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quarta-feira, 30 de maio de 2012

Jogos Vorazes 1 - Suzanne Colins

Jogos Vorazes - O vencedor.
Autor: Collins, Suzanne
Editora: Rocco
Categoria: Literatura Infanto-Juvenil / Literatura Juvenil

Este livro é o primeiro de uma bem-sucedida trilogia, comercializada para mais de 20 países, A história se passa em uma nação chamada Panem, fundada após o fim
da América do Norte. Formada por 12 distritos, é comandada com mão de ferro pela Capital, sede do governo. Uma das formas com que demonstra seu poder sobre o resto
do carente país é com os 'Jogos Vorazes', uma competição anual transmitida ao vivo pela televisão, em que um garoto e uma garota de 12 a 18 anos de cada distrito
são selecionados e obrigados a lutar até a morte. Para evitar que sua irmã seja a mais nova vítima do programa, Katniss se oferece para participar em seu lugar.
Vinda do empobrecido Distrito 12, ela sabe como sobreviver em um ambiente hostil. Caso vença, terá fama e fortuna. Se perder, morre. Mas para ganhar a competição,
será preciso muito mais do que habilidade. Até onde Katniss estará disposta a ir para ser vitoriosa nos 'Jogos Vorazes'?


Mistura de ficção científica com mitologia e reality show, Jogos Vorazes é o mais novo fenômeno da literatura jovem, precursor de tendência no milionário mercado
de Best-sellers juvenis: a dos romances ambientados num futuro pós-apocalíptico. Há mais de 85 semanas na lista de mais vendidos do The New York Times e de outras
publicações de prestígio dos EUA, e elogiado por Rick Riordan, da série "Percy Jackson", e Stephenie Meyer, da saga "Crepúsculo", o livro, primeiro volume de uma
trilogia, rendeu à autora Suzanne Collins lugar na balada lista de 100 personalidades mais influentes do ano da revista Time.
Ambientado num futuro sombrio, o livro narra uma luta mortal pela sobrevivência encenada por crianças e transmitida ao vivo para todos os habitantes de uma nação
construída nas ruínas de um lugar anteriormente conhecido como Estados Unidos. Com este mote surpreendente e uma narrativa ágil, Jogos Vorazes já foi traduzido
para mais de 30 idiomas e vem se tornando um crossover, atraindo leitores de diversas faixas etárias.


Sinopse: Katniss é uma garota de 16 anos que vive com sua mãe e irmã
no distrito mais pobre de Panem, os restos do que costumava ser os
Estados Unidos. Há muito tempo os distritos travaram guerra contra o
Capitólio e foram derrotados. Como parte dos termos de redenção, cada
distrito concordou em enviar um garoto e uma garota para aparecer em
um evento anual na televisão chamado "The Hunger Games". O terreno,
as regras, e o nível de participação do público pode mudar, mas uma
coisa é constante: matar ou ser morto. Quando a irmã de Kat é escolhido
por sorteio, Kat caminha para ir em seu lugar.

PARTE 1
Os tributos

1

Quando eu acordo, o outro lado da cama está frio. Meus dedos se esticam, procurando o calor
de Prim mas encontrando apenas a áspera lona que cobre o colchão. Ela deve ter tido sonhos
ruins e subido com a nossa mãe. É claro que ela subiu. Esse é o dia da colheita.
Eu me apoio em um cotovelo. Há luz bastante no quarto para vê-las. Minha irmã pequena,
Prim, enroscada do seu lado, embrulhada no corpo da minha mãe, suas bochechas
pressionadas juntas. No sono, minha mãe parece mais jovem, ainda que cansada mas não
deprimida. A face de Prim é fresca como uma gota de chuva, tão linda quanto a prímula cujo
nome a ela foi dado. Minha mãe era muito bonita antigamente, também. Ou assim me dizem.
Sentada aos joelhos de Prim, guardando-a, está o gato mais feio do mundo. Nariz amassado,
metade de uma orelha faltando, olhos cor de suco apodrecido. Prim o nomeou Buttercup,
insistindo que a pele amarela lamacenta dele combinava com uma flor brilhante. Ele me odeia.
Ou ao menos desconfia de mim. Mesmo que tenha sido há anos, eu acho que ele ainda se
lembra de como eu tentei afogá-lo em um balde quando Prim o trouxe para casa. Gatinho
magro, barriga inchada de lombrigas, rastejando com pulgas. A última coisa que eu precisava
era outra boca para alimentar. Mas Prim implorou tanto, chorou até, que eu tive de deixá-lo
ficar. Ficou ok. Minha mãe se livrou dos insetos e ele tornou-se um caçador de ratos. Ainda
pega um rato ocasional. Às vezes, quando eu limpo uma caça, eu alimento as entranhas de
Buttercup.
Entranhas. Sem vaia. Esse é o mais próximo do que nós nunca chegaremos ao amor.
Eu balanço minhas pernas para fora da cama e deslizo dentro das minhas botas de caça. Couro
flexível que foi moldado para o meu pé. Eu coloquei minhas calças, a camisa, enrolei minha
longa trança escura dentro de um boné, e agarrei meu saco de forragem. Na mesa, em uma
tigela de madeira para protegê-lo de ratos e gatos, está um perfeito queijinho envolto em
folhas de manjericão. O presente de Prim para mim no dia da colheita. Eu coloco o queijo
cuidadosamente no meu bolso e deslizo pra fora.
Nossa parte do Distrito 12, apelidado de Seam, está usualmente rastejando com mineiros de
carvão dirigindo-se para o turno da manhã nesta hora. Homens e mulheres com os ombros
curvados, juntas inchadas, muitos dos que deixaram há muito tempo de tentar esfregar o pó
de carvão de suas unhas quebradas, as linhas de suas faces afundadas. Mas hoje as ruas de
cinza negra estão vazias. Persianas na toca das casas cinza estão fechadas. A colheita não é até
as duas. Pode também dormir dentro. Se você puder.
Nossa casa é quase no limite do Seam. Eu só tenho que passar uns poucos portões para chegar
ao campo imundo chamado de Meadow. Separando Meadow da floresta, de fato fechando
todo o Distrito 12, está uma alta cerca de arame com voltas de arame-farpado no topo. Na
teoria, é supostamente para estar eletrificada vinte e quatro horas por dia como um dissuasor
para predadores que vivem na floresta ­ bando de cães selvagem, pumas solitários, ursos ­
que costumavam ameaçar nossas ruas. Mas desde que nós somos sortudos pra conseguir duas
ou três horas de eletricidade nas noites, é geralmente seguro tocar. Mesmo assim, eu sempre
tiro um momento para escutar cuidadosamente um zumbido que significa que a cerca está
viva. Nesse momento, está silenciosa como uma pedra. Escondida por uma massa de arbustos,
eu deito sobre minha barriga e deslizo sob um trecho de 60 cm que estava frouxo por anos.
Existiam alguns outros pontos fracos na cerca, mas esse era tão perto de casa que eu quase
sempre entro na floresta por aqui.
Tão logo eu estou nas árvores, eu encontro um arco e uma bainha de flechas em um tronco
oco. Eletrificada ou não, a cerca tinha sucesso em afastar os comedores de carne do Distrito
12. Dentro da floresta eles vagam livremente, e há preocupações adicionais como cobras
venenosas, animais violentos, e nenhum caminho real para seguir. Mas há também comida se
você sabe como encontrá-la. Meu pai sabia e me ensinou algo antes dele ser explodido em
pedaços em uma detonação na mina. Não existia nada nem para enterrar. Eu tinha onze anos
então. Cinco anos depois, eu ainda acordo gritando para ele correr.
Embora passar os limites para a floresta seja ilegal e caça furtiva exerce as mais severas das
punições, mais pessoas se arriscariam se tivessem armas. Mas a maioria não é destemida o
bastante para se aventurar com apenas uma faca. Meu arco era uma raridade, feito pelo meu
pai, junto com uns poucos outros que eu mantenho escondidos na floresta, cuidadosamente
envoltos em capas impermeáveis. Meu pai podia ter feito um bom dinheiro vendendo-os, mas
se os oficiais descobrissem ele seria publicamente executado por incitar uma rebelião. A
maioria dos Pacifistas cobre os olhos para os poucos de nós que caçam porque eles estão tão
famintos por comida fresca quanto todo mundo está. Na verdade, eles estão entre os
melhores clientes. Mas a idéia de que alguém possa andar armado em Seam nunca seria
permitida.
No outono, umas poucas bravas almas enfiam-se na floresta para colher maçãs. Mas sempre
na vista do Meadow. Sempre perto o bastante para correr de volta à segurança do Distrito 12
se problemas chegassem. "Distrito Doze. Onde você pode morrer de fome em segurança," eu
murmuro. Então eu olho rapidamente por sobre meu ombro. Mesmo aqui, mesmo no meio do
nada, você se preocupa que alguém tenha te escutado.
Quando eu era mais jovem, eu assustei minha mãe até a morte, as coisas que eu exclamaria
sobre o Distrito 12, sobre as pessoas que regram nosso país, Panem, de uma cidade distante
chamada de Capitol. Eventualmente eu entendi que isso iria apenas nos trazer mais
problemas. Então eu aprendi a segurar minha língua e mudar minhas feições para uma
máscara de indiferença para que ninguém pudesse jamais ler meus pensamentos. Faço meu
trabalho silenciosamente na escola. Tenho apenas pequenas conversas polidas no mercado
público. Discuto um pouco mais que negócios no Hob, que é um mercado negro onde eu faço a
maior parte do meu dinheiro. Até em casa, onde eu sou mesmo agradável, fujo de discussões
sobre assuntos enganadores. Como a colheita, ou a carência de comida, ou os Hunger Games.
Prim podia começar a repetir minhas palavras e então onde nós estaríamos?
Na floresta espero a única pessoa com quem eu posso ser eu mesma. Gale. Eu posso sentir os
músculos do meu rosto relaxando, meu passo apressando enquanto eu subia as colinas para o
nosso lugar, uma orla de pedra com vista para o vale. A visão dele me esperando lá me trouxe
um sorriso. Gale diz que eu nunca sorrio exceto na floresta.
"Hey, Catnip," diz Gale. Meu nome real é Katniss, mas quando eu disse para ele pela primeira
vez, eu mal tinha sussurrado. Assim ele pensou que eu tinha dito Catnip. Então quando esse
lince louco começou a me seguir nos arredores da floresta procurando esmolas, tornou-se o
apelido oficial dele para mim. Eu finalmente tive de matar o lince porque ele assustou a caça.
Eu quase me arrependi porque ele não era má companhia. Mas eu consegui um preço decente
pelo seu couro.
"Olhe o que eu peguei," Gale segura um pedaço de pão com uma flecha o atravessando, e eu
rio. Era um pão de padaria de verdade, não o plano e estúpido pão de forma que nós fazemos
das nossas rações de grãos. Eu o pego em minha mão, retiro a flecha, e o seguro perto do meu
nariz, inalando a fragrância que faz minha boca encher de saliva. Pão ótimo como esse é para
ocasiões especiais.
"huMm, ainda quente," eu digo. Ele deve ter estado na padaria de madrugada para consegui-lo.
"Quanto te custou?"
"Só um esquilo. Acho que o velho estava se sentindo sentimental essa manhã," diz Gale. "Até
me desejou sorte."
"Bem, nós todos nos sentimos mais próximos hoje, não?" Eu disse, nem sequer me
importando de girar meus olhos. "Prim nos deixou um queijo." Eu o puxei.
Sua expressão se iluminou de prazer. "Obrigado, Prim. Nós teremos uma festa de verdade."
De repente ele cai no sotaque de Capitol, enquanto imita Effie Trinket, a mulher loucamente
alegre que chega uma vez ao ano para ler os nomes no pódio. "Eu quase esqueci! Feliz Hunger
Games!" Ele arranca algumas amoras silvestres dos arbustos que nos rodeiam. "E que as chances
"Ele lança uma uva em um alto arco na minha direção. Eu a peguei com a minha boca e
quebrei a pele delicada com os meus dentes. A aspereza doce explode pela minha boca. "­
esteja sempre em seu favor!" Eu terminei com igual entusiasmo. Nós temos que brincar sobre
isso porque a alternativa é ficar assustado fora de seu juízo. Além disso, o sotaque de Capitol é
tão fingido, quase qualquer coisa soa divertida nele.
Eu assisto enquanto Gale tira sua faca e corta o pão. Ele podia ser meu irmão. Cabelo escuro
liso, pele cor de oliva, nós até temos os mesmos olhos cinzentos. Mas não somos parentes,
pelo menos não próximos. Maior parte das famílias que trabalham nas minas se assemelham
dessa forma.
É por isso que minha mãe e Prim, com seus cabelos claros e olhos azuis, sempre parecem fora
de lugar. Eles estão. Os pais da minha mãe são parte de uma pequena classe de comerciantes
que fornecem para os oficiais, Pacifistas, e o ocasional cliente de Seam. Eles administram uma
loja farmacista na parte mais legal do Distrito 12. Uma vez que ninguém pode se dar ao luxo de
médicos, boticários são nossos remédios. Meu pai conheceu minha mãe porque numa caçada
ele iria de vez em quando coletar ervas medicinais e vendê-las na loja dela para misturá-las em
remédios. Ela deve ter realmente o amado para deixar a casa dela para o Seam. Eu tento
lembrar isso quando tudo o que eu posso ver é uma mulher que se senta, vazia e inatingível,
enquanto suas crianças ficam só pele e ossos. Eu tento perdoá-la pelo meu pai. Mas para ser
honesta, eu não sou do tipo que perdoa.
Gale arruma as fatias de pão com o queijo macio, cuidadosamente colocando as folhas de
manjericão em cada uma enquanto eu esvazio os arbustos de suas uvas. Nós ficamos atrás em um
esconderijo nas rochas. Desse lugar, nós somos invisíveis mas temos uma clara visão do vale,
que está transbordando com vida de verão, verduras para recolher, raízes para escavar,
pescado iridescente na luz do sol. O dia é glorioso, com um céu azul e brisa suave. A comida
está uma maravilha, com o queijo gotejando dentro do pão quente e as uvas estourando em
nossas bocas. Tudo seria perfeito se isso fosse realmente um feriado, se todo o dia fosse vagar
nas montanhas com Gale, caçando pela ceia da noite. Mas em vez disso nós temos de ficar de pé na praça às duas horas esperando pelos nomes que são chamados.
"Nós poderíamos fazer, sabe," Gale diz quietamente.
"O quê?" Eu pergunto.
"Deixar o distrito. Fugir. Viver na floresta. Você e eu, nós podemos fazer," diz Gale.
Eu não sei como responder. A idéia é tão ridícula.
"Se nós não tivéssemos tantas crianças," ele acrescenta quietamente.
Eles não são nossos filhos, é claro. Mas eles poderiam ser. Os dois irmãos pequenos e a irmã de
Gale. Prim. E você pode também acrescentar nossas mães, também, porque como elas
viveriam sem nós? Quem saciaria aquelas bocas que estão sempre pedindo por mais? Com
ambos caçando diariamente, ainda há noites que a caça tem que ser trocada por banha de
porco ou cordões de sapatos ou madeira, ainda tem noite em que nós vamos para cama com
nossos estômagos roncando.
"Eu nunca quero ter filhos," eu digo.
"Eu poderia. Se eu não vivesse aqui," diz Gale.
"Mas você vive," eu digo, irritada.
"Esqueça," ele rebate de volta.
A conversa ficou toda errada. Partir? Como eu poderia deixar Prim, que é a única pessoa no
mundo que eu certamente amo? E Gale é devotado a sua família. Nós não podemos partir,
então por que nós estamos falando sobre isso? E mesmo se nós pudéssemos... mesmo se
pudéssemos... de onde essa coisa de ter filhos veio? Nunca teve nada romântico entre Gale e
eu. Quando nós nos conhecemos, eu era uma magrela de doze anos, e embora ele seja apenas
dois anos mais velho, ele já parecia um homem. Levou um longo tempo pra nós mesmo
tornássemos amigos, para parar de discutir sobre todo negócio e começar a ajudar um ao
outro.
Além disso, se ele quer filhos, Gale não terá problemas em encontrar uma esposa. Ele é
bonito, forte o bastante para lidar com o trabalho das minas, e ele pode caçar. Você pode dizer
pela forma que as garotas cochicham sobre ele quando ele passa na escola que o querem.
Deixa-me com ciúmes, mas não pela razão que as pessoas pensariam. Companheiros
caçadores bons são difíceis de encontrar.
"O que você quer fazer?" eu pergunto. Nós podemos caçar, pescar, ou colher.
"Vamos pescar no lago. Nós podemos deixar nossas varas e colher na floresta. Consiga alguma
coisa legal para essa noite," ele diz.
Hoje à noite. Depois da colheita, todos são supostos a comemorar. E muitas pessoas fazem, de
alívio que seus filhos foram poupados por mais um ano. Mas no mínimo duas famílias vão
fechar suas persianas, trancar suas portas, e tentar imaginar se eles sobreviverão às dolorosas
