paisagens que vira no longo caminho para Roma,
sem esquecer os dias terríveis que passara no mar quando seguira de Veneza para Jafa.
Com eles estavam outros viajantes. Um médico ambulante, um sujeito mirrado e bem disposto, com um ar de homem sábio, que se esquecia muitas vezes de usar
no meio da sua conversa solene. Usava uma capa de veludo bastante gasta, debruada a pele, se bem que desta apenas restassem vestígios, e no chapéu viam-se símbolos
cabalísticos que, segundo ele, apenas os mais sábios de entre os homens (e ele incluía-se neste grupo) conseguiam ler. Garantira a todos os presentes ter consigo
um pouco do elixir que dera a Hércules a força de um deus e também um pouco do pó que transformara Helena de Tróia numa beldade.
- É para admirar que não tenhas bebido um pouco desse elixir de Hércules - disse João Pequeno, rindo. - A verdade é que esse teu físico mirrado não te serviu
de muito quando aquele enorme rufião da Terra dos Gansos, em Nottingham, tratou de te aplicar um bom murro quando lhe disseste que o teu unguento lhe faria passar
o vermelhão do nariz.
- Não preciso de força nos braços - retorquiu o charlatão, os olhinhos pretos a brilhar, satisfeitos. - Confessa, grandalhão, se a minha língua não bastou
para o derrotar. Não foram as minhas palavras que levaram o homem do xerife a enxotar a criatura a toda a velocidade? Por que razão preciso de músculos fortes quando
tenho aquilo que é mais importante - e bateu na testa -, ou seja, a inteligência que pode levar a melhor sobre a força bruta?
- Assim sendo, duvido que essa esperteza te tenha servido de muito quando deste de caras com o eremita de Foutain Dale - disse uma voz vinda do fundo da
gruta. - Conta a esta boa gente o que te aconteceu nesse dia.
O rosto mirrado do charlatão ensombrou-se, ao passo que aquele que falara, um homem de rosto pálido, envergando os trajes de peregrino, se pôs a rir, embora
sem más intenções.
- Vamos, doutor, conta-nos essa história! - pediram os bandoleiros, divertidos perante o mal-estar do charlatão, enquanto alguns de entre eles pediam ao
peregrino que fosse ele a contar-lhes. Porém, o charlatão fez ouvidos de mercador a todos os pedidos, o rosto vermelho de raiva, a boca cheia de pragas proferidas
em voz baixa contra o peregrino fala-barato e o eremita.
- Conta-nos, meu bom peregrino - pediu João Pequeno, e, perante isto, o charlatão não se pôde conter durante mais tempo:
- Esse velhaco não é nenhum peregrino! Conheço bem essa cara enfermiça. É um servo fugido que pertence ao abade de Newstead, e eu podia ganhar um bom dinheiro
se revelasse o seu paradeiro ao beleguim do abade.
Todos os olhares se voltaram para o peregrino. Era grande de corpo e de membros, mas, a avaliar pelo rosto, devia ter sofrido uma qualquer doença.
- Aquilo que ele disse é verdade - retorquiu o homem. - Sou Nicholas, caseiro e ferreiro do meu senhor, o abade de Newstead. Mas - e aqui a sua voz adquiriu
uma tonalidade dura e ressonante - não consentirei em regressar vivo à servidão em que estive até à abençoada manhã de ontem. Apenas quero trabalhar em liberdade,
sob as ordens de um amo que me pague o que me é devido pelo bom trabalho que faço. Sei fazer com perfeição e honestidade qualquer trabalho de ferreiro. Sei consertar
arados, fixar rodas, fabricar grades. Até sei fazer espadas, e olhem que estas não são de deitar fora. Mas, como adoeci e não podia trabalhar, o beleguim do senhor
correu com a minha pobre mãe da sua casa e dos seus terrenos. É verdade! Foi com pancadas e palavras cruéis que ele a mandou embora, e, enquanto eu estava na minha
enxerga de palha, demasiado fraco para me mover, colocaram-me junto à estrada, depois, o vilão robusto que nos substituiu pôs-se a insultar-nos com palavras cruéis.
E foi assim que, contra todas as leis e tradições, fomos despejados.
- Virgem Santíssima, sem dúvida que se tratou de um ato repugnante! - exclamou Robin. - Contudo, meu pobre rapaz, outra coisa não podes esperar de padres,
prelados e respectivos homens. Os seus corações são de pedra. Logo, acabaste por fugir... Fizeste bem. Mas... e a tua mãe?
- Graças a Deus, já não tem de se preocupar com coisa alguma - disse Nicholas, expressando-se com solenidade. - Repousa agora debaixo da turfa no adro da
igreja, onde nenhum beleguim lhe pode voltar a fazer mal.
- Rapaz, caso queiras trabalhar em liberdade - disse Robin -, fica comigo, e é isso que terás, já para não falarmos do salário que te é devido, e que receberás
todos os dias de São Miguel. São muitas as alabardas e as lâminas de espada que precisamos de consertar. Então? Ficas conosco?
- Sim, mestre, com certeza - respondeu Nicholas. E, avançando, estendeu a mão para Robin, e ambos trocaram um aperto de mão, sinal de que haviam feito um
acordo. De seguida, o ferreiro despiu o manto de peregrino, e o seu corpo forte, envergando um gibão gasto e calças de malha, transmitia uma sensação de magreza
e de cansaço.
- Estás um bocado em baixo, rapaz - disse Robin, sorrindo. - Ainda assim, vejo que há aí bons músculos, e, no espaço de um mês, o ar da nossa floresta, as
matas, a carne de veado, bem assim como uma boa cerveja, tudo isto fará com que te seja possível deitar por terra o nosso João Pequeno.
Este sorriu, bem disposto, e acenou de forma amigável para o novo recruta.
- Bom, mas agora - prosseguiu Robin - conta-nos quem é este eremita de Foutain Dale, sem esquecer aquilo que ele fez aqui ao nosso amigo Peter, o doutor.
- Oh! - disse Nick, sorridente. - Não queria irritar o Peter, palavra! Foram muitas as vezes em que as suas pílulas curaram os nossos vilões, quando estes
comiam demasiada carne de porco, e a minha mãe (que descanse em paz!) dizia não haver nada no mundo capaz de se comparar à sua pomada de Santo Evremond.
- Vocês ouviram, boa gente! - exclamou o pequeno charlatão, a quem as palavras simpáticas do ferreiro haviam tido o condão de animar. - Mereço a estima de
todos os meus pacientes, mas - e os seus olhos faiscaram - aquele grande cabeça de burro do eremita (o nome dele é Tuck, e bem que eu gostaria de o enfiar no buraco
mais escuro e fundo de Windleswip Marsh!), esse desgraçado teimoso como só um boi sabe ser, convenceu-me a falar-lhe de todos os meus remédios. Com os olhos muito
abertos e mansos como os de uma vaca, parecia possuir a inocência de uma donzela, e lá me foi ele interrogando a respeito das curas que eu fizera, parecendo cada
vez mais admirado e impressionado com a minha sabedoria e o meu poder. A víbora! Tudo o que fez foi tecer uma teia em meu redor, procurando desta forma destruir-me.
Quando acabei de lhe contar tudo e tinha esperanças de que ele comprasse um frasquinho de óleo de serpente de Jasper (um remédio eficaz, meus bons homens, contra
a gota e o reumatismo), o patife agarrou-me pelo pescoço e tirou-me a caixa dos medicamentos.
De seguida, amarrou-me a uma árvore que fica junto à sua casa e tratou de me fazer engolir todas as minhas águas milagrosas, o mesmo se passando com os meus
unguentos. Brr. O demônio! Disse que eu era demasiado altruísta, que dava tudo aos outros e não beneficiava de nenhum destes remédios milagrosos. Disse ainda que,
quando acabasse o seu trabalho, eu seria tão grande e forte quanto Hércules, tão belo quanto Vênus, tão sábio quanto Salomão, tão bem-parecido quanto Páris, e tão
astucioso quanto Ulisses. Acabou por me encher o corpo de sinapismos quentes, o que me provocou muitas dores e sofrimento.
Numa palavra, caso eu não guardasse o melhor e o mais potente de todos os meus remédios numa bolsa secreta, não teria apenas ficado arruinado, teria acabado
por morrer, isto porque...
O riso incontrolável com que todo este "disparate" inconsciente foi acolhido abafou por completo toda e qualquer palavra que ele tivesse pronunciado a seguir.
Os homens trataram de o cravar com perguntas, tentando saber os efeitos que a aplicação de tantos remédios potentes nele havia tido, perguntas às quais o
charlatão lá foi respondendo, divertido.
- Bom, mas agora - disse Robin dos Bosques - conta-nos quem é este eremita que aplicou um tratamento completo dos teus próprios remédios. Onde é que ele
vive?
- Eu digo-te - retorquiu Peter, o charlatão. - Constou-me que, desde que vieste para a floresta, que não permites que ninguém roube, pilhe, maltrate e oprima
os pobres. Bom, pois este padre foragido é dos que não reconhecem a tua lei. Trata-se de um homem que abate os veados reais, usando para isso um arco de grandes
dimensões. Maneja tão bem o varapau que já derrubou ladrões tão grandes quanto ele. Leva uma vida perversa e de luxúria. Conta com a ajuda de cães muito grandes
para se defender, e acredita-se que aqueles são as formas assumidas por demônios. Não respeita ninguém, e por certo que te enfrentaria, Robin dos Bosques, tratando-te
como se fosses um homem de condição inferior.
- O que o Peter disse não é verdade - protestou Nick, o Ferreiro, zangado. - Frei Tuck não é nenhum falso eremita, nem vive uma vida perversa, igual à de
tantos falsos eremitas. Ele costuma ir à nossa aldeia oferecer ajuda e conforto aos pobres, e, quando consegue curar alguém que está doente, fá-lo sem receber dinheiro
em troca. Tem os membros grandes e sabe usar o arco, o varapau, até mesmo a espada, mas não é nenhum ladrão. Tem um coração humilde e generoso, mas pode ser feroz
como um leão para com quem quer que faça mal a um homem ou a uma mulher sem recursos. Alguns cavaleiros errantes, movidos pela maldade, já por várias vezes o tentaram
expulsar da sua casa, mas, com a ajuda dos cães, ele lá tem arranjado maneira de não ceder face a nenhum cavaleiro, senhor feudal ou ladrão.
- Digo-vos que este monge é um patife perigoso e selvagem - repetiu Peter. - É um daqueles homens que não admitem haver quem seja melhor que eles. Diz-se
que foi expulso do mosteiro de Foutains Abbey, lá para o norte, devido à sua vida tumultuosa e perversa, e que depois se veio esconder nesta floresta. Se é mesmo
verdade que és o senhor da floresta, Sir Robin, melhor seria ires procurar este eremita orgulhoso e truculento e fazê-lo baixar a crista de uma vez por todas.
A conversa a respeito do eremita ficou por ali e, pouco depois, quando a chuva cessou e o sol se pôs de novo a brilhar, fazendo com que cada uma das folhas
refulgisse como se prendesse uma pérola sem preço, os caminhantes fizeram-se de novo à estrada, ao passo que os fora-da-lei se separavam, prontos a desempenhar as
tarefas respectivas. Alguns puseram-se a fabricar setas e arcos, outros a cortar tecido para fazer túnicas novas ou a costurar as calças de malha que os espinheiros
haviam rasgado. Outros voltaram a ocupar as suas posições entre as árvores que ladeavam a estrada principal, dispostos a descortinar sinais de uma rica caravana
pertencente ao bispo de York, que lhes constara encontrar-se a caminho desde Kirkstall para Ollerton, pois estavam com falta de coisas boas, como alimentos, roupas
e equipamento, as quais só podiam ser conseguidas recorrendo aos armazéns de um qualquer prelado rico.
Passaram-se dias até ser dada a Robin a oportunidade de seguir para sul à procura do eremita a respeito de quem Peter e o trabalhador foragido haviam falado.
A coragem e a independência do homem, Frei Tuck, despertaram-lhe a curiosidade, sendo que Robin se mostrava desejoso de experimentar a perícia do indivíduo. Assim,
deu ordens a João Pequeno e a cerca de uma dúzia de homens para que o seguissem no espaço de uma hora, e, depois, pôs-se a caminho rumo a Newstead Abbey, onde se
sabia ser a fortaleza de Frei Tuck.
Decidido a avançar o mais rapidamente possível, Robin foi a cavalo e também decidiu envergar o seu gibão de pele curtida. Na cabeça, usava um capacete de
aço e, a seu lado, viam-se a espada e o broquel. Robin não dava um só passo que fosse sem levar o arco, encontrando-se este preso em redor do seu corpo, e na aljava
presa ao cinto via-se um molho de setas.
O Sol estava prestes a atingir o zênite quando o fora-da-lei partiu, e ele viajou durante umas quantas horas por entre a estrada da floresta antes de se
aproximar da zona onde o monge vivia. Acabou por penetrar na solidão silenciosa da floresta de Lindhurst Hill. Enquanto avançava pelo meio das árvores, um ruído
fê-lo parar e pôr-se à escuta. Olhou em volta, espreitando por baixo dos ramos gigantes que se estendiam a partir dos monarcas cinzentos da floresta. Estes rodeavam-no
tronco após tronco, estendendo os braços nodosos e torcidos, carregados de um musgo cinzento, em tudo parecido a barbas gigantes. Mergulhado naquela luz verde, sabia
que nada se movia, embora se sentisse consciente de que alguém o observava. Acabou por conduzir o cavalo para um carreiro difuso, o qual parecia desembocar numa
clareira situada entre as árvores.
Os cascos do cavalo afundaram-se sem ruído numa almofada espessa de musgo e folhas, fruto da passagem do tempo. Uma vez na clareira rodeada de grandes árvores
cinzentas, apercebeu-se de um movimento, mas não sabia dizer se eram apenas as folhas a abanar ou antes se se tratava de um lobo solitário. Ainda assim, tinha a
certeza de que, à sua esquerda, sob as árvores, algo se movera, silencioso como uma sombra, veloz como um espírito.
Regressou à estrada que abandonara, olhando atentamente de um lado para o outro. Acabou por alcançar um local onde a floresta era menos densa, e soube estar
a aproximar-se do riacho que corria junto à habitação do eremita. Uma vez tendo desmontado, amarrou o cavalo a uma árvore e emitiu uma espécie de chilreio baixo,
prolongado. Teve de repetir a operação antes de ser respondido por uma nota semelhante, saída de um ponto à sua direita. Ficou alguns momentos à espera, um esquilo
fez estremecer as folhas espessas do carvalho que se erguia por sobre a sua cabeça. Sem se virar, Robin perguntou:
- Ket, não viste ninguém na floresta ainda agora, quando eu vinha a descer o caminho de Eldritch Oaks?
- Ninguém... a não ser o filho do carvoeiro.
- Tens a certeza de que não era ninguém que me andava a espiar?
- Sim, estou certo de que não era ninguém que te quisesse mal.
Esta não era uma resposta direta e Robin teve um momento de hesitação. Porém, não tinha qualquer motivo para suspeitar que alguém soubesse da sua presença
em Lindhurst, logo, optou por não continuar a interrogar Ket.
- Toma conta do meu cavalo, Ket - pediu ele. Depois, pôs-se a caminhar em direção ao ribeiro, tendo então visto a água brilhar à luz do Sol. Olhando para
cima e para baixo, viu uma casa pequena e baixa, situada junto ao rio, do lado esquerdo. Era feita de enormes toras de madeira, escuras devido à passagem dos anos.
O edifício encontrava-se rodeado em três dos seus lados por um fosso, largo e profundo, e em frente à porta baixa estendia-se uma prancha larga que devia constituir
o meio através do qual o morador daquela casa chegava a terra firme. A prancha em causa era suportada por correntes, o que significava que podia ser levantada, protegendo,
desta forma, aquele que ali vivia de qualquer ataque ou assalto, desde que este fosse levado a cabo por quem não possuísse um barco.
- Ora aqui temos uma casa bem protegida! – exclamou o fora-da-lei. - Parece-me mais indicada a servir de refúgio a um salteador da floresta do que como cela
onde um monge austero fustiga o corpo magro com o chicote durante o dia, enquanto as suas noites são passadas a jejuar e a rezar. Bom, mas por onde é que andará
este humilde eremita?
Examinou com atenção o espaço junto às árvores e acabou por descobrir um lugar onde um carreiro estreito serpenteava por entre o arvoredo até desembocar
na água, como se de um vau se tratasse, e, na margem oposta, lá estava o ponto onde ele voltava a surgir, continuando a sua viagem por entre as árvores. Sentado
junto a uma árvore na margem de cá do rio, tão absorto como se estivesse a meditar, estava um homem envergando os trajes grosseiros próprios de um monge. Parecia
tratar-se de um homem grande e corpulento, sendo os seus braços largos e fortes.
- Ora aqui temos um monge e tanto! - exclamou Robin. - Parece estar mergulhado nos seus pensamentos, qual homem santo a meditar nos seus pecados. Seja como
for, lá terei de testar a sua humildade recorrendo a uma flecha!
Silenciosamente, o fora-da-lei aproximou-se do monge, que parecia estar perdido em pensamentos ou então a dormitar. Tirando uma flecha da aljava e ajustando-a
à corda do seu arco, avançou uns quantos passos e disse:
- Tu aí, homem santo! Tenho assuntos a tratar no outro lado do rio. Levanta-te e trata de me carregar nessas costas largas, não vá eu molhar os pés.
O monge moveu-se devagar, ergueu a cara e, durante alguns instantes, deitou a Robin um olhar impassível, como se não tivesse compreendido o que lhe fora
dito. O fora-da-lei troçou da expressão estampada no seu rosto.
- Levanta-te, mandrião! - gritou ele. - Leva-me para o outro lado do rio nessas costas preguiçosas, caso contrário esta seta tratará de te espicaçar as costelas!
O monge levantou-se sem pronunciar uma só palavra e dobrou as costas frente a Robin, que para elas tratou de saltar. Então, devagar, o homem entrou no riacho
e começou a caminhar lentamente até chegar à margem oposta. Imobilizou-se por um momento como que para recuperar o fôlego. Depois, subiu para terra e Robin preparou-se
para saltar para o chão. Porém, no momento seguinte, sentiu uma mão de ferro agarrar-lhe a perna esquerda, enquanto que, no lado direito, as suas costelas receberam
um enorme soco. Acabou por ser atirado pelos ares, indo cair de costas no chão, e o monge, pondo um joelho em cima de si, acabou por lhe encostar os dedos grossos
à garganta e dizer:
- E agora, meu amigo, trata de me levar de volta ao lado de onde parti, caso contrário acabarás por sofrer as consequências dos teus atos.
Robin estava furioso por o seu feitiço se ter virado contra o feiticeiro e tentou levar a mão ao punhal. Porém, o monge agarrou-lhe o pulso com uma força
tal, que o fora-da-lei ficou a saber que, pelo menos em termos de força, o outro podia ser considerado seu igual.
- Tem calma, rapaz - disse ele, ao mesmo tempo que esboçava um sorriso. - És um valentão, mas ainda tens algumas coisas a aprender. E, agora, levanta-te
e leva-me de volta ao outro lado.
O monge soltou-o e Robin, malgrado a fúria que sentia, não conseguiu evitar sentir-se impressionado com esta atitude. Por que razão não lhe batera ele até
o deixar sem sentidos ou mesmo morto, quando tivera oportunidade para isso. A maior parte dos homens teria agido assim e ninguém lhes teria levado a mal. Lá bem
no fundo, já Robin começava a lamentar ter tratado o monge com tanta altivez. Compreendia agora que, na sua ignorância, desprezara Frei Tuck.
Assim, sem dizer nada, curvou as costas, e, depois, devagar, o monge lá se acomodou nelas, passando as mãos em volta do pescoço dele, não com muita força,
apenas o suficiente para o fazer sentir que, caso tentasse alguma coisa, o monge estava preparado. Quando chegaram a meio do riacho, justamente no ponto onde este
era mais profundo e corria mais depressa, Robin sentiu uma enorme vontade de atirar com o monge para a água, mas como tudo parecia estar contra ele, optou por não
o fazer.
Quando já se estava a aproximar da margem, chegou-lhe aos ouvidos o som de uma gargalhada vinda da casa do eremita. Ao erguer os olhos, viu uma pequena janela
virada para o rio emoldurando o rosto de uma dama. Esta usava um toucado com um véu e era muito bonita. Quase no mesmo instante, o rosto desapareceu.
Embora não soubesse quem era aquela senhora, bastava-lhe pensar que fizera figura de idiota aos olhos dela para que Robin se sentisse louco de fúria. Acabou
por chegar à margem e, depois de o monge ter saltado das suas costas, virou-se para ele e disse:
- Esta não é a última vez que nos encontramos, falso eremita e patife! E para a próxima, garanto-te que sentirás o meu bastão na tua grande carcaça.
- Aparece sempre que quiseres - disse o monge, deixando escapar uma gargalhada divertida. - Tenho sempre um empadão de veado e uma ou duas garrafas de Malvasia
guardadas para os amigos. Quanto às tuas flechas, guarda-as para os veados do rei, cara linda. Trata de arranjar juízo, jovem, e não te armes em esperto com os outros,
pelo menos até teres a certeza de seres capaz de lhes levar a melhor.
Robin estava de tal forma furioso com a resposta impertinente do monge que imediatamente se atirou a ele, e ambos se puseram a lutar furiosamente, cada um
a tentar atirar o outro ao riacho. Acabaram os dois por escorregar e, sempre agarrados um ao outro, caíram eles na água.
Não demoraram muito a sair lá de dentro, e Robin, ainda cego de raiva, correu para o seu arco e para as suas flechas, que deixara caídos na margem, e, preparando-se
para disparar, voltou-se e pôs-se a procurar o monge. Este desaparecera, mas não demorou muito a sair por detrás de uma árvore, escudo numa das mãos e a espada na
outra, um capacete de aço na cabeça. Robin esticou a corda até à orelha e a corda pôs-se a vibrar quando a flecha foi disparada. Estava à espera de a ver furar o
corpo enorme do inimigo, mas, rindo, o monge fê-la parar com o escudo,e aquela caiu ao chão, aí ficando espetada, a estremecer, como se fosse uma qualquer planta
estranha a balançar ao vento.
Robin disparou outras três setas contra ele, mas o monge desviou-as todas com o escudo. Quanto ao fora-da-lei, estava furioso por ver que não havia maneira
de levar a melhor sobre este monge aparentemente invencível.
- Dispara, cara linda! - gritou o eremita. - Se quiseres passar o dia a disparar, então, eu serei o teu alvo, isto, claro, desde que não te importes de gastar
setas!
- Só preciso de soprar a minha corneta - replicou o bandoleiro, zangado - e ficarei rodeado de homens que espetarão tantas flechas na tua carcaça que, no
fim, vais parecer um porco-espinho morto!
- E eu, meu grande poltrão - disse o outro -, só preciso de levar os dedos à boca e assobiar três vezes para que os meus cães te desfaçam em pedaços.
Enquanto o monge falava, Robin apercebeu-se de um barulho vindo das árvores que estavam junto a si. Virou o rosto e viu um jovem esguio a correr na sua direção,
a cabeça coberta por um capuz ocultando-lhe quase completamente o rosto, um arco preso às costas, um varapau na mão. Robin achou que o jovem se preparava para o
atacar, e assim levantou o escudo e desembainhou a espada. Simultaneamente, ouviram-se outros sons vindos da floresta, lembrando homens a correr pelo solo. De seguida,
ouviu-se um assobio agudo, seguido por um grito, um grito que lembrava o de um animal ou o de uma ave nas garras de um falcão. Robin não demorou muito a reconhecer
o sinal de perigo emitido por Ket, o Duende, e de imediato soube estarem os seus inimigos a segui-lo.
Pensou que o jovem esguio que se imobilizara por um momento ao escutar o assobio devia ser um espião de Guy de Gisborne, ocupado a preparar-lhe uma emboscada.
Robin ergueu a espada e precipitou-se para ele. Apenas uns cem metros os separavam, tendo ele reparado como o outro arquejava, parecendo muito cansado com a corrida.
De repente, o jovem ergueu a cabeça e Robin vislumbrou o rosto que a sombra do capuz ocultava.
- Marian?! - exclamou ele, pois tratava-se da sua amada. - Que vem a ser isto? O que...?
- Robin - disse ela, respirando com dificuldade, corando violentamente quando olhou para ele e lhe pousou uma mão muito branca no braço -, toca a corneta
e chama os teus homens, caso contrário estarás perdido.
Dizendo isto, ei-la a virar-se e a correr para o monge, dizendo-lhe umas quantas palavras apressadas. A corneta de Robin deixou escapar as suas notas claras
e agudas, ficando elas a ecoar por entre os caminhos sombrios, repletos de folhagem. Quase no mesmo momento, o monge levantou dois dedos e, levando-os à boca, soltou
um assobio de tal forma estrídulo, que era de pasmar como é que o ouvido humano o aguentava. Então, eis que surgiram alguns homens a correr por entre as árvores,
e o fora-da-lei ficou a saber serem eles soldados ao serviço do abade de Santa Maria.
- Depressa, Marian! - gritou ele. - Corre para casa do frade. Não há tempo a perder!
Com os olhos, Robin tentou encontrar um lugar de onde lhe fosse possível defender-se, e viu uma língua de terra que se precipitava para o riacho. Ajustou
uma flecha ao arco, disparou contra o primeiro dos homens e correu para aquela espécie de promontório ajustando outra flecha ao arco enquanto se movia. O monge e
Marian chegaram lá quase ao mesmo tempo que ele.
- Não, não! - teimou o fora-da-lei. - Atravessa a ponte e esconde-te em casa do monge. Caso os meus homens não estejam aqui por perto, então, as coisas vão
ficar difíceis para mim e não te quero ver magoada, querida. - E ei-lo a preparar uma terceira flecha.
- Não, Robin - retorquiu Marian. - Como tu muito bem sabes, sou muito capaz de manejar o arco, e o bom do Frei Tuck vai ajudar-nos. Repara! Aqui estão os
cães!
Nesta altura, os soldados encontravam-se a cerca de dez jardas de distância e já o bandoleiro lhes enviara três flechas, matando um e ferindo dois de entre
eles.
Era Black Hugo quem os chefiava e gritou:
- Rapazes, temos de nos manter unidos e atacá-lo. Se ele se servir das setas para nos conseguir manter à distância, então, vamos todos acabar por morrer.
Ainda não acabara de falar e já uma enorme flecha se cravara no pescoço do homem que estava junto a si, fazendo-o cair. Os soldados tentavam a todo o custo
manter-se unidos, mas aquelas flechas enormes não lhes facilitavam a tarefa. Enquanto hesitavam, chegou-lhes de repente aos ouvidos o som de latidos, e antes mesmo
de compreenderem o que se estava a passar, dez enormes cães saltaram-lhes em cima. Tratavam-se de animais ferozes, do tamanho de sabujos, com grandes coleiras em
torno do pescoço, todas elas repletas de espigões afiados.
Munidos de espadas e de punhais, os soldados lutaram cegamente contra estes inimigos estranhos e terríveis. De súbito, ouviu-se um assobio agudo e a forma
gigantesca de um homem, envergando roupas de monge, um escudo na mão, aproximou-se deles. Chamava os cães pelos nomes e ordenava-lhes que parassem. Cinco dos mastins
estavam mortos ou feridos, mas os outros, ao escutarem a voz do dono, acabaram por retirar, lambendo as feridas.
Black Hugo limpou o suor que lhe escorria pelo rosto moreno e deitou um olhar à sua volta, e, de um momento para o outro, ficou muito pálido. Do outro lado
do prado, ou seja, do lado onde se encontrava a casa do frade, viam-se as silhuetas de um bando de homens vestidos de verde, que corriam para eles tão depressa quanto
podiam, e todos vinham a ajustar uma flecha ao respectivo arco.
- Salvem-se! - gritou Black Hugo. - Vêm aí patifes em número muito superior ao que podemos enfrentar.
Os homens deitaram uma olhadela ao outro lado do prado e, virando-se, correram para as árvores em busca de proteção. Os salteadores imobilizaram-se durante
um minuto e, depois, uma chuva de flechas cruzou os ares a zumbir, cortando os leques das folhas e desaparecendo entre os arbustos. Estas setas mataram logo três
soldados, mas os outros puseram-se a correr como loucos rumo ao lusco-fusco verde das árvores, separando-se à medida que fugiam, para dificultar a perseguição.
No momento em que o último dos fora-da-lei desapareceu, correndo atrás dos soldados, Robin voltou-se para Marian, que, corada e a respirar de forma apressada,
tentou antecipar-se à fúria que, receava, o seu bem-amado se preparava para virar contra si.
- Não te zangues comigo, Robin - pediu ela. - Acontece que tenho receado tanto por ti que decidi vir até à floresta ver como te estavam a correr as coisas.
Sabes bem a quantidade de vezes em que, quando éramos novos, participamos em caçadas em Locksleys Chase. Por que razão não deveria fazer o mesmo agora?
- Por que razão não o deves fazer, querida? – retorquiu Robin. - Porque sou um fora-da-lei e tu és filha de um senhor. A minha cabeça é de quem a conseguir
capturar e aqueles que me ajudam correm o mesmo perigo. Mas agora diz-me, Marian, desde quando é que andas com essas roupas que te fazem parecer um rapazinho de
tão doce aspecto? E como é que ficaste a conhecer o patife deste monge?
- Ele não é nenhum patife, Robin, mas sim um homem bom - respondeu a jovem. - É muito amigo de Sir Richard de Lee, nunca teve outra coisa a teu respeito
senão palavras de apreço e consolou-me bastante quando me sentia infeliz por tua causa. E, por fim, quando decidi vestir estas roupas e vir para a floresta saber
como vivias, isto, claro!, no caso de tal ser possível, falei com Frei Tuck, e ele prometeu ajudar-me. É que ele tem amigos por toda a floresta, e foi assim que
fiquei a conhecer os teus amigos duendes. Quando vinhas para cá, eu estava a observar-te, e o Ket sabia que eu estava lá.
Enquanto falava, Marian conduzira Robin ao longo da ponte levadiça, encontrando-se agora os dois na residência do monge. Esta consistia numa divisão que
assumia o aspecto de cozinha, oratório e salão. A um dos cantos viam-se um crucifixo e um genuflexório. Numa outra parede, era possível distinguir uma série de cotas
de malha, maços de aço, uma espada de dois gumes, duas ou três alabardas brilhantes, um feixe de flechas, bem assim como um arco de grandes dimensões. Ao longo da
terceira parede alinhavam-se prateleiras grosseiras, onde se viam sacos de farinha e dois ou três pedaços de presunto ou veado em salmoura. Bem no meio da sala estava
uma mesa.
No momento em que entraram, uma dama levantou-se do assento onde se encontrava e Marian correu para ela de braços abertos, depois do que, impulsiva, a arrastou
para a frente.
- Alice, este é Robin - apresentou ela.
Robin reconheceu o rosto da dama. Tratava-se da mesma pessoa que o vira atravessar o riacho transportando o monge às costas e se rira dele. O rosto dela
era alegre e bonito, e era com um brilho nos olhos que o examinava. De seguida, estendeu-lhe a mão e disse:
- Com que então, sois vós o arrojado fora-da-lei cuja cabeça Sir Ranulf de Greasby jura todas as noites, antes de ficar demasiado tonto e de se ir recolher,
que ainda vai pendurar no Castelo de Hagthorn?
E soltou uma gargalhada bem humorada. Quanto aos seus olhos, a admiração que neles se podia ler por aquele fora-da-lei tão bem-parecido era de tal forma
eloquente que o coração de Robin de imediato se lhe rendeu. Dobrou um joelho e, galante, beijou a mão da dama.
- Chamo-me Robert, ou Robin dos Bosques, tal como os meus homens me tratam - disse ele. - Quanto a si, penso tratar-se de Alice de Beauforest, a quem Alan-a-Dale
tanto adora.
Durante algum tempo, o rosto da senhora ficou muito corado, tendo em seguida empalidecido, e nos seus olhos surgido uma expressão dolorosa. Acabou por se
afastar, tendo-a Marian seguido, a ternura estampada no olhar, e passando-lhe um braço em torno do pescoço.
Foi então que o monge entrou em cena.
- Meu Deus - disse ele -, palavra que me saiu caro ajudar-te. Quatro dos meus pobres mastins soltaram o seu último latido e roeram o último osso por tua
causa.
- Meu bom eremita - retorquiu Robin, indo ao encontro do outro com a mão estendida -, constou-me que tens sido um amigo de verdade para a senhora a quem
mais amo no mundo, e gostaria muito de que também fosses meu amigo.
- Robin, meu rapaz - disse Frei Tuck, um sorriso a iluminar-lhe o rosto largo e bem disposto -, não tenho feito outra coisa para além de desejar o teu bem
desde que soube como ajudaste a pegar fogo à casa de Sir Guy, estando ele lá dentro. Tenho a certeza de que, no fundo, tu e eu não somos inimigos, rapaz. Desde que
vim para aqui, há sete anos, com a ajuda do meu bom amigo, Sir Richard de Lee, que nunca ouvi falar de um homem cujos feitos me tenham dado tanto prazer escutar.
O modo como puseste a ridículo o mal-encarado do xerife de Nottingham! Já não me ria tanto desde o dia em que atirei com os meus santos irmãos para os viveiros dos
peixes, em Foutains Abbey, e consegui ser expulso dali!
O monge agarrou a mão de Robin e deu-lhe um aperto que teria quebrado os ossos de um homem mais fraco. Porém, o aperto de Robin foi quase tão forte, o que
levou Frei Tuck a esboçar um sorriso de admiração.
A partir dali, a conversa generalizou-se, e todos se puseram a falar. Marian contou como o frade fora o seu guia durante aquele Verão que passara na floresta,
ensinando-a a trabalhar a madeira e explicando-lhe muitas coisas a respeito de ervas e de curas. Também confessou a Robin ter feito amizade com Ket, o Duende, e
Hob da Colina, sem esquecer a mãe e as irmãs de ambos, sendo através deles que se mantivera informada de tudo o que sucedia com Robin e com os seus homens.
- Robin - disse o frade -, deves sentir-te orgulhoso por saber que uma dama assim tão bela foi capaz de fazer tudo isto só por te amar.
- É verdade - concordou Robin. - Ainda assim, o meu coração sente uma grande mágoa ao pensar que sou um fora-da-lei, e que só lhe posso oferecer, a ela,
que sempre conheceu o lado sorridente da vida, a existência despojada e nômade da floresta. Não mudaria de vida por nada que o rei me pudesse oferecer, mas que a
minha donzela vestida de castanho se deseje casar comigo contra a vontade da família, isso seria o mesmo que a condenar a uma vida que não poderia... melhor, que
não poderei, pedir-lhe que partilhe.
- Robin - disse Marian -, é só a ti que amo e não casarei com mais ninguém. Amo a vida na floresta tanto quanto tu e sentir-me-ia feliz mesmo que fosse obrigada
a abandonar toda a minha família. Sem dúvida que pensas que me vou queixar assim que as folhas caírem das árvores, assim que o vento se puser a soprar pelos caminhos
escuros ou a fazer dançar os flocos de neve. Contudo, o meu coração terá calor se estiveres a meu lado, e nunca me arrependerei de ter abandonado as espessas muralhas
do castelo do meu pai. Ele é muito bom para mim, mas troça de mim e censura-me todos os dias por te amar. Logo, e muito embora isso o possa magoar, virei juntar-me
a ti quando de mim precisares.
Quando terminou de falar, a sua voz suave tremia um pouco e havia lágrimas nos seus olhos corajosos. Robin pegou-lhe nas mãos e, levando-as aos lábios, beijou-as
com fervor.
- Quase me convenceste, minha querida - disse ele. - Sei que não amas mais ninguém para além de mim, mas não está certo que uma donzela fuja para a floresta
com um fora-da-lei, e isto para viver num receio permanente, vigiando noite e dia, não vão os inimigos aproximar-se. Contudo, Marian, posso prometer-te uma coisa:
se, em algum momento, te sentires ameaçada por aqueles que te querem mal, então, manda chamar-me que eu irei ao teu encontro, depois, este bom monge aqui acabará
por nos casar e juntos enfrentaremos aquilo que o destino nos reservar.
- Assim é que se fala, Robin dos Bosques! - exclamou o monge, mostrando-se repleto de convicção. - As tuas palavras revelam sensatez. Tal como eu já calculava,
vejo que és um homem honrado. E, para ser franco, penso que não será preciso esperar que corra muita água debaixo da ponte de Wentbridge para que esta bela donzela
necessite de um braço forte e do amor de um homem bom que seja suficientemente forte para a proteger daqueles que lhe querem mal.
O monge disse isto porque sabia que o pai de Marian estava adoentado e que, caso morresse, muitos senhores e prelados influentes e perversos, desejosos de
se apoderarem das terras e das riquezas de Lady Marian, tratariam de conspirar no sentido de a chamarem a eles, podendo assim lucrar com a sua riqueza, vendendo-a
a um marido que lhes pagasse um bom preço por uma noiva com um dote tão rico.
Escutou-se uma corneta e, dirigindo-se para a porta, Robin viu que se tratava de João Pequeno e dos demais bandoleiros. Aquele comunicou-lhe que os soldados
do abade e os guardas do rei tinham sido perseguidos até à estrada principal, para lá de Harlow Wood, encontrando-se vários deles feridos. Nesse ponto, dois cavaleiros
que pareciam esperá-los, tentaram socorrer os soldados, mas as flechas dos fora-da-lei haviam-nos feito mudar de ideias, tendo mesmo um dos cavaleiros saído dali
com uma flecha cravada no flanco.
- Eles tinham consigo qualquer coisa que os pudesse identificar? - perguntou Robin.
- Um deles tinha uma torre no escudo, mas não havia nada no escudo do outro - retorquiu João Pequeno.
- O escudo com a torre vermelha estava com um homem que eu não reconheci - disse Scarlet -, mas o do escudo liso era um daqueles que, no ano passado, na
Igreja de Campsall, obrigamos a recuar.
- O que Scarlet diz é verdade - disse Will, o Arqueiro. - Trata-se de Niger le Grym. Quanto ao outro, a avaliar pela maneira como falava e pelas pragas que
soltava, só podia ser Isenbart de Belame, o diabo em pessoa.
- Não me admirava nada - disse Robin. - Isto apenas prova que os espiões deles nos estão sempre a vigiar. Vão para a floresta, mas mantenham-se dentro do
perímetro da minha corneta. Estão aqui duas senhoras a quem temos de escoltar até casa.
Lá dentro, Frei Tuck preparava uma refeição própria para ser consumida na floresta, e, depois de Marian ter mudado de roupa, todos se sentaram a comer. De
seguida, alguém foi buscar dois cavalos ao seu esconderijo na floresta, e as senhoras, depois de montarem, despediram-se do monge e partiram com Robin rumo ao castelo
de Sir Richard de Lee, onde estavam ambas a passar algum tempo.
Enquanto cavalgavam ao longo dos caminhos banhados de luz, Robin reparou que Lady Alice continuava a mostrar-se triste e pensativa, o que o levou a perguntar
a Marian por que razão as suas palavras lhe haviam causado tanta tristeza.
- Porque - respondeu a interpelada - lhe é agora impossível evitar casar-se com aquele homem velho e perverso, Sir Ranulf de Greasby. O dia do casamento
já está marcado e o homem que ela ama, Alan-a-Dale, foi proscrito, encontrando-se escondido nas montanhas selvagens de Lancaster.
- Ignorava tudo isso - declarou Robin. - Por que razão é que esse jovem senhor foi considerado proscrito?
- Sir Isenbart de Belame fez com que ele fosse considerado proscrito, acusando-o de ter morto Ivo le Ravener. Como se isto não bastasse, quer obrigar o pai
de Alan, Sir Herbrand, a pagar um imposto pesadíssimo sobre as suas terras, sendo bastante provável que já não falte muito para que Sir Herbrand se veja arruinado
e o seu filho seja morto. É por isto, pela dor que estes fatos lhe provocam, que a minha querida amiga Alice está tão triste.
- É verdade que ele matou Ivo le Ravener - disse o fora- da-lei-, mas fê-lo no decorrer de um combate honesto, pois eu estava lá quando tudo aconteceu. No
entanto, não faço a mínima ideia de como é que se pôde ficar a saber que Alan o matou, já que nenhum dos seus homens estava junto a ele, isto se não contarmos com
um vilão que Ket, o Duende, matou.
Robin contou o que sucedera durante o combate travado na floresta entre Alan e Ivo le Ravener.
- Acabei de me lembrar - disse Marian - que Sir Richard disse algo a respeito de um guarda-florestal lhe ter contado que, no dia em que o cavaleiro foi encontrado
morto, Alan-a-Dale tinha ido buscar um cavalo que deixara a seu cargo, e que ele tinha uma ferida no ombro.
- Trata-se de Black Hugo - retorquiu Robin. - Era ele quem hoje estava com os soldados. Ele não disse mais nada? Não disse quem estava com Alan quando ele
foi buscar o cavalo, nem contou nada sobre o seu próprio estado naquele momento?
- Não, creio que não.
Robin pôs Marian ao corrente de como haviam encontrado Black Hugo amarrado ao poste colocado à entrada da sua própria casa, enquanto um homem grande se sentava
à sua frente, ocupado a comer a carne grelhada que o guarda preparara para si mesmo. Marian riu com vontade ao ouvir aquilo e depois disse que Sir Richard ficaria
encantado quando escutasse uma história tão divertida.
- Estás a ver aquele sujeito alto ali? - inquiriu o bandoleiro, apontando para a figura atlética, flexível e musculosa de João Pequeno. Este caminhava à
frente deles e ia lançando olhares penetrantes à sua volta. - É ele o vilão que amarrou o guarda, e palavra que se trata do melhor camarada e homem de armas que
alguma vez conheci.
Marian expressou então o desejo de travar conhecimento com João Pequeno, que de pronto foi chamado pelo chefe. E ei-lo que, passado pouco tempo, o rosto
corado, falava com a primeira dama que alguma vez encontrara na vida. No entanto, comportou-se com a dignidade de um homem livre, uma vez que a vida na floresta,
ao ar livre, constituía a melhor forma para que os modos rústicos e desajeitados dos servos dessem lugar a um comportamento claramente viril.
Enquanto conversavam e Marian cravava João Pequeno de perguntas relativas à vida dos fora-da-lei na floresta, Robin cavalgou para junto de Lady Alice, que
seguia acompanhada pela respectiva aia.
- Senhora - disse o fora-da-lei -, lamento que as minhas palavras tenham despertado os seus mais tristes pensamentos. No entanto, diga-me, já que tive a
honra de conhecer Alan, um jovem senhor ousado e corajoso, de falar cortês e modos educados, para quando é que está marcado o seu casamento com o velho cavaleiro
que aqueles tiranos de Wrangby desejam transformar em seu marido?
- Sr. Fora-da-lei - retorquiu a dama -, agradeço-lhe as suas palavras amáveis relativas àquele que amo. Nas poucas cartas que dele recebi desde que, há um
ano, foi declarado proscrito e fugiu para a floresta, ele falou-me de si, usando sempre palavras carinhosas para definir a vossa amizade. O casamento que tanto ódio
me desperta está marcado para três dias depois da festa de São Tiago, e deverá decorrer na Igreja de Cromwell. O meu pobre pai já não consegue resistir mais às exigências
perversas de Sir Isenbart, que o ameaça com o fogo e com a espada caso ele não se submeta à sua vontade e não me dê em casamento a Sir Ranulf, esse velho tirano.
Não temos amigos poderosos e bem colocados a quem pedir proteção, e o meu amado é um fora-da-lei e nada pode fazer para me salvar.
As lágrimas corriam dos seus lindos olhos, tocando o coração de Robin. A raiva ensombrou-lhe o rosto, e ele meditou durante uns momentos. Passado algum tempo,
declarou:
- Anime-se, minha querida senhora. Apesar de não haver muito tempo a perder, talvez possamos esperar alguma coisa de uns quantos braços fortes e do mesmo
número de corações decididos. Não conhece ninguém que possa levar uma mensagem ao seu amado da minha parte?
- Obrigada pelo seu apoio, meu bom Robin - retorquiu a senhora, sorrindo por entre as lágrimas. - O meu pai tem um servo que conhece o esconderijo do meu
amado, tendo-lhe já levado quatro mensagens minhas, embora o caminho seja difícil e longo para um pobre vilão que pouco viajou. De qualquer dos modos, trata-se de
um rapaz corajoso, que gosta de satisfazer os meus pedidos.
- Como é que ele se chama e onde é que mora?
- O nome dele é John, ou Jack, filho de Wilkin, e vive junto a Hoar Thorn, em Cromwell.
- Entregue-me alguma coisa que ele reconheça como sendo sua - pediu Robin -, pois estou a pensar mandar um dos meus homens ao encontro dele antes mesmo que
os sinos toquem a anunciar as Vésperas.
Lady Alice tirou o anel que usava num dos seus dedos esguios e colocou-o na mão de Robin.
- Ele reconhecerá este anel e saberá que me pertence, depois, fará tudo o que o seu portador lhe pedir. Basta que tal me faça feliz - disse ela.
A aia que seguia ao seu lado estendeu a mão. Segurava nos dedos um grosso anel de prata.
- Corajoso bandoleiro - disse a rapariga, uma jovem bonita, de cabelo escuro, faces rosadas, e olhar altivo -, deixa que o teu homem também entregue isto
a Jack, e lhe peça da minha parte, já que ele diz que me ama, que, caso não faça o que lhe pedes, então, aqui está o anel que ele me ofereceu. O teu homem que lhe
diga também que, caso ele falhe, da próxima vez que me encontrar não conhecerá apenas o lado menos simpático da minha língua, mas também a minha maldição. Pois,
caso ele não trate de mexer a sua enorme carcaça pela estima que lhe merece a minha senhora, que tão aflita está, então, não é homem para Netta de Meering.
- Farei o que me pedes, bela jovem - disse Robin, sorridente. - E como não tenho dúvidas de que aquele que te deu este anel é um homem corajoso, estou certo
de que tudo correrá pelo melhor.
Chegaram ao castelo de Sir Richard passado pouco tempo, tendo as senhoras ficado em segurança no salão.
A esta hora do dia, a luz começava a diminuir de intensidade, e Robin sabia não ter tempo a perder. Chamou Will, o Arqueiro, à sua presença, e, entregando-lhe
os dois anéis, confiou-lhe a missão que planeara. Pouco depois, montado no veloz cavalo de Robin, Will galopava a toda a brida ao longo dos caminhos da floresta
que seguiam para leste, para as águas do Trent.


5.
DE COMO, COM A AJUDA DE ROBIN DOS BOSQUES
E DE JACK, FILHO DE WILKIN, ALAN-A-DALE
SE CASOU COM LADY ALICE

Jack, filho de Wilkin, estava na floresta, a atar o último molho de lenha a uma carroça que ele mesmo fizera, e não lhe podia passar pela cabeça que estava
prestes a receber uma mensagem que afetaria grandemente toda a sua vida futura. Jack era um jovem com cerca de vinte anos, forte e bem constituído, com bom aspecto,
olhos castanhos e vivos, a pele salpicada de sardas. A cabeça, coroada de caracóis castanhos, nunca andava coberta, exceto quando nevava ou quando o vento gelado
vindo de leste soprava na floresta durante o Inverno.
Tratava-se de um vilão pertencente à propriedade de Cromwell, e o seu amo era Sir Walter de Beauforest, o pai de Lady Alice. Este mal dava pelo fato de que
Jack existia. Vira o rapaz algumas vezes, quando fora caçar, mas nunca se incomodara a olhar para o rosto de quem o servia. No entanto, John de Thinne, o rendeiro
do senhor, sabia ser Jack um dos melhores trabalhadores da propriedade. De fato, quando Jack era um rapaz de doze anos, o rendeiro chegara mesmo a lançar-lhe um
ou outro olhar menos simpático, isto porque Lady Alice, então uma rapariga um ou dois anos mais velha, reparara nele, tendo-o nomeado um dos seus falcoeiros.
Contudo, quando o pai de Jack morreu, o rapaz viu-se obrigado a trabalhar com vista a pagar a cabana e os poucos metros quadrados de terra que lhe serviam
de sustento, a ele e à mãe, e Jack passou a ver Lady Alice com menos frequência, embora, e por um sorriso ou uma palavra amável da sua parte, fosse capaz de enfrentar
tudo e todos.
No grande pergaminho onde estavam anotados os nomes de todos os servos pertencentes à propriedade, e que se encontrava na posse do administrador, Jack estava
registado como John, filho de Wilkin. O nome do seu pai era Will, mas, enquanto jovem, fora conhecido por Wilkin, o que significa Pequeno Will. Contudo, o apelido
de Jack não era definitivo, já que, naqueles dias, não era costume os vilões e os pobres terem apelido. De fato, às vezes tratavam-no por Jack, filho de Will, ou,
e porque havia um espinheiro junto à sua choupana, por Jack, o Espinho. Ou ainda, e por a mãe se chamar Alice, Jack, filho de Alice, o que, nos dias de hoje, se
traduziria por Alison. Porém, e como ele era um rapaz esperto e divertido, Jack costumava saber quando o estavam a chamar, daí que não se importasse muito com formalidades.
Jack adorava cavalos, cães e falcões. Sabia os nomes de todos os cavalos da propriedade, e muitos eram os dias que passava com eles, o que acontecia sempre
que ia para o campo, empurrando o arado comprido e direito com que tinha de lavrar a terra do senhor. Contudo, também passava muitos dias felizes na companhia de
Lady Alice, os dois entretidos a caçar, servindo-se para isso de aves como o esmerilhão, o falcão-real, o falcão-macho e o peneireiro.
Jack conhecia todos os cachorros da aldeia, mas lá não havia cães grandes, como mastins ou perdigueiros, porque a aldeia ficava demasiado perto da floresta
do rei, logo, do local por onde o veado vermelho vagueava, daí que todos os cães grandes fossem mortos pelos guardas ou, então mutilavam-lhes as patas dianteiras,
impedindo-os, assim, de serem usados para a caça.
A grande ambição de Jack era conseguir a liberdade. Ser um homem livre e trabalhar na sua própria terra, tal como acontecia com Nicholas de Cliffe ou Simon
Fletcher, eis aquilo que para ele aparecia como a forma suprema de felicidade. Não que o seu amo fosse um homem duro ou que John, o Rendeiro, o oprimisse, mas, fosse
como fosse, Jack continuava a preferir ser livre a estar ligado à terra, tal como agora acontecia. A mãe explicava este estranho desejo dizendo que, há quatro gerações,
durante a era do rei abençoado, Eduardo, o Confessor, quando a terra não conhecera senhores aguerridos nem barões violentos, os antepassados de Jack haviam vivido
em liberdade. Contudo, a chegada dos normandos reduzira-os à servidão.
Jack considerava uma verdadeira injustiça o fato de, quando o pai morrera, a mãe ter sido obrigada a dar ao administrador o melhor animal que possuíam, Mollie,
uma esplêndida vaca leiteira, isto para além do melhor caldeirão e do melhor dos bancos que havia em casa. Tinham-lhe dito que estas coisas serviam para pagar o
fato de o senhor os ter deixado ficar na terra e na cabana que eram suas e dos seus antepassados há várias gerações.
Até há qualquer coisa como dez meses, o mundo que se estendia para lá da sua aldeia parecia-lhe uma região escura, terrível e misteriosa. Conhecia a região
num raio de cinco quilômetros que se estendiam a partir da igreja, situada bem no centro da aldeia. Contudo, nunca se atrevera a penetrar na zona de floresta situada
a ocidente. Suspeitava de todos os estranhos e sempre que se cruzava com alguém que avançava na direção da aldeia escondia-se e deixava essa pessoa passar.
Via a floresta como um local pavoroso, pois os outros vilões contavam histórias terríveis. Falavam de monstros que voavam durante a noite, ao passo que,
durante o dia, se escondiam por entre as sombras, prontos a agarrar os viajantes desprevenidos, de colinas de cujos cumes, à noite, saíam línguas de fogo, e onde
viviam pequenos duendes ou espíritos de pele morena. De fato, e naquela época, o medo que sentia destes pequenos demônios maliciosos nunca andava muito longe da
mente de Jack. Estas coisas misteriosas podiam assumir qualquer forma e viviam nas fontes e nos riachos, na floresta junto à estrada e nos tufos de erva espalhados
pelos campos que ele arava e ceifava. Toda a aldeia, melhor, todos os milhares de aldeias espalhadas por toda a Inglaterra acreditavam nestes espíritos maldosos,
logo, Jack não era pior que os seus pares, nem mesmo do que aqueles que, na época, eram famosos pela sua erudição e tomavam parte nos conselhos reais.
O velho corvo negro que esvoaçava sobre os sulcos que cobriam a terra, ou a gralha que pousava num torrão de terra e fitava Jack com o seu olho redondo quando
aquele estava a lavrar, podia bem ser uma bruxa ou um feiticeiro a tentar descobrir maneira de fazer este ou aquele feitiço - nunca uma ave à procura de minhocas
ou de outros bichos que o arado pudesse ter desenterrado. Assim, Jack tinha de fazer figas e dizer um Padre-nosso sempre que passava por uma destas aves agourentas.
Do mesmo modo, se Jack visse um bom pedaço de madeira que, depois de seco, desse uma boa tora para queimar na lareira, e este tronco estivesse a flutuar no ribeiro,
não o podia puxar sem mais nem menos, tal como faria um qualquer rapaz de hoje em dia. De maneira nenhuma. Antes de lhe tocar, fazia o sinal da cruz por cima dele,
não fosse uma qualquer ondina mal-intencionada estar escondida atrás da madeira, pronta a puxá-lo para a água, isto caso ele não a neutralizasse servindo-se para
isso do sinal sagrado.
Encontrar uma ferradura perdida ou apoderar-se de uma demasiado gasta para continuar a ser usada era considerado qualquer coisa de muito afortunado. Jack
tinha uma ferradura sobre a porta da choupana onde vivia, para impedir que as bruxas e os feiticeiros entrassem em sua casa, e uma outra sobre a persiana da janela.
Jack conhecia a forma correta de a pendurar. Na noite que antecedia o dia de Todos os Santos, uma altura em que os seres mal-intencionados se mostram muito ativos,
Jack usava um ramo de sorveira-brava preso ao cinto.
Nunca vira um elfo ou um duende, mas sabia que estes viviam em grutas escavadas nas colinas ou em esconderijos na floresta. De fato, corria uma história
a respeito de um homem, um servo, Sturt de Norwell, que há muito tempo ouvira alguém a gritar na floresta, dizendo ter perdido a picareta. Quando foi ver quem estava
a gritar, Sturt descobriu que se tratava de um duende. Muito embora estivesse assustado, o homem foi procurar a picareta e encontrou-a, e o duende convidou-o para
jantar na sua casa. A partir de então, Sturt passou a ir com frequência à encosta da floresta e, passado um ano, casou com a filha do duende, tendo levado sempre
uma vida próspera. Os seus filhos continuam a viver em Norwell, e um deles é um homem livre. Todos eles são indivíduos pequeninos e bem dispostos, sendo bem recebidos
em todo o lado graças às suas canções e à alegria que os caracteriza.
Esta fora a forma como Jack vira o mundo e as coisas em geral até há apenas alguns meses. Então, um belo dia, Lady Alice, tão graciosa e bela quanto uma
visão celestial, encontrara-se com ele num lugar sombrio e, entregando-lhe um pergaminho embrulhado em seda, pedira-lhe que o fosse levar ao seu bem-amado, escondido
numa determinada zona da floresta de Lancaster. Dissera-lhe ser ele o único homem em quem ela podia confiar, e as suas palavras tiveram o condão de quase fazer com
que o coração de Jack rebentasse de felicidade.
Jack era um rapaz corajoso, mas aquela primeira viagem através da enorme floresta, transportando a sua preciosa mensagem, foi uma experiência de tal forma
pavorosa que nunca a esqueceria. Porém, graças à adoração que sentia pela bela Alice, cujo amor por Alan-a-Dale era conhecido em toda a propriedade, a lealdade levara
a melhor sobre o medo e desempenhou com brio o que lhe fora pedido.
Depois disso, levara a cabo a mesma viagem outras três vezes, e de todas as vezes que o fizera, o terror que sentia pelos caminhos desconhecidos e os espaços
selvagens que se estendiam entre Sherwood e Werrisdale tinham-se, de novo, apoderado de si. Porém, a sua coragem e esperteza haviam-no feito ultrapassar com segurança
todas as aventuras com que se vira confrontado.
Nunca vira um fora-da-lei ou um ladrão de verdade durante as suas viagens pelas florestas. Vira bufarinheiros, mendigos vigorosos e menestréis atrevidos,
criaturas que o tinham tentado assustar ou despojar das poucas coisas que possuía, até mesmo da sua sacola da comida. Contudo, nunca se cruzara com nenhum daqueles
homens terríveis que tinham fugido dos respectivos amos, abandonando as terras, as casas e a rotina diária dos seus antepassados. Frequentemente, dava por si a interrogar-se
sobre o quanto estes homens se deviam sentir desesperados e dispostos a tudo, incluindo a ferir ou a matar.
Nessa tarde, enquanto atava o último molho de lenha à pequena carroça, perguntava-se sobre o que teria feito, caso um destes indivíduos se precipitasse sobre
ele saindo do meio de um arbusto e lhe exigisse aquele objeto precioso que Lady Alice lhe confiara. Seria obrigado a lutar até à morte, mas nunca o entregaria.
Dando um estalido com a língua, deu a entender ao pônei que puxava a carroça que estava na hora de se pôr em marcha, e lá o conduziu pelo carreiro até saírem
da floresta. Olhou para ocidente e, lá longe, sobre a linha da floresta, viu a parte superior de um enorme Sol vermelho, à luz do qual os troncos das árvores que
o cercavam pareciam emitir reflexos vermelho-sangue. A claridade fez-lhe doer os olhos. A seu lado, escutou um ramo quebrar-se, e um homem saiu por detrás do tronco
de uma árvore, barrando-lhe a passagem.
- Chamas-te Jack, filho de Wilkin? - inquiriu o desconhecido com voz de comando.
Ele recuou, levando a mão ao cabo do punhal que tinha preso ao cinto. Examinou o homem com atenção. Tratava-se de um sujeito baixo e forte, vestido com uma
túnica verde e calças de malha, tudo muito gasto em alguns lugares e com alguns rasgões, tal como se estes tivessem sido feitos pelos espinheiros. Trazia um arco
preso às costas e um molho de setas enfiadas na aljava, ao lado da espada.
Enquanto fitava o desconhecido com o sobrolho carregado, Jack perguntava-se quem poderia ele ser. Pelas roupas, talvez fosse um lenhador, e o rosto, coberto
por uma enorme barba grisalha, parecia honesto, apesar de duro. No entanto, o seu porte parecia dizer não conhecer ele outro amo para além de si mesmo. A marca do
homem livre iluminava-lhe os olhos perspicazes, era possível detectá-la na forma como olhava em frente, bem como no porte altivo da cabeça.
Tudo isto passou pela mente de Jack no espaço de alguns segundos, e, por fim acabou por lhe perguntar:
- Que te interessa a ti saber quem eu sou?
- Mas interessa-te bastante a ti saber quem és - redarguiu o estranho com uma gargalhada. - Olha, rapaz, descansa que não te faço mal.
Havia uma nota de honestidade na gargalhada do outro que lhe agradou bastante. O desconhecido levou a mão esquerda ao bolso e retirou de lá algo. De seguida,
puxou do punhal e deixou cair os dois anéis que estavam enfiados na sua ponta - um de ouro, o outro de prata - levantando a arma para a luz. Os raios mortiços do
sol bateram no diamante incrustado no fino aro de ouro e a pedra brilhou no meio da floresta semiobscurecida como se fosse qualquer coisa de sobrenatural.
- Reconheces alguma destas jóias, rapaz? - quis o homem saber.
- Onde é que as foste arranjar? - retorquiu Jack, a raiva a tornar sombrio o seu rosto. - Roubaste-as a quem as usava? Se assim for, não sairás daqui com
vida.
- Calma, rapaz, calma - disse o outro, seguindo atentamente o movimento que Jack esboçou de forma involuntária, recuando como se estivesse a preparar-se
para saltar sobre ele. - O meu amo recebeu-as das mãos das suas legítimas proprietárias, acompanhadas de algumas palavras. Lady Alice, a tua ama, disse: "Jack é
corajoso e adora satisfazer os meus desejos. Reconhecerá este anel e, por mim, fará aquilo que o portador lhe pedir."
- Lady Alice disse mesmo essas palavras? - quis saber Jack. Tinha as faces coradas, o sangue parecia querer queimar-lhe o coração, e sentia-se inundado de
felicidade ao escutar aquele elogio da parte da sua senhora, mesmo quando pronunciado pelos lábios deste velho lenhador esfarrapado. - E que deseja a minha senhora
que eu faça? - prosseguiu ele.
- Que te juntes a mim e me conduzas até Alan-a-Dale - replicou Will, o Arqueiro.
Jack teve um momento de hesitação. Juntar-se a este estranho e atravessar a floresta e as terras solitárias do Peak! Porém, a sua lealdade não lhe permitia
hesitar.
- Conta comigo, amigo! - retorquiu ele. - Diz-me como te chamas e quem és.
- Chamo-me Will, o Arqueiro. Robin dos Bosques é o meu senhor.
- O quê?! - exclamou Jack, recuando. - És um fora-da-lei? Um dos homens de Robin dos Bosques?
- É isso mesmo - admitiu o desconhecido. - E sinto-me orgulhoso por servir um homem tão corajoso e sensato.
Durante breves instantes, foi como se o rapaz não conseguisse falar. Este não era um facínora desesperado e temerário, tal como ele imaginara, mas sim um
homem de rosto agradável, com olhos que podiam ser duros mas que também sabiam sorrir. Cedendo a um impulso, Jack estendeu a mão e o outro apertou-lha.
- És o primeiro fora-da-lei que conheço - disse o rapaz, deixando escapar uma gargalhada sincera. - E, caso o teu amo e os teus camaradas sejam como tu,
então, diz-me o coração que se trata de gente boa e honesta. Isso quer dizer que Robin dos Bosques vai ajudar a minha senhora?
- Exato. É isso mesmo que ele vai fazer - assentiu Will. - Mas agora, é melhor pararmos com a conversa e fazermo-nos à floresta antes que a luz desapareça
de uma vez por todas.
Não se pronunciaram mais palavras. Jack conduziu o cavalo e a carroça até ao carreiro que levava à aldeia e deu uma palmada ao cavalo. Pelo som dos seus
cascos que se afastavam, soube que ele não demoraria muito a chegar em segurança à aldeia. Contudo, antes de o mandar embora, arrancou da sebe um ramo de clematite
e enrolou-o em torno da cabeça do pónei. Com isto, a sua mãe ficaria a saber que, mais uma vez, ele partira de repente a pedido de Lady Alice.
Quando já se encontravam a mais de um quilômetro de distância do bosque, Will disse:
- Não perguntaste qual é a mensagem que veio a acompanhar o segundo anel, rapaz.
Jack riu.
- Pois não. Em primeiro lugar, não o fiz porque a mensagem da minha senhora o afastou da minha mente e, em segundo lugar, porque duvido que seja uma mensagem
suave.
- Trata-se da mensagem de uma donzela - retorquiu Will -, e tem tanto de doce quanto de amargo, como muito bem sabes. E depois, será que a donzela Netta
de Meering zomba de ti sempre que pronuncia palavras amáveis?
- És mais velho do que eu - replicou Jack, soltando uma gargalhada algo comprometida - e sem dúvida que conheces melhor as raparigas. Qual foi a mensagem
que ela me mandou?
Will contou-lhe e o rosto de Jack foi ficando cada vez mais vermelho.
- Não precisava da língua afiada dela para fazer o que a minha senhora quer - disse ele, e na sua voz havia uma nota de altivez.
Calou-se e assim permaneceu, mas Will reparou que ele tinha acelerado o passo, ao mesmo tempo que parecia mergulhado em pensamentos. Quando os últimos vestígios
de luminosidade desapareceram do céu, já os dois se encontravam embrenhados nos caminhos da floresta. Sentaram-se a descansar e a comer o que levavam no bornal,
até a Lua fazer a sua entrada em cena. Então, sob a sua luz suave, ei-los a calcorrear os caminhos da floresta, lembrando demônios quando as suas formas escuras
passavam por entre o negrume, e duendes cobertos por um halo mágico quando avançavam silenciosamente por uma qualquer clareira.