semanas que virão.
Nós fazemos bem. Os predadores nos ignoram em dias quando há abundância de presas mais
saborosas e fáceis. Ao final da manhã, nós temos uma dúzia de peixes, um saco de verduras e,
o melhor de tudo, um galão de morangos. Eu achei o remendo há poucos anos atrás, mas Gale
teve a idéia de amarrar a rede de malha ao redor dele para afastar os animais.
No caminho de casa, nós viramos para o Hob, o mercado negro que opera em um depósito
abandonado que uma vez guardou carvão. Quando vieram com um sistema mais eficiente que
transportava o carvão diretamente das minas para os trens, o Hob gradativamente tomou o
lugar. A maioria dos negócios estão fechados a essa hora no dia da colheita, mas o mercado
negro ainda está claramente ocupado. Nós facilmente negociamos seis dos peixes por bom
pão, os outros dois por sal. Greasy Sae, a velha ossuda que vende tigelas de sopa quente de
uma larga caldeira, toma metade das verduras das nossas mãos em troca de um par de
pedaços de parafina. Nós podemos fazer um pouquinho melhor em outro lugar, mas nós nos
esforçamos em continuar em boas relações com Greasy Sae. Ela é a única que se pode sempre
contar para comprar um cão selvagem. Nós não os caçamos de propósito, mas se você é
atacada e arranja um cão ou dois, bem, comida é comida. "Uma vez na sopa, eu poderei
chamá-lo de bife," Greasy Sae diz com uma piscadela. Ninguém em Seam iria virar o nariz para
uma boa perna de cão selvagem, mas os Pacifistas que vem para o Hob podem se dar ao luxo
de ser um pouco seletivos.
Quando nós terminamos nossos negócios no mercado, vamos para porta dos fundos da casa
do prefeito para vender metade dos morangos, sabendo que ele tem uma particular afeição
por eles e pode bancar nosso preço. A filha do prefeito, Madge, abre a porta. Ela está no meu
ano na escola. Sendo filha do prefeito, você esperaria que fosse uma esnobe, mas ela é toda
direita. Ela só se guarda a si mesma. Como eu. Desde que nenhuma de nós realmente tem um
grupo de amigos, nós parecemos terminar juntas muito na escola. Comendo o lanche,
sentando perto uma da outra nas reuniões, fazendo parcerias em atividades esportivas.
Raramente conversamos, o que satisfaz a ambas.
Hoje a sua monótona veste escolar tem sido substituída por um caro vestido branco, e seu
cabelo loiro está preso com uma fita rosa. Roupas da colheita.
"Bonito vestido," diz Gale.
Madge lança a ele um olhar, tentando ver se é um elogio genuíno ou se ele está apenas
tentando ser irônico. Era um vestido bonito, mas ela nunca o usaria de maneira ordinária. Ela
pressiona seus lábios juntos e então sorri. "Bem, se eu terminar indo ao Capitol, quero parecer
legal, não?"
Agora é a vez de Gale ficar confuso. O que ela quer dizer? Ou ela está brincando com ele? Eu acho que é o segundo.
"Você não vai para o Capitol," diz Gale friamente. Seus olhos chegam num pequeno alfinete
circular que enfeita o vestido dela. Ouro de verdade. Belamente feito. Podia manter uma
família com pães por meses. "O que você pode ter? Cinco entradas? Eu tive seis quando eu
tinha apenas doze anos de idade."
"Não é culpa dela," eu digo.
"Não, não é culpa de ninguém. Só é assim," diz Gale. O rosto de Madge fica fechado. Ela coloca
o dinheiro pelas uvas na minha mão. "Boa sorte, Katniss."
"Você também," eu digo, e a porta se fecha.
Nós andamos em direção a Seam em silêncio. Eu não gosto que Gale zombe de Madge, mas
ele está certo, é claro. O sistema da colheita é injusto, com os pobres conseguindo o pior. Você
se torna elegível para a colheita no dia que completa doze anos. Nesse ano, seu nome entra
uma vez. Aos treze, duas vezes. E assim por diante até completar dezoito, o último ano de
elegibilidade, quando seu nome vai para a piscina sete vezes.
Isso é certo para todo cidadão dentro de todos os doze distritos do país de Panem inteiro.
Mas há um truque. Diga que você é pobre e está faminto como nós estamos. Você pode optar
por adicionar seu nome mais vezes em troca de tessera. Cada tessera vale um ano de um
magro suprimento de grãos e óleo para uma pessoa. Você pode fazer isso para cada membro
da sua família também. Assim, aos doze anos, eu tive meu nome anotado quatro vezes. Uma
vez, porque eu tive de fazer, e três vezes pela tessera e para grãos e óleo para eu mesma, Prim,
e minha mãe. Na verdade, todos os anos eu tenho que fazer isso. E as entradas são
cumulativas. Então agora, aos dezesseis anos, meu nome estará na colheita vinte vezes. Gale,
que está com dezoito anos e tem sozinho ajudado e alimentado uma família de cinco a sete
anos, terá seu nome em quarenta e duas vezes.
Você pode ver porque alguém como Madge, que nunca esteve no risco de precisar de tessera,
pode tirá-lo de si. A chance do nome dela ser puxado é muito pequena comparada àqueles de
nós que vivem em Seam. Não impossível, mas pequena. E embora as regras tenham sido
montadas em Capitol, não nos distritos, certamente não pela família de Madge, é difícil não se
ressentir daqueles que não tem que registrar pela tessera.
Gale sabe que a sua raiva de Madge é equivocada. Em outro dia, fundo dentro da floresta, eu o
escutei falar alto sobre A tessera ser apenas outra ferramenta para causar miséria no nosso
distrito. Uma forma de plantar ódio entre os trabalhadores famintos de Seam e aqueles que
geralmente podem contar com a ceia e, assim, garantir que nunca confiarão um no outro. "É
para uma vantagem para o Capitol ter-nos divididos entre nós mesmos," ele podia falar se não
havia nenhum ouvido para escutar exceto os meus. Se não fosse o dia da colheita. Se uma
garota com um alfinete de ouro e nenhuma Tessera não tivesse feito o que eu tenho certeza
que ela pensou ser um comentário inofensivo.
Enquanto caminhamos, eu fito o rosto de Gale, ainda ardendo sob sua expressão pétrea. Sua
raiva parece inútil para mim, embora eu nunca dissesse isso. Não é que eu não concordava
com ele. Eu concordo. Mas que bem faz gritar sobre o Capitol no meio da floresta? Não muda
nada. Não faz as coisas justas. Não sacia nossos estômagos. Na verdade, espanta a caça mais
próxima. Eu o deixo gritar, entretanto. Melhor ele fazer isso na floresta que no distrito.
Gale e eu dividimos nosso saque, deixando dois peixes, um par de pães bons, verduras, um
quarto de galão de morangos, sal, parafina, e um pouco de dinheiro para cada um.
"Te vejo na praça," eu digo.
"Use algo bonito," ele diz sem rodeios.
Em casa, eu encontro minha mãe e irmã prontas para ir. Minha mãe usa um vestido fino dos
seus dias de farmacista. Prim está com meus trajes da minha primeira colheita, uma saia e uma
blusa franzida. Está um pouco grande nela, mas minha mãe o fixou com alfinetes. Mesmo
assim, ela está tendo trabalho para manter a blusa dobrada nas costas.
Uma banheira de água quente me espera. Eu esfrego a sujeira e o suor da floresta e ainda lavo
o meu cabelo. Para minha surpresa, minha mãe estendeu para mim um de seus belos vestidos.
Uma coisa azul e macia com sapatos combinando.
"Você tem certeza?" Eu pergunto. Estou tentando passar a rejeitar as ofertas de ajuda ela. Por
um tempo, eu estava tão furiosa que não permitiria que ela fizesse qualquer coisa por mim. E
isso era algo especial. As roupas dela do seu passado eram muito especiais para ela.
"Claro. Deixa eu puxar esse cabelo para cima, também," ela diz. Eu a deixo secá-lo e fazer uma
trança na minha cabeça. Dificilmente posso me reconhecer no espelho rachado apoiado na
parede.
"Você parece bonita," diz Prim numa voz quieta.
"E nada como eu mesma," eu falo. Abraço-a, porque eu sei que essas próximas horas serão
terríveis para ela. Sua primeira colheita. Ela está tão segura quanto poderia ficar, desde que
ela entrou apenas uma vez. Eu não a deixaria arranjar nenhuma Tessera. Mas ela está
preocupada comigo. Que o impensável pode acontecer.
Eu protejo Prim de toda maneira que eu posso, mas sou impotente contra a colheita. A
angústia que eu sempre sinto quando ela está com dor brota em meu peito e ameaça aparecer
no meu rosto. Eu noto que a blusa dela está puxada para fora da saia nas costas de novo, e me
forço a ficar calma. "Olhe seu traseiro, patinha," digo, alisando a blusa de volta ao lugar.
Prim ri e me dá um pequeno "Quack."
"Quack você," eu falo com um ligeiro sorriso. Do tipo que apenas Prim consegue tirar de mim.
"Venha, vamos comer," digo e dou um rápido beijo no topo de sua cabeça.
O peixe e as verduras já estão sendo cozidas na sopa, mas aquilo será para a ceia. Nós
decidimos guardar os morangos e pão de padaria para a refeição da noite, para fazê-lo
especial, nós dissemos. Em vez disso tomamos leite da cabra de Prim, Lady, e comemos o pão
duro feito de grãos de tessera, embora ninguém tenha muito apetite de qualquer modo.
A uma hora, nos dirigimos à praça. Comparecer é obrigatório a não ser que esteja com o pé na
cova. Esta noite, oficiais irão ao redor checar se esse é o caso. Se não, você será preso.
Mas hoje, apesar das bandeiras brilhantes penduradas nas construções, há um ar de
crueldade. O grupo de câmeras, empoleiradas como urubus nos telhados, só contribui nesse
efeito.
Pessoas andam em fila silenciosamente e assinam. A colheita é uma boa oportunidade para o
Capitol de manter etiquetas na população também. Os de doze aos dezoito anos são unidos
dentro de áreas marcadas por cordas pela idade, os mais velhos na frente, os mais novos,
como Prim, lá trás. Membros da família se enfileiram ao redor do perímetro, segurando
apertado a mão um do outro. Mas há outros, também, que tem ninguém que eles amam em
perigo, ou que não se importam mais, ou deslizam pela multidão, fazendo apostas nas duas
crianças cujos nomes serão puxados. Probabilidade é dada pela idade, se eles são Seam ou
comerciantes, se eles terão um ataque e chorarão. A maioria se recusa a fazer negócio com os
mafiosos, mas cuidadosamente, cuidadosamente. Essas mesmas pessoas tendem a serem
informantes, e quem não tem quebrado a lei? Eu poderia ser pega na base diária para caça,
mas o apetite dos responsáveis me protege. Nem todos podem dizer o mesmo.
De qualquer forma, Gale e eu concordamos que se nós temos que escolher entre morrer de
fome e uma bala na cabeça, a bala seria muito mais rápida.
O espaço fica mais apertado, mais claustrofóbico enquanto as pessoas chegam. A praça é bem
larga, mas não o bastante para concentrar a população de cerca de oito mil do Distrito 12. Os
retardatários são direcionados para as ruas adjacentes, onde se pode assistir ao evento em
telas enquanto é transmitida ao vivo pelo Estado.
Eu me encontro de pé no grupo dos dezesseis anos de Seam. Nós todos trocamos pequenos
acenos então focamos nossa atenção no palco temporário que é colocado em frente do
Edifício da Justiça. Possui três cadeiras, um pódio, e dois globos de vidro, um para os meninos
e um para as meninas. Eu olho para os papeis escorregando dentro do globo das garotas. Vinte
deles tem Katniss Everdeen escrito em cuidadosa caligrafia.
Em duas das três cadeiras estão o pai de Madge, Prefeito Undersee, que é um homem alto e
ficando careca, e Effie Trinket, escolta do Distrito 12, recente do Capitol com seu assustador
sorriso branco, cabelo rosa e terno verde de primavera. Eles cochicham um para o outro e
então olham com interesse o assento vazio.
Logo que o relógio bate as duas, o prefeito se levanta no pódio e começa a ler. É a mesma
história todo ano. Ele fala da história de Panem, o país que se levantou das cinzas de um lugar
que já foi chamado de América do Norte. Ele lista os desastres, as secas, as tempestades, os
incêndios, as invasões dos mares que engoliu muita terra, a guerra brutal pelo pequeno
alimento restante. O resultado foi Panem, uma iluminada Capitol rodeado por treze distritos,
que trouxe paz e prosperidade para os cidadãos. Então veio os Dias Negros, a revolta dos
distritos contra o Capitol. Doze foram derrotados, o décimo terceiro obliterado. O Tratado de
Traição nos deu novas leis para garantir a paz e, como nosso lembrete anual de que os Dias
Negros nunca deveriam ser repetidos, deu-nos o Hunger Games.
As regras do Hunger Games são simples. Como punição pela revolta, cada um dos doze
distritos devem providenciar uma garota e um garoto, chamados tributos, para participar. Os
vinte e quatro tributos serão aprisionados numa vasta arena ao ar livre que pode conter
qualquer coisa de um deserto ardente a uma devastação congelada. Pelo período de poucas
semanas, os competidores devem lutar até a morte. O último tributo de pé ganha.
Tirando as crianças dos nossos distritos, forçando-os a matar um ao outro enquanto eles
assistem ­ essa é a hora do Capitol de nos lembrar como estamos totalmente a mercê deles.
Quão pequena chance nós teríamos de sobreviver a outra rebelião.
Quaisquer palavras que usem, a real mensagem é clara. "Olhe como nós tomamos suas
crianças e as sacrificamos e não há nada que vocês possam fazer. Se você levantarem um
dedo, destruiremos cada um de vocês. Assim como fizemos no Distrito Treze."
Para fazer a humilhação mais atormentadora, o Capitol nos obriga a tratar os Hunger Games
como uma festa, um evento desportivo que coloca cada distrito contra os outros. O último
tributo vivo recebe uma vida de tranqüilidade de volta para casa, e seu distrito terá uma chuva
de prêmios, consistindo largamente de comida. Todo ano, o Capitol mostrará ao distrito
vencedor presentes como grãos e óleo e mesmo delicadezas como açúcar enquanto o resto de
nós batalha contra a fome.
"É tanto uma hora de penitência como uma hora de arrependimento," entoa o prefeito.
Então ele lê uma lista de antigos vitoriosos do Distrito 12. Em setenta e quatro anos, nós
tivemos exatamente dois. Apenas um ainda está vivo. Haymitch Abernathy, um homem
barrigudo de meia-idade, que nesse momento aparece gritando algo ininteligível, cambaleia
para o palco, e cai na terceira cadeira. Ele está bêbado. Muito. A multidão responde com
aplausos simbólicos, mas ele está confuso e tenta dar em Effie Trinket um grande abraço, ao
qual ela mal consegue defender-se.
O prefeito parece aflito. Desde que tudo isso está sendo emitido através de televisão, agora
mesmo o Distrito 12 é o alvo de riso de Panem, e ele sabe disso. Ele rapidamente tenta puxar
a atenção de volta à colheita introduzindo Effie Trinket.
Brilhante e espumante como sempre, Effie Trinket trota para o pódio e dá sua assinatura,
"Feliz Hunger Games! E que as chances estejam sempre ao seu favor!" Seu cabelo rosa deve
ser uma peruca porque seus cachos tinham se deslocado levemente do centro desde que ela
encontrou com Haymitch. Ela vai um pouco sobre que honra é estar aqui, embora todos
saibam que ela está apenas se doendo para ir a um distrito melhor onde eles tenham
vitoriosos apropriados, não bêbados que molestam você na frente de uma nação inteira.
Através da multidão, eu localizo Gale olhando de trás para mim com uma sombra de um
sorriso. Enquanto a colheita vai, esse pelo menos tem um fator de entretenimento. Mas de
repente eu estou pensando em Gale e seus quarenta e dois nomes dentro daquele grande
globo e como as chances não estão ao seu favor. Não comparado a muitos garotos. E talvez ele
esteja pensando a mesma coisa porque o rosto dele escureceu e ele se virou. "Mas ainda há
milhares de papéis," eu desejei poder sussurrar isso para ele.
É a hora do sorteio. Effie Trinket diz como ela sempre faz, "Damas primeiro!" e cruzou o globo
de vidro com os nomes das garotas. Ela chegou, empurrou sua mão fundo no globo, e puxa pra
fora uma tira de papel. A multidão prende em uma respiração coletiva e então você pode
escutar um alfinete cair, e eu estou me sentindo com náuseas, e desesperadamente desejando
que não fosse eu, que não fosse eu, que não fosse eu.
Effie Trinket atravessa o pódio, alisa o pedaço de papel, e lê o nome numa voz clara. E não é
eu.
É Primrose Everdeen.

2

Uma vez, quando eu estava em uma cobertura numa árvore, esperando imóvel por uma caça a
vaguear, eu cochilei e caí 3 metros no chão, caindo sobre minhas costas. Foi como se o
impacto tivesse bloqueado todo fragmento de ar dos meus pulmões, e eu fiquei deitada lá,
lutando para inalar, exalar, fazer qualquer coisa.
Era como eu me sinto agora, tentando lembrar como respirar, incapaz de falar, totalmente
estupefata enquanto o nome salta para dentro do meu crânio. Alguém está agarrando meu
braço, um garoto de Seam, e acho que talvez eu comecei a cair e ele me pegou.
Deve ter sido algum engano. Isso não pode estar acontecendo. Prim era uma tira de papel
entre milhares! Suas chances de ser escolhida eram tão remotas que eu nem mesmo me
incomodei em ficar preocupada. Eu não tenho feito nada? Tomado A tessera, recusando a
deixar ela fazer o mesmo? Uma tira. Uma tira entre milhares. As chances tinham estado
inteiramente a favor dela. Mas isso não importou.
Em algum lugar bem longe, eu posso ouvir a multidão murmurando infelizmente como eles
sempre fazem quando alguém de doze anos de idade é escolhido porque ninguém acha que é
justo. E então eu a vejo, o sangue drenado de seu rosto, as mãos apertadas em punhos dos
seus lados, andando com rígidos e pequenos passos em direção ao palco, passando por mim, e
vejo que a costa da sua blusa está solta e balançando sobre a sua saia. É esse detalhe, a blusa
solta formando um rabo de pato, que me traz de volta a mim mesma.
"Prim!" Um grito estrangulado sai da minha garganta, e meus músculos começam a se mover
de novo. "Prim!" Eu não preciso empurrar pela multidão. As outras crianças fazem um
caminho imediatamente me permitindo uma passagem direta para o palco. Eu a alcanço justo
enquanto ela está para subir o piso. Com um arrastão do meu braço, eu a puxo para trás de
mim.
"Eu me voluntario!" Arfo. "Eu me voluntario como tributo!"
Há alguma confusão no palco. Distrito 12 não tinha um voluntário em décadas e o protocolo
tinha ficado enferrujado. A regra era que uma vez que o nome do tributo tinha sido puxado do
globo, outro garoto elegível, se um nome de garoto tinha sido lido, ou garota, se o nome de
uma garota tinha sido lido, pode andar para tomar o lugar dele ou dela. Em alguns distritos,
nos quais ganhar a colheita é uma honra maravilhosa, pessoas estão ansiosas para arriscar
suas vidas, o voluntariado é complicado. Mas no Distrito 12, onde a palavra tributo é como um
sinônimo para a palavra cadáver, voluntários são quase extintos.
"Amável!" diz Effie Trinket. "Mas eu acredito que há um pequeno problema de introduzir o
vencedor da colheita e então perguntar por voluntários, e se alguém vem adiante então nós,
hum..." ela se perde, incerta.
"O que isso importa?" diz o prefeito. Ele está olhando para mim com uma expressão de dor no
seu rosto. Ele não me conhece realmente, mas há um leve reconhecimento aí. Eu sou a garota
que traz os morangos. A garota sobre a qual sua filha deve ter falado em uma ocasião. A
garota que cinco anos atrás está de pé, aconchegada a sua mãe e irmã, enquanto ele a
presenteava, a filha mais velha, com uma medalha de coragem. Uma medalha do pai dela,
vaporizando nas minas. Ele lembra daquilo? "O que isso importa?" ele repete bruscamente.
"Deixe-a vir."
Prim está gritando histericamente atrás de mim. Ela está rodeando seus magros braços ao meu
redor como um vício. "Não, Katniss! Não! Você não pode ir!"
"Prim, deixe," eu digo roucamente, porque isso está me angustiando e eu não quero chorar.
Quando eles transmitirem na televisão a gravação das colheitas hoje a noite, todos verão
minhas lágrimas, e eu serei marcada como um alvo fácil. Uma fraca. Eu não darei satisfação a
ninguém. "Deixe!"
Eu posso sentir alguém a puxando das minhas costas. Eu me viro e vejo Gale arrastando Prim e
ela batendo nos braços dele. "Agora é com você, Catnip," ele diz, em uma voz que está
brincando para manter estável, e então ele carrega Prim para minha mãe. Eu me endureço
como aço e subo os degraus.
"Bem, bravo!" emociona-se Effie Trinket. "Esse é o espírito dos Games!" Ela está satisfeita que
finalmente tem um distrito com um pouco de ação acontecendo. "Qual é o seu nome?"
Eu engulo rigidamente. "Katniss Everdeen," digo.
"Eu aposto meus botões que era sua irmã. Não queremos que ela roube toda glória,
queremos? Vamos, todo mundo? Vamos dar uma salva de palmas para nosso novo tributo!"
garganteia Effie Trinket.
Para o último crédito das pessoas do Distrito 12, ninguém bateu palmas. Nem mesmo aqueles
segurando cupons de aposta, os que usualmente estão além de se importar. Possivelmente
porque eles me conhecem do Hob, ou conheciam meu pai, ou tem encontrado Prim, a quem
ninguém pode deixar de amar. Assim em vez de aplausos de reconhecimento, eu fiquei em pé
ali sem me mover enquanto eles tomam parte na mais ousada forma de dissidência que eles
podiam. Silêncio. Que diz que eles não concordam. Nós não perdoamos. Tudo isso está errado.
Então algo inesperado acontece. No mínimo, eu não esperava porque não pensava no Distrito
12 como um lugar que se importa comigo. Mas uma mudança tem ocorrido desde que eu subi
para tomar o lugar de Prim, e agora parece que eu tenho me tornado uma pessoa preciosa. O
primeiro, depois outro, então quase todos os membros da multidão tocaram os três dedos do
meio das suas mãos esquerdas para os seus lábios e seguram para mim. É um velho e raro gesto
usado no nosso distrito, ocasionalmente visto em funerais. Significa obrigada, significa
admiração, significa adeus para alguém que você ama.
Agora eu estou realmente em perigo de chorar, mas felizmente Haymitch escolhe essa hora
para vir vacilante pelo palco para me congratular. "Olhe para ela. Olha para essa garota!" ele grita,
atiram um braço ao redor dos meus ombros. Ele é surpreendente forte para um cara arruinado. "Eu
gosto dela!" Sua respiração fede a licor e faz um bom tempo desde quando ele tomou banho.
"Muita..." Ele não pode pensar em uma palavra por enquanto. "Bravura!" Ele diz triunfante.
"Mais que vocês!" Ele me solta e começa ir para a frente do palco. "Mais que vocês!" ele grita,
apontando para a câmera.
Ele está se dirigindo a audiência ou ele está tão bêbado que ele podia na verdade estar
ridicularizando o Capitol? Eu nunca saberia porque justo quando ele estava abrindo a boca
para continuar, Haymitch cai fora do palco e fica inconsciente.
Ele é nojento, mas estou grata. Com toda câmera alegremente treinando nele, eu tenho só
tempo o bastante para liberar um som pequeno e chocado da minha garganta e me compor.
Ponho minhas mãos atrás das minhas costas e olho para o distante.
Eu posso ver as montanhas que eu subi essa manhã com Gale. Por um momento, eu sinto
saudade de algo... a idéia de nós partindo do distrito... fazendo nosso caminho na floresta...
mas eu sei que eu estava certa em não fugir. Por que quem mais se voluntariaria por Prim?
Haymitch é arrastado em uma maca, e Effie Trinket está tentando rodar o globo novamente.
"Que dia excitante!" ela gorjeia enquanto tenta ajeitar sua peruca, que tinha deslizado um
pouco para a direita. "Mas mais excitação está por vir! É a hora de escolher nosso tributo
garoto!" Claramente esperando conter a situação do seu tênue cabelo, ela coloca uma mão na
sua cabeça enquanto atravessa o globo que contém os nomes dos garotos e agarra a primeira
tira que encontra. Ela move-se rápido de volta ao pódio, e eu nem tenho tempo para desejar a
segurança de Gale quando ela está lendo o nome. "Peeta Mellark."
Peeta Mellark!
Oh, não, eu penso. Não ele. Porque eu reconheço esse nome, embora eu nunca tenha falado
diretamente com o dono. Peeta Mellark.
Não, as chances não estavam ao meu favor hoje. Eu o assisti enquanto ele fazia seu caminho
em direção ao pódio. Altura média, sólida estrutura, cabelos loiros cinza que caem em ondas
sobre sua testa. O choque do momento está registrado no seu rosto, você pode ver que ele
luta para se manter sem emoções, mas seus olhos azuis mostram o alarme que eu vejo tão
freqüentemente nas caças. Ainda ele sobe firmemente o pódio e toma seu lugar.
Effie Trinket pergunta por voluntários, mas ninguém dá um passo a frente. Ele tem dois irmãos
mais velhos, eu sei, tenho-os visto na padaria, mas um é provavelmente velho demais agora
para se voluntariar e o outro não vai. Esse é o padrão. Devoção familiar só vai até aqui para a
maioria das pessoas no dia da colheita. O que eu fiz foi uma coisa radical.
O prefeito começa a ler o longo e estúpido Tratado de Traição como ele faz todo ano nesse
ponto ­ é necessário ­ mas não estou escutando uma palavra.
Por que ele? Eu penso. Então tento me convencer de que isso não importa. Peeta Mellark e eu
não somos amigos. Nem mesmo visinhos. Nós não nos falamos. Nossa única real interação
aconteceu anos atrás. Ele provavelmente esqueceu. Mas eu não e sei que nunca vou...
Foi durante o tempo pior. Meu pai tinha sido morto num acidente na mina três meses mais
cedo no janeiro mais amargo que qualquer um podia lembrar. A paralisia da perda dele tinha
passado, e a dor me atingiria do nada, dobrando-me mais, quebrando meu corpo em soluços.
Onde você está? Eu gritava na minha mente. Onde você foi? Claro, nunca havia alguma
resposta.
O distrito nos deu uma pequena quantia em dinheiro para compensar a sua morte, o bastante
para cobrir um mês de luto que era o tempo que minha mãe esperaria para conseguir um
trabalho. Só que ela não conseguiu. Ela não fez nada além de sentar em uma cadeira ou, mais
freqüentemente, aconchegada sob os cobertores na sua cama, olhos fixos em algum ponto
distante. De vez em quando, ela se agitaria, levantava como se movida por um propósito
urgente, só para então cair dentro da paralisia. Nenhuma quantidade de pedidos de Prim
pareceu afetá-la.
Eu estava aterrorizada. Eu suponho agora que minha mãe estava trancada em algum escuro
mundo de tristeza, mas naquela hora, tudo o que eu sabia era que eu tinha perdido não só
meu pai, mas minha mãe também. Aos onze anos de idade, Prim com apenas sete, eu assumi a
chefia da família. Não havia escolha. Eu trouxe nossa comida do mercado e cozinhei o melhor
que pude e tentei manter Prim e eu parecendo apresentável. Porque ficou claro que minha
mãe não podia se importar mais conosco, o distrito teria nos levado dela e nos colocado numa
casa comunitária. Cresci vendo essas crianças na escola. A tristeza, as marcas nas mãos raivosas
em seus rostos, a desesperança que curvava seus ombros. Eu nunca poderia deixar isso
acontecer a Prim. Docy, pequena Prim que chorou quando eu chorei antes mesmo de saber a
razão, que escovou e trançou o cabelo da minha mãe antes de irmos para a escola. Que ainda
polindo o espelho de barbear do pai cada noite porque ele odiava a camada de pó de carvão
que se instalava em tudo em Seam. A casa comunitária iria exterminá-la como um besouro.
Então mantive nossa situação difícil em segredo.
Mas o dinheiro se foi e nós ficamos lentamente morrendo de fome. Não há outra forma de
dizer isso. Eu continuei dizendo a mim mesma se pudesse segurar até maio, só 8 de maio, eu
completaria doze anos e seria capaz de me registrar pela tessera e conseguir os preciosos
grãos e óleo para nos alimentar. Só faltava ainda algumas semanas. Nós poderíamos estar bem
mortas até lá.
Morrer de fome não é um destino incomum no Distrito 12. Quem não tinha visto as vítimas?
Pessoas velhas não podiam trabalhar. Crianças de uma família com muito para alimentar.
Aqueles machucados nas minas. Estendendo-se pelas ruas. E um dia, você os vê sentados
imóveis contra a parede ou deitados no Meadow, você escuta o lamento de uma casa, e os
Pacifistas são chamados para retomar o corpo. Morrer de fome nunca é a oficial causa da
morte. É sempre gripe, ou exposição, ou pneumonia. Mas isso não engana ninguém.
Na tarde do meu encontro com Peeta Mellark, a chuva estava caindo em implacáveis folhas de
gelo. Eu tinha estado na cidade, tentando negociar algumas roupas de bebê velhas e gastas de
Prim no mercado público, mas não havia conquistadores. Embora eu tenha estado no Hob em
algumas ocasiões com meu pai, estava muito assustada para me aventurar dentro daquele
lugar bruto e de areia sozinha. A chuva tinha molhado toda a jaqueta de caça do meu pai,
deixando-me resfriada até os ossos. Por três dias, nós não tínhamos nada além de água fervida
com algumas folhas de hortelã velhas que eu tinha achado nos fundos do armário. Até o
momento que o mercado fechou, eu estava tremendo tão forte que eu deixei minha trouxa de
roupa de bebê em uma poça de lama. Não a peguei de volta por medo de me ajoelhar e não
conseguir recuperar meus pés. Além disso, ninguém queria aquelas roupas.
Eu não podia ir para casa. Porque em casa estava minha mãe com seus olhos mortos e minha
irmãzinha, com suas bochechas encovadas e lábios rachados. Não podia andar dentro daquele
quarto com o fogo fumarento dos galhos úmidos que eu limpei no limite da floresta depois
que o carvão tinha acabado, minhas bandas vazias de qualquer esperança.
Eu me encontrei tropeçando ao longo de uma pista enlameada atrás das lojas que servem as
pessoas mais ricas da cidade. Os comerciantes vivem acima de seus negócios, assim eu estava
essencialmente em seus quintais. Lembro que os contornos do jardim não estavam plantados
para primavera ainda, uma cabra ou duas no cercado, um cão encharcado amarrado em um
poste, curvado derrotado na lama.
Todas as formas de roubar eram proibidas no Distrito 12. Punição por morte. Mas atravessou
minha mente que deveria ter algo nas lixeiras, e essas eram caças justas. Talvez um osso de
açougueiro ou legumes podres da mercearia, algo que ninguém além da minha família estava
desesperada o bastante para comer. Infelizmente as lixeiras estavam vazias.
Quando passei do padeiro, o cheiro de pão fresco era tão esmagador que fiquei tonta. O forno
era nos fundos, e fulgor dourado derramou-se de porta aberta da cozinha. Eu fiquei
hipnotizada pelo calor e o cheiro agradável até a chuva interferir, correndo como dedos
gelados nas minhas costas, forçando-me a voltar à vida. Eu levantei a tampa da lixeira do
padeiro e a achei impecável e cruelmente vazia.
De repente uma voz estava gritando para mim e eu olhei para cima para ver a mulher do
padeiro, dizendo para eu ir embora e se eu queria que ela ligasse para os Pacifistas e o quão
doente ela estava por ter esses pirralhos de Seam tocando o lixo dela. As palavras eram feias e
não tive nenhuma defesa. Enquanto cuidadosamente recoloquei a tampa e me voltei para ir
embora, eu o notei, um garoto com cabelo loiro espiando atrás de sua mãe. Eu o tinha visto na
escola. Ele era do meu ano, mas eu não sabia o seu nome. Ele está com as crianças da cidade,
então como eu saberia? Sua mãe voltou para a padaria, resmungando, mas ele deve ter
ficado me olhando enquanto eu fazia meu caminho atrás da cerca que segurava o porco deles
e me inclinei no lado mais distante de um pé de maçã. A realização de que eu não teria nada
para levar para casa tinha finalmente afundado. Meus joelhos entortaram e eu deslizei para as
raízes da árvore. Era demais. Eu estava doente e fraca e cansada, oh, tão cansada. Deixe-os
chamar os Pacificadores e nos tomar para a casa comunitária, eu pensei. Ou melhor ainda,
deixe-me morrer aqui mesmo na chuva.
Houve um barulho na padaria e escutei uma mulher gritando de novo e o som de uma
bofetada, e eu vagamente me perguntei o que estava acontecendo. Pés surgiram na minha
direção e eu pensei, É ela. Ela está vindo me mandar embora com uma vara. Mas não era ela.
Era o garoto. Nos seus braços, ele carregava dois largos pedaços de pão que devem ter caído
no fogo por causa das crostas que estavam queimadas.
Sua mãe estava gritando, "Alimente o porco, sua criatura estúpida! Por que não? Ninguém
decente compraria pão queimado!"
Ele começou a arrancar os pedaços das peças queimadas e atirá-las no canal, e o sino da
frente da padaria tocou e a mãe desapareceu para ajudar o cliente.
O garoto nunca lançou um olhar para o meu lado, mas eu estava assistindo-o. Por causa do
pão, por causa do machucado vermelho que estava na sua bochecha. Com o que ela tinha
batido nele?
Meus pais nunca nos bateram. Eu não podia nem imaginar. O garoto olhou para trás, para a
padaria, como se checasse se o campo estava limpo, então, sua atenção voltou-se para o
porco, ele atirou um pedaço de pão na minha direção. O segundo rapidamente se seguiu, e ele
voltou para a padaria, fechando a porta da cozinha firmemente.
Eu olhei para os pedaços descrente. Eles estavam ótimos, realmente perfeitos, exceto pelas
partes queimadas. Ele quis dizer que eu podia tê-los? Ele devia. Porque eles estavam aos meus
pés. Antes que alguém pudesse testemunhar o que tivesse acontecido, eu puxei os pedaços de
pão para debaixo da minha camisa, agasalhei a jaqueta de caça firmemente ao meu redor, e
andei rapidamente. O calor do pão queimava a minha pele, mas eu apertei com força,
apegando à vida.
Na hora que eu cheguei em casa, os pedaços tinham esfriado de alguma forma, mas dentro
ainda estava quente. Quando eu os coloquei na mesa, as mãos de Prim levantaram para pegar
um pedaço, mas eu a forcei a sentar, forcei minha mãe a se juntar a mesa, e derramei chá
quente. Raspei a parte preta e fatiei o pão. Nós comemos um pedaço todo, fatia por fatia. Era
um bom pão puro, cheio com passas e nozes.
Coloquei minhas roupas para secar no fogo, arrastei-me para dentro da cama, e caí num sono
sem sonhos. Não me ocorreu até a manhã seguinte que o garoto devia ter queimado o pão de
propósito. Devia ter deixado cair os pedaços nas chamas, sabendo que seria punido, e então os
entregou a mim. Mas eu descartei isso. Deve ter sido um acidente. Por que ele teria feito isso?
Ele nem mesmo me conhecia. Ainda, apenas me atirando o pão era uma enorme gentileza que
teria resultado em surra se descoberta. Eu não podia explicar suas ações.
Nós comemos as fatias de pão no café da manhã e seguimos para a escola. Era como se a
primavera tivesse vindo durante a noite. Ar doce e quente. Nuvens macias. Na escola, eu
passei pelo garoto no corredor, sua bochecha tinha inchado e seu olho estava escurecido. Ele
estava com seus amigos e não me reconheceu de forma nenhuma. Mas quando eu recolhi
Prim e comecei a ir para casa naquela tarde, eu o encontrei olhando para mim através do
campo da escola. Nossos olhos se encontraram apenas por um segundo, então ele virou a sua
cara para longe. Eu baixei meu olhar, embaraçada, e foi quando eu vi. A primeira planta do
ano. Um sino tocou na minha cabeça. Eu pensei nas horas passadas na floresta com meu pai e
eu sabia como nós iríamos sobreviver.
Para esse dia, eu nunca posso abalar a ligação com esse garoto, Peeta Mellark, e o pão que me
deu esperança e a planta que me lembrou que eu não era condenada. E mais de uma vez, eu
estava no corredor da escola e peguei seus olhos me seguindo, só para rapidamente se mover
para longe. Eu sinto como se devesse a ele algo, e eu odeio dever as pessoas. Talvez se eu
tivesse o agradecido em algum ponto, eu estaria me sentindo menos cheia de conflito agora.
Eu pensei sobre isso um par de vezes, mas a oportunidade nunca pareceu presente. E agora
nunca vai parecer. Porque nós vamos ser atirados em uma arena para brigar até a morte.
Exatamente como eu deveria trabalhar em um agradecimento lá? De qualquer forma não
pareceria sincero se eu tentasse cortar sua garganta.
O prefeito termina o sombrio Tratado de Traição e gesticula para Peeta e eu apertar as mãos.
A mão dele era tão sólida e quente quanto aqueles pedaços de pão. Peeta olha para mim
direto nos olhos e dá a minha mão o que eu penso que significa ser um aperto tranqüilizador.
Talvez fosse apenas um espasmo nervoso.
Nós nos voltamos para encarar a multidão enquanto o hino de Panem toca.
Oh, bem, eu penso. Haverá vinte e quatro de nós. Chances são de mais alguém matá-lo antes
de eu fazê-lo.
É claro, as chances não estão muito confiáveis ultimamente.