Passados dois dias, logo pela manhã, os vilões da aldeia de Cromwell sentaram-se em grupos junto às suas choupanas, comentando o triste destino que se abateria
nessa mesma manhã sobre a sua muito querida senhora. Todos sabiam haver ela entregue o seu coração a Alan-a-Dale, mas um qualquer destino cruel que regia a vida
das damas e dos cavaleiros forçava-a a se casar com o velho Ranulf de Greasby, um velho senhor perverso, de cabelo branco, que vivia nas terras pantanosas situadas
a oriente.
Alguns dos vilões estavam já no átrio da igreja onde era suposto ocorrer a cerimônia. Não paravam de olhar para a estrada situada a norte, pois era daí que
os noivos deviam chegar. O padre já fora visto a dirigir-se para a residência senhorial, de onde seria provável que acompanhasse a noiva à igreja.
- Ele vai tentar confortá-la, mas isso é impossível - disse uma mulher nova que tinha uma criança nos braços. - Pobre senhora! - prosseguiu ela. - Por que
razão lhe havia de ser negado aquele a quem ela mais ama no mundo?
- Se ele aparecesse aqui hoje, isso seria assinar a sua sentença de morte - declarou um homem que estava ao lado dela. - Ele é um fora-da-lei, um homem perdido.
- Receio bem que não haja salvação para a jovem senhora! - disse um homem mais novo do que aquele que falara primeiro. - Depois de casada, vai acabar por
definhar e nunca mais será a mesma rapariga alegre e despreocupada que viveu junto a nós.
- Oh, mas isso é horrível! - exclamou uma rapariga. - Será que ela não tem ninguém na família que a possa salvar?
- Os parentes dela não são gente importante, Mawkin - disse uma mulher, velha e enrugada. - Caso se erguessem para enfrentar Isenbart de Belame, seriam como
ratos entre as garras de um gato.
Nesse preciso momento, ouviu-se o som de cascos de cavalo a percorrer a estrada que vinha de norte e apareceram dez soldados a cavalo, envergando os uniformes
de Ranulf de Greasby. Eram homens de aspecto duro, grosseiro, e, sem pronunciarem uma palavra, conduziram os cavalos até ao portão da igreja e entraram no átrio,
dispersando os pobres vilões, que trataram de sair da frente dos cavalos o mais depressa que podiam. Os cavaleiros separaram-se em dois grupos de cinco e colocaram-se
em ambos os lados do átrio. De seguida, desmontaram, puseram-se ao lado dos respectivos cavalos e deitaram olhares insolentes aos vilões, que estavam agora amontoados
junto ao portão.
- Será que é de lixo como este que o velho receia uma tentativa de rapto? - perguntou um dos soldados.
A piada foi saudada com gargalhadas.
- O nosso velho senhor anda há tanto tempo a ser escarnecido pelo cavalinho bonito - disse outro - que agora, quando ela lhe está quase nas mãos, receia
que qualquer incidente a afaste de si para sempre.
- A verdade é que ela escarneceu dele durante demasiado tempo - disse um que até então se mantivera calado. – Não creio que ela vá ter muito tempo para zombarias
depois de chegar ao Castelo de Hagthorn Waste. Lá existem meios de dominar a mais feroz das donzelas, algo que, segundo dizem, a sua última mulher pôde confirmar.
- É mesmo. Quando ela lá chegou era uma rapariga bonita, de olhos escuros e o olhar tão duro quanto uma espada e, no minuto seguinte, teve de se mostrar
tão doce quanto uma criança - comentou outro.
- Ainda me lembro dela - disse aquele que falara primeiro. - Viveu lá dois anos. Fugiu durante uma noite de Inverno e acabaram por encontrá-la ao amanhecer,
já gelada, em Grimley Mere.
- Justos céus, não haja dúvida de que vocês são uma companhia divertida! - exclamou aquele que, sem dúvida, só podia ser o chefe. - Vamos pedir àquele menestrel
que cante uma canção animada, mais apropriada a um casamento. Tu aí, patife!
Um menestrel alto, envergando um vistoso gibão às riscas e calças de malha remendadas, saíra da aldeia e encontrava-se junto ao grupo de vilões, rindo a
bandeiras despregadas com eles, enquanto tangia a harpa que usava pendurada ao pescoço, presa por uma fita suja e gasta. Ao ouvir o soldado, o homem dirigiu-se para
o portão e, tirando a boina de veludo, quase a usou para varrer o solo enquanto descrevia uma vênia.
- Que desejam, nobres senhores? Uma canção de guerra ou uma sobre arqueiros e donzelas graciosas? Ou será que preferem antes uma que descreva a perseguição
ao veado vermelho?
- Canta o que quiseres, desde que se trate de uma canção animada - ordenou o chefe dos soldados.
Assim, depois de alguns acordes preliminares e de pigarrear para aclarar a voz, o menestrel brindou-os com uma canção popular chamada "A Rosa de Woodstoc".
O homem tinha uma bela voz de tenor e o tema era bastante animado, tendo todos os presentes cantado a acompanhar o refrão. De seguida, o menestrel cantou-lhes uma
balada a respeito de um casamento, balada esta que lhes agradou imenso. Quando o homem parecia prestes a partir, o chefe disse:
- Fica, companheiro, pois parece-me que vamos precisar de ti. É provável que venha a aparecer aqui uma noiva com uma cara triste e talvez as tuas canções
divertidas a consigam animar, dando assim ao meu amo o prazer de a ver com um ar satisfeito. E, caso caias nas boas graças do nosso amo, então, não duvido de que
venhas a ser bem recompensado.
O menestrel não parecia estar com quaisquer problemas em ficar e já se preparava para cantar um outro tema quando se viram quatro cavaleiros a cavalgar a
grande velocidade rumo à igreja. O mais alto era Sir Ranulf de Greasby, um homem de cabelos grisalhos, o rosto feio e vermelho. Os seus lábios eram cruéis e os olhos,
também vermelhos, eram pequenos e ferozes. Vestia uma rica capa de seda vermelha, o cinto estava repleto de diamantes e o punho da espada brilhava devido às muitas
jóias que nele havia. Os três homens que o acompanhavam eram mais novos, de ar ousado, bem vestidos, mas com um aspecto desleixado. Um deles era o sobrinho de Sir
Ranulf, Sir Ector de Harelip, um sujeito com ar de rufião e cuja fama enquanto indivíduo cruel igualava a do tio.
O velho cavaleiro atravessou o portão furiosamente, como se estivesse com muita pressa.
- A senhora já chegou? - gritou ele, dirigindo-se aos soldados, e nos seus olhos vermelhos de raposa brilhava a luz da suspeita enquanto os examinava.
- Não, senhor - retorquiu o chefe.
- Raios! - deixou escapar o cavaleiro, e, virando-se na sela, fez os olhos percorrerem a estrada de cima a baixo com uma expressão sombria, acabando por
cravá-los nos vilões e nas choupanas que se estendiam para além dela. - Ela insiste em me fazer esperar - murmurou, falando consigo mesmo, enquanto os outros o podiam
ouvir ranger os dentes e ver como os seus olhos vermelhos e selvagens se transformavam em fendas estreitas, por onde se escoava uma luz maldosa. - Caso ela me deixe
ficar mal, então, será sua a vez de esperar!
- Quem és tu, patife? - inquiriu ele, baixando subitamente os olhos para o menestrel que estava junto ao seu cavalo.
- Sou Jocelyn, o menestrel, Sr. Cavaleiro - retorquiu o homem, e fez soar a harpa.
- Tens cara de patife - comentou Sir Ranulf, deixando-se dominar pelas suspeitas. - Não és suficientemente gracioso para seres menestrel.
- Ainda assim, Sr. Cavaleiro, sou um menestrel, e estou aqui para vos agradar com as minhas canções simples, isto se tal vos aprouver - disse o outro, voltando
a tanger a harpa.
- Nesse caso, patife, canta, e que a tua canção seja boa, caso contrário, outra coisa não receberás para além de uma sova.
O menestrel torceu duas cordas da harpa e começou:

Apesar das minhas terras, a tristeza acompanha-me, 
E há muito que desprezei a minha fama de cavaleiro, 
Passando as noites acordado, a suspirar.
Um servo fui para essa bela dama, 
A quem, em vão, durante tanto tempo implorei.
A altiva Lady Alysoun.
  Sopra, vento norte,
Manda-me a minha amada... sopra, vento norte, sopra, sopra, sopra.

  Quando terminou o último verso, escutou-se uma gargalhada trocista, estranhamente aguda. Os homens olharam de um lado para o outro, mas nada conseguiram
ver. Era como se tivesse soado sobre as suas cabeças, mas outra coisa não se via para além da fachada de madeira da torre da igreja. À sua volta, umas quantas gralhas
voavam e gritavam, e, semelhantes a setas, as andorinhas entravam e saíam dos ninhos.
O menestrel cantou outra estrofe:

Ah, como o seu olhar cruel me torturava, 
E como os seus olhos de ouro pareciam duas espadas!
Foi por causa deles que as minhas faces empalideceram de desgosto.
Porém, embora seja velho, sou feliz, 
Pois ela agora, encantadora, sorri-me.
A minha bela dama, Alysoun.
Sopra, vento norte, manda-me a minha amada, 
Sopra, vento norte, sopra, sopra, sopra.

  De novo se voltou a escutar aquela gargalhada, desta feita ainda um pouco mais trocista. Sir Ranulf cravou os olhos no menestrel.
- Quem fez aquele barulho, velhaco?! - inquiriu ele, enraivecido. - Não terás por acaso um companheiro contigo?
- Não está ninguém comigo, senhor - replicou o outro.
- É provável, senhor - disse um dos soldados, o medo bem visível nos seus olhos -, que se trate de um duende escondido na torre da igreja.
- É bastante provável, imbecil - rugiu Sir Ranulf -, que sejas severamente chicoteado quando estiveres de novo em casa. Em dois grupos, contornem a igreja
e vejam se lá está algum vilão escondido. E, se assim for, tragam-no até aqui que eu mesmo me encarrego de lhe cortar a língua. Vou ensiná-lo a não troçar de mim.
Quatro soldados encarregaram-se de contornar a igreja, enquanto um outro grupo se espalhou por entre os túmulos, não fosse dar-se o caso de estar alguém
escondido atrás das lápides de madeira. No entanto, ambos os grupos regressaram dizendo que não tinham visto ninguém. O cavaleiro estava completamente furioso e
tratou de ordenar a cinco dos seus homens que dispersassem os vilões que se haviam reunido junto ao portão da igreja, maravilhando-se com todas as coisas estranhas
que ali sucediam. Contudo, os aldeãos não ficaram à espera que os soldados lhes batessem, antes fugindo por entre as suas choupanas.
- E agora, velhaco - disse Sir Ranulf, dirigindo-se ao menestrel -, canta uma outra estrofe dessa tua canção. Caso se escute uma outra gargalhada, então,
ficarei a saber que a responsabilidade é tua. Achas que não conheço os truques de magia próprios da tua tribo de saltimbancos?
- Pela minha salvação - começou o menestrel, falando com gravidade -, não sou eu o responsável por aquelas gargalhadas. Seja como for, cantarei uma outra
estrofe e lá tratarei de aguentar as consequências.
Então, servindo-se da harpa para o acompanhar, cantou:

É-me concedido um destino tão maravilhoso, que me parece já estar no Paraíso!
Ah, agora será como esposo que ela me receberá.
Para sempre, minha querida, serei teu escravo, 
Enquanto houver vida, minha amada, minha doce, risonha, Alysoun.
Sopra, vento norte, 
Manda-me a minha amada, 
Sopra, vento norte, sopra, sopra, sopra.

  Quase no mesmo instante, uma gargalhada trocista, tão feroz e sinistra a ponto de os surpreender a todos, soou sobre as cabeças dos presentes, o que os
levou a olhar, involuntariamente, para cima. Contudo, não havia nada para ver. Não se ouviu nada durante um momento, até que uma espécie de grasnido trocista se
elevou vindo da estrada, como se aquilo que provocava o som estivesse a passar por ali devagar.
Foi então que, durante breves instantes, o som se aproximou um pouco mais, mas depois todos escutaram clara e distintamente algumas palavras pronunciadas com
raiva e em jeito ameaçador.
- Colman Grey! Colman Grey!
Ao ouvir isto, Sir Ranulf recuou, puxando o cavalo com uma força tal que acabou por ficar encostado à porta da igreja, começando a bater-lhe com os punhos
e a gritar:
- Para trás! Para trás! Não o deixem aproximar-se de mim! Chamem o padre! É um espírito mau... não deixem que se aproxime!
Parecia morto de terror. O rosto, que até há pouco estivera vermelho, estava agora muito branco. Os lábios não paravam de tremer e de balbuciar coisas sem
nexo, e, enquanto com uma mão se benzia várias vezes sem parar, com a outra parecia estar a empurrar qualquer coisa para longe de si, chegando até a tapar os olhos.
Os soldados olhavam-no, pasmados, e ali se deixaram ficar, de boca aberta, a contemplar o estado do amo.
A determinada altura, ele lá acabou por recuperar a compostura. Viu o espanto nos olhos dos que o rodeavam e, já capaz de se controlar, embora ainda tremesse,
fez o cavalo avançar por entre os soldados.
- Para quem é que estão a olhar, idiotas?! - perguntou ele, mostrando-se violento, e, erguendo o chicote que se encontrava pendurado na sela, fê-lo estalar
frente aos homens. Estes recuaram. Ele ordenou-lhes que não se mexessem, mas eles não obedeciam, e então, tomado por uma loucura furiosa, obrigou o cavalo a andar
de um lado para o outro e pôs-se a bater nos seus homens, que se encontravam junto às respectivas montadas. Os animais recuaram e começaram a morder-se e a atacar-se
uns aos outros, tendo-se ali armado uma enorme confusão.
Então, subitamente, o sobrinho, Sir Ector, agarrou o braço daquele velho senhor enlouquecido e gritou:
- Sir Ranulf, a senhora vem aí! Pare!
O outro virou a cabeça para a estrada situada a norte e viu um grupo de cavaleiros que avançava na direção da igreja. Quase no mesmo instante, deixou cair
o chicote, compôs o cabelo e endireitou a túnica. De seguida, ordenou aos carrancudos soldados que montassem os cavalos e se preparassem para receber a senhora.
O padre e o sacristão tinham já entrado na igreja por uma porta lateral e as grandes portas principais acabaram por se abrir, deixando ver o escuro interior do templo.
Sir Ranulf, vendo que agora estava tudo em ordem, olhou em volta à procura do menestrel. Este desaparecera sem deixar rasto.
  - Para onde é que foi aquele saltimbanco miserável? - inquiriu ele, dirigindo-se a um dos cavaleiros que o acompanhavam.
- Não sei - respondeu o outro. - Estive sempre de olho nele até ao momento em que começaste a chicotear os teus homens, e, na confusão que se seguiu, o sujeito
acabou por desaparecer, já que não lhe voltei a pôr a vista em cima.
- Meu bom Sir Philip - disse Sir Ranulf -, faz-me este enorme favor: vai atrás desse patife. Não me darei por satisfeito até ele estar nas minhas mãos, pois
vou submetê-lo às piores torturas. Só assim ficarei a saber o que sabe aquele velhaco, e... e... qual... qual... qual o significado daquele grito. Podes levar contigo
dois dos meus homens, mas o que importa é encontrá-lo. Quando o tiveres agarrado, leva-o para Hagthorn Waste e encerra-o na minha fortaleza.
- Farei o que me pedes, Greasby - disse o jovem cavaleiro, soltando uma gargalhada insolente. - Mas caso te traga a criatura, então, terás de me dar o teu
mastim, Alisanndre, bem assim como os falcões Grip e Fang.
- Seu cavaleiro insolente! - exclamou Sir Ranulf, esforçando-se por não levantar a voz. - São os meus animais favoritos. Ainda assim, tenho de deitar a mão
àquele saltimbanco. Terás o que pretendes. Despacha-te, caso contrário a criatura terá tempo de se esconder.
Algumas palavras dirigidas a dois soldados e eles saíram do pátio da igreja na companhia do cavaleiro no preciso momento em que Sir Walter de Beauforest
e um amigo, com Lady Alice entre ambos, se aproximaram, acompanhados por um vilão e a aia de Lady Alice, que cavalgavam atrás do grupo principal. O velho cavaleiro,
Sir Ranulf, o rosto astucioso transformado agora numa máscara sorridente, foi colocar-se junto ao portão, segurando o chapéu, e, levando a mão ao coração, cumprimentou a
senhora com uma vênia. Quanto a ela, o rosto pálido e triste, mal o olhou. Usava um rico vestido de seda branca, fiadas de pérolas em redor do pescoço, a leve capa
de Verão salpicada de pérolas, ao passo que o toucado estava ricamente bordado a ouro. Porém, esta opulência servia apenas para ressaltar a palidez das suas faces
e dos seus olhos, que pareciam fazer um enorme esforço para não chorar.
Sir Walter, o pai, não parecia mais animado do que ela. Era um cavaleiro orgulhoso e odiava pensar que tinha de se submeter às ordens de um tirano, vendo-se
obrigado a casar a sua única filha com um cavaleiro com uma reputação tão odiosa quanto a que Sir Ranulf de Greasby há muito possuía. A prática de assaltos nas estradas
e a tirania cruel exercida contra os pobres, no intuito de ficar com os seus escassos haveres e as suas terras, eram alguns dos crimes de que Sir Ranulf era acusado,
embora se falasse de coisas piores. Murmurava-se a respeito de uma esposa torturada e de homens e mulheres pobres encerrados nas masmorras do Castelo de Hagthorn
Waste.
Aproximaram-se da igreja e desmontaram. Netta, cujos olhos estavam vermelhos, aproximou-se da sua senhora e, com o pretexto de lhe arranjar a capa, segredou-lhe
umas quantas palavras de ânimo ao ouvido, se bem que, pela parte que lhe tocava, só muito a custo o desgosto a impedia de chorar. De seguida, Sir Walter pegou na
mão da filha e fê-la entrar na igreja, conduzindo-a pela nave até chegarem ao altar, onde já se encontrava o padre, pronto a oficiar a cerimônia.
Quatro dos soldados ficaram à entrada do templo a tomar conta dos cavalos, os outros quatro entraram junto com Sir Ranulf e os seus dois cavaleiros, cabendo
a Sir Ector a missão de atuar como padrinho. Aproximaram-se todos do altar e, quando os outros recuaram, Sir Walter de Beauforest colocou a mão da filha na de Sir
Ranulf, que de imediato a conduziu junto ao padre.
O velho padre sentia-se tão triste quanto qualquer um dos pobres vilões que haviam entrado na igreja e estavam agora sentados nos bancos do fundo. Conhecia
Lady Alice desde que a tinham levado até junto da pia batismal, ensinara-a a ler e a escrever, e a bondade e a gentileza da jovem há muito que o tinham conquistado.
Como se isto não bastasse, Sir Wálter fora sempre um bom amigo daquele padre com poucos recursos. Fosse como fosse, tinha de cumprir as suas obrigações, e uma vez aberto
o livro de orações, preparou-se para ler as palavras que transformariam aqueles dois em marido e mulher.
Subitamente, sentiu-se um movimento nas trevas que envolviam a parede da igreja, e um homem surgiu sob a luz das velas que ardiam junto ao altar. Tratava-se
do menestrel, mas este transportava agora um arco bastante comprido, sendo a harpa transportada por um jovem de pele clara - Gilbert da Mão Branca.
  - Este é um casamento perverso e aberrante! - exclamou o homem numa voz forte e dura. - Sir Ranulf, é melhor que te vás embora antes que a morte e a doença
te venham fazer companhia. Sr. Padre, esta donzela deverá casar com a pessoa que ama e quando chegar a altura certa.
Todos os olhares se viraram para aquela figura alta, vestida de verde. Lady Alice, os olhos a brilhar e as faces coradas, arrancara a mão da de Sir Ranulf
e estava agora a tremer, apertando os dedos com força uns contra os outros.
Sir Ranulf, o rosto sombrio de tanta raiva, fitou a jovem antes de cravar os olhos no menestrel. Era quase como se estivesse demasiado furioso para falar.
- Com que então?! - exclamou ele, trocista. - Quem é este? Será por acaso o cabeça-de-lobo, o idiota sem eira nem beira que fez com que esta senhora aqui
me obrigasse a esperar todo este ano e ainda mais que isso?
Ninguém respondeu. Sir Walter examinou o menestrel e abanou a cabeça. Sir Ranulf, com um gesto colérico, desembainhou a espada e deu um passo em frente.
- Quem és tu, velhaco, para te atreveres a fazer-me frente? - gritou ele.
E das trevas do teto que se elevava acima das suas cabeças, escutou-se uma voz rouca:
- Colman Grey! Colman Grey!
Aquele nome fez Sir Ranulf vacilar, erguendo os olhos, o rosto branco de terror. Enquanto esboçava este gesto, foi possível escutar-se um zumbido semelhante
ao de uma abelha, e uma flecha, negra e curta, disparada de cima, se lhe cravou na garganta. Sem soltar um grito, caiu pesadamente no chão, aí se imobilizando depois
de estremecer um pouco.
Os cavaleiros e os soldados que assistiam à cena permaneceram imóveis, demasiado surpreendidos para dizer fosse o que fosse. O menestrel levou uma corneta
aos lábios e fê-la soar com uma força tal que a igreja ficou repleta de ecos.
Nesse preciso instante, como se o som o tivesse despertado do seu estupor, Sir Ector desembainhou a espada e, soltando um grito de raiva, precipitou-se sobre
Robin dos Bosques, pois, como seria de esperar, era ele o menestrel. Robin mal teve tempo para puxar da sua espada, mas não foi preciso esperar muito para que ele
e Sir Ector se embrenhassem num combate feroz por entre as trevas. Quando a corneta soou, escutara-se também o barulho de armas a bater umas contra as outras junto à
porta, e os soldados, que até então se haviam mostrado demasiado atordoados para esboçar um só movimento que fosse, acabaram por agarrar as espadas e correr para
a porta, e tudo para se imobilizarem quando viram três dos companheiros refugiarem-se na igreja, perseguidos por uma chuva de flechas que lembrava bastante um enxame
de vespas zangadas. Dois homens tombaram no chão, mortos, e um outro afastou-se a cambalear, gravemente ferido. No momento seguinte, um bando de homens vestidos
de verde fez a sua entrada na igreja. Os cinco soldados que ainda ali estavam, sabendo o ódio que era votado aos homens de Sir Ranulf, precipitaram-se de encontro
aos arqueiros, tentando a todo o custo sair dali, pois sabiam que não seriam poupados. Seguiu-se uma luta encarniçada que se travou junto à porta e durante a qual
os homens de verde tentavam evitar que os outros saíssem, isto enquanto os homens de Greasby faziam os possíveis para se escapar dali.
De repente, um grito ecoou pela igreja. Olhando rapidamente à sua volta, Sir Walter viu o segundo cavaleiro pertencente à comitiva de Sir Ranulf precipitar-se
para a porta lateral, aquela que era utilizada pelo padre, e nos seus braços encontrava-se Lady Alice, que fazia todos os possíveis para se libertar daquele abraço
que a mantinha prisioneira.
Atrás dele corria Netta, a aia, aos gritos, ao mesmo tempo que puxava as vestes do cavaleiro. Contudo, assim que ele chegou junto à porta, o homem virou-se
e bateu na rapariga com uma força tal que a deixou caída no chão, sem sentidos. E no momento seguinte, desapareceu por entre o pano de arrás que escondia a porta.
Nesse mesmo instante, Robin dos Bosques, depois de um combate feroz com Sir Ector, acabava por o matar, embora ele mesmo tivesse ficado ferido, e correu
para a porta por onde o cavaleiro fugira levando Lady Alice consigo. Quando olhou lá para fora e não viu ninguém, calculou que o cavaleiro se tivesse precipitado
na direção dos cavalos que haviam ficado frente à igreja.
  De fato, era assim que as coisas se passavam. Sempre agarrado à sua carga que, por seu turno, não parava de se debater, o cavaleiro tencionava agarrar um
cavalo e escapar-se antes que alguém pudesse recuperar de toda aquela confusão. Quando se encontrou frente à igreja, viu dois homens envolvidos num combate mortal.
Um deles era o cavaleiro que partira em busca do menestrel, ao passo que o outro era um desconhecido. Contudo, ao ver este último, Lady Alice, prestes a perder o
fôlego, gritou:
- Alan! Alan! Salva-me!
Este grito quase provocou a morte do seu bem-amado, uma vez que, surpreendido ao escutar a voz da sua querida senhora tão perto de si, Alan voltou a cabeça,
tendo o cavaleiro desferido contra ele um golpe, que por certo lhe teria separado a cabeça do corpo, caso Jack, filho de Wilkin, que se encontrava ali perto, não
tivesse pressentido o perigo e, servindo-se do bastão, desferiu uma pancada certeira no ombro do cavaleiro.
Este gesto salvou a vida de Alan e deu-lhe tempo para se virar. Furioso, fez tudo o que estava ao seu alcance para derrubar o inimigo, sabendo que o tinha
de matar antes de se poder ocupar do cavaleiro que levava a sua dama.
No entanto, o cavaleiro, Sir Philip, era um combatente forte e experiente, e, por seu lado, o cavaleiro que levava Lady Alice chegara junto de um cavalo,
atirou Alice para a sela e subira para o assento. No momento seguinte, ei-lo a precipitar-se rumo ao portão do átrio, derrubando dois pobres e valentes vilões que,
vendo como a sua senhora estava a ser tratada, tinham resolvido servir-se dos bastões para tentar dissuadir o cavaleiro. Soltando um grito de prazer, este viu que
tinha o caminho livre, pois esporeou a montada e dirigiu-se de modo trocista à forma, agora inconsciente, da senhora estendida sobre o cavalo, bem à sua frente.
De repente, viu que alguém saltava para a garupa do seu animal, bem atrás de si. Antes que tivesse tempo para refletir no que fazia, a lâmina comprida de
um punhal faiscou ao sol, mesmo em frente aos seus olhos. Sentiu uma pancada no peito, seguida de uma dor em tudo semelhante a uma queimadura e depois a escuridão
abateu-se sobre ele. Tombou do assento, alguém lhe tirou as rédeas das mãos, e Jack, filho de Wilkin, depois de se desenvencilhar do cavaleiro morto, tratou de tranquilizar
o cavalo assustado. Quando conseguiu que este se imobilizasse, ergueu o corpo inconsciente da sua ama e, com todo o carinho, pousou-o no solo.
  Por esta altura, Alan-a-Dale já iludira a vigilância do adversário e despachara-o com um golpe certeiro, e então correu imediatamente para junto da sua
amada, a quem Jack, filho de Wilkin, tratara de levar água. Lady Alice não demorou muito a recuperar a consciência e a sentar-se, e, quando soube quem era o seu
salvador, estendeu a mão a Jack que, ajoelhando-se, a beijou com toda a reverência.
- Jack - disse ela, esboçando um sorriso doce, mas fraco -, graças a este enorme serviço, a partir de agora serás um homem livre, e o meu pai tratará de
te entregar terra.
Jack sentia-se radiante de felicidade, mas foi incapaz de dizer fosse o que fosse para além de um "obrigado, senhora minha!".
Agora, também Netta, um pouco atordoada, fazia a sua entrada em cena, pronta a cuidar da sua senhora. Robin dos Bosques, de regresso à igreja para chamar
Sir Walter, descobriu que dois dos seus homens tinham sido mortos durante o terrível combate travado com os soldados, sendo que destes dez, apenas um conseguira
escapar com vida, esgueirando-se pela porta lateral.
- Sir Walter - disse Robin, depois de pai e filha se terem abraçado -, este foi um casamento sangrento, e, se me intrometi nos seus assuntos, fi-lo de propósito.
- Não posso deixar de me sentir grato para contigo, Sr. Fora-da-lei - disse Sir Walter que, apesar de orgulhoso, sabia distinguir um chefe orgulhoso de um
patife, ao mesmo tempo que honrava a coragem, quer a encontrasse num conde ou num servo, num vilão ou num homem livre. - Agradeço-te do fundo do coração teres salvo
a minha filha deste casamento infeliz. Contudo, sou obrigado a estar pronto para enfrentar as consequências de tudo isto, uma vez que os cavaleiros que mataste têm
amigos poderosos, e não duvido que o preço a pagar pelos teus atos venha a ser muito pesado.
- Estás a falar dos senhores de Belame e de Wrangby? - inquiriu Robin, o rosto sombrio e a voz dura.
- Nesta época particularmente infeliz, eles mandam nestas paragens - replicou o cavaleiro. - Enquanto os filhos do rei mergulham o país na guerra civil e
na desgraça, os homens fracos têm de se submeter à tirania brutal dos vizinhos mais fortes.
- Ranulf de Greasby e Ector de Harelip são miseráveis - disse o outro, de modo severo. - Presta atenção, Sir Walter - prosseguiu ele. - Os senhores de Wrangby
há muito que excederam os limites do tolerável no que respeita a fazer os outros sofrer. Pela minha salvação, pela sagrada Virgem, juro aqui e agora que já não falta
muito para que eles conheçam o mesmo fim que estes cavaleiros ladrões. E, sempre que os derrubar, arranjarei maneira de lhes destruir os ninhos, isto para que deles
não reste pedra sobre pedra.
Sir Walter fitou os olhos escuros e brilhantes do fora-da-lei e recordou os atos de justiça que já haviam espalhado a fama de Robin através das florestas
que se estendiam de Pontefract a Nottingham, e das terras desoladas do Peak até às charnecas pantanosas do Lincolnshire.
- Ajudar-te-ei em tudo o que puder, Sr. Fora-da-lei - disse o cavaleiro. - Quando achares que chegou a hora, podes contar comigo para te prestar toda a assistência
necessária. Até lá, que vamos nós fazer?
- Aqui está o que devemos fazer, Sir Walter - respondeu Robin. - A tua filha e o homem que ela ama deverão ir viver comigo para a floresta e lá se deverão
casar. No caso de receares ser atacado por esse barão malvado, De Belame, podes deixar a tua casa e juntar-te a nós. No entanto, caso prefiras continuar debaixo
do teu teto, então, vinte dos meus homens tratarão de manter guarda à tua casa e ajudar-te em tudo o que for preciso. Concordas com este plano?
- Prefiro ficar em minha casa, meu bom Robin - disse Sir Walter. - Se os teus valentes homens me quiserem ajudar a repelir todo e qualquer ataque. E quando
a paz reinar de novo nesta infeliz Inglaterra, espero que a minha filha e o bravo Alan, o seu marido, também venham viver comigo.
As coisas ficaram assim combinadas. Passadas três semanas, numa igreja situada próximo da sua cela, Frei Tuck tratou de publicar os banhos, comunicando o
casamento de Alan e Alice, sendo o próprio monge quem se encarregou de casar os enamorados, deste modo fazendo-os felizes para sempre.
No dia em que Robin impediu o casamento entre Alice e o perverso Sir Ranulf, Isenbart de Belame, o mais cruel dos senhores, estava sentado no seu cadeirão
no Castelo de Wrangby, a que os homens justos chamavam o Forte do Mal, e esperava que lhe servissem o jantar. À volta da sua mesa sentavam-se outros cavaleiros tão
malvados quanto ele, nomeadamente, Sir Niger le Grym, Hamo de Fortain, Sir Baldain, o fussino, Sir Roger de Doncaster e muitos outros.
- Que a peste o leve! - acabou De Belame por exclamar. - Não vou continuar à espera dele. Será que Ranulf tem assim tantos ciúmes da sua linda noiva, que
receia trazê-la até aqui, impedindo-nos de lhe desejar felicidades?
Os outros riram e esboçaram gestos trocistas.
- E onde se meteram Ector, Philip e Bertran? - inquiriu Sir Niger. - Era suposto acompanharem o noivo para lhe darem coragem e não deixarem que a timidez
levasse a melhor sobre ele.
- Vocês aí! - rugiu De Belame. - Sirvam a carne! E, quando Ranulf chegar, havemos de troçar tanto dele e da noiva que...
Zás! Algo pareceu fender o ar mesmo sobre as suas cabeças e, de repente, espetada na mesa, mesmo em frente a Sir Isenbart, estava uma flecha negra, sendo
que atado a ela se encontrava um pequeno pergaminho. De Belame não demorou mais de um segundo a recuperar a compostura. Ergueu os olhos para o teto alto do salão
e gritou:
- Isto foi disparado a partir da vigia! Vocês aí, patifes, subam até lá acima e agarrem aquele que disparou esta coisa! - E ei-lo a levantar-se, depois do
que os soldados sentados à mesa mais baixa se espalharam pelo castelo.
Niger le Grym puxou a flecha da madeira e cravou os olhos no pergaminho, onde se viam alguns nomes escritos a vermelho e a negro. Porém, visto não ser nenhum
erudito, não conseguiu ler um só que fosse. De Belame não demorou muito tempo a regressar, vermelho de raiva, amaldiçoando os seus homens e a ausência de resultados.
- Que significa isto? - quis saber de Mortain. - O que aqui está no pergaminho são nomes?
De Belame fora monge durante os primeiros anos da sua juventude e sabia ler. Cravou os olhos no pedaço de pergaminho e o seu rosto tornou-se de tal forma
carregado e raivoso que parecia estar prestes a explodir.
- Prestem atenção - disse ele -, há poderes estranhos a trabalhar contra nós! Ranulf, Ector e os outros, todos eles, foram mortos hoje. Neste pergaminho,
e escritos a sangue, estão os nomes daqueles que em tempos nos fizeram companhia e que agora estão mortos. Assim, temos aqui os nomes de Roger Longchamp e de Ivo
de Ravener, a que agora se juntaram os de Ranulf de Greasby, Ector de Zalstane, Philip de Scrooby e Bertran le Noir... todos escritos com sangue!
- Isto é tudo muito estranho - disse um deles. Puseram-se a olhar para os rostos pálidos uns dos outros, enquanto um ou dois se chegaram mesmo a benzer.
- Temos ainda os nossos nomes - prosseguiu De Belame -, os nomes daqueles que, de entre nós, ainda estão vivos. Estes nomes estão escritos a negro, se bem
que por baixo deles se veja um traço vermelho!
Soltou uma gargalhada grosseira, ao mesmo tempo que os seus olhos injetados de sangue se cravavam nos rostos que o rodeavam. Acabou por pegar na flecha,
a ponta pequena e larga, a haste e as penas negras como azeviche.
- Isto são coisas desse patife atrevido, o tal Robin dos Bosques - disse ele. - O imbecil julga que nos pode assustar. Será ele quem, para usar as suas próprias
palavras, se encarregará de me julgar... a mim... senhor de Wrangby, neto de Roger de Belame, cujo nome fazia tremer os senhores de quarenta castelos?! Tenho sido
demasiado brando com este bandoleiro bonitinho! Mas agora corto-lhe as garras! Rapazes, vamos montar as nossas armadilhas e, quando o tivermos lá em baixo, na câmara
de tortura, havemos de o fazer pagar caro o seu atrevimento!
Todavia, apesar do riso feroz e violento de Sir Isenbart de Belame, o jantar foi comido no meio de uma atmosfera sombria.
No dia seguinte, começaram a espalhar-se pelo campo toda a espécie de histórias estranhas. Os rumores causados pelo combate na igreja espalharam-se por uma
área bastante vasta. Dizia-se que, quando Robin e o padre foram tirar os cadáveres da igreja, não conseguiram encontrar o corpo de Sir Ranulf. Dizia-se que fora
o Diabo em pessoa quem o levara, do mesmo modo que a criatura que tanto medo lhe provocara com o seu grito só podia ser um qualquer ente fantasmagórico, o mesmo que
disparara a flecha negra que o matara.
Então, nessa mesma noite, um vilão chegou a casa a correr, vindo de uma aldeia perto de Hagthorn Waste, declarando que, à hora do crepúsculo, vira no outro
lado da charneca um homem morto que era transportado por coisas que não tinham corpo, apenas pernas. Só podiam ser demônios da charneca, ocupados a levar para casa
o corpo sem vida do amo.
No entanto, o mais estranho de tudo ocorreu nessa mesma noite. A Lua já ia alta (era noite de Lua cheia) e os soldados reunidos em Hagthorn Castle, à espera
que o amo e a respectiva noiva regressassem a casa, acabaram por escutar uma série de gritos que indicavam uma alegria selvagem elevando-se do extremo oposto da
charneca. Quando examinaram o campo com mais atenção, viram aquilo que lhes pareceu uma luz intermitente dançar de um lado para o outro, enquanto uma série de formas pequenas
e escuras se reuniam em torno de uma grande fogueira. Sem saberem muito bem o que recear, acabaram por se benzer, ao mesmo tempo que afirmavam haver qualquer coisa
de sinistro a pairar sobre a paisagem deserta e coberta de pedras que os rodeava. Passaram a noite muito ocupados, esforçando-se por manter a mais cerrada das vigilâncias,
mas justamente na hora mais escura que antecede a alvorada, uma estranha sonolência abateu-se sobre os que estavam encarregados de levar a cabo a vigília, de forma
que todos os que se encontravam dentro do castelo se puseram a dormir a sono solto.
Voltaram a acordar quando sentiram as chamas baterem-lhes nos rostos, as espessas nuvens de fumo a cegarem-lhes os olhos e a sufocarem-nos. Precipitando-se
de um lado para o outro, procuraram encontrar caminhos de fuga, tudo para descobrir que as portas estavam fechadas, que todas as saídas estavam barradas, quer pelo
fogo, quer por pesadas portas chapeadas a ferro. Então, estes homens que nunca tinham demonstrado qualquer espécie de misericórdia, acabaram por pedi-la quando sentiram
o contato das mãos vermelhas do fogo. Contudo, não a encontraram. Aqueles que haviam torturado os pobres e os fracos foram por sua vez torturados, e nenhuma das
suas preces foi atendida.
Quando o dia nasceu, a luz cinzenta da manhã incidiu debilmente numa ruína vermelha, que continuava a brilhar. Homens e mulheres vindos das aldeias vizinhas
foram colocar-se frente ao castelo, a admirar o espetáculo. Magros e pobres, de rostos macilentos e esfomeados, eles olhavam, mal podendo acreditar não passar aquela
coisa ruim de um monte de escombros - que o poder cruel que os oprimira, a eles e aos seus, durante tanto tempo, deixara de lhes pesar nos ombros, que já não tinha
força para lhes mutilar os membros, fazer os corpos passar fome e atrofiar as almas.
Tanto perto quanto longe dali, quando os homens justos tomaram conhecimento do estranho fim de Sir Ranulf, morto por uma mão invisível, e do modo como o
seu castelo fora reduzido a cinzas devido a um incêndio ateado por uma qualquer força misteriosa, sentiram o coração encher-se de alegria e disseram que, afinal,
ainda havia justiça. Quando Sir Isenbart de Belame e os seus acólitos tomaram conhecimento do sucedido, nada disseram a este respeito, embora a raiva lhes tivesse feito
ensombrar os semblantes, ao mesmo tempo que o medo se instalava nos seus corações. Passaram a ter um grande cuidado com as rondas noturnas efetuadas no castelo e
não paravam de olhar de um lado para o outro sempre que saíam a cavalo e, sobretudo, esforçavam-se por evitar os caminhos da floresta. Então, quando o rei Henrique
morreu e foi substituído pelo filho, Ricardo, Coração-de-Leão, e este partiu para as Cruzadas, alguns juntaram-se a ele e partiram para Oriente. Mas De Belame deixou-se
ficar, à espera da sua oportunidade.
Entretanto, seria difícil encontrar em toda a Inglaterra alguém que fosse mais feliz que Jack, filho de Wilkin. Não era ele agora um homem livre, alguém
que trabalhava a sua própria terra? Jack passava os dias a assobiar e a cantar, o coração a transbordar de gratidão, e isto não só porque as coisas lhe tinham corrido
bem mas também porque contribuíra para fazer feliz a sua linda senhora, ajudando-a a casar com o homem a quem mais amava no mundo.