3

No momento em que o hino acaba, somos levados em custódia. Eu não quero dizer que somos
algemados ou algo, mas um grupo de Pacifistas nos marcha até as portas dianteiras do Prédio
da Justiça. Talvez tributos tenham tentado escapar no passado. Eu nunca vi isso acontecer,
contudo.
Uma vez dentro, sou conduzida para uma sala e deixada sozinha. É o lugar mais rico em que eu
já estive, com tapetes grossos e espessos e um sofá de veludo e cadeiras. Eu conheço veludo
porque minha mãe tem um vestido com um colarinho feito desse negócio. Quando eu sento
no sofá, eu não posso evitar correr meus dedos sobre o tecido repetidamente. Ele me ajuda a
me acalmar enquanto eu tento me preparar para a próxima hora. O tempo destinado para os
tributos dizerem adeus aos seus amados. Eu não posso me dar ao luxo de ficar chateada, de
deixar essa sala com olhos inchados e um nariz vermelho. Chorar não é uma opção. Haverá
mais câmeras na estação de trem.
Minha irmã e minha mãe vêm primeiro. Eu me estico para Prim e ela sobe no meu colo, seus
braços ao redor do meu pescoço, a cabeça no meu ombro, bem como ela fazia quando era um
bebê. Minha mãe se senta ao meu lado e envolve seus braços ao nosso redor. Por alguns
minutos, não dizemos nada. Então eu começo a contar a elas todas as coisas que elas devem
lembrar de fazer, agora que eu não estarei lá para fazer isso por elas.
Prim não deve pegar nenhuma Tessera. Elas conseguirão sobreviver, se forem cuidadosas,
vendendo o leite e queijo de cabra da Prim e com o pequeno apotecário que a minha mãe
agora comanda para as pessoas em Seam. Gale lhes dará as ervas que ela mesma vão plantar,
mas ela deve tomar muito cuidado ao descrevê-las, porque ele não está tão familiarizado com
elas quanto eu. Ele também lhes trará caça ­ e eu fizemos um pacto sobre isso há mais ou
menos um ano ­ e provavelmente não pedirá por compensação, mas elas deveriam agradecê-
lo com algum tipo de troca, como leite ou remédio.
Eu não incomodo em sugerir à Prim que aprenda a caçar. Eu tentei ensiná-la algumas vezes e
foi desastroso. A floresta a aterrorizava, e quando eu atirava em alguma coisa, ela ficava a
beira de lágrimas e falava em como poderíamos curá-lo se o levássemos para casa cedo o
bastante. Mas ela se dá bem com sua cabra, então eu me concentro nisso.
Quando eu acabo com as instruções sobre combustível, e trocas, e ficar na escola, eu me viro
para minha mãe e agarro seu braço, duramente. "Me escute. Você está me escutando?" Ela
assente, assustada pela minha intensidade. Ela deve saber o que está por vir. "Você não pode
ir embora novamente," eu digo.
Os olhos da minha mãe encontram o chão. "Eu sei. Eu não irei. Eu não pude evitar o quê"
"Bem, você tem que evitar dessa vez. Você não pode pular fora e deixar Prim por conta
própria. Não há mais eu para manter vocês duas vivas. Não importa o que aconteça. O que
quer que veja na tela. Você tem que me prometer que vai lutar contra isso!" Minha voz se
levantou para um grito. Nela está toda a raiva, todo o medo que eu senti com seu abandono.
Ela puxa seu braço do meu aperto, ela própria movida por raiva agora. "Eu estava doente. Eu
podia ter me tratado se eu tivesse os remédios que eu tenho agora."
Aquela parte sobre ela estar doente podia ser verdade. Eu tinha visto ela curar pessoas que
sofriam de tristeza imobilizante desde então. Talvez seja uma doença, mas é uma que não
podemos nos dar ao luxo.
"Então tome-os. E tome conta dela!" Eu digo.
"Eu ficarei bem, Katniss," diz Prim, apertando meu rosto em suas mãos. "Mas você tem que
tomar cuidado também. Você é tão rápida e corajosa. Talvez possa vencer."
Eu não posso vencer. Prim deve saber isso, em seu coração. A competição estará muito além
das minhas habilidades. Garotos de distritos mais ricos, onde ganhar é uma grande honra, que
treinaram suas vidas todas para isso. Garotos que são duas a três vezes o meu tamanho.
Garotas que conhecem vinte maneiras diferentes de te matar com uma faca. Ah, haverá
pessoas como eu também. Pessoas a serem extirpadas antes que a verdadeira diversão
comece.
"Talvez," eu digo, porque eu não posso dizer a minha mãe para continuar se eu mesma já
desisti. Além do mais, não é da minha natureza desistir sem lutar, mesmo quando as coisas
parecem insuperáveis. "Então seremos ricas como Haymitch."
"Eu não ligo realmente se somos ricos. Eu só quero que você volte para casa. Você tentará,
não tentará? Realmente, realmente tentará?" pergunta Prim.
"Realmente, realmente tentarei. Eu juro," eu digo. E eu sei, por causa de Prim, que terei que.
E então o Pacificador está na porta, sinalizando que nosso tempo acabou, e estamos todas nos
abraçando tão forte que dói e tudo o que eu digo é "eu amo vocês. Eu amo vocês duas." E elas
dizem isso de volta e então o Pacificador ordena que elas saiam e a porta fecha. Eu enterro
minha cabeça em uma das almofadas de veludo como se isso pudesse bloquear todo esse
negócio.
Outra pessoa entra na sala, e quando eu olho para cima, fico surpresa em ver que é o padeiro,
o pai de Peeta Mellark. Eu não acredito que ele veio me visitar. Afinal de contas, eu tentarei
matar seu filho em breve. Mas nós nos conhecemos um pouco, e ele conhece Prim ainda
melhor. Quando ela vende seu queijo de cabra no Hob, ela deixa dois separados para ele e ele
lhe dá uma generosa quantidade de pão em troca. Nós sempre esperamos para trocar com ele
quando a bruxa da mulher dele não está por perto, porque ele fica bem mais bonzinho. Eu
tenho certeza de que ele nunca bateria no filho dele do jeito que ela bateu por causa do pão
queimado. Mas por que ele veio me ver?
O padeiro se senta desconfortavelmente na ponta de uma das cadeiras felpudas. Ele é um
homem grande de ombros largos com cicatrizes de queimaduras por causa dos anos passados
nos fornos. Ele deve ter acabado de dizer adeus ao seu filho.
Ele puxa um pacote de papel branco do bolso de sua jaqueta e o segura para mim. Eu o abri e
achei biscoitos. Eles são um luxo que nunca podemos bancar.
"Obrigada," eu digo. O padeiro não é um homem muito falante, na melhor das ocasiões, e hoje
ele não solta nenhuma palavra. "Eu comi um pouco do seu pão essa manhã. Meu amigo Gale
lhe deu um esquilo por ele." Ele assente, como se lembrando do esquilo. "Não foi a sua melhor
troca," eu digo. Ele dá de ombros, como se isso não tivesse importância.
Então eu não consigo pensar em mais nada, então ficamos sentados em silêncio até que o
Pacificador o convoque. Ele se levanta e tosse para limpar sua garganta. "Eu ficarei de olho na
menininha. Para me certificar que ela está comendo."
Eu sinto um pouco da pressão no meu peito se aliviar com as palavras dele. As pessoas lidam
comigo, mas eles genuinamente adoram a Prim. Talvez haja adoração o bastante para mantê-
la viva.
Meu próximo convidado também é inesperado. Madge anda diretamente até mim. Ela não
está chorosa ou evasiva, ao invés, há uma urgência no seu tom que me surpreende. "Eles te
deixam usar uma coisa do seu distrito na arena. Uma coisa para lembrá-la de casa. Você usaria
isso?" Ela segura um alfinete circular de ouro que estava em seu vestido mais cedo. Eu não
tinha prestado muita atenção nele antes, mas agora eu vejo que é um pássaro pequeno
voando.
"Seu alfinete?" Eu digo. Usar uma lembrança do meu distrito é a última coisa na minha mente.
"Aqui, vou colocá-lo no seu vestido, está bem?" Madge não espera por uma respostas, ela
simplesmente se inclina e fixa o pássaro no meu vestido. "Promete que o usará na arena,
Katniss?" ela pergunta. "Promete?"
"Sim," eu digo. Biscoitos. Um alfinete. Estou recebendo toda a sorte de presentes hoje. Madge
me dá mais um. Um beijo na bochecha. Então ela se vai e eu fico pensando que talvez Madge
realmente tenha sido minha amiga todo esse tempo.
Finalmente, Gale está aqui e talvez não haja nada de romântico entre nós, mas quando ele
abre seus braços, eu não hesito em ir neles. Seu corpo é familiar para mim ­ o jeito como ele
se move, o cheiro de fumaça de madeira, até mesmo o som de seu coração batendo, que eu
conheço de momentos silenciosos caçando ­ mas essa é a primeira vez que eu realmente
sinto-o, os músculos magros e fortes contra os meus.
"Escuta," ele diz. "Pegar uma faca deve ser bem fácil, mas você tem que colocar suas mãos
num arco e flecha. É a sua melhor chance."
"Eles nem sempre tem arcos e flechas," eu digo, pensando no ano onde só havia horríveis
cetros cheios de esporões com que os tributos tinham que acertar uns aos outros até a morte.
"Então faça um," diz Gale. "Mesmo um arco e flecha fraco é melhor que nenhum arco e flecha."
Eu tentara copiar os arcos e flechas do meu pai com resultados fracos. Não é tão fácil. Até ele
tinha que jogar fora seu próprio trabalho de vez em quando.
"Eu nem sei se haverá madeira," eu digo. Em outro ano, eles jogaram todos em um cenário
com nada além de pedras e areia e arbustos imundos. Eu particularmente odiei aquele ano.
Muitos competidores foram mordidos por cobras venenosas ou ficaram insanos por causa da
sede.
"Há quase sempre um pouco de madeira," Gale diz. "Já que naquele ano metade deles
morreram de frio. Não há muito entretenimento nisso."
É verdade. Nós passamos um Hunger Games assistindo os jogadores congelarem até a morte
de noite. Você mal podia vê-los porque eles estavam contraídos em bolas e não tinham
madeira para fogueiras ou tochas ou qualquer coisa. Foi considerado muito anti-climático no
Capitol, todas aquelas mortes silenciosas e sem derramamento de sangue. Desde então,
geralmente há madeira pra fazer fogueiras.
"Sim, geralmente tem um pouco," eu digo.
"Katniss, é apenas caçada. Você é a melhor caçadora que eu conheço," diz Gale.
"Não é só caçada. Eles estão armados. Eles pensam," eu digo.
"Assim como você. E você praticou mais. Prática real," ele diz. "Você sabe como matar."
"Não pessoas," eu digo.
"O quão diferente pode ser, sério?" diz Gale carrancudamente.
O horrível é que se eu conseguir esquecer que eles são pessoas, não será nem um pouco
diferente.
Os Pacifistas voltam cedo demais e Gale pede por mais tempo, mas eles o estão levando e eu
começo a entrar em pânico. "Não as deixe morrer de fome!" Eu gritei, unindo-me a sua mão.
"Eu não deixarei! Você sabe que eu não deixarei! Katniss, lembre-se que eu"... ele diz, e eles
nos tiram de perto e batem a porta e eu nunca saberei o que é que ele queria que eu me lembrasse.
É um caminho curto do Prédio da Justiça até a estação de trem. Eu nunca estive num carro
antes. Raramente andei em vagões. Em Seam, nós viajamos a pé.
Eu estive certa em não chorar. A estação está pululando de repórteres com suas câmeras feito
insetos instruídos diretamente no meu rosto. Mas eu pratiquei muito apagar meu rosto de
emoções e eu faço isso agora. Eu capturo um relampejo de mim mesma na tela de televisão na
parede que está transmitindo a minha chegada ao vivo e me sinto grata por parecer quase
entediada.
Peeta Mellark, por outro lado, obviamente esteve chorando e, mais interessante, não parece
tentar cobrir isso. Eu imediatamente me pergunto se essa será sua estratégia no Games.
Aparecer fraco e assustado, reassegurar aos outros tributos que ele não é competição alguma, e então sair lutando. Isso funcionou muito bem para uma garota, Johanna
Mason, do Distrito 7,
há alguns anos. Ela parecia uma tola tão choramingona e covarde que ninguém se incomodou
com ela até que sobrou apenas um punhado de participantes. Acontece que ela podia matar
viciosamente. Bem esperto, o jeito como ela jogou. Mas essa parece uma estratégia estranha
para Peeta Mellark, porque ele é filho do padeiro. Todos esses anos tendo o bastante para
comer e transportando bandejas de pão por aí o fizeram ter ombros largos e fortes. Será
preciso muita choradeira para convencer qualquer um a negligenciá-lo.
Nós temos que ficar de pé por alguns minutos na entrada do trem enquanto as câmeras
engolem as nossas imagens, então nos permitem entrar e as portas fecham compassivamente
atrás de nós. O trem começa a se mover de imediato.
A velocidade inicialmente tira meu fôlego. É claro, eu nunca estive em um trem, já que viagens
entre distritos são proibidas, exceto para deveres oficialmente sancionados. Para nós, isso
quase sempre é transportar carvão. Mas esse não é um trem normal de carvão. É um dos
modelos de alta velocidade do Capitol que chega a uma média de 402 quilômetros por hora.
Nossa jornada para Capitol levará menos que um dia.
Na escola, eles nos dizem que Capitol foi construído num lugar que uma vez chamara-se
Montanhas Rochosas. O Distrito 12 estava numa região conhecida como Appalachia. Mesmo
há centenas de anos, eles exploravam carvão aqui. E é por isso que nossos mineradores tem
que escavar tão fundo.
De alguma maneira, tudo se volta ao carvão na escola. Além de leitura e matemática básica, a
maioria das nossas instruções são relacionadas a carvão. Exceto pelas aulas semanais de
história de Panem. Na maior parte é um monte de tolices sobre o que devemos a Capitol. Eu
sei que deve ter mais do que eles nos dizem, uma explicação real sobre o que aconteceu
durante a rebelião. Mas eu não passo muito tempo pensando nisso. Qualquer que seja a
verdade, eu não vejo como ela pode me ajudar a colocar comida na mesa.
O trem do tributo é ainda mais chique do que a sala no Prédio da Justiça. É dado a cada um de
nós nossas próprias câmaras, que tem um quarto, um camarim, e um banheiro privado com
água quente e fria corrente. Nós não temos água quente em casa, a não ser que a fervamos.
Há gavetas cheias de roupas finas, e Effie Trinket me diz para fazer o que eu quiser, usar o que
eu quiser, tudo está a minha disposição. É só estar pronta para o jantar em uma hora. Eu me
retiro do vestido azul da minha mãe e tomo um banho quente. Eu nunca tomei banho de
chuveiro antes. É como estar em uma chuva de verão, só que mais quente. Eu me visto com
uma camisa e calça verde escura.
No último minuto, eu me lembro do pequeno alfinete dourado da Madge. Pela primeira vez,
eu dou uma boa olhada nele. É como se alguém tivesse criado um pequeno pássaro dourado e
então anexado um anel ao redor. O pássaro está conectado ao anel só pelas pontas da asa. Eu
de repente o reconheci. Um mockinjay.
Eles são pássaros estranhos e meio que um tapa na cara de Capitol. Durante a rebelião, o
Capitol reproduziu uma série de animais geneticamente alterados como armas. O termo
comum para eles era muttações, ou às vezes mutts, como apelido. Um era um pássaro especial
chamado jabberjay que tinha a habilidade de memorizar e repetir conversas humanas inteiras.
Eles eram pássaros residentes, exclusivamente masculinos, que eram soltos em regiões onde
era sabido que os inimigos de Capitol estavam escondidos. Após os pássaros coletarem
palavras, eles voavam de volta aos centros para ser gravados. Levou um tempo para as pessoas
perceberem o que estava acontecendo nos distritos, como conversas privadas estavam sendo
transmitidas. Então, é claro, os rebeldes alimentaram Capitol com inúmeras mentiras, e a
piada começou. Então os centros foram fechados e os pássaros abandonados para morrer na
selva.
Só que eles não morreram. Ao invés, os jabberjays se acasalaram com mockinbirds fêmeas,
criando uma nova espécie que conseguia replicar tanto os assobios dos pássaros quanto as
melodias humanas. Eles perderam a habilidade de enunciar palavras, mas ainda conseguiam
mimicar uma cadeia de sons vocais humanos, de um gorjeio agudo de uma criança até os tons
profundos de um homem. E eles conseguiam recriar canções. Não só poucas notas, mas
canções inteiras com múltiplos versos, se você tivesse paciência para cantar para eles e se eles
gostassem da sua voz.
Meu pai era particularmente afeiçoado aos mockinjays. Quando saíamos para caçar, ele
assobiava ou cantava canções complicadas para eles e, após uma pausa educada, eles sempre
cantavam de volta. Nem todos são tratados com tanto respeito. Mas sempre que meu pai
cantava, todos os pássaros na área caíam no silêncio e escutavam. Sua voz era tão bonita, alta
e clara e tão cheia de vida que fazia você querer rir e chorar ao mesmo tempo. Eu nunca
consegui me forçar a continuar a praticar depois que ele partiu. Ainda assim, há algo de
confortante no passarinho. É como ter um pedaço do meu pai comigo, me protegendo. Eu
prendo o alfinete na minha camisa, e com o tecido verde escuro de fundo, eu quase consigo
imaginar o mockinjay voando pelas árvores.
Effie Trinket vem me buscar para o jantar. Eu a sigo por um corredor estreito e chacoalhante
até a sala de jantar com refinadas paredes almofadadas. Há uma mesa onde todos os pratos
são altamente quebráveis. Peeta Mellark está sentado esperando por nós, a cadeira próxima a
ele vazia.
"Onde está Haymitch?" pergunta Effie Trinket alegremente.
"Da última vez que eu o vi, ele disse que ia tirar uma soneca," diz Peeta.
"Bem, foi um dia exaustivo," diz Effie Trinket. Eu acho que ela está aliviada pela ausência de
Haymitch, e quem pode culpá-la?
O jantar vem em porções. Uma espessa sopa de cenoura, salada verde, costeletas de carneiro
e purê de batata, queijo e fruta, um bolo de chocolate. Durante a refeição, Effie Trinket fica
nos lembrando para guardar lugar, porque há mais por vir. Mas eu estou me empanturrando
porque nunca tive comida como essa antes, tão boa e tão farta, e porque provavelmente a
melhor coisa que eu posso fazer entre agora e os Games é engordar alguns quilos.
"Pelo menos vocês dois tem boas maneiras," diz Effie enquanto terminamos o prato principal.
"O par do ano passado comeu tudo com as mãos como dois selvagens. Perturbou
completamente minha digestão."
O par do ano passado foram duas crianças de Seam que nunca, nem por um dia em suas vidas,
tiveram o bastante para comer. E quando eles tinham comida, maneiras a mesa eram
certamente a última coisa em suas mentes. Peeta é filho do padeiro. Minha mãe ensinou Prim
e eu a comer propriamente, então sim, eu sei lidar com um garfo e uma faca. Mas eu odeio
tanto o comentário de Effie Trinket que eu tomo nota de comer o resto da minha refeição com
meus dedos. Então eu limpo minhas mãos na toalha de mesa. Isso a fez franzir seus lábios
apertadamente juntos.
Agora que a refeição acabou, eu estou lutando para manter a comida no lugar. Eu posso ver
que Peeta está um pouquinho verde também. Nenhum dos nossos estômagos está
acostumado a um cardápio tão rico. Mas se eu consigo segurar o preparado de carne de rato,
entranhas de porco, e casca de árvore da Greasy Sae ­ uma especialidade do inverno ­ eu
estou determinada a segurar isso.
Nós vamos a outro compartimento para assistir o recapitulamento das colheitas por Panem.
Eles tentam balancearem-nas durante o dia para que uma pessoa possa concebivelmente
assistir o negócio todo ao vivo, mas só pessoas em Capitol podem realmente fazer isso, já que
nenhuma delas tem que atender colheitas pessoalmente.
Uma por uma, vemos as outras colheitas, os nomes chamados, os voluntários se apresentando
ou, mais freqüentemente, não. Nós examinamos os rostos das crianças que serão nossa
competição. Algumas se destacam na minha mente. Um garoto monstruoso que se lança a
frente para se voluntariar pelo Distrito 2. Uma garota de rosto astuto com cabelo vermelho liso
do Distrito 5. Um garoto com um pé inválido do Distrito 10. E, mais assustador, uma garota de
doze anos do Distrito 11. Ela tem pele e olhos marrom escuros, mas fora isso, ela é bem
parecida com Prim no tamanho e no comportamento. Só que quando ela sobe no palco e eles
pedem por voluntários, tudo o que você consegue ouvir é o vento assoprando pelos prédios
decrépitos ao redor dela. Ninguém deseja tomar seu lugar.
Por último, eles mostram o Distrito 12. Prim sendo chamada, eu correndo a frente para me
voluntariar. Você não consegue deixar passar o desespero em minha voz enquanto eu
empurro Prim para trás de mim, como se eu tivesse medo de que ninguém iria ouvir e eles
tomassem Prim. Mas, é claro, eles ouvem. Eu vejo Gale puxando-a de mim e observo a mim
mesma subir no palco. Os comentaristas não tem certeza do que dizer sobre a recusa da
multidão em aplaudir. A saudação silenciosa. Um diz que o Distrito 12 sempre foi um tanto
atrasado, mas que costumes locais podem ser charmosos. Bem no momento correto,
Haymitch cai do palco, e eles berram comicamente. O nome de Peeta é sorteado, e ele
silenciosamente toma seu lugar. Nós apertamos as mãos. Eles cortam para o hino novamente,
e o programa acaba.
Effie Trinket está decepcionada sobre o estado que sua peruca se encontrava. "Seu mentor
tem muito o que aprender sobre apresentação. Muito sobre comportamento televisivo."
Peeta ri inesperadamente. "Ele estava bêbado," diz Peeta. "Ele fica bêbado todo ano."
"Todo dia," eu acrescento. Eu não posso evitar forçar um pouco o riso. Effie Trinket faz soar
como se Haymitch tivesse simplesmente algumas maneiras brutas que pudessem ser
corrigidas com algumas dicas dela.
"Sim," sibila Effie Trinket. "Que estranho vocês dois acharem isso engraçado. Vocês sabem que
seu mentor é sua corda de salvação ao mundo nesses Games. Aquele que o aconselha,
encarreira seus patrocinadores, e dita a apresentação de qualquer presente. Haymitch pode
muito bem ser a diferença entre a sua vida e a sua morte!"
Bem então, Haymitch tropeça para dentro do compartimento. "Eu perdi o jantar?" ele diz
numa voz indistinta. Então ele vomita sobre todo o tapete caro e cai na bagunça.
"Então riam a vontade!" diz Effie Trinket. Ela salta ao redor da piscina de vômito em seus
sapatos de bico fino e foge da sala.