6.
DE COMO ROBIN DOS BOSQUES PRESTOU
AUXÍLIO A SIR HERBRAND

Robin dos Bosques estava sentado no seu esconderijo na floresta de Barnisdale e os seus homens esperavam que o almoço fosse servido. Na clareira onde se
encontravam, o estralejar da lenha por baixo dos caldeirões e o borbulhar dos guisados dentro destes constituíam sons agradáveis, isto enquanto o cheiro do veado
assado e dos empadões estaladiços que os cozinheiros tiravam dos fornos abertos na terra aguçavam o apetite dos homens.
Contudo, Robin não dava o sinal que indicava poder o almoço ser servido, pois não tinham tido uma só aventura que fosse naquela manhã. Os homens que tinham
estado de guarda às estradas, à espera de viajantes, haviam dito que era como se não andasse ninguém por ali, e nesse dia Robin concluíra não ter qualquer vontade
de almoçar até que aparecesse um desconhecido que se sentasse a seu lado e consigo confraternizasse.
- João - acabou ele por dizer, dirigindo-se ao seu lugar-tenente, que, por seu turno, estava deitado na relva, não muito longe do chefe, a afiar a ponta
de uma seta -, pega em Will e em Much, o filho do moleiro, e dêem uma saltada até Sales, seguindo por Fromin Street. Uma vez lá chegados, e como se trata de um ponto
alto, talvez consigam ver um qualquer viajante. Se assim acontecer, tragam-no à minha presença, seja ele conde ou barão, abade ou cavaleiro, até mesmo o magistrado do
rei em pessoa.
Satisfeito, João Pequeno levantou-se e, pegando no arco e nas flechas, chamou Much e Will Stuteley, e os três embrenharam-se pela floresta até chegarem a
um local onde o terreno constituía uma elevação. Aqui, numa das clareiras da floresta, viam-se duas pequenas casas de pedra, agora desertas e em ruínas. Há dez anos
atrás, viviam nelas dois homens livres, que cultivavam os poucos acres de terra que lhes pertenciam e levavam os porcos a pastar na floresta. Porém, o cruel senhor
de Wrangby acabara por passar por ali e exigira a Woolgar e a Thurstan (assim se chamavam os donos daquelas terras) que lhe pagassem tributo. Os camponeses tinham
sangue dinamarquês, o que não os deixava suportar semelhante tirania, e desafiaram o cruel Sir Isenbart. Daqui resultara terem ambos sido arrastados à força para
longe das suas terras, as suas colheitas destruídas e as suas casas incendiadas. Woolgar fora morto enquanto defendia a sua casa, e a mulher e os filhos eram agora
servos em Wrangby. Quanto a Thurstan, fugira para a floresta com os seus dois rapazes, e desaparecera, não sem antes prometer, como os homens diziam, que um dia
acabaria por voltar, pronto a queimar o Forte do Mal e a matar os seus proprietários.
- Lembrem-se de Woolgar e Thurstan - disse João Pequeno quando o grupo passou junto àquelas casas destruídas, de cujas janelas saíam ervas compridas que
balançavam ao vento.
- Sim, sim - assentiram Much e Will. - Dois dos desgraçados que, um dia, acabaremos por vingar.
Caminhando por entre os caminhos cobertos de folhas, os três bandoleiros acabaram por chegar à estrada principal, onde os seus pés pousaram no caminho de
pedra que os romanos haviam construído há cerca de oitocentos anos.
Chegaram, finalmente, ao cruzamento onde as cinco estradas convergiam. Neste ponto, o terreno era íngreme, sendo que o cruzamento se situava numa vasta clareira.
A partir desta espécie de planalto era possível ver as copas das árvores que constituíam a enorme floresta que se estendia em todas as direções. Olharam para oriente
e olharam para ocidente, mas não conseguiram ver um só homem que fosse. De seguida, olharam para norte, para o vale profundo de Barnisdale e detectaram um cavaleiro
que avançava devagar ao longo de um carreiro estreito, situado à esquerda, e que tinha como ponto de partida a cidade de Pontefract, a cerca de sete milhas de distância.
  O cavaleiro envergava uma cota de malha, transportava uma lança na mão direita e seguia com a cabeça baixa, como que mergulhado em pensamentos profundos.
À medida que se aproximava, os outros podiam ver que o seu rosto apresentava uma expressão grave, quase triste. O homem encontrava-se de tal forma abatido que, apesar
de ter um dos pés enfiado no estribo, o outro ia a balançar, solto. João Pequeno precipitou-se para a frente, disposto a não deixar fugir o cavaleiro, e, pousando
um joelho no solo à sua frente, disse:
- Bem-vindo à floresta, Sr. Cavaleiro. Desde há três horas que o meu amo te espera, recusando-se a comer na tua ausência.
- O teu amo está à minha espera? - inquiriu o cavaleiro, olhando surpreendido para o fora-da-lei ajoelhado. - E quem é o teu amo, meu bom homem?
- Robin dos Bosques - replicou João Pequeno. - Pede-te que almoces hoje com ele.
- Já ouvi falar a seu respeito - retorquiu o outro. - Consta que é um homem bom, corajoso e justo. De bom grado lhe farei companhia, embora estivesse a pensar
em dar uma saltada a Blythe ou a Doncaster antes do almoço. Mas que queres tu dizer quando afirmas que o teu amo está à minha espera, uma vez que não o conheço?
- O nosso amo não vai almoçar a menos que tenha um qualquer viajante a fazer-lhe companhia - explicou João Pequeno. - Trata-se de um hábito que ele às vezes
tem.
- Receio bem não estar em condições de animar o vosso chefe - contrapôs o cavaleiro.
Passado pouco tempo, o cavaleiro e os três proscritos encontravam-se à frente da cabana feita de ramos e de folhas onde Robin dos Bosques se sentava. O fora-da-lei
ergueu-se e fitou atentamente o rosto do desconhecido, dizendo:
- Bem-vindo sejas, Sr. Cavaleiro! Terei muito prazer em almoçar contigo.
- Agradeço-te, meu bom Robin - retorquiu o outro. - Que Deus te abençoe, a ti e a todos os teus homens!
Alguém lhes levou tigelas com água e um guardanapo, e, uma  vez tendo Robin e o cavaleiro lavado as mãos, lá se sentaram os dois, dispostos a almoçar. Havia
pão e vinho, empadas de veado, peixe, pato assado, perdizes e couves cozidas. Este repasto pareceu fazer as delícias do cavaleiro. Robin não perguntou quem ele era,
pois não costumava fazer este tipo de perguntas aos seus convidados até estes acabarem de comer. Quando a refeição chegou ao fim, e depois de terem lavado de novo
as mãos, Robin inquiriu, sorridente:
- Bom, Sr. Cavaleiro, posso partir do princípio de que o almoço te agradou?
- Podes, meu bom Robin. De fato, há três semanas que não tinha um almoço assim.
- Nesse caso - prosseguiu o outro, sempre sorridente -, deves saber que peão algum pode saldar as dívidas de um cavaleiro. Antes que te faças outra vez ao
caminho, tenho de te pedir que pagues a portagem que me é devida.
- Meu bom Robin - disse o cavaleiro, desta feita com um sorriso triste -, nada existe na minha bolsa que possa valer o teu interesse.
- Vamos, vamos - disse o fora-da-lei -, és um cavaleiro, logo, deves ter as terras de um cavaleiro. Diz-me a verdade, vamos. Quanto dinheiro trazes no alforge?
- Não mais do que dez xelins - respondeu o cavaleiro, e suspirou profundamente.
- Vocês aí! - gritou Robin. - João Pequeno, vai até junto do cavalo deste senhor e vê o que ele tem no alforge. - João Pequeno não se fez rogado e foi imediatamente
fazer o que o seu chefe lhe ordenara.
Quanto a Robin, virou-se para o cavaleiro e disse:
- Se aquilo que contaste é mesmo verdade, não tocarei numa só moeda que seja, e, caso precises de mais dinheiro, eu me encarregarei de te emprestar.
João Pequeno não demorou muito a regressar, dizendo:
- Mestre, só encontrei esta meia libra no alforge. - E estendeu a palma acastanhada da mão, onde brilhava uma moeda de prata.
- Enche a tua taça até acima - disse Robin, dirigindo-se ao cavaleiro. - És mesmo um homem de palavra. - E ambos beberam à sua saúde e ao seu bem-estar.
  - É incrível constatar o quanto as tuas roupas são leves - comentou Robin. - Nunca antes tinha visto um cavaleiro com um aspecto tão pobre quanto tu. Diz-me
a verdade e eu não a revelarei a ninguém. És mesmo um cavaleiro por nascimento, ou foste armado cavaleiro por teres praticado um qualquer ato de coragem e os teus
meios não te deixam viver com dignidade? Ou será que esbanjaste a tua fortuna? Como é que acabaste por te encontrar numa situação assim tão triste?
- Nada do que mencionaste é a causa da minha pobreza e miséria - disse o cavaleiro, exprimindo-se com gravidade. - Durante cem Invernos os meus antepassados
viveram nas nossas terras e na nossa casa e sempre estiveram à altura do nosso nome. Contudo, Robin, e como bem deves saber, há alturas em que um homem cai em desgraça
sem que isso seja culpa sua, e apenas Deus, que está sentado no Céu, pode fazer algo para remediar o seu estado. Nos últimos dois anos, tal como os meus amigos e
vizinhos sabem, gastei quatrocentas libras em dinheiro, e agora outra coisa não me resta para além da minha mulher e das terras que dentro em breve perderei.
- E como foi que chegaste a esse estado tão desesperado? - quis saber Robin.
- Porque o meu filho matou um homem - retorquiu o outro. - Tudo aconteceu no decorrer de um combate honesto, mas os familiares do morto eram meus inimigos
e mostraram-se empenhados em me arruinar devido ao que o meu filho fez. Paguei-lhes muito dinheiro, mas eles não pararam de exigir mais e mais, logo, vi-me obrigado
a empenhar as minhas terras ao abade de Santa Maria. E o coração diz-me que os meus inimigos tudo farão para se apoderarem das minhas propriedades, e que só se sentirão
felizes quando me virem mendigar junto à estrada para assim ganhar a vida, pois é certo que me têm muito ódio. Foi isto que os levou a ameaçar todos os meus vizinhos,
dizendo-lhes que ninguém me deve emprestar o dinheiro que necessito para pagar ao abade.
- Por Deus! - exclamou Robin, batendo no joelho com o punho cerrado. - Será que não vamos nunca deixar de ouvir falar desses atos perversos e das manhas
desse homem gordo que é o abade de Santa Maria? Diz-me uma coisa - pediu ele, dirigindo-se ao cavaleiro -, quanto é que lhe estás a dever?
- Quatrocentas libras - respondeu tristemente o outro. - Quatrocentas libras, eis a soma que paguei aos meus inimigos. E eles exigiram outras quatrocentas.
Foram estas quatrocentas libras que pedi emprestadas ao abade, e como não lhes posso devolver até amanhã, ficarei sem as minhas terras.
- Caso percas as tuas terras - começou Robin -, que estás a pensar fazer?
- Vestirei a armadura e partirei para as Cruzadas - respondeu o cavaleiro. - Contudo, primeiro vou falar com o abade para lhe dizer que não disponho do dinheiro.
- E levantando-se do seu assento, deu a entender não haver mais nada a dizer.
- Mas, Sr. Cavaleiro - insistiu Robin -, os teus amigos não te podem ajudar?
- Amigos! - exclamou o outro com amargura. - Quando era rico, os amigos não paravam de gritar aos quatro ventos o quanto me adoravam, mas assim que souberam
estar eu em dificuldade e quão poderosos eram os meus inimigos, trataram de fugir nesta e naquela direção, não fosse dar-se o caso de eu lhes pedir ajuda.
Os olhos de João Pequeno e de Will, o Arqueiro, revelavam tristeza, e o pequeno Much, o filho do moleiro, desviou o rosto no intuito de limpar uma lágrima.
O cavaleiro tinha um aspecto tão nobre e parecia tão triste, que o homenzinho sentiu ser sua obrigação tudo fazer para o ajudar.
- Não te vás embora ainda - disse Robin, dirigindo-se ao outro, que estendera a mão para a espada, disposto a colocá-la à cintura. - Volta a encher o copo.
E agora, Sr. Cavaleiro, diz-me uma coisa. No caso de alguém te emprestar o dinheiro que necessitas para salvares as tuas terras, será que não tens uma pessoa que
te possa servir de fiador?
- Não, de maneira nenhuma - disse o cavaleiro, falando com toda a solenidade. - Não tenho outro amigo para além d'Aquele que me criou.
- Por favor, deixa-te disso! - exclamou o bandoleiro. - Pergunto-te se não tens nenhum amigo de verdade... e não um dos santos, que costumam ser amigos de
todos nós, mas que não te podem ajudar a pagar as dívidas.
- Meu bom fora-da-lei - disse o outro -, estou a dizer-te a verdade. Não tenho qualquer amigo que me possa ajudar a saldar uma dívida destas para além de
Jesus Cristo e da Sua Mãe, a doce Virgem!
- Por Deus! - exclamou Robin dos Bosques, voltando a dar uma palmada no joelho. - Agora falaste bem. Mesmo que tivesses percorrido todos os recantos de Inglaterra,
não podias ter encontrado uma forma melhor de me falar ao coração que através da Virgem Santíssima, pois ela nunca deixou de me valer desde o primeiro momento que
a invoquei. Tu aí, João - prosseguiu ele, virando-se para João Pequeno -, vai buscar quatrocentas libras ao meu cofre e certifica-te de que todas as moedas estão
em boas condições. O total do dinheiro tem de ser exatamente aquele que o nosso perverso abade quer, e isto para que ele não possa rejeitar uma só moeda que seja,
ficando deste modo com as terras do nosso amigo.
João Pequeno, acompanhado de Much, o filho do moleiro, e de Will Stuteley, dirigiu-se para o esconderijo onde Robin guardava o baú contendo as moedas de
ouro, que, depois de embrulhadas e atadas num pedaço de pano, João Pequeno entregou a Robin.
- Pronto, Sr. Cavaleiro - disse o fora-da-lei, desembrulhando o tecido e mostrando o ouro ao outro -, aqui estão quatrocentas libras de ouro. Empresto-te,
tendo a Virgem Santíssima como fiadora, já que sei que, com a sua bênção, me pagarás este dinheiro no espaço de um ano e um dia.
Quando aceitou o dinheiro das mãos de Robin, as lágrimas corriam pelas faces magras do cavaleiro.
- Senhor Fora-da-lei - disse ele -, nunca pensei que um homem pudesse possuir uma alma assim tão nobre a ponto de aceitar semelhante fiador. Meu bom Robin,
agradeço-te muito, e tudo farei para que não venhas a perder um só centavo que seja, mas que, pelo contrário, te possa devolver esta soma dentro de um ano e um dia.
E agora, devo confessar-te que, embora tenha escutado boas e nobres palavras a teu respeito proferidas pelo meu filho, que te venera, nunca imaginei que aquilo que
ele dizia estivesse tão próximo da verdade.
- Quem é o teu filho, Sr. Cavaleiro? - quis saber Robin. - E de onde é que ele me conhece?
- O meu filho é Alan-a-Dale - retorquiu o outro -, a quem ajudaste por mais de uma vez, e, acima de tudo, a quem ajudaste a conquistar aquela que é a única
senhora do seu coração.
- Ora aqui temos um bom encontro - disse Robin, enquanto ele e o cavaleiro apertavam as mãos. - Alan falou-me da enorme mágoa que sentia por tua causa, uma
vez que não te conseguira ajudar a salvar as tuas terras das garras desse monge manhoso. Porém, nunca me passou pela cabeça que pudesses ser Sir Herbrand de Tranmire
em pessoa. De fato, Sir Herbrand, sinto-me muito feliz por te poder ajudar, uma vez que gosto muito do teu filho Alan, e seria capaz de fazer tudo para o deixar
feliz, a ele e ao pai, que o meu amigo tanto ama. Tu és mais uma pessoa a quem os senhores cruéis de Wrangby enganaram e oprimiram. Diz-me uma coisa: quando chegar
o momento, será que me vais ajudar a destruir aquele Forte do Mal e a enxotar todas as víboras que se alojam nesse ninho?
- Terei todo o gosto em assim o fazer - disse Sir Herbrand, e a sua voz era grave e dura. - Não o farei apenas por mim, mas também devido às muitas tiranias
e baixezas cometidas contra os pobres, e isto num espaço que vai desde o castelo onde eles vivem, no Peak, até às charnecas de Lancaster. Sentir-me-ei muito satisfeito
em te poder ajudar e prometo estar às tuas ordens sempre e quando o desejares.
De seguida, Robin dos Bosques tirou do seu abastecimento de ricos trajos uma veste de cavaleiro feita de um excelente pano de arrás, e colocou-a nos ombros
do outro, e ela ficava-lhe muito bem. Também lhe entregou um par de botas e esporas novas e, posteriormente, quando Sir Herbrand decidiu prosseguir viagem, deu-lhe
um cavalo melhor e mais forte do que o seu.
Quando, depois de ter agradecido a Robin com as lágrimas nos olhos toda a simpatia por ele demonstrada, o cavaleiro se preparava para partir, o fora-da-lei
disse:
- É uma grande vergonha para um cavaleiro andar por aí sozinho, sem um pajem ou um escudeiro que o acompanhe. Vou emprestar-te um dos meus pequenos pajens,
e a sua missão será acompanhar-te até junto do abade de Santa Maria, isto para que possa esperar por ti e, mais tarde, contar-me como as coisas se passaram. João
- chamou ele, dirigindo-se ao seu enorme lugar-tenente -, pega no teu cavalo e acompanha Sir Herbrand. Comporta-te como se fosses o seu escudeiro e depois volta
e conta-me de que forma o abade e o seu bando o receberam.
  - Agradeço-te, meu bom Robin - disse Sir Herbrand com um sorriso -, estares disposto a emprestar-me o teu pequeno pajem. E agora, juro pela doce Virgem,
que nunca me abandonou, que, dentro de um ano e um dia, te entregarei o dinheiro que tão nobremente me emprestaste, junto com uma série de presentes destinados a
pagar tudo o que me ofereceste.
- Adeus, Sir Herbrand - disse o outro, apertando a mão ao cavaleiro. - Não te esqueças de me devolver o meu pequeno pajem quando já não precisares dele.
À medida que João Pequeno se afastava, seguindo atrás do cavaleiro, foram muitas as gargalhadas e as piadas que se fizeram ouvir a respeito do pequeno pajem,
tendo o cavaleiro sido aconselhado a não poupar o chicote, pois, muitos assim o disseram, "ele era um rapaz atrevido, que precisava de apanhar com bastante frequência".
Durante algum tempo, o cavaleiro e João Pequeno foram percorrendo solitários caminhos da floresta, não falando eles de outra coisa para além de Robin dos
Bosques e das muitas boas ações por ele praticadas.
- Temo - acabou Sir Herbrand por dizer -, e isto apesar de eu estar preparado para trazer todos os meus homens no intuito de o ajudar, que ele acabe por
descobrir que derrubar aquele ninho de víboras de Wrangby é uma tarefa que está para além das nossas forças. Isenbart de Belame é um soldado capaz e cheio de recursos,
e receio bem que o teu amo não saiba grande coisa da arte da guerra e de como tomar uma fortaleza como a de Wrangby:
- Pois isso, a mim, não me mete medo - disse João Pequeno, soltando uma gargalhada. - O meu amo é um homem tão esperto quanto esse aprendiz de Satanás. Para
mais, a razão está do seu lado e ele pode contar com a ajuda de Nossa Senhora. Sendo assim, quem o poderá derrotar?
- É verdade - concordou o cavaleiro -, a bênção da Virgem vale bem uma forte companhia de soldados. Contudo, as conspirações perversas dos ladrões de Belame
e de Wrangby espalham-se por uma área de tal forma vasta, e os homens têm tanto medo de lhes desagradar que, daqui até Doncaster, a oriente, e às charnecas de Lancaster,
a ocidente, duvido que se possa alguma vez fazer a justiça e o bem, se isso chegar aos ouvidos desses homens cruéis.
- É verdade - disse João Pequeno. - Eles incutiram o medo da tortura ou da morte a todos os que desejam viver em paz. Mas, pela minha salvação, acredito
que os dias deles estão contados. Não há aldeia em que não viva um qualquer desgraçado que não tenha sido torturado, não há mansão ou castelo onde não viva um senhor
ou uma dama, um cavaleiro ou uma donzela, que não tenham sido humilhados ou ofendidos por estes rufiões. Isto leva-me a pensar que, caso o meu amo se erguesse contra esta
corja maldita, todos os homens de bem que vivem desde aqui até Lancaster também se ergueriam com ele, não voltando a pousar as armas até à extinção total e completa
deste bando cruel.
- Que a Virgem te escute! - exclamou o cavaleiro. - Mas quem são aqueles que seguem aquele homem ali? Até parece que estão a pensar roubá-lo ou fazer-lhe
mal.
Um pouco mais adiante, via-se um grupo de cinco ou seis homens que caminhavam pelo meio da estrada, e, à medida que o cavaleiro e João Pequeno se aproximavam,
foi-lhes dado constatar segurarem os cinco homens que seguiam atrás uma espada desembainhada na mão, ao passo que aquele que caminhava à frente transportava uma
cruz e estava quase nu.
- Trata-se de um qualquer patife que jurou abandonar esta terra depois de cometer um roubo ou de ter morto alguém - disse João Pequeno. - E os homens que
estão armados são da família daquele contra quem ele cometeu essa falta. Se o seguem é para se certificarem que ele não abandona a estrada real. E, por Deus!, aquele
que segura a cruz tem mesmo um péssimo aspecto.
Quando alcançaram o grupo, o cavaleiro, usando de toda a cortesia, perguntou que crime cometera o patife. O homem que segurava a cruz não tinha cinto, sapatos,
nem sequer chapéu, envergando apenas uma camisa, tal como se estivesse prestes a subir à forca. O seu olhar era sombrio e maldoso, e uma das suas faces estava marcada
por uma cicatriz. Os cinco homens que o seguiam com as espadas desembainhadas eram habitantes ricos da cidade, ou burgueses, como então eram chamados. Um deles,
a avaliar pelas suas roupas e pelo ar de autoridade que emanava, era poderoso e influente, tendo sido ele a responder.
- Este miserável que estamos a seguir é um assassino e dá pelo nome de Richard Malbête - explicou ele. - O nosso pai era um homem velho e bom que, visto
ter sempre vivido em paz e sossego na sua loja de Mercers Row na nossa cidade de Pontefract, adorava escutar histórias de viagens e de falar com quem combatera e
praticara feitos guerreiros. Acabou por se afeiçoar a este desgraçado, que lhe contou muitas histórias a propósito das suas grandes aventuras. O nosso pai, John
le Marchant, levou este patife para casa, indo assim contra os conselhos que nós, os seus filhos, lhe demos. Este Malbête, ou Illbeast, como ele gosta que lhe chamem, acabou
por matar o nosso pai, fazendo-o de um modo bastante sutil e perverso, pondo-se depois em fuga, levando consigo uma enorme quantidade de ouro. Quando demos o sinal
de alarme e nos colocamos atrás dele, ele refugiou-se na Igreja de São Miguel, e achou por bem jurar perante o magistrado que se comprometia a abjurar e a abandonar
este reino, seguindo para o porto de Grimsby, no intuito de partir no primeiro navio. Quanto a nós, vamos a segui-lo para que ele não se escape.
A avaliar pelos olhares que os cinco irmãos dirigiam ao assassino, era evidente estarem eles ansiosos para que o indivíduo fizesse uma qualquer tentativa
que fosse para se escapar, já que o simples fato de ele pôr um só pé que fosse fora da estrada serviria de desculpa para que o matassem. De fato, não havia nada
que os impedisse de assim agirem e de o fazerem quando quisessem, visto que o outro estava desarmado e não tinha quem o protegesse. Porém, visto serem cidadãos cumpridores
da lei, respeitavam o juramento que o assassino fizera.
João Pequeno não vira o ladrão quando este se disfarçara e lutara com Robin, daí que não o tivesse reconhecido. Examinou com atenção o rosto brutal da criatura
e reparou nos olhares cheios de ódio que Malbête dirigia aos cinco irmãos.
- Aconselho-os a não perderem este velhaco de vista - disse João Pequeno, dirigindo-se aos filhos de John le Marchant. - Não duvido que aquela cara feia
esconda um cérebro cheio de truques e de manhas. Tenham cuidado, não vá ele servir-se de uma qualquer artimanha para vos escapar.
O mais velho dos irmãos, aquele que falara, não estava habituado a escutar os conselhos de ninguém, e ressentiu-se do fato de um homem que parecia não passar
de um lenhador se ter dirigido a ele naqueles termos.
- Não preciso de conselhos para saber como tratar um patife - disse ele, altivo. - Este velhaco morrerá no preciso instante em que decidir enganar-nos.
João Pequeno riu-se e nada disse. Quando ele e o cavaleiro já se tinham afastado um pouco, este último disse:
- Já vi aquele ladrão e assassino uma vez. Foi apanhado em Gisors a roubar na própria casa em que o rei Henrique dormia. O magistrado condenou-o à forca,
mas constou-me que, graças a um qualquer estratagema, ele acabou por se escapar. Trata-se de um homem muito, muito perverso, e a sua cabeça está cheia de esquemas
e de artimanhas.
- Bastou-me olhar para a cara dele para o saber - retorquiu João. - E não tenho quaisquer dúvidas em como um ou mais que um daqueles mercadores de pescoço
empertigado que seguem atrás dele acabarão por pagar a sua fuga com a própria vida.
Nada mais aconteceu aos dois viajantes até estes chegarem à cidade de York, o que aconteceu quando a luz do dia começava a abandonar o céu. Encontravam-se
ambos entre os últimos homens a entrar na cidade, estava já o guarda a fechar os enormes portões. Dirigiram-se para uma estalagem bastante decente, onde o cavaleiro
já antes estivera, aí tendo jantado e passado a noite.
Na manhã seguinte, os funcionários principais da Abadia de Santa Maria reuniram-se na sala do capítulo. Lá estava o abade Robert com os seus lábios orgulhosos
e retorcidos, o seu duplo queixo e o rosto vermelho e colérico, e, junto a ele, sentado no mesmo banco, estava o prior, cujo o único superior hierárquico era o próprio
abade. O prior era um homem bom e amável, que se distinguia pela sua bondade, tanto quanto o abade se distinguia pela sua dureza e tirania.
Na mesa em frente a eles viam-se muitos pergaminhos, pois este era o dia em que os rendeiros ali iam pagar as suas rendas ou as respectivas dívidas, enquanto
outros apareciam em resposta a um pedido ou a uma exigência da parte do abade. Sentados à mesa encontravam-se dois monges que desempenhavam as funções de secretários.
À direita do abade sentava-se um dos magistrados do rei, que se encontrava naquelas partes do reino a exercer a justiça em nome do monarca. Também ali se encontravam
dois cavaleiros, bem como o xerife de York.
Eram muitos os que entravam e pagavam as suas rendas, quer em gêneros quer em bens. Outros aproveitavam para se queixar da forma como eram tratados pelos
beleguins ou pelos administradores do abade, e não deixava de ser estranho que tantas das propriedades do abade parecessem ter à sua frente beleguins extremamente
duros. O abade pouca ou nenhuma atenção prestava a estas queixas, embora o bom do prior tentasse abrir um inquérito sempre que os vilões e os homens livres de poucos
recursos se queixavam de coisas verdadeiramente graves.
- Não passam de uma alcatéia de patifes que só sabe resmungar - acabou o abade por dizer, zangado. - É melhor poupares o fôlego, prior, e usá-lo para dizeres
as tuas orações, já que prefiro deixar os meus beleguins fazer aquilo que consideram necessário do que meter-me em assuntos dos quais pouco ou nada sei.
- Ainda assim, quando se fazem acusações tão graves contra os administradores do abade - objetou o prior -, penso que, em nome da honra do abade e pela graça
da Virgem, cujo nome esta casa ostenta, seria imprescindível a abertura de um inquérito, e, caso fique provado que aqueles que agem em nosso nome cometeram atos
desprovidos de misericórdia, então, seria correto castigá-los.
- Se fosses tu a ocupar-te destes assuntos, prior - disse o abade, trocista -, andaríamos todos descalços para que estes vilões desgraçados pudessem ter
tudo o que querem. E agora, peço-te, não digas mais nada. O abade sou eu, e enquanto for eu a governar esta casa, farei aquilo que me parecer apropriado.
Foi então que entrou na sala do capítulo um homem alto e de aspecto feroz. Usava meia armadura e uma cota de malha, e trazia a espada presa ao cinto. Na
cabeça, coberta de cabelos negros e crespos, via-se um chapéu de veludo, tendo-o o homem tirado assim que chegou lá dentro. Seguia-o o escudeiro, que transportava
o elmo e uma pesada maça pertencente ao amo. Ao vê-lo, o abade levantou-se.
- Ah, Sir Niger! - exclamou ele, soltando uma gargalhada. - Então, sempre cumpriste o prometido e acabaste por aparecer. Achas mesmo que o cavaleiro de Werrisdale
nos vai deixar ficar mal neste seu último dia de graça?
- Acho que ainda hoje o vamos ver mendigar-nos um pouco de pão - respondeu Niger le Grym, rindo de maneira cruel. - Nós cá nos encarregaremos de o fazer
pagar um preço bem alto por ter protegido o patife do filho, Alan-a-Dale, e, caso não consigamos chegar a este desgraçado, então, obrigaremos o pai a sofrer no seu
lugar.
- Ouvi dizer que o filho dele se juntou a esse terrível ladrão e assassino, Robin dos Bosques - disse o magistrado. - Xerife - prosseguiu ele, virando-se
para o indivíduo em causa -, há que tomar medidas drásticas no sentido de exterminar este bando de malfeitores que se estabeleceu em Barnisdale. Ao que consta, ele
não só matou Sir Ranulf de Waste como também lhe queimou o castelo.
- Longe de mim, Sr. Magistrado - disse o prior, cheio de coragem -, tomar o partido de um ladrão desse calibre, mas o que ele fez é aquilo que, ao longo
deste último ano, os senhores e os barões deste condado têm o hábito de fazer, e o certo é que nenhum deles foi castigado, nem por ti nem por qualquer outro magistrado
do rei.
Sir Niger brindou o prior com um olhar feroz e murmurou qualquer coisa por baixo da sua barba ruiva. O magistrado cravou um olhar irado no religioso e não
conseguiu dizer fosse o que fosse, pois sabia que, sempre que cavaleiros tão poderosos como Sir De Belame e Sir Niger agiam de forma criminosa, a sua riqueza e influência
protegiam-nos de qualquer tipo de castigo.
- Só sei uma coisa - apressou-se o abade a dizer. - Caso Sir Herbrand de Werrisdale não apareça aqui com as quatrocentas libras até ao fim do dia, ficará
sem as suas terras e será deserdado.
- Ainda é muito cedo - disse o prior. - O dia ainda vai a meio. É muito triste que ele tenha de perder as suas terras. O filho matou aquele cavaleiro, Sir
Ivo, durante um combate honesto, e estás a fazer uma grande injustiça a Sir Herbrand quando o oprimes desta maneira. Ele não passa de um homem pobre, sem amigos
poderosos que o possam ajudar.
- Estás sempre contra mim, homem rabugento! - explodiu o abade, e o seu rosto ficou vermelho de raiva. - Não posso dizer nada sem que me venhas contrariar.
- Apenas gostaria que a justiça fosse igual para todos, ricos e pobres, cavaleiros ou vilões - replicou o prior, teimoso.
Foi nessa altura que entrou o despenseiro-mor, ou seja, o funcionário encarregue de zelar pelas provisões que tinham de ser fornecidas ao abade. Tinha o
físico de tal forma corpulento, que dava a sensação de guardar para si mesmo uma quantidade bastante considerável dos alimentos e das bebidas que era suposto controlar.
- Ah! Ah! - exclamou ele, trocista. - Hoje é o dia em que Sir Herbrand de Tranmire ficará sem as suas terras, caso não nos pague as quatrocentas libras.
Quase me atreveria a dizer que ele já deve estar morto ou enforcado, que não virá, e que podemos ficar com as suas coisas.
- Sinto-me tentado a concordar contigo - disse o magistrado.
- É bem possível que o cavaleiro não apareça hoje aqui. E como te emprestei algumas dessas quatrocentas libras, estou a contar receber algo mais em troca,
pois as terras do cavaleiro valem bastante mais do que essa quantia.
- E dizes muito bem - replicou o abade. - Todos iremos receber o nosso quinhão das terras do cavaleiro, à excepção de Sir Niger, mas tudo o que ele quer é
vingar-se.
- Está na hora de comerem qualquer coisa - anunciou o despenseiro, e abriu o caminho até ao salão, onde os aguardava uma refeição copiosa, servida em bandejas
de prata por pajens ricamente vestidos. Enquanto comiam, não paravam de tagarelar e de rir, uma vez que se sentiam seguros de que o cavaleiro não estava em condições
de pagar o dinheiro que devia e de que todos eles ganhariam bastante com as terras do outro.
Mesmo no meio do festim, o cavaleiro em pessoa entrou no salão. Parecia triste e abatido, e não estava vestido com os trajes ricos que Robin lhe oferecera,
mas sim com as suas roupas velhas e gastas. Atrás dele surgiu João Pequeno, vestido como se não passasse de um escudeiro pobre, o gibão remendado e as calças de
malha esfarrapadas.
- Que Deus esteja convosco! - saudou o cavaleiro, pousando um joelho no chão.
O abade fitou-o e ficou satisfeito ao constatar estar ele com um aspecto miserável.
- Cheguei no dia que tu mesmo me indicaste, padre - prosseguiu o cavaleiro.
- Trouxeste o meu dinheiro? - inquiriu o abade com dureza.
- Nem um só centavo - respondeu o interpelado, abanando tristemente a cabeça.
O abade riu.
- És um sujeito azarado! - exclamou, troçando de Sir Herbrand. Depois, erguendo o seu cálice, virou-se para o magistrado e disse:
- Sr. Magistrado, bebe comigo, pois penso que vamos conseguir o que queremos.
Então, uma vez esvaziado o cálice, o abade voltou-se e dirigiu-se ao cavaleiro.
- Se é assim, que estás aqui a fazer, uma vez que não trouxeste o meu dinheiro?
- Vim pedir-te, padre, que me concedas um pouco mais de tempo - respondeu o outro, e havia tristeza na sua voz. - Tenho-me esforçado por conseguir o dinheiro,
e, caso me dês outros quatro meses, penso que estarei em condições de te pagar o que devo.
- O prazo terminou, meu bom homem - disse o magistrado, uma nota de desprezo na voz. - E como não tens o dinheiro contigo, vais deixar de poder contar com
a tua terra.
- Oh, senhores, um pouco mais de caridade! - implorou o cavaleiro. - Sr. Magistrado, peço-te que sejas meu amigo e me protejas dos que me querem roubar para
me verem passar fome.
- Sou amigo do abade - disse o magistrado, friamente - e outra coisa não quero para além de que se faça justiça. Se não tens o dinheiro, então, terás de
ficar sem as terras que te pertencem. Assim o diz a lei, e eu tudo farei para que esta seja cumprida, estás a ouvir?
Então, o cavaleiro voltou-se para o xerife.
- Sr. Xerife - começou ele -, interfira junto do abade em meu favor. Peça-lhe que me dê um pouco mais de tempo.
- De maneira nenhuma - disse o xerife. - Não farei tal coisa... não o posso fazer.
Por fim, e sempre ajoelhado, o cavaleiro acabou por se virar para o abade.
- Imploro-te, bom Sr. Abade - pediu ele -, sê meu amigo e concede-me a tua graça. Fica com a minha terra até que eu consiga juntar a quantia que te devo.
Serei leal para contigo em todas as coisas, e tratarei de te servir como deve ser.
- Mas que coisa! - exclamou o abade, e era óbvio que estava furioso. - Estás a perder tempo com essas tolas súplicas. Só te posso dizer que arranjes outras
terras onde bem entenderes, mas, a partir de agora, as tuas terras são minhas e não as voltarás a possuir.
- Meu Deus! - exclamou o cavaleiro, soltando uma gargalhada amarga. - Sem dúvida que esta é a melhor forma de testar a amizade que certa vez me juraste!
- Perante isto, o abade cravou no cavaleiro um olhar cruel, pois não gostava que lhe recordassem certas coisas na presença dos inimigos de Sir Herbrand.
- Fora daqui, homem traiçoeiro e intrujão! - gritou ele. - Juraste que hoje pagavas o que me deves, e o certo é que não tens o dinheiro contigo. Fora! Não
passas de um falso cavaleiro! Desaparece imediatamente do meu salão!
- Mentes, abade! - gritou por sua vez o cavaleiro, tratando de se levantar. - Nunca fui um falso cavaleiro, antes um homem honrado. Combati em muitas terras,
sendo muitos os torneios e as justas em que empunhei a lança perante o olhar do rei Henrique e dos reis da França e da Alemanha. E em toda a parte, a não ser no
teu salão, recebi elogios, Sr. Abade!
O magistrado acabou por se comover com as palavras nobres do cavaleiro e deu por si a pensar que o abade tinha sido muito duro. Assim, virou-se para o abade
Robert e disse:
- Que lhe vais tu dar para além das quatrocentas libras para que ele deixe de reclamar as suas terras?
Sir Niger esboçou uma expressão sombria e brindou o magistrado com um latido.
- Não lhe dês nada! - disse ele, dirigindo-se ao abade em voz baixa.
- Dou-lhe cem libras! - exclamou o abade.
- Não, vale duzentas... seiscentas libras, no total - insistiu o magistrado.
- De maneira nenhuma! - gritou o cavaleiro, dirigindo-se para o fundo da mesa, os olhos faiscantes pousando à vez nos seus inimigos. - Conheço bem as vossas
conspirações - prosseguiu ele. - Vocês, monges perversos, desejam as minhas terras, e tudo porque estão sempre desejosos de acrescentar mais uns quantos acres àqueles
que já vos pertencem, nem que para isso tenham de esmagar as almas e os corpos dos pobres vilões que trabalham para vocês. Tu, Sir Niger, queres vingar a morte do
teu parente, a quem o meu filho matou no decorrer de um combate livre e justo. Mas, acima de tudo, desejas vingar-te de mim, porque não tens coragem suficiente para
ir ao encontro de Robin dos Bosques, que ajudou o meu filho a lutar contra ti. É por isso que me queres arruinar, a mim, que nada posso fazer contra a força dos
vossos senhores de Wrangby: Contudo, deixa-me dizer-te uma coisa: tem cuidado, não vás longe demais. Quanto a ti, Sr. Abade, aqui estão as tuas quatrocentas libras!
E tirou uma sacola do peito e, tendo-a aberto, despejou as moedas de ouro no tampo da mesa.
- Aqui está o teu ouro, abade - disse ele, trocista. - Serve-te, e que ele faça bom proveito à tua alma imortal!
Acompanhado de dois monges, o prior avançou para a mesa e, uma vez tendo contado o dinheiro e verificado tratar-se da quantia certa, passou um recibo e entregou-o
ao cavaleiro. Enquanto isso, o abade não se mexia, incapaz de falar e cheio de vergonha, sem conseguir continuar a comer.
 Quanto aos outros, bastava olhar para os seus rostos para compreender o quanto eles se sentiam amargurados ao ver como o cavaleiro dera a volta à situação,
virando-a contra eles. Sir Niger le Grym, o rosto vermelho e furioso, mordia o lábio inferior, ao mesmo tempo que brindava o outro com olhares que, se possível,
teriam bastado para o matar. Quanto ao cavaleiro, enfrentava-o com toda a coragem.
- Sr. Abade - disse Sir Herbrand, abanando o recibo em frente às caras dos outros -, cumpri a minha palavra e paguei tudo o que te devia. Agora, independentemente
do que possas dizer ou fazer, garanti a posse das minhas terras.
Dizendo isto, virou-se e saiu do salão, seguido de João Pequeno. Uma vez no dorso dos cavalos, regressaram à estalagem, mudaram de roupa e almoçaram, tendo
em seguida saído da cidade e metido pela estrada que seguia para a esquerda, já que o cavaleiro desejava chegar a casa quanto antes e contar à sua querida esposa
o bem que se tinha saído, graças à bondade e à nobreza de Robin dos Bosques.
- Sr. Cavaleiro - disse João Pequeno, estavam então a percorrer os caminhos da floresta a apenas algumas milhas de York -, não gostei da expressão daquele
cavaleiro que estava sentado à mesa junto com o abade. Não seria má ideia acautelares-te contra um ataque inesperado ou uma emboscada num qualquer lugar secreto.
- Não tenho medo de Sir Niger le Grym - retorquiu o outro -, nem de qualquer cavaleiro que decida enfrentar-me sozinho. Porém, é verdade que os senhores
de Wrangby são muito traiçoeiros e raramente lutam a não ser em grupos de dois ou de três. É por isso que as tuas palavras fazem bastante sentido. E agora, meu bom
homem, podes seguir o teu caminho, pois não quero que te desvies dele por minha causa.
- De maneira nenhuma - disse João Pequeno. - Não te posso deixar sozinho na floresta. O meu amo ordenou-me que fosse o teu escudeiro e não te deixarei até
que chegues são e salvo às tuas terras.
- És um homem fiel - disse Sir Herbrand - e gostava bastante de te recompensar. Mas, como sabes, não tenho nem dinheiro nem jóias.
- Não necessito desse tipo de recompensas, Sr. Cavaleiro - replicou João Pequeno. - Já me teria dado por satisfeito em me desviar do meu caminho só para
ter a oportunidade de travar um bom combate, e acho que não vai ser preciso esperar muito para trocarmos umas boas estocadas. Se assim não for, acho que já não sei
reconhecer uma expressão assassina nos olhos de um homem.
João Pequeno tinha a certeza de que Sir Niger le Grym planejara uma qualquer ação traiçoeira quando Sir Herbrand entregara o dinheiro, e não duvidava que,
num qualquer ponto do caminho, o cavaleiro seria atacado ou mesmo morto como forma de vingança.
Enquanto avançavam, ambos prestavam a maior das atenções sempre que a estrada se estreitava e a floresta se tornava mais densa, mas lá acabaram por atravessar
a floresta e, ao fim da tarde, encontraram-se na desolação das charnecas, e isto sem que o inimigo tivesse dado quaisquer sinais de vida. No entanto, agora estavam
naquela área onde o poder de Sir Isenbart, Sir Niger e dos seus companheiros perversos se fazia sentir com mais força, daí que os dois cavaleiros tratassem de esporear
as montadas, na esperança de chegar a Stanmore antes do cair da noite.
Nesta região solitária, cruzaram-se com poucas pessoas à exceção de um ou dois pastores e, de vez em quando, um par de vilões que regressava a casa depois
de terminado o seu trabalho. A dado momento, viram à distância um grupo de falcoeiros e, numa outra ocasião, cruzaram-se com uma caravana de mercadores e pelos respectivos
pôneis. Acabaram por dar início à longa e íngreme ascensão rumo a uma encosta que dava pelo nome de Cold Kitchen Rigg. No topo desta via-se um maciço de abetos,
as copas curvadas todas na mesma direção, um efeito do vento forte que parecia estar sempre ali a soprar.
Quando faziam os cavalos fatigados percorrer os últimos metros que os separavam do cume, eis que, de entre os arbustos que cresciam junto às árvores, ouviu-se
um som sibilante e, um segundo depois, uma seta foi bater no escudo de João Pequeno, que se encontrava pendurado junto ao seu joelho, e acabou por cair no chão.
Baixando os olhos para ela, João Pequeno viu que a haste era curta e preta, ficando assim a saber quem é que escolhera aquela forma de o avisar. Acabou por se dirigir
ao cavaleiro, que seguia a alguns passos à sua frente, e dise-lhe:
- Cuidado com as árvores, Sr. Cavaleiro! - Contudo, no preciso instante em que pronunciava estas palavras, saiu de entre as árvores um cavaleiro com uma
cota de malha, a lança em riste, precipitando-se contra Sir Herbrand. Enquanto isso, emergindo do outro lado daquele caminho estreito, um outro cavaleiro transportando
uma enorme maça na mão correu ao encontro de João Pequeno. A estrada era inclinada, e ambos pensaram que a velocidade com que a desciam bastaria para atirar com
os outros dois ao chão. No entanto, tanto o cavaleiro quanto João Pequeno estavam preparados para o ataque. Sir Herbrand desembainhara a espada ao escutar o assobio
da flecha que fora disparada de entre os arbustos e segurou depois o escudo, o que fez com que, assim que o primeiro cavaleiro se precipitou sobre ele, a sua lança deslizasse
sobre o escudo, deixando aquele que desferira o golpe completamente desamparado. Aproveitando a ocasião, Sir Herbrand serviu-se da espada para bater no pescoço do
outro com uma força tal que o homem caiu da sela. O cavalo pôs-se a correr como um louco encosta abaixo e, tendo a espora do cavaleiro ficado presa ao estribo, a
criatura lá foi sendo arrastada ao longo da estrada, o corpo a estremecer e a saltitar sobre as partes acidentadas do terreno.
Porém, no momento seguinte, um terceiro cavaleiro esgueirou-se sorrateiramente por entre as árvores, atacando Sir Herbrand com a espada e com uma força tal
que, naquela estrada íngreme, o nosso bom cavaleiro precisou de toda a sua força para impedir que o cavalo caísse e, ao mesmo tempo, evitar os golpes bem aplicados
desferidos pelo inimigo.
Quanto a João Pequeno, a situação em que se encontrava era bem difícil. O segundo cavaleiro precipitara-se para ele com uma força tal que João mal tivera
tempo para empunhar o escudo, daí que uma boa parte do golpe desferido pelo maço lhe tivesse acertado em cheio no braço, paralisando-o a ponto de este quase não
se mexer. Com a espada, João Pequeno fazia o melhor que podia para se defender, mas o desconhecido, quer por se encontrar montado num cavalo mais forte, quer por
estar protegido por uma armadura completa, apenas podia ser mantido à distância, não podendo João fazer nada capaz de colocar o oponente fora de combate. Era com
uma enorme raiva que a pesada maça se abatia contra o escudo do outro, ao mesmo tempo que o desconhecido fazia avançar o seu cavalo para cima do animal mais fraco
com uma tal violência que o fora-da-lei sabia ser apenas uma questão de momentos antes de ser atirado para o chão.
Subitamente, o cavaleiro imobilizou-se e pareceu tremer. Um gemido profundo escapou-se-lhe por entre o elmo, a maça caiu da sua mão erguida e aquela figura
que envergava uma armadura pôs-se a oscilar na sela. João Pequeno acabou por ver a extremidade de uma pequena flecha negra cravada no sovaco do inimigo. Fora disparada
de uma distância de tal forma curta que penetrara fundo na carne. João Pequeno olhou em volta e viu uma avelaneira junto à estrada. Era por entre as folhas desta
árvore que espreitava o rosto redondo e moreno de Ket, o Duende, a expressão simpática do costume substituída por uma máscara de triunfo terrivelmente selvagem.
O cavaleiro caiu ao chão com um estrondo, ficando o cavalo a tremer junto ao cadáver do dono. Ao ver cair o companheiro, o terceiro cavaleiro, que lutava
contra Sir Herbrand, tratou de esporear a montada e de se precipitar por entre as árvores. Quando chegou ao fundo da encosta, foi possível vê-lo cavalgar pela charneca
na direção do Castelo de Wrangby. Sir Herbrand, que estava ferido, absteve-se de perseguir o inimigo.
Não se passou o mesmo com Ket, o Duende. Movendo-se com rapidez, correu para a estrada e foi engolido pelas altas frondes dos fetos.
- Quem é aquele? - quis Sir Herbrand saber. - É um dos homens que estão com estes cavaleiros malvados que nos atacaram?
- Não - respondeu João Pequeno. - Trata-se de alguém a quem hoje fiquei a dever a vida, já que, se a flecha por ele disparada não tivesse acabado com este
patife aqui, acho que teria sido derrotado.
- Quem é este cavaleiro? - perguntou o outro, e, descendo do cavalo, dirigiu-se para o cadáver e levantou-lhe a viseira.
- Virgem Santíssima! - Exclamou o senhor. - Trata-se de Sir Niger em pessoa!
- Nesse caso, há menos um elemento naquele bando maldito - disse João Pequeno. - Talvez mesmo dois, pois não duvido que aquele a quem agrediste no pescoço
esteja morto. A verdade é que, mesmo que ainda estivesse vivo quando caiu, então, por certo, que o cavalo já o matou.
- João, monta o teu cavalo e vai atrás dele - disse Sir Herbrand. - Caso encontres o cadáver e a sua montada, trá-los de volta, pois tenho de lhe dar um
enterro cristão. Para mais, e de acordo com as leis do combate, o cavalo, a armadura e o escudo são meus.
João Pequeno fez o que o cavaleiro lhe pedia e, tendo recuado cerca de meio quilômetro, foi encontrar o cavalo a tasquinar tranquilamente a erva que crescia
junto à estrada. O corpo do cavaleiro estava a alguns metros de distância, já que a espora se soltara do estribo assim que o animal parara a sua louca correria.
João pegou no cadáver, colocou-o sobre o dorso do cavalo e regressou para junto de Sir Herbrand. Depois, conduzindo os dois cavalos capturados, cada um transportando
o corpo sem vida do respectivo dono, o cavaleiro e João Pequeno voltaram a fazer-se ao caminho.
Uma hora mais tarde, chegaram junto a uma capela. Entraram nela, mas o eremita encarregado de a guardar não se encontrava presente. Tendo tirado as armaduras
aos dois cavaleiros mortos, Sir Herbrand colocou os corpos frente ao altar e, na companhia do fora-da-lei, ajoelhou-se e disse uma oração.
De seguida, levando os dois cavalos com as armaduras empilhadas nos respectivos dorsos, ei-los a seguir rumo ao local onde era suposto passarem a noite, e,
no dia seguinte, Sir Herbrand chegou a casa, sendo recebido carinhosamente pela esposa e por toda a sua gente. Quando lhe contou a forma como fora tratado por Robin
dos Bosques, a dama e as restantes pessoas que com ele viviam receberam João Pequeno o melhor que podiam, pedindo-lhe que ficasse com eles durante vários dias. Porém,
logo ao segundo dia, João declarou estar na hora de regressar para junto do seu amo. Ao compreender não estar ele disposto a permanecer ali, Dona Judith preparou-lhe
uma sacola carregada de comida, dando-lhe um anel de ouro de presente. Quanto ao cavaleiro, ofereceu-lhe um cavalo forte, dando-lhe também uma quantia em ouro que,
segundo ele, representava o valor do cavalo e da armadura de Sir Niger, coisas estas que o cavaleiro afirmava pertencerem a João Pequeno. Posto isto, o nosso bom
fora-da-lei tratou de se despedir e, enquanto o fazia, Sir Herbrand apertou-lhe a mão e disse:
- João Pequeno, tu e o teu amo têm sido bons amigos, tanto de mim quanto do meu filho, e que Deus me amaldiçoe para sempre se alguma vez esquecer a tua companhia
e a tua ajuda. Diz ao teu amo que, assim Deus o permita, daqui a um ano e um dia o irei procurar para lhe devolver o dinheiro que ele me emprestou num gesto de tanta
nobreza, tendo a Virgem como fiadora. Junto com o dinheiro, também lhe enviarei um presente. Diz-lhe também que se as coisas se passarem como estou a pensar e uma
época difícil se abater sobre a nossa terra devido ao ódio e à inveja que o duque João sente pelo irmão, o rei Ricardo, Coração-de-Leão, então, vamos avisar uns quantos
homens tão justos e tão valentes quanto o teu amo. E, caso ele alguma vez necessite da minha ajuda, diz-lhe que posso armar cerca de uma centena de valentes para
me seguirem.
João Pequeno prometeu entregar a mensagem com a maior das fidelidades e partiu, chegando a Barnisdale sem que nada lhe acontecesse.
Agora, na tarde daquele mesmo dia em que os cavaleiros se precipitaram sobre Sir Herbrand e João Pequeno, o terceiro cavaleiro, ferido e muito fraco, cavalgou
até junto ao portão do Castelo de Wrangby, a que os pobres chamavam Forte do Mal, e, numa voz débil, ordenou ao guarda que baixasse a ponte levadiça. Uma vez feito
isto, entrou no adro. Mesmo sem desmontar, precipitou-se para o salão onde Sir Isenbart e os amigos se entretinham a beber vinho.
- Mas é Sir Bernard de Brake! - exclamaram os cavaleiros erguendo os olhos espantados para a figura vacilante que, montada no seu cavalo, avançara até muito
próximo do assento principal.
- Onde estão Sir Niger e Sir Peter? - trovejou Sir Isenbart, o medo da verdade fazendo-o espumar de raiva.
- Mortos! - exclamou o cavaleiro, e os outros apenas podiam ver um rosto muito pálido oculto pelo elmo. - Dêem-me vinho... Sinto-me... cansado.
Entregaram-lhe uma taça de vinho e os outros trataram de lhe desapertar o elmo e de lhe tirar. Foi então que puderam ver até que ponto ele fora gravemente
ferido, e só a sua enorme força o mantivera de pé. Uma vez esvaziada a taça, ele estendeu-a de novo e pediu mais vinho.
- Foi o cavaleiro quem matou Sir Peter - prosseguiu Bernard de Brake. - E penso que tenha sido o escudeiro o responsável pela morte de Sir Niger, já que
o vi cair ao chão.
Os cavaleiros trocaram olhares sombrios entre si e nada disseram. Foi então que um dos soldados que se encontrava de guarda junto à ponte levadiça entrou
a correr no salão. Trazia na mão uma flecha, pousando-a na mesa, em frente a Sir Isenbart.
- Senhor, acabaram de disparar esta flecha por entre as grades do portão e por pouco ela não me acertava na cabeça. Não consegui ver quem a disparou.
Sir Isenbart olhou para a pequena flecha negra e a fúria fez com que o seu rosto se contorcesse. Viam-se alguns entalhes na haste, no total de sete, encontrando-se
estes pintados de vermelho.
- Depressa! - gritou Sir Isenbart. - O desgraçado que disparou isto não pode estar longe. Vão lá fora, procurem-no e tragam-no à minha presença.
Seguiram-se momentos de agitação e ruído durante os quais os soldados pegaram nas suas armas e os cavaleiros enfiaram as armaduras, precipitando-se para
o exterior, fazendo um barulho aterrador enquanto atravessavam a ponte. Havia uma enorme clareira frente ao portão, daí que fosse de pasmar haver alguém passado
por ali sem que as sentinelas colocadas junto às seteiras, mesmo por cima da ponte, o tivessem visto. Cavaleiros e peões vasculharam o terreno que se estendia em
torno do castelo num raio de oitocentos metros, mas sem encontrar vestígios de um único arqueiro que fosse.
A escuridão acabou por pôr um ponto final às suas buscas e, sozinhos ou aos pares, regressaram ao castelo e admitiram não terem sido bem sucedidos. Assim
que o último atravessou a ponte, esta, com muitos guinchos e estalidos à medida que as correntes ferrugentas se enrolavam em torno da trave, acabou por ser recolhida
para a noite, e o portão de ferro fechou-se, produzindo um estrondo que abalou toda a torre. Então, debaixo de um pequeno arbusto pendurado sobre a margem exterior
do fosso, mesmo junto a um portão, saiu uma forma pequena e esguia. Devagar, com muito cuidado, a criatura ergueu-se da água, fazendo-o de forma a que os seus movimentos
não pudessem ser ouvidos pelos soldados que se encontravam na casa da guarda. Tratava-se de Ket, o Duende, a quem Robin dos Bosques mandara vigiar o Forte do Mal.
Conseguira que o arco e as flechas não se molhassem, pendurando-os no arbusto que se erguia por cima de si.
Levantou os olhos para a forma escura e maciça do castelo que se erguia, alto e imponente, na outra margem do fosso. Aqui e ali, a luz das tochas ou dos
archotes esgueirava-se por entre as seteiras e, de vez em quando, o metal de um elmo faiscava, indicando a presença de um soldado ocupado a levar a cabo a sua ronda
noturna. Ket deixou-se ali ficar durante algum tempo a olhar, uma flecha ajustada à corda do seu arco, na esperança de que um qualquer rosto assomasse a uma qualquer abertura
próxima, na esperança de conseguir disparar uma outra vez. Contudo, o tempo foi passando sem que tivesse surgido uma oportunidade. Acabou por baixar o arco e, relutantemente, afast





ou-se.
- Sete já se foram - murmurou ele -, mas ainda restam muitos. Assim como matam, assim serão mortos... sem compaixão, sem piedade.
Foi-se embora devagar, olhando de vez em quando para trás, para a forma escura onde era possível descortinar alguns pontos de luz. Durante cerca de um quilômetro
foi meio a correr que se dirigiu para o local onde a floresta começava.
Depois, já no escuro, foi avançando por entre aquelas árvores enormes, até chegar junto àquela que só podia ser considerada como um gigante entre gigantes.
Com os modos de um animal selvagem, olhou à sua volta e ficou à escuta durante muito tempo. Então, com uma agilidade quase inacreditável, trepou para o tronco usando
a superfície rugosa da casca e uns quantos ramos como se de degraus se tratassem, acabando por desaparecer entre as folhas que se erguiam mais acima. Acabou por
chegar a um mundo onde nada mais havia para além de maciços escuros de folhas que murmuravam na brisa noturna, a qual se tornava mais pura e mais forte à medida
que ele ia subindo. A determinada altura, chegou a um local onde três ramos se projetavam do tronco, sendo que no meio deles se encontrava um espaço coberto por
aromáticas braçadas de feto. Ket voltou-se e pôs-se a examinar o caminho que o conduzira ali. Encontrava-se por cima das copas de todas as árvores que o cercavam,
as quais se agitavam e murmuravam, quais ondas suaves, à medida que o vento as abanava.
Espreitando por entre as folhas do carvalho gigante onde construíra o seu esconderijo, Ket podia ver a forma pesada e escura do Forte do Mal recortando-se
contra o fundo negro do céu. Algumas luzes brilhavam aqui e ali, mas, aos poucos, até mesmo estas se apagavam.
Depois de despir as roupas molhadas, Ket pendurou-as para secarem. De seguida, afundou-se num enorme molho de fetos e, tendo tirado comida e bebida de um
esconderijo escavado na árvore, pôs-se a comer e a beber sem que os seus olhos se desviassem do castelo. Quando todas as luzes, exceto a do portão, se apagaram,
enroscou-se entre as hastes cheirosas, adormecendo quase no mesmo instante, e o murmúrio feito pelo vento a passar por entre as folhas que o cercavam funcionava como
uma canção de embalar que o acompanhou ao longo de toda aquela curta noite de Verão.