4

Por alguns momentos, Peeta e eu captamos a cena do nosso mentor tentando se levantar do
material vil e escorregadio do seu estômago. A fetidez do vômito e do álcool bruto quase traz
minha refeição para fora. Nós trocamos um olhar. Obviamente Haymitch não era muita coisa,
mas Effie Trinket está certa quanto a uma coisa, uma vez dentro da arena ele é tudo que
teremos. Como se por um acordo silencioso, Peeta e eu tomamos cada um braço de Haymitch
e o ajudamos a se levantar.
"Eu tropecei?" Haymitch pergunta. "Cheira ruim." Ele esfrega sua mão no nariz, manchando
seu rosto de vômito.
"Vamos levá-lo de volta ao seu quarto," diz Peeta. "Te limpar um pouco."
Nós meio que carregamos Haymitch de volta a sua cabine. Desde que não podemos
exatamente jogá-lo na cama bordada, o rebocamos para dentro da banheira e abrimos o
chuveiro. Ele nem nota.
"Ok," Peeta diz para mim. "Eu continuo daqui."
Não posso evitar me sentir um pouco grata visto que a última coisa que eu quero fazer é
despir Haymitch, lavar o vômito dos pêlos do seu peito, e enfiá-lo numa cama. Possivelmente
Peeta está tentando fazer uma boa impressão nele, para ser seu favorito uma vez que os
Games comecem. Mas julgando o estado em que ele está, Haymitch não terá nenhuma
memória amanhã.
"Tudo bem," digo. "Posso mandar alguém do Capitol vir te ajudar." Há muitos deles no trem.
Cozinhando para nós. Esperando por nós. Guardando-nos. Tomar conta de nós é trabalho
deles.
"Não. Eu não os quero," diz Peeta.
Eu aceno e sigo para meu próprio quarto. Entendo como Peeta se sente. Eu não posso
suportar a visão das pessoas de Capitol. Mas fazê-las lidar com Haymitch poderia ser uma
pequena forma de vingança. Então eu ponderei a razão para ele insistir em cuidar do Haymitch
e repentinamente eu penso, É porque ele está sendo gentil. Justo como ele foi gentil ao me
dar o pão.
A idéia foge rapidamente. O tipo Peeta Mellark é muito mais perigoso para mim do que o tipo
cruel. Pessoas gentis sempre têm uma forma de trabalhar seus caminhos para dentro de mim
e se enraizar lá. E eu não posso deixar Peeta fazer isso. Não onde nós estamos indo. Então eu
decido, desse momento em diante, ter o mínimo possível para fazer com o filho do padeiro.
Quando eu entro no meu quarto, o trem está parado numa plataforma para abastecer. Abro
rapidamente a janela, jogo os biscoitos que o pai de Peeta me deu fora do trem, e fecho a
janela com força. Não mais. Não mais de nenhum deles.
Infelizmente, o pacote dos biscoitos bate no chão e se abre num remendo de dandelions pela
pista. Vejo a imagem apenas por um momento, porque o trem começa a se mover, mas é o
bastante. O bastante para me lembrar de outro dandelion no campo da escola anos atrás...
Eu tinha acabado de me virar do rosto machucado de Peeta Mellark quando vi o dandelion e
eu soube que a esperança não estava perdida. Eu o arranquei cuidadosamente e me apressei
para casa. Agarrei um balde e a mão de Prim e segui para Meadow e sim, ele estava pontilhado
de ervas daninhas amarelas. Depois de nós as arrancarmos, nós procuramos nos arredores
dentro do muro por provavelmente um km e meio, até que nós tínhamos enchido o balde com
dandelions verdes, raízes e flores. Naquela noite, nos empanturramos com uma salada de
dandelion e o resto do pão da padaria.
"Que mais?" Prim me perguntou. "Que mais comida nós podemos encontrar?"
"Todo tipo de coisa," prometi a ela. "Só tenho que lembrá-las."
* Tipo de erva
Minha mãe pegou um livro que ela tinha trazido com ela da loja farmacista. As páginas eram
feitas de velho pergaminho e coberta de pinturas de plantas. Blocos de caligrafia limpa
disseram seus nomes, onde os juntando, quando eles florescem, seus usos medicinais. Mas
meu pai acrescentou outras entradas no livro. Plantas para comer, não curar. Dandelions,
ervas, cebolas selvagens, pinhos. Prim e eu passamos o resto da noite debruçadas sobre essas páginas.
No dia seguinte, nós faltamos à escola. Por um tempo eu fiquei andando perto dos muros de
Meadow, mas finalmente juntei coragem para ir debaixo da cerca. Era a primeira vez que tinha
estado lá sozinha, sem as armas do meu pai para me proteger. Mas eu recuperei o pequeno
arco e flechas que ele tinha feito para mim de um tronco oco. Eu provavelmente não fui mais
que 20 metros floresta adentro naquele dia. Na maior parte do tempo, eu fiquei empoleirada
nos galhos de um velho carvalho, esperando que uma caça viesse. Após algumas horas, eu tive
a sorte de matar um coelho.
Eu tinha acertado uns poucos coelhos antes, com a ajuda do meu pai. Mas dessa vez eu tinha
feito sozinha.
Não tínhamos tido carne em meses. A visão do coelho pareceu mexer algo na minha mãe. Ela
despertou, pele de carcaça, e fez uma sopa com a carne e algumas verduras que Prim tinha
juntado. Então ela ficou confusa e voltou para cama, mas quando a sopa estava feita, nós a
fizemos comer uma tigela.
A floresta se tornou nossa salvação, e a cada dia eu ia um pouco além em seus braços. Era
devagar no princípio, mas eu estava determinada a nos alimentar. Roubei ovos dos ninhos,
peguei peixe com redes, às vezes eu conseguia acertar um esquilo ou um coelho para a sopa, e
juntava as diversas plantas que surgiram sob meus pés. Plantas eram enganadoras. Muitas são
comestíveis, mas um bocado falso e você está morta. Eu verifico uma e outra vez as plantas
que eu colhi das figuras do meu pai. Eu nos mantenho vivas.
Qualquer sinal de perigo, um uivo distante, uma quebra de galho inexplicável, faz-me correr de
volta para a cerca. Então começo a me arriscar subir nas árvores para escapar de cães
selvagens que rapidamente ficam entediados e vão embora. Ursos e gatos vivem mais adentro,
talvez não gostando do fedor de fuligem do nosso distrito.
Em 8 de Maio, eu fui para o Edifício da Justiça, registrei-me para A tessera, e levei para casa
meu primeiro lote de grãos e óleo no vagão de brinquedo de Prim. No oitavo dia de cada mês
eu tinha o direito de fazer o mesmo. Eu não podia parar de caçar e colher, é claro. Os grãos
não são o suficiente para viver, e havia outras coisas para comprar, sabão e leite e cordas. O
que nós não precisávamos absolutamente para comer, comecei a negociar no Hob. Foi
assustador entrar naquele lugar sem meu pai do meu lado, mas as pessoas tinham o
respeitado, e me aceitaram. Caça era caça depois de tudo, não importa quem pegou. Eu
também vendi nas portas dos fundos de clientes ricos na cidade, tentando lembrar o que meu
pai tinha me dito e aprendendo alguns poucos truques também. O açougueiro compraria meus
coelhos mas não os esquilos. O padeiro aproveitaria os esquilos, mas só negociaria um se a
esposa não tivesse por perto. O Pacifista Chefe adorava perus selvagens. O prefeito tinha uma
paixão por morangos.
No final do verão, eu estava me lavando em um lago quando notei as plantas crescendo ao
meu redor. Altas com folhas com pontas afiladas. Florescendo com três pétalas brancas. Eu me
ajoelhei na água, meus dedos escavando na lama macia, e puxei um punhado de raízes. Bulbos
azulados que não parecem muita coisa, mas cozidos ou assados eram tão bons quanto batatas.
"Katniss," eu disse alto. É a planta cujo nome me foi dado. E eu ouvi a voz do meu pai
brincando, "Contanto que você ache a si mesma, você nunca morrerá de fome." Passei horas
agitando o leito da lagoa com meus dedos dos pés e uma vara, colhendo os bulbos que
flutuavam para a superfície. Naquela noite nós banqueteamos com peixe e raízes de katniss
até que todos nós, pela primeira vez em meses, estávamos cheios.
Lentamente, minha mãe retornou para nós. Ela começou a limpar e cozinhar e guardar alguma coisa
da comida que eu trouxe para o inverno. Pessoas negociam conosco ou pagam em dinheiro
pelos recursos médicos dela. Um dia, eu a ouvi cantando.
Prim estava emocionada por tê-la de volta, mas continuei observando, esperando que ela
desaparecesse de nós novamente. Não confiei nela. E em algum pequeno lugar retorcido
dentro de mim eu a odiava pela sua fraqueza, pela sua negligência, pelos meses em que ela
nos deixou de lado. Prim a perdoou, mas eu coloquei um pé atrás com a minha mãe, coloquei
um muro para me proteger de precisar dela, e nada nunca mais foi o mesmo entre nós.
Agora eu ia morrer sem nunca ter ajeitado tudo. Eu pensei em como eu tinha gritado com ela
hoje no Edifício da Justiça. Eu tinha dito que a amava, também, no entanto. Então talvez deva
ter balanceado.
Por um momento eu fico de pé olhando pela janela do trem, desejando poder abri-la de novo,
mas incerta do que poderia acontecer numa velocidade tão alta. À distância, vejo luzes de
outro distrito. 7? 10? Não sei. Penso nas pessoas em suas casas, arrumando-se para dormir.
Imagino minha casa, com as persianas apertadas. O que elas estão fazendo agora, minha mãe
e Prim? Estão na mesa comendo a refeição? Sopa de peixe e morangos? Ou isso está intocado
em seus pratos? Elas assistiram o resumo dos eventos do dia na velha TV a bateria que fica na
mesa contra a parede? Certamente, houve mais lágrimas. Minha mãe está segurando a barra,
sendo forte pela Prim? Ou ela já começou a escapulir, deixando o peso do mundo nos ombros
frágeis da minha irmã?
Prim sem dúvida dormirá com minha mãe hoje à noite. O pensamento daquele Buttercup
velho e imundo se colocando na cama para vigiar Prim me conforta. Se ela chorar, ele vai
intrometer-se em seus braços e enrolar-se lá até ela se acalmar e dormir. Eu estou muito
satisfeita por não tê-lo afogado.
Imaginar minha casa me faz doer de solidão. Esse dia parece interminável. Gale e eu podíamos
estar comendo amoras apenas essa manhã? Parecia que tinha sido há um longo tempo. Como
um longo sonho deteriorado num pesadelo. Talvez, se eu for dormir, acordarei de volta no
Distrito 12, onde eu pertenço.
Provavelmente as gavetas estão cheias de camisolas, mas eu apenas tiro minha camisa e calças
e subo na cama só com a roupa íntima. Os lençóis eram feitos de tecido macio e sedoso. Uma
manta grossa e macia me dá conforto imediatamente.
Se eu vou chorar, agora é a agora. De manhã, eu vou ser capaz de lavar o dano feito pelas
minhas lágrimas do meu rosto. Mas nenhuma lágrima veio. Eu estou cansada e paralisada
demais para chorar. A única coisa que sinto é um desejo de estar em qualquer outro lugar.
Então deixo o trem me balançar para o esquecimento.
Luz cinza está escapando através das cortinas quando a batida me desperta. Escuto a voz de
Effie Trinket, chamando para me levantar. "Levanta, levanta, levanta! Hoje vai ser um grande,
grande, grande dia!" Tento imaginar, por um momento, como deve ser dentro da cabeça
daquela mulher. Que pensamentos a preenchem durante as horas? Que sonhos vêm a ela a
noite? Não tenho idéia.
Coloco os trajes verdes de volta, visto que não estão realmente sujos, só levemente
amarrotados por passar a noite no chão. Meus dedos traçam o círculo ao redor do pequeno
mockinjay e penso na floresta, no meu pai, e na minha mãe e Prim acordando, tendo que
colocar as coisas nos lugares.
Eu dormi com a trança elaborada que minha mãe fez para a colheita e não parece muito ruim,
então eu a deixo. Não importa. Não podemos estar longe do Capitol agora. E uma vez que nós
cheguemos à cidade, meu estilista ditará minha aparência para a cerimônia de abertura hoje à
noite, de qualquer forma. Eu só espero que eu pegue alguém que não pense que nudez é a
última palavra em moda.
Quando entro no vagão restaurante, Effie Trinket me tocou de leve com uma xícara de café
preto. Ela está murmurando obscenidades sob sua respiração. Haymitch, sua face inchada e
vermelha das indulgências do dia anterior, está dando risadas. Peeta segura um pãozinho e
parece um pouco embaraçado.
"Sente-se! Sente-se!" diz Haymitch, acenando para mim. No momento em que eu sento na
minha cadeira sirvo-me de um enorme prato de comida. Ovos, presunto, pilhas de batatas
fritas. Uma terrina de frutas fica sobre o gelo para manter-se fria. A cesta de pãezinhos
colocada a minha frente manteria minha família por uma semana. Há um elegante jarro de
suco de laranja. Ao menos eu acho que é suco de laranja. Eu só experimentei laranja uma vez,
no ano novo, quando meu pai trouxe uma como um banquete especial. Uma xícara de café.
Minha mãe adora café, que nós quase nunca podíamos bancar, mas parece apenas amargo e
fino para mim. Uma xícara de algo de um marrom forte que eu nunca tinha visto.
"Eles chamam de chocolate," diz Peeta. "É bom."
Eu tomo um gole do líquido quente, doce e cremoso e um tremor me percorre. Mesmo com o
resto da refeição me chamando, eu o ignoro e termino a minha xícara. Então engulo todo o
gole que seguro, que é uma quantidade substancial, sendo cuidadosa para não exagerar nessa
coisa rica. Uma vez, minha mãe me contou que eu sempre comia como se nunca mais fosse
ver comida novamente. E eu falei, "Não vou a menos que eu a traga para casa." Isso a
silenciou.
Quando meu estômago parece que vai botar para fora, eu me inclino para trás e olho para
meus companheiros de café da manhã. Peeta ainda está comendo, tirando pedaços dos pães e
os mergulhando no chocolate quente. Haymitch não tem dado muita atenção ao seu prato,
mas ele está tomando uma taça de um suco vermelho que ele mantém diluído com um líquido
claro de uma garrafa. Julgando pela espuma, é algum tipo de bebida. Não conheço Haymitch,
mas eu tenho o visto freqüentemente o bastante no Hob, Jogando punhados de dinheiro em
um canto com uma mulher que vende líquido branco. Ele estará incoerente no momento em
que nós chegarmos ao Capitol.
Noto que detesto Haymitch. Sem dúvida os tributos do Distrito 12 têm chance. Não é só que
nós estivermos desnutridos e sem treinamento. Alguns dos nossos tributos tinham sido fortes
o bastante para fazer algo. Mas nós dificilmente conseguimos patrocinadores e ele é em
grande parte o motivo. Mas pessoas ricas pegam tributos ­ ou porque eles estão apostando
neles ou simplesmente para ter o direito de se gabar de ter escolhido o vencedor ­ esperam
alguém com mais classe que Haymitch para lidar.
"Então, você é para, supostamente, dar-nos conselhos," digo para Haymitch.
"Aqui está um conselho. Fique viva," diz Haymitch, e então explode em risadas. Troco um olhar
com Peeta antes de lembrar que eu não tenho nada a fazer com ele. Estou surpresa de ver
dureza em seus olhos. Ele geralmente parece tão brando.
"Isso é muito divertido," diz Peeta. De repente ele joga a taça fora da mão de Haymitch. Ela se
quebra no chão, mandando o líquido vermelho para a parte de trás do trem. "Só não para nós."
Haymitch considera isso por um momento, então bate Peeta no maxilar, jogando da sua
cadeira. Quando ele se vira para pegar a bebida, eu coloco minha faca na mesa entre sua mão
e a garrafa mal errando seus dedos. Eu me esforço para desviar de sua batida, mas ela não
veio. Em vez disso ele se senta de volta e dá uma olhada para nós.
"Bem, o que é isso?" diz Haymitch. "Eu realmente peguei um par de lutadores esse ano?"
Peeta se levanta do chão e pega um punhado de gelo debaixo da terrina de frutas. Ele começa
a levá-lo para a marca vermelha de seu maxilar.
"Não," diz Haymitch, o parando. "Deixe o machucado aparecer. A audiência pensará que você
o trocou com outro tributo antes de você mesmo fazer algo na arena."
"Isso é contra as regras," diz Peeta.
"Somente se eles te pegarem. Esse machucado dirá que você brigou, você não foi pego, ainda
melhor," diz Haymitch. Ele se vira para mim. "Você pode acertar qualquer coisa com a faca
além da mesa?"
O arco e a flecha são minhas armas. Mas eu passei um bom tempo atirando facas também. Às
vezes, se eu tinha ferido um animal com a flecha, era melhor pegar a faca também, antes de
me aproximar. Noto que se eu quero a atenção de Haymitch, esse é o meu momento para
fazer uma impressão. Arranco minha faca da mesa, consigo o controle da lâmina, e então a
atiro na parede do outro lado do quarto. Eu estava de fato apenas esperando uma sólida
cravada, mas ela se aloja na fresta entre duas panelas, fazendo-me parecer muito melhor do que sou.
"Fiquem bem ali. Vocês dois," diz Haymitch, acenando para o meio do aposento. Nós
obedecemos e ele nos circula, cutucando-nos como animais às vezes, checando nossos
músculos, examinando nossas faces. "Bem, vocês não parecem inteiramente perdidos.
Parecem combinar. E uma vez que os estilistas os pegarem, você serão atraentes o bastante."
Peeta e eu não questionamos isso. Os Hunger Games não são uma competição de beleza, mas
os tributos mais bonitos sempre parecem conseguir mais patrocinadores.
"Ok, vou fazer um acordo com vocês. Vocês não interferem com a minha bebida, e eu ficarei
sóbrio o bastante para ajudá-los," diz Haymitch. "Mas vocês têm que fazer exatamente o que eu digo."
Isso não é muito um acordo, mas ainda é um grande passo adiante comparado dez minutos atrás quando nós não tínhamos nenhuma ajuda.
"Ótimo," diz Peeta.
"Então nos ajude," digo. "Quando nós entrarmos na arena, qual é a melhor estratégia na Cornucópia para alguém"?
"Uma coisa de cada vez. Em poucos minutos, nós estaremos entrando na estação. Vocês serão
colocados nas mãos dos estilistas. Vocês não gostarão do que eles fazem com vocês. Mas não
importa o quê, não resistam," diz Haymitch.
"Mas ", eu começo.
"Sem mais. Não resistam," diz Haymitch. Ele pega a garrafa de bebida da mesa e deixa o vagão.
Enquanto as portas fecham atrás dele, o vagão fica escuro. Há ainda algumas poucas luzes
dentro, mas fora é como se a noite tivesse caído novamente. Noto que nós devemos estar
num túnel que corre através das montanhas para o Capitol. As montanhas formam uma
barreira natural entre o Capitol e os distritos orientais. É quase impossível entrar do leste
exceto através dos túneis. Essa vantagem geográfica foi um fator importante na derrota dos
distritos que me levou a ver um tributo hoje. Desde que os rebeldes tinham que escalar as
montanhas, eles eram alvos fáceis para as forças aéreas do Capitol.
Peeta Mellark e eu ficamos em silêncio enquanto o trem movia-se com velocidade. O túnel
continua e continua e eu penso nas toneladas de rocha que me separam do céu, e meu peito
se aperta. Odeio ser envolvida numa pedra dessa forma. Lembra das minas e do meu pai,
emboscado, incapaz de atingir a luz do sol, enterrado para sempre na escuridão.
O trem finalmente começa a diminuir de velocidade e de repente uma luz brilhante inunda o
compartimento. Nós não podemos evitar. Ambos Peeta e eu corremos para a janela para ver o
que nós tínhamos visto apenas na televisão, o Capitol, a cidade governante de Panem. As
câmeras não tinham mentido sobre sua grandeza. De fato, eles não tinham capturado o
bastante de toda a magnificência dos edifícios cintilantes em um arco-íris de cores que se
erguem ao ar, os carros reluzentes que andam nas largas ruas pavimentadas, as pessoas
vestidas de forma estranha com cabelos bizarros e faces pintadas que nunca perderam uma
refeição. Todas as cores parecem artificiais, o rosa muito profundo, o verde muito brilhante, o
amarelo doloroso aos olhos, como os discos redondos de um doce duro que nós nunca
podemos bancar na minúscula loja de doces no Distrito 12.
As pessoas começam a nos apontar avidamente enquanto eles reconhecem um trem de
tributo entrando na cidade. Dou um passo para longe da janela, nauseada pelo excitamento
deles, sabendo que eles não podem esperar para nos ver morrer. Mas Peeta continua lá, na
verdade acenando e sorrindo para a tola multidão. Ele só para quando o trem entra na
estação, bloqueando-nos de suas vistas.
Ele me vê olhando para ele e encolhe os ombros. "Quem sabe?" ele diz. "Um deles pode ser
rico."
Tenho o julgado mal. Penso nas suas ações desde a colheita começar. O aperto amigável na
minha mão. Seu pai mostrando os biscoitos e prometendo alimentar Prim... Peeta o fez fazer
aquilo? Suas lágrimas na estação. Voluntariando-se para lavar Haymitch, mas então o
desafiando essa manhã quando aparentemente a abordagem cara-legal tinha falhado. E agora
acenando na janela, já tentando ganhar a multidão.
Todos os pedaços ainda estão se encaixando, mas eu percebo que ele tem um plano formado.
Ele não tem aceitado sua morte. Ele já está lutando duro para sobreviver. O que significa que o
tipo Peeta Mellark, o garoto que me deu o pão, está lutando duro para me matar.