7.
DE COMO ROBIN DOS BOSQUES SALVOU
WILL STUTELEY E FEZ JUSTIÇA EM RELAÇÃO
A RICHARD ILLBEAST, O MENDIGO-ESPIÃO

Nascia o dia. Um vento gelado soprava ao longo dos caminhos da floresta, arrancando as folhas que ainda permaneciam nas árvores e fazendo rodopiar as que
se encontravam no chão, atirando-as em seguida para os cantos. A alvorada fez a sua aparição, espalhando uma luz mortiça sobre a floresta, parecendo nunca penetrar
em alguns dos locais mais profundos, onde os maciços de azevinho pareciam mais espessos e as farripas de musgo cinzento que cresciam nos carvalhos pareciam mais
compridas.
Will Stuteley, que seguia ao longo de um carreiro, não parava de olhar atentamente de um lado para o outro, espreitando por entre os túneis sombrios que
se abriam de ambos os lados, pois no decorrer dos últimos três dias vira andar por ali (naquela zona a que o fora-da-lei chamava Black Wood) um homem vestido de
romeiro, mas cujos modos, andar ágil e olhares furtivos, não se coadunavam de forma alguma com os de um romeiro. Will envergava um longo capote castanho que quase
lhe chegava aos pés e um capuz a cobrir-lhe a cabeça.
Já haviam caído as primeiras neves, e a maior parte dos homens de Robin dos Bosques já se mudara para o acampamento de Inverno. Naqueles dias, quando o gelo
e a neve cobriam a terra, viajava-se pouco, logo, muitos bandoleiros estavam a viver com familiares ou rendeiros pobres, mas sempre em locais distantes, situados
quer na floresta, quer em aldeias próximas desta. Durante uns tempos, vestiam-se de camponeses, ajudavam a executar as poucas tarefas que havia a fazer e, deste
modo, junto com os animais por si apanhados, pagavam o calor e a hospitalidade que recebiam até ao início da Primavera.
Robin, na companhia de cerca de uma dúzia dos seus principais ajudantes ou se alojava nas grutas secretas que se encontravam em abundância em muitas zonas
daquelas vastas florestas ou, às vezes um ou outro rendeiro abastado, como Piers de Lucky, o irmão de leite de Alan-a-Dale, convidava-o, a ele e aos seus homens,
a passar o Inverno no seu salão.
Naquele ano, fora Sir Walter de Beauforest quem o convidara a passar o Inverno numa granja, ou celeiro fortificado, que ficava na floresta, não muito longe
da mansão de Sir Walter, em Cromwell, onde Alan e a esposa, a bela Alice, viviam agora felizes.
Robin aceitara o convite de Sir Wálter, mas, se o tempo estava bom nunca ficava no mesmo sítio durante muito tempo e estava agora a viver num esconderijo
que ele e os seus homens tinham preparado em Barrow Down, a alguns quilômetros a leste de Mansfield, na zona desolada onde se viam muitos menires, velhas fortificações
e túmulos antigos. Era num destes túmulos que Robin e os seus homens estavam a viver, uma vez que tinham escavado o seu interior, tornando-o acolhedor e confortável.
Todas as manhãs, Will Stuteley e outros elementos do bando, depois de tomarem o café da manhã em Barrow, procediam a uma ronda junto do seu esconderijo,
no intuito de descobrirem quaisquer sinais de que os seus inimigos dali se tivessem aproximado durante as últimas horas. O solo era examinado para ver se havia pegadas
de desconhecidos, os arbustos e as árvores eram igualmente passados a pente fino, não fosse haver neles ramos partidos, e os fora-da-lei eram tão perspicazes quanto
índios, sabendo também identificar quaisquer sinais, visuais ou sonoros, que lhes pudessem indicar terem andado estranhos por ali durante a noite.
Subitamente, Will imobilizou-se no carreiro por onde caminhava e pôs-se a observar o solo. Então, depois de olhar atentamente à sua volta, por entre as avelaneiras
e os jovens carvalhos que cresciam ali perto, ajoelhou-se e examinou uma pequena concavidade por onde tinham corrido as águas primaveris. Via-se ali a marca clara
de um pé esguio, olhou em frente e viu outras duas marcas semelhantes. Ainda estavam frescas, já que eram muito nítidas. De fato, Will tinha a certeza de que a pessoa
que por ali passara não podia estar longe. Mas quem poderia ser? As pegadas pareciam pertencer a um rapazinho, talvez mesmo a uma rapariga. Fosse quem fosse, a pessoa
em causa era pobre, pois as pegadas mostravam que a sola dos seus sapatos estava em péssimas condições.
Sem fazer ruído, enveredou pelo mesmo carreiro. Avançara cerca de cinquenta metros, concluindo dirigirem-se as pegadas para um maciço de espinheiros, quando,
de um momento para o outro, se imobilizou e se pôs à escuta. Ouvira alguém soluçar baixinho algures, no meio da zona mais densa dos arbustos. Com muito cuidado,
dirigiu-se para a zona de onde o som se elevara, sem fazer qualquer ruído, até que, depois de contornar uma enorme avelaneira, viu a figura de uma rapariga, ligeiramente
afastada de si. A jovem estava a apanhar as bagas que cresciam no espinheiro à sua frente, colocando-as em seguida no cesto de palha velho e gasto que transportava.
Chorava enquanto colhia as bagas. Will podia ver as lágrimas deslizarem-lhe pelo rosto, porém, fazia esforços para não soluçar, receando ser escutada. Reparou
nas suas mãos, arranhadas e a sangrar por causa dos espinhos, enquanto os pés, enfiados nos sapatos, estavam azuis devido ao frio.
Will esboçou um movimento. O ruído fê-la voltar-se, os olhos esbugalhados de terror, o rosto muito pálido. Apertando o cesto ao peito, acabou por se lançar
aos pés de Will.
- Oh! - exclamou ela, a voz muito fraca, quase um lamento. - Mate-me já e, por favor, não vá procurar o meu pai! Mate-me e não procure mais ninguém! Ele
está quase a morrer e não consegue falar!
Já não chorava, embora os seus olhos estivessem cheios de lágrimas, apertava as mãos e elevava-as num apelo mudo, enquanto no seu rosto infantil, tão magro
e tão pálido, se espalhava uma expressão que parecia indicar que aquela jovem vivera algo de terrível, não querendo outra coisa para além da morte. Era judia, como
Will não demorou muito a constatar.
Aquele honesto bandoleiro sorriu, pois tratava-se da maneira mais rápida de animar a rapariga. Magoava o coração do velho fora-da-lei ver tamanha mágoa e
sofrimento nos olhos e na voz da jovem.
- Minha pobre menina - disse ele na sua voz mais suave -, não te quero fazer mal. Por que razão haveria eu de te fazer mal se estás enregelada? E para que
andas tu a colher essas bagas? O teu pobre corpo esfomeado precisa de melhor comida.
Pegou-lhe nas mãos e ajudou-a a levantar-se. A rapariga lançou-lhe um olhar confundido e espantado, como se não compreendesse terem-lhe sido dirigidas palavras
amáveis quando outra coisa não esperava para além de frases e de atos brutais. Examinou o rosto de Will e o seu rosto pareceu animar-se.
- Não... não conhece... não conhece aquele homem... um tal Malbête? - gaguejou ela.
- Malbête? - repetiu Will, franzindo o sobrolho. Lembrou-se que Robin lhe falara deste homem, e que escutara os viajantes contar os crimes e as crueldades
praticadas por este criminoso.
- Pobrezinha! - Disse ele. - Então, esse desgraçado também é teu inimigo?
- Sim, senhor. É inimigo do meu pobre pai! - explicou a rapariga, a voz a tremer. - O meu pai escapou do massacre cometido contra a nossa gente, em York...
Ouviste falar no caso?
- Sim - assentiu o bandoleiro, e o seu rosto tornou-se sombrio e os seus olhos brilharam de raiva ao recordar aquele ato vergonhoso quando, enganados pela
populaça e por uns quantos cavaleiros cruéis muitos judeus inocentes se fecharam no castelo e mataram as mulheres e os filhos antes de se suicidarem, já que para
eles tudo era preferível a cair nas mãos dos "cristãos".
- Que vos aconteceu, a ti e ao teu pai? - quis ele saber.
- Escondemo-nos no castelo até a matança terminar - respondeu a rapariga - Depois, um homem bondoso ajudou-nos a sairmos em segredo. O meu pai queria ir
para Nottingham onde algumas pessoas da nossa raça nos ajudariam, caso soubessem que estávamos em apuros, mas temos passado muita fome nestas florestas, e... oh,
senhor, se és mesmo um homem tão bom quanto aquilo que pareces, por favor, salva o meu pai! Ele está deitado aqui perto e receio... receio que talvez seja tarde
de mais para o salvar. Mas, por favor, não nos traias!
- Leva-me até junto dele, pobrezinha - pediu Will, e a sua voz amável, bem como o seu olhar, dissiparam quaisquer suspeitas que ainda estivessem no coração
da pequena judia. Ela conduziu-o por entre uma série de arbustos quase impenetráveis até chegarem junto a um rochedo calcário. Aqui numa gruta cuja abertura estava
tapada com ramos de avelaneira, a rapariga indicou-lhe o pai, um homem idoso e de cabelos brancos, vestido com um pobre gabinardo1 rasgado pelos espinheiros e sujo
de lama, encontrando-se o homem deitado numa cama de fetos. A rapariga não parava de tremer enquanto o seu olhar seguia de Will para o pai e deste para Will, como
se, ainda agora, temesse ter entregue aquilo que lhe era mais querido a um inimigo cruel. O homem despertou quando os sentiu entrar, abriu os olhos e, quase no mesmo
instante, a jovem ajoelhou-se ao lado do velho, as suas mãos afagando as dele, os olhos fitando-o, repletos de carinho.
- Ah, minha pequena Ruth! - disse o velhote, olhando-a com a mesma ternura. - Receio, querida, que ainda não me possa levantar. Sinto-me dorido, mas já não
vai demorar muito a passar. Isto passa. E, depois, é só fazermo-nos ao caminho. Chegaremos à cidade dentro de algumas horas e depois a minha Ruth poderá comer e
vestir-se decentemente. Tens as faces pálidas e magras, querida, pois tens sofrido e passado fome. Mas, dentro em breve... ah, mas quem é que está aqui? Quem é este?
Oh, Ruth, Ruth, será que fomos traídos.
Na escuridão da gruta, o velhote começara por não reparar no fora-da-lei, e o desespero com que pronunciara aquelas últimas palavras mostrava até que ponto
se sentia aterrorizado por causa da filha. Will ficou com a impressão de que aquele era um homem corajoso, que não revelaria o seu sofrimento à jovem, mas que, antes
pelo contrário, apesar de estar doente, tudo fazia para lhe transmitir coragem.
- Nada receis, mestre - disse Will, pousando um joelho em terra, de forma que os seus olhos se pudessem cravar no rosto do velho judeu. - Ficarei feliz se
vos puder ajudar, a ti e à tua filha.
- Agradeço-te muito - disse o judeu, e a sua voz tremeu um pouco. - Não é por minha causa que receio, mas pela minha pequenina, o meu cordeirinho. Ela viu
e passou por coisas que criança alguma devia ver ou passar, e sentir-me-ei satisfeito se ficar em segurança.
As lágrimas corriam pelas faces do velho judeu. Tão fraco e esfomeado se sentia ele, que achava já não lhe restar muito tempo de vida. Ainda assim, a sua
maior angústia era pensar que, caso morresse, a sua menina ficaria só, desolada e sem amigos.
- Aquilo de que vocês os dois precisam - disse Will, a sua mente apreendendo a situação quase no mesmo instante -, é de comida e de calor. De momento, posso
dar-vos um pouco de comida mas, quanto ao calor, primeiro tenho de falar com o meu amo.
E, ao dizer isto, Will abriu a sacola e tirou de lá algumas fatias de pão e de carne de veado, entregando-as à rapariga e recomendando-lhe que comesse devagar.
Porém, no mesmo instante, a jovem começou a cortar o pão e a carne em pedaços muito pequenos, tratando de servir o pai antes de levar ela mesma um pouco de comida
à boca. Apesar de, durante dois dias, tanto ela quanto o pai pouco ou nada terem comido, mostravam-se agora bastante moderados, mastigando muito devagar. De seguida,
Will ofereceu-lhe o seu cantil de peregrino e, depois de ambos terem bebido um pouco do vinho que lá dentro se encontrava, era um prazer constatar a forma como os
seus olhos se iluminaram e as suas faces começaram a ganhar cor.
- Minha pequena Ruth - disse o velhote, depois de terem devolvido o cantil a Will -, ajuda-me a pôr de joelhos.
Uma vez feito isto, o que aconteceu com a ajuda do fora-da-lei, a rapariga também se ajoelhou e, para grande atrapalhação de Will, o judeu começou a rezar
com grande fervor, agradecendo a Deus por os ter conduzido a ele que, por seu turno, os salvara da morte e da miséria.
Foram tantas as bênções que invocou para Will, o Arqueiro, que este, embora a luz existente na gruta fosse muito fraca, já não sabia para onde olhar. Quando
terminaram, Ruth pegou na mão do bandoleiro e beijou-a vezes sem conta, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces.
No entanto, o seu coração estava demasiado cheio para que ela conseguisse pronunciar uma palavra capaz de expressar toda a gratidão que sentia.
- Pronto! - Disse Will, falando com brusquidão. - Já chega de tantas lágrimas e agradecimentos. Fiquem aqui enquanto vou consultar o meu amo sobre o que
se há-de fazer.
- Quem é o teu amo, amigo - perguntou o judeu.
- Robin dos Bosques - respondeu Will.
- Ouvi dizer que é um homem bom - disse o velhote. - Apesar de fora-da-lei dizem que se mostra mais bondoso e justo que muitos dos que estão dentro da lei.
Vai ter com ele, amigo - prosseguiu o velho -, e dá-lhe cumprimentos da parte de Reuben de Stamford e diz-lhe que, caso me ajude a chegar junto dos meus familiares
em Nottingham, poderá contar para sempre com a minha gratidão e a de todo o meu povo, e com a nossa ajuda sempre que o desejar.
  O velho judeu exprimia-se com dignidade, como se estivesse acostumado a dar ordens, e Will respondeu:
- Entregar-lhe-ei a tua mensagem, mas, se ele te ajudar, não será na esperança de conseguir a tua gratidão ou o teu ouro, mas sim porque é próprio dele querer
ajudar aqueles que necessitam.
- Falaste com bravura e orgulho, Sr. Fora-da-lei - disse Reuben -, e se o teu amo é tão bondoso quanto tu, sei que não nos vai deixar passar fome e morrer
de forma miserável.
Posto isto, Will regressou a Barrow Down e, uma vez chegado à enorme colina onde os fora-da-lei viviam, foi direito a Robin e falou-lhe do judeu.
- Agiste corretamente, Will - disse o bandoleiro. - Pega em dois cavalos e leva o judeu e a filha para Lynchet Lodge, depois os interrogarei a respeito deste
rufião, Richard Illbeast. Chegaram-me aos ouvidos histórias relativas aos seus atos em York, e penso que ele não deve andar longe de Nottingham.
Os desejos de Robin foram cumpridos, tendo Ruth e o pai ficado alojados numa cabana secreta na encosta de Wearyall Hill, não muito longe do local onde os
fora-da-lei se encontravam. Tanto o pai como a filha estavam muito fracos e, para além disso, os sofrimentos por que passaram haviam debilitado muito o velho judeu,
mas, devido à comida e à bebida servidas com abundância, ao calor providenciado por boas roupas e a uma enorme lareira, bastaram poucos dias para os ver em melhores
condições, quer físicas quer psicológicas. A gratidão que sentiam para com Robin era ilimitada, mas expressava-se melhor através do brilho dos seus olhos do que por
intermédio de palavras.
Quando o velhote se sentiu mais forte, Robin pediu que ele lhe contasse como é que ficara no estado miserável em que Will Stuteley o encontrara, e Reuben
não se fez rogado em lhe obedecer.
- Por certo já ouviste dizer, meu bom fora-da-lei - começou o judeu -, que quando o grande e corajoso rei Ricardo foi coroado em Westminster, no passado
Outono, a populaça dessa grande cidade se virou contra os judeus, saqueando-lhes as casas e matando alguns membros do meu pobre povo. O teu rei puniu os chefes daquela
multidão que roubou e matou a nossa gente e fê-lo mandando enforcar alguns e ordenando que outros fossem marcados com ferros em brasa. Mas sabes bem que, quando,
há apenas um mês, ele abandonou o país junto com os seus cavaleiros e um glorioso exército para se juntar aos cruzados na Palestina, os motins dirigidos contra o
nosso povo começaram outra vez em muitas cidades.
"Muitos cavaleiros e senhores preparavam-se para partir para as Cruzadas e uma enorme multidão juntara-se a eles. E como muitos dos membros do meu povo haviam
emprestado dinheiro aos cavaleiros, alguns dos mais cruéis de entre eles atiçaram a multidão, levando-a a queimar as nossas casas e a roubarem-nos. Como sem dúvida
alguma o sabes, estes atos tiveram lugar em Stamford, Lynn e Lincoln. Eu morava em Lincoln, mas como viajara para York, escapei à pilhagem por uns tempos. Acontece
que um parente meu, o rabino Eliezer, um homem importante entre nós, emprestara dinheiro a um barão chamado Alberic de Wisgar, um senhor com fama de esbanjador e de
tirano. Junto com outras pessoas, ele urdira uma conspiração contra os judeus de York, isto com o objetivo de lhes pilhar as casas e de destruir os registos das
dívidas que eles tinham para com o meu parente. Depois de sabermos que a casa de um rabino morto em York fora pilhada e receando que a mesma sorte se abatesse sobre
nós, fugimos com as nossas mulheres e filhos para o Castelo de York. Foi aí que fomos cercados por uma enorme multidão composta por cruzados, aprendizes e gente
do campo, e o chefe de todos eles era um homem cruel, pertencente à companhia do Sr. de Wisgar. O seu nome era Richard Malbête, ou Illbeast, e foi com uma fúria enorme
que ele incentivou as pessoas a cercarem o castelo e a tentarem levar-nos lá para fora. Não tínhamos armas mas, usando apenas as mãos, arrancamos as pedras que constituíam
os muros interiores, e foi deste modo que conseguimos manter afastada a populaça. Durante três dias, sem comida e sem armas, rechaçamos todos os seus ataques. Porém,
quando trouxeram uma máquina enorme e se prepararam para a usar contra nós no dia seguinte, soubemos que já não poderíamos aguentar muito mais. Nunca, enquanto os
meus olhos forem capazes de chorar ou a minha mente de recordar o passado, conseguirei esquecer a dor, o medo e a tristeza daquela noite."
"Falamos durante muito tempo, tentando encontrar uma solução, embora, nos nossos corações, a maioria soubesse existir apenas uma saída. A determinada altura,
o rabino Eliezer ergueu-se e disse: 'Ó filhos de Israel, Deus (a quem ninguém pergunta: "Por que cometeste uma coisa destas?") ordenou-nos que vivêssemos de acordo
com a Sua Lei, e eis que a morte nos bate à porta. Assim, é melhor que, de livre vontade, entreguemos as nossas vidas a Deus, o mesmo Deus que nos deu a vida, tal como
muitos dos nossos o fizeram no passado, salvando-nos desta forma de maiores males."
Durante alguns instantes, a recordação daquela noite abateu-se sobre o velhote. As lágrimas correram-lhe pelo rosto e foi incapaz de prosseguir. A rapariga,
Ruth, também chorava em silêncio, mas ao mesmo tempo tentava consolar o pai.
- Não chores por eles, meu pai - disse ela, embora chorasse amargamente. - Deus levou-os consigo e, apesar de terem conhecido a morte às mãos daqueles que
amavam, encontram-se agora para sempre no regaço de Abraão.
- Senhor - disse o judeu -, o que ela diz é verdade. Assim que o rabino Eliezer acabou de falar, separámo-nos e não dissemos mais nada. Não posso contar
tudo o que a seguir aconteceu. Todos queimamos ou destruímos as coisas que tínhamos conosco, e aqueles que haviam perdido a esperança mataram os que lhes eram queridos
e depois suicidaram-se.
"Contudo, não me consegui obrigar a fazer o mesmo. Não me interessava viver apenas por mim, pelo contrário, teria preferido morrer, mas, pensando nesta minha
menina, descobri um esconderijo no castelo, na esperança de que, tal como por certo acabaria por suceder, quando a multidão entrasse eu conseguisse arranjar uma
forma de Ruth se escapar, embora não tivesse qualquer esperança no que se referia a mim mesmo. Na manhã seguinte, aqueles que não tinham querido morrer abriram os
portões e avançaram, convencidos de assim poderem escapar à fúria da multidão. Vi tudo o que se passou do ponto onde me encontrava escondido. Aquele homem cruel,
Richard Illbeast, aproximou-se do primeiro judeu, Efraim bel Abel, que se ajoelhou à sua frente, pedindo clemência. 'Onde estão os tesouros dos judeus?', quis ele
saber. 'Queimados e destruídos', retorquiu Efraim. 'Onde está o rabino Eliezer?', perguntou ele a seguir. 'Ele e todos os que não estão comigo mataram-se, tendo
também morto as respectivas famílias', respondeu Efraim. 'Nesse caso, também tu deves morrer!', exclamou Illbeast, e, ao escutar estas palavras, a populaça matou
os judeus que ali estavam ajoelhados, não poupando um só que fosse. De seguida, precipitaram-se todos para o castelo e nós ficamos à espera de ser encontrados e
arrastados lá para fora a qualquer momento. Passado algum tempo, a multidão abandonou o castelo e precipitou-se para a catedral, onde, como bem sabes, o rei guarda
os registros dos empréstimos que o meu povo fez aos cristãos daquelas paragens, tendo queimado os pergaminhos em causa. Isto significa que, agora, Alberic de Wisgar
e os restantes cavaleiros estão livres de todas as suas dívidas.
- Como é que vocês conseguiram escapar? - perguntou João Pequeno que, na companhia de Will, o Arqueiro, Scarlet e Arthur-a-Bland, se haviam juntado a Robin
dos Bosques para escutar a história do judeu.
- Deus, em resposta às nossas orações, amoleceu o coração de um soldado que, apesar de nos ter descoberto, se compadeceu dos nossos sofrimentos e não nos
traiu. Arranjou-nos comida e capas de soldados para que nos pudéssemos disfarçar e fez-nos sair da cidade através de um portão secreto, conduzindo-nos até à estrada
para Nottingham.
- Sabes o que aconteceu a esses cavaleiros rufiões? - inquiriu Robin.
- O soldado, que Deus o recompense pelo seu nobre coração - disse o velhote -, contou-nos que, receando a ira dos magistrados do rei, tinham abandonado a
cidade. Os cavaleiros não demoraram muito a juntar-se às Cruzadas, enquanto a populaça e os ladrões ou tinham fugido para a Escócia ou para a floresta, embora alguns
tenham ficado na cidade. Disse ainda que os magistrados do rei castigariam os malfeitores com mão pesada, e que tanto o xerife como os mercadores mais importantes
estavam já a tremer de medo. E agora, Sr. Fora-da-lei - prosseguiu Reuben -, tenho um favor a pedir-te. Tenho um filho e uma filha a viver em Nottingham, e era para casa
deles que nos dirigíamos. Eles choram-nos, julgando-nos mortos, e imploro-te que deixes um dos teus homens ir até à casa deles dizer-lhes que estamos sãos e salvos,
e que nos reuniremos a eles quando achares por bem deixar-nos partir e quando eu me sentir com força suficiente para me fazer ao caminho.
- Com certeza - disse Robin. - Qual de vocês se prontifica para ir levar a mensagem à família do judeu? Will, como foste tu quem os encontrou, que dizes
a este respeito?
- Irei de boa vontade - disse Will Stuteley - Diz-me qual é a mensagem e onde posso encontrar a tua família, far-me-ei ao caminho agora mesmo.
Tanto Reuben como Ruth lhe agradeceram calorosamente e, depois de lhe terem fornecido tanto a mensagem quanto as necessárias instruções, Will afastou-se,
disposto a envergar um disfarce que o impedisse de ser reconhecido por qualquer um dos cidadãos que o pudesse ter visto quando, ao passar pela floresta, os fora-da-lei
lhe tivessem exigido a portagem da praxe.
Assim, nessa mesma tarde, um peregrino envergando uma veste comprida e escura, os pés envoltos num par de sapatos esfarrapados, uma vieira no chapéu e um
pesado bastão na mão, pôde ser visto a passar pelo portão traseiro de Bridlesmith, faltava então uma hora para o Sol se pôr, altura em que os portões se fechariam
para a noite. E ei-lo a caminhar pelas ruas com o passo lento próprio de um peregrino que viajara desde muito longe e estava cansado.
Will, o Arqueiro, não pensava existir qualquer possibilidade de ser reconhecido com aquele disfarce, mas, embora parecesse que cravava os olhos humildemente
no chão, de vez em quando lançava uns quantos olhares penetrantes em seu redor, tentando desta forma descortinar certas marcas que lhe permitiriam saber se estava
a dirigir-se para a casa de Silas ben Reuben, um dos chefes da judiaria de Nottingham, a quem devia entregar uma mensagem da parte do velho judeu.
A determinada altura, Will entrou na rua da judiaria, começando a contar o número de portas a partir da esquina, tal como Reuben lhe dissera para fazer,
uma vez que não deveria chamar as atenções de ninguém perguntando onde ficava a casa. O fora-da-lei reparou que, enquanto algumas portas se encontravam abertas,
sendo que através delas era possível ver as mulheres a trabalhar e as crianças a brincar, outras estavam trancadas, as persianas corridas, como se os seus moradores
receassem poder suceder-lhes o mesmo que acontecera aos judeus de outras cidades.
Ao chegar junto à nona casa, bateu à porta, que estava trancada, e ficou à espera. O postigo abriu-se, por ele espreitando os olhos escuros de um homem.
- Que queres tu daqui? - inquiriu ele.
- Quero ver Silas ben Reuben - retorquiu Will. - Trago uma mensagem para ele.
- Que palavras secretas podes tu pronunciar para provar que não és um traidor e que não me farás, nem a mim nem aos meus, aquilo que outros têm feito ao
nosso povo? - pronunciou com dureza a voz que ecoou através do postigo.
- Vou dizer-te essas palavras - respondeu o bandoleiro, repetindo as frases em hebraico que Reuben lhe ensinara.
Quase que de forma instantânea, o rosto desapareceu do postigo, as trancas foram corridas e a porta abriu-se de par em par.
- Entra, amigo - disse o judeu, um sujeito baixo e entroncado. O fora-da-lei entrou e, imediatamente, a porta trancou-se atrás de si. De seguida, o judeu
conduziu-o para uma divisão interior e, virando-se, disse:
- Sou aquele que procuras. Fala.
- Venho dizer-te - começou o foragido -, que o teu pai, Reuben de Stamford, e a tua irmã Ruth estão vivos e se encontram bem.
- Deus seja louvado! - exclamou o homem, e, apertando as mãos, baixou a cabeça e pôs-se a murmurar palavras de oração numa qualquer língua estrangeira.
- Conta-me como é que sabes isso - pediu ele, uma vez concluída a prece. - Onde é que eles estão e quando é que os vou poder ver?
Foi então que o bandoleiro contou a Silas, o Judeu, toda a história relativa à forma como encontrara a pequena Ruth e o pai, e dos sofrimentos por eles passados,
tudo isto tal como lhe fora relatado pelo velhote. Assim que deu por concluída a sua história, o judeu agradeceu-lhe por ter sido tão amável com Reuben e Ruth e
dirigiu-se para uma outra divisão. Quando regressou, trazia nas mãos um cinto riquíssimo, de pele verde, ornamentado com pérolas e outras pedras preciosas.
- A tua bondade está para além de qualquer recompensa - disse ele. - Ainda assim, gostaria que aceitasses este cinto como prova da minha gratidão.
- Agradeço-te, judeu - disse Will -, mas trata-se de uma prenda demasiado rica para mim. Seria mais indicada para o meu amo. Mas, caso me queiras dar um
presente, então, dá-me um punhal espanhol, se tiveres algum, pois consta que são feitos com os melhores metais de toda a cristandade.
- De bom grado darei este cinto ao teu amo. Basta que ele esteja disposto a aceitá-lo - retorquiu o judeu. - Quanto a ti, dar-te-ei o melhor punhal espanhol
que tiver na minha loja.
E lá foi ele buscar o punhal, entregando-o ao fora-da-lei. Este experimentou a sua lâmina afiada e descobriu que era de excelente qualidade.
Começava a escurecer e o fora-da-lei queria deixar a cidade antes que os portões se fechassem. No entanto, era necessário combinar alguns pormenores com
o judeu, nomeadamente, saber quando e como deveria ele mandar cavalos e homens ao encontro de Reuben e de Ruth, encontro este que deveria acontecer num lugar escolhido
por Robin dos Bosques, que para aí enviaria os fugitivos. Era já noite cerrada quando tudo ficou combinado, e o judeu pediu a Will que passasse a noite em sua casa,
pois, segundo ele, não havia ali mais ninguém, uma vez que enviara a mulher, a irmã e os filhos para um lugar mais seguro, pois receava a populaça.
- Agradeço-te, judeu - disse Will -, mas prefiro dormir num lugar que conheço, junto ao portão, pois quero sair da cidade assim que o dia nascer e aqueles
se abram.
Depois de deixar a casa de Silas e enquanto percorria a rua estreita da judiaria, dois homens passaram por Will em silêncio, lançando-lhe olhares furtivos.
Não pareciam estar vestidos como os judeus, e o bandoleiro estranhou a maneira silenciosa como avançavam. Abrandou os seus próprios passos de forma a deixá-los distanciarem-se
de si, mas, ato contínuo, eles abrandaram igualmente os passos, mantendo-se à sua frente a uma distância de seis passos. De vez em quando, um deles olhava discretamente
para trás. Will ficou assim a saber estarem aqueles dois a vigiá-lo, quer porque soubessem ser ele membro do bando de Robin, quer porque o tivessem visto entrar na
casa do judeu. Fosse como fosse, era evidente que lhe queriam fazer mal.
Ao compreender isto, levou a mão ao cabo do punhal e parou, decidido a fazer-lhes frente no caso de eles também pararem e se virarem contra si. Nessa mesma
altura, sentiu uma mão agarrar-lhe o braço e uma voz a murmurar-lhe ao ouvido:
- Amigo de Silas ben Reuben, estás a ser seguido. Vem comigo.
O bandoleiro viu uma forma escura junto a si. Uma porta abriu-se sem fazer ruído e Will foi puxado para dentro daquilo que parecia ser uma passagem estreita
e tortuosa. E ao longo desta passagem a mão pousada no seu braço conduziu-o durante vários metros até que, subitamente, ele sentiu o ar da noite soprar-lhe no rosto
e, erguendo os olhos, viu as estrelas.
- Vira para a esquerda - murmurou-lhe a mesma voz ao ouvido. - Irás dar a Fletcher Gate.
- Agradeço-te, amigo - disse Will, virando à esquerda.
 Precisou de caminhar apenas uns minutos para entrar numa rua estreita que conduzia ao portão em causa, e Will Stuteley apressou-se a seguir em frente, grato
por, com a ajuda do judeu desconhecido, ter evitado a captura. Sem perder tempo, o fora-da-lei entrou numa estalagem que dava para a muralha e cujo proprietário
não fazia perguntas aos clientes. Aí, na sala comum, Will comeu uma refeição frugal e, subindo para o dormitório, uma enorme sala situada no primeiro andar onde todos
os hóspedes se instalavam quando queriam dormir, atirou-se para um monte de palha colocado num dos cantos, não demorando muito a adormecer profundamente.
À medida que as horas iam passando, outros hóspedes abandonavam a sala comum e, depois de subirem as escadas, encontravam um lugar junto à parede, preparando-se
então para dormir. Stuteley acordava à entrada de cada recém-chegado, mas depois de observar a criatura à luz da vela que, pendurada num suporte de estanho colocado
na parede, difundia uma claridade difusa, virava-se e voltava a adormecer. Não demorou muito para que a sala ficasse praticamente cheia, sendo os retardatários obrigados
a passar por cima das figuras prostradas de homens que ressonavam e esforçarem-se por encontrar um canto onde pudessem dormir.
Contudo, a casa acabou por ficar silenciosa. Mais ninguém entrou no dormitório e tudo parecia mergulhado numa espécie de torpor. Lá fora, o vento gemia um
pouco, cantarolando nas fendas de uma persiana. Por vezes, um dos homens adormecidos murmurava qualquer coisa durante o sono, numa voz pastosa e utilizando palavras
quase ininteligíveis, ou, então, agitava o braço como se estivesse a lutar, podendo até soltar um gemido de dor. A rua estava escura e silenciosa, os gatos passeavam pela
sarjeta que corria bem pelo meio da rua e um qualquer cão vadio que vagueava pelas ruas aproximava-se de uma esquina, cheirava o ar e uivava.
Stuteley acordou antes mesmo de o primeiro vestígio de luz iluminar a rua fria. Will não gostava de casas. Os telhados pareciam fazer pressão sobre a sua
cabeça e, quando estava na floresta, costumava sair dos esconderijos onde pernoitavam e passear um bocadinho, os olhos postos no céu, alegre por aspirar o odor da
floresta e escutar o murmúrio do vento nas árvores adormecidas. Ali deitado, no escuro, teria dado tudo para se levantar e sair ao encontro do ar fresco da floresta.
Acabou por se erguer com cautela e, abrindo caminho por entre os homens adormecidos, acabou por chegar junto à porta, onde uma escada de degraus de madeira conduzia
ao piso inferior.
Enquanto tentava abrir a porta, descobriu o corpo de um homem estendido frente a ela. Tocou-lhe delicadamente com o pé, convencido que o indivíduo compreenderia
que ele desejava abrir a porta e procuraria depois outro lugar para dormir.
- Que a peste te leve, criatura! - disse uma voz atrás do fora-da-lei. - Para quê levantares-te tão cedo? Os portões da cidade não se abrem enquanto eu aqui
estiver. Será que és algum ladrão que procura fugir da cidade antes que os homens comecem a andar por aí?
- Não sou nenhum ladrão - respondeu Stuteley -, mas sim um pobre peregrino que tem de seguir para o santuário de Walsingham. E como tenho muito que caminhar,
sou obrigado a levantar-me cedo.
Neste ponto da conversa, já o homem que estava frente à porta se levantara, tendo ele mesmo aberto a porta e ido colocar-se ao cimo das escadas. Will seguiu-o
e esperou que ele descesse, uma vez que a escada não era suficientemente larga para que dois homens pudessem passar por ela. O homem que falara também avançou e,
à fraca claridade que ali se fazia sentir, observou atentamente o fora-da-lei. Ambos eram sujeitos entroncados e envergavam túnicas simples e calças de malha, tal
como se fossem criados de um próspero burguês.
- Com que então és um peregrino? - interrogou aquele que falara primeiro. E soltou uma gargalhada desdenhosa enquanto examinava Will Stuteley de alto a baixo.
- Por vezes, o traje de peregrino cobre o corpo de um bandido.
E, ao dizer isto, apontou para as escadas, e Will Stuteley apressou-se a descê-las, já que calculava servir melhor os seus intentos mostrando-se inofensivo,
ao invés de responder com palavras ousadas. Os outros seguiram-no de perto, entrando os três ao mesmo tempo na sala comum. Dois homens estavam sentados a uma mesa
e, quando viram os outros dois atrás de Stuteley, levantaram-se e deram uns quantos passos em frente. O que estava à frente, um homem grande, de olhar cruel, a marca
de uma velha ferida a atravessar-lhe o rosto, abandonou o companheiro e disse:
- Quem é que vocês têm aí?
- Um peregrino, capitão. Pelo menos, foi o que ele disse ser.
Stuteley compreendeu que fora apanhado. Levou a mão ao cinto, mas bastou aquilo para que os dois homens que estavam atrás de si lhe agarrassem os braços.
- Segurem-lhe a mão esquerda - ordenou o capitão - e depois veremos se este peregrino sabe ou não fazer outra coisa! Ah, bem me queria parecer! - prosseguiu
ele quando um dos outros puxou a mão esquerda de Stuteley, e no seu indicador pôde ver o calo que se formava quando, ao disparar as flechas, o arco roçava contra
a carne. - É este o nosso homem... um dos rufiões de Robin dos Bosques!
Rápido como um relâmpago, o fora-da-lei conseguiu libertar-se e correu para a porta. Esperava ser suficientemente rápido para erguer a tranca e fugir, mas
os outros mostraram-se mais velozes. No preciso momento em que erguia a pesada trave pousada nos suportes colocados em ambos os lados da porta, os outros quatro
precipitaram-se para o agarrar. Sem largar a tranca, Will fê-la girar à volta deles e conseguiu atirar com um homem ao chão, onde este ficou, desmaiado. De seguida,
usando a tranca como arma, conseguiu manter os outros à distância durante alguns momentos. No entanto, agindo com rapidez, o enorme capitão saiu por detrás de um
dos seus homens e, agarrando-o pelo ombro, atirou-o contra Stuteley. A trave abateu-se sobre a cabeça da criatura, deixando-a estendida no chão. Porém, antes que
o fora-da-lei se pudesse recompor, o capitão e os outros homens caíram sobre ele e conseguiram-no dominar, comprimindo-o contra o chão.
O proprietário, acordado pelo barulho, entrou na sala a correr, tendo-lhe o capitão ordenado que fosse buscar cordas. Acontece que o senhorio conhecia Will
Stuteley, que já ficara muitas vezes na sua casa disfarçado de pedinte ou de peregrino, e sentiu uma pena enorme ao ver que um dos corajosos homens de Robin dos
Bosques estava prestes a ser capturado pelos homens do xerife. Assim, tratou de se fingir muito afetado e pôs-se a correr de um lado para o outro, fingindo andar
à procura de uma corda, na esperança que Will arranjasse maneira de se escapar, bastando que lhe dessem tempo para isso.
Porém, foi tudo em vão.
- Raios te partam, estúpido! - gritou o capitão, de joelhos, a segurar um dos braços de Will. - Caso não te despaches a arranjar essas cordas, meu velhaco,
o xerife vai tomar conhecimento do caso.
- Oh, meu bom capitão! - exclamou o senhorio. - Estou tão baralhado que não sei onde pus as cordas. Não estou habituado a estas coisas, pois a minha casa
sempre foi um lugar pacato.
Vendo que não valia a pena demorar-se mais, o senhorio lá acabou por arranjar uma corda, e, depois, os braços de Will não demoraram muito a ficar amarrados.
Enquanto se procedia a esta operação, o senhorio conseguiu piscar o olho ao fora-da-lei, dando-lhe assim a entender que agiria como um amigo, enviando a Robin dos
Bosques notícias da sua captura. No momento seguinte, Will era forçado a levantar-se, sendo conduzido até à prisão no meio de palavras trocistas.
Assim que os portões da cidade se abriram, o senhorio enviou um homem à floresta. O Sol já ia alto quando ele se cruzou com um dos membros do bando de Robin,
tendo contado ao bandoleiro, neste caso, Kit, o Ferreiro, a forma como o companheiro fora capturado, não sem antes ter morto dois homens, servindo-se da tranca da
porta. Quando Kit, o Ferreiro, conduziu o homem até junto de Robin, muito bem escondido na floresta, ambos ficaram a saber que um burguês decente, que em tempos
se dera com o chefe dos salteadores, já lhe enviara um homem que lhe contara que, depois de ter sido julgado perante o xerife nesse mesmo dia, Will Stuteley seria
enforcado fora dos portões da cidade no dia seguinte, logo pela manhã.
- Quando me vinha embora - disse o homem -, pude ver que transportavam a madeira necessária à reparação da velha forca. Segundo eles disseram, tanto trabalho
era uma homenagem ao primeiro dos homens de Robin por eles capturado, mas que pensavam já não faltar muito para que outros do teu bando aparecessem pendurados na
trave da forca.
- Que querem eles dizer com isso? - quis saber Robin.
- Bom, mestre - respondeu o homem enviado pelo burguês, um indivíduo com ar franco e honesto -, eles dizem que o xerife contratou um especialista para apanhar
ladrões, um homem que combateu em muitas guerras, na França e na Palestina, e que é perito em esquemas e em emboscadas. Também dizem que já não falta muito até que
ele monte uma qualquer armadilha destinada a capturar todo o teu bando.
- Que espécie de homem é esse apanhador de ladrões? - inquiriu Robin. - Como se chama?
- É um homem grande, um autêntico javali com voz de trovão e uma enorme cara vermelha. Há quem lhe chame capitão Bush, ou Beat the Bush, enquanto outros
lhe chamam Carniceiro.
- E de onde é que ele vem? - insistiu o fora-da-lei, que não conseguira reconhecer este capitão.
- Isso ninguém sabe - respondeu o outro. - Há quem diga que não passa de um patife e que os magistrados do rei adorariam tê-lo nas suas masmorras. No entanto,
e de momento, caiu nas boas graças do xerife, que se aconselha com ele a respeito de tudo.
Robin sentia-se bastante perturbado ao saber que o pobre Will fora capturado, e a sua voz soou de forma dura quando se virou para aqueles que se encontravam
junto dele e disse:
- Rapazes, ouviram as más notícias. O pobre Will, o Arqueiro, o nosso bom e honesto Will, foi capturado, sendo provável que o matem. Que têm vocês a dizer?
- Temos de o salvar! - gritaram eles. - Vamos salvá-lo, nem que para isso tenhamos de deitar abaixo toda a cidade de Nottingham!
As expressões duras estampadas nos rostos dos fora-da-lei mostravam até que ponto eles se encontravam decididos.
- Têm toda a razão, rapazes - disse Robin. - Will será salvo e temos de o trazer para junto de nós, onde ficará em segurança. Se assim não acontecer, muitos
filhos de Nottingham serão mortos.
Robin ordenou aos dois habitantes da cidade que não abandonassem o acampamento durante a noite, e eles de bom grado prometeram não regressar a Nottingham.
Esta medida foi tomada para que nada transpirasse a respeito da tentativa de salvamento. O certo é que Robin calculava que seria uma tarefa difícil libertar Will
Stuteley das mãos do xerife e do seu novo lugar-tenente, o capitão Bush.
Entretanto, em Nottingham, na casa do xerife, este estava muito ocupado a conversar com o seu "caçador de ladrões". Haviam tentado interrogar Will, obtendo
apenas respostas arrogantes da parte do corajoso fora-da-lei, que lhes declarou poderem eles fazer o que quisessem consigo, que nunca lhe conseguiriam arrancar quaisquer
segredos.
- Levem-no daqui! - acabou o xerife por gritar, enfurecido. Preparem a forca para ele, já que é lá que irá balançar amanhã de manhã.
Will escutou a sua sentença de morte sem pronunciar uma só palavra, e foi com um olhar orgulhoso que se dirigiu para o calabouço.
- Sr. Xerife - disse o capitão Bush assim que os dois ficaram a sós -, tenho uma proposta a fazer-lhe, algo que, com toda a certeza, nos conduzirá ao esconderijo
secreto de Robin dos Bosques.
- Força - replicou o xerife. - Daria cem libras para ver esse velhaco e os seus homens feridos ou mortos.
  - É o seguinte - prosseguiu o capitão, e o seu rosto mal encarado apresentava uma expressão manhosa. - Vamos deixar partir este homem. Ele correrá para
a floresta, para junto do chefe, qual flecha a saltar do arco. Basta que dois ou três rapazes jeitosos o sigam, não o perdendo de vista até descobrirem o sítio onde
os patifes se escondem. Depois, quando soubermos onde é que fica o seu covil, podes reunir os teus homens e, chefiados por mim, trataremos de os rodear quando eles
não estiverem à espera e apanhá-los-emos a todos.
Zangado, o xerife franziu a testa e abanou a cabeça.
- De maneira nenhuma! - exclamou ele. - Não vou perder o que tenho. Ele vai mesmo dançar pendurado na forca! Caso o deixemos partir, esse velhaco do Robin
é tão cheio de manhas e de estratagemas que, mestre Bush, é bem possível que acabes por cair numa ratoeira, acabando assim por te cobrir de ridículo.
- Nesse caso - replicou o capitão Bush -, tenho um outro plano, e este talvez esteja em maior conformidade com os gostos de Vossa Senhoria. Já te contei
como foi que os meus espiões mantiveram vigiada a casa de Silas ben Reuben e como eles víram este patife entrar e conversar durante muito tempo com o judeu. Agora,
duvido que não haja uma qualquer conspiração demoníaca entre o judeu e este velhaco, Robin dos Bosques. Sabes bem que o fora-da-lei está à-vontade no que respeita
à necromancia e à magia negra, e não duvido que ele e aqueles judeus perversos andem a cozinhar qualquer coisa contra nós, cristãos.
- E que queres tu fazer? - inquiriu o xerife, deixando-se subitamente dominar pela raiva. - Estás a pensar atiçar o povo contra os judeus? Estás a pensar
em arranjar forma de me expulsarem do meu cargo, ficarem-me com metade do meu patrimônio e obrigarem todos os burgueses desta cidade a pagar um terço dos seus bens?
Foi isto que os magistrados do rei fizeram em York e em Lincoln. Patife! - concluiu ele, estreitando os olhos, furioso. - Que planos diabólicos tens tu a meu respeito?
E que sabes tu a respeito de Silas ben Reuben? Não serás por acaso um desses patifes que os mercadores e o xerife de York tanto gostariam de agarrar, levando-os
a pagar com a própria pele pelo castigo que o magistrado do rei lhes aplicou?
O capitão Bush não esperava uma explosão tão feroz quanto aquela e parecia abatido. De fato, a avaliar pelo seu olhar espantado, qualquer um se poderia interrogar
sobre se a última pergunta do xerife não acertara em cheio no alvo. Quanto a este último, furibundo, caminhava de um lado para o outro e não reparou no medo que,
de repente, inundou o olhar do capitão.
- Estou a avisar-te, meu bravo caçador de ladrões - gritou ele, entre o irado e o desdenhoso -, não vou tolerar nenhuma das tuas conspirações contra os judeus.
É muito fácil para um velhaco como tu iniciar uma revolta contra os judeus, indo mesmo colocar-se à frente de uma turba de assassinos, dispostos a matar e a pilhar.
Mas, quando o magistrado do rei vem à cidade ajustar contas, não é a tua pele que ele pede e as indemnizações também não saem do teu bolso. E, agora, fora, desaparece
da minha vista, e certifica-te de que a forca vai estar pronta amanhã, logo ao nascer do dia, e não me voltes a falar das tuas conspirações velhacas.
- Como Vossa Senhoria quiser - disse o capitão, sem levantar a voz. Depois, mostrando um respeito irônico, descreveu uma vênia e quase fez com que o chapéu
varresse o chão, deixando o xerife sozinho com a sua raiva.
"O imbecil! O cabeça de carneiro!", disse o capitão Bush de si para si, parando junto à porta para pensar um pouco. "Quando lhe passar a fúria, hei-de fazer
com que este imbecil engula o que disse. A verdade é que ele não passa de um estúpido e eu posso fazer com ele o que bem quiser. E nada de deixar de vigiar a casa
do judeu. Tenho a certeza de que o velho Reuben está vivo e que é o Robin quem o esconde. O velho sabe onde é que o parente, o rabino Eliezer, escondeu o seu enorme
tesouro, e não vou deixar que o burro deste xerife me impeça de recorrer a uma pitada de tortura para levar o velho Reuben a confessar o seu segredo. Não duvido
que Silas, o Judeu, mande alguém encontrar-se com o pai e com a rapariga, isto no caso de não ser ele mesmo a fazê-lo, para os colocar em segurança. Os meus homens
tratarão de os seguir e, no momento oportuno, saltarão sobre eles e levá-los-ão para um qualquer esconderijo, onde eu depois me encarregarei de os fazer falar." E
lá seguiu o capitão para o mercado, chamando um homem que estava a mordiscar uma palhinha e cujo aspecto era ainda pior do que o seu. Assim que o indivíduo se aproximou,
disse-lhe:
- Despacha-te, vai dizer a Cogg que não tire os olhos da casa de Silas, o Judeu. Estou convencido de que, hoje de manhã, Silas vai viajar. Sigam-no até onde
ele for. Se, como estou a pensar, ele se juntar, numa qualquer estalagem, a outros indivíduos da sua raça e eles estiverem acompanhados de cavalos, manda os teus
homens avisar-me. Não tenho dúvidas de que Silas irá para a floresta para se juntar a um velho e a uma rapariga. Eu tratarei de aparecer por lá na companhia dos outros,
e é forçoso que consigamos apanhar o velho com vida e levá-lo para um qualquer lugar secreto.
O homem atravessou a enorme praça que constituía o mercado e desapareceu numa das ruelas sinuosas que levavam à judiaria. Posto isto, o capitão dirigiu-se
para o Portão Norte, descobrindo estarem os homens do xerife muito ocupados a montar uma série de vigas novas na pequena colina chamada Colina da Forca, que ficava
mesmo junto à muralha.
- Isso que fique bem forte, rapazes - gritou ele, soltando uma gargalhada -, pois é para enforcar o primeiro membro daquele bando de ladrões. Não tenho dúvidas
de que já não falta muito para que os amigos dele venham a balançar-se nessa mesma trave.
Os homens do xerife nada disseram, mas um ou dois trataram de piscar o olho entre si, troçando do outro. Não gostavam daquele fanfarrão arrivista que, de
um momento para o outro, se pusera a dar-lhes ordens, e era de má vontade que lhe obedeciam.
  Na manhã seguinte, o dia despertou cinzento e gelado. Nuvens espessas rolavam pelo céu, o vento soprava com força vindo de leste e o odor a neve pairava
no ar. Junto ao portão da cidade que dava para a forca, sentava-se um pobre e velho peregrino, parecendo estar à espera que o portão se abrisse para, deste modo,
entrar na cidade. Olhava ora para o portão, ora para a forca, e, a dado momento, vieram-lhe as lágrimas aos olhos.
- Fui eu encontrar o meu irmão ao fim de todos estes anos, para descobrir que ele vai ser enforcado dentro de uma hora - lamentou-se o homem.
Tratava-se do irmão mais velho do nosso bom Will, o Arqueiro, que, há alguns anos, fugira da aldeia de Birkencar por ter morto um homem que o oprimia cruelmente.
Efetuara a longa e perigosa viagem para Roma, disposto a expiar o seu crime através do jejum, da oração e da penitência, e depois prosseguira, através da estrada
dura e igualmente perigosa, para Jerusalém, onde passara dois anos na companhia dos muçulmanos. Então, sem pressas, acabara por regressar a Inglaterra, ansioso por
rever o irmão mais novo, a quem muito amava. Estivera há três anos em Birkencar, tendo aí ficado a saber que Will fugira para a floresta na companhia de Robin dos
Bosques. Fizera-se à floresta e, perguntando a vilões e a pobres, ficara a saber que o bando de Robin dos Bosques estava a passar o Inverno não muito longe de Nottingham.
Seguindo em frente, chegara a Allerton, e aí, numa pequena estalagem, um lenhador dissera-lhe, sem saber quem ele era, que Will Stuteley ia ser enforcado ao nascer
do dia em frente ao portão norte de Nottingham. De imediato, precipitara-se para lá, caminhando pela floresta durante a noite, e, enfrentando o vento gelado, sentara-se
e pusera-se a dormitar em frente ao portão, tentando deste modo obter um vislumbre do irmão e, quem sabe?, trocar uma ou outra palavra com ele antes que ele morresse.
Enquanto ali estava, um homem esguio, baixo e moreno saiu de entre um maciço de arbustos situado aos pés da colina e aproximou-se do velho peregrino.
- Diz-me uma coisa, meu bom peregrino - começou ele -, sabes onde é que Will, o Arqueiro, vai ser enforcado esta manhã?
- Meu Deus! - exclamou o velhote, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe começavam a correr pelos olhos. - Então, sempre é verdade, e o desgosto não me abandonará
jamais. Ele é o meu irmão mais novo, de quem tantas saudades tive ao longo destes dez anos, e é para o ver enforcado que regresso!
O homenzinho examinou o peregrino com atenção, como se, por um momento, duvidasse da sua história. Contudo, o seu desgosto era demasiado real e as suas palavras
demasiado sinceras para haver ali lugar para a dúvida.
- Ouvi dizer - prosseguiu o velho peregrino - que ele fugiu para a floresta na companhia do jovem Robin de Locksley... um rapaz corajoso, ousado na linguagem
e de coração nobre, pelo menos quando o conheci. E enquanto atravessava a floresta, tanto pobres quanto vilões me disseram que ele não mudou, tendo fugido por não
conseguir suportar a opressão exercida por uma série de padres orgulhosos e de cavaleiros cruéis. Sempre foi um rapaz cheio de coragem, e o meu coração sentiu-se
feliz ao escutar das bocas rudes contar como ele sempre tratou bem os pobres e os oprimidos. Oh, se ao menos ele estivesse aqui agora! Se soubesse a morte a que
o pobre Will está condenado, apressar-se-ia a socorrê-lo. Junto com alguns dos seus valentes homens livres, não demoraria muito a tirá-lo das mãos daqueles que o
apanharam.
  - É verdade - concordou o homem moreno -, é verdade. Se eles andassem por aqui perto, em breve o libertariam. Mas, meu bom homem, agora fica bem, pois tenho
que ir andando. Obrigado.
E, dizendo isto, o desconhecido, que envergava as roupas grosseiras e cor de ferrugem dos lenhadores, afastou-se e desapareceu de novo entre os arbustos.
Assim que ele desapareceu, escutaram-se vozes elevando-se sobre os sólidos portões de madeira, chapeados a ferro e encimados por rebites, depois do que,
gemendo e chiando, os enormes portões duplos lá acabaram por se abrir, dando passagem a doze homens do xerife, todos eles de espadas desembainhadas. No meio deles
encontrava-se Will Stuteley, firmemente amarrado com cordas, mas ostentando um olhar de desafio e com a cabeça muito direita, apesar dos grilhões que lhe impediam
os movimentos. Atrás, seguia o xerife, envergando o seu traje oficial, e ao seu lado seguia o capitão Bush, um sorriso de triunfo estampado no rosto. Um pouco mais
atrás, via-se um homem transportando uma escada, acompanhado por um pequeno grupo de gente da cidade, sendo que estes indivíduos trataram de seguir os homens do
xerife até à forca.
Uma vez aí chegados, colocaram Will Stuteley por baixo do braço da forca e, a uma palavra do comandante, a escada foi encostada ao poste, enquanto um homem
a subiu, segurando uma corda na mão.
Enquanto tinham lugar estes preparativos, Will deixou o olhar percorrer o espaço vazio que os rodeava. Tivera esperanças de ver as formas dos fora-da-lei
sair da floresta escura que começava no cimo da pequena elevação situada para lá do vale onde se encontrava instalada a forca. Contudo, à exceção de um velho e pobre
peregrino que corria para eles, não se registravam ali quaisquer sinais de vida. O bandoleiro acabou por se voltar para o xerife, que tinha o capitão Bush ao lado.
- Agora, vendo que não me resta qualquer hipótese para além da morte, gostaria que me fosse concedida uma graça - disse ele. - O meu amo nunca viu um dos
seus homens enforcado. Dá-me uma espada para a mão, solta-me e deixa-me lutar com os teus homens até à morte.
Desdenhoso, o xerife voltou-lhe as costas, não se dignando sequer a responder-lhe.
- Podes até ser o primeiro, meu grande velhaco - rosnou o  capitão Bush, dando um passo em frente e batendo com a luva no rosto do fora-da-lei manietado
-, mas a verdade é que me esforcei para que esta forca fosse nova e forte, pois acho que a tua morte nos vai dar sorte e que não vai ser preciso esperar muito para
que a maioria dos teus camaradas conheça a mesma sorte do que tu. Quando eu puser a minha cabeça a trabalhar, o teu amo terá os dias contados. Arranjarei maneira de
acabar com ele de uma vez por todas!
- Não sei quais os motivos que te fazem odiar o meu amo - disse Will, orgulhoso -, mas se ele te fez algum mal, então, foi porque não passas de um velhaco,
disso não tenho dúvidas.
- Não percas tempo a tagarelar com esse ladrão - gritou o xerife, que só se sentiria descansado depois de ver o salteador a balançar na forca, tanto receio
tinha ele dos estratagemas de Robin dos Bosques. - Ajustem-lhe a corda ao pescoço e acabem com ele!
- Sr. Xerife, não deixes que me enforquem - pediu Will. - Ordena que me soltem as mãos e morrerei a lutar, tendo-as apenas a elas como armas. Não peço outra
arma. Deixa apenas que sejam as espadas dos teus homens a acabar comigo!
- Já te disse, patife, que vais morrer enforcado - gritou o xerife, dominado pela fúria. - E se alguma vez o apanhar, acontecerá o mesmo ao teu chefe.
Nesse momento, invadindo o círculo formado pelos homens do xerife, surgiu o velho peregrino, as lágrimas correndo-lhe pelas faces. Aproximou-se do fora-da-lei
e pousou-lhe as duas mãos nos ombros.
- Meu querido Will - disse ele -, lembras-te de mim? Sinto o coração pesado ao ver-te nesta situação. Andei por muito longe, mas sempre ansiei pelo dia em
que voltaria a ver o teu rosto, e agora...
A mão rude do capitão Bush intrometeu-se entre eles e, no momento seguinte, o peregrino estava estendido no chão, semi-inconsciente. O capitão deu-lhe um
pontapé.
- Vocês aí - disse ele -, levem daqui este monte de lixo e atirem-no para aquela fossa!
Contudo, o peregrino conseguiu erguer-se lentamente e, deitando um último olhar a Will, virou-se e foi a coxear até junto do xerife.
- Ele é o meu irmão mais novo, Sr. Xerife - explicou o velhote. - Acabei de regressar da Cidade Santa, e o meu coração ansiava por o ver.
  - Passem a corda em volta do pescoço desse velhaco e tratem de o içar! - gritou o xerife, ignorando o velho peregrino que tremia à sua frente.
- Adeus, meu querido irmão - disse o fora-da-lei. - Lamento que tenhas regressado apenas para me veres a balançar numa árvore. Seja como for, o meu amo vingará
a minha morte.
O capitão Bush voltou-se e, com força, desferiu um murro na boca de Will.
- Ora toma, patife, ladrão e assassino! - gritou ele. - É o que mereces por te estares para aí a vangloriar. Já não falta muito para que seja o teu valoroso
amo em pessoa quem esteja a precisar de ser vingado.
A corda acabou por descer e pousar no solo junto a Will, e o capitão Bush, pegando-lhe, fê-la passar pelo pescoço do fora-da-lei. Este fitou o outro com
uma expressão terrível, ao mesmo tempo que dizia:
- Já te chamei patife, mas se me podes bater assim estando eu amarrado, então, sei que ainda vales menos do que o mais baixo dos ladrões.
Como resposta, o capitão apertou o laço em volta do pescoço de Will e, virando-se, ordenou aos homens do xerife que puxassem a corda que fora passada pela
trave da forca, o que faria com que os pés do bandoleiro se levantassem do chão e ficassem a balançar até que ele acabasse por morrer estrangulado.
- Agarrem a corda, rapazes! - gritou ele, a voz áspera. - Todos!... Um... dois...
A palavra que teria içado Will nos ares não chegou a ser pronunciada. Em vez disso, uma pedra elevou-se nos ares e, a assobiar, atingiu em cheio a têmpora
esquerda do capitão. Soltando um gemido abafado, este caiu como um lenho aos pés do fora-da-lei. Nesse mesmo instante, João Pequeno saltou de entre um arbusto situado
aos pés da colina e, acompanhado de Ket, o Duende, de cujas mãos partira a pedra que derrubara o capitão Bush, ei-lo a correr para junto de Will. Sem perder tempo,
cortou as cordas que prendiam os pulsos do companheiro e precipitou-se para um dos homens do xerife que corria ao seu encontro com a espada erguida, desferindo-lhe
um murro bem no meio do peito, enquanto que, com a outra mão, lhe arrancava a espada.
- Pronto, Will - disse ele, soltando uma gargalhada divertida -, aqui tens uma espada. E, agora, vamos lá defendermo-nos o melhor que sabemos, pois, se tudo
correr bem, já falta pouco para que cheguem os reforços.
Will e João Pequeno viraram as costas um ao outro, e o xerife, já refeito do espanto que lhe causara tudo o que sucedera nos últimos minutos, acabou por
recuperar a voz e, furioso, pôs-se a gritar aos seus homens que agarrassem o vilão que conseguira soltar o prisioneiro.
Uma vez agrupados, os soldados avançaram contra os dois proscritos, animados pelos gritos do xerife, e as suas espadas foram bater nas dos dois homens. Durante
breves instantes, o ataque revelou-se furioso, mas, a dada altura, com um zumbido que fazia pensar em abelhas enraivecidas, três enormes flechas precipitaram-se
contra eles. Uma delas acabou por se espetar no corpo de um soldado que estava junto ao xerife. Este, virando-se, viu que uma multidão de homens vestidos de verde, todos
eles transportando arcos esticados, se dirigia para ali a grande velocidade. À cabeça encontrava-se um sujeito vestido de vermelho, carregando um arco maior que
ele mesmo, e, enquanto corria, ajustava uma enorme flecha que se assemelhava bastante a uma lança.
- Depressa! Depressa! - gritou o xerife. - Vamos embora! Vamos! Vamos!
Tão grande era o medo que tinha de ser atingido por uma flecha que, sem mais delongas, levantou as vestes e correu para os portões da cidade, disposto a
salvar a pele, sempre seguido de muito perto pelos seus homens, à exceção de dois. Um deles não se mexia, pois fora morto pela primeira flecha, e sobre o corpo do
outro encontrava-se ajoelhado Ket, o Duende. Usando a corda que deveria ter servido para enforcar Will, amarrava os braços do capitão Bush, ainda inconsciente.
Robin e os seus homens correram para eles, seguindo-se uma sessão de apertos de mão com Will Stuteley, bem como muitas palmadas nas costas, piadas e palavras
de ânimo trocadas entre eles.
- Já não esperava livrar-me daquela corda - confessou Will, os seus olhos honestos iluminando-se de gratidão enquanto fitava o rosto de Robin e dos camaradas.
- Estava a apertar-me bastante o pescoço, e eu já rezava quando... ah... apareceu aquela pedra. Quem foi que a atirou?
E olhou em volta, esperando uma resposta.
- Fui eu, mestre - disse uma voz vinda de baixo, de onde ninguém esperava que ela viesse. Olhando para baixo, todos viram Ket, o Duende, a finalizar a sua
tarefa.
 - Mestre - disse ele, pondo-se de pé -, não matei este sujeito porque pensei que o preferirias apanhar com vida. Ele já te fez muito mal e estava a pensar
fazer-te mais mal ainda.
Robin deu um passo em frente e examinou o rosto do indivíduo inconsciente.
- Mas trata-se de Richard Illbeast! - exclamou ele. - Ket, meu espertalhão, agradeço-te imenso! Agora, finalmente, é possível fazer-lhe justiça.
Receando que o xerife pudesse pedir ajuda aos cavaleiros que viviam no castelo, Robin não perdeu tempo a dar as suas ordens. João Pequeno foi a correr buscar
um cavalo ao lugar onde o deixara escondido, para o caso de Will vir a precisar dele, e nele colocaram o corpo do caçador de judeus. Depois, com passos rápidos,
os fora-da-lei deixaram o local, e a sentinela, espreitando da sua guarita situada sobre o portão que ele mesmo fechara em cumprimento das ordens do xerife, viu-os
desaparecer na floresta escura e desprovida de folhas que se estendia em frente.
Depois de o bando percorrer muitos caminhos secretos e estar quase no coração da floresta, deste modo quase impossibilitando toda e qualquer perseguição,
Will Stuteley saiu de junto do irmão, o peregrino, com quem estivera a conversar até então, dirigindo-se para junto de Robin. Foi então que lhe contou ter acordado
com Silas que, quando passassem duas horas do meio-dia, ele, acompanhado por outros homens e cavalos, se encontraria com o pai, Reuben, e a irmãzinha, Ruth, num
lugar chamado Hexgrove ou Witchgrave, situado na estrada que seguia para Papplewick. Assim, e como o tempo urgia, Robin chamou Ket, o Duende, e disse-lhe que seguisse
depressa para Barrow Down, onde deveria preparar o velhote e a rapariga para a viagem e conduzi-los a Hexgrove, onde Robin e o seu bando estariam à espera.
Uma vez tendo tratado deste assunto, Robin encaminhou-se para o local indicado, desta feita avançando mais devagar. Por esta altura, já Richard Illbeast
recuperara a consciência, e, ao compreender onde se encontrava, os seus olhos cruéis expressaram com maior eloquência o ódio que havia no seu coração contra Robin
e os demais foragidos. O seu olhar sombrio cravava-se nos rostos que caminhavam junto do cavalo onde ele seguia, amarrado, e a avaliar pelas suas expressões duras,
sabia haver neles tão pouca compaixão pela sua pessoa quanto aquela que teria havido no seu coração caso tivessem sido eles a cair nas suas mãos.
Na qualidade de fora-da-lei experiente, Robin nunca atravessava a floresta sem a companhia de batedores, espalhados um pouco por toda a parte, e este seu
hábito de vigilância contínua recompensara-o com muitas capturas, ao mesmo tempo que o salvara de muitas emboscadas. Quando se encontravam a apenas meia milha de
Hexgrove, um dos batedores apareceu a correr junto a Robin e disse:
- Mestre, Dick, o Vermelho, diz que um homem muito bem vestido, acompanhado de seis arqueiros, vem a descer a estrada a grande velocidade. Chegará às árvores
de Witch ao mesmo tempo do que tu.
Tendo entregue a mensagem, que motivou apenas um aceno de cabeça da parte de Robin, o batedor voltou a desaparecer, disposto a ocupar o lugar que lhe estava
destinado. Robin fez o bando apressar o passo e tratou de deitar uma olhadela à figura de Richard Illbeast, pois queria certificar-se de que ele continuava bem amarrado.
Passado pouco tempo, o grupo de salteadores estava escondido entre os arbustos despojados de folhas que cresciam de ambos os lados do pequeno bosque. Não
demorou muito para que escutassem o bater rápido dos cascos dos cavalos e, uma vez contornada uma curva do caminho, eis que viram aparecer um homem pequeno e de
constituição robusta. Vestia uma rica capa preta, debruada a pele e presa ao ombro direito por um alfinete de ouro onde brilhava um magnífico rubi. Uma pena branca
ornamentava-lhe o chapéu preto, de pele de castor, também ela presa a uma jóia. O cavalo por ele montado era um animal magnífico, ricamente ajaezado. Se pelas roupas
que usava não se pudesse concluir ser o cavaleiro um homem de autoridade e poder, então, a expressão autoritária do seu rosto corado, as sobrancelhas carregadas,
o maxilar forte e os olhos duros bastariam para provar estar este homem acostumado a exercer o poder de vida e de morte. Contudo, tanto o seu rosto como o seu porte
indicavam possuir ele excelentes origens.
Atrás de si encontravam-se seis arqueiros, vestidos com gibões justos, as pernas enfiadas em botas de cano alto que lhes chegavam até ao meio das coxas.
Tratava-se de homens fortes e vigorosos, de olhares perspicazes e um ar de autoridade. O coração de Robin alegrou-se só de olhar para eles. Este tipo de homens corajosos
agradava-lhe bastante e gostava de os ter na sua companhia.
Quando vira o homem ricamente vestido que chefiava o grupo, Robin sorrira para consigo mesmo, já que o conhecia. Depois, ao constatar a velocidade com que
eles se dirigiam para o local onde ele e os amigos se escondiam, não conseguiu evitar uma gargalhada. Quando os cavaleiros se encontravam a cerca de seis metros
de distância, Robin tirou o cavalo de entre os arbustos e conduziu-o até à estrada, pondo-o assim no caminho dos cavaleiros.
Richard Illbeast, virando o rosto para eles, ficou pálido como a morte. Nesse mesmo instante, o chefe dos cavaleiros, tendo imobilizado a montada com a sua
mão pesada, ficou apenas a alguns passos de distância de Robin, e olhando atentamente para o homem que estava amarrado, virou-se para trás e gritou, revelando grande
dureza:
- Aqui está o nosso homem! Agarrem-no! - E apontou para Illbeast que, entretanto, se debatia entre as cordas.
Três dos arqueiros esporearam os cavalos, como se estivessem a preparar-se para deitar a mão ao prisioneiro. Foi então que Robin fez recuar a montada e,
estendendo a mão, disse:
- Calma, bons homens, nada de pressas. Aquilo que aqui tenho é meu, e quando o deixar, de certeza que não é para que outros lhe deitem a mão.
- Como, rapaz?! - exclamou o homem da capa. - Sou secretário do magistrado real. Não sei como foi que capturaste este ladrão e assassino. Sou capaz de apostar
que ele te enganou e em boa hora o atiraste para cima desse cavalo. Contudo, agora é tua obrigação entregar-mo, e garanto-te que ele não se vai divertir nem um bocadinho.
Foram já muitas as vezes em que esteve prestes a conhecer a morte e desta vez não estou disposto a desperdiçar mais palavras, nem contigo nem com ele. Ou será que
queres mais alguma coisa para além de fazer justiça a esse sujeito?
Robin cravou os olhos no secretário do magistrado e riu. Os seis arqueiros ficaram de boca aberta perante semelhante ousadia ou, melhor, descaramento, e
isto da parte de um homem que outra coisa não parecia ser para além de um lenhador pobre. Regra geral, era costume os homens tirarem o chapéu a Sir Laurence de Raby,
secretário do magistrado real, e ajoelhar-se frente a ele com humildade. Porém, este patife atrevido outra coisa não fazia para além de rir.
- Justiça! - exclamou Robin num tom irônico. - Não gosto nada nem das vossas palavras nem dos vossos atos. Toda a justiça que conheço age como se fosse cega,
e, Sr. Magistrado, os teus modos apressados ainda me agradam menos do que a tua justiça lenta. Digo-te que não tocarás neste homem.
- Agarrem o prisioneiro e espanquem o camponês, caso ele resista - gritou o secretário, zangado.
Três dos arqueiros saltaram do cavalo e precipitaram-se para a frente. Quando já se encontravam ao alcance de um braço, Robin levou os dedos à boca e soltou
um assobio agudo. Seguiu-se o som de ramos que se partiam e, no momento seguinte, os três arqueiros recuaram, pois vinte salteadores de aspecto imponente, munidos
de arcos e de flechas de pontas brilhantes, surgiram vindos de ambos os lados da estrada.
O secretário quase explodiu de raiva.
- O quê?! - gritou ele. - Atreves-te a ameaçar o magistrado do rei?! Pois que a sua justiça recaia sobre a tua cabeça, patife, ladrão!
- Calma, meu bom secretário - retorquiu Robin, deixando escapar uma gargalhada. - Sabes bem quem eu sou e sabes que tenho em péssima conta, não apenas o
magistrado real mas também o seu secretário. A vossa justiça! - E riu, desdenhoso. - Que pode ela significar? Algo que se vende aos senhores ricos e aos prelados
de vida ociosa, enquanto os pobres que sofrem subjugados por eles nada conseguem. Achas então que, na nossa bela Inglaterra, caso a justiça fosse mesmo igual para ricos
e pobres eu estaria aqui? Justiça! Essa é boa! Vou dizer-te uma coisa, Sr. Secretário... sei que és um homem honesto e decente, um pouco precipitado e colérico,
é certo, mas justo... exceto quando te contrariam. Porém, digo-te que, caso fosses tão mau quanto alguns dos teus colegas, acabarias enforcado junto a este velhaco
e no mesmo ramo!
A voz do fora-da-lei soava de forma dura e os seus olhos escuros cravaram-se no rosto do secretário. Durante breves instantes, os olhos deste brilharam de
raiva, mas, subitamente, a sua cara desanuviou-se, tendo também ele começado a rir.
- Sei quem tu és, meu grande patife! Conheço-te, Robin, e lamento que um homem tão corajoso se tenha refugiado na floresta.
- Não saias daí, Sr. Secretário - prosseguiu o fora-da-lei -, e verás como aqueles a quem vocês, que se dizem magistrados do rei, consideram bandidos praticam
a justiça. Fazem-no melhor e com maior limpeza do que vocês. - De seguida, virando-se para João Pequeno, ordenou-lhe que tirasse Richard Illbeast do cavalo e o colocasse
junto a um ramo.
Assim que este trabalho foi dado por concluído, eis que entraram em cena Reuben, o velho judeu, e a filha, ambos acompanhados de Ket, o Duende, e quatro
bandoleiros. A rapariga, Ruth, examinou os estranhos que a rodeavam, e os seus olhos acabaram por pousar nas faces perversas de Illbeast. Deixando escapar um grito,
a jovem saltou do cavalo e correu para Robin, caindo de joelhos à sua frente e pondo-se a gritar, deixando escapar uma série de palavras apaixonadas:
- Foi ele quem matou a nossa gente! Oh, salva o meu pai! Salva o meu pai! Não deixes que ele nos faça mal!
De seguida, correu para junto do pai, apertando-o com ambas as mãos, enquanto, com os olhos a faiscar e sem parar de tremer, se virou, desafiando assim o
olhar maldoso de Richard Illbeast.
- Reuben de Stamford! - chamou Robin. - Foi este o homem que viste matar a tua gente, em York?
- Sim - retorquiu o judeu -, foi ele mesmo. Vi como a sua mão matava, não apenas os fortes e os saudáveis mas também os velhos e as mulheres, e até mesmo
(que a sua consciência o atormente por isto) crianças pequenas.
- E quanto a ti, Sr. Secretário? Quais são os crimes que o teu magistrado imputa a este patife?
- Oh, muitos! - respondeu o outro. - Mas basta apenas um para que se monte uma forca. Foi ele quem matou Ingelram, o mensageiro do rei, em Stamford, roubando-lhe
a sua bolsa de ouro. Surripiou um par de esporas da casa onde o rei dormia, em Gisor, na França. Matou um cidadão idoso e já senil de Pentefract, e, quando jurou
que cruzaria o oceano na qualidade de fora-da-lei, sendo seguido pelos filhos do cidadão assassinado, arranjou maneira de se lhes escapar, matando dois e ferindo
um outro. Contudo, os atos por ele cometidos em York ultrapassaram todos os limites, e o meu amo, o magistrado real, ficou muito zangado ao saber que este ex-comungado conseguira
fugir, logo ele, o responsável pela morte e pelo roubo dos leais súditos de Sua Majestade. Mas chega de conversas, Robin! Vamos lá enforcá-lo e acabar com tudo isto!
Richard Illbeast não pronunciou uma só palavra que fosse, mas olhou à sua volta com uma expressão selvagem e velhaca, pois sabia que o sabor amargo da morte,
que tantas vezes dera a conhecer aos outros, saía-lhe agora ao encontro. E foi assim que morreu, sem pedir misericórdia ou compaixão, pois sabia bem de mais que
nunca mostrara qualquer um destes sentimentos àqueles que lhos tinham implorado antes de os matar.
Uma vez concluída a tarefa, o secretário despediu-se de Robin, proferindo palavras sentidas, sussurrando-lhe ao ouvido o seguinte quando caminhava junto
a ele:
- Robin, acredita em mim quando te digo que não são apenas os pobres a ter muitos dos teus atos em boa conta. A tua justiça pode ser selvagem mas, tal como
acontece com as tuas setas, atinge o alvo. Perdoo-te muita coisa por isso.
- Adeus, Sr. Secretário - retorquiu Robin. - Foram poucos os contatos que tive com a tua justiça, mas esse pouco atirou-me para a floresta, como bem o podes
constatar. Contudo, gostaria de te recordar ser teu dever tratar bem os pobres, já que deves ter sempre presente que muitos deles são forçados a praticar atos violentos
porque não encontram justiça quando recorrem àqueles que Deus colocou acima de si.
- Não esquecerei as tuas palavras, meu bom Robin - disse o secretário. - E que eu possa viver para te ver reabilitado pelo rei, a viver a tua vida em paz
e em sossego. Tomara que esse dia não venha longe.
Quando, passado pouco tempo, Silas e os seus companheiros ali chegaram, o velho judeu e Ruth foram entregues aos seus cuidados, tendo Robin mandado doze
homens escoltá-los até à cidade de Godmanchester, onde os judeus passariam a residir no futuro.
Os ecos relativos ao feito de Robin espalharam-se por toda a região. Homens e mulheres puderam voltar a respirar em paz quando souberam que um indivíduo
tão cruel quanto Richard Illbeast fora finalmente morto, e, assim, a fama do fora-da-lei enquanto alguém que praticava ações corajosas e justas aumentou grandemente.



8.
DE COMO ROBIN DOS BOSQUES MATOU O XERIFE

Passara-se um ano e um dia desde que Robin emprestara as quatrocentas libras a Sir Herbrand de Tranmire, e ei-lo outra vez sentado no seu esconderijo, enquanto
os odores ricos dos pastéis, dos capões assados e das costeletas de veado andavam de cá para lá no meio das árvores. A determinada altura, Robin chamou João Pequeno
para junto de si.
- Há muito que lá vai a hora do almoço - disse o chefe dos fora-da-lei - e o cavaleiro ainda não apareceu por aqui para me pagar. Receio bem que Nossa Senhora
esteja de mal comigo, já que não me quer mandar o dinheiro no dia aprazado.
- Deixa-te disso, mestre - retorquiu João Pequeno. - O dia ainda não terminou e sou capaz de jurar que o cavaleiro é fiel e aparecerá por aqui antes que
o Sol se ponha.
- Pega no teu arco - disse o outro - e chama Arthur-a-Bland, Much, Will Stuteley e outros dez homens. Depois, leva-os a passear contigo pela estrada romana
onde, no ano passado, encontraste o cavaleiro. Certifica-te do que Nossa Senhora nos manda. Não sei por que motivo ela há-de estar zangada comigo.
E foi assim que João Pequeno pegou no arco e na espada e, depois de chamar os outros, embrenhou-se com eles nas profundezas da floresta que rodeava o acampamento
dos fora-da-lei. Robin deixou-se ficar ali sentado durante uma hora, ocupado a fazer setas, enquanto, de vez em quando, os cozinheiros lançavam olhares preocupados
em direção aos seus tachos, abanando as cabeças ao constatar que os capões e os bifes ficavam duros e demasiado passados. A certa altura, um batedor fez a sua aparição
em cena vindo da floresta e, aproximando-se de Robin, disse que João Pequeno e o seu bando estavam a chegar, acompanhados por quatro monges, sete cavalos de carga
e seis arqueiros. E, passado pouco tempo, surgiram na clareira as figuras altas de João Pequeno e dos seus camaradas, no meio dos quais se viam quatro monges a cavalo, seguidos
pela respectiva guarda desarmada.
Bastou um olhar na direção do monge que seguia à frente para que Robin soltasse uma gargalhada sinistra. Tratava-se do abade Robert, da Abadia de Santa Maria!
E o monge gordo que estava ao seu lado outro não era que o despenseiro.
- Ora vejam só uma coisa destas! - exclamou Robin. - Sê bem-vindo, Sr. Abade! Nunca pensei que ainda havia de ficar contente por te ver. Rapazes - prosseguiu
ele, virando-se para os que tinham fugido de Birkencar -, aqui está o responsável por todos os males e desgraças que sobre vós se abateram quando eram vilões, a
labutar de sol a sol, ou quando o chicote caía nas vossas costas. Foi ele quem vos obrigou a fugir e a abraçar a vida feliz que há já vários anos levam aqui na floresta.
Chegou a hora de agradecer tamanha simpatia, e quando ele me pagar o que a Virgem Santíssima me deve (pois não duvido que foi ela quem o mandou até aqui para me
pagar a sua dívida), celebrará uma missa para nós e depois nos despediremos na qualidade de grandes amigos.
Contudo, o abade fitava-os com uma expressão sombria, enquanto o despenseiro, gordo e assustado, olhava de um lado para o outro com um ar de tal forma aterrorizado
que os bandoleiros se puseram a rir, divertidos, ao mesmo tempo que, em jeito de brincadeira, lhe faziam toda a espécie de ameaças.
- Vamos, João Pequeno - disse Robin -, vai buscar aquele alforge gordo que está pendurado junto ao despenseiro e conta o ouro e a prata que lá estão.
João Pequeno fez o que lhe era mandado, espalhando o dinheiro na sua manta, em frente ao chefe, e, depois de o contar, anunciou em voz alta a soma total
de oitocentas libras!
  - Ah! - exclamou Robin. - Eu bem te disse, Sr. Abade. Nossa Senhora é a mulher mais honesta que conheço e não me consta que haja outra mais honesta. A verdade
é que não apenas me paga ela o que lhe emprestei, mas fá-lo a duplicar. Sem dúvida que se trata de uma enorme gentileza da sua parte, um ato que merece que aquele
que o protagonizou seja muito bem tratado.
- Que queres dizer com isso, meu ladrão e velhaco?! - gritou o abade, vermelho de raiva e completamente fora de si ao ver tamanha riqueza escapar-se ao seu
controle. - Não passas de um fora-da-lei e de um cabeça-de-lobo, um verme que qualquer homem honrado terá todo o prazer em matar. Que queres tu dizer com essa história
do empréstimo a Nossa Senhora? Não passas de um patife que fugiu das suas terras e cujos feitos cruéis acabaram por te fazer perder tudo o que alguma vez tiveste
na vida!
- Vamos com calma, meu bom abade - pediu Robin. - Não foi assim, sem mais nem menos, que Nossa Senhora me emprestou este dinheiro. A verdade é que ela agiu
como fiadora quando, há um ano, emprestei quatrocentas libras a um certo cavaleiro que passou por aqui e me contou uma história deveras triste a respeito de um determinado
abade cruel e de outros inimigos que o oprimiam. O nome dele, abade, era Sir Herbrand de Tranmire.
O abade estremeceu e ficou muito pálido. Depois, desviou o rosto e mordeu os lábios, envergonhado e furioso ao descobrir que fora Robin dos Bosques quem
ajudara Sir Herbrand, privando-os assim, a ele e aos senhores de Wrangby, da sua vingança.
- Vejo em tudo isto, Sr. Abade - disse o fora-da-lei, falando com severidade -, a mão de uma justiça que, até agora, não sabias sequer que existia. Armaste
tudo para arruinar e desgraçar Sir Herbrand. Ele acabou por me vir parar às mãos (só gostaria de saber se por acaso), e, com a minha ajuda, conseguiu escapar às
tuas conspirações. Quando seguia para casa, três cavaleiros cruéis abateram-se sobre ele. Pertenciam a esse grupo de ladrões que tem o quartel-general em Wrangby.
Dois deles foram mortos, e Sir Herbrand e o escudeiro seguiram o seu caminho em paz e em sossego.
Envergonhado e furioso, o abade não desviava os olhos de Robin, mas optou por não dizer uma só palavra que fosse.
- Não achavas melhor pôr de lado os teus modos cruéis e opressivos, Sr. Abade, e, em vez disso, praticar atos que estejam em maior conformidade com o espírito
d'Aquele que morreu na cruz para redimir os pecados do mundo? - prosseguiu Robin. - Mas agora, rapazes - disse ele, virando-se abruptamente para os seus homens -,
vamos receber os nossos convidados com a hospitalidade típica da floresta, e mandá-los embora com os estômagos bem cheios de um bom veado e de um bom vinho, isto
apesar de os seus alforges poderem estar vazios.
E, de fato, os fora-da-lei esmeraram-se a servir o abade, o despenseiro e os respectivos guardas. A verdade é que o abade não fez grandes honras à hospitalidade
recebida, comendo e bebendo pouco e fazendo-o a contra-gosto, tamanha era a vergonha que sentia ao se ver em semelhante posição. Pensar que ele, o abade de Santa
Maria, um dos prelados mais ricos e poderosos do Yorkshire, fora escarnecido por um fora-da-lei e pelo seu bando de vilões, que agora se sentavam à sua volta, lançando-lhe
piadas, pedindo-lhe que se animasse e comesse o que quisesse! Uma vergonha! Sim, uma enorme vergonha!
Uma vez terminada a refeição, Robin declarou:
- Agora, Sr. Abade, está na hora de nos dizer uma missa. Desde ontem que não assisto a nenhum serviço religioso. É só dizer a missa e depois pode ir embora.
Porém, o abade recusou-se terminantemente a fazer o que lhe pediam, e todos os apelos persuasivos de Robin se revelaram inúteis.
- Pois então que seja - disse Robin, ordenando que lhe levassem algumas cordas. - Nesse caso, amarrem este padre tão pouco religioso àquela árvore - ordenou
ele. - É aí que ele vai ficar até que concorde em realizar o serviço religioso em causa, e mesmo que demore uma semana até que tal aconteça, que ninguém lhe dê de
comer.
Nem todas as orações e súplicas do despenseiro e dos outros monges conseguiram amolecer o coração teimoso do abade, que foi amarrado à árvore como se fosse
um criminoso, cravando os olhos irritados em todos os que o rodeavam. O despenseiro e os outros monges suplicaram-lhe que fizesse o que o fora-da-lei queria, pois
esta seria a forma de saírem quanto antes das mãos dele, mas foi ainda precisa muita persuasão para que o abade acabasse por consentir em se dar por vencido.
Foi com grande respeito que Robin e os seus homens escutaram as palavras sagradas e, no preciso instante em que se ergueram, um batedor apareceu ali a correr
para os informar de que um cavaleiro e um grupo de vinte soldados se estavam a aproximar. Robin adivinhou de quem se tratava e ordenou ao abade que esperasse um
pouco. Quando Sir Herbrand, uma vez que era ele o cavaleiro, entrou no acampamento, depois de desmontar, se dirigiu para junto de Robin, ficou muitíssimo surpreendido
ao ver o rosto do abade junto ao sorridente fora-da-lei.
- Que Deus esteja contigo, meu bom Robin! - disse Sir Herbrand. - E também contigo, Sr. Abade.
- Bem-vindo sejas, honesto cavaleiro - retorquiu o fora-da-lei. - Não duvido que tenhas vindo até aqui para me pagares o que te emprestei.
- É isso mesmo - retorquiu o cavaleiro. - Trago-te ainda uma prenda de pouca monta: cem arcos e duzentas setas de aço.
- Chegaste tarde, senhor - disse o bandoleiro, rindo. - Nossa Senhora, que agiu como tua fiadora, já me enviou um mensageiro trazendo o dobro da quantia
que te emprestei. O nosso bom abade apareceu aqui com oitocentas libras nos alforges, pronto para mas entregar.
- Deixa-me ir embora! - gritou o abade, o rosto vermelho de tão envergonhado se sentia. - Já não suporto mais. Fizeste-me passar por uma grande vergonha
e nunca serei capaz de esquecer o que aqui se passou.
- Nesse caso, podes ir - disse Robin, falando com severidade. - Mas lembra-te de que, se te fiz passar por uma vergonha assim tão grande, tu e os teus lacaios
têm obrigado os pobres a suportar fardos de tal forma pesados que foram muitas as vezes em que eles se viram reduzidos à miséria e à morte.
Sem mais uma palavra, o abade foi conduzido até ao seu cavalo e, acompanhado pelos outros monges e pela sua guarda, abandonou o acampamento e meteu-se pela
estrada que levava à abadia.
Foi então que Robin contou a Sir Herbrand a forma como o abade caíra nas suas mãos, e o cavaleiro comentou:
- Duvido que, para um prelado tão orgulhoso e arrogante como o abade Robert de Santa Maria, uma vergonha tão grande quanto aquela que o obrigaste a passar
não acabe por lhe custar a vida. Mas, e Nossa Senhora é minha testemunha, atendendo às coisas que ele fez, é bem verdade que mereceu passar pelo que passou. Comportou-se
como um tirano durante toda a vida, e os seus inferiores hierárquicos têm-se limitado a imitá-lo.
Robin recusou-se a aceitar as quatrocentas libras que o cavaleiro se preparava para lhe entregar, mas foi com prazer que aceitou os cem arcos e o carregamento
de setas com que o outro o presenteou. Sir Herbrand e os seus homens passaram a noite na floresta, na companhia de Robin, e, na manhã seguinte, com muitas palavras amáveis
e cordiais, lá se separaram eles, o cavaleiro pronto para regressar à sua propriedade e Robin disposto a se embrenhar ainda mais na floresta.
A verdade é que as coisas acabaram por se passar com o abade como Sir Herbrand previra. A vergonha que o tinham obrigado a sofrer afetara-lhe de tal forma
a mente que o seu orgulho nunca mais se recuperou, não voltando ele a ser o homem arrogante de antes. De fato, bastou um mês para que ele adoecesse, tendo continuado
doente durante o resto do ano, até que, quando começou a Primavera, a criatura acabou por morrer de desgosto e de vergonha, pelo menos assim o declararam os irmãos
do abade. E, em seguida, enterraram-no com pompa e circunstância.
Depois, os monges reuniram-se e elegeram um membro da sua Ordem para ocupar o lugar do abade, tendo-o em seguida enviado para Londres para ser formalmente
aceito pelo chanceler-mor de Inglaterra, William de Longchamp, que tinha a missão de governar o país enquanto o rei Ricardo se encontrava na Palestina, a combater
contra Saladino, pela posse do Santo Sepulcro. Porém, o chanceler, pondo em primeiro lugar os seus desejos e os do primo, Sir Isenbart de Belame, rejeitou os homens
escolhidos pelos monges, nomeando antes o seu sobrinho, Robert de Longchamp, para o lugar do abade.
Como seria de esperar, este Robert era um indivíduo feroz e teimoso, e meteu-se-lhe na cabeça que, de uma forma ou de outra, acabaria por capturar Robin
dos Bosques e destruí-lo de uma vez por todas, a ele e ao seu bando. Assim, tratou de conspirar junto com os seus familiares de Wrangby, com Sir Guy de Gisborne
e também com o xerife de Nottingham. Foram muitas as emboscadas, armadilhas e estratagemas por eles preparados, quer na floresta de Sherwood, quer na de Barnisdale.
Porém, Robin era de tal forma cauteloso, os seus batedores mostravam-se de tal forma vigilantes, e tão zelosos se revelavam os vilões que viviam nas aldeias da floresta
no que respeitava a ajudá-lo, avisando-o com antecedência do que se ia passar, que Robin nunca perdeu um só homem que fosse durante todas estas tentativas. De fato,
era com frequência serem os seus inimigos, aqueles que montavam as emboscadas com vista a capturá-lo, que acabavam por cair nas armadilhas montadas pelo fora-da-lei,
escapando-se apenas à custa de muitos homens.
A dada altura, a paz reinou durante vários meses, e alguns dos homens de Robin partiram do princípio de que o xerife e os senhores de Wrangby se haviam cansado
de sofrer derrota atrás de derrota, optando por não os voltar a atacar. Então, um belo dia, quando Robin e Much percorriam a cidade de Doncaster disfarçados de mercadores,
viram um homem cavalgar rumo ao largo do mercado e, tendo imobilizado a montada, gritar:
- Atenção! Atenção! Atenção! Prestem atenção, boa gente, arqueiros, sargentos e soldados, lenhadores, guardas-florestais e todos os homens que saibam manejar
o arco! Fiquem a saber que o valoroso xerife de Nottingham tem uma proclamação a fazer. Os melhores arqueiros do norte estão convidados a aparecer no campo de tiro
de Nottingham, durante a festa de São Pedro, para que possam participar numa competição de tiro. O prêmio é uma excelente flecha, a haste feita de prata, a cabeça
e as penas feitas com o melhor ouro vermelho. Não existe flecha alguma igual a esta em toda a Inglaterra, e aquele que conseguir arrecadar semelhante prêmio será
para sempre conhecido como o melhor arqueiro em todas as terras a norte de Inglaterra que se estendam para lá de Trent. Que Deus guarde o rei Ricardo e o Santo Sepulcro!
Então, fazendo girar o cavalo, o pregoeiro abandonou a cidade, disposto a divulgar a notícia por todas as terras que se espalhavam até à Muralha Romana,
que se estendia desde Carlisle a Newcastle.
- Que pensas tu a este respeito, mestre? - perguntou Much. - Não achas que pode ser uma qualquer artimanha do xerife para te atrair a uma armadilha? Afinal,
ele sabe que não és homem para deixar passar um concurso destes sem ires até lá experimentar o teu arco.
- Não tenho a mínima dúvida de que possa ser essa a sua intenção - disse Robin, a rir. - Ainda assim, iremos até Nottingham, e depois logo se verá se o xerife
se sai melhor no campo de tiro do que na floresta.
Quando regressaram ao acampamento, em Stane Lea, onde os fora-da-lei se encontravam na altura, descobriram não se falar de outra coisa para além da competição,
já que muitos deles tinham escutado o anúncio feito pelos pregoeiros do xerife.
Robin reuniu-se com o seu lugar-tenente, e ficou decidido que a maior parte dos proscritos deveria seguir para Nottingham no dia do evento, entrando na cidade
através dos seus vários portões, como se viessem de muitos lados. Todos deviam transportar consigo o arco e as flechas, mas deviam igualmente estar disfarçados,
uns de vilões ou de rendeiros pobres, outros de lenhadores ou de caçadores da aldeia.
- Pela parte que me toca - disse Robin -, irei com a cara enfarruscada e um gibão esfarrapado, como se fosse um vagabundo, e quero que seis de vocês me acompanhem
quando chegar a hora de disparar. Os outros deverão misturar-se com a multidão, pois, caso o xerife esteja a tramar alguma, há que ter os arcos bem esticados e as
flechas à mão na altura certa.
No dia marcado, que nasceu calmo e luminoso, a multidão que se juntara no campo de tiro era bastante impressionante. Quanto aos alvos, haviam-nos colocado
numa faixa coberta de relva, do lado de fora do portão norte, não muito longe da forca, a mesma de onde João Pequeno salvara Will Stuteley! A norte, para lá das
pequenas encostas, estendia-se a floresta, verde e ondulante, e mais abaixo, nos caminhos que tinham Mansfield e Ollerton como ponto de partida, os viajantes continuavam
a amontoar-se, ansiosos por ver os grandes feitos de tiro com arco, que depressa se tornariam famosos em todo o Norte.
Fora armada uma tribuna perto do local onde os arqueiros deveriam disparar, e era nela que se sentava o xerife, alguns dos cavaleiros do Castelo de Nottingham,
bem assim como outros dos seus amigos. Não muito longe, em pé, viam-se os funcionários do xerife, cuja missão era regular o concurso e anotar as pontuações.
Em primeiro lugar, foi preciso disparar contra um alvo de grandes dimensões. Este encontrava-se a uma distância de duzentos metros, e foram cem os arqueiros
que dispararam contra ele.
Cada homem estava autorizado a disparar três vezes, e todo aquele que não conseguia atingir um determinado aro duas ou três vezes era impedido de voltar
a disparar. De seguida, o alvo foi sendo colocado a distâncias cada vez maiores e, quando se atingiu uma distância de duzentos e oitenta metros, os cem arqueiros
iniciais estavam reduzidos ao número de vinte.
A excitação que se vivia entre a assistência começava a aumentar, e enquanto se procedia à remoção do alvo e à sua substituição por uma espécie de vara,
começaram a ser anunciados os nomes dos favoritos entre os arqueiros que ainda competiam. Dos sete fora-da-lei, um já fora eliminado, restando Robin, João Pequeno,
Scadlock, que se tornara um arqueiro excelente, o filho de Much, o Moleiro, um fora-da-lei chamado Reynold e Gilbert da Mão Branca, que, por estar constantemente
a praticar, adquirira uma enorme perícia.
Logo na primeira leva de tiro, sete de entre os vinte homens a concurso falharam, entre eles Scadlock e Reynold. Depois, a vara foi sendo levada cada vez
para mais longe, até que, quando esta se encontrava a trezentos e sessenta metros de distância, eram apenas sete os arqueiros que ainda restavam, entre eles Robin
e Gilbert. Três dos outros eram arqueiros ao serviço do xerife, o sexto era um dos homens de Sir Gosbert de Lambley, enquanto o último era um homem de idade, os
cabelos brancos, alto e forte, um aspecto feroz, que dissera chamar-se Rafe da Gadanha, um homem livre.
Chegara agora a parte mais difícil da competição, já que era pedido aos arqueiros que disparassem contra uma vara colocada a uma distância indefinida, competindo-lhes
escolher a flecha com que deveriam disparar e também calcular a força com que a brisa soprava.
- E agora, rapazes de Nottingham, mostrem o que valem! - gritou um sujeito entroncado, o pescoço grosso e o rosto vermelho, que estava de pé, junto à cadeira
do xerife. Tratava-se de Watkin, o assistente ou beleguim do xerife Murdach. Fora ele quem ocupara o lugar de Richard Illbeast, e, tal como este, falhara sempre
nas várias tentativas por si levadas a cabo no sentido de capturar Robin dos Bosques. Porém, ao contrário do seu sucessor, nunca vira o rosto do inimigo.
- Força, homens do xerife! - gritou um cidadão misturado na assistência. - Mostrem a estes forasteiros atrevidos que os homens de Sherwood não são para brincadeiras.
- Cala-te! - exclamou uma voz algures na retaguarda. - Os rapazes do Yorkshire fazem com que os cães de Sherwod metam o rabo entre as pernas.
Soou uma corneta, indicando assim que a competição tinha começado, e todos os olhos se cravaram nos arqueiros rivais. Os homens de Nottingham foram os primeiros,
não conseguindo dois deles acertar na vara, tendo a flecha de um ultrapassado a marca, enquanto a do outro ficara aquém da mesma. O terceiro homem acertou em cheio
no topo da vara, e o rugido de triunfo que se seguiu a este feito serviu para mostrar até que ponto a derrota dos dois homens de Nottingham fora sentida.
Chegou então a vez de Robin se colocar na linha de tiro. Trocara o arco enorme que usara para disparar contra o alvo por um outro que pouco mais tinha do
que um metro de comprimento, embora fosse de tal forma grosso que se escutaram algumas gargalhadas, tendo mesmo um jovem proprietário gritado, trocista:
- Será que este vagabundo esfarrapado pensa mesmo que vai conseguir disparar com aquele barrote?
- Põe-te a uma distância de doze passos e vê por ti mesmo! - exclamou uma voz calma algures ali ao lado.
- Olha que, a uma distância de quinze passos, ele é bem capaz de te furar as costelas - disse uma outra voz. - E isto mesmo que tenhas a cota de malha vestida.
Robin, envergando uma túnica e umas calças de malha puidas e esfarrapadas, de cor castanha, e um capuz da mesma cor, ergueu o arco, ajustou a flecha e deixou-se
ficar a olhar para a marca durante muito tempo. O cabelo e a barba estavam agora mais compridos do que aquilo que era costume, estando ambos sujos e despenteados.
Pintara o rosto, servindo-se de um corante vermelho, o que lhe dava o aspecto de um frequentador de estalagens e tabernas, e os homens perguntavam-se como é que
ele conseguira disparar tão bem e aguentar-se durante tanto tempo.
- Mas olha que é um trabalho seco, não é, borracho? - gritou um cidadão bem disposto. A piada fez com que todos se rissem. Quanto ao arqueiro, parecia não
ter reparado em nada e disparou a sua flecha. Todos esticaram os pescoços para ver como é que o tiro corria, e a um murmúrio de espanto seguiu-se uma exclamação
sentida. A vara fora dividida em duas!
- Muito bem, rapaz! - gritou um cidadão bem vestido, dirigindo-se para Robin e dando-lhe uma palmada nas costas. - Deves ter os olhos e a mão bastante mais
firmes do que aquilo que a tua cara deixa transparecer. - E examinou atentamente o rosto do fora-da-lei, e Robin reconheceu-o como sendo um burguês a quem acolhera
certa vez na floresta. O homem sabia quem ele era e, quando se afastou, murmurou o seguinte: - Bem me queria parecer que eras tu. Cuidado com o xerife! Está a preparar
alguma!
E voltou para o seu lugar, bem no meio da multidão. Chegara agora a vez de os outros três dispararem. Rafe da Gadanha falhou a vara por qualquer coisa como
três dedos de distância, enquanto a seta do homem de Sir Gosbert ultrapassou a marca. Seguiu-se-lhes Gilbert da Mão Branca. Com todo o cuidado, calculou a distância
a que a vara se encontrava, escolheu uma flecha cuja pena era completamente lisa e disparou. A seta descreveu um belíssimo arco em direção à vara e, por um momento,
pareceu mesmo estar prestes a acertar na marca. Contudo, uma brisa traiçoeira fê-la mudar de rumo, acabando por cair um pouco mais à esquerda. No entanto, o público aplaudiu-o
entusiasticamente, pois a juventude e o porte distinto daquele rapaz levara-os a simpatizar com ele.
O concurso acabara por ficar reduzido a dois participantes, um homem do xerife, de seu nome Luke, o Vermelho, e Robin. No tiro seguinte, não se registraram
diferenças entre eles, pois ambas as setas acertaram em cheio na vara. Foi então que o xerife se pronunciou:
- Vocês são os dois muito bons, mas só posso dar a flecha de ouro a um. Arranjem uma qualquer forma de mostrar qual de vocês dois é o melhor arqueiro.
- Com a tua licença, Sr. Xerife - disse Robin -, gostaria de propor que não olhássemos para a vara enquanto esta estiver a ser transportada para uma qualquer
distância à tua escolha, e depois, quando nos virarmos, teremos de disparar enquanto alguém conta até três. Então, aquele que partir a vara será considerado o vencedor.
Esta proposta foi acolhida com murmúrios de espanto e uns quantos comentários trocistas. Por outras palavras, aquilo significava que um homem tinha de medir
a distância, escolher a flecha e disparar, tudo isto num espaço de tempo que mal lhe permitia pensar.
- Não te importas de aceitar esta proposta, Luke, o Vermelho? - inquiriu o xerife, dirigindo-se ao seu homem.
Este cofiou a barba cinzenta durante um breve momento e disse:
- Trata-se de um tiro que vi disparar apenas três vezes e só numa dessas vezes se acertou no alvo. Isto aconteceu quando eu ainda era pequeno. Foi o velho
Bat das Pernas Arqueadas, o arqueiro-mor ao serviço de Stephen de Gamwell, quem partiu a vara. Todos foram unânimes em considerar que, na época, ninguém a norte
de Trent se lhe podia comparar. Se conseguires quebrar a vara - disse ele, virando-se para Robin -, então, e isto apesar de teres esse ar de quem não vale nada,
sem dúvida que és o melhor arqueiro que surgiu na região do norte durante os últimos cinquenta anos.
- Oh! - exclamou Robin, soltando uma gargalhada despreocupada. - Estive ao serviço de um bom amo que me ensinou a manejar bem o arco. Ainda assim, a verdade
é que o tiro que propus não é assim tão difícil quanto te parece. Queres experimentar?
- Sim, estou disposto a isso - respondeu Luke, surpreendido com o ar despreocupado do outro. - Mas desde já te digo que não vou conseguir acertar na vara.
Foi então ordenado aos dois arqueiros que se virassem de costas, enquanto um dos homens do xerife corria para a vara e a colocava numa nova posição, a dez
passos de distância. Depois, a uma palavra do xerife, Luke virou-se e, enquanto Watkin, o lugar-tenente, contava devagar: "Um... dois... três!", ele disparou a flecha.
O público susteve a respiração ao ver partir a seta e um gemido desapontado ergueu-se das suas gargantas quando a viram curvar-se para terra e ficar espetada no
solo, cerca de seis passos aquém da vara.
- E agora, gabarola, chegou a tua vez! - gritou o lugar-tenente, o pescoço grosso como o de um touro virando-se para Robin, furioso. De seguida, e muito
depressa, gritou: - Vira-te! Um... dois... três!
A flecha de Robin precipitou-se nos ares ao som da palavra três, e os homens esticaram os pescoços para seguir o seu percurso. E lá foi ela, rápida e certeira,
quebrando a vara em duas. A assistência ficou de boca aberta e depois um enorme grito elevou-se nos ares. A verdade é que, sendo Robin um desconhecido, e ainda por
cima com tão mau aspecto, a maior parte das pessoas antipatizara com ele. No entanto, o seu sentido de justiça levou-os a reconhecer ter ele ganho de forma justa
e correta.
Luke, o Vermelho, aproximou-se de Robin e estendeu-lhe a mão.
- Vales mais do que aquilo que aparentas, arqueiro - disse ele, cravando os seus olhos honestos nos de Robin. - Uma mão tão certeira e um olhar tão arguto
não condizem com o teu ar desalinhado, logo, só podes ser bastante melhor que aquilo que aparentas.
Robin apertou-lhe a mão e devolveu-lhe o olhar, mas não pronunciou uma só palavra.
O som da corneta do xerife indicou ter chegado o momento de se proceder à entrega dos prêmios. Estes eram dez e destinavam-se àqueles que haviam disparado
melhor, tendo em conta determinadas regras, e um a um os homens foram sendo chamados ao assento do xerife, depois do que a mulher deste procedia à entrega do prêmio
em causa. Quando chegou a vez de Robin, este dirigiu-se para o estrado e dobrou o joelho com toda a cortesia em frente à dama. Foi então que o xerife se pôs a falar,
dizendo:
- Revelaste-te como sendo o mais hábil dos arqueiros que hoje aqui dispararam. Caso desejes alterar a tua condição presente e abandonar o serviço do teu
amo, de bom grado te acolherei entre os meus homens. Aproxima-te, arqueiro, e recebe das mãos da minha dama a flecha de ouro que tão justamente ganhaste.
Robin aproximou-se de Dona Margaret e ela estendeu-lhe a flecha de ouro, sorrindo-lhe com simpatia. Ele estendeu a mão para receber o prêmio e os seus olhos
cruzaram-se com os da senhora. Ela empalideceu e abriu a boca, como se estivesse prestes a falar. De seguida, mordeu os lábios, retribuiu a última vênia de Robin
e, no mesmo instante, começou a rir às gargalhadas. O fora-da-lei ficou a saber que ela o reconhecera, mas que não estava a pensar em traí-lo. O fato de o xerife
estar a convidar o fora-da-lei que o fizera passar por uma tamanha humilhação para se juntar aos seus homens era algo que apelava ao sentido de humor da senhora,
daí que não se tivesse impedido de rir a bom rir.
O xerife olhou fixamente para a esposa, cravando depois um ar suspeito em Robin, que se virara e tentava abrir caminho por entre a multidão. No entanto,
tanto homens como mulheres se apinhavam em torno do fora-da-lei, felicitando-o com o bom humor das pessoas simples, fato que impediu Robin de escapar ao olhar do
xerife. Subitamente, este reconheceu algo de familiar nos olhos do outro, levantando-se imediatamente e murmurando qualquer coisa ao ouvido do homem do pescoço grosso que,
voltando-se, viu Robin no meio de uma multidão de homens transportando arcos e que pareciam estar a conversar com ele à medida que se afastavam. Watkin, o beleguim,
deu um salto em frente e tratou de abrir caminho por entre os arqueiros, ordenando-lhes com a sua voz autoritária que se afastassem em nome do xerife. De repente,
os homens viraram-se para ele, tratando de o empurrar com os ombros.
  - Deixem-me passar, seus rufiões! - exclamou ele. - Vou ordenar que vos chicoteiem e marquem com ferros em brasa. Sou Watkin, o beleguim do xerife!
- Deixem-no, rapazes! - disse uma voz clara. Tratava-se de Robin que, deste modo, se dirigia aos homens que se haviam reunido à sua volta.
- Estás preso, Robin dos Bosques, fora-da-lei! Estás preso em nome do rei! - gritou Watkin, embora ainda se encontrasse a alguns passos de distância.
- Pára de berrar, meu touro de cidade! - exclamou João Pequeno, que se encontrava ao lado de Watkin, e, levantando o homem do xerife, o gigante correu com
ele para longe da multidão, e depois, com toda a força, deixou-o cair no chão, onde ele ficou, entorpecido, durante alguns momentos.
Soou uma corneta, clara e estridente. Tratava-se do chamamento dos homens da floresta, e, vindos de todas as partes, os fora-da-lei reuniram-se.
Soou uma outra corneta e os homens do xerife cerraram fileiras, os arcos em riste. Tanto os homens quanto as mulheres que se encontravam no meio das duas
formações fugiram para aqui ou para ali, gritando de medo, e, a uma palavra do xerife, os seus soldados dispararam uma chuva de flechas contra os homens da floresta.
Porém, e no momento seguinte, as enormes flechas dos fora-da-lei responderam ao ataque de um modo de tal forma cerrado, que os homens do xerife, ou pelo menos aqueles
que estavam em condições de correr, trataram de fugir de um lado para o outro em busca de proteção.
Devagar e ordeiramente, os fora-da-lei retiraram, enviando as suas flechas contra os adversários que, sob a liderança furiosa de Watkin, os seguiam de perto,
de abrigo em abrigo. A dado momento, viram um homem sair de junto do xerife e entrar na cidade.
- Aquilo significa, rapazes, que eles vão pedir ajuda ao castelo - disse João Pequeno. - No entanto, basta que cheguemos à floresta para que essa ajuda de
pouco possa servir.
Contudo, a floresta continuava a cerca de um quilômetro e meio de distância e os fora-da-lei não podiam correr. De vez em quando, viravam-se e disparavam
as suas setas contra aqueles que os perseguiam, isto enquanto se empenhavam em se manter a uma distância razoável e tendo o cuidado de não se deixarem atacar pelos
flancos. Subitamente, João Pequeno caiu, soltando um gemido, uma flecha cravada no joelho.
- Receio não poder andar mais, rapazes - disse ele. Robin aproximou-se e examinou-lhe a ferida, enquanto os homens do xerife, vendo que os fora-da-lei se
encontravam parados, trataram de avançar ainda mais depressa.
- Mestre - disse João Pequeno -, pela amizade que me tens, não deixes que o xerife e os seus homens me capturem vivo. Em vez disso, peço-te que desembainhes
a tua espada escura e me cortes o pescoço.
- Nunca! Pela Virgem! - exclamou Robin, e havia mágoa no seu olhar. - Nem por todo o ouro da Inglaterra deixaria que morresses. Vamos levar-te conosco.
- Ora nem mais! - concordou Much. - Nunca deixaria que te visses livre de mim, meu velho patife! - prosseguiu ele. E, dizendo isto, levantou João Pequeno
e colocou-o nas suas costas largas e logo os fora-da-lei se fizeram de novo ao caminho. De vez em quando, Much pousava João Pequeno e, ajustando uma flecha ao arco,
disparava contra os homens do xerife.
Foi então que viram uma enorme companhia de arqueiros a cavalo sair do portão da cidade e semelhante visão fez com que o rosto de Robin endurecesse e se
tornasse sombrio. Não podia esperar embrenhar-se na floresta antes que esta tropa os alcançasse, e, no caso de se verem obrigados a lutar, então, é certo que acabariam
por ser derrotados.
Robin olhou em volta, à procura de uma qualquer saída, mas não descobriu nenhuma. E já os homens a cavalo se aproximavam perigosamente deles, enquanto os
soldados do xerife corriam agora junto aos seus aliados. Eram três os cavaleiros que lideravam as tropas, ao passo que o xerife cavalgava na frente de todos.
Rapidamente, os fora-da-lei trataram de se retirar e, obedecendo às ordens de Robin, precipitaram-se ao longo de um vale que acabaria por os conduzir a um
maciço de árvores, onde ele pensava fazer uma última paragem desesperada. De súbito, e com alguma amargura, lembrou-se de que estava perto do castelo de Sir Richard
de Lee. Sabia que Sir Richard lhe queria bem e que o ajudaria caso ele lhe pedisse, mas, vendo que por ajudar um fora-da-lei Sir Richard perderia as terras e a vida,
Robin soube que teria de efetuar sozinho a sua última fuga, embora estivesse a pouca distância do castelo do amigo.
  Acabaram por chegar ao pequeno bosque e Robin organizou os seus homens e deu-lhes ordens bastante concretas e precisas. Atrás deles erguia-se o castelo
de Sir Richard, mas o fora-da-lei não olhou naquela direção, antes concentrando toda a sua atenção no inimigo, agora cada vez mais próximo. De repente, uma figura
pequenina subiu o bosque a correr e dirigiu-se para junto de Robin. Era Ket, o Duende.
- Mestre - disse ele, ofegante -, mandaram um destacamento contornar Levin Oak para te atacar à retaguarda. Olha, lá vão eles!
Robin olhou, e um desespero amargo invadiu-lhe o coração.
Compreendeu que seria impossível aguentar-se. Nesse preciso momento, um cavaleiro envergando uma armadura saiu do castelo de Richard de Lee a cavalgar furiosamente.
Tratava-se do próprio Sir Richard.
- Robin! Robin! - gritou ele. - Não deves estar à espera de te salvar. Manda os teus homens recuar para o meu castelo. Depressa, homem, caso contrário, tudo
estará perdido!
- Mas se me deres abrigo perderás a vida e as terras! - retorquiu o bandoleiro.
- Pois então que seja! - exclamou o cavaleiro. - Perco-a de qualquer maneira, pois, se aqui ficares, então, eu ficarei do teu lado, Robin, e morrerei junto
a ti.
- Nesse caso, tudo bem - disse o fora-da-lei. - Não haja dúvida de que és um amigo de verdade e por isso aceitarei a tua ajuda, agradecendo-te pela tua enorme
nobreza.
Foi mesmo a tempo que os fora-da-lei alcançaram a ponte levadiça. Retiraram-se ordeiramente, e por pouco quase não conseguiam evitar serem atacados à retaguarda
pelos cavaleiros que os haviam tentado isolar. Mas uma forte chuva de flechas espalhou a destruição entre as suas fileiras mesmo à beira do fosso, e, quando recuperaram,
viram Robin a atravessar por último a ponte levadiça, a qual se pôs depois a gemer e a estalar à medida que ia sendo levantada, colocando assim o abismo constituído
pela água do fosso entre os perseguidores e os perseguidos. Durante um momento, o destacamento de homens armados, chefiado por Watkin, o lugar-tenente do xerife,
ficou a gritar ameaças na direção das muralhas, isto até que uma outra chuva de flechas os obrigou a recuar apressadamente, levando consigo os mortos e os feridos.
Acabaram por se ir juntar ao corpo principal que constituía as forças do xerife, agora imobilizadas a uma distância respeitosa das muralhas do castelo, em cujas
ameias brilhavam elmos de aço por entre os chapéus dos fora-da-lei.
O xerife enviou então um emissário transportando uma bandeira branca, para comunicar a Sir Richard estar ele acusado de abrigar e prestar auxílio a um fora-da-lei,
indo deste modo contra os direitos e as leis do rei. Este comunicado mereceu uma resposta corajosa da parte de Sir Richard que, obedecendo à forma legal, disse estar
disposto a "fazer prevalecer a sua vontade em todas as terras que recebera da parte do rei, visto ser um verdadeiro cavaleiro". Perante isto, o xerife achou por
bem retirar-se, já que não tinha qualquer autoridade para criticar Sir Richard, que só podia ser julgado pelo rei ou pelo seu chanceler.
- Sir Richard - disse Robin, dirigindo-se ao cavaleiro quando este se afastou da muralha depois de transmitir a sua resposta ao xerife -, este é, sem dúvida,
um ato de coragem, e aqui mesmo juro que, independentemente do que me possa acontecer, eu e os meus homens estaremos sempre prontos a te ajudar, não importa como
e quando precises da nossa ajuda.
- Robin - retorquiu o cavaleiro -, não existe no mundo homem a quem eu mais admire, pois és justo e corajoso, e preferia ficar sem as minhas mãos a deixar-te
cair nas do xerife. Seja como for, tenho más notícias para ti. Walter, o administrador de Sir Richard FitzWálter, mandou-me uma mensagem esta manhã dizendo ter o
seu amo falecido, correndo a bela Marian o perigo de ir parar às mãos do mais forte dos cavaleiros da vizinhança, para que possa ser casada com ele e as suas terras repartidas
por todos.
- Por Deus! - exclamou Robin. - Está na hora de cumprir o prometido e trazer a doce Marian para junto de mim. Sir Richard, partirei imediatamente para Malaset
e trarei a bela Marian de volta à floresta. Frei Tuck ficará encarregado de nos casar e depois ela poderá viver em paz, comigo e com os meus alegres companheiros.
Assim, a toda a pressa, Robin escolheu vinte dos seus melhores homens e, mal lhes foram entregues os respectivos escudos, armas e cavalos, que antes se encontravam
escondidos numa série de grutas secretas situadas na floresta, o grupo pôs-se a caminho rumo às charnecas situadas a ocidente, onde, nos belos vales do Lancashire,
se situava o Castelo de Malaset, bem no meio dessas vastas terras.
Foi na tarde do segundo dia que chegaram junto do castelo, indo encontrá-lo fechado, escuro e silencioso. Bastou um toque de corneta para que um homem assomasse
à guarita situada sobre o portão. Tratava-se de Walter, o administrador, e, rapidamente, com a ajuda dos criados, a ponte foi descida, o gradeamento de ferro foi
içado e Robin e os seus homens foram saudados pelo valente administrador, que os recebeu no salão.
- Walter, onde está Lady Marian? - quis Robin saber.
- Pois bem, mestre Robin, não sei! - retorquiu o outro, torcendo as mãos, ao mesmo tempo que as lágrimas lhe inundavam os olhos. - Caso tu não o saibas,
então, a verdade é que estou completamente perdido, pois pensava que ela fugira para junto de ti. Ainda aqui dormiu esta noite, mas, de manhã, foi impossível encontrar
sinais dela onde quer que fosse aqui no castelo!
- Ora aqui está uma coisa dura de ouvir - comentou o outro, o desgosto estampado nas faces. - Achas que um qualquer senhor ou um parente mais atrevido a
poderia ter raptado?
- Há três dias, quando o meu senhor foi colocado na sua sepultura, lá na igreja, estiveram aqui vários - respondeu Walter. - Mas, servindo-se da sua presença
de espírito e da sua língua afiada, a minha senhora a todos falou com delicadeza e a todos mandou embora com a promessa de que seria ele o parente a quem ela procuraria
assim que o desgosto diminuísse de intensidade. E ontem esteve aqui o sacristão da Abadia de Santa Maria. Vinha comunicar uma ordem da parte do chanceler do rei,
o próprio William de Longchamp, o Sr. Bispo de Ely, exigindo-lhe que se entregasse (bem como a todas as suas casas) sob a custódia do rei, dizendo-lhe também que
Sir Scrivel de Catsty chegaria amanhã, pois fora nomeado pelo rei para servir como administrador e para a proteger do mal.
- Scrivel de Catsty! - exclamou Robin, zangado. - Scrivel, o fantoche, pois outra coisa ele não é para além de um vulgar ladrão ao serviço de Isenbart de
Belame! Estou a compreender tudo! O novo abade de Santa Maria conseguiu que o tio, o chanceler, fizesse tudo isto, e sob a cobertura de administrador dos direitos
do rei vai acabar por entregar tudo nas mãos dessa gente malvada de Wrangby. Mas agora está na altura de ir ver o que sucedeu a Marian, e quanto mais depressa, melhor!
  No dia seguinte, e durante vários dias, Robin e os seus homens percorreram as charnecas do Lancashire ao longo de muitos quilômetros, perguntando aos pobres,
aos vilões, aos pedintes e aos vagabundos que percorriam a estrada se haviam visto uma donzela alta, de cabelo castanho, de porte altivo e majestoso, passar junto
a eles, quer sozinha quer na posse de um bando de cavaleiros ou de soldados. Porém, tudo foi em vão. Ninguém vira semelhante donzela, e, ao fim de uma semana, Robin
estava desesperado.
Entretanto, recebera uma mensagem de Walter, dizendo que Scrivel de Catsty, acompanhado de cem homens, tomara posse do castelo, ficando furioso ao tomar
conhecimento do desaparecimento de Lady Marian. E também ele se encarregara de a mandar procurar por toda a parte. Tudo isto fora feito com uma sinceridade tal,
que Walter estava convencido que nem ele nem os senhores de Wrangby tinham nada a ver com o rapto de Marian: ou ela fugira sozinha ou fora levada por algum dos seus
familiares.
Profundamente entristecido, Robin acabou por virar a cabeça do seu cavalo na direção de Barnisdale, e foi com os corações pesados que ele e os seus homens
cavalgaram até ao acampamento junto a Stane Lea, onde chegaram numa bela manhã em que o sol brilhava suavemente, as aves cantavam nos seus ramos e tudo parecia claro
e luminoso. Robin ainda mal se instalara quando lhe chegou aos ouvidos o som de cascos de cavalos aproximando-se rapidamente vindos do sul, depois do que, por entre
as árvores, viram surgir a figura de uma dama cavalgando velozmente naquela direção, tendo uma outra senhora a segui-la. O fora-da-lei levantou-se imediatamente
e, durante breves instantes, a alegria invadiu-lhe o coração, pois pensava poder tratar-se de Marian! Contudo, não demorou muito a compreender tratar-se antes da
esposa de Sir Richard de Lee.
Quando esta senhora se aproximou dele, Robin cumprimentou-a com cortesia, pousando o joelho no chão durante um momento. A dama estava profundamente agitada
e custava-lhe respirar.
- Que Deus esteja contigo, Robin dos Bosques - saudou ela -, e com toda a tua companhia. Venho pedir-te um favor.
- Pede o que quiseres, senhora - disse Robin -, pois por ti e pelo teu marido sou capaz de tudo.
- É justamente por ele que venho interceder. O xerife capturou-o... Há cerca de uma hora, o meu marido pegou nos falcões e foi caçar para junto do rio que
corre perto da sua cabana de caça, em Woodsett. Foi então que o xerife e os seus homens saíram da floresta e o capturaram. Amarraram-no a um cavalo e ele vai neste
momento a caminho de Nottingham. Caso não te apresses, não duvido que ele será morto dentro em breve ou, então, acabará os seus dias no cárcere.
- A Virgem é minha testemunha em como o xerife vai pagar por isto! - exclamou Robin, e a sua ira não podia ser maior. - Senhora - prosseguiu ele -, fica
aqui com a tua dama de companhia até ao nosso regresso. Se não trouxermos o teu marido conosco, então, é porque eu não regresso com vida.
Pegou na corneta e emitiu uma série de sons curiosos, os quais ficaram a ressoar pela floresta, permitindo assim que os batedores e as sentinelas espalhadas
num raio de um quilômetro e meio os pudessem escutar por entre as árvores. E ei-los a precipitarem-se para Stane Lea. Uma vez reunidos, formaram-se sete filas de
homens. Segurando os arcos entre as mãos, ficaram à espera que o chefe falasse. Este permaneceu em pé junto à dama que se sentava no seu palafrém, e, pela forma como
os seus olhos brilhavam, era possível compreender que ele estava muito comovido.
- Rapazes! - gritou. - Aqueles que estiveram comigo no torneio de tiro em Nottingham sabem como o corajoso marido desta dama se portou para conosco, salvando-nos
de uma morte certa. No entanto, agora foi ele a ser capturado pelo xerife que, sabendo estar eu longe de Barnisdale, se aventurou a penetrar nos caminhos da floresta,
que são os nossos, capturando Sir Richard na localidade de Woodsett, onde o cavaleiro tem uma coutada. E pronto, rapazes. Pela parte que me toca, vou salvar o cavaleiro
e enfrentar o xerife. Quem é que me acompanha?
Todos os fora-da-lei que compunham aquela multidão ergueram o arco, sinal de que se ofereciam como voluntários, ao mesmo tempo que uma espécie de rugido
se erguia nos ares. A impaciência por eles demonstrada levou Robin a esboçar um sorriso.
- Agradeço-vos, rapazes, mas não podem ir todos - disse ele. - Como o xerife está acompanhado por uma força poderosa, levarei comigo oitenta homens. Os outros
deverão ficar aqui, de guarda ao acampamento e à esposa de Sir Richard.
As coisas não demoraram muito a ficar prontas e, sem fazer barulho, o bando encabeçado por Robin embrenhou-se na floresta e, avançando com rapidez, dirigiu-se
para sudeste, rumo à estrada por onde o xerife teria de passar quando regressasse a Nottingham. Os espiões do xerife tinham ficado a saber que Robin desaparecera
de Barnisdale, e que João Pequeno, que continuava incapaz de se mover devido à ferida que tinha no joelho, fora encarregue de chefiar o acampamento. Assim, ao ouvir
que Sir Richard abandonara o seu castelo em Linden Lea, dirigindo-se para uma coutada nos arredores de Barnisdale, o xerife calculara ser aquela uma boa oportunidade para
capturar o cavaleiro e, deste modo, cair nas boas graças do bispo de Ely, o chanceler do rei, que ficara furioso quando tomara conhecimento do modo como o cavaleiro
salvara Robin, deste modo desafiando a lei.
E agora, uma vez capturado o cavaleiro, o xerife mostrava-se ansioso por abandonar aquela vizinhança pouco segura, uma vez que receava o regresso de Robin
dos Bosques a todo o momento. Foi este medo que o levou a exigir o máximo dos seus homens, e enquanto ele cavalgava ao lado de Sir Richard que, para maior segurança,
estava muito bem amarrado ao cavalo, a companhia composta por cinquenta soldados via-se forçada a caminhar, e, naquele dia quente de Verão, o calor e o esforço exigido
pelo xerife faziam-nos suar e sofrer terrivelmente.
Tendo chegado à cidade de Yorksop, que ficava a meio do caminho, o xerife não permitiu que se ficasse mais tempo frente à estalagem principal do que o estritamente
necessário para que cada homem pudesse beber uma garrafa de vinho tinto, não deixando que ninguém descansasse à sombra do enorme castanheiro que derramava a sua
sombra escura e agradável para a estrada. E ei-los outra vez a marchar, os pés erguendo nuvens de poeira que, ainda não fora percorrido um quilômetro e meio, lhes
voltaram a secar as gargantas.
Acabaram por entrar no arvoredo denso e nas colinas da floresta de Clumber, o que fez com que o xerife se sentisse mais descansado, não abrandando, no entanto,
o passo a que seguia. Contudo, e à sombra dos carvalhos e castanheiros, os homens cansavam-se menos, avançando de melhor vontade.
Havia uma colina bastante íngreme, chamada Hagger Scar, na estrada que se estendia frente a eles, e era por esta colina que subiam, cheios de calor, quando,
subitamente, escutaram uma voz que se lhes dirigia com dureza:
- Parem! - ordenou essa voz, e, nesse mesmo instante, quando os soldados olharam em volta, viram que de ambos os lados da estrada se encontravam arqueiros
com as cordas dos arcos esticadas, as setas brilhantes apontadas contra os seus peitos. Toda a companhia se imobilizou e, em voz muito baixa, os soldados trataram
de expressar a sua indignação.
Vindo da floresta, a cerca de dez passos do xerife, surgiu Robin, o arco a postos e uma expressão feroz no rosto.
- Muito bem, xerife - começou ele -, ouviste dizer que eu estava longe e logo trataste de capturar o meu amigo. Mas garanto-te que terias feito muito melhor
caso se tivesses ficado dentro das muralhas da tua cidade. Garanto-te que decidi deixar de te poupar! Há já sete anos que não tinha de correr tanto como o fiz esta
manhã, e posso garantir-te que isto não significa nada de bom para ti. Diz as tuas últimas orações, uma vez que é chegada a tua hora.
Agora que sabia ter chegado a sua última hora, o xerife decidiu mostrar-se corajoso.
- Seu cabeça-de-lobo sem eira nem beira! - gritou ele. - O chanceler é bem capaz de arrancar todas as árvores que existem na floresta só para te castigar
por este ato! Eu...
Não pôde dizer mais nada. A flecha disparada por Robin penetrou na cota de malha que o homem usava, o que fez com que acabasse por escorregar da sela para
o chão. Estava morto. Depois, o fora-da-lei aproximou-se do cavaleiro, cortou-lhe as cordas e ajudou-o a descer do cavalo.
- E agora - disse ele, falando para os homens do xerife -, deponham as armas!
Quando eles cumpriram esta ordem, Robin ordenou-lhes que avançassem, pegassem no cadáver do chefe e seguissem o seu caminho. Os soldados obedeceram e não
demorou muito para que aquela companhia de cinquenta homens desarmados e com os corações a sangrar por terem sido tão completamente derrotados pelo corajoso fora-da-lei,
desaparecesse sobre a crista da colina.
Virando-se para o cavaleiro, Robin disse:
- Sir Richard, bem-vindo à floresta! A partir de agora, vais ser obrigado a permanecer junto a mim e aos meus homens e a aprender a caminhar na lama, no
musgo e nos caminhos cheios de fetos. Lamento que um cavaleiro se tenha visto obrigado a entregar o castelo que lhe pertence aos seus inimigos e a fugir para a floresta,
mas às vezes não se pode mesmo fazer outra coisa.
- Agradeço-te do fundo do coração, Robin - disse o cavaleiro. - A verdade é que me salvaste da prisão e da morte. Quanto a viver na floresta contigo e com
os teus homens, não desejo vida melhor, pois não conheço homens mais generosos.
  E lá seguiram eles por entre as árvores. O Sol ainda ia alto quando o cavaleiro e a esposa se reuniram, tendo a senhora ficado muitíssimo feliz e grata
para com Robin, por este lhe haver restituído o marido.
Preparou-se um banquete e Sir Richard de Lee e a respectiva dama foram tratados com a máxima das cordialidades, tendo eles dito que, embora tivessem perdido
o castelo e as terras, nunca se haviam sentido tão felizes como naquela primeira noite passada na floresta na qualidade de proscritos.
Quando o acampamento se viu envolto pela sonolência, não se registrando outro som para além do estralejar dos últimos ramos que ardiam nas fogueiras e o
rumorejar do vento nas árvores, ou o murmúrio do riacho que corria ali perto, Robin embrenhou-se na floresta escura. Sentia-se muito infeliz e preocupado pelo desaparecimento
da bela Marian. Imaginava-a prisioneira nalgum castelo, ansiando pela liberdade, oprimida pelas exigências de um qualquer parente tirânico ou de um qualquer outro
cavaleiro ladrão que a tivesse capturado devido ao rico dote que receberia quando casasse.
Assim, dominado por estes receios, Robin decidiu percorrer a floresta e dirigir-se até às colinas verdes onde viviam Ket, o Duende, e Hob da Colina, pois
queria saber se qualquer um destes pequenos homens tivera notícias de Marian. Assim que tomara conhecimento dos perigos que a sua senhora corria, quando chegara
ao castelo de Sir Richard, apressara-se a enviar Ket, o Duende, para Malaset, para a vigiar, mas não voltara a saber nada do duende, e este silêncio inquietava-o bastante.
Apesar de os caminhos da floresta estarem mergulhados na maior das escuridões, Robin não teve quaisquer problemas em os percorrer, e depois de saudar e deixar
para trás o último dos batedores, muito vigilante no seu posto, continuou a avançar com a rapidez e a ligeireza de um animal selvagem. Foi deste modo que percorreu
muitos quilômetros, até que percebeu estar a aproximar-se de Twinbarrow Lea, assim se chamava a clareira onde se encontravam as casas verdes dos seus pequenos amigos.
Foi com todo o cuidado que se aproximou dos limites da clareira e espreitou por entre as folhas da árvore que se encontrava junto a si.
De onde se encontrava, e estando os seus olhos habituados à escuridão, podia ver claramente os dois montículos verdes, já que a vertente que ele podia contemplar
era aquela que mais próximo da floresta se encontrava. Tudo parecia estar contido no silêncio da noite. Apenas o vento abanava a erva comprida ou murmurava por entre
as árvores. Lá longe, do outro lado da clareira, erguiam-se os gritos distantes de um mocho ocupado a caçar, os quais soavam como uma espécie de pergunta interminável:
Hoo-hoo-hoo? Ali perto, escutou passos furtivos e, virando a cabeça, pôde ver a forma esguia de um lobo parado mesmo junto à orla da floresta, a cabeça levantada
numa tentativa de melhor cheirar os odores que a brisa lhe levava. De súbito, uma série de passos apressados soou no meio dos arbustos que ficavam na retaguarda,
seguidos por um grito breve, e depois o silêncio voltou a imperar. Um gato bravo acabara de matar uma lebre. O lobo desapareceu na direção do som, determinado a
roubar a presa ao gato. A aproximação do primeiro animal foi saudada com um miado longo e algo diabólico, e Robin ficou à espera de ouvir a fúria da batalha elevar-se
nos ares no momento seguinte, quando o lobo e o gato bravo se envolvessem num combate mortal. Contudo, o miado acabou por morrer. O lobo optara por declinar o combate.
Olhando atentamente na direção da colina, Robin apercebeu-se de uma forma escura junto do flanco que ficava mais distante, forma esta que parecia a figura
estendida de um homem. Robin sabia que era neste monte que os irmãos moravam, e perguntou-se se Ket e Hob aí estariam. Ainda pensou em soltar o pio do noitibó, que
era o sinal por eles combinado para a noite, mas eis que, de repente, a figura se começou a mover furtivamente. Robin examinou-a com atenção. Sabia não poder tratar-se
de nenhum dos irmãos, uma vez que a forma era demasiado grande para isso e avançava muito devagar, rumo ao topo do monte.
Robin percebeu então que se tratava de um inimigo tentando espiar o local onde os dois irmãos viviam. Interrogou-se sobre a possibilidade de se tratar de
um dos seus homens, e bastou semelhante ideia para o deixar furioso. Dera sempre ordens para que ninguém se aproximasse das colinas ou tentasse impor a sua companhia
ao povo pequeno. Caso se tratasse mesmo de um dos seus fora-da-lei, então, este pagaria um preço muito alto pelo que estava a fazer.
Nesse momento, já a figura estava quase a chegar ao cimo do monte, e Robin deu em silêncio uns quantos passos em frente, disposto a abordar o homem e a ordenar-lhe
que desaparecesse. Subitamente, recortando-se contra o céu, eis que a figura minúscula de um homem saltou do topo da colina, precipitando-se sobre a forma que Robin
vira em primeiro lugar. Durante um momento, esta pareceu surpreendida e quase se ergueu. Contudo, foi de novo arrastada para o solo, e ambas as figuras se envolveram
num combate mortal. Robin correu encosta acima, na direção dos dois lutadores e, ao aproximar-se, viu faiscar as lâminas de duas facas. Escutou a respiração ofegante
dos dois homens que lutavam na vertente íngreme e escorregadia do monte. E eles viravam-se nesta ou naquela direção, perdendo o equilíbrio neste momento, para o recuperar
no momento seguinte. Assim que chegou junto a eles, Robin constatou tratar-se de Ket, o Duende, e um dos seus fora-da-lei. Nesse momento, Ket empurrou o outro homem,
este caiu, rolando como um tronco ao longo da encosta, e ficou estendido no fundo desta, imóvel, sem se mexer.
- Que é isto, Ket? - quis saber Robin. - Será que algum dos meus homens quis entrar à força na tua casa?
- Ele não era um dos teus homens, mestre - respondeu o homenzinho ofegante, ao mesmo tempo que, com a mão, tentava estancar o sangue que jorrava de uma ferida
no seu ombro. - É um espião que me anda a seguir nos três últimos dias, mas que já não está em condições de continuar a espiar.
Desceram juntos a colina, e Ket virou o cadáver do homem. Apesar de o corpo estar vestido como se fosse um dos seus homens, Robin só teve de lhe olhar para
o rosto para perceber que não era um dos seus fora-da-lei.
- Mas onde é que ele foi buscar roupas com este verde? - inquiriu Robin dos Bosques.
- Matou um dos teus homens (chamava-se Dring, o coitado) perto de Brambury Burn - respondeu Ket - e tirou-lhe as roupas para poder espiar à vontade.
- Pobre rapaz! - exclamou o outro. - Dring sempre nos foi fiel. Mas que andavas tu a fazer em Brambury Burn? Tendo em conta a missão de que te incumbi, parece-me
que foste muito para norte. A propósito, como é que têm corrido as coisas? - quis ele saber, ansioso, perguntando-se se Ket lhe tinha alguma coisa a dizer.
- São muitas as coisas que tenho para te contar, mestre - disse o outro. - Mas o melhor é entrares comigo no monte, e eu ponho-te a par de tudo enquanto
ligo a ferida.
E seguindo atrás de Ket, Robin subiu o flanco daquele enorme monte. Estivera uma vez em casa de Ket e sabia que a entrada não se processava por uma porta
lateral, demasiado pequena para dar passagem a um homem de tamanho normal, mas sim pela chaminé, que podia ser dilatada ao ponto de lhe dar passagem. No cimo da
elevação havia um buraco escuro, e foi por aí que Ket desapareceu, não sem antes pedir a Robin que esperasse até que ele lhe viesse iluminar a passagem.
Não demorou muito para que, iluminado por um archote, Ket aparecesse ao fundo do buraco, cujas paredes laterais eram construídas com pedras. Tirando uma
aqui, outra ali, Ket fez com que a abertura aumentasse de largura, e Robin, ora escorregando, ora avançando passo a passo, desceu pela chaminé inclinada. Faltava-lhe
ainda descer uma outra passagem do mesmo gênero, mas finalmente lá acabou por se ver no chão da sala da casa de Ket, com Hob, a mãe e as duas irmãs de ambos. À luz
do archote do duende, que este tratou de prender entre duas pedras, Robin viu que as paredes da divisão eram feitas com pedras, todas elas muito bem arranjadas,
colocadas umas por cima das outras sem a ajuda de cimento, de forma que o compartimento acabava por se assemelhar a uma colmeia, correspondendo a sua altura a cerca
de dois metros.
Depois de Robin ter ajudado Ket a ligar a ferida profunda que o seu ombro direito exibia, bem como um ou dois golpes no braço, o homenzinho, com um ar satisfeito
e feliz, ergueu os olhos para o amigo e disse:
- Se prometeres não fazer barulho, mostro-te um tesouro que descobri não há muito tempo.
- Ket! - exclamou Robin, ansioso. - Será que encontraste mesmo a minha querida senhora? Oh, meu bom amigo!
Como resposta, Ket fez sinal a Robin para que o seguisse até uma parte da divisão que se encontrava separada do resto por um cortinado de arrás, o qual em
tempos devia ter adornado o salão de um qualquer senhor. Espreitando por ele, Robin viu uma manta espalhada sobre uma cama feita de fetos perfumados, e em cima dela
encontrava-se Marian, dormindo a sono solto, tal como se estivesse entre os lençóis de linho da sua cama, em Malaset. A seu lado via-se a forma pequena e esguia
de uma das irmãs de Ket, o cabelo escuro e a pele clara contrastando vivamente com os caracóis avermelhados e a pele bronzeada de Marian. O fora-da-lei deixou-se
estar durante muito tempo a contemplar o rosto da sua amada, até que, a dado momento, Ket o despertou com um murmúrio:
- Não olhes para ela assim com tanta intensidade, caso contrário os seus olhos acabarão por se abrir e procurar os teus!
Em silêncio, Robin e Ket afastaram-se até ao canto mais recuado da sala, tendo Ket dado início à sua narrativa.
- Quando me mandaste vigiar Lady Marian e esperar pelo teu regresso - disse Ket, o Duende -, cheguei ao castelo da floresta de Malaset ao fim da tarde e,
quando ninguém me estava a ver, tratei de me esgueirar lá para dentro. Fui encontrar Lady Marian no seu quarto, decidida a procurar refúgio junto de ti, sem dizer
nada a ninguém, pois não queria que Walter, o administrador, ou a sua gente, viessem a sofrer algum castigo por a terem ajudado a fugir. Implorei-lhe que esperasse
por ti, mas ela ansiava por se encontrar na floresta e não quis esperar. Utilizamos uma passagem secreta para sair do castelo, o que aconteceu ao nascer do dia,
e dirigimo-nos para as terras pantanosas. Mestre Robin, a tua senhora sabe muito bem orientar-se na floresta, embora tenha muita pressa em agir. Como receava que
os seus inimigos pudessem estar a espiar o castelo, não quis que seguíssemos juntos, pois, segundo ela disse, se fôssemos os dois apanhados ou eu fosse morto, não restaria
ninguém para te pôr ao corrente do sucedido. Assim, lá nos fizemos nós ao caminho, que acabaria por nos levar até ti, mas ainda não tínhamos percorrido três quilômetros
quando, em Catrail Ring, cerca de vinte homens saltaram de entre os espinheiros e a agarraram. Quanto a mim, foi a custo que consegui escapar, pois eles não acreditavam
que a senhora pudesse estar sozinha e tudo fizeram para me encontrar. Tratava-se de soldados pertencentes ao senhor de Thurlstan, que, como bem sabes, é um parente
próximo do De Wrangby.
"Tinham um aspecto feroz e caras de poucos amigos, e nem sempre se mostraram simpáticos para com a minha senhora, o que me levou a, por mais de uma vez, me
sentir tentado a espetar uma seta no pescoço de Grame Gaptooth, o chefe. Colocaram-na num cavalo de reserva que estava escondido, junto com outros, perto do Ring,
no mesmo lugar onde eles se haviam deitado e vigiado o castelo situado cá em baixo, no vale. Segui-os durante todo o dia, e foi bastante dura a viagem. Avançavam muito
depressa através da charneca e dos descampados, e foi-me difícil acompanhá-los servindo-me apenas dos meus dois pés."
"Chegaram a Grames Black Tower, junto à Muralha, nessa mesma noite, e, quando escutei o portão fechar-se, bem, o coração caiu-me aos pés, pois, como sabes,
aquele torreão é um lugar assustador, e nele não se penetra com a mesma facilidade com que se corta um queijo. No dia seguinte, dois emissários seguiram a cavalo
para o sul, e eu soube que a missão deles era informar aquele cruel Isenbart que a tua querida senhora se encontrava em seu poder, podendo deste modo atacar-te por intermédio
do que te é mais querido. Passei dois dias a rondar aquela torre negra, procurando arranjar um modo de nela entrar e depois sair acompanhado da minha querida senhora.
Na tarde do terceiro dia, os cavaleiros regressaram acompanhados de outros, e estes eram homens de Sir Isenbart, chefiados por Baldwin, o Assassino, e que queriam
atirar a minha senhora para os calabouços de Wrangby."
"Como bem sabes, mestre, nós, os do Povo Pequeno, temos muitos segredos e costumes estranhos, e também alguns poderes desconhecidos, e sabemos como quebrar
e passar para lá das coisas duras. Aconteceu o mesmo neste caso, e com a ajuda daquilo que sei, consegui descobrir a parte fraca daquele torreão fortíssimo. Estou
convencido, mestre, de que não existe um castelo onde eu não possa entrar, por muito alto e forte que ele possa ser. Basta que eu nele queira entrar. E, assim, lá
entrei eu naquela torre, era já noite cerrada, e depois conduzi a minha corajosa senhora para fora da muralha. Contudo, antes de sair, fiz questão de deixar a minha
marca nuns quantos indivíduos que ali dormiam, uma marca de tal forma pesada que eles não mais se voltarão a levantar para cometer outros atos perversos. Durante
o dia, enquanto eu tentava arranjar comida para os dois, ela permaneceu escondida. Foi então que, perto de Brambury Burn, encontrei o jovem Dring, e ele logo se
mostrou ansioso por te encontrar e te dar a boa-nova. Aquele patife que agora está morto lá fora viu-me a conversar com Dring e, sabendo que sou teu amigo e estando
ansioso por conquistar os favores dos senhores de Wrangby, matou Dring, vestiu as suas roupas e seguiu-me. Cheguei aqui há cerca de quatro horas, e desde então que
a minha senhora outra coisa não faz para além de dormir.
- Deixa-a dormir, rapaz - disse Robin -, já que ela deve estar mesmo a precisar de o fazer. Nunca te hei-de conseguir agradecer o suficiente, meu bom Ket
- prosseguiu ele -, por a teres trazido até aqui sã e salva. Qual será a melhor forma de te recompensar?
- Mestre - retorquiu Ket -, entre nós não há qualquer necessidade de falar em recompensas. Eu e os meus devemos-te a vida, e tudo o que fazemos, eu e tu,
fazêmo-lo em nome da amizade que sentimos um pelo outro, não é verdade?
- É sim - concordou Robin, depois do que, em silêncio, apertaram as mãos, renovando assim a lealdade que sentiam um pelo outro.
Nessa noite, Robin dormiu na encosta dos duendes, num leito de fetos, tendo Ket a seu lado, e, na manhã seguinte, grande foi a alegria de Marian ao acordar
e descobrir que Robin estava ali. Muitas foram as palavras carinhosas por eles trocadas, tendo os dois prometido não se voltarem a separar enquanto vivessem. E nesse
mesmo dia, Robin foi ter com Frei Tuck para lhe pedir que se preparasse para os casar.