5

R-i-i-i-p! Eu cerrei meus dentes enquanto Venia, uma mulher com cabelo azul-piscina e
tatuagens douradas acima de suas sobrancelhas, puxa um pedaço de pano da minha perna,
arrancando o cabelo abaixo dela. "Perdão!" ela grita em seu tolo sotaque de Capitol. "É que
você é tão peluda!"
Por que essas pessoas sempre falam tão alto? Por que suas mandíbulas mal abrem quando
elas falam? Por que o final das frases delas sobem como se elas estivessem fazendo uma
pergunta? Vogais estranhas, palavras cortadas, e sempre um zunido na letra s... não é de se
espantar que é impossível não imitá-los.
Venia faz o que deveria ser um rosto simpático. "Boa notícia, contudo. Esse é o último.
Pronta?" Eu agarro as pontas da mesa na qual estou sentada e aceno. A faixa final dos pelos da
minha perna é arrancada com um puxão violento.
Eu estou no Centro de Remodelagem por mais de três horas e eu ainda não conheci meu
estilista. Aparentemente ele não tem interesse em me ver até que Venia e os outros membros
da minha equipe de preparação tenham resolvido alguns problemas óbvios. Isso incluíra
esfregar meu corpo com greda arenosa que removeu não só sujeira, mas pelo menos três
camadas de pele, transformando minhas unhas em formas uniformes, e primariamente
livrando meu corpo de pelos. Minhas pernas, braços, torso, axilas, e partes das minhas
sobrancelhas tinham sido livradas dos pelos, deixando-me como um pássaro depenado, pronto
para assar. Eu não gosto disso. Minha pele está dolorida e formigante e intensamente
vulnerável. Mas eu tinha mantido minha parte do acordo com Haymitch, e nenhuma objeção cruzou meus lábios.
"Você está indo muito bem," diz algum cara chamado Flavius. Ele dá uma chacoalhada em suas
mechas espirais laranjas e aplica uma camada nova de batom roxo em sua boca. "Se há uma
coisa que não suportamos, é um choramingão. Ensebem ela!"
Venia e Octavia, uma mulher rechonchuda cujo corpo inteiro fora tingido de um tom pálido de
verde-ervilha, me esfregam com uma loção que primeiramente dói, mas depois alivia minha
pele ferida. Então eles me puxam da mesa, removendo o fino robe que eu fora permitida a
usar dentro e fora. Eu fico parada lá, completamente nua, enquanto os três me circulam,
empunhando pinças para remover todos os últimos pedacinhos de pelo. Eu sei que deveria
estar embaraçada, mas eles são tão diferentes de pessoas que eu não estou mais auto-
consciente do que se um trio de pássaros estranhamente coloridos estivesse bicando ao redor
do meu pé.
Os três recuam e admiram seu trabalho. "Excelente! Você quase parece um ser humano
agora!" diz Flavius, e todos eles riem.
Eu forço meus lábios em um sorriso para mostrar como estou grata. "Obrigada," eu digo
docemente. "Não temos muito motivo para parecermos bem no Distrito Doze."
Isso os conquista completamente. "É claro que você não tem, pobre querida!" diz Octavia
batendo suas mãos em sofrimento por mim.
"Mas não se preocupe," diz Venia. "Quando Cinna terminar com você, você vai estar
absolutamente linda!"
"Nós prometemos! Você sabe, agora que nos livramos de todos aqueles pelos e sujeira, você
não é mesmo horrível!" diz Flavius encorajadoramente. "Vamos chamar Cinna!"
Eles se lançam para fora da sala. É difícil odiar a minha equipe de preparação. Eles são uns
idiotas totais. E ainda assim, de uma maneira estranha, eu sei que eles estão sinceramente
tentando me ajudar.
Eu olho para as frias paredes e para o chão branco e resisto ao impulso de recuperar meu
robe. Mas esse Cinna, meu estilista, certamente me fará removê-lo imediatamente. Ao invés,
minhas mãos vão para o meu penteado, a única área do meu corpo que fora dita a minha
equipe de preparação para deixar quieta. Meus dedos acariciam as tranças sedosas que minha
mãe tão cuidadosamente arrumou. Minha mãe. Eu deixei seu vestido e sapatos azuis no chão
do vagão, nunca pensando em recuperá-los, em tentar manter um pedaço dela, de casa. Agora
eu desejava que tivesse recuperado.
A porta se abre e um jovem que deve ser Cinna entra. Eu fico surpresa por ver o quanto ele
parece normal. A maioria dos estilistas que eles tinham entrevistado na televisão tinham
cabelos tão pintados, tinham tantos desenhos de estêncil, e eram tão cirurgicamente alterados
que eram grotescos. Mas o cabelo curto de Cinna parece ser do seu tom natural de castanho.
Ele está com uma simples camiseta e calça pretas. A única concessão de auto-mudança parece
ser o delineador metálico dourado que foi aplicado com uma mão leve. Destaca os grãos de
dourado em seus olhos verdes. E, apesar do meu nojo por Capitol e seu senso fashion horrível, eu não consigo parar de pensar em como ele é atraente.
"Olá, Katniss. Eu sou o Cinna, seu estilista," ele diz em uma voz baixa que de alguma forma
carece das afetações de Capitol.
"Olá," eu me aventurei cuidadosamente.
"Só me dê um momento, está certo?" ele pergunta. Ele anda ao redor do meu corpo nu, não
me tocando, mas tomando nota de cada centímetro dele com seus olhos. Eu resisto ao
impulso de cruzar meus braços sobre meu peito. "Quem arrumou o seu cabelo?"
"Minha mãe," eu digo.
"É lindo. Clássico, realmente. E em equilíbrio quase perfeito com o seu perfil. Ela tem dedos
muito espertos," ele diz.
Eu tinha esperado alguém exibicionista, alguém mais velho tentando desesperadamente
parecer mais jovem, alguém que me via como um pedaço de carne a ser preparado num prato.
Cinna não correspondeu a nenhuma dessas expectativas.
"Você é novo, não é? Eu não acho que eu o vi antes," eu digo. A maior parte dos estilistas são
familiares, constantes na concentração dinâmica dos tributos. Alguns estiveram em volta pela
minha vida inteira.
"Sim, esse é o meu primeiro ano nos Games," diz Cinna.
"Então eles lhe deram o Distrito Doze," eu digo. Novatos geralmente acabam conosco, o
distrito menos desejável.
"Eu pedi pelo Distrito Doze," ele diz sem maiores explicações. "Por que não coloca seu robe e
batemos um papo?"
Puxando meu robe, eu o sigo por uma porta para uma sala de estar. Dois sofás vermelhos
encaram uma mesa baixa. Três paredes estão vazias, a quarta é inteiramente de vidro,
providenciando uma janela para a cidade. Eu consigo ver pela luz que deve ser por volta do
meio-dia, apesar do céu ensolarado ter ficado nublado. Cinna me convida para sentar em um
dos sofás e toma seu lugar na minha frente. Ele aperta um botão de um lado da mesa. O topo
se divide e abre debaixo sobre um segundo tampo da mesa que guarda nosso lanche. Frangos e
pedaços de laranja cozinhados em um molho cremoso estavam deitados numa cama de grãos
branco-perolados, minúsculas ervilhas e cebolas, pãozinhos no formato de flores, e para
sobremesa, um pudim da cor de mel.
Eu tento imaginar coletar eu mesma essa refeição lá em casa. Frangos são caros demais, mas
eu podia me virar com um peru selvagem. Eu precisaria atirar num segundo peru para trocar
por uma laranja. O leite de cabra teria que substituir o creme. Nós podemos plantar ervilhas
no jardim. Eu teria que pegar cebolas selvagens na floresta. Eu não reconheço o grão, nossa
própria ração de tessera cozinha e vira um mingau marrom feio. Pãozinhos chiques significam
outra troca com o padeiro, talvez dois ou três esquilos. E quanto ao pudim, eu não consigo
nem adivinhar o que tem dentro dele. Dias caçando e reunindo coisas para essa única refeição
e ainda assim seria uma substituição pobre da versão do Capitol.
Como deve ser, eu me pergunto, viver num mundo onde a comida aparece ao toque de um
botão? Como eu passaria as horas que agora eu dedico a passar um pente na floresta
procurando por sustento se fosse tão fácil de arranjar? O que eles fazem o dia todo, essas
pessoas em Capitol, além de decorar seus corpos e esperar por uma nova descarga de tributos
chegarem e morrerem para sua diversão?
Eu olhei para cima e achei os olhos de Cinna treinados nos meus. "Como devemos parecer
desprezíveis para você," ele diz.
Ele tinha visto isso na minha cara ou de algum modo lido meus pensamentos? Ele está certo,
contudo. Todos eles são podres e desprezíveis.
"Não importa," diz Cinna. "Então, Katniss, sobre o seu traje para a cerimônia de abertura.
Minha parceira, Portia, é a estilista do seu companheiro de tributo, Peeta. E nosso pensamento
atual é vesti-la com um traje complementário," diz Cinna. "Como você sabe, é comum refletir
o sabor do distrito."
Para as cerimônias de abertura, você deve usar algo que sugira a principal indústria do seu
distrito. Distrito 11, agricultura. Distrito 4, pescaria. Distrito 3, fábricas. Isso significa que
vindos do Distrito 12, Peeta e eu estaremos em algum tipo de vestimenta de mineiros de
carvão. Já que os macacões largos dos mineiros são particularmente adequados, nossos
tributos geralmente acabam em trajes reduzidos e chapéus com lâmpadas frontais. Um ano
nossos tributos foram completamente nus e cobertos em pó negro para representar poeira de
carvão. É sempre horroroso e não ajuda em nada a conquistar a platéia em nosso favor. Eu me
preparo para o pior.
"Então, eu estarei em um traje de mineiro de carvão?" Eu pergunto, esperando que não seja
indecente.
"Não exatamente. Veja, Portia e eu achamos que o negócio de mineiros de carvão é muito
exagerado. Ninguém se lembrará de você com isso. E ambos vemos como nosso trabalho
transformar os tributos do Distrito Doze inesquecíveis," diz Cinna.
Eu ficarei nua, com certeza, eu penso.
"Então ao invés de nos focarmos na própria mineiração de carvão, vamos nos focar no carvão,"
diz Cinna. Nua e coberta em poeira negra, eu penso. "E o que fazemos com o carvão? Nós o
queimamos," diz Cinna.
"Você não tem medo de fogo, tem, Katniss?" Ele vê minha expressão e sorri.
Algumas horas depois, eu estou vestida no que será ou o traje mais sensacional ou o mais fatal
das cerimônias de abertura. Eu estou num macacão colado simples e preto que me cobre do
tornozelo até o pescoço. Brilhantes botas de couro enlaçadas até os meus joelhos. Mas é a
capa agitada feita de jorros de laranja, amarelo, e vermelho e chapéu combinando que define
esse traje. Cinna planeja tocar fogo neles logo antes da nossa carruagem entrar nas ruas.
"Não são chamas de verdade, é claro, só um pouco de fogo sintético que Portia e eu inventamos. Você estará perfeitamente segura," ele diz. Mas eu não estou convencida
de que
não ficarei perfeitamente tostada na hora que alcançarmos o centro da cidade.
Meu rosto está relativamente limpo de maquiagem, só um pouco de iluminador aqui e ali.
Meu cabelo fora escovado e então trançado pelas minhas costas no meu estilo normal. "Eu
quero que a audiência reconheça você quando você estiver na arena," diz Cinna
sonhadoramente. "Katniss, a garota que estava pegando fogo."
Passa pela minha mente que a conduta calma e normal de Cinna esconde um completo louco.
Apesar da revelação dessa manhã sobre o caráter de Peeta, eu estou na verdade aliviada
quando ele aparece, vestido em um traje idêntico. Ele deve conhecer fogo, sendo o filho de
um padeiro e tudo. Sua estilista, Portia, e o time dela acompanhando-o ao entrar, e todos
estão absolutamente tontos de animação sobre o furor que causaremos. Exceto Cinna. Ele
simplesmente parece um pouco fatigado enquanto aceita os parabéns.
Somos movidos rapidamente para o andar de baixo do Centro de Remodelagem, o que é
essencialmente um estábulo gigante. A cerimônia de abertura está para começar. Pares de
tributos estão sendo colocados em carruagens puxadas por times de quatro cavalos. Os nossos
são negros como carvão. Os animais são tão bem treinados, ninguém nem mesmo precisa
guiar suas rédeas. Cinna e Portia nos dirigem para a carruagem e cuidadosamente arrumam as
posições dos nossos corpos, guarnecendo nossas capas, antes de saírem para fazerem
consultas um com o outro.
"O que você acha?" eu sussurro para Peeta. "Do fogo?"
"Eu arranco a sua capa se você arrancar a minha," ele diz por dentes cerrados.
"Fechado," eu digo. Talvez, se conseguirmos tirá-las cedo o bastante, possamos evitar as
piores queimaduras. É ruim, contudo. Eles nos jogarão na arena não importa em que condição
estejamos. "Eu sei que prometemos a Haymitch que faríamos exatamente o que eles
dissessem, mas eu não acho que ele considerou esse ângulo."
"Onde está Haymitch, de qualquer jeito? Ele não deveria nos proteger desse tipo de coisa?" diz
Peeta.
"Com todo aquele álcool nele, provavelmente não é aconselhável tê-lo por perto de chamas,"
eu digo.
E de repente estamos os dois rindo. Eu suponho que ambos estamos tão nervosos sobre os
Games e, mais prementemente petrificados em sermos transformados em tochas humanas,
que não estamos agindo sensivelmente.
A música de abertura começa. É fácil de ouvir, explodindo por Capitol. Portas massivas
deslizaram-se para revelar as ruas enfileiradas com pessoas. A viagem dura por volta de vinte
minutos e acaba na Cidade Circular, onde eles nos recebem, tocam o hino, e nos escoltam para
o Centro de Treinamento, que será nossa casa/prisão até que os Games comecem.
Os Tributos do Distrito 1 viajam numa carruagem puxada por cavalos brancos de neve. Eles
parecem tão bonitos, pintados com spray de prata, em túnicas de bom gosto brilhando com
jóias. O Distrito 1 faz itens de luxo para Capitol. Você consegue ouvir os urros da multidão. Eles
são sempre favoritos.
Distrito 2 entra em posição para segui-los. Num piscar de olhos, estamos todos nos
aproximando da porta e eu consigo ver que entre o céu nublado e a tarde, a luz está ficando
cinza. Os tributos do Distrito 11 estão saindo quando Cinna aparece com uma tocha acesa.
"Vamos lá, então," ele diz, e antes que ambos possamos reagir ele toca fogo nas nossas capas.
Eu arfo, esperando pelo calor, mas há só uma leve sensação de cócegas. Cinna sobe perante
nós e incendeia nossas toucas. Ele solta um suspiro de alívio. "Funciona." Então ele
gentilmente coloca uma mão sob meu queixo. "Lembrem-se, cabeças erguidas. Sorrisos. Eles
vão amar vocês!"
Cinna pula da carruagem e tem uma última ideia. Ele grita algo para nós, mas a música o afoga.
Ele grita novamente e gesticula.
"O que ele está dizendo?" Eu pergunto ao Peeta. Pela primeira vez, eu olho para ele e percebo
que, incandescendo com as chamas falsas, ele está deslumbrante. E eu devo estar também.
"Eu acho que ele disse para segurarmos as mãos," diz Peeta. Ele agarra minha mão direita com
sua esquerda, e olhamos para Cinna para confirmação. Ele assente e faz um jóia, e essa é a
última coisa que eu vejo antes de entrarmos na cidade.
O inicial alarme da multidão quando aparecemos rapidamente mudou para aplausos e gritos
de "Distrito Doze!" Todas as cabeças viraram na nossa direção, puxando o foco das três
carruagens a nossa frente. De primeira, fico congelada, mas então eu capturo-nos em uma
enorme tela de televisão e fico chocada por parecermos tão estonteantes. No crepúsculo
aprofundante, a luz do fogo ilumina nossos rostos. Parecemos estar deixando uma trilha de
fogo com nossas capas flutuantes. Cinna estava certo sobre a maquiagem mínima, ambos
parecemos mais atraentes, mas absolutamente reconhecíveis.
Lembrem-se, cabeças erguidas. Sorrisos. Eles vão amar vocês! Eu ouço a voz de Cinna em
minha cabeça. Eu levanto meu queixo um pouco mais alto, coloco meu sorriso mais vencedor,
e aceno com minha mão livre. Estou feliz por ter Peeta agora para me apoiar em equilíbrio, ele
é tão firme, sólido como uma pedra. A medida que eu ganho confiança, eu de verdade sopro
alguns beijos para a multidão. As pessoas em Capitol estão pirando, nos molhando com flores,
gritando nossos nomes, nossos primeiros nomes, os quais eles se deram ao trabalho de
encontrar no folheto.
A música golpeante, os aplausos, e a admiração cavaram seu caminho para o meu coração, e
eu não consigo suprimir minha animação. Cinna me deu uma grande vantagem. Ninguém me
esquecerá. Não a minha aparência, não o meu nome. Katniss. A garota que estava pegando
fogo.
Pela primeira vez, eu sinto uma centelha de esperança crescendo em mim. Certamente deve
haver um patrocinador disposto a me pegar! E com um pouco de ajuda extra, alguma comida,
a arma certa, por que eu deveria me contar fora dos Games?
Alguém me jogou uma rosa vermelha. Eu pego-a, dou uma cheirada delicada, e sopro um beijo
de volta na direção geral da pessoa que deu. Uma centena de mãos se esticam para pegar meu
beijo, como se fosse uma coisa real e tangível.
"Katniss! Katniss!" Eu consigo ouvir meu nome sendo chamado de todos os lados. Todos
querem os meus beijos.
Não é até eu entrar na Cidade Circular que eu percebo que eu devo ter parado completamente
a circulação na mão de Peeta. De tão apertado que eu estive segurando-a. Eu olho para baixo
para nossos dedos entrelaçados enquanto afrouxo o meu aperto, mas ele recupera seu aperto
na minha. "Não, não me solte," ele diz. A luz do fogo relampeja em seus olhos azuis. "Por
favor. Eu talvez caia dessa coisa."
"Está bem," eu digo. Então eu continuo segurando, mas eu não consigo evitar me sentir
estranha em relação a maneira com que Cinna nos uniu. Não é realmente justo nos apresentar
como uma equipe e então nos trancar em uma arena para nos matarmos.
As doze carruagens enchem o labirinto da Cidade Circular. Nos prédios que circulam a Circular,
cada janela está cheia com os cidadãos mais prestigiosos de Capitol. Nossos cavalos puxam
nossa carruagem bem na mansão do Presidente Snow, e nós paramos. A música acaba com um
adorno.
O presidente, um homem pequeno e magro com cabelo branco como papel, dá as boas-vindas
oficiais de um balcão acima de nós. É tradição cortar para os rostos dos tributos durante a fala.
Mas eu consigo ver na tela que nós estamos conseguindo muito mais do que a nossa conta de
tempo no ar. Quanto mais escuro fica, mais difícil fica tirar os olhos das nossas capas flutuantes.
Quando o hino nacional toca, eles realmente se esforçam para cortar rapidamente para cada
par de tributos, mas a câmera fica presa na carruagem do Distrito 12 enquanto desfila ao redor
do círculo uma última vez e desaparece no Centro de Treinamento.
As portas acabaram de fechar atrás de nós quando somos engolfados pelos times de
preparação, que mal estão entendíveis enquanto tagarelam sobre a nossa glória. Enquanto eu
olho ao redor, eu noto que um monte de outros tributos estão nos lançando olhares sujos, o
que confirma o que eu tinha suspeitado, nós literalmente brilhamos mais que todos eles.
Então Cinna e Portia estão lá, nos ajudando a descer da carruagem, cuidadosamente
removendo nossas capas flamejantes e toucas. Portia os extingue com algum tipo de spray de
um canastrel.
Eu percebo que ainda estou colada em Peeta e forço meus dedos duros a se abrirem. Ambos
massageamos nossas mãos.
"Obrigado por ficar segurando em mim. Eu estava ficando um pouco trêmulo lá," diz Peeta.
"Não pareceu," eu digo a ele. "Estou certa de que ninguém notou."
"Estou certo de que não notaram nada além de você. Você devia usar chamas mais
freqüentemente," ele diz. "Elas combinam com você." E então ele me dá outro sorriso que
parece tão genuinamente doce com exatamente o toque certo de timidez que uma quentura
inesperada corre por mim.
Um sinal de aviso dispara na minha cabeça. Não seja tão estúpida. Peeta está planejando como
matar você, eu lembro a mim mesma. Ele está te encantando para torná-la uma vítima fácil.
Quanto mais agradável ele for, mais mortal ele é.
Mas porque dois podem jogar esse jogo, eu fico na ponta dos pés e beijo sua bochecha. Bem
em seu machucado.