9.
O REI RICARDO CONHECE ROBIN

Quando a notícia de que Robin, o fora-da-lei, se casara com Marian FitzWalter, herdeira das vastas terras de Malaset e protegida do rei, se espalhou pela
região, houve quem se interrogasse sobre se ele podia ser assim tão ousado ao ponto de desafiar o próprio rei, enquanto outros se mostravam satisfeitos por Robin
se ter mostrado tão corajoso, enfrentando o poder dos prelados e o orgulho dos senhores.
Durante algum tempo circularam rumores de que William de Longchamp, o chanceler do rei, se estava a preparar para enviar um exército muito poderoso para
as florestas de Clipstone, Sherwood e Barnisdale, para esmagar e destruir de uma vez por todas aquele fora-da-lei ousado e insolente. Constou que os exércitos deviam
partir das fortalezas de Nottingham, a sul, de Tickhill e Lincoln, a leste, de Peak, a ocidente, e de York, a norte, e que deveriam varrer a floresta, deixando atrás
de si os cadáveres dos fora-da-lei cravados de flechas ou a balançar nas árvores.
Contudo, não foi nada disto que aconteceu. De fato, não foi preciso esperar muito para que, devido ao seu orgulho e à forma como oprimia os fracos, William
de Longchamp fosse expulso do reino, e os Castelos de Nottingham e Tickhill acabaram por ir parar às mãos do duque João, o irmão do rei. Aconteceu também que, nos
três anos que se seguiram, nobres e prelados entregaram-se às suas disputas e questiúnculas, sobrando-lhes pouco tempo para se recordarem dos feitos atrevidos de
um fora-da-lei.
Foi então que todos os homens de bem sofreram verdadeiramente ao saber que o seu galante rei Ricardo fora capturado e se encontrava prisioneiro num castelo
alemão, sendo pedida uma soma enorme pelo seu resgate. No intuito de conseguir esta quantia, foi criado um imposto que abrangia todos os indivíduos, fossem eles
laicos ou monges, cidadãos ou homens livres, cavaleiros ou senhores. Todos tinham de pagar o equivalente a um quarto do seu rendimento anual, sendo pedido aos abades
que fornecessem o equivalente a um ano da lã produzida pelos enormes rebanhos de ovelhas por eles possuídos.
Muitos pagavam este imposto com uma enorme má vontade, e o dinheiro demorava muito a ser reunido. Enquanto isso, o rei consumia as suas horas na prisão,
sentindo que, tal como escrevera num poema por si composto na época e que ainda hoje é possível ler:

É bem verdade o ditado que afirma,
e eu provei-o na pele, que os mortos e os presos
não têm amigos nem família.

Durante todo este tempo, Robin e Marian viveram felizes na floresta. Era verdade que ela perdera as suas vastas terras e que, ao invés de viver num castelo
rodeado de espessas muralhas e de envergar ricas roupas, morava numa cabana de madeira, tendo a cobri-la peles de animais ou aquele tecido simples, de cor verde.
Porém, nunca antes se sentira tão feliz, pois estava com aquele que amava e tinha à sua volta a floresta fresca e livre, o vento a soprar à solta nas árvores.
Tão grande era o desejo de Robin de que o seu rei fosse libertado quanto antes, que, quando soube que se criara um imposto para se pagar o resgate exigido,
pegou em metade da sua reserva de ouro e prata e, tendo vendido muitos belos tecidos e finas roupas, tratou de fazer seguir o dinheiro para Londres, guardado por
uma escolta poderosa, entregando-o, depois, nas mãos do responsável máximo da cidade, que, ao abrir o embrulho depois da partida dos que o haviam visitado, encontrou
lá dentro um pedaço de pergaminho onde era possível ler:
  "Da parte de Robin dos Bosques e dos homens livres da floresta de Sherwood em benefício do nosso amado rei, a quem Deus salve quanto antes das mãos dos
seus cruéis inimigos, tanto no país quanto no estrangeiro."
  E o certo é que, desde então, Robin passou a pôr de parte metade daquilo que tirava aos viajantes e a guardar esta parte num local secreto, já que se destinava
a pagar o resgate do rei. Para mais, quando lhe chegava aos ouvidos que um qualquer sujeito endinheirado, fosse ele burguês ou rendeiro, cavaleiro pobretanas, abade
ou cônego, não pagava o imposto que lhe era devido, Robin reunia um grupo de homens e fazia uma visita ao indivíduo que negava a liberdade ao seu rei. Caso o cavaleiro ou
o rendeiro não lhe oferecessem resistência, então, o salteador limitava-se a levar daquela casa apenas o que era devido, mas se o homem lutava e oferecia resistência,
como às vezes acontecia, então, Robin deixava o miserável e os seus homens a lamber as feridas e com os bolsos vazios.
Assim, e com medo de perderem muito mais, eram bastantes os que se apressavam a pagar o imposto que, de outro modo, nunca teriam pago. Como se isto não bastasse,
alguns daqueles a quem Robin tirara o que era devido ao rei viam-se obrigados a pagar a mesma quantia outra vez, desta feita pelos cobradores reais. As histórias
relacionadas com os feitos do fora-da-lei espalharam-se ao longo de uma área vastíssima, até acabarem por chegar aos ouvidos de Hamelin, o valente duque de Arenne, que
era um dos tesoureiros do rei, o que o fez declarar ser uma pena não possuir o rei um cobrador de impostos como aquele em todos os condados, pois, se assim fosse,
a sua libertação far-se-ia em apenas algumas semanas. Tratou de averiguar tudo o que pôde a respeito do foragido, afirmando vezes sem conta a muitos senhores nobres
e poderosos estar desejoso de conhecer este indivíduo cheio de valor, pois tinha a impressão de que simpatizaria com ele.
Por fim, quando o rei Ricardo saiu da prisão, a maior parte dos seus inimigos, na posse de alguns castelos em nome do duque João, que conspirara para ficar
com a coroa para si, fugiram, receando a vingança do monarca. Outros viram-se cercados pelos amigos do rei Ricardo, não demorando muito a render-se. Um certo grupo
de cavaleiros, que ocupara o Castelo de Nottingham em nome do duque João, tratou de resistir com ferocidade aos sitiantes, e estava longe de se mostrar disposto
a lhes entregar o castelo. Quando, de regresso da Alemanha, o rei Ricardo aportou em Sandwich e ficou a saber que o Castelo de Nottingham continuava a recusar submeter-se aos
seus conselheiros, ficou muito zangado e marchou rumo a essa cidade, instalando-se frente a ela com um vasto exército. Acabou por assaltá-la com uma força tal, que
capturou parte das muralhas e torreões exteriores, deixando-os em ruínas e matando muitos dos seus defensores. Depois, mandou construir forcas onde os sitiados as
pudessem ver, nelas enforcando os soldados que capturara, para que isto servisse de exemplo aos rebeldes entrincheirados no castelo.
Ao fim de dois dias, os guardiões do castelo, entre eles Ralph Murdach, irmão do xerife que Robin matara, saíram das muralhas e entregaram o castelo, colocando-se
à mercê do rei. Ele recebeu-os com dureza, dando ordens para que não fossem deixados sós.
Certo dia, quando o rei e os seus senhores estavam a almoçar, informaram o monarca da existência de um fora-da-lei ousado e insolente que chefiava muitos
indivíduos como ele e que andava pelas florestas de Clipstone, Sherwood e Barnisdale, todas elas situadas a norte de Nottingham. Foi justamente o seu chanceler,
William de Longchamp, quem mais se empenhou a enumerar os crimes de Robin.
- Um homem destes, senhor - disse ele -, o teu pai, o rei Henrique, de boa memória, há muito que teria impedido de cometer tantos crimes durante todos estes
anos. Por certo que teria enviado uma companhia de arqueiros para as florestas onde ele se esconde e dado caça a todos estes patifes, enforcando-os imediatamente.
- Era tua obrigação, Sr. Bispo, encarregares-te disso - retorquiu o monarca, secamente. - Encarreguei-te de governar as minhas terras com toda a justiça,
impedindo toda a espécie de roubos, assassínios e rixas, mas tudo indica que tu apenas contribuíste para aumentar a confusão e a desordem.
Muitos dos nobres que detestavam o bispo sorriram ao ver a expressão de desânimo que se espalhou no rosto de William de Longchamp. Eles tinham-no posto fora
de Inglaterra por ser um indivíduo orgulhoso e cruel, e a resposta do rei agradou-lhes imenso.
- Para mais, senhor - disse Hamelin, duque de Warenne -, caso o Sr. Bispo tivesse conseguido enforcar este corajoso fora-da-lei, então, seria muito provável
que Vossa Senhoria ainda passasse mais algum tempo na prisão.
Surpreendidos, os homens cravaram os olhos em De Warenne quando o ouviram dizer isto, e viram um sorriso na sua face.
- Como é isso, De Warenne? - inquiriu o rei. - Que tem este criminoso a ver com o meu resgate?
- É muito simples, senhor - respondeu o outro. - É certo que ele parece gostar imenso dos veados que pertencem ao seu rei, no que é secundado por muitos
outros, ricos e pobres. No entanto, parece que também gosta bastante do seu rei, e, neste ponto, excede grandemente muitos dos teus cavaleiros e senhores. Ele sobrevive
exigindo o pagamento de uma portagem a todos os viajantes que atravessam as tuas florestas, e, pelo menos assim me foi dito, conseguiu reunir muitos objetos e uma
boa quantia em dinheiro. Foi metade desta riqueza que ele enviou ao mayor de Londres, e posso dizer-te que a quantia equivalia ao resgate de um duque. Junto seguia
uma mensagem que dizia o seguinte: "Da parte de Robin dos Bosques e dos homens livres da floresta de Sherwood em benefício do nosso amado rei, a quem Deus salve
quanto antes das mãos dos seus cruéis inimigos, tanto no país quanto no estrangeiro." Como se isto não bastasse, senhor - prosseguiu De Warenne, enquanto os outros
se entreolhavam, espantados -, ele chamou a si a tarefa de cobrador de impostos aqui nesta zona, e muitos abades, cônegos e priores anafados que não teriam pago
a sua parte do resgate que acabou por te libertar, bem assim como muitos burgueses, cavaleiros e homens livres, cuja principal característica é a avareza, receberam
a visita noturna deste fora-da-lei, que os obrigou a pagar. E, por Deus!, segundo me disseram, estes sujeitos tiveram de pagar o imposto duas vezes: uma ao próprio
Robin dos Bosques, a outra aos agentes do tesoureiro, o que muito os desmoralizou.
O rei riu com vontade e os nobres que com ele se encontravam fizeram o mesmo.
- E tanto as portagens como os impostos por ele assim conseguidos - prosseguiu De Warenne - seguiram para as mãos do mayor, junto com a seguinte mensagem:
  "Para a libertação do meu rei e senhor, da parte de cavaleiros recalcitrantes monges e de toda a espécie de velhacos que não se interessam minimamente por
ele, pela mão de Robin dos Bosques e dos seus homens da floresta."
- Meu Deus! - exclamou o rei, e tanto o seu olhar quanto a sua voz exprimiam honestidade. - Aqui está um homem em quem por certo haverá um enorme sentimento
de justiça. É óbvio que ele conhece e ama grandemente a liberdade, sentindo grande mágoa por aqueles que são obrigados a ver a luz do Sol esgueirar-se aos poucos
pelo chão da cela em que se encontram. Pela alma do meu pai! Se todos os meus súditos tivessem mostrado o mesmo carinho e a mesma dedicação por mim que este fora-da-lei,
então, a minha estada na prisão teria sido reduzida ao mínimo!
Deitou um olhar sombrio em torno da mesa e foram muitos os rostos que empalideceram um pouco, já que sabiam não haver mostrado um grande zelo no que respeitava
à recolha da enorme quantia necessária à libertação do rei, seu senhor. Eram também muitos os que se tinham deixado tentar um pouco pelas promessas traiçoeiras do
irmão do rei, o duque João de Mortaigne.
- Palavra que quero mesmo conhecer este fora-da-lei - declarou o monarca - e saber que tipo de homem ele é. Que atos cometeu ele para se tornar proscrito?
- Matou o meu irmão, senhor - disse William de Longchamp. - Matou Sir Roger na estrada principal e depois, em York, matou cinco soldados pertencentes ao
abade de Santa Maria. Desde então que as mortes e os roubos por ele cometidos são incontáveis.
- Penso, Sr. Bispo, que ele matou o teu irmão porque Sir Roger estava disposto a raptar a filha de FitzWalter, Lady Marian - disse De Warenne em voz baixa.
- Pois não foi assim que as coisas se passaram? O teu irmão, acompanhado por um grupo de biltres, armou-lhe uma emboscada na floresta, a ela e aos seus vilões, e
preparava-se para a conduzir rumo ao seu castelo, a que alguns homens chamam o Forte do Mal, segundo soube, quando este fora-da-lei, que estava escondido ali perto,
o matou, disparando uma flecha que lhe atravessou o visor do elmo.
- E, pela minha salvação! - exclamou o rei Ricardo, que sempre aprovara todos os atos de coragem relacionados com a libertação das damas de toda e qualquer
forma de opressão. - A verdade é que foi muito bem feito, até porque, tal como me estou agora a recordar, esta não era a primeira senhora que Sir Roger oprimia,
meu caro Sr. Bispo!
William de Longchamp brindou o duque de Warenne com um olhar furioso, mas este limitou-se a sorrir de forma despreocupada face à raiva evidente do outro.
- Quero que saibas, senhor - disse William, o chanceler, virando-se para o rei -, que, embora possas não dar grande importância à morte do meu pobre parente,
a verdade é que esse Robin dos Bosques, um ladrão e um assassino, tem feito algumas coisas que, por certo, não poderão contar com a tua complacência. Matou o xerife
de Nottingham, Robert de Murdach, casou com Lady Marian, uma das tuas pupilas, e, como se isto não bastasse, levou um cavaleiro cujas terras não ficam muito longe
deste castelo a juntar-se a ele, sendo que agora andam os dois a roubar pelas tuas florestas.
- E como se chama esse cavaleiro? - quis saber o monarca, e a sua expressão era dura, pois embora estivesse disposto a desculpar muitas coisas quando praticadas
por um simples rendeiro, não poderia mostrar a mesma boa-vontade para com um cavaleiro que, esquecendo a sua honra, se transformasse num fora-da-lei.
- Trata-se de Sir Richard de Lee, e as suas terras ficam na zona de Linden Lea, perto de Nottingham - explicou William de Longchamp.
- Pois vou ficar com essas terras - disse o rei, zangado -, e a sua cabeça terá de ser separada dos seus ombros. Que seja feita a proclamação - prosseguiu
ele, virando-se para um dos funcionários do tesouro que se encontravam atrás do seu assento. - De que aquele que capturar esse cavaleiro e me trouxer a sua cabeça
poderá ficar com as terras que antes lhe pertenciam.
- Se me dás licença, senhor - disse um cavaleiro idoso, que avançou de entre um grupo de senhores ricamente vestidos que permaneciam atrás do rei -, atrever-me-ia
a dizer que não existe um único homem vivo capaz de chamar suas às terras desse cavaleiro. Nunca, enquanto o seu amigo Robin e os homens deste estiverem em condições
de percorrer a floresta e de manobrar o arco.
- Quem és tu? - inquiriu o rei. - E como é que sabes isso?
- Sou John de Birkin, senhor - respondeu o velho cavaleiro -, e Sir Richard de Lea era meu amigo. Desde que ele fugiu que o novo xerife de Nottingham tem
tentado apoderar-se do seu castelo e das suas terras em teu nome, mas não há quem ali fique. Enquanto percorrem os campos, os homens são crivados de flechas disparadas
de entre a floresta, ou os seus criados são espancados ou acabam por fugir, e todos os vilões que viviam na propriedade acabaram por se juntar ao amo na floresta.
- Pela alma do meu pai! - exclamou o monarca, elevando-se de um salto. - Se aquilo que dizes é verdade, então, os melhores homens deste reino vivem na floresta
e os seres vis disfarçam-se de idiotas cumpridores da lei e fingem governar as minhas terras em meu nome, ao mesmo tempo que me deixavam apodrecer na prisão. Tenho
de conhecer este fora-da-lei. Olha, De Birkin, avisa este patife de que quero falar com ele e que lhe garanto a minha proteção quando vier ao meu encontro e se for
embora, já que me quer bem, mas que, ao mesmo tempo, trata de matar o meu xerife e os meus cavaleiros.
Quando o Castelo de Nottingham se rendeu às mãos do rei, ele foi caçar na floresta de Sherwood, que nunca antes tinha visto, ficando muito agradado com as
árvores gigantescas que aí encontrou, as belíssimas clareiras, as encostas rochosas e as suaves terras baixas. Nesse dia, o grupo do rei descobriu um veado em Rufford
Brakes, e tão forte e tão ágil se revelou este animal, que os cavaleiros e os cães de caça que os acompanhavam se viram obrigados a percorrer muitos quilômetros rumo
ao norte, na direção da floresta de Barnisdale, onde, por ser já tarde e haver má visibilidade, os homens acabaram por o perder. Nessa noite, o rei dormiu na casa
dos Monges Negros de Gildingcote e, no dia seguinte, enviou os seus emissários pelas florestas, para anunciarem em várias aldeias, castelos e cidades, que o veado
que o rei perseguira e perdera no dia anterior era agora "veado proclamado real", não devendo pessoa alguma matar, ferir ou perseguir o dito veado, que era descrito
através de certos sinais distintivos a partir dos quais qualquer bom caçador estaria em condições de o reconhecer.
O rei Ricardo passava os dias a caçar na floresta e nunca ficava duas vezes no mesmo lugar. Ainda assim, foi-lhe impossível descobrir o esconderijo de Robin
dos Bosques. Por fim, acabou por chamar o chefe dos guardas-florestais de Sherwood, Sir Ralph Fitz-Stephen de seu nome.
- Sr. Guarda - começou o rei -, sabes dizer-me onde é que o meu mensageiro pode encontrar este fora-da-lei? Tu estás longe de ser um bom guarda, pois permites
que um número tão grande de salteadores aqui viva sem ser incomodado, matando os meus veados sempre que tal lhes apetece. Encontra-me este Robin dos Bosques, caso
contrário, ficas sem trabalho.
Ralph Fitz-Stephen era um homem ousado, daí que não tenha tido problemas em replicar:
- Meu rei e senhor, não se trata de saber se eu ou Vossa Majestade podemos encontrar esse Robin dos Bosques, mas antes se Robin dos Bosques se vai deixar
encontrar. Talvez esteja a ser atrevido, senhor, mas faço questão de dizer que, durante estes últimos anos, tenho tentado tudo para o capturar, a ele e ao seu bando,
tendo também ajudado os xerifes de todos os condados que confinam com a floresta, mas a verdade é que este fora-da-lei é uma autêntica raposa, e são muitos os seus esconderijos.
Ainda assim, farei tudo o que estiver ao meu alcance para o trazer junto a ti.
Depois disto, Fitz-Stephen mandou chamar todos os seus guardas, contou-lhes o que o rei dissera e perguntou-lhes qual seria a melhor forma de satisfazer
o seu pedido. Houve quem aconselhasse isto, enquanto outros aconselhavam aquilo, até que o chefe acabou por perder a paciência com eles todos.
- Desapareçam, seus idiotas desmiolados! - gritou. - Mesmo que este fora-da-lei não chegasse sequer a possuir metade da inteligência que possui, continuaria
a fazer de vocês gato-sapato. Não admira que nunca tenham estado sequer próximos de o capturar. E agora, desapareçam, vão dar os vossos "passeios", que eu cá tratarei
de pensar em alguma coisa.
Bastante abatidos, os guardas lá foram, dispostos a desempenhar as suas funções. A grande maioria ostentava as cicatrizes das feridas resultantes de muitas
escaramuças com Robin e os seus homens, e tinham a impressão de que, a menos que o chefe arranjasse uma qualquer forma de descobrir o fora-de-lei e de o levar à
presença do rei, não demorariam muito a perder o emprego, que, embora em algumas ocasiões lhes causasse feridas ou nódoas negras, sempre lhes fornecia uma série
de oportunidades para ganhar bastante dinheiro, oprimir os pobres e lhes extorquir tudo o que podiam.
Dois dias mais tarde, Ralph Fitz-Stephen dirigiu-se ao Castelo de Drakenhole, onde o rei se encontrava, e pediu para ser recebido em audiência. Mal viu o
soberano, saudou-o, dobrando um joelho, e quando o rei Ricardo lhe pediu que falasse, disse:
- Senhor, fiquei a saber que, desde que andas pelo norte, Robin, o fora-da-lei, tem andado pelas estradas de Ollerton, mandando parar os viajantes ricos
e despojando-os das suas riquezas. Agora, gostaria de te dar um conselho sobre qual a melhor forma de chegares à fala com este patife. Pega em cinco dos teus senhores
feudais, de preferência aqueles que não se exaltem nem percam a cabeça com facilidade, não vão eles trair a tua identidade antes de chegares à fala com o fora-da-lei,
e pede emprestados os trajes da Abadia de Maddersey, que fica mesmo no outro lado do rio. Depois, eu mesmo serei o teu guia. Serei eu a conduzir-te à estrada onde
Robin e os camaradas atuam, e quase aposto a minha cabeça em como verás esse patife antes mesmo de chegares a Nottingham.
- Por Deus! - exclamou o rei Ricardo, ao mesmo tempo que deixava escapar uma gargalhada. - Palavra que gosto mesmo desse teu conselho, guarda. Vai lá pedir
esses trajes de monge ao Sr. Abade. Quero um para mim, outro para ti, e cinco para os restantes senhores que nos vão acompanhar. Depois, é só fazermo-nos ao caminho!
Apesar do adiantado da hora, o rei Ricardo fazia questão de partir quanto antes, e, assim que trouxeram as roupas em causa, ei-lo a envergar a grande veste
negra sobre a sua rica sobrepeliça, na qual se viam os leopardos de Anjou e os lírios da França. De seguida, cobriu a cabeça com um capuz tão grande quanto um chapéu
de abas largas, igual àqueles que os eclesiásticos usam quando vão de viagem. Sentia-se muito entusiasmado com a perspectiva de viver uma aventura assim tão estranha,
e não parava de gracejar junto dos cinco cavaleiros por si escolhidos para o acompanharem. Estes eram Hamelin, duque de Warenne, Ranulf, duque de Chester, Roger
Bigot, William, duque de Ferrers, e Sir Osbert de Scoftron.
Demoraram apenas uma hora a fazer-se à estrada, dando o grupo a impressão de ser composto por cinco monges ricos, ou funcionários importantes de uma qualquer
grande abadia, seguindo viagem ao serviço da casa. Seguiam-nos dois cavalos carregados com as suas malas e, mais atrás ainda, três outros cavalos de maiores dimensões,
transportando provisões, utensílios para a mesa e outros objetos valiosos. As montadas estavam ao cuidado de dois guardas-florestais, também eles disfarçados de
monges, se bem que desprovidos de qualquer sinal exterior de riqueza.
Cavalgaram durante uma hora até escurecer, o rei Ricardo sempre a gracejar com os seus cavaleiros ou, de vez em quando, até mesmo a cantarolar, tão animado
se sentia. Quando a noite os obrigou a fazer uma paragem, Ralph Fitz-Stephen sugeriu que talvez não fosse má ideia desviarem-se um pouco da estrada e seguirem até
à casa dos cônegos de Clumber, onde por certo encontrariam um quarto para passarem a noite. O rei concordou com o plano e, depois de uma pequena cavalgada pela floresta, acabaram
por ser recebidos no salão de visitas dos cônegos. À exceção de um mercador e dos seus três homens, que ainda não  tinham dado por concluída a sua refeição, e de
um indivíduo que, a avaliar pelo ar despreocupado, pelos trajes descontraídos que envergava e pela pequena harpa que consigo transportava, parecia ser um menestrel
ou um jogral, a enorme sala estava vazia. O grupo do rei não revelou a verdadeira identidade dos seus membros, caso contrário teriam sido convidados a jantar no
salão privado, na companhia dos cônegos. Porém, o rei Ricardo preferiu permanecer incógnito.
Desta forma, a comida foi trazida do carregamento transportado pelos cavalos de carga, e o rei, os senhores do seu séquito e Ralph Fitz-Stephen sentaram-se
a comer numa das mesas do salão, pobremente iluminado por três ou quatro archotes que faiscavam, chamejavam e produziam uma enorme quantidade de fumo nos seus suportes
nos pilares.
- Estou a dizer que não passas de um idiota! - gritou subitamente o mercador. Parecia estar a discutir com o menestrel, que ria e tangia a sua harpa, ao
mesmo tempo que emitia um qualquer comentário jocoso. - Um velhaco do teu calibre não conhece o valor do dinheiro e por isso a sua perda nada significa para ti.
- Mas que carga de trabalhos provoca o teu dinheiro, meu bom mercador! - replicou o outro. - Foi a tua própria boca quem te condenou. Aquele que tem dinheiro
parece estar sempre com medo de ficar sem ele. Diz-me uma coisa: será que consegues dormir descansado durante a noite? Será que alguma vez confias mesmo em algum
destes teus homens? Será que não estás sempre com medo que algum larápio se chegue junto a ti e te corte o pescoço só para se apoderar daquilo que tens? Não, aquele
que tem dinheiro arranja um inimigo que o tortura e atormenta para sempre. Quanto a mim, e como não tenho dinheiro, não me preocupo.
Tangeu a harpa e pôs-se a entoar o excerto alegre de uma canção.
- Escuta uma coisa, mercador - prosseguiu ele, enquanto o outro lhe lançava um olhar sombrio. - Nunca tive mais do que duas moedas, e tive tanto medo que
algum idiota me acusasse de as ter roubado ou que mas tentasse tirar, que me apressei a gastá-las quanto antes, e depois, de novo sem dinheiro, senti-me outra vez
feliz. Dêem-me um canto onde me possa resguardar do vento durante a noite, um pedaço de carne e de pão, um copo de vinho de hora a hora, a minha harpa e a estrada
à minha frente. Quanto a ti, Sr. Mercador, bem podes ficar com os teus livros de contabilidade, os teus fardos contendo coisas preciosas e os teus lamentos choramingas,
só porque um fora-da-lei atrevido te roubou umas quantas libras.
  - O grande patife! Deviam queimar-lhe os olhos e arrancar-lhe também as orelhas! - exclamou o mercador. - Se eu lhe tivesse dito a verdade a respeito do
que transportava, ele não me teria roubado todos os tostões que ganhei na Feira de Nottingham!
- Ah! Ah! Ah! - riu o menestrel com vontade. - Tem piada, não tem? Sempre é verdade que o fora-da-lei te aplicou o truque do costume? E tu caíste?! A tua
alma miserável não conseguiu dizer-lhe a verdade, logo, quando ele descobriu que tinhas mais dinheiro do que aquele que tinhas confessado, ficou com tudo! Ah! Ah!
Ah! Sr. Mercador, se não estivesses tão apegado ao dinheiro, agora ainda eras capaz de ter algum contigo.
- Que dizes? - perguntou o rei, elevando a voz a partir do local onde se sentava, ao mesmo tempo que se virava para o mercador. - Quem foi que te assaltou?
- Quem foi que me assaltou, Sr. Padre?! - replicou o mercador em tom de mofa, pois os monges estavam longe de ser muito queridos aos mercadores, tão elevadas
eram as portagens e as taxas que aqueles lhes exigiam para que estes pudessem vender os seus bens nos mercados. - E quem mais poderia ser senão aquele filho de Satanás...
esse salteador que dá pelo nome de Robin dos Bosques?! E, Sr. Padre, caso amanhã sigas viagem por aquela estrada, espero bem que ele te faça a ti o que me fez a
mim.
- Por Deus, homem! Estás tão amargurado quanto um urso a quem os cães roeram as orelhas! - exclamou o menestrel, rindo a bom rir. - Mostra mais respeito
quando te diriges à Igreja e aos seus servidores. Não te esqueças, minha velha cabeça dura, que foram eles que te batizaram e fizeram de ti um cristão... isto no
caso de seres mesmo um cristão e não um qualquer cão muçulmano... e será com a sua ajuda que morrerás e serás enterrado... se não acabares por ser atirado para a
beira da estrada, como tenho visto suceder a tantos homens ricos e a alguns muito mais bem falantes do que tu!
O mercador brindou o outro com um olhar feroz, ao mesmo tempo que rangia os dentes. Acabou por se virar e, embrulhando-se na capa, pareceu pronto a esquecer
as perdas que sofrera mergulhando no sono.
- Não leves tão a peito as palavras por ele pronunciadas contra si mesmo, Sr. Abade - disse o menestrel. - Não foi o homem que falou mas sim o mercador despojado
dos seus lucros. Ora bem, aí vem uma pessoa tão animada quanto este mercador está sombrio.
A porta do salão abrira-se quando um outro viajante a empurrara, depois do que, avançando sobre a palha que cobria o chão, surgiram um homem e uma mulher,
ambos idosos e com ar de pobres. Estavam vestidos com farrapos e cada um transportava uma pequena trouxa, a qual provavelmente continha tudo o que possuíam.
- Que Deus vos abençoe a todos, cavalheiros! - disse o velhote, o rosto sorridente à medida que tirava o seu velho chapéu, primeiro na direção dos monges
vestidos de negro e depois na direção do menestrel, que de pronto lhe retribuiu o sorriso e, levantando-se, tirou o chapéu e com ele esboçou uma vênia elaborada
em frente ao velhote.
- Bem-vindo sejas, velho coração alegre! - saudou ele. - Se não soubesse que a taberna mais próxima fica a trinta quilômetros de distância, acusava-te de
teres bebido uma boa dose do líquido abençoado produzido pela uva preta. Qual o motivo de tão boa disposição?
- Senhor - começou o velhote, animado, ao mesmo tempo que pousava a trouxa no assento -, vivi uma aventura fantástica e conheci o mais nobre cavalheiro que
alguma vez me foi dado conhecer. Tudo se passou a apenas seis quilômetros de Ollerton e, meu Deus!, como eu estava com um medo horrível da floresta! Não se via outra
coisa senão árvores, e eu receava que, de um momento para o outro, um qualquer ladrão destemido saísse de entre as trevas e nos cortasse as gargantas só para ficar
com os poucos tostões que temos.
- Somos gente pobre, senhor - interrompeu a velhota, que tinha um rosto bondoso, embora as suas mãos estivessem deformadas e enrugadas, revelando assim toda
uma vida de trabalho -, e não estamos habituados a viajar. Vamos até Tickhill, tirar o nosso filho da prisão.
- E como é que o vosso filho foi parar à prisão, senhora? - inquiriu uma voz amável, elevando-se de entre as figuras dos monges vestidos de negro. Era o
rei em pessoa.
A velhota parecia surpreendida por alguém de aspecto tão nobre lhe ter dirigido a palavra, a ela, uma pobre mulher de Nottingham. De pronto fez uma vênia
e respondeu:
- Oh, Sr. Padre, ele estava farto de trabalhar para o mestre Peter Greatrex, o armeiro, e foi-se embora, disposto a conseguir qualquer coisa de melhor, se
bem que eu lhe tivesse implorado que ficasse conosco. Passados muitos meses, ficamos a saber que fora apanhado e acusado de vadiagem e que está há já tanto tempo
numa prisão de Tickhill que ficou sem um pé. E nós agora vamos buscá-lo para o levarmos outra vez para casa.
- Mas, boa mulher- disse o rei -, eles não vão deixar o teu filho sair da prisão só para te entregarem.
- Oh, mas nós somos os pais dele, Sr. Padre! - replicou ela, os seus olhos enchendo-se de lágrimas. - Para mais, temos a certeza de que o nosso Dickon não
fez nada de mal. Por certo que eles o vão entregar aos pais.
- Ora bem, rapariga - disse o marido -, limpa lá essas lágrimas e deixa o caso por minha conta. Pois não foi o próprio Robin dos Bosques quem nos garantiu
que vai fazer tudo para que, quando lá chegarmos, eles nos entreguem o nosso Dickon?
- Robin dos Bosques é esse tal cavalheiro nobre que conheceste hoje, velhote? - perguntou o soberano.
- É verdade, Sr. Padre. Não o quero ofender, mas é isso mesmo que ele é. Foi ele quem mandou um dos seus homens ao nosso encontro (espiaram-nos por entre
as folhas enquanto atravessavamos aquela estrada pavorosa) e, quando eu já pensava que aquele que vinha ao nosso encontro não passava de um ladrão, descobri que,
olha, era antes um mensageiro enviado pelo próprio Robin, que gostaria que fôssemos falar com ele.
- Garanto-vos, senhores, que eu teria fugido nessa altura - disse a velhota - tão assustada me sentia ao ouvir falar de Robin dos Bosques, pois tinham-me
dito que ele era um grande fora-da-lei. Mas o meu velhote aqui disse...
- Pedi-lhe que não tivesse medo - prosseguiu o marido, impaciente por ter sido interrompido - e disse-lhe que Robin é um homem bom, que assim me tinham dito,
e que nunca roubava os pobres. E que se estava interessado em falar conosco, devia ser para saber se atrás de nós vinha algum mercador ou padre com dinheiro (sem
vos querer ofender, senhores). Mas a verdade é que ele não nos perguntou nada disso. De maneira nenhuma, senhores, portou-se como um autêntico cavalheiro. - E o velhote
estava cada vez mais excitado, o rosto corado, os olhos brilhantes, as mãos a gesticular muito nesta ou naquela direção. - Quis saber tudo a nosso respeito, quem
éramos, de onde vínhamos, para onde íamos e porquê. De seguida, ordenou aos seus homens que trouxessem comida e vinho, tratou-nos como se fôssemos pessoas importantes,
servindo-nos com as suas próprias mãos. Meus senhores, palavra que vos estou a dizer a verdade, e o céu é minha testemunha. Depois, encheu-me o saco de pão e carne,
sem esquecer uma garrafa de vinho, e conduziu-nos de novo à estrada. E também me deu isto - e ele estendeu uma moeda que emitia os seus raios baços à luz do archote.
Era uma moeda de prata. - As últimas palavras que me dirigiu foram: "Olha, velhote, vou arranjar maneira de te entregarem o teu filho assim que chegues a Tickhill.
E, caso algum patife te mande parar enquanto percorres esta estrada e te tente roubar ou fazer mal, diz-lhe que Robin dos Bosques te autorizou a percorrer a floresta
e que é melhor ele deixar-te em paz, não lhe vá acontecer o mesmo que a Richard Illbeast." 
- Já alguma vez viram um patife mais descarado do que este Robin? - exclamou a voz aguda do mercador, que escutara tudo. - A mim roubou-me tudo o que eu levava,
enquanto que a este velho vilão, que por certo não sabe o valor do dinheiro, entrega uma moeda de prata. Até aposto que é uma daquelas que o velhaco me roubou!
- Oh, pára de fazer barulho, bufarinheiro velho! - exclamou o menestrel, mostrando-se severo. - Digo-te que, quando soar a trombeta do Juízo Final, será
Robin e não tu quem se vai sentar no joelho de São Pedro, ou não seja eu capaz de reconhecer um homem bom, capaz de atos generosos. Vou compor um poema a este respeito,
velhote, pois trata-se de um ato merecedor dos elogios de um poeta e da fama que uma canção lhe pode conferir.
O velhote e a mulher sentaram-se dispostos a comer qualquer coisa. O menestrel calou-se e assumiu uma expressão pensativa, os olhos semicerrados, ocupado
a murmurar uma série de palavras para si mesmo e, depois, tratou de começar a compor o seu poema. Quanto ao mercador e aos seus homens voltaram a embrulhar-se nas
capas e puseram-se de novo a dormitar nas camas desdobráveis que se encontravam espalhadas um pouco por todo o salão.
Entretanto, o rei fizera sinal a De Warenne e, em voz baixa, perguntara-lhe o que quisera o salteador dizer com aquela história de "acontecer o mesmo que
a Richard Illbeast". O duque e Ralph Fitz-Stephen informaram o rei a respeito de tudo o que se passara em York, da fuga do homem que liderara a turba que massacrara
os judeus e da captura de Richard Illbeast pelo fora-da-lei, que o executara como forma de o punir por todos os crimes por ele cometidos, na presença de Sir Lawrence
de Raby, secretário do magistrado do rei. Quando acabaram de falar, o monarca deixou-se ficar em silêncio durante algum tempo, uma vez que se encontrava mergulhado
em profundos pensamentos. A dada altura, disse:
- Penso que, no que respeita a este Robin dos Bosques, não estamos em presença de um homem comum. Sinto-me quase tentado a dizer que, apesar das leis, é
ele quem está certo e quem agiu mal foram os que o forçaram a fugir para a floresta e a tornar-se um fora-da-lei. Ele rouba os ricos e poderosos que, por seu turno,
já haviam roubado para satisfazer a sua ganância e o seu orgulho. Porém, ajuda e consola os pobres, o que parece ser algo que mais ninguém está interessado em fazer.
Terei todo o prazer em me encontrar com este homem e, com a graça de Deus, acabaremos por nos tornar amigos.
De seguida, o rei deu ordens para que fossem preparadas as suas camas e todos se retiraram para descansar.
Na manhã seguinte, o grupo do soberano não avançara mais que oito quilômetros ao longo da estrada que conduzia a Ollerton, quando, subitamente, saiu de entre
as árvores um homem muito alto, vestido com uma túnica verde e calças de malha da mesma cor. Tinha na mão um arco maior do que ele e, presa à cintura, uma boa espada,
enquanto no cinto se via um punhal de aço espanhol. Usava um chapéu de veludo enfeitado com uma pena de pavão.
Tratava-se de um indivíduo de aspecto viril e olhar arguto. Tanto o rosto quanto o pescoço estavam bronzeados devido ao sol de Verão, e o cabelo, uma massa
de caracóis escuros, chegava-lhe aos ombros. Ergueu os olhos para o homem que cavalgava frente aos outros e, levantando uma enorme mão morena, disse:
- Pare, Sr. Abade! Espero que consinta em passar algum tempo comigo.
Levou dois dedos à boca e deixou escapar um assobio agudo. Quase no mesmo instante, cerca de vinte arqueiros abandonaram a sombra das árvores que se erguiam
de ambos os lados do caminho. Todos eles vestiam túnicas e calças de malha verdes, rasgadas e rotas em alguns lados, mas todos eles eram indivíduos fortes, de olhar
ousado, segurando cada um o seu arco.
- Somos homens livres e vivemos nesta floresta, Sr. Abade - disse Robin, uma vez que o primeiro fora-da-lei outro não era senão ele -, e vivemos dos veados
reais que caçamos na floresta e daquilo que os senhores ricos e os padres nos dão. Assim sendo, dá-nos algum do dinheiro que levas antes de seguires viagem, Sr.
Abade.
- Meu bom homem - retorquiu o rei -, não tenho comigo mais do que quarenta libras, pois passei algum tempo junto do nosso soberano, em Blythe, sendo que
aí gastei muito dinheiro. Seja como for, será com todo o prazer que te darei o que tenho.
O rei ordenou a uma das figuras embuçadas que se encontravam atrás de si que fosse buscar a sua bolsa e esta foi entregue a Robin, que nela pegou, dizendo:
- Sr. Abade, as tuas palavras são as de um homem nobre e honesto. Assim, não passarei revista aos teus alforges para saber se é verdade o que dizes. E aqui
estão vinte libras - prosseguiu ele. - Devolvo-tas porque não quero que viajes sem dinheiro. Quanto às outras vinte, servirão para garantir a tua segurança no decorrer
da viagem. Adeus, e que tudo te corra bem, Sr. Abade.
O foragido afastou-se, dando assim passagem aos cavalos, ao mesmo tempo que tirava o chapéu, esboçando assim uma espécie de saudação. Contudo, o abade levou
a mão ao peito, daí tirando um pedaço de pergaminho, que ele abriu com um enorme restolhar da pele seca. Era possível ver-se nele uma série de palavras, por baixo
das quais se encontrava um enorme círculo de cera vermelha ostentando um selo.
- Muito obrigado, bom homem - disse o monarca -, mas trago comigo as saudações do nosso bom rei Ricardo. Foi ele quem te mandou este selo, ao mesmo tempo
que pede que te encontres com ele em Nottingham, dentro de três dias, devendo este selo funcionar como teu salvo-conduto.
Robin examinou atentamente o rosto oculto pela sombra do capuz e aproximou-se, disposto a pegar no pergaminho. Apoiou-se num joelho de forma a mostrar o
respeito que sentia pelo soberano e disse:
- Sr. Abade, não existe homem no mundo a quem eu mais estime do que o senhor meu rei. Esta missiva é bem-vinda e, devido às tuas boas relações, Sr. Abade,
peço-te que fiques e almoces conosco à boa maneira da floresta.
- Muito obrigado - disse o rei. - Terei todo o prazer em fazê-lo.
Assim, o rei e os seus cavaleiros foram conduzidos a pé até uma zona mais profunda da floresta, onde, à sombra da enorme árvore em torno da qual os fora-da-lei
se reuniam, o almoço estava a ser cozinhado.
Robin levou a corneta aos lábios e deixou escapar um som curioso. As últimas notas ainda não tinham morrido quando, vindos de todas as partes da floresta
que rodeava a clareira onde eles se sentavam, começaram a chegar homens vestidos de verde, transportando arcos nas mãos e espadas à cintura. Todos eles tinham o
olhar perspicaz e corajoso próprio de quem está habituado ao ar livre e a uma vida sem prisões, e à medida que se aproximavam do chefe, tiravam o chapéu e serviam-se
dele para esboçar uma saudação destinada àquele que os comandava.
- Pela alma do meu pai! - murmurou o rei Ricardo ao ouvido de De Warenne. - É um quadro e tanto, embora seja um pouco triste. Estamos na presença de homens
de grande valor, e eles mostram sentir mais consideração para com este fora-da-lei do que aquela que os meus cavaleiros sentem por mim.
Tanto o rei como aqueles que o acompanhavam fizeram a devida justiça ao excelente almoço que lhes foi servido e, quando este terminou, Robin disse:
- E agora, Sr. Abade, verás qual o tipo de vida que levamos, e isto para que o possas descrever ao rei quando voltares para junto dele.
Procedeu-se à montagem de alguns alvos e um certo número de bandoleiros começou a disparar. Os alvos eram tão pequenos e encontravam-se de tal forma distantes,
que o monarca se sentia deveras pasmado por haver quem lhes conseguisse acertar. Contudo, ainda se espantou mais quando Robin ordenou que fossem buscar uma vara
e que nela pendurassem uma grinalda de rosas.
- Aquele que conseguir disparar através da grinalda - gritou Robin - ficará com o arco e as flechas, devendo ainda receber um murro daquele que se mostrar
melhor arqueiro do que ele.
- Mas esta gente dispara maravilhosamente! - comentou o rei, um pouco desviado dos outros, dirigindo-se aos seus homens. - Oh, pudesse eu dispor de quinhentos
arqueiros tão bons quanto estes e que estivessem dispostos a cruzar o mar na minha companhia! Vencia o rei de França e obrigava-o a vergar-se perante mim.
Robin disparou duas vezes, acertando sempre na vara. Contudo, houve quem falhasse, e foram bastantes aqueles que caíram depois de terem recebido um murro
de Robin. Até mesmo Scarlet e João Pequeno tiveram de suportar o peso do seu braço, mas Gilbert da Mão Branca transformara-se num arqueiro quase tão bom quanto o
chefe. Depois, Robin disparou uma outra vez. Foi um disparo infeliz, já que a seta falhou a grinalda por qualquer coisa como três dedos. Um coro de gargalhadas elevou-se
das gargantas dos arqueiros, ao mesmo tempo que se ouvia gritar: "Falhou! Falhou!" 
- Tudo bem - disse o fora-da-lei, rindo, e, nesse preciso instante, viu um grupo de cavaleiros que se aproximava deles vindo do outro lado da clareira. Era
a sua esposa, a bela Marian, vestida de verde, o arco e as flechas junto a si, e consigo encontravam-se Sir Richard de Lee, Alan-a-Dale e a esposa, Lady Alice.
Robin voltou-se para o abade e disse:
- Entrego-te o arco e as flechas, Sr. Abade, uma vez que és o meu senhor. Agora, podes dar-me o soco que me compete receber.
- Isso não é permitido a um membro da minha Ordem - disse o abade, ao mesmo tempo que tratava de cobrir ainda mais o rosto com o capuz, procurando desta
forma esconder-se do olhar perspicaz do fora-da-lei e dos cavaleiros que dele se aproximavam.
- Bate com força, Sr. Abade! - pediu Robin. - Dou-te autorização para que o faças.
O rei sorriu, arregaçou a manga e deu um murro de tal forma forte no peito de Robin dos Bosques, que o fora-da-lei recuou alguns passos e quase se estatelou
no chão. Contudo, conseguiu manter o equilíbrio e, aproximando-se do rei, cujo capuz caíra devido à violência do golpe, declarou:
- Meu Deus, não haja dúvida de que tens força nesse braço, Sr. Abade! Resta saber se és mesmo um abade ou um monge. De qualquer dos modos, não haja dúvida
de que és um homem a valer.
Foi então que Sir Richard de Lee saltou da sela a correr e, tirando o chapéu, precipitou-se para a frente, gritando:
  - É o rei! Robin, ajoelha-te! - E o cavaleiro pôs-se de joelhos frente ao rei, que acabara de tirar o capuz, revelando assim os cabelos castanhos, o rosto
bem-parecido e os olhos azuis onde brilhava uma luz orgulhosa mas genial, a luz de Ricardo, Coração-de-Leão. Acabou por se desembaraçar dos trajes negros por si
usados, revelando a rica sobrepeliz de seda ostentando os leopardos de Anjou e a flor-de-lis da França.
Robin e os seus homens, bem como Alan-a-Dale, trataram de se ajoelhar perante quem se encontrava à sua frente, enquanto a bela Marian e Lady Alice, depois
de descerem dos cavalos, esboçaram uma vênia humilde.
- Pela alma do meu pai! - exclamou o rei, divertido, rindo com vontade. - Digam lá só se isto não é uma aventura e tanto?! Por que razão estás de joelhos,
meu bom Robin? Então não és tu o rei da floresta?
- Meu senhor e rei de Inglaterra - disse o fora-da-lei -, a ti venero e a ti receio, e imploro a tua misericórdia para mim e para os meus homens, pois muitos
foram os atos que cometemos que vão contra as tuas leis. Como homem bom e justo que és, concede-nos a tua graça!
- Levanta-te, Robin, pois, pela Santíssima Trindade, nunca encontrei na floresta quem me agradasse tanto quanto tu o fazes - disse o rei. Pegou na mão de
Robin e fê-lo levantar-se. - Contudo, serás obrigado a abandonar esta vida e a comportares-te como um homem cumpridor da lei.
- Farei tudo isso de bom grado, meu rei e senhor - prometeu o outro. - A verdade é que prefiro respeitar as tuas leis e fazer todo o bem que posso de uma
forma aberta do que viver à margem da lei.
- Pois então que assim seja - retorquiu o rei. - Já tomei conhecimento de tudo o que fizeste. Casaste com uma pupila minha, uma jovem rica, e isto contra
todos os meus direitos! É esta bela senhora aquela que abandonou as suas terras, honras e riqueza e as trocou pelo seu amor?
A bela Marian ajoelhou-se frente ao rei, que lhe estendeu a mão para que ela a beijasse, e depois ajudou-a a erguer-se.
- Vamos - disse o rei -, desististe de muita coisa para te juntares ao teu bom arqueiro, bela senhora. Sou obrigado a admitir que escolheste um homem ousado
e corajoso. Na qualidade de teu tutor, entrego-te àquele a quem já te entregaste.
E ao dizer isto, o rei uniu as mãos de Robin e de Marian, que se sentiam muito felizes por terem obtido o perdão real, quando eles tinham agido contra os
seus direitos de um modo claramente deliberado!
- Mas - prosseguiu o monarca, sorrindo - cometeste tantos atos ousados, Robin, que tenho de arranjar uma qualquer forma de te fazer pagar por eles. Assim,
depois de todos estes anos de luta e de clandestinidade, condeno-te a levar uma vida tranquila. Pega na tua bela dama e vai viver com ela nas terras que lhe pertencem,
em Malaset, em paz com os meus veados e com os teus súditos. Cumpre as leis que os meus conselheiros promulgarem, tendo em vista a paz e a prosperidade deste reino.
Será fazendo isto que conseguirás o meu perdão.
- Meu rei e senhor - disse Robin, profundamente comovido pela generosidade do outro -, graças à bondade por ti demonstrada tratarei de ser sempre um teu
servidor fiel e leal.
- De Warenne - disse o rei Ricardo -, certifica-te que Robin, por intermédio de Marian, a sua esposa, entra na posse de todas as terras e bens que lhe pertencem.
- Cá me encarregarei disso, senhor - retorquiu o bravo duque Hamelin -, e quanto mais depressa, melhor, pois estou ansioso por poder contar com a ajuda de
Robin para receber os impostos com a devida prontidão nas propriedades do Lancashire.
O monarca soltou uma gargalhada e voltou-se para o fora-da-lei.
- Agradeço-te a ajuda que deste quando se tratou de conseguir o dinheiro para o meu resgate - disse ele.
De seguida, Robin conduziu Sir Richard de Lee até junto do rei, e este escutou o que o outro tinha para lhe dizer e sentiu-se feliz por lhe devolver as suas
terras e por lhe perdoar ter atuado contra a lei quando ajudara o proscrito.
Por último, Alan-a-Dale e Lady Alice ajoelharam-se frente ao rei, que escutou a forma como eles, na companhia de Sir Walter de Beauforest, o pai da dama,
tinham caído em desgraça junto a Sir Isenbart de Belame, e de como estavam sempre com medo que o cavaleiro desferisse um ataque-surpresa contra as suas propriedades.
O rei tratou de dar início a um inquérito pormenorizado relativo às ações dos senhores de Wrangby, e o seu semblante ensombrou-se de raiva ao tomar conhecimento
dos muitos atos perversos por eles cometidos.
- Sem dúvida que são mesmo cruéis! - acabou ele por exclamar, tristemente. - Mas eu e os outros filhos do meu querido pai devemos arcar com as responsabilidades
da sua existência, já que mergulhamos o reino em toda a espécie de guerras mesquinhas e de confusões. E o meu irmão João fez o mesmo enquanto eu lutava pela libertação
do Santo Sepulcro e estes indivíduos desprovidos de escrúpulos o rodeavam. De Warenne, ainda não disse a minha última palavra no que se refere a estes senhores do
Forte do Mal! Deixa-me ajustar contas com aquele traidor, Filipe de França, e expulsá-lo das minhas terras da Normandia e da Aquitânia, depois regressarei a casa
e tratarei de limpar todos estes castelos venenosos, libertando-os dos vespeiros e dos ninhos de serpentes que se ocultam atrás das suas muralhas.
Passados dois dias, o mensageiro do rei entregava um pergaminho ao soldado que fazia a guarda junto ao portão do Castelo de Wrangby, recusando-se a aí permanecer
ou mesmo a entrar, como sinal de descontentamento do rei. Quando Isenbart de Belame leu o que estava escrito, a sua boca contorceu-se num esgar amargo.
- Com que então?! - exclamou ele, trocista. - O rei acolhe foragidos no seu seio porque necessita de bons arqueiros para travar as suas guerras na Normandia.
E quer que eu saiba que tudo o que de mal aconteça a Sir Walter de Beauforest, Alan de Tranmire e a Lady Alice será considerado crime contra a pessoa do rei, logo,
um ato que deverá ser punido como traição.
Atirou o pergaminho ao chão e nos seus olhos ardia um fogo diabólico.
- Lá terei eu de esperar um pouco mais - murmurou para si mesmo. - Quem sabe? O rei vai brincar à tomada de castelos com Filipe da França. Talvez acabem
por o matar, e, então, quando o duque João subir ao trono, serei autorizado a fazer aquilo que quero com este fora-da-lei insolente e todos os seus amigos. É melhor
mostrar-me paciente e esperar pela minha hora.
  Satisfazendo os desejos do monarca, Robin e a bela Marian instalaram-se nos terrenos de Malaset, recebendo-os de volta daquele que se dizia o seu guardião,
Scrivel de Catsty, que lhes entregou o castelo, a mansão e todas as terras pertencentes à propriedade. Foi aqui que Robin ficou a viver, em paz e em sossego, cuidando
daquilo que pertencia à mulher com o máximo dos cuidados, defendendo as terras da cobiça dos vizinhos e conquistando a lealdade de todos os seus vilões e homens
livres por meio da sua bondade e franqueza.
A ele se juntaram Hob da Colina e Ket, o Duende, bem como as duas irmãs de ambos. A mãe morrera há pouco na pequena colina verde, e tudo o que eles queriam
era sair dali. João Pequeno também partiu junto com Robin, o mesmo se passando com Gilbert da Mão Branca, que casou com Sibbie, uma das irmãs do povo das fadas,
ficando ambos a viver numa moradia que Robin lhes ofereceu. Quanto à outra irmã, Fenella, casou com Wat Graham, de Car Peel, um bravo guerreiro oriundo da raia,
e consta que os seus filhos possuíam os dons próprios do povo das fadas: a segunda visão, a invisibilidade e uma força sobrenatural.
Quanto aos restantes fora-da-lei, todos eles aceitaram a oferta do rei Ricardo, que lhes prometeu salários elevados e um saque chorudo, e seguiram com o
rei para a Normandia, dispostos a lutar contra o rei de França e os rebeldes de Poitou. Foi lá que a maior parte deles deixou ficar os ossos. Alguns conseguiram
regressar depois da morte do rei Ricardo. Uns vieram ricos devido ao fruto de bons saques, outros chegaram tão pobres quanto haviam partido, e o certo é que, gradualmente,
todos convergiram para Malaset, onde o "Sr. Robin", pois assim era ele agora conhecido, os instalou nas suas terras.
Entre aqueles que regressaram de França estavam Will, o Arqueiro, Scarlet e Much, o filho do moleiro. Arthur-a-Bland fora morto por altura da tomada do Castelo
de Chaluz, onde também ocorreu a morte do soberano, enquanto Scadlock se afogou, vítima de uma tempestade, mesmo ao largo de Rye. Com os velhos fora-da-lei que restavam,
Robin organizou o melhor corpo de soldados que alguma vez marchou para sul sob os estandartes dos barões, o que aconteceu quando, no ano de 1215, estes acabaram
por decidir juntar-se ao seu rei e ajudá-lo a combater a tirania e a opressão.
E assim se passaram dezesseis anos sobre as cabeças de Robin e de Marian, a sua bela esposa, e mal-grado todos os problemas e confusões que agitaram as mentes
dos homens e semearam a confusão no reino quando o rei João desafiou o papa, a verdade é que, em Malaset, esses anos foram de felicidade.
Porém, no seu Castelo de Wrangby, Sir Isenbart de Belame continuava a alimentar os seus planos de vingança em relação a Robin dos Bosques, e, pacientemente,
continuava à espera da sua hora. Era com frequência que recebia a visita de Sir Guy de Gisborne e mantinha contatos com Baldwin, o Assassino, Sir Roger de Doncaster
e Sir Scrivel de Catsty, e todos procuravam descobrir qual a melhor forma de apanhar e matar Robin, assim que para tal se registasse a oportunidade.