6

O Centro de Treinamento tem uma torre designada exclusivamente para os tributos e suas
equipes. Ela será a nossa casa até os reais Games começarem. Cada distrito tem todo um
andar. Você simplesmente entra num elevador e pressiona o número do seu distrito. Fácil o
bastante para lembrar.
Eu tinha entrado num elevador um par de vezes no Edifício da Justiça no Distrito 12. Uma vez
para receber a medalha pela morte do meu pai e depois ontem para dizer meu adeus final
para meus amigos e família. Mas aquele era uma coisa escura e que range, que se move como
uma lesma e cheira como leite azedo. As paredes deste elevador são feitas de cristal assim
você pode assistir as pessoas no andar térreo encolhendo-se ao tamanho de formigas
enquanto você sobe no ar. É estimulante e eu sou tentada a perguntar a Effie Trinket se nós
podemos andar nele de novo, mas de alguma forma isso parece infantil.
Aparentemente, os deveres de Effie Trinket não se concluíram na estação. Ela e Haymitch irão
nos inspecionar até a arena. De certo modo, isso é bom porque pelo menos podemos contar
com ela para nos levar aos lugares pontualmente enquanto que nós não temos visto Haymitch
desde que ele aceitou nos ajudar no trem. Provavelmente desmaiado em algum lugar. Effie Trinket, por outro lado, parece estar voando alto. Nós somos a primeira equipe
que ela jamais
escoltou que fez um estouro nas cerimônias de abertura. Ela é amável não só pelos nossos
trajes mas como nós nos dirigimos. E, para ouvi-la dizer que ela conhece todo mundo que é
alguém em Capitol, e que tem falado de nós todo o dia, tentando ganhar para nós
patrocinadores.
"Eu tenho sido muito misteriosa, entretanto," ela diz, seus olhos oblíquos meio fechados.
"Porque, é claro, Haymitch não se preocupou em me dizer suas estratégias. Mas eu tenho feito
o meu melhor com o que eu tenho que trabalhar. Como Katniss se sacrificou por sua irmã.
Como ambos vocês lutaram com sucesso para superar a barbaridade do distrito de vocês."
Barbaridade? Isso é irônico vindo de uma mulher ajudando a nos preparar para um massacre.
E em quê ela está baseando o nosso sucesso? Nossas maneiras na mesa?
"Todo mundo tem suas reservas, naturalmente. Vocês sendo de um distrito de carvão. Mas eu
disse, e isso foi muito esperto da minha parte, eu disse, "Bem, se você colocar pressão o
bastante no carvão ele se torna pérolas!'" Effie sorri para nós de forma tão brilhante que não
temos escolha a não ser responder entusiasmadamente a sua inteligência embora esteja
errada.
Carvão não se transforma em pérolas. Elas crescem em molusco. Possivelmente ela quer dizer
que carvão se transforma em diamantes, mas então não é verdade. Eu tenho escutado que
eles têm algum tipo de máquina no Distrito 1 que pode transformar grafite em diamantes. Mas
nós não exploramos grafite no Distrito 12. Esse era o trabalho do Distrito 13 até eles serem
destruídos.
Pergunto-me se as pessoas com as quais ela está fazendo nossa propaganda por todo dia
sabem disso ou se importam.
"Infelizmente, não posso fechar acordos de patrocínios por vocês. Somente Haymitch pode
fazer isso," diz Effie com raiva. "Mas não se preocupem, eu vou levá-lo à mesa na mira se
necessário."
Embora tenha carência em muitas áreas, Effie Trinket tem uma certa determinação que eu
tenho que admirar.
Meus quartos são maiores que nossa casa inteira. Eles são de veludo, como no vagão do trem,
mas, além disso, tem tantas máquinas automáticas que estou certa de que não terei tempo
para apertar todos os botões. O chuveiro sozinho tem um painel com mais de cem opções que
você pode escolher regulando a temperatura da água, pressão, sabonetes, xampus, perfumes,
óleos, e esponjas para massagem. Quando você sai em uma pequena esteira, aquecedores
aparecem para secar seu corpo. Em vez de lutar com os nós no meu cabelo molhado,
meramente coloquei minha mão em uma caixa que enviou uma corrente através do meu
escalpo, desembaraçando, partindo, e secando meu cabelo quase instantaneamente. Ele
flutua para baixo em torno dos meus ombros, numa cortina brilhante.
Programo o closet por uma veste do meu gosto. O zoom da janela foca em partes da cidade ao
meu comando. Você precisa apenas sussurrar o tipo de comida de um cardápio gigantesco
num bocal e ela aparece, quente e úmida, ante a você em menos de um minuto. Ando ao
redor do quarto comendo fígado de ganso e um pão inchado até que há uma batida na porta.
Effie está me chamando para jantar.
Bom, estou faminta.
Peeta, Cinna, e Portia estão de pé em um balcão que tem vista panorâmica do Capitol quando
nós entramos no salão de jantar. Estou satisfeita por ver os estilistas, particularmente depois de
eu escutar que Haymitch se juntará a nós. Uma refeição presidida apenas por Effie e Haymitch
é obrigada a ser um desastre. Além disso, jantar não é exatamente sobre comida, é sobre
planejar nossas estratégias, e Cinna e Portia já têm provado o quão valorosos eles são.
Um jovem vestido em uma túnica branca nos oferece todos os cálices de vinho. Penso sobre
derramá-lo, mas eu nunca tinha tido vinho, exceto a coisa feita em casa que minha mãe usava
para tosse, e quando vou conseguir a chance de experimentá-lo de novo? Eu tomo um trago
do líquido seco e ácido e secretamente penso que isso poderia ser melhorado com algumas
colheres de mel.
Haymitch só aparece quando o jantar começa a ser servido. Parece como se ele tivesse seu
próprio estilista porque ele está limpo e tratado e mais sóbrio do que jamais eu o tinha visto.
Ele não recusa a oferta de vinho, mas quando ele começa a tomar sua sopa, percebo que essa
é a primeira vez que eu o tinha visto comer. Talvez ele realmente se esforce para nos ajudar.
Cinna e Portia parecem ter um efeito civilizador em Haymitch e Effie. Ao menos eles estão se
dirigindo um ao outro de maneira decente. E ambos são nada além de elogios para o ato de
abertura dos nossos estilistas. Enquanto eles fazem conversa fiada, concentro-me na refeição.
Sopa de cogumelos, verduras amargas com tomates do tamanho de ervilhas, rosbife em fatias
finas como papel, macarrão com molho verde, o queijo que derrete na sua língua servido com
doce de uvas azul. Os servidores, todos pessoas jovens vestidas em túnicas brancas como
aquele que nos deu vinho, movem-se silenciosamente de lá para cá da mesa, mantendo
nossos pratos e taças cheias.
A cerca de metade da minha taça de vinho minha cabeça começa a ficar enevoada, então
mudo para água. Não gosto da sensação e espero que vá embora logo. Como Haymitch pode
suportar ficar andando por aí assim a toda hora é um mistério.
Tento me focar na conversa, que tem se direcionado à nossas vestes da entrevista, quando
uma garota coloca um glorioso bolo na mesa e habilmente o acende. Ela inflama e então as
chamas vacilam ao redor das beiras por um momento até finalmente acabar. Tenho um
momento de dúvida. "O que faz queimar? É álcool?" digo, olhando para a garota. "Essa é a
última coisa que eu que ­ oh! Eu te conheço!"
Eu não posso dizer o nome ou tempo para o rosto da garota. Mas estou certa. O cabelo
vermelho escuro, as feições impressionantes, a pele branca de porcelana. Mas mesmo que eu
diga as palavras, sinto meu interior se contraindo de ansiedade e culpa a visão dela, e
enquanto eu não posso lembrar, sei que alguma memória ruim está associada a ela. A
expressão de terror que cruza em seu rosto apenas aumenta minha confusão e
intranqüilidade. Ela balança seu rosto em negação rapidamente e rapidamente se afasta da nmesa.
Quando olho para trás, os quatro adultos estão me assistindo como gaviões.
"Não seja ridícula, Katniss. Como seria possível você conhecer uma Avox?" repreende Effie. "Só
em imaginação."
"O que é um Avox?" pergunto estupidamente.
"Alguém que cometeu um crime. Eles cortam sua língua, assim ela não pode falar," diz
Haymitch. "Ela provavelmente é uma traidora de algum tipo. Não tem como você conhecê-la."
"E mesmo se conhecesse, você não é para falar com nenhum deles a não ser para dar uma
ordem," diz Effie. "É claro, você de fato não a conhece."
Mas eu realmente a conheço. E agora que Haymitch tem mencionado a palavra traidor eu
lembro de onde. A desaprovação é tão alta que eu nunca podia admitir. "Não, acho que não,
eu só"... eu gaguejo, e o vinho não está ajudando.
Peeta estala seus dedos. "Delly Cartwright. Isso é que é. Continuei pensando que ela parecia
familiar também. Então percebo que ela é desanimada demais para Delly."
Delly Cartwright é uma garota boba de rosto pálido, com um cabelo amarelado, que parece
tão servil para conosco quanto um besouro para uma borboleta. Ela pode também ser a
pessoa mais amigável do planeta ­ sorri constantemente para todo mundo na escola, até para
mim. Eu nunca tinha visto a garota de cabelos vermelhos sorrir. Mas eu agarrei a sugestão de
Peeta agradecida. "É claro, era essa em quem eu estava pensando. Deve ser pelo cabelo," digo.
"Algo sobre os olhos, também," diz Peeta.
A energia a mesa relaxa. "Oh, bem. Se isso é tudo," diz Cinna. "E sim, o bolo tem bebida
alcoólica, mas todo o álcool tem queimado. Eu o pedi especialmente em honra da sua estréia
brilhante."
Nós comemos o bolo e entramos na sala de estar para assistir o replay das cerimônias de
abertura que está sendo transmitido. Umas poucas outras duplas fazem uma boa impressão,
mas nenhuma delas é capaz de medir-se a nós. Mesmo nosso próprio partido solta um "Ahh"
enquanto eles nos mostram saindo do Centro de Remodelagem.
"De quem foi a idéia de segurar as mãos?" pergunta Haymitch.
"Cinna," diz Portia.
"Só um perfeito toque de rebelião," diz Haymitch. "Muito bom."
Rebelião? Eu tenho que pensar sobre isso por um momento. Mas quando lembro das outras
duplas, permanecendo rigidamente distanteS, nunca tocando ou reconhecendo o outro, como
se seus tributos companheiros não existissem, como se os Games já tivessem começado, eu sei
o que Haymitch quer dizer. Apresentando-nos não como adversários, mas como amigos, tem
nos distinguido tanto quanto os trajes ardentes.
"Amanhã de manhã é a primeira seção de treinamento. Encontrem-me no café da manhã e
direi a vocês exatamente como eu quero que vocês joguem," diz Haymitch para Peeta e eu.
"Agora vão dormir um pouco enquanto os crescidos conversam."
Peeta e eu andamos juntos pelo corredor para nossos quartos. Quando nós chegamos à minha
porta, ele se inclina contra a estrutura, não bloqueando minha entrada exatamente, mas
insistindo para eu prestar atenção nele. "Então, Dally Cartwright. Imagine encontrar sua sósia
aqui."
Ele está pedindo por uma explicação, e estou tentada a dar uma a ele. Ambos sabemos que ele
me deucobertura. Assim aqui estou eu, em débito com ele de novo. Se disser a ele a verdade,
de alguma forma coisas podem aparecer. Como isso pode machucar realmente? Mesmo se ele
repetiu a história, não podia fazer a mim nenhum dano. Era apenas algo que eu testemunhei. E
ele mentiu tanto quando eu sobre Delly Cartwright.
Percebo que quero muito conversar com alguém sobre essa garota. Alguém que possa ser
capaz de me ajudar a compreender sua história.
Gale seria minha primeira escolha, mas é improvável que eu veja Gale novamente. Tento
imaginar se dizer a Peeta pode dar a ele alguma possível vantagem sobre mim, mas não vejo
como. Talvez dividir um segredo o fará acreditar que eu o vejo como amigo, na verdade.
Além disso, a idéia da garota com sua língua mutilada me assusta. Ela me lembra porque eu
estou aqui. Não para pousar com trajes berrantes e comer coisas gostosas. Mas para ter uma
morte sangrenta, enquanto a multidão encoraja meu assassinato.
Dizer ou não dizer? Meu cérebro ainda está devagar do vinho. Olho para o corredor vazio
como se a decisão estivesse ali.
Peeta capta minha hesitação. "Você já esteve no telhado?" Eu balanço minha cabeça. "Cinna
me mostrou. Você pode praticamente ver toda a cidade. O vento é um pouco barulhento,
entretanto."
Eu traduzo isso como "Ninguém poderá nos ouvir conversar" na minha cabeça. Você tem a
sensação de que poderíamos estar sob vigilância aqui. "Nós podemos apenas subir?"
"Claro, venha," diz Peeta. Sigo-o para um lance de escadaria que vai ao telhado. Há um
pequeno cômodo em forma de cúpula com uma porta para fora. Quando pisamos dentro do ar
da noite fresco e ventoso, eu seguro meu fôlego pela vista. O Capitol cintila como um vasto
campo de vaga-lumes. Eletricidade no Distrito 12 vinha e ia, usualmente nós só a tínhamos por
poucas horas por dia. Freqüentemente as noites são passadas a luz de velas. A única hora que
você pode contar com ela é quando eles estão exibindo os Games ou alguma mensagem
importante do governo na televisão, que é obrigatório assistir. Mas aqui não existiria carência.
Nunca.
Peeta e eu andamos para o parapeito nos limites do telhado. Eu olho para baixo ao lado do
edifício para a rua, que está zunindo de gente. Você pode ouvir seus carros, um berro
ocasional, e um estranho toque metálico. No Distrito 12, nós todos estaríamos pensando na
cama agora.
"Perguntei a Cinna porque eles nos deixam subir aqui. Eles não estavam preocupados que
algum dos tributos possa decidir pular pelo lado?" diz Peeta.
"O que ele disse?" Pergunto.
"Você não pode," diz Peeta. Ele levanta sua mão num espaço aparentemente. Há um zumbido
afiado e ele puxa a mão de volta. "Algum tipo de campo elétrico te joga de volta ao telhado."
"Sempre preocupados com a nossa segurança," digo. Embora Cinna tenha mostrado a Peeta o
telhado, pergunto-me se não deveríamos estar aqui em cima agora, tão tarde e sozinhos. Eu
nunca tinha visto tributos no telhado do Centro de Treinamento antes. Mas isso não significa
que nós não estamos sendo gravados. "Você acha que eles estão nos assistindo agora?"
"Talvez," ele admite. "Venha ver o jardim."
Do outro lado da cúpula eles construíram um jardim com canteiros de flores e árvores em
vasos. Nos ramos estão pendurados centenas de sinos de vento, que contam pelo tinido que
eu ouvi. Aqui no jardim, na noite ventosa, é o suficiente para abafar duas pessoas que estão
tentando não ser ouvidas. Peeta olha para mim com expectativa.
Eu finjo examinar uma flor. "Nós estávamos caçando na floresta um dia. Escondidos,
esperando pela caça," eu sussurro.
"Você e seu pai?" ele sussurra de volta.
"Não, meu amigo Gale. Repentinamente todos os pássaros pararam de cantar de uma vez.
Exceto um. Era como se ele estivesse nos dando uma chamada de alerta. E então nós a vimos.
Tenho certeza que era a mesma garota. Um garoto estava com ela. Suas roupas estavam
esfarrapadas. Eles tinham círculos escuros sob seus olhos de falta de sono. Eles estavam
correndo como se suas vidas dependessem disso," eu digo.
Por um momento eu fico em silêncio, enquanto lembro como a visão desse estranho par,
claramente não do Distrito 12, correndo através da floresta nos imobilizou. Depois, nós nos
perguntamos se nós podíamos tê-los ajudado a escapar. Talvez pudéssemos ter. Ocultá-los. Se
nós tivéssemos nos movido rapidamente. Gale e eu estávamos tomados pela surpresa, sim,
mas ambos somos caçadores. Sabemos como animais parecem aflitos. Sabíamos que o par
estava em problemas tão logo que nós os vimos. Mas apenas assistimos.
"O aero barco apareceu do nada," eu continuei para Peeta. "Quero dizer, em um momento o
céu estava vazio e no outro lá estava ele. Não fez nenhum som, mas eles o viram. Uma rede
caiu em cima da garota e a carregou para cima, rápido, tão rápido como um elevador. Eles
atiraram algum tipo de arpão através do garoto. Estava amarrado a um cabo e eles o
prenderam e o subiram também. Mas eu estava certa que ele estava morto. Nós escutamos a
garota gritar uma vez. O nome do garoto, eu acho. Então ele se foi, o aero barco. Sumiu no ar.
E os pássaros começaram a cantar de novo, como se nada tivesse acontecido."
"Eles viram vocês?" Peeta perguntou.
"Eu não sei. Estávamos sob uma rocha," eu replico.
Mas eu sei. Houve um momento, depois da chamada do pássaro, mas antes do aero barco,
que a garota tinha-nos visto. Ela olhou para mim e gritou por ajuda. Mas nem Gale ou eu
tínhamos respondido.
"Você está tremendo," diz Peeta.
O vento e a história tinha acabado com todo o calor do meu corpo. O grito da garota. Tinha
sido o último?
Peeta tira sua jaqueta e a coloca ao redor dos meus ombros. Eu começo a recuar, mas então
eu o deixo, decidindo por um momento aceitar ambos sua jaqueta e sua gentileza. Um amigo
faria isso, certo?
"Eles eram daqui?" ele pergunta, e fecha um botão no meu pescoço.
Eu assinto. Eles tinham aquela aparência de Capitol neles. O garoto e a garota.
"Para onde você acha que eles estavam indo?" ele pergunta.
"Eu não sei isso," digo. Distrito 12 é muito como o fim da linha. Além de nós, há apenas a
imensidão. Se você não contar com as ruínas do Distrito 13 que ainda arde lentamente das
bombas tóxicas. Eles mostram na televisão ocasionalmente, só para nos lembrar. "Ou porque
eles partiriam daqui." Haymitch tinha chamado os Avoxs de traidores. Contra o quê? Só
poderia ser o Capitol. Mas eles tinham tudo aqui. Sem causa para rebeldia.
"Eu partiria daqui," Peeta deixa escapar. Então ele olha ao redor nervosamente. Foi alto o
bastante escutar acima dos sinos. "Eu iria para casa agora se eles me deixassem. Mas você tem
que admitir, a comida é de primeira."
Ele está protegido novamente. Se aquilo é tudo que você escutaria só iria parecer palavras de
um tributo assustado, mas de alguém contemplando a inquestionável bondade do Capitol.
"Está ficando frio. É melhor entrarmos," ele diz. Dentro da cúpula, é quente e luminoso. Seu
tom é Leve. "Seu amigo Gale. Ele é o que levou a sua irmã da colheita?"
"Sim. Você o conhece?" pergunto.
"Não realmente. Eu ouvi que as garotas falam muito sobre ele. Achei que ele fosse seu primo
ou algo. Vocês ajudam um ao outro," ele diz.
"Não, nós não somos parentes," digo.
Peeta acena, ilegível. "Ele veio dizer adeus para você?"
"Sim," eu digo, observando-o cuidadosamente. "E seu pai também. Ele me trouxe biscoitos."
Peeta levanta suas sobrancelhas como se fosse novidade. Mas depois de vê-lo mentindo tão
facilmente, eu não dou muito crédito. "Verdade? Bem, ele gosta de você e da sua irmã. Acho
que ele queria ter tido uma filha em vez de uma casa cheia de garotos."
A idéia de que eu poderia ter sido discutida, na mesa de jantar, no fogo da padaria, apenas de
passagem na casa de Peeta me dá um sobressalto. Deveria ter sido quando a mãe estava fora do cômodo.
"Ele conhecia sua mãe quando eles eram crianças," diz Peeta.
Outra surpresa. Mas provavelmente verdade. "Oh, sim. Ela cresceu na cidade," eu digo. Não
parece ser educado dizer que ela nunca mencionou o padeiro exceto para elogiar o seu pão.
Nós estamos na minha porta. Eu devolvo a jaqueta dele. "Vejo você de manhã, então."
"Até," ele diz, e anda pelo corredor.
Quando abro minha porta, a garota de cabelo vermelho está recolhendo meu macacão colado
e minhas botas de onde eu os deixei no chão antes do banho. Eu quero me desculpar por
possivelmente colocá-la em problemas mais cedo. Mas eu lembro que não é para eu falar com
ela a menos para dar uma ordem.
"Oh, desculpe," digo. "Eu deveria ter devolvido isso para Cinna. Desculpe. Você pode levá-los
para ele?"
Ela foge dos meus olhos, dá um pequeno aceno, e segue para porta.
Eu começaria a dizer a ela que eu sinto muito pelo jantar. Mas sei que minhas desculpas
ficariam mais profundas. Que eu estava envergonhada por nunca ter tentado ajudá-la na
floresta. Que eu deixei o Capitol matar o garoto e mutilá-la sem levantar o dedo.
Justo como eu era assistindo os Games.
Eu chuto meus sapatos e subo sob os cobertores em minhas roupas. O tremor não parou.
Talvez a garota nem se lembre de mim. Mas eu sei que ela lembra. Você não esquece a face da
pessoa que era sua última esperança. Eu puxei os cobertores acima da minha cabeça como se
isso fosse me proteger da garota de cabelos vermelhos que não pode falar. Mas eu posso
sentir seus olhos me assistindo, perfurando através das paredes e portas e cobertas.
Pergunto-me se ela gostará de me assistir morrer.

7

Meu repouso é cheio de sonhos perturbadores. O rosto da garota ruiva entrelaça-se com
imagens ensangüentadas de Hunger Games anteriores, com a minha mãe longe e inalcançável,
com a magreza e o terror de Prim. Eu me levanto gritando por meu pai e para ele correr enquanto a mina
explode em milhões de pedacinhos mortíferos de luz.
O sol está nascendo pelas janelas. O Capitol tem um ar nebuloso e assombrado. Minha cabeça
dói e eu devo ter mordido a lateral da minha bochecha de noite. Minha língua investiga a
carne áspera e eu sinto gosto de sangue.
Lentamente, eu me arrasto para fora da cama e para o chuveiro. Eu arbitrariamente soco
botões no painel de controle e acabo pulando de pé em pé enquanto jatos alternados de água
gélida e pelando de quente me acertam. Então eu sou inundada em espuma de limão que eu
tenho que retirar com uma forte escova eriçada. Ah, bem. Pelo menos meu sangue está
fluindo.
Agora que estou seca e hidratada com loção, eu acho uma veste que foi deixada para mim na
frente do armário. Calça preta apertada, uma túnica cor de vinho de mangas longas, e sapatos
de couro. Eu deixo meu cabelo em uma trança única pelas minhas costas. Essa é a primeira vez
desde a manhã da colheita que eu pareço comigo mesma. Nada de cabelo e roupas chiques,
nada de capas flutuantes. Simplesmente eu. Parecendo como se eu pudesse estar indo para a
floresta. Isso me acalma.
Haymitch não nos deu um tempo exato para nos encontrar para o café da manhã e ninguém
me contatou essa manhã, mas eu estou com tanta fome que eu me dirigi para a sala de jantar,
esperando que tenha comida. Não fico decepcionada. Enquanto a mesa está vazia, em uma
comprida tábua do lado foram colocados pelo menos vinte pratos. Um jovem, um Avox, está
de pé por perto prestando atenção. Quando eu pergunto se posso me servir, ele concorda
assentindo. Eu sirvo um prato com ovos, salsichas, panquecas cobertas com compotas de
laranjas grossas, fatias de melão roxo claro. Enquanto eu me empanturro, eu observo o sol
nascer por Capitol. Eu pego um segundo prato de grãos quentes encobertos por cozido de bife.
Finalmente, eu encho um prato com pãezinhos e sento na mesa, quebrando pedacinhos
untados e mergulhando-os em chocolate quente, do jeito que Peeta fizera no trem.
Minha mente vaga até minha mãe e Prim. Elas devem estar acordadas. Minha mãe preparando
o mingau do café da manhã delas. Prim ordenhando sua cabra antes da escola. Há apenas duas
manhãs, eu estava em casa. Isso podia estar certo? Sim, só duas. E agora como a casa parecia
vazia, mesmo a distância. O que elas disseram ontem a noite após a minha estréia poderosa
nos Games? Isso lhes deu esperança, ou simplesmente somou ao seu horror, quando elas
viram a realidade de vinte e quatro tributos circulados juntos, sabendo que apenas um poderia
viver?
Haymitch e Peeta entram, desejam-me bom dia, enchem seus pratos. Me deixa irritada Peeta
estar usando exatamente a mesma veste que eu. Eu preciso dizer algo para Cinna. Essa
atuação de gêmeos vai explodir nas nossas caras assim que os Games começarem. Claro, eles
devem saber disso. Então eu me lembro de Haymitch me dizendo para fazer exatamente o que
os estilistas me dizem para fazer. Se fosse qualquer outro que não Cinna, eu poderia ter
tentado ignorá-lo. Mas após o triunfo da noite passada, eu não tenho muito espaço para
criticar as escolhas dele.
Eu estou nervosa quanto ao treinamento. Haverá três dias nos quais todos os tributos
praticam juntos. Na última tarde, cada um terá uma chance de se apresentar em particular
perante os Gamemakers. Pensar em conhecer os outros tributos cara-a-cara me deixa
enjoada. Eu viro o pãozinho que eu acabei de pegar da cesta continuamente em minhas mãos,
mas meu apetite se foi.
Quando Haymitch termina diversos pratos de cozido, ele empurra seu prato com um suspiro.
Ele tira um frasco de seu bolso e dá uma longa tragada nela e inclina seus cotovelos na mesa.
"Então, vamos direto aos negócios. Treinamento. Primeiro de tudo, se preferirem, eu os
treinarei separadamente. Decidam agora."
"Por que você nos treinaria separadamente?" Eu pergunto.
"Digamos que você tenha uma habilidade secreta que talvez não queira que o outro saiba," diz
Haymitch.
Eu troco um olhar com Peeta. "Eu não tenho nenhuma habilidade secreta," ele diz. "E eu já sei
qual a sua é, certo? Quero dizer, já comi bastante esquilos seus."
Eu nunca tinha pensado em Peeta comendo os esquilos que eu tinha matado. De algum modo,
eu sempre imaginei o padeiro se afastando silenciosamente e fritando-os para si. Não de gula.
Mas porque famílias da cidade geralmente comem carne de açougue caras. Bife e frango e
cavalo.
"Pode nos treinar juntos," eu digo a Haymitch. Peeta concorda.
"Tudo bem, então me dêem uma ideia do que conseguem fazer," diz Haymitch.
"Eu não consigo fazer nada," diz Peeta. "A não ser que conta assar pão."
"Desculpa, não conta. Katniss. Já sei que é habilidosa com uma faca," diz Haymitch.
"Na verdade não. Mas consigo caçar," eu digo. "Com arco e flecha."
"E você é boa?" pergunta Haymitch.
Eu tenho que pensar nisso. Eu vinha colocando comida na mesa por quatro anos. Isso não é
uma tarefa pequena. Eu não sou tão boa quanto meu pai era, mas ele tinha tido mais treino.
Eu tinha mira melhor do que Gale, mas eu tinha tido mais treino. Ele é um gênio com
armadilhas e ciladas. "Eu sou mais ou menos," eu digo.
"Ela é excelente," diz Peeta. "Meu pai compra os esquilos dela. Ele sempre comenta como as
flechas nunca penetram o corpo. Ele acerta todos no olho. É o mesmo com os coelhos que ela
vende ao açougueiro. Ela consegue até mesmo derrubar veados."
Essa avaliação do Peeta das minhas habilidades me toma por completo de surpresa. Primeiro,
que ele tenha notado. Segundo, que ele está me promovendo. "O que você está fazendo?" Eu
pergunto a ele em suspeita.
"O que você está fazendo? Se ele vai nos ajudar, ele tem que saber do que você é capaz. Não
se subestime," diz Peeta.
Eu não sei por que, mas isso não me desce bem. "E quanto a você? Eu te vi no mercado. Você
consegue levantar sacos de farinha de quarenta e cinco quilos," eu retruco para ele. "Diga isso
a ele. Isso não é nada."
"Sim, e estou certo de que a arena estará cheia de sacos de farinha para mim atirar nas
pessoas. Não é como ser capaz de usar uma arma. Você sabe que não é," ele atira de volta.
"Ele consegue lutar," eu digo a Haymitch. "Ele ficou em segundo na competição da nossa
escola ano passado, depois só do seu irmão."
"Qual o uso disso? Quantas vezes você viu alguém lutar com outro até a morte?" diz Peeta
com nojo.
"Há sempre combate corpo-a-corpo. Tudo o que você precisa é arranjar uma faca, e você pelo
menos terá uma chance. Se eu for surpresa, estou morta!" Eu consigo ouvir minha voz subindo
de raiva.
"Mas você não será surpresa! Você estará vivendo em alguma árvore comendo esquilos crus e
alvejando as pessoas com flechas. Você sabe o que a minha mãe disse para mim quando ela
veio dizer adeus, como se para me animar, ela diz que talvez o Distrito Doze finalmente tenha
um campeão. Então eu percebi, ela não quis dizer eu, ela quis dizer você!" esbraveja Peeta.
"Ah, ela quis dizer você," eu digo com um aceno de rejeição.
"Ela disse, ""Ela é uma sobrevivente, aquela.' Ela é," diz Peeta.
Isso me faz parar abruptamente. A mãe dele realmente disse isso de mim? Ela me julgava
acima de seu filho? Eu vejo a dor nos olhos de Peeta e sei que ele não está mentindo.
De repente eu estou atrás da padaria e eu consigo sentir o frio da chuva escorrendo pelas
minhas costas, o vazio da minha barriga. Eu sôo como se tivesse onze anos quando eu digo.
"Mas só porque alguém me ajudou."
Os olhos de Peeta rolam para o pãozinho nas minhas mãos, e eu sei que ele se lembra daquele
dia também. Mas ele só dá de ombros. "As pessoas irão te ajudar na arena. Elas estarão se
estapeando para patrocinar você."
"Não mais do que para patrocinar você," eu digo.
Peeta gira seus olhos para Haymitch. "Ela não faz ideia. Do efeito que ela pode ter." Ele corre
suas unhas pelo grão de madeira na mesa, se recusando a olhar para mim.
O que diabos ele quer dizer? Pessoas irão me ajudar? Quando estávamos morrendo de fome,
ninguém me ajudou! Ninguém exceto Peeta. Uma vez que eu tinha algo pelo qual fazer
escambo, as coisas mudaram. Eu sou uma comerciante durona. Sou? Que efeito eu tenho?
Que eu sou fraca e necessitada? Ele está sugerindo que eu consigo bons negócios porque as
pessoas tem pena de mim? Eu tento pensar se isso é verdade. Talvez alguns dos mercadores
fossem um pouco generosos em suas trocas, mas eu sempre atribui isso a seus
relacionamentos de longa duração com meu pai. Além do mais, minha caça é de primeira
qualidade. Ninguém tinha pena de mim!
Eu olho feio para o pãozinho, certa de que ele quis me insultar.
Após talvez um minuto disso, Haymitch diz, "Bom, então. Bom, bom, bom. Katniss, não há
garantias de que haverá arcos e flechas na arena, mas durante sua sessão particular com os
Gamemakers, mostre a eles o que sabe fazer. Até lá, fique longe do arqueirismo. Você é boa
em armadilhas?"
"Eu conheço algumas ciladas básicas," eu murmuro.
"Isso pode ser significante em termos de comida," diz Haymitch. "E Peeta, ela está certa,
nunca subestime força na arena. Muito freqüentemente, força física dá vantagem para um
jogador. No Centro de Treinamento, eles terão pesos, mas não revele quanto você consegue
levantar na frente dos outros tributos. O plano é o mesmo para ambos. Vocês vão para o
treinamento em grupo. Passem o dia tentando aprender algo que não saibam. Jogar uma
lança. Girar um cetro. Aprender a dar um nó decente. Guardem mostrar o que sabem melhor
até suas sessões particulares. Estamos entendidos?" diz Haymitch. Peeta e eu concordamos.
"Uma última coisa. Em público, eu quero vocês ao lado do outro toda hora," diz Haymitch.
Ambos começamos a nos opor, mas Haymitch bate sua mão na mesa. "Toda hora! Não está
aberto a discussão! Vocês concordaram em fazer o que eu disser! Vocês ficarão juntos, vocês
parecerão amáveis um com o outro. Agora caiam fora. Encontrem Effie no elevador às dez
para o treinamento."
Eu mordo meu lábio e ando altivamente de volta para meu quarto, certificando-me de que
Peeta consiga ouvir a porta bater. Eu sento na cama, odiando Haymitch, odiando Peeta,
odiando a mim mesma por mencionar aquele dia há tanto tempo na chuva.
É uma piada! Peeta e eu concordando em fingir que somos amigos! Promovendo as forças um
do outro, insistindo que o outro receba crédito por suas habilidades. Porque, de fato, em
algum ponto, teremos que parar com isso e aceitar que somos adversários ferozes. O que eu
estaria preparada para fazer agora mesmo se não fosse pela estúpida instrução do Haymitch
de que ficássemos juntos no treinamento. É minha própria culpa, eu suponho, dizendo a ele
que ele não tinha que nos treinar separadamente. Mas isso não significava que eu queria fazer
tudo com o Peeta. Que, a propósito, claramente não quer ficar de parceria comigo, tampouco.
Eu ouço a voz de Peeta em minha cabeça. Ela não faz ideia. Do efeito que ela pode ter.
Obviamente dito para me depreciar. Certo? mas uma pequenina parte de mim se pergunta se
isso foi um elogio. Que ele quis dizer que eu era cativante de alguma maneira. Era estranho, o
quanto ele tinha me notado. Como a atenção que ele tinha prestado a minha caçada. E
aparentemente, eu não estive alheia a ele como eu imaginava, tampouco. A farinha. A luta. Eu
tinha ficado de olho no garoto do pão.
São quase dez horas. Eu escovo meus dentes e penteio meu cabelo novamente. A raiva
temporariamente bloqueada por causa do meu nervosismo em conhecer os outros tributos,
mas agora eu consigo sentir minha ansiedade crescendo novamente. Na hora em que eu
encontro Effie e Peeta no elevador, eu me pego roendo minhas unhas. Eu paro
imediatamente.
As salas de treinamento ficam abaixo do nível térreo do nosso prédio. Com esses elevadores, a
corrida é menos de um minuto. As portas são abertas para um enorme ginásio cheio de várias
armas e caminhos de obstáculos. Apesar de não serem dez horas ainda, nós somos os últimos
a chegar. Os outros tributos estão reunidos em um círculo tenso. Cada um tem um pedaço
quadrado de pano com o número de seu distrito preso com alfinetes em suas camisetas.
Enquanto alguém alfineta o número 12 nas minhas costas, eu faço uma rápida avaliação. Peeta
e eu somos os únicos vestidos iguais.
Assim que nos juntamos ao círculo, a treinadora principal, uma mulher alta e atlética chamada
Atala vai à frente e começa a explicar o cronograma de treinamento. Especialistas de cada
habilidade vão ficar em suas estações. Ficaremos livres para viajar de área para área conforme
desejarmos, conforme as instruções de nossos mentores. Algumas das estações ensinam
técnicas de sobrevivências, outras técnicas de luta. Estamos proibidos de nos envolver em
qualquer exercício de combate com outro tributo. Há assistentes por perto se quisermos
praticar com um parceiro.
Quando Atala começa a ler a lista de estações de habilidades, meus olhos não conseguem
evitar esvoaçar para os outros tributos. É a primeira vez que estamos reunidos, nos mesmos
termos, com roupas simples. Meu coração afunda. Quase todos os garotos e pelo menos
metade das garotas são maiores do que eu, apesar de muitos dos tributos nunca terem sido
alimentados apropriadamente. Você consegue ver isso em seus ossos, em suas peles, no olhar
vazio em seus olhos. Eu posso ser menos naturalmente, mas de modo geral as habilidades da
minha família tinham me dado uma vantagem nessa área. Eu fico de pé reta, e embora eu seja
magra, eu sou forte. A carne e as plantas da floresta combinadas com o esforço que foi preciso
para consegui-los me deram um corpo mais saudável do que a maioria que eu vejo por aqui.
As exceções são os garotos dos distritos mais ricos, os voluntários, aqueles que foram
alimentados e treinados por toda a sua vida para esse momento. Os tributos do 1, 2 e 4
tradicionalmente tem esse aspecto neles. É tecnicamente contra as regras treinar tributos
antes que eles cheguem no Capitol, mas acontece todo ano. No Distrito 12, nós os chamamos
de Tributos Profissionais, ou simplesmente os Profissionais. E goste ou não, o campeão será
um deles.
A ligeira vantagem que eu tenho no Centro de Treinamento, minha entrada feroz ontem a
noite, parece sumir na presença da minha competição. Os outros tributos tinham inveja de
nós, mas não porque éramos sensacionais, porque os nossos estilistas eram. Agora eu não vejo
nada além de desprezo nos olhares dos Tributos Profissionais. Cada um deve ter de vinte e
dois a quarenta e cinco quilos a mais que eu. Eles projetam arrogância e brutalidade. Quando
Atala nos libera, eles se dirigem diretamente para as armas com aspecto mais mortífero no
ginásio e as manuseiam com facilidade.
Eu estou pensando que é uma sorte eu ser uma rápida corredora quando Peeta cutuca o meu
braço e eu pulo. Ele ainda está ao meu lado, de acordo com as instruções de Haymitch. Sua
expressão está sóbria. "Onde gostaria de começar?"
Eu olho ao redor para os Tributos Profissionais que estão se exibindo, claramente tentando
intimidar o campo. Então para os outros, os subnutridos, os incompetentes, tremulamente
tendo suas primeiras lições com uma faca ou um machado.
"Suponho que devamos dar alguns nós," eu digo.
"Está certíssima," diz Peeta. Cruzamos para uma estação vazia onde o treinador parece
satisfeito por ter alunos. Você tem o pressentimento de que a aula de atar nós, não é o ponto
quente do Hunger Games. Quando ele percebe que eu sei um pouco sobre ciladas, ele nos
mostra uma armadilha simples e excelente que deixará um competidor humano pendurado
por uma perna em uma árvore. Nós nos concentramos nessa habilidade por uma hora até
ambos termos dominado-a. Então mudamos para camuflagem. Peeta genuinamente parece
gostar dessa estação, espalhando uma combinação de lama e argila e suco de baga ao redor da
sua pele pálida, tecendo disfarces de vinhas e folhas. O treinador que comanda a estação de
camuflagem está cheio de entusiasmo por seu trabalho.
"Eu faço os bolos," ele admite para mim.
"Os bolos?" eu pergunto. Eu estivera preocupada em observar o garoto do Distrito 2 mandar
uma lança pelo coração de um boneco de treze metros. "Que bolos?"
"Em casa. Os de pasta americana, para a padaria," ele diz.
Ele quer dizer aqueles que eles colocam nas janelas. Bolos chiques com flores e coisas bonitas
pintadas com crosta de açúcar cristalizada. Eles são para aniversários e Reveillons. Quando
estamos na praça, Prim sempre me arrasta para admirá-los, apesar de nunca sermos capazes
de comprar um. Há pouca beleza no Distrito 12, contudo, então eu não consigo negar isso a
ela.
Eu olho mais criticamente para o desenho no braço do Peeta. O padrão alternado de luz e
escuridão sugerem a luz solar caindo por sobre as folhas na floresta. Eu me pergunto como ele
conhece isso, já que eu duvido que ele já esteve além da cerca. Ele fora capaz de aprender isso
só com aquela velha macieira magricela em seu quintal? De algum modo o negócio todo ­ sua
habilidade, aqueles bolos inacessíveis, o elogio do especialista em camuflagem ­ me irritam.
"É adorável. Se ao menos você pudesse cobrir alguém de açúcar cristalizado até a morte," eu
digo.
"Não seja tão superior. Nunca se pode supor o que você encontrará na arena. Digamos que é
realmente um bolo gigante", começa Peeta.
"Digamos que vamos para o próximo assunto," eu interrompo.
Então os próximos três dias passam com Peeta e eu indo silenciosamente de estação para
estação. Nós realmente aprendemos algumas habilidades valiosas, de acender fogueiras, até
atirar facas, até fazer abrigos. Apesar da ordem de Haymitch de aparecer medíocre, Peeta se
sobressai em combate corpo-a-corpo, e eu arraso no teste de plantas comestíveis sem piscar
um olho. Nós ficamos longe de arqueirismo e levantamento de peso, contudo, querendo
guardar esses para as nossas sessões particulares.
Os Gamemakers aparecem cedo no primeiro dia. Mais ou menos vinte homens e mulheres
vestidos em robes roxos escuros. Eles se sentam em estrados elevados que cercam o ginásio,
as vezes perambulando nos arredores para nos observar, rabiscando anotações, outras vezes
comendo no banquete infinito que foi preparado para eles, ignorando-nos. Mas eles
realmente parecem estar de olho nos tributos do Distrito 12. Várias vezes eu olhei para cima e
descobri um fixo em mim. Eles se consultam com os treinadores durante as nossas refeições,
também. Nós vemos eles todos reunidos juntos quando voltamos.
O café da manhã e o jantar são servidos no chão, mas no almoço, nós vinte e quatro comemos
em uma sala de jantar fora do ginásio. A comida é arrumada em carrinhos ao redor da sala e
você se serve. Os Tributos Profissionais tendem a se reunir brutalmente ao redor de uma
mesa, como se para provar sua superioridade, que eles não tem medo um do outro e
consideram o resto de nós indignos de sermos notados. A maioria dos outros tributos senta
sozinho, como ovelhas perdidas. Ninguém diz uma palavra para nós. Peeta e eu comemos juntos, e já que Haymitch fica nos evitando sobre isso, tentamos manter uma
conversa amigável durante as refeições.
Não é fácil achar um tópico. Falar de casa é doloroso. Falar do presente é insuportável. Um dia,
Peeta esvazia nossa cesta de pães e aponta como eles foram cuidadosos em incluir os tipos
dos distritos junto com o pão refinado do Capitol. O pão de forma em formato de peixe
pintado de verde com algas do Distrito 4. O pãozinho de lua crescente pontilhado com
sementes do Distrito 11. De algum modo, apesar de ser feito do mesmo negócio, parece um
bocado mais apetitoso do que as feias gotas e biscoitos que são a comida padrão em casa.
"E aí está," diz Peeta, cavoucando os pães de volta na cesta.
"Você certamente sabe um monte," eu digo.
"Só sobre pães," ele diz. "Está bem, agora ria como se eu tivesse dito algo engraçado."
Ambos damos um tipo de risada convincente e ignoramos as encaradas ao redor da sala.
"Está certo, eu ficarei sorrindo alegremente e você fala," diz Peeta. Está cansando nós dois, a
instrução de Haymitch para ser amigável. Porque desde que eu bati a minha porta, há um frio
no ar entre nós. Mas temos nossas ordens.
"Já te contei de quando fui perseguida por um urso?" Eu pergunto.
"Não, mas parece fascinante," diz Peeta.
Eu tento e animo meu rosto enquanto relembro do evento, uma história verdadeira, na qual
eu tolamente desafiei um urso negro sobre os direitos de uma colméia. Peeta ri e faz
perguntas exatamente no momento certo. Ele é muito melhor nisso do que eu sou.
No segundo dia, enquanto estamos jogando uma lança, ele sussurra para mim. "Acho que
temos uma sombra."
Eu jogo minha lança, na qual eu não sou tão ruim, na verdade, se eu não tiver que jogar de
muito longe, e vejo a garotinha do Distrito 11 de pé um pouco para trás, observando-nos. Ela é
a de doze anos, aquela que me lembrou bastante de Prim na estatura. De perto ela parece ter
dez. Ela tem olhos brilhantes e escuros e pele marrom acetinada e fica inclinada na ponta do
pé com seus braços ligeiramente estendidos de lado, como se pronta para levantar vôo ao
mais leve som. É impossível não pensar em um pássaro.
Eu pego outra lança enquanto Peeta joga. "Eu acho que o nome dela é Rue," ele diz suavemente.
Eu mordo meu lábio. Rue é uma pequena flor amarela que cresce na Clareira. Rue. Primrose.
Nenhuma das duas conseguiria fazer a balança atingir trinta e um quilos mesmo ensopadas.
"O que podemos fazer quanto