10.
O INCÊNDIO NO FORTE DO MAL

Era um dos primeiros dias de Inverno do ano de 1215. Um grupo de homens marchava ao longo das terras situadas a leste das charnecas desoladas do Peak. À
sua cabeça cavalgava Robin dos Bosques, envergando uma cota de malha, o elmo que lhe cobria a cabeça cintilando ao sol-poente. Atrás de si seguiam sessenta dos seus
homens, indivíduos bronzeados e de rosto honesto, cada um transportando o seu arco e a respectiva aljava, e uma espada pendurada à cintura. Uma das formações era
composta pelos seus velhos fora-da-lei, sendo que no meio deles sobressaíam a cabeça e os ombros de João Pequeno, os olhos castanhos e perspicazes cravando-se com
intensidade nesta e naquela direção, abarcando assim aquelas vastas charnecas que, de ambos os lados, se estendiam até um horizonte rosado. Imediatamente atrás de
Robin seguia Ket, o Duende, forte apesar de baixo, um lutador, ainda que todos os seus olhares e gestos revelassem uma grande dose de inteligência. Não muito longe
encontravam-se Scarlet, Will Stuteley e Much, o filho do moleiro.
A face de Robin estava toldada por uma expressão pensativa, até mesmo sombria. Juntara-se aos barões quando estes se haviam erguido contra a tirania de João,
e deixara-se ficar com eles no sul, acreditando que a luta pela liberdade fora, de fato, ganha. Viera então a saber estarem mercenários estrangeiros a chegar ao
país, dispostos a ajudar o rei contra os seus barões rebeldes. As hordas estrangeiras, sedentas de sangue e de pilhagens, haviam revelado uma força tal, que os barões
se sentiram desanimados e quase bateram em retirada. Muitos foram os que partiram para defender os seus castelos e terras, pois chegou-lhes aos ouvidos que os mercenários
do rei haviam seguido para norte, saqueando, queimando e matando. Robin dos Bosques fizera o mesmo, pois receava que algo de mal viesse a suceder à esposa, que continuava
a viver no pacato vale de Malaset, nas charnecas de Lancaster.
De fato, Robin interrogava-se sobre se não adiara a partida durante demasiado tempo. A cada passo que davam rumo ao norte era possível ver as marcas da rapina
e do massacre que indicavam que o rei por ali tinha passado na companhia das suas hordas estrangeiras. Todas as casas e aldeias por onde passavam encontravam-se
destruídas pelo fogo, havia cadáveres estendidos na neve, amontoados junto às pedras dos lares daqueles que, em vida, haviam conhecido o riso e a alegria, mas que
agora estavam mortos. O fumo elevava-se no horizonte invernoso, revelando os locais onde os massacres perpetrados pelo exército de rufiões comandados por um rei
sem qualquer vergonha continuavam a fazer-se sentir. Passaram por um castelo que outra coisa não era para além de um monte de ruínas fumegantes, e no seu salão de
paredes negras foram encontrar duas jovens damas, uma delas muda devido ao desgosto, a outra meio enlouquecida, e ambas debruçadas sobre o cadáver do pai, a quem
o rei torturara até à morte numa tentativa de o levar a confessar o lugar onde escondera o dinheiro que possuía.
De vez em quando, enquanto cavalgava, Robin levantava a cabeça e deitava uma olhadela rápida à sua frente. Apavorava-o a hipótese de ver uma coluna de fumo
elevar-se nos ares, o que demonstraria haver um grupo de soldados pertencentes ao cruel exército do rei avançando até Malaset. Mas contra o violeta característico
daquele céu de Inverno onde o Sol se punha não se recortava uma única nuvem cinzenta.
Por fim, a estrada começou a descer, afastando-se das charnecas e começando a correr por entre desfiladeiros e rochedos calcários, rumo ao vale de Malaset.
De forma quase inconsciente, Robin estugou o passo, tão ansioso se sentia por chegar ao ponto onde, numa curva da estrada, lhe seria possível avistar o castelo.
Quando chegou ao local em causa, parou durante um momento, e os seus homens, que corriam atrás dele, ouviram-no lançar um grito pavoroso. No momento seguinte, esporeou
os flancos da montada e precipitou-se pela estrada inclinada.
Os outros acabaram por chegar à curva e olharam para o vale onde se situava o castelo. Uma fina espiral de fumo, como que proveniente de uma pilha de madeira
úmida, elevava-se nos ares, ao mesmo tempo que um silêncio terrível pairava sobre toda a região. Os homens soltaram um gemido e começaram a correr, deixando escapar
gritos medonhos de desespero e vingança à medida que se precipitavam rumo às casas incendiadas e aos corpos sem vida dos seres que lhes eram queridos.
Revelando uma calma estranha e fria, Robin saltou do cavalo e encontrou-se no átrio do castelo, onde se viam corpos de homens espalhados um pouco por toda
a parte, imóveis e contorcidos. Dirigiu-se para o salão. Uma tênue coluna de fumo enchia a divisão. O local fora incendiado, mas o fogo acabara por não pegar. Apenas
uns quantos assentos empilhados ardiam e entre eles viam-se os corpos dos assaltantes e dos defensores do castelo enlaçados no abraço feroz que havia significado
a morte de ambos. Robin subiu a escada que conduzia aos aposentos da sua senhora.
A porta encontrava-se fechada e ele abriu-a com cuidado. Aí, iluminada pela luz do sol-poente, estava uma figura deitada na cama, o rosto muito pálido e
imóvel. Era Marian. O corpo estava vestido de negro e não se movia, e Robin percebeu que ela estava morta. As suas mãos, esguias e brancas, estavam cruzadas sobre
o peito, e o cabelo escuro emoldurava-lhe o rosto e o colo, conferindo-lhes uma beleza suave. Junto ao corpo via-se uma flecha de haste negra.
Um movimento súbito fez estremecer o cortinado de arrás e a figura esguia de uma mulher precipitou-se para ele e prostrou-se de joelhos à sua frente. Tratava-se
de Sibbie, a mulher de Gilbert da Mão Branca, a jovem do povo das fadas que servira de dama de companhia a Marian. Não chorava, mas, quando ergueu para Robin os
seus grandes e fiéis olhos castanhos, neles havia uma grande dor.
- Quem foi que fez isto, Sibbie? - perguntou Robin, a voz baixa, controlada.
- Quem mais para além de Isenbart de Belame?! - respondeu a mulher, fazendo esforços para se controlar. - Matou-a quando a senhora estava a falar com ele
na guarita junto ao portão. Foi com esta flecha, a mesma que o meu irmão Hob disparou contra a sua mesa no Forte do Mal, que ele lhe tirou a vida. Ela caiu nos meus
braços, sorriu-me, mas não conseguiu falar e acabou por morrer. No segundo dia, só ontem é que se foram embora, assaltaram o castelo, mas a luta que se travou no
átrio e no salão foi bastante encarniçada, e, então, receando o teu regresso, pilharam as casas um pouco por toda a propriedade e partiram, levando o meu irmão Hob,
que está ferido, como prisioneiro, bem assim como outros dez dos nossos homens, a quem prometeram torturar assim que chegassem ao Forte do Mal.
Ket, o Duende, entrara no quarto imediatamente atrás de Robin e escutara tudo. A irmã virou-se para ele e, em silêncio, apertaram as mãos. Quando as soltaram,
ambos ergueram o indicador no ar e esboçaram um gesto semelhante ao de quem escreve uma letra ou procede a uma narração. Tratava-se do sinal de vingança eterna através
do qual o povo do Mundo Subterrâneo jura enfrentar o fogo e as tempestades, todos os males e reveses da fortuna, e nunca vacilar na sua demanda, nunca descansar
até vingarem a morte dos que lhe são queridos, neste caso, a da sua senhora.
Robin baixou-se e beijou a testa fria da esposa. De seguida, descobrindo a cabeça, ajoelhou-se ao lado dela e começou a rezar. Não pronunciou uma só palavra,
mas pediu o auxílio da Virgem, para que esta o ajudasse a cumprir o voto por si feito de eliminar por completo a vida e o poder do senhor que reinava no Forte do
Mal, fazendo o mesmo com todos os que o acompanhavam nos seus atos cruéis.
Nessa noite, à luz dos archotes, o corpo de Marian foi colocado no túmulo junto àquele onde repousava o pai e os restantes familiares, na pequena igreja
de Malaset. E no castelo, os vilões e os rendeiros que haviam fugido das suas quintas e pequenas propriedades por altura da aproximação de De Belame e da sua horda
cruel mostravam-se agora ocupados a polir furiosamente armas e escudos. Todos se encontravam dominados por uma forte resolução, a de morrer na tentativa de derrubar
o Forte do Mal e todo o seu poder.
Quando o dia nasceu, em silêncio, Robin e o seu grupo fizeram-se ao caminho. Nem por uma única vez olharam para trás, bem pelo contrário, enquanto subiam
a estrada que corria pela charneca, não desviavam os olhos do leste. Foi por esta altura que Robin enviou um mensageiro a Sir Herbrand de Tranmire, agora um homem
de idade, recordando-o da promessa que ele fizera de o ajudar a destruir o Castelo de Wrangby, ao mesmo tempo que lhe pedia que, caso não estivesse em condições de
se lhe juntar pessoalmente, mandasse ao seu encontro, bem armados, todos os homens que conseguisse reunir. O local de  encontro seria Mark Oak, perto de Wrangby
Mere. Robin enviou mensagens semelhantes a todos os cavaleiros e homens livres que haviam sofrido a opressão de De Belame. Muitos haviam prometido ajudar o "Sr.
Robin", caso ele alguma vez necessitasse, já que o consideravam um homem generoso e cheio de coragem, e sabiam que acabaria por chegar o dia em que teriam de unir
as suas forças às dele, para acabarem de uma vez por todas com as vilanias e as crueldades do Forte do Mal.
Enquanto seguia para Wrangby, Robin parou em todos os castelos e casas senhoriais e pediu aos cavaleiros que aí viviam que o ajudassem. Alguns dos locais
por onde passou estavam em ruínas, encontrando-se mortos os seus bravos defensores, vítimas da crueldade daquele que era o seu rei. Contudo, foram muitos os homens
que não hesitaram em responder ao seu apelo, de forma que, quando a tarde chegou ao fim e o crepúsculo se estendeu sobre a charneca envolta em brumas, e Robin avistou
o Castelo de Wrangby, acompanhavam-no cerca de três mil homens, o suficiente, pelo menos, para impedir qualquer ataque da parte da guarnição.
Imobilizou-se à distância de um tiro de arco do portão principal e fez soar a corneta. Na torre que se erguia sobre o portão apareceram dois homens de armadura,
um deles ostentando um elmo de bronze, que brilhava de forma frouxa àquela luz desmaiada.
- Quero falar com Isenbart de Belame! - gritou Robin.
- Cabeça-de-lobo! - foi a resposta, que soou como um rugido. - Estás a falar com Isenbart de Belame, senhor de Wrangby e de Fells. Que desejas tu e essa
escumalha que está contigo?
- É o que te vou dizer - retorquiu o recém-chegado. - Entrega-te e traz contigo aqueles que fizeste prisioneiros! Os teus pares encarregar-se-ão de julgar
as tuas ações cruéis e a morte da minha esposa, Lady Marian. Caso não faças o que te pedimos, tomaremos o teu castelo pela força e serás responsável não apenas pela
tua morte mas também pela morte dos teus homens.
- Se não tiveres deixado as minhas terras até ao nascer do dia, tu e esse grupo de maltrapilhos que te acompanham - respondeu o outro, feroz -, vou até aí
e espanco-vos até à morte com os chicotes que uso para bater nos cães. Desaparece, meu grande patife e cabeça-de-lobo! Recuso-me a continuar a falar contigo!
  E esboçando um gesto que parecia indicar não dispor de tempo nem vagar para perder com criaturas tão desprezíveis, deu meia volta e pôs-se a falar com o
cavaleiro que estava do seu lado. Ambos tinham as viseiras corridas e, no lusco-fusco do sol-poente, as suas figuras pareciam diminuir de tamanho de momento a momento.
Subitamente, uma figura de pequenas dimensões avançou para a frente do cavalo de Robin, imobilizou-se e ouviu-se o ruído feito pela corda de um arco. No instante
seguinte, viu-se o cavaleiro que se encontrava junto a De Belame levar as mãos à viseira e vacilar. No entanto, recuperou o equilíbrio de forma quase instantânea
e puxou uma flecha de entre as barras que compunham a viseira do elmo. Esboçando um gesto raivoso, atirou-a sobre a muralha e gritou qualquer coisa que os outros
não conseguiram perceber.
Fora Ket, o Duende, quem efetuara semelhante disparo à luz do sol-poente e os homens interrogavam-se sobre como lhe fora possível acertar tão claramente
no alvo. Porém, devido ao fato de a seta ter sido disparada de uma distância tão grande, aquela limitara-se a ferir de raspão a testa do cavaleiro.
Nessa noite, Robin e os seus homens não se afastaram do castelo, evitando assim que alguém aí pudesse entrar ou sair sem ser visto. E foi debaixo do carvalho
de Mark Oak que ele se reuniu com os cavaleiros que tinham vindo em seu auxílio.
- Sr. Robin - disse um deles, Sir Faulk de Dykewall -, não consigo ver de que forma podemos nutrir quaisquer esperanças de provocar a queda de semelhante
fortaleza. Não temos máquinas de cerco, não podemos abrir qualquer brecha na muralha, o fosso está cheio de água e duvido que um homem como Isenbart de Belame não
tenha provisões suficientes para suportar um cerco prolongado.
- Não vejo por que razão não podemos tomar o castelo - contrapôs o jovem Sr. Denvil de Toomlands, impetuoso e valente como um falcão. - Podemos pedir aos
camponeses de Wrangby, que odeiam os amos, que cortem as árvores e nos construam jangadas. Com a ajuda destas e protegidos pelos nossos escudos podemos atravessar
o fosso e cortar as correntes que prendem a ponte levadiça. Depois, ficaremos em condições de levantar a grade e, uma vez lá dentro, nada nos impede de derrubar
o portão.
Depois de muito discutirem, esta acabou por parecer a única forma capaz de lhes permitir tomar o castelo. Sem dúvida que implicaria a perda de muitas vidas,
mas as muralhas do castelo eram altas e espessas, não existindo outra forma de nelas entrar ou sair à exceção do enorme portão. Ket, o Duende, acabou por ser chamado,
e pediram-lhe que se fosse encontrar com os vilões de Wrangby, que moravam numa série de choupanas a cerca de quilômetro e meio de distância do castelo, e que lhes
pedisse para ajudarem Robin a derrotar os indivíduos cruéis que tinham por senhores. Regressou passada uma hora.
- Procurei Cole, o Bailio - disse ele -, e transmiti o teu pedido. Ele chamou os seus conselheiros e explicou-lhes o que querias. Apesar de os seus olhos
revelarem que estavam prontos a partir, a verdade é que se deixaram ficar calados durante muito tempo a pensar. Por fim, um deles disse: "O Forte do Mal já foi cercado
seis vezes por senhores muito poderosos e nunca ninguém o conseguiu tomar. Satanás protege os que lhe estão próximos, e é inútil combater estes senhores cruéis.
Sempre tiveram poder e sempre o terão." Depois disto, tudo o que lhes disse abateu-se contra uma cortina de silêncio e, abanando a cabeça, acabaram por se ir embora.
Assim, Robin dividiu os seus homens em grupos e pediu-lhes que se revezassem durante a noite e se pusessem a cortar árvores novas para a construção das jangadas
e de pequenas escadas destinadas a alcançar as correntes da ponte levadiça. E à luz dos archotes, entre o arvoredo, o trabalho prolongou-se durante toda a noite,
enquanto Robin andava de um lado para o outro encarregando-se de vigiar todas as operações. Pouco faltava para o nascer do dia quando decidiu dormir um pouco, mas
foi acordado pela chegada de um grupo de camponeses de Wrangby, os mesmos que, na noite anterior, se haviam recusado a ajudá-los a combater os seus senhores. À frente
deles estava um homem idoso, de cabelo grisalho e feroz de aspecto. Tinha nas mãos uma enorme gadanha, cuja lâmina larga era tão afiada e brilhante quanto a de uma
navalha. Quando Robin o viu, reconheceu-o como se tratando do homem que consigo competira no concurso de tiro realizado em Nottingham, na presença do xerife.
- Mestre - disse o homem, dirigindo-se a Robin -, venho trazer-te estes homens. A noite passada recusaram-se a colaborar contigo. Não se estavam a comportar
como homens de verdade, mas eu acabei por falar com eles e agora estão dispostos a ajudar-te a destruir este ninho de bandidos que se dizem senhores e outra coisa
não fazem para além de matar mulheres e crianças e de estropiar os homens.
  - Estou-te muito grato, Rafe da Gadanha - retorquiu Robin, e voltou-se para os camponeses. Um deles deu um passo em frente e decidiu falar em nome dos companheiros.
- Fizemos um juramento - disse ele - e iremos contigo até ao fim. Preferimos ser destruídos agora do que continuar a viver sob o jugo daqueles que nos oprimem.
Estes homens pobres pareciam deprimidos e cheios de desalento, como se tivessem sido despojados de toda a virilidade devido aos maus tratos que tinham sofrido
às mãos dos seus senhores.
- Não falharemos, irmãos - disse Rafe, agitando a gadanha com um brilho feroz a iluminar-lhe o olhar. - Quando me expulsaram da minha cabana na floresta
de Barnisdale e mataram a minha mulher e o meu filho, jurei que acabaria por regressar e que ajudaria a expulsar estes malvados do seu ninho de pedra. Chegou a hora,
irmãos, e Deus e a Virgem estão do nosso lado, prontos a lutar por nós.
- Isso quer dizer que és o Thurstan da Cabana de Pedra, a quem Isenbart de Belame expulsou de casa há trinta anos? - quis Robin saber.
- Dizes bem - replicou o outro. - Regressei na devida altura.
Comandados por este homem e com a ajuda de João Pequeno e de Gilbert da Mão Branca, os homens não demoraram muito a dar por concluídos os preparativos, e,
depois de terem comido uma boa refeição e escutado a sua missa, as jangadas foram transportadas até ao fosso, mesmo em frente ao enorme portão.
Foram saudados por uma chuva de flechas, mas aqueles que estavam encarregados das jangadas contavam com o apoio de um grupo de arqueiros, comandados por Scarlet
e por Will Stuteley, que examinavam com olhos argutos todas as fendas existentes na muralha. As suas setas encontravam e atingiam tudo o que se mexesse atrás das
seteiras, e quem quer que se aproximasse das ameias do castelo era abatido com várias flechas. Rapidamente, as jangadas foram lançadas à água e empurradas para o
lado de lá do fosso, e encostaram-se as escadas às soleiras da grande ponte levadiça que bloqueava o acesso à grade e aos portões que se ocultavam atrás dela.
Passado pouco tempo, o barulho do ferro a bater contra o ferro testemunhava a força com que os ferreiros tentavam quebrar as correntes que, de um lado e de
outro, mantinham a porta levantada. Durante algum tempo ficou-se com a sensação de que esta seria uma tarefa fácil, já que os arqueiros de Robin faziam com que se
tornasse impossível alguém apoiar-se nas ameias com o intuito de os alvejar. Mas de um momento para o outro os portões interiores abriram-se de par em par e uma multidão
de arqueiros começou a disparar na direção dos ferreiros através das barras do gradeamento. Um dos ferreiros caiu da escada e mergulhou no fosso, uma enorme flecha espetada
no peito. O outro homem ficou com a mão trespassada.
Contudo, estes dois não tardaram a ser substituídos, e Scarlet, Will, o Arqueiro, bem como dois outros indivíduos peritos em manejar o arco, subiram para
as escadas com os ferreiros, retribuindo os tiros o melhor que podiam, embora o espaço fosse de tal forma exíguo, que mal podiam esticar as cordas dos arcos. Ao
fim de algum tempo, ergueu-se um grito - uma corrente fora cortada e a ponte não parava de tremer e de abanar. Mais uns quantos golpes desferidos com o martelo no lado
oposto e, com um estrondo impressionante, a ponte caiu sobre o fosso, partindo-se em duas devido ao seu próprio peso.
Robin, acompanhado por um grupo especial de arqueiros, precipitou-se para a ponte destruída, que, no entanto, mantinha ainda condições suficientes para eles
passarem, e, disparando por entre as barras que constituíam a grade, fizeram chover uma tal quantidade de flechas, que a guarnição, que não estava muito bem fornecida
de arqueiros, se viu obrigada a retirar para lá dos portões, os quais acabaram por fechar.
De seguida, quarenta mãos pegaram num enorme tronco de árvore e, tendo a ponte sido coberta com traves no intuito de aguentar o peso daqueles homens, o aríete
começou a abater-se contra a grade. Esta operação repetiu-se uma e outra vez, enquanto os arqueiros que estavam na margem disparavam contra os que se encontravam
nas muralhas do castelo ou junto às seteiras, na tentativa de abaterem os assaltantes. Ainda assim, muitos dos homens de Robin acabaram por morrer, uma vez que a
defesa era tão encarniçada quanto o ataque, e por todo o castelo se podiam escutar as vozes de Sir Isenbart e dos cavaleiros que o seguiam, a saber, Sir Baldwin,
Sir Scrivel, ou Sir Roger de Doncaster, todos eles gritando iradamente com os arqueiros e com aqueles que atiravam pedras, ordenando-lhes que prosseguissem com os
seus esforços. Vários de entre os arqueiros de Robin, bem como alguns membros do grupo que manobrava o aríete, embora tivessem as cabeças protegidas por escudos,
foram mortos ou feridos por setas, ou mesmo esmagados por enormes pedras, mas a verdade é que o grande tronco continuou a abater-se contra a grade, fazendo-a estremecer
e abrir brechas aqui e ali.
Finalmente, o portão do castelo lá se voltou a abrir, dele saindo uma outra chuva mortal de flechas, as quais conseguiram espalhar a morte por entre as barras
que formavam a grade. Contudo, Robin pôs-se à frente dos seus arqueiros e mais uma vez obrigou a guarnição a retirar, enquanto outros soldados tratavam de ocupar
os lugares deixados vagos junto ao aríete, cuja cabeça estava de tal forma coberta de fendas e machucada, que lembrava bastante uma esfregona. Fosse como fosse,
continuava a bater contra as barras do gradeamento, duas das quais estavam agora tão torcidas e cheias de fendas, que pouco faltava para que a enorme grade se rasgasse
o suficiente para permitir a entrada dos homens.
Robin, Sir Faulk e um outro cavaleiro, Sir Robert de Staithes, encontravam-se junto ao grupo que manejava o aríete, incentivando-os a andar depressa, e Robin
não desviava os olhos do portão interior, não fosse este abrir-se de novo e deixar escapar uma outra chuva de flechas.
- Só mais três boas pancadas com esse tronco de carvalho, rapazes! - gritou Robin. - É quanto basta. O portão de madeira não nos vai dar qualquer problema!
Foi então que se escutaram os gritos de Will, o Arqueiro, que estava na margem, junto com os seus arqueiros.
- Para trás! Para trás! - gritou ele. - Estão a despejar fogo!
- Atirem-se ao fosso! - ordenou Robin assim que escutou os gritos de aviso. A maior parte dos homens ouviu-o e saltou imediatamente. Contudo, alguns desgraçados
não o fizeram a tempo.
Das ameias escorria uma vaga de carvão a ferver e logo depois seguiram-se ferros em brasa e pedras aquecidas ao rubro. Cerca de meia dúzia de homens que
não escutaram os gritos foram atingidos por aquela chuva mortal, acabando por morrer. Os ferros em brasa e as pedras aquecidas ao rubro de imediato puseram as traves,
a ponte e o aríete a arder, uma vez que todas estas coisas se encontravam cobertas de carvão, e não demorou muito para que alastrasse o incêndio, impedindo os sitiantes
de concretizar aquilo que, há alguns momentos, parecia uma vitória garantida.
  Robin e os que tinham escapado nadaram até à margem, ao passo que Will e os seus arqueiros vasculhavam as muralhas com as suas setas. Contudo, não conseguiram
evitar que o alcatrão fosse derramado, uma vez que os homens que o arrastaram até às ameias estavam protegidos com escudos que outros indivíduos seguravam.
Robin olhou para o abismo de fogo que se estendia à sua frente e depois para os rostos zangados e sombrios dos seus homens.
- Não se preocupem, rapazes! - gritou. - Eles agora também não podem sair, e assim que o fogo se tiver consumido, colocamos novas vigas e atravessamos o
fosso outra vez. Bastam algumas pancadas para que as barras se abram o suficiente para nos deixar passar. Scarlet, tu e o Will - disse, voltando-se para Stuteley
e para o outro velho fora-da-lei -, não deixem que ninguém daquela maldita guarnição venha reparar as barras que estão partidas.
- O desgraçado que a tanto se atrever terá de consertar primeiro o buraco que eu lhe fizer na carcaça - disse Scarlet, soltando uma gargalhada. E deitou
uma olhadela rápida à seteira e à ameia à sua frente, ao mesmo tempo que estendia o arco, pronto a disparar.
Passava já do meio-dia e, enquanto um grupo vigiava a grade e o outro consumia uma refeição apressada, um terceiro grupo partiu com os camponeses para cortarem
uma série de vigas novas.
Enquanto Robin dirigia o trabalho dos lenhadores, reparou num enorme grupo de peões que atravessavam a charneca, precedidos por dois cavaleiros. Os seus
olhos perspicazes fixaram-se nos brasões que estavam nos escudos, e ao ver três andorinhas brancas num deles e cinco árvores verdes no outro esboçou um aceno de
boas-vindas com a mão. Tratava-se de Sir Walter de Beauforest e do jovem Alan-a-Dale, não demorando muito para que eles estivessem a cumprimentar o fora-da-lei com
um aperto de mão.
- Recebemos ontem a tua mensagem - disse Sir Walter - e viemos assim que nos foi possível. Espero que não tenhamos chegado demasiado tarde.
- Não, o castelo ainda não caiu nas minhas mãos - retorquiu Robin -, daí que as tuas forças sejam bem-vindas.
De seguida, contou-lhes o que fizera e os planos por ele elaborados para tomar o castelo, planos estes que os outros acharam bons, prometendo ajudá-lo em
tudo o que pudessem.
 Alan disse-lhe que Sir Herbrand mandara uma companhia para o ajudar, mas, estando ele velho e fraco, era-lhe impossível seguir até ali em pessoa, independentemente
do quanto gostasse de desferir um golpe mortal contra os seus inimigos de Wrangby. Enquanto isto, Ket, o Duende, percorria o acampamento com uma expressão sombria.
Por vezes, juntava-se aos arqueiros que estavam na margem do fosso, sendo os seus olhos os mais rápidos a detectar todo e qualquer movimento junto a uma seteira
ou nas ameias, e as suas flechas eram sempre as primeiras a partir ao encontro do alvo. Contudo, tudo aquilo estava a ser muito lento para ele, que ansiava vingar-se, quanto
antes, pela morte da sua senhora bem-amada. Como se isto não bastasse, sabia que dentro daquele castelo estava Hob, o seu irmão muito querido, sem dúvida encerrado
numa qualquer masmorra nauseabunda, ferido, e talvez a ser alvo de torturas cruéis.
E lá andava Ket em volta do castelo, avançando de esconderijo em esconderijo, os seus olhos escuros tentando encontrar nas pedras lisas da muralha uma qualquer
nesga através da qual pudesse entrar. Já lá estivera uma vez, por altura da morte de Ranulf de Waste, quando disparara uma mensagem presa a uma seta e esta se fora
cravar no tampo da mesa, mesmo em frente a Sir Isenbart de Belame. Nessa noite, seguira uns quantos cavaleiros que regressavam de uma das suas expedições, trazendo
ricos objetos saqueados e um grupo de prisioneiros para trocar por um resgate. Colara-se praticamente a eles e, no meio da confusão, cruzara o portão, escondendo-se
entre as trevas. Então, já durante a noite, deixara-se deslizar por um cano cuja boca se abria cerca de três metros e meio acima do fosso e, a coberto de uma tempestade
de chuva e vento, caíra na água e acabara por fugir dali sem que nada de mal lhe sucedesse.
Mas agora, e por muito que se esforçasse, as enormes e altas muralhas desconcertavam-no, pois não descobria uma única maneira de entrar naquela fortaleza.
Uma vez lá dentro, não duvidava de que conseguiria descobrir o caminho que o levaria ao irmão, libertá-lo, matar os guardas e abrir os portões para dar passagem
a Robin e aos seus homens.
Escondeu-se por entre os ramos de uma avelaneira, nas traseiras do castelo, e começou a examinar as paredes com atenção. De vez em quando, olhava em volta,
perscrutando a charneca até onde a floresta e as colinas se cruzavam com as terras de Wrangby.
Que era aquilo? De repente, aconteceram duas coisas estranhas em simultâneo. Viu uma espada brilhar duas vezes nas ameias do castelo, como se de um sinal
se tratasse, e no mesmo instante viu também um reflexo do que lhe pareceu ser uma arma elevar-se de entre as árvores desprovidas de folhas num dos extremos da floresta,
a cerca de oitocentos metros de distância. Voltou a olhar atentamente para o mesmo ponto, mas nada se voltou a mostrar ou mover.
"É estranho", pensou Ket. "Será um sinal? Se assim é, a quem estaria o homem do castelo a fazer sinais?" 
Ket não demorou muito a decidir-se e, como um furacão, avançando de arbusto em arbusto, dirigiu-se para a floresta. Quando chegou à sua orla, espreitou por
entre as árvores. Aí, com os focinhos dos cavalos amarrados para os impedir de fazer barulho, encontravam-se cerca de trinta cavaleiros de aspecto feroz. Reconheceu-os
de imediato. Eram os homens de Thurlstan, das mãos de quem, há muitos anos, tirara a bela Marian. Um homem levantou a cabeça coroada de cabelos brancos e espreitou sobre
a charneca, olhando para o acampamento dos sitiantes. De seguida, a sua boca contorceu-se num esgar trocista e Ket percebeu que se tratava do velho Grame Gaptooth
em pessoa, o senhor de Thurlstan.
- Falta uma hora para escurecer - disse o velho cavaleiro. - Depois disso, trataremos de pôr aquela escumalha em fuga.
Ket, de imediato, adivinhou, e acertadamente, que aqueles saqueadores, parentes de Sir Isenbart, preparavam-se para se reunir aos outros e acompanhá-los
nas investidas do rei João, atraídos pela perspectiva dos massacres e do produto dos saques que os aguardavam. Depois de descobrirem que o castelo se encontrava
sitiado, haviam informado os amigos da sua presença e estavam agora à espera que aquele curto dia de Inverno chegasse ao fim. Quando tal acontecesse, lançar-se-iam contra
o bando de Robin, e Sir Isenbart, ao escutar os seus gritos, daria o sinal de ataque. Então, surpreendidos e apanhados entre duas forças, quem sabe?, talvez Robin
dos Bosques e os seus homens fossem feitos em pedaços.
Com a agilidade de um gato-bravo, Ket começou a recuar, embrenhando-se na floresta que se estendia nas costas dos cavaleiros. Avançava com todo o cuidado,
pois o estalar de um só ramo podia traí-lo e revelar a sua presença àquela gente sedenta de sangue. Percorridos uns cinquenta metros, levantou-se com cautela e, como
uma sombra, esgueirou-se de árvore em árvore, correndo pela floresta até chegar ao acampamento de Robin.
Do ponto onde se encontravam, os homens de Thurlstan escutaram os gritos dos homens que desafiavam a guarnição, bem como as palavras de comando proferidas
por Robin e pelos cavaleiros que com ele se encontravam, palavras breves e secas, e que se destinavam a supervisionar o trabalho de colocação de vigas de madeira
no fosso em frente ao portão. Depois, passado pouco tempo, o crepúsculo e as neblinas adensaram-se sobre o campo e a floresta pareceu aproximar-se. Foi então que
as trevas acabaram por tudo envolver.
- Agora, rapazes! - gritou Grame Gaptooth, levantando-se e estendendo a mão para a rédea do seu cavalo. - Montem e preparem-se. Avancem com cuidado até estarem
a cem metros do local onde vêem aquelas fogueiras a arder, e depois usem as esporas e soltem o meu grito: "Gaptooth de Wall!" De seguida, com as esporas e as espadas,
rebentem com aqueles cães e, quando o De Belame nos ouvir, então, será a sua vez de sair cá para fora e, entre os dois, a matança será um sucesso. E, agora, vamos
a isso!
Os cavaleiros começaram a avançar em silêncio por entre a erva alta, e, soltando um grito repentino e selvagem, precipitaram-se sobre os grupos reunidos
em redor das fogueiras. Mas, estranhamente, os soldados sobre os quais se abateram viraram-se como se já estivessem à espera deles. Três cavaleiros emergiram de
entre as trevas e enfrentaram os atacantes, e no meio de gritos de "Gaptooth de Wall!, Gaptooth de Wall!", deu-se início a um combate feroz. Aconselhado por Ket,
o Duende, Robin ordenara aos seus homens que recuassem um pouco em direção ao castelo, de forma a que a guarnição pudesse ouvir claramente quando os saqueadores
atacassem, sendo exatamente isto o que sucedeu. Foi com vontade que os recém-chegados os seguiram, e era como se os seus inimigos voassem na sua frente. E eles começaram
a avançar ainda mais depressa e sempre a entoar o grito de guerra. Subitamente, escutaram gritos de resposta: "Belame! Belame!"
Estas palavras soaram como um feroz rugido elevando-se do portão do castelo, que se abria nesse momento. Foi então a vez de o gradeamento ser erguido lentamente
e das suas fauces bocejantes precipitaram-se cavaleiros e soldados. Robin colocara traves por cima das vigas calcinadas da ponte levadiça, de forma a que a guarnição
pudesse sair sem quaisquer demoras, e lá saíram eles a correr como loucos, fazendo as vigas estremecer, não demorando muito para que os gritos de "Gaptooth!" e "Belame!"
se fundissem numa alegria feroz.
Subitamente, sobre aquele ruído, escutou-se o som de uma corneta de caça, soprada num qualquer ponto da retaguarda.Quase ao mesmo tempo, três notas agudas
subiram nos ares junto das muralhas do castelo. Saídos da floresta de Mark Oak surgiram dez cavaleiros e uma centena de soldados, a força enviada por Sir Herbrand,
que, ao chegar no exato momento em que a noite caía, acabou por participar no plano que Robin e os cavaleiros, ajudados por Ket, o Duende, haviam concebido com vista
à destruição do inimigo.
Os homens que pareciam ter sido apanhados entre os que gritavam "Gaptooth!" e os que gritavam "Belame!", atacavam agora em número cada vez maior. O exército
de Isenbart de Belame escutou o som de homens a correr atrás de si, num sítio onde, pensavam eles, não haviam deixado ninguém para além da sua própria guarnição.
Quanto aos cavaleiros- salteadores, acabaram por se virar quando, a rodeá-los por todos os lados, outra coisa não se ouvia para além dos gritos vingadores de "Marian!
Marian!", que, por seu turno, eram respondidos pelos de "Tranmire e São Jorge!".
Foi então que, de fato, começou uma batalha feroz. Apanhados entre as duas alas que constituíam a força de Robin, que suplantava agora em número a do senhor
De Belame e dos amigos, os senhores de Wrangby viram-se obrigados a lutar pela vida. Foi uma guerra sem tréguas. Camponeses com gadanhas e machados lutavam com soldados
apeados ou lançavam- se contra cavaleiros de armadura que seguiam nos seus cavalos. Quanto a Rafe da Gadanha, era vê-lo a deliciar-se com o combate, as mãos segurando
a gadanha cintilante, os olhos sempre em busca da figura de Sir Isenbart. Robin também olhava para todo o lado, tentando descobrir aquele que lhe matara a companheira.
Reconhecível devido ao seu elmo de bronze, Sir Isenbart andava de um lado para o outro com a ferocidade de um javali, semeando a morte ou o sofrimento a cada golpe
por si desferido, enquanto não parava de gritar o seu próprio nome. Robin viu-o e tentou a todo o custo aproximar-se dele, mas a ferocidade da batalha manteve-os
afastados. Mesmo atrás de Robin estava João Pequeno, com um enorme machado de dois gumes na mão, alargando o caminho que o seu chefe ia abrindo por entre os inimigos.
- João, pelo amor da Virgem, vê se derrubas aquele elmo de bronze! - acabou Robin por gritar. - É De Belame! Pela amizade que me tens, homem, não o deixes
escapar!
De momento, tudo indicava serem poucas as hipóteses de tal acontecer, mesmo que aquele tirano destemido e brutal quisesse fugir. Fora rodeado por Rafe da
Gadanha e por vinte vilões de Wrangby, que se atiraram sobre ele, tudo fazendo para lhe agarrarem a armadura e o arrastarem para debaixo dos seus pés. Animava-os
o ódio acumulado ao longo de tantos anos de sofrimento, mas, sendo mais hábeis com os utensílios para amanhar o solo do que com as armas, acabaram por se deixar derrubar
pela espada do outro, quais espigas de trigo frente à foice. E ele brandia a espada com destreza, desfazendo-se dos seus atacantes como um urso se desfaz dos cães
que sobre si se lançam. Rafe tentou alcançá-lo com a sua enorme gadanha, mas o pesado escudo do senhor de Wrangby aparou todos os golpes do outro, dando mesmo a
sensação de que o cavaleiro iria conseguir escapar.
Robin e João Pequeno acabaram por conseguir romper as fileiras já bastante enfraquecidas dos inimigos e, saltando sobre os cadáveres que jaziam amontoados,
precipitaram-se na direção de Sir Isenbart. Contudo, alcançaram-no quando já era demasiado tarde. Com uma pancada certeira, a gadanha que se encontrava nas mãos
vingadoras do velho Thurstan abateu-se sobre o ombro direito do cavaleiro, produzindo um golpe que lhe atingiu o osso. Bastaria apenas mais um segundo para que a gadanha
separasse a cabeça de Isenbart de Belame dos ombros que a apoiavam, mas Robin encarregou-se de aparar o golpe com o seu escudo, ao mesmo tempo que gritava:
- Não o mates! Ele merece a forca!
Rafe deixou cair a gadanha.
- Tens razão - rugiu ele. - Esta criatura não merece morrer vítima de um golpe honesto. É bem melhor que seja o carrasco a ocupar-se dele.
De Belame, o braço direito paralisado, continuava sentado na sela, e, ao escutar isto, pôs-se a gritar:
- Mata-me, cabeça-de-lobo! Mata-me com a tua espada! Para além de gentil-homem, sou um cavaleiro! Não me renderei a escumalha! - E, dito isto, esporeou o
cavalo e tentou galopar para longe deles. Porém, os enormes braços de Rafe rodearam-no, fazendo-o saltar da sela.
- Cavaleiro! - trovejou o homem. - Se fosse fazer as coisas à minha maneira, queimava-te a pele de forma a desenhar nela um padrão tão cruel como aquele
que tu e os teus demônios desenharam nos corpos dos camponeses pobres que as vossas espadas retalharam. Porém, esta noite, cavaleiro vai rimar com uma boa corda
de cânhamo!
- João Pequeno e Rafe, liguem-lhe a ferida, depois conduzam o prisioneiro até ao castelo, que sem dúvida agora nos pertence - disse Robin, que se recusou
a sair de junto deles até ver a ferida bem ligada. Então, devidamente amarrado, De Belame, agora silencioso e sombrio, foi levado na direção do castelo.
A batalha já terminara. Eram poucos os homens de Wrangby que dela haviam saído com vida. Tão grande era o ódio que despertavam que apenas uma dúzia conseguiu
escapulir-se aos tropeções por entre as trevas, sendo que entre eles se encontrava apenas um cavaleiro, Sir Roger de Doncaster, um sujeito manhoso que preferia conspirar
a combater. Dos cavaleiros que haviam acorrido em socorro do castelo nem um só sobrevivera, e o próprio Gaptooth ali travara a sua última e cruel batalha.
Quanto ao castelo, e seguindo o plano concebido por Ket, o Duende, não demorara muito a ser tomado. Na companhia do jovem Sir Denvil e de um grupo selecionado
constituído por quarenta homens, Ket escondera-se em silêncio junto às traves que se encontravam ao lado do portão. Quando, em resposta ao grito exultante de Gaptooth,
De Belame e os seus homens saíram do castelo, deixando as sentinelas junto à grade, certas da vitória e a resmungar por não poderem participar na matança, uma série
de homens encharcados e a pingar água ergueu-se como que debaixo dos seus pés, e eles mal tiveram tempo de compreender o que se estava a passar quando a morte os surpreendeu.
Então, em silêncio, Ket e o senhor de Toomlands, seguidos de perto pelos respectivos homens, entraram no castelo e tomaram-no, abatendo quem quer que lhes fizesse frente.
Apoderaram-se do castelo sem perderem um único homem e, como ali estavam apenas cerca de uma dúzia de homens, uma vez que todos os outros se tinham precipitado lá
para fora, dispostos a partilhar os louros daquilo que pensavam ser uma vitória garantida, a luta acabara por ser breve.
  Passado pouco tempo, no mesmo salão onde Sir Isenbart e os cavaleiros seus amigos tantas vezes se tinham sentado a beber ou a torturar algum pobre prisioneiro,
eis que entraram Robin e os cavaleiros que haviam sobrevivido ao combate. Sentando-se na cadeira de Sir Isenbart de Belame, ao mesmo tempo que os seus cavaleiros
ocupavam os assentos em seu redor, Robin ordenou que os prisioneiros fossem conduzidos à sua presença. Brilhavam archotes nos pilares do salão, refletindo-se nas armaduras
riscadas e amolgadas dos conquistadores, e os rostos dos soldados, dos camponeses e dos cavaleiros ali presentes tinham expressões duras e graves, quando olharam
o grupo que ali entrou.
Havia apenas dois prisioneiros, Sir Isenbart de Belame e Sir Baldwin, o Assassino, que recebera este cognome devido à crueldade por si demonstrada e ao número
de mortes que efetuara ao longo de anos de saques e de pilhagens através das terras de Wrangby e do Peak. Quando a porta do salão se abriu, os homens escutaram o
barulho distante de machados a bater na madeira. Era a forca que estava a ser erguida em frente ao portão do Forte do Mal.
- Isenbart de Belame - começou Robin, expressando-se com uma voz grave -, é aqui, neste teu castelo, neste teu salão onde tantas vezes os teus infelizes
cativos, homens e mulheres, ricos e pobres, gentis-homens e gente simples imploraram a tua misericórdia, recebendo em troca ou piadas brutais ou as piores torturas,
que serás agora julgado. Todos os que tenham qualquer acusação a fazer contra este homem, De Belame, ou contra este seu companheiro de crueldade e de opressão, Baldwin,
que dêem um passo em frente e, perante Deus, que tudo ouve e tudo vê, digam a verdade, sob pena de serem amaldiçoados para sempre!
Dava a sensação de que toda aquela multidão de rendeiros, camponeses e vilões que ali estava se preparavam para avançar e acusar aqueles dois cavaleiros
da prática de todo o tipo de crueldades.
- Ele arrancou os olhos ao meu pai! - gritou um deles.
- Num ano em que as colheitas foram más - gritou outro -, como não lhe pude pagar o meu carregamento anual de trigo, ele esmagou o meu filho até à morte
- disse outro.
Foram muitos mais os que se apressaram a avançar e a contar, em meia dúzia de palavras, a sua história de horror e de crueldade. Quando todos eles tinham
terminado, foi a vez de Ket, o Duende, avançar.
- Foi com as suas mãos amaldiçoadas que este homem matou a  mais doce das senhoras entre Barnisdale e Coombes! - gritou ele, ao mesmo tempo que apontava
um dedo na direção de Isembart de Belame. - Matou-a enquanto ela lhe falava do portão do seu castelo e riu quando a viu tombar.
- Ele estava junto a Ranulf de Waste quando este usou o fogo para torturar o meu pai, Colman Grey! - gritou Hob da Colina, avançando a saltitar, uma perna
e um braço envoltos em ligaduras, ao mesmo tempo que abanava o punho frente a De Belame, cujo rosto empalidecera ao ver como o ódio fazia arder as faces daqueles
que o rodeavam.
- Chega... não é preciso mais nada! - acabou Robin por exclamar. - Que dizem, Srs. Cavaleiros? Estes homens têm sangue nobre a correr-lhes nas veias e vestem
armadura, logo, deveriam morrer em combate. No entanto, comportaram-se como ladrões e assassinos de taberna, logo, condeno-os à vergonha de morrerem na forca!
Um grito de satisfação ecoou pelo vasto salão.
- Para a forca! Para a forca com eles!
- Estamos de acordo contigo, Sr. Robin - disse Sir Faulk de Dykewall assim que se voltou a fazer silêncio. - Qualquer um destes homens perdeu o direito de
reclamar a sua posição. Há que lhes arrancar as esporas e fazer os seus corpos balançar na forca.
Assim se fez. Entre os gritos de triunfo dos homens ali presentes, João Pequeno arrancou as esporas das botas dos dois senhores de Wrangby e, no meio de
uma ruidosa satisfação vingativa, eles foram levados por entre a multidão, que, embora tivesse por hábito mostrar-se afável e compreensível, se comportava agora
com uma selvajaria que, à luz dos archotes, lhes contorcia os rostos duros e lhes conferia um brilho sinistro ao olhar.
Concluído aquele ato de justiça selvagem, todas as divisões do castelo foram regadas com alcatrão, pez e óleo, lançou-se-lhes archotes acesos e palha incendiada.
No momento seguinte, todos se precipitaram para fora do castelo e foram colocar-se frente às muralhas escuras, de cujas fendas o fumo negro e gorduroso se começava
a elevar. Línguas de fogo subiram por entre as colunas de fumo malcheiroso e, quando ganhou força, o fogo como que entrou de rompante no enorme salão e nos quartos
situados por cima deste, rugindo como se fosse uma torrente furiosa na direção de um céu negro de azeviche. Escutavam-se estrondos fortíssimos sempre que as grossas
vigas se partiam, e à medida que todas as vigas e pilares de madeira caíam, chamas e fagulhas subiam cada vez mais alto, até que a luz por elas produzida se tornou
visível em toda a zona. Lá longe, nas colinas distantes, os pastores que guardavam as suas ovelhas não conseguiam desviar os olhos daquilo, embora não pudessem acreditar
no que viam. De seguida, benziam-se e murmuravam uma oração, gratos por, de uma maneira ou de outra, o Forte do Mal estar finalmente a ser consumido pelo fogo. Quando
os bandos de saqueadores que constituíam o exército do rei e que cruzavam as terras altas do Peak ou as colinas do Yorkshire viram o clarão distante, foi-lhes impossível
saber então que uma das maiores fortalezas do soberano insensível que serviam e dos seus cruéis senhores se estava a consumir no meio das chamas, as quais haviam
sido ateadas pelas mãos daqueles que, depois de longa e cruelmente oprimidos, se haviam erguido e conquistado a liberdade.
Na manhã seguinte, uma carapaça fumegante composta por pedras enegrecidas e cobertas de fendas era tudo o que restava da fortaleza que, pelo menos durante
duas gerações, funcionara como um símbolo do mal. Espirais de fumo branco erguiam-se da fornalha que ainda ardia dentro das muralhas que teimavam em permanecer de
pé, mas o certo é que as pedras se encontravam de tal forma estilhaçadas e chamuscadas que seria impossível voltarem a ser usadas para construir habitações.
Robin abandonou a sombra do carvalho de Mark Oak onde ele e o seu exército haviam passado a noite e pôs-se a olhar para as ruínas fumegantes e para as duas
forcas erguidas frente a elas, onde estavam pendurados, cada um na sua trave, girando e voltando a girar, os corpos dos cruéis Baldwin e Isenbart de Belame.
Tirando o elmo de aço, Robin baixou a cabeça e, em silêncio, dirigiu uma oração à Virgem, agradecendo-lhe a ajuda que tão amplamente lhe prestara. Os seus
homens reuniram-se à sua volta e também eles tiraram os elmos e puseram-se a rezar.
Vindo do lado oposto da planície, aproximava-se uma multidão de camponeses - alguns a correr, outros a andar muito devagar, como se não acreditassem naquilo
que os seus olhos viam. Houve quem se aproximasse de Robin, e homens e mulheres de idade, as mãos gastas e enrugadas devido ao trabalho, pegaram-lhe as mãos e beijaram-lhas,
enquanto outros lhe beijavam os pés ou a fímbria da cota de malha. Uma jovem mãe ergueu o bebê que segurava nos braços e, com os olhos cheios de lágrimas, disse à
criança que olhasse bem para Robin dos Bosques, "o homem que matou os senhores malvados e lhes incendiou o covil!"
- Mestre - disse Rafe da Gadanha -, não te afastes de nós, não vá aparecer por aí alguém tão mau quanto esses que agora estão ali pendurados e se lembre
de tomar conta destas terras e de construir um outro vespeiro como esse, tudo para torturar esta terra e os pobres que nela vivem.
- Juro pela Mãe de Deus - disse Robin dos Bosques, e ergueu a mão direita, esboçando o gesto de quem faz um juramento. - Enquanto eu viver, estas terras
serão apenas governadas por quem se mostrar tão justo e misericordioso como eu próprio me teria mostrado caso fosse eu a governá-las!
- Ámen! - responderam todos aqueles que se encontravam à sua volta.
11.
DA MORTE DE ROBIN DOS BOSQUES

Depois da morte da esposa, Lady Marian, Robin dos Bosques não voltou a abandonar a floresta. As terras de Malaset foram ocupadas por um parente distante
do duque Fitzwalter, que tratou de as gerir convenientemente, ao mesmo tempo que se encarregou de tratar os vilões e os rendeiros que nelas viviam como era costume
naquelas paragens, ou seja, com justiça.
Muitos daqueles que tinham vivido com Robin na qualidade de fora-da-lei e que o tinham depois seguido para Malaset recusaram-se a regressar às suas terras,
pois, tendo provado de novo a vida livre e despreocupada da floresta, optaram por permanecer junto do chefe. Assim, e como o número daqueles que constituíam o seu
bando não parava de aumentar devido à crueldade e à morte, aos saques e às pilhagens levadas a cabo por aquele rei despótico, foi de bom grado que acolheram a proposta
de Robin, que os incentivou a lutarem contra o exército real. Deste modo, depois de o Castelo de Wrangby ter sido completamente arrasado, de forma a dele não restar
pedra sobre pedra, o fora-da-lei partiu para norte, seguindo por florestas e terrenos baldios na pegada dos flamengos, brabantinos e saxões, que compunham o exército
do rei. Foram muitos os bandos, ocupados a praticar um qualquer terrível ato de pilhagem e a torturar cavaleiros ou vilões, sobre quem Robin e os seus valentes companheiros
se abateram com as suas enormes flechas de guerra e os destruíram por completo, conquistando assim a gratidão de muitos cavaleiros e damas, vilões e pequenos proprietários,
que, de então em diante, passaram a pronunciar o nome de Robin dos Bosques com especial reverência.
Quando o rei João acabou por morrer em Newark, envenenado, e o seu filho Henrique foi coroado e reconhecido como rei por todos os grandes barões e senhores
do reino, Robin regressou ao seu velho quartel-general, em Barnisdale e Sherwood. A opressão e a injustiça continuavam a grassar por aquelas paragens, já que o rei
não passava de um rapazinho. Alguns senhores perversos recusavam-se a entregar os castelos de que se haviam apoderado no decorrer da guerra entre o rei João e os
seus barões, e, depois de terem passado muitos anos a viver das pilhagens que efetuavam nas terras dos vizinhos, não se mostravam dispostos a abandonar os antigos
hábitos e a deixar de incomodar os mais fracos. Por tudo isto, sempre que um vilão ofegante ou uma mulher chorosa procuravam Robin e lhe pediam ajuda, ele abandonava
o seu esconderijo na floresta acompanhado por um grupo por si escolhido e, tão rápido e silencioso era o seu caminhar pela floresta, tão súbitas eram as flechas
que caíam sobre os malvados, que raras eram as ocasiões em que não conseguia pôr em fuga os senhores em questão e os respectivos bandos de ladrões, isto para além
de os levar a recear o seu nome e as suas flechas, que nunca falhavam o alvo e que conseguiam perfurar até mesmo a mais espessa das cotas de malha.
Quis a sorte que os conselheiros do jovem rei entregassem as terras de Wrangby a um senhor de caráter justo, um parente do duque de Warenne, que tratava
os seus vilões e rendeiros com caridade, o que fez com que não demorasse muito para que os dias cruéis de Sir Isenbart de Belame, dias marcados pela opressão, adquirissem
um caráter de tal forma vago, que chegava a parecer quase impossível que tivessem existido de verdade.
Contudo, noutras zonas do reino a opressão e a miséria continuavam a ser uma constante. Barões insolentes mandavam grupos de homens armados apoderar-se de
propriedades pertencentes ao jovem rei, e os rendeiros que aí viviam eram mortos ou reduzidos à pobreza. Os vizinhos de menores recursos estavam sempre com medo
de serem atacados e mortos, ou, então, que lhes confiscassem as terras, e o certo é que, sob esta capa de caos, a extorsão e o roubo eram cometidos numa base diária.
De fato, grupos de bandidos envergando os uniformes de grandes senhores infestavam as estradas da floresta e os caminhos solitários de muitas áreas do país, prontos
para atacarem os comerciantes que viajavam com as suas mercadorias ou mesmo os vilões pobres e os pequenos proprietários que transportavam os seus bens para o mercado.
Certo dia, Robin encontrava-se com João Pequeno e Scarlet na zona que dividia Sherwood de Barnisdale. Estavam à espera de receber notícias relativas a um
grupo de homens perversos que começara a atuar naquela região e que eram pagos por Sir Roger de Doncaster. Este era o cavaleiro que, acompanhado de cerca de dez
soldados, conseguira escapar da batalha que se travara junto ao Forte do Mal. Robin sabia que o objetivo último de Sir Roger era montar-lhe uma emboscada e matá-lo, mas,
até ao momento, os fora-da-lei não tinham tido qualquer contato com os bandidos.
Sentavam-se numa pequena clareira rodeada a toda a volta por espessos arbustos de azevinho, mas, do ponto onde se encontravam, podiam espreitar através das
folhas e observar as duas estradas que corriam em ambas as direções da floresta. Ao fim de algum tempo, escutou-se um som que lembrava um esquilo zangado, e Robin
de pronto tratou de lhe responder, uma vez que se tratava de um sinal executado entre batedores. Passados alguns instantes, Ket, o Duende, entrou na clareira e dirigiu-se
para junto do chefe.
- Mestre - disse ele -, eu e Hob estivemos a vigiar a mansão de Roger de Doncaster, em Syke. Ele e os seus homens abandonaram-na esta manhã e seguiram por
Stone Houses, em Barnisdale Four Wents. Penso que vão ficar à espera que passe por ali a comitiva do bispo, que transporta comida e outro material, e que parte hoje
da Abadia de Wakefield rumo a Lincoln.
- Levanta-te, João Pequeno - pediu Robin -, e tu, Scarlet, partam os dois imediatamente para Stane Lea, reúnam todos os homens que puderem e usem a vossa
inteligência para lutar contra este cavaleiro-ladrão e o seu bando de salteadores. Quanto a mim, juntar-me-ei a vocês quanto antes.
João Pequeno e Scarlet não perderam tempo a obedecer-lhe, e depressa desapareceram por entre os caminhos sinuosos da floresta. Ket permaneceu imóvel, à espera
de novas instruções.
- Ket - acabou Robin por dizer -, vai procurar Will, o Arqueiro, e ordena-lhe que pegue nos homens que estão com ele e que os espalhe ao longo da estrada
e dos carreiros da floresta que se estendem para lá de Doncaster. Caso vejas o teu irmão Hob, diz-lhe que venha ter comigo.
Esboçando com a mão um gesto que mostrava ter compreendido, Ket virou-se e embrenhou-se na floresta, um pouco admirado com estas ordens. Se, pensava ele,
os homens de Sir Roger se dirigiam para noroeste, rumo a Barnisdale, e Robin mandara os seus homens preparar-lhes uma emboscada, por que razão queria ele vigiar
a estrada que seguia para sul e que tinha o seu início em Doncaster? No entanto, Ket possuía um raciocínio rápido e acabou por concluir que, se tal acontecia, era
porque o chefe acreditava ser a viagem de Sir Roger rumo a Barnisdale um estratagema, tendo outro grupo sido enviado para sul, no intuito de o capturar, talvez mesmo
de o matar. Ket lembrou-se que, muitas vezes, a inteligência de Robin ultrapassava aquilo que os seus batedores lhe podiam dizer.
Quando Ket o deixou, Robin abandonou a clareira, dirigiu-se para a estrada e começou a caminhar sob os ramos cobertos de folhas. Tendo percorrido cerca de
oitocentos metros em direção ao sul, viu-se num pequeno carreiro que corria por entre as árvores que ladeavam a estrada e, examinando-o com atenção, viu um homem
de testa baixa e olhar cruel, vestido como um vilão, que, com passos furtivos, calcorreava o caminho para cima e para baixo. Tinha um arco na mão e uma aljava carregada
de flechas ao seu lado.
- Bom dia, meu bom homem! - saudou Robin. - Por aqui?
- Um muito bom dia para ti também - replicou o outro, surpreendido com a aparição silenciosa e súbita de Robin, os seus olhos vagueando para cima e para
baixo, sem se fixarem no seu interlocutor. - Perdi-me na floresta. Será que não me podes indicar o caminho para a Abadia de Roche?
Robin olhou para ele com um ar aparentemente despreocupado e respondeu:
- Sim, claro! Até te posso levar à estrada que procuras. Afastaste-te bastante do teu caminho.
- Sim, é fácil uma pessoa perder-se nesta maldita floresta - retorquiu o outro, mal humorado.
- Quando é que descobriste que estavas perdido? - quis saber o bandoleiro.
- Oh, há cerca de uma ou duas horas! - disse o outro. - Quando cheguei a Balby, disseram-me que a minha estrada passava pela aldeola de Scatby, mas acho
que caminhei durante horas e não avistei um só telhado que fosse no meio desta floresta selvagem.
Robin deixou escapar uma gargalhada. Podia ter dito ao homem que ele devia andar por ali às voltas desde o meio-dia passado, uma vez que o vira caminhar
furtivamente como se fosse um gato-bravo, dando a sensação de que desejava espiar alguém sem que, no entanto, o vissem.
- Só tens de caminhar durante mais dois ou três quilômetros - replicou o fora-da-lei. - E aí chegarás à estrada certa. Porém, a avaliar pelo arco que levas
contigo, parece que és um bom arqueiro.
- É verdade - concordou o homem com um olhar manhoso. - Sou um arqueiro tão bom ou mesmo melhor que muitos desses ladrões insolentes que andam por estas
florestas a matar os veados do rei.
- Nesse caso, vamo-nos divertir um bocadinho - disse Robin - , e ver qual de nós dois é o melhor arqueiro.
- Tudo bem - disse o homem, ao mesmo tempo que tirava uma flecha da aljava que transportava a seu lado. Os seus olhos estreitaram-se e cravaram-se em Robin,
sendo possível detectar neles um brilho maldoso.
Robin dirigiu-se a uma avelaneira e cortou dois ramos direitos e, depois, arrancou-lhes as folhas situadas nas zonas superiores, de forma a que estas se
tornassem mais visíveis. Cravou um destes galhos no chão e colocou-lhe em cima uma grinalda algo tosca, feita com folhas de corniso que o Outono fizera adquirir
uma coloração avermelhada, contrastando assim vivamente com a madeira do galho.
- E agora - disse Robin -, vamos medir uma distância de cinquenta passos. Quanto a essa outra vara, é para marcar o local onde vamos disparar.
Enquanto levava a cabo todas estas ações, Robin não desviava os olhos do rosto do outro homem, que já ajustara a flecha à corda do arco, parecendo assim
ansioso por começar a disparar. Acabou por se rir quando os dois seguiam lado a lado, ocupados a medir a distância combinada.
- O disparo que queres que façamos é bastante aborrecido - disse ele, soltando uma espécie de rugido. - Estou habituado a alvos maiores do que estes pauzinhos
e grinaldas.
Robin não lhe prestou atenção e continuou a contar até completar os cinquenta passos, e o homem, como se contra a sua vontade, caminhava junto a ele com
um ar enfadado. Robin pediu ao outro que disparasse primeiro na direção do alvo, mas ele retorquiu, dizendo que preferia que fosse Robin a começar. Este tirou duas
flechas da sua aljava e disparou uma delas contra o alvo. A flecha passou por entre a coroa, indo cair a cerca de dois dedos de distância da vara.
- Não gosto nada deste gênero de disparos - resmungou o outro indivíduo. - É o mesmo tipo de disparos que os idiotas da aldeia costumam praticar.
Robin não lhe deu resposta e o homem acabou por fazer pontaria ao alvo. Como já seria de esperar, falhou por completo a grinalda e a sua flecha passou muito
além do alvo.
- Estás a precisar de praticar mais, amigo - disse Robin. - Confia em mim quando te digo que vale a pena experimentar a tua perícia contra um alvo tão sutil
quanto este. Não constitui uma grande façanha esconderes-te atrás de uma árvore e disparares contra as tuas presas. Às vezes, um disparo distante acaba por se revelar
mais honesto. Vou tentar de novo.
E, dizendo isto, Robin apontou cuidadosamente e, desta vez, a seta acertou em cheio no alvo, fazendo com que aquela vara estreita se partisse em duas.
- Não foi um disparo honesto! - gritou o outro, furioso. - Foi uma rajada de vento que arrastou a tua seta e fez com que ela se cravasse na vara!
- De maneira nenhuma, meu bom homem - disse Robin. - Estás a comportar-te como um idiota quando dizes uma coisa dessas. Sabes muito bem que se tratou de
um tiro limpo. Pronto, agora pega nesta vara e vai colocá-la no lugar daquela que eu parti. Eu vou cortar um outro galho que depois colocaremos a trinta passos de
distância, para que possas praticar um pouco mais antes de eu te deixar no teu caminho.
Resmungando palavras entre dentes e lançando a Robin toda a espécie de olhares sombrios, o patife pegou na vara colocada no lugar onde haviam estado a disparar
e, com passos lentos, dirigiu-se para o alvo cortado em dois, a cinquenta passos de distância. Tendo percorrido vinte passos, virou a cabeça rapidamente e viu Robin
junto a uma avelaneira, aparentemente ocupado a tentar encontrar um pau que lhe parecesse bom.
  Agindo com rapidez, a criatura levou uma flecha ao arco e, assim que esta foi disparada, gritou:
- És tu o alvo que eu procuro, tu, cabeça-de-lobo!
Robin pareceu cair no meio dos arbustos como se tivesse sido atingido e, soltando uma gargalhada cruel, o homem aproximou-se, como se fosse sua intenção
certificar-se de que matara mesmo o fora-da-lei a quem vinha espiando há tanto tempo. Podia-lhe ver as pernas rígidas saindo de entre os ramos e sorriu, deliciado.
De seguida, levando os dedos aos lábios, soltou um assobio longo e agudo e avançou rapidamente, ansioso por contemplar o espetáculo que lhe era oferecido pela sua
vítima.
Contudo, dando um salto, eis que o morto se levantou, segurando numa das mãos a flecha disparada por aquele candidato a assassino. Não acertara em Robin
que, no entanto, fingira ter sido atingido. Quanto à seta, cravara-se no arbusto à sua frente e já se encontrava ajustada ao arco que o fora-da-lei segurava na outra
mão. O homem imobilizou-se subitamente, um grito prestes a elevar-se dos seus lábios pálidos.
- Seu salteador barato! - exclamou Robin, emitindo uma gargalhada trocista. - Nem sequer serves para disparar contra o alvo a que andas a fazer pontaria
nos últimos dois dias, e isto a apenas vinte passos de distância! Tudo bem, até podes fugir, mas será a tua própria flecha a mandar-te embora deste mundo!
O homem dera meia volta e, com passos rápidos, correu aos ziguezagues pelo carreiro, pretendendo deste modo confundir o outro.
Robin esticou a corda até esta atingir o seu limite máximo e parou por um momento, depois, a corda vibrou de forma ruidosa e a flecha lançou-se pelos ares
a uma velocidade assombrosa. O homem soltou um grito, deu um salto que o fez erguer-se nos ares a uma altura considerável, acabando por cair pesadamente no chão,
a flecha espetada nas costas.
No mesmo instante, Robin escutou o som de ramos a quebrar-se mesmo junto a si, e mal tivera tempo para deixar cair o arco quando, de entre os arbustos ao
seu lado, saltou uma estranha figura. Por um momento, enquanto Robin recuava um passo de forma a ter tempo para puxar da espada, sentiu-se completamente apanhado
de surpresa, tão estranha era aquela figura. Era como se um cavalo castanho se lançasse contra ele apoiado nas patas traseiras. Os enormes dentes brancos estavam arreganhados
como que para lhe rasgarem a carne, enquanto a crina ondulava atrás dele, tão grande era a fúria com que a criatura conduzia o seu ataque.
Então, Robin começou a rir. Havia um homem dentro da pele do cavalo. Numa das mãos via-se uma espada nua, enquanto a outra segurava um escudo. Era Sir Guy
de Gisborne que, com o fogo do ódio a iluminar-lhe o olhar, se precipitava para o fora-da-lei.
- Ora, ora, Guy de Gisborne, meu falso cavaleiro! - exclamou o fora-da-lei, trocista. - Com que então, sempre te decidiste a aparecer pessoalmente? Há anos
que tens mandado os teus espiões, os teus especialistas em emboscadas, os teus assassinos secretos, e todos eles com o objetivo de me matar, mas agora resolveste
tu próprio encarregar-te disso... se o conseguires, claro!
Guy de Gisborne não pronunciou uma única palavra em resposta. Um ódio feroz iluminava-lhe o olhar e foi com a fúria de um lobo que se precipitou contra o
inimigo. Robin não tinha escudo, mas possuía algo que o podia defender com a mesma eficácia contra a raiva cega do outro: um raciocínio sereno e um olhar arguto.
Durante algum tempo, outra coisa não se escutou para além do ruído metálico das espadas a baterem uma contra a outra. Andaram às voltas numa espécie de dança
que culminaria na morte de um deles, e os olhos de um não se desviavam dos do outro. De repente, a espada de Robin conseguiu iludir a vigilância da do adversário
e a sua ponta furou e rasgou a pele do cavalo, produzindo um ferimento no ombro de Sir Guy.
- A tua sorte abandonou-te, Guy de Gisborne! - exclamou Robin, triunfante. - Uma vez conseguiste iludir a morte quando fugiste da tua casa em chamas dentro
dessa pele de cavalo, e agora deves ter pensado que ela te protegeria da ponta da minha espada.
- Cabeça-de-lobo! Salteador! - gritou Guy de Gisborne. - Foi só um arranhão, mas garanto-te que a minha espada te vai arrancar a vida!
E dando mostras de uma agilidade e de um vigor renovados, Guy desferiu um golpe na zona imediatamente abaixo do sovaco de Robin, aproveitando o fato de ele
estar com o braço erguido no intuito de segurar a espada. A túnica verde do fora-da-lei de imediato se rasgou e uma onda de calor pareceu queimar-lhe o flanco. A
ponta da espada de Sir Guy provocara-lhe um ferimento ligeiro. Contudo, Robin nem sequer pestanejou. Com a rapidez de um relâmpago, o fora-da-lei carregou sobre
o outro e, antes que Guy de Gisborne pudesse recuperar, a espada do fora-da-lei cravara-se-lhe no peito. O cavaleiro cruel deixou cair a espada, cambaleando, recuou alguns
passos, girou sobre si mesmo e acabou por cair pesadamente no chão, onde se deixou ficar, imóvel como uma pedra.
Ofegando, Robin apoiou-se à sua espada e examinou o inimigo que jazia a seus pés.
- E assim - disse ele -, a minha espada vingou, com a ajuda da Virgem doce e misericordiosa, todas as crueldades e atos de opressão causados pela tua vontade
perversa e a tua mente cruel... a tortura dos homens pobres por meio da fome, da pancada e dos trabalhos forçados, os corações destroçados das mulheres e das crianças,
a quem nunca poupaste das pancadas e das lágrimas. Como eu gostaria que a minha espada pudesse destruir com tanta facilidade a tirania e a maldade de todos aqueles
que, hoje em dia, ocupam cargos importantes e fazem os pobres chorar e sofrer!
Quando se voltou, viu aproximar-se Hob da Colina, que se pôs a correr e disse:
- Mestre, vi todo o combate e observei o golpe inteligente com que o presenteaste. Agora, apenas um dos teus inimigos continua vivo: Sir Roger de Doncaster.
- Não, Hob - retorquiu Robin. - São ainda muitos os inimigos dos pobres que vivem em abadias e em fortalezas, e a quem nunca poderei matar.
- É verdade, mestre, é verdade - concordou o outro. - Enquanto o pobre vilão tiver de trabalhar de sol a sol e apanhar pancada, enquanto for mantido na sua
labuta, privado da liberdade, sem possuir nada de seu, nem mesmo a mulher e os filhos que beija antes de ir trabalhar, enquanto isto suceder, continuaremos a ter
inimigos. Mas agora, mestre, venho anunciar-te que os homens de Roger de Doncaster viraram para sul, encontrando-se agora em Hunger Wood. Estou convencido de que
se limitam a cumprir as ordens deste indivíduo que agora está aqui estendido e se preparam para te armar uma emboscada.
- Onde é que está Will, o Arqueiro, e os homens que foram com ele? - interrogou o outro.
- Estão espalhados ao longo da estrada que segue para sul, ocupados a espiar os patifes que trabalham para Sir Roger.
- Nesse caso, corre para junto de João Pequeno. Pede-lhe que volte atrás, isto no caso de ele ainda não saber que os homens do cavaleiro se dirigem para
sul. Ele que os siga, mas de forma a que eles não dêem por isso. Quando se encontrar a norte de Hunger Wood, ordena-lhe que toque duas vezes a corneta, de forma
a que o seu som não passe despercebido a esses velhacos. Depois, com os homens do Will, obrigá-los-ei a recuar, e João arranjará maneira de fazer com que ninguém
escape com vida. Vou ensinar a todos os meus inimigos que não devem voltar a pôr a cabeça na boca do lobo outra vez.
Hob não perdeu tempo a partir e Robin seguiu com passos apressados para a estrada de Doncaster, onde não demorou muito a encontrar Will, parado numa clareira.
- Mestre, ainda bem que chegaste! - exclamou o outro, o cabelo repleto de cãs, mas tão direito e forte como sempre. - Os meus batedores disseram-me que estes
patifes são muitos e que avançam pela floresta como se não tivessem medo de coisa nenhuma. Consta que são chefiados por um mercenário destemido, um assassino pertencente
ao grupo dos brabantinos, Fulco, o Ruivo, de seu nome, um indivíduo que combateu na França, na Alemanha e na Palestina, e que conhece todas as artes da guerra. Quanto
a nós, não somos mais do que um punhado de homens, e o grupo do João Pequeno está a cinco quilômetros de distância, mais para noroeste.
- Mandei Hob ir buscar João Pequeno - retorquiu Robin. - Deverá estar aqui dentro de uma hora. Até lá, vamos ser obrigados a manter estes patifes à distância.
João encarregar-se-á de os atacar pela retaguarda, e estou convencido de que, apesar de tudo o que aprenderam sobre pilhagens e incêndios quando estavam ao serviço
do tirano que se diz nosso rei, estes flamengos e brabantinos ainda vão acabar por encontrar a morte às nossas mãos bem inglesas.
Pouco depois apareceu um batedor que lhes disse que o inimigo marchava na direção de Beverly Glade, e Robin de imediato ordenou que um destacamento de arqueiros,
comandados por Will, se escondesse nos arbustos situados na orla da clareira. Em breve, saindo de entre as árvores que se erguiam no outro lado da clareira, foi
possível ver os elmos dos estrangeiros. Tratava-se de homens de rostos selvagens e cruéis, que combatiam ao serviço de quem quer que lhes pagasse bem, e também pelo
saque e pela riqueza que obtinham nas terras onde lutavam. O camponês de Inglaterra detestava estes invasores estrangeiros, pois não poupavam nem as mulheres nem as
crianças, mostrando-se incrivelmente tirânicos e cruéis.
Eram cerca de oitenta homens, vinte deles com bestas, e, a chefiá-los, via-se um sujeito de rosto vermelho e aparência selvagem, vestido com uma armadura.
Avançavam prudentemente, com batedores a rodear-lhes os flancos, e, enquanto caminhavam, não paravam de olhar de um lado para o outro, desconfiados. Cada um segurava
um escudo na mão esquerda, enquanto na outra brilhava a lâmina de uma espada. Foi apenas quando eles se encontravam a vinte passos de distância dos arbustos onde
os bandoleiros se escondiam que Robin deu o sinal combinado. Então, ao som daquele assobio agudo, vinte enormes flechas cruzaram os ares e a precisão com que tinham sido
disparadas foi tal que muitos inimigos cambalearam e caíram, todos eles com uma enorme haste espetada no grosso gibão de pele ou na garganta. Entre os que tombaram encontravam-se
cerca de quinze besteiros.
Com um outro assobio, e antes que os assaltantes se pudessem recompor, uma outra leva de flechas foi disparada contra eles, tendo outros doze caído, mortos
ou feridos.
Então, soltando um grito feroz de comando, o chefe, Fulco, o Ruivo, precipitou-se na direção dos arbustos, seguido pelos homens que haviam sobrevivido e
cujo número continuava a ser superior ao dos fora-da-lei. Com a rapidez e a agilidade de furões, os homens de Robin bateram em retirada, correndo de árvore para
árvore. Não obstante, e sempre que a oportunidade surgia, uma enorme flecha saía a zumbir de entre um arbusto com aspecto inocente, e um outro patife se ficava a
contorcer no chão até a morte o levar consigo. Quanto aos outros, corriam de um lado para o outro à procura de inimigos escondidos. Três dos fora-da-lei foram mortos
durante a primeira investida, mas enquanto os estrangeiros corriam de arbusto em arbusto e espreitavam por detrás desta ou daquela árvore, eram muitas as vezes em
que o canto sinistro de uma flecha acabava subitamente num grito de morte, quando aquela encontrava morada num qualquer coração cruel.
Fosse como fosse, o bando de mercenários continuava a avançar, e os fora-da-lei foram obrigados a bater em retirada, uma vez que não se atreviam a enfrentar-se
frente a frente com os outros. Fulco, o Ruivo, perseguia-os com uma fúria tal, que foram vários os que tombaram vítimas da espada, e, dominado pela raiva e pelo
desespero, Robin constatou que já tinha perdido oito homens. Não parava de se interrogar sobre o que deveria fazer para deter o inimigo, mas não lhe ocorria coisa alguma.
Subitamente, viu Fulco precipitar-se rumo a um arbusto onde se escondia um fora-da-lei. Tratava-se de Gilbert da Mão Branca que, ao ser descoberto e não
tendo tempo para puxar do arco, resolveu fugir dali a correr. Foi então que passou mesmo junto à árvore onde Robin se escondia, sendo seguido por Fulco, de espada
em riste. Quando o brabantino passou por ele, Robin saiu do esconderijo com a espada na mão e atacou o estrangeiro. Este de pronto se serviu do escudo para aparar
o golpe e, no momento seguinte, deu meia volta e envolveu-se num feroz combate com Robin. Os dois não paravam de girar em torno um do outro, as espadas ressoando
metalicamente à medida que cada golpe era aparado. De repente, um dos estrangeiros decidiu aproximar-se, decidido a surpreender Robin e a atacá-lo pelas costas.
Will, o Arqueiro, compreendeu as intenções do outro e precipitou-se para a frente, de espada na mão, mas para acabar por ser derrubado quando um outro flamengo saltou
por detrás de uma árvore. Antes de morrer, o velhote ainda conseguiu articular um grito de alerta:
- Cuidado, Robin!
Uma flecha elevou-se de um arbusto e o homem que avançava silenciosamente na direção de Robin deu um salto, caindo pesadamente no chão e aí permanecendo,
imóvel. Uma outra flecha matou o homem que pusera fim à vida de Will Stuteley e, durante algum tempo, ambos os grupos, ocultos nos seus esconderijos, pareciam aguardar
o desfecho do combate entre os respectivos chefes.
O brabantino, embora fosse famoso pela forma como manejava a espada, encontrara alguém à sua altura. Nunca antes tivera de enfrentar o mesmo pulso firme,
os mesmos golpes fortes que constituíam a imagem de marca de Robin, e era em vão que experimentava todas as suas artimanhas com aquele homem esguio, que parecia
estar rodeado por uma grade de aço, embora se tratasse apenas de uma espada manejada com destreza. Fulco, furioso por não se conseguir aproximar, esgotava as suas forças
em ataques violentos mas vãos. Subitamente, viu os olhos de Robin iluminarem-se de uma forma estranha, e tamanha intensidade quase o deixou fascinado. Foi então
que viu o fora-da-lei executar um movimento que lhe pôs a descoberto o lado esquerdo do peito. Evitando o golpe, o brabantino empurrou a sua espada na direção do
peito de Robin. O fora-da-lei desviou-se com um salto, a espada de Fulco acabou por se cravar no vazio e, no momento seguinte, com um movimento largo do braço, a
espada de Robin acabou por desferir um golpe profundo no pescoço do mercenário, que caiu morto a seus pés.
Uma saudação ruidosa elevou-se das gargantas dos fora-da-lei, e, animados pela vitória, os arqueiros saíram dos lugares onde se escondiam e foram à procura
dos respectivos inimigos. Quanto a estes, bastante desmoralizados devido à perda do chefe, trataram de dar início à operação de retirada, correndo de árvore em árvore.
Contudo, era em vão que procuravam abrigo. As flechas mortais, à semelhança de abelhas gigantescas, pareciam vasculhar todos os esconderijos. Por vezes, conseguiam
reunir a coragem suficiente para responderem aos bandoleiros, mas semelhante explosão de ânimo durava apenas alguns instantes, já que acabavam por se ver forçados
a bater em retirada face à chuva de setas que sobre eles se abatia, distribuindo feridas e morte da parte de inimigos que pareciam invisíveis.
Foi então que, de três direções diferentes, se escutou o canto desafiador do galo silvestre. Soou de um modo tão jocoso, que, aqui e ali, alguns fora-da-lei
não foram capazes de conter o riso, enquanto outros se interrogavam sobre a possibilidade de, de fato, se tratar mesmo de João Pequeno, uma vez que aquele era o
seu sinal de alerta. As suas dúvidas dissiparam-se quando Robin respondeu ao chamamento, e não demorou muito para que, correndo de árvore em árvore, se pudessem
ver uma série de gibões verdes.
Ao compreenderem que aquilo significava que estavam cercados, os brabantinos e os flamengos, sabendo que, às mãos dos ingleses, seria inútil esperarem qualquer
tipo de piedade, juntaram-se todos, dispostos a fazer pagar um preço muito elevado pelas suas vidas.
É inútil perder muito tempo com este último combate, já que o desfecho apenas poderia ter sido um. Os ingleses odiavam estes invasores estrangeiros de um
modo que impedia qualquer piedade, e à medida que os abatiam, sabiam que as suas flechas se destinavam a vingar os assassínios e os atos indescritíveis de crueldade
cometidos contra mulheres indefesas, crianças de tenra idade e homens desarmados, quando estes miseráveis bandidos se haviam espalhado como uma praga ao longo do
país, servindo sob o estandarte do rei João e levando consigo a ruína, o fogo, a morte e a fome a centenas de casas modestas e aldeias pacíficas.
Roger de Doncaster, que aguardara junto a meia dúzia de soldados na orla da floresta, interrogou-se sobre quais os motivos que levariam Guy de Gisborne e
Fulco a demorar tanto. Não escutava gritos de triunfo elevando-se dos estreitos caminhos ladeados de árvores gigantes, não se via o brilho das armas, e isto apesar
de ser com frequência que enviava grupos de dois ou três homens embrenharem-se na floresta ao encontro dos vencedores.
  Finalmente, acabaram por avistar um carvoeiro transportando o seu saco de carvão. O homem aproximava-se deles seguindo por entre as árvores. Dois dos soldados
abordaram-no e conduziram-no ao local onde se encontrava o cavaleiro, instalado na sua montada. Sir Roger perguntou-lhe se não vira um destacamento de soldados avançar
pela floresta.
- Não, não - respondeu o outro, exprimindo-se na forte pronúncia local. - Não vi ninguém vivo, apenas uma pilha de homens mortos, todos com ar de estrangeiros,
em Beverly Glade. Cada um deles tinha a sua seta espetada. Deviam ser umas três vintenas!
Sir Roger obrigou o cavalo a dar meia volta, uma jura selvagem nos lábios.
- Aquele cabeça-de-lobo é o diabo em pessoa! - exclamou. - Ninguém o poderá vencer nestas florestas.
E, a grande velocidade, tanto ele como os seus homens se precipitaram dali para fora, deixando o carvoeiro a segui-los com os olhos.
- É verdade, é verdade - disse o homem, falando em voz baixa -, nenhum desses teus patifes conseguirá levar a sua avante enquanto Robin for o rei destas
florestas.
Havia três ou quatro vintenas de estrangeiros e todos eles apresentavam no corpo a marca de Robin dos Bosques.
Depois disto, e durante muitos anos, o local onde Robin levara a cabo tamanha vingança em relação aos mercenários estrangeiros passou a chamar-se Slaughter
Lea, ao invés de Beverly Glade, e demorou muito até que os vilões que por ali passavam deixassem de comentar o caso sempre que viam o monte que indicava o local
onde Robin enterrara os homens que matara.
A partir desta data e durante muito tempo, Robin pôde viver descansado nas florestas de Barnisdale e Sherwood, e embora fosse um fora-da-lei, eram muitos
os homens de bem que respeitavam o seu nome, ao passo que os opressores o temiam. Bastava um qualquer senhor praticar um ato cruel contra um dos seus vassalos para
que o fora-da-lei obrigasse o altivo cavaleiro a pagar pelos seus atos. E sempre que as terras de um homem pobre eram invadidas por um estrangeiro, eram os arqueiros
de Robin que faziam com que o local se tornasse  demasiado arriscado para quem quer que fosse exceto para o seu legítimo proprietário.
De fato, seria necessário um livro tão grande quanto este para descrever todos os atos famosos levados a cabo por Robin dos Bosques durante este período
de tempo. Durante quinze anos ele ali viveu e, a cada ano que passava, a sua fama aumentava graças ao mérito das suas ações.
Assim, há que mencionar a longa luta por ele travada a favor do jovem Sir Drogo de Dallas Tower, em Westmorland. Os homens da raia, todos eles ladrões e
saqueadores, haviam conquistado as terras de Sir Drogo, porque ele punira um dos homens do clã dos salteadores, tendo-se visto depois em dificuldades. Com a ajuda
de Robin e dos seus arqueiros, conseguiu fazer os invasores bater em retirada, e tanto terror inspiraram aquelas flechas que mais nenhum Jordan, Armstrong, Douglas
ou Graham se atreveu a molestar quem quer que tivesse Robin por amigo.
Houve ainda um outro feito, este não de guerra mas de paz, em que o fora-da-lei obrigou o jovem senhor de Thurgoland a agir de forma justa e carinhosa em
relação à mãe. Ela fora, em tempos, uma serva pertencente às terras de Jocelyn de Thurgoland, trabalhando nos campos. Porém, era muito bonita e modesta, e Sir Jocelyn
apaixonara-se e casara com ela. Enquanto o seu marido e senhor era vivo, Avis, assim ela se chamava, adquirira o estatuto de mulher livre e levara uma existência
feliz na companhia de Sir Jocelyn. Tiveram um filho, Stephen de seu nome, um indivíduo tão duro e intratável por natureza que as pessoas diziam não poder ser ele
filho do nobre Jocelyn e da doce Avis. Quando Sir Jocelyn morreu, Stephen passou a ocupar o lugar de senhor, mas a lei daquele tempo, uma lei perversa, dizia que
Avis voltava a ser uma serva nas terras do seu próprio filho, uma vez que a morte do marido a privara da liberdade.
Quando Avis se opôs ao tratamento injusto infligido pelo filho contra um pobre vilão da propriedade, Stephen jurou que se vingaria da mãe. Assim, expulsou-a
da mansão senhorial, não a deixando levar outra coisa vestida para além de farrapos, e forçou-a a ir viver junto dos seus parentes vilões (que, claro está, também
eram parentes dele) numa cabana da aldeia. Avis repreendeu aquele filho perverso com palavras duras e foi com toda a dignidade que voltou a desempenhar as tarefas
pesadas que as suas mãos já há trinta anos não conheciam. Enquanto isso, o filho rodeou-se de más companhias, que ele sabia não serem do agrado da mãe e que ela
lhe aconselhara a evitar.
A história de como este filho condenara a mãe à servidão espalhou-se por uma vasta área, chocando todos os homens e mulheres de bem. À medida que as semanas
iam passando, as pessoas perguntavam-se sobre se um qualquer castigo divino não puniria aquele filho tão duro e contra-natura. Contudo, ele continuava a levar uma
vida desregrada nos seus domínios, nada parecendo incomodá-lo.
Então, numa noite de Inverno, quando Stephen se divertia com os seus companheiros de farra, eis que entraram no salão cerca de três vintenas de homens envergando
trajes escuros, e, no meio do terror geral, o senhor foi agarrado e levado dali, apesar da raiva e da fúria por ele demonstradas. Durante algum tempo, ninguém soube
onde ele se encontrava. Depois, começaram a correr rumores de que Stephen trabalhava agora como vilão nas terras de um proprietário que possuía uma mansão na floresta
e que Robin dos Bosques decretara que assim devia ele continuar a viver até aprender os modos de um cavalheiro bem-nascido.
Stephen foi mantido prisioneiro durante muitos meses e obrigado a executar as mesmas tarefas que qualquer outro vilão da sua família, até que, finalmente,
se mostrou envergonhado e arrependido, confessando ter-se comportado como um poltrão, não merecendo usar o título que o nascimento lhe conferira. Então, vestido
com os seus trajes de vilão, regressou a Thurgoland, foi procurar a mãe ao local onde ela trabalhava na aldeia e pediu-lhe perdão. Quando, de lágrimas nos olhos,
ela o beijou, Stephen pegou-lhe na mão e nomeou-a senhora da mansão, tendo de aí em diante levado uma vida tão nobre quanto a do pai.
As pessoas tomaram conhecimento deste ato e muito elogiaram os nomes de Robin dos Bosques e de Frei Tuck que, através de exemplos e de conselhos varonis,
haviam levado Stephen a reconhecer os erros da sua vida.
Mas Robin realizou ainda outros atos, entre eles o famoso combate com Damon, o Monge, um pirata que saqueara as costas do Yorkshire durante muito tempo e
com uma enorme crueldade, mas a quem Robin acabou por matar durante uma batalha travada ao largo da baía, que agora recebe o nome de Baía de Robin dos Bosques, para
onde o barco do pirata foi levado depois de o fora-da-lei ter enforcado toda a tripulação no seu próprio mastro.
Certo dia, dez anos depois de ter retomado a sua vida de fora-da-lei, uma dama fez a sua aparição no acampamento de Stane Lea e, depois de descer do cavalo,
dirigiu-se para o local onde Robin se encontrava e saudou-o. Durante alguns instantes, o homem não a reconheceu.
- Sou a tua prima - acabou ela por dizer, ao mesmo tempo que esboçava um sorriso. - Dona Alice de Havelond. Já não te recordas de como nos ajudaste, a mim
e ao meu marido, já lá vão mais de vinte anos, quando dois vizinhos cruéis nos oprimiam?
- Por Deus! - exclamou o bandoleiro, beijando o rosto da prima. - Estive tanto tempo sem te ver, que já não te reconhecia.
Depois disto, apressou-se a receber Lady Alice o melhor que podia, tendo ela, as duas aias e os três escudeiros que a acompanhavam passado a noite numa pequena
cabana que Robin mandara construir expressamente para eles dois. Falaram durante muito tempo a respeito dos parentes, de como este ou aquele se saíra na vida, do
que acontecera a alguns deles durante os anos conturbados. Quanto ao marido dela, Bennett, morrera havia já três anos.
- Agora - acabou a senhora por dizer -, sou uma mulher velha, e tu, Robin, também já não és novo. Tens o cabelo branco e, embora os teus olhos continuem
muito vivos e eu não duvide de que continuas a ser forte, será que não tens vontade de encontrar onde possas descansar e viver em paz, longe de todos os alarmes
que a vida que aqui levas te devem provocar? Será que não podes mandar embora os teus homens, abandonar tudo isto e ir viver para Havelond? Ali ninguém te incomodaria e
estarias em condições de viver em paz e sossego até ao fim da vida.
Robin não perdeu tempo a responder.
- Não, querida prima - disse ele. - Vivo há tanto tempo na floresta, que não quero viver noutro lugar. É nela que morrerei, e, quando o meu último dia chegar,
só peço que me enterrem numa qualquer clareira, debaixo das árvores, no mesmo local onde, em vida, eu e os meus queridos companheiros caminhámos à-vontade.
- Nesse caso - retorquiu a senhora -, se não queres mesmo aceitar a minha oferta, que te fiz em memória de todo o bem que nos fizeste, a mim e ao meu marido,
então, irei refugiar-me em Kirklees e passar os últimos anos da minha vida no convento, que, como muito bem sabes, tem como abadessa a nossa tia, Dona Ursula. Gostaria
que me fosses visitar sempre que quisesses, Robin, já que o peso dos anos faz com que ganhemos afeição aos nossos parentes e sinto vontade de te ver com frequência.
Quanto a Dona Ursula, embora fale com dureza dos teus atos violentos, sem dúvida que te receberá com o carinho que lhe merece um filho da sua irmã.
Robin prometeu não se esquecer de visitar Dona Alice em Kirklees, o que passou a fazer de seis em seis meses, não só para ver a prima mas também para receber
das suas mãos o tratamento que o passar dos anos lhe exigia cada vez com maior frequência. Naqueles dias, as mulheres sabiam muito a respeito de ervas medicinais
e ao invés de recorrerem aos médicos quando se sentiam doentes, as pessoas procuravam uma mulher famosa por possuir estes conhecimentos, e ela encarregava-se de
as tratar. Era igual costume acreditar-se que cortar uma veia do braço e derramar uma certa quantidade de sangue constituía a cura para algumas doenças. Era também
por causa disto que Robin visitava o Convento de Kirklees, e, certa vez, chegou a passar aí dois ou três dias, de forma a deixar que a ferida do seu braço sarasse
completamente.
Durante estas visitas, era com frequência que via a tia, Dona Ursula, a abadessa. Esta era uma mulher morena e esguia, de olhos argutos, mas que sempre se
dirigia a ele com correção. Costumava perguntar-lhe quando é que o sobrinho estava a pensar em comprar o seu perdão e abandonar de uma vez por todas a sua vida errante,
para que pudesse entregar a qualquer casa religiosa toda a sua riqueza, conseguindo deste modo salvar a alma.
- Tenho poucos bens - respondia Robin - e também nunca os gastaria de forma a alimentar monges anafados e freiras preguiçosas. Enquanto os meus companheiros
da floresta permanecerem junto a mim e eu puder usar os braços e as pernas que Deus me deu, prefiro deixar-me ficar pela floresta.
- De qualquer dos modos - costumava ela dizer -, não te esqueças da tia e da prima que aqui tens, em Kirklees, e vem visitar-nos sempre que desejares.
  Certo dia, estava o Verão a chegar ao fim, Robin sentiu-se com vertigens e adoentado e resolveu ir até Kirklees para que a prima o tratasse.
- Vem comigo, João Pequeno - pediu ele -, pois hoje sinto-me muito velho e tenho a cabeça algo baralhada.
- Claro, meu bom Robin! Claro que vou contigo - disse João Pequeno. - Ainda assim, não duvido de que o teu mal-estar não vai demorar muito tempo a passar.
Preferia que não fosses até àquele convento, pois sempre que foste até lá e eu fiquei à tua espera escondido entre as árvores, interroguei-me sobre se te voltaria
a ver ou se alguém arranjaria uma qualquer forma de te fazer mal.
- Não, João - retorquiu o velho fora-da-lei -, ninguém nos vai fazer mal. - As mulheres são da minha família, e que inimigos temos nós agora?
- Não sei - respondeu o outro, parecendo muito longe de estar seguro, ao mesmo tempo que coçava a cabeça grisalha. - Acontece que Hob da Colina ouviu dizer
que Sir Roger de Doncaster é muito amigo das freiras de Kirklees.
- Ele agora é um homem velho, tão velho quanto todos nós - disse Robin. - Duvido que, ao fim de todos estes anos, ele continue a pensar em mim e a desejar
o meu mal.
- Não sei - disse João Pequeno. - Mas uma víbora só pára de morder quando o seu veneno seca.
E lá se prepararam eles para seguir rumo a Kirklees, Robin dos Bosques e João Pequeno a cavalo, o resto do grupo a pé. Tendo chegado à orla da floresta que
mais perto se encontrava do convento, eles desmontaram e deixaram os cavalos com os outros, cuja missão era esperarem na floresta pelo regresso do chefe. Então,
segurando-se bem ao braço do amigo, Robin dirigiu-se para o portão de Kirklees, onde o outro o deixou.
- Que Deus te acompanhe, meu querido Robin - disse ele -, e te faça regressar quanto antes para junto de mim. Hoje acordei com o pressentimento de que te
vai acontecer algo que nos deixará a todos muito infelizes.
- Não, não, rapaz, nada disso! - retorquiu o outro. - Não tenhas medo. Vai sentar-te no bosque que, se precisar de ti, farei soar a corneta. Tenho comigo
tanto o meu arco quanto a minha espada, e, enquanto estiver entre estas mulheres, não me vai acontecer nada de mal.
Os dois velhos camaradas separaram-se trocando um caloroso aperto de mão e Robin ergueu o enorme aro de ferro pregado sobre a porta. Esta não demorou muito
a ser aberta pela sua tia, que na verdade estivera a observar a sua chegada a partir da janela.
- Entra, Robin - disse ela em tons lisonjeiros, enquanto os seus olhos astutos se cravavam no rosto do homem com uma expressão furtiva. Viu que ele se encontrava
doente e um sorriso desabrochou por um instante nos seus lábios finos. - Entra e bebe uma caneca de cerveja, pois deves vir cansado da viagem.
- Agradeço-te, senhora - disse Robin, e foi com passos fracos que ele ali entrou. - Contudo, prefiro não comer nem beber até me sangrarem. Por favor, gostaria
que anunciasses a minha chegada à minha prima Alice.
- Ah, Robin! - exclamou a tia. - Estiveste tanto tempo longe de nós que receio que não tenhas ouvido a notícia. A tua prima morreu enquanto dormia, na Primavera
passada, e repousa agora no pátio da igreja.
- Lamento ouvir uma coisa dessas - replicou ele, e o choque que a notícia lhe provocou fê-lo cambalear e só não caiu porque a tia o rodeou com um braço.
- Eu... eu... tenho muita pena - prosseguiu ele. - Tenho pena de não ter aparecido aqui mais vezes. Pobre Alice! De qualquer dos modos, senhora, sinto-me doente.
Peço-te que me faças um golpe no braço e me sangres, e em breve voltarei a ficar bem e não te incomodarei mais.
- Mas não é incômodo nenhum, Robin! - disse a abadessa, conduzindo-o para um quarto situado longe das salas do convento. Levou-o até uma cama desdobrável
situada num dos cantos e foi aí que ele se deitou, soltando um enorme suspiro de alívio. Depois, desnudou o braço devagar e a abadessa tirou uma pequena faca de
dentro da sacola que usava pendurada ao cinto. Segurou o braço moreno do homem, agora bastante mais esguio do que aquilo que antes fora, e, usando a ponta da faca,
fez uma incisão profunda na veia azul. Depois, tendo-lhe atado o braço de forma a que ele não o pudesse mover, colocou uma bacia debaixo do braço que pendia ao lado
da cama.
Foi então que abandonou o quarto, regressando passado pouco tempo com um copo contendo uma qualquer bebida.
- Bebe isto, meu bom Robin - disse ela. - Irá servir para te libertar desse peso que sentes sobre ti.
A mulher levantou-lhe a cabeça e ele bebeu aquele líquido até à última gota. Soltando um suspiro, Robin afundou-se na almofada ao mesmo tempo que dizia:
- Muito, muito obrigado, minha boa tia. És muito amável para com um homem sem lei.
Falava como se estivesse prestes a adormecer e a sua cabeça tombou na almofada ao mesmo tempo que ele começava a respirar profundamente. A droga que a abadessa
colocara na chávena começava a fazer efeito. A dama esboçou um sorriso perverso, dirigindo-se em seguida para a porta do quarto, ao mesmo tempo que fazia sinal a
uma pessoa que se encontrava lá fora. Um homem esgueirou-se para dentro do quarto - um homem velho e magro, os cabelos brancos, os olhos traiçoeiros e esquivos,
o lábio inferior mole e descaído. A abadessa apontou um dedo magro na direção de Robin dos Bosques e os olhos do velho iluminaram-se com aquilo que viram. O seu
olhar seguiu as gotas de sangue que saíam da veia a borbulhar e iam caindo na bacia.
- Se fosses minimamente capaz de agir como um homem - disse ela, desdenhosa -, tiravas esse punhal que tens e encarregavas-te tu mesmo de o matar... e nunca
deixarias que fosse a minha lanceta a tirar-lhe a vida gota a gota.
Robin estremeceu ao ouvir a voz da tia e, aterrorizado, o homem velho e magro precipitou-se para fora do quarto. A abadessa seguiu-o, os seus vivos olhos
negros cravados nos dele. Depois tirou da sacola uma chave comprida e trancou o quarto onde o fora-da-lei se encontrava.
- Quando é que ele vai morrer? - perguntou o velho num murmúrio.
- Se o sangue correr livremente, quando chegar a noite!
- E se tal não acontecer e ele continuar vivo? - teimou o outro.
- Nesse caso, eu e o Convento de Kirklees ganharemos qualquer coisa como doze hectares de um prado excelente - replicou a abadessa, trocista -, cortesia
do bondoso Sir Roger de Doncaster. Quanto a ti, Sir Roger, serás obrigado a descobrir outra forma de matar esta raposa. Por que é que não entras lá agora mesmo e
te encarregas disso de uma vez por todas?
E estendeu a chave ao homem que, no entanto, se encolheu, os dentes ocupados a roer as unhas, os olhos sinistros fixando com raiva o rosto trocista da abadessa.
  Sir Roger de Doncaster, cobarde e poltrão, não teve a coragem suficiente para matar um homem doente, antes optando por dar meia volta e partir. Saiu do
convento e afastou-se a cavalo, o queixo enterrado no peito, furioso ao constatar o quanto a abadessa o desprezava e sabendo perfeitamente que ela lhe podia levar
a melhor naquela conspiração perversa, urdida pelos dois no intuito de matarem Robin dos Bosques.
Quanto a João Pequeno, sentou-se à sombra das árvores e aí esperou pacientemente durante toda a tarde. Quando as sombras se começaram a estender ao longo
da charneca, perguntou-se por que razão Robin não aparecera junto à porta, tal como era seu costume. Dominado pela preocupação, João Pequeno levantou-se e, impaciente,
pôs-se a caminhar para cima e para baixo.
Que era aquilo? Vindo da direção do convento, chegou-lhe aos ouvidos o som desmaiado de três toques de corneta - o sinal de Robin!
Soltando um rugido semelhante ao de um touro enraivecido, João Pequeno gritou para os homens que se escondiam entre os arbustos:
- Levantem-se, rapazes! Não ouviram aquelas notas fracas? Alguém atraiçoou o nosso pobre mestre!
Pegando nas armas, precipitaram-se todos atrás de João Pequeno, que corria a grande velocidade para o portão do convento. Derrubaram-no, servindo-se de uma
trave da vedação, e foi com a mesma arma que arrombaram a porta, e, no meio dos gritos e das orações de um grupo de freiras apavoradas, entraram em tropel por ali
dentro.
Quando se colocou frente àquele bando de mulheres de rostos pálidos, João Pequeno mostrou-se muito duro e frio.
- Parem com essa gritaria! - ordenou ele. - Vão buscar a abadessa!
Contudo, ninguém conseguiu encontrar a abadessa em lado nenhum.
- Nesse caso, depressa, conduzam-me até junto de Robin dos Bosques, o meu senhor!
Mas nenhuma delas tomara conhecimento de que o homem se encontrava no convento. Sentindo-se furioso, triste e assustado, João Pequeno estava prestes a ordenar
que procedessem a uma busca exaustiva ao local, quando Hob da Colina surgiu entre os fora-da-lei e anunciou:
- Descobri onde está o nosso mestre!
Subiram as escadas a correr, sempre atrás de Hob, e, quando chegaram junto à porta, quebraram o ferrolho e entraram. Com que visão se depararam os seus olhos!
Ali estava o seu amo, pálido e macilento, os olhos vítreos, meio reclinado sobre a cama, tão fraco que mal pôde levantar a cabeça para saudar a entrada dos companheiros.
João Pequeno deixou-se cair de joelhos ao lado de Robin, as lágrimas correndo-lhe pelas faces.
- Mestre, mestre! - gritou ele. - Concede-me uma graça! Uma graça!
- De que se trata, João? - quis saber Robin, brindando o outro com um sorriso desmaiado e, erguendo a mão, pousou-a com carinho na cabeça encanecida do velho
camarada.
- Que nos deixes queimar esta casa e matar todos os que te mataram!
- Não, de maneira nenhuma - disse ele. - Essa graça nunca te concederei. Nunca fiz mal a uma mulher em toda a minha vida e não é agora, quando tudo se acaba,
que o farei. Ela deixou que o sangue me fosse abandonando aos poucos e isso acabou por me roubar a vida, mas peço-te que não lhe faças mal. Agora, João, já não me
resta muito tempo de vida. Abre aquela janela ali e dá-me o meu arco e uma flecha.
Abriram a janela de par em par e o olhar de Robin fixou-se naqueles campos tranquilos de fim de tarde e na enorme floresta ondulante que se estendia à distância.
- Segura-me enquanto disparo, João - pediu ele -, e, onde esta flecha cair, então, aí deverão cavar a minha sepultura.
Os homens choravam ao vê-lo segurar o enorme arco com uma mão fraca e puxar o fio enquanto que, com a outra mão, segurava a pena da flecha. Tempos houve
em que apenas ele conseguia dobrar aquele arco, mas agora a sua vida esvaía-se de tal forma, que quase não teve forças para o puxar até meio. Acabou por largar a
corda enquanto soltava um suspiro e a flecha passou pela janela a assobiar. Os homens viram-na voar sobre os campos, até que se cravou no solo, junto a um pequeno carreiro
que seguia do prado até à floresta.
Exausto, Robin deixou-se escorregar para trás e João Pequeno, delicadamente, ajudou-o a deitar-se.
  - Enterra-me ali, João - pediu ele -, com o arco junto a mim, pois a sua doce música foi também a minha enquanto vivi neste mundo e gostaria de o ter comigo
mesmo quando estiver morto. Põe um pedaço de relva verde debaixo da minha cabeça e um outro a meus pés, pois foi no verde da floresta que mais prazer me deu dormir
enquanto vivi, e é nestes dois pedaços de verde que quero dormir o meu último sono. És capaz de fazer isto por mim, João?
- Sim, mestre, claro que sim - respondeu o outro, e a mágoa quase o levou a sufocar.
- E agora, João, beija-me e... e... adeus!
Os seus lábios deixaram escapar o último suspiro no momento em que João Pequeno, de cabeça descoberta, se curvava para o beijar. Todos se deixaram cair de
joelhos e rezaram por aquela alma acabada de partir, e, no meio de muitas lágrimas, imploraram a misericórdia divina para aquele homem intrépido e generoso que fora
o seu chefe.
Ser-lhes-ia impossível tolerar a ideia de deixar o corpo de Robin passar a noite dentro das paredes do convento, e por isso levaram-no para a floresta, velando-o
até ao nascer do dia. Quando o dia começou a clarear, prepararam-lhe a sepultura e, ao meio-dia, quando Frei Tuck, agora um homem curvado e de cabelos brancos, ali
apareceu, todos quiseram transportar o corpo do seu chefe muito querido até à última morada.
Só mais tarde, os fora-da-lei ficaram a saber que Sir Roger de Doncaster visitara o convento enquanto Robin se esvaía em sangue e começaram a procurá-lo
longamente. Com vista a escapar à busca apertada levada a cabo por Hob da Colina e o irmão, Ket, o Duende, Sir Roger fugiu para Grimsby, e foi muito a custo que
conseguiu entrar com vida num navio, tão próximo esteve Hob de o apanhar. O cavaleiro procurou refúgio em França, aí morrendo passado pouco tempo, só e desamparado.
Com a morte de Robin, o bando dos fora-da-lei não demorou muito a desaparecer. Alguns escaparam-se para o continente, outros procuraram refúgio nas grandes
cidades e, a pouco e pouco, tornaram-se cidadãos respeitáveis, com residência fixa, ao passo que outros ainda se voltaram a empregar em propriedades distantes, passando
a cumprir a lei sempre que os seus senhores os tratavam com o devido respeito.
Quanto a João Pequeno e a Scarlet, receberam terrenos em Cromwell, onde Alan-a-Dale governava agora as propriedades de Lady Alice. Much foi nomeado beleguim
em Werrisdale, uma propriedade que também se encontrava na posse de Alan, uma vez que o pai deste, Sir Herbrand, já falecera.
  Gilbert da Mão Branca, contudo, não quis assentar. Foi para a Escócia e, com o seu arco e a sua espada, tornou-se um guerreiro de renome, sendo os seus
feitos contados durante anos à volta de muitas fogueiras nas terras da raia.
Ninguém tem a certeza do que sucedeu a Hob da Colina e ao irmão, Ket, o Duende. Aqueles homens pequeninos detestavam todo o tipo de vida sedentária e, embora
Alan-a-Dale lhes tivesse oferecido terras, preferiram percorrer a floresta mal iluminada e as charnecas selvagens. A campa de Robin dos Bosques encontrava-se sempre
muito bem cuidada, embora durante muito tempo ninguém soubesse de quem eram as mãos que cuidavam de tudo. Então, começaram a correr rumores de que, durante a noite,
dois homens pequeninos saíam da floresta de vez em quando, colocavam plantas frescas na campa e aparavam a relva que crescia em seu redor. Contudo, ninguém duvidou
de que se tratava de Ket e Hob, já que ambos tinham adorado Robin enquanto este vivia e, agora que ele morrera, seria impossível que se mantivessem afastados da
sua campa.

Fim!

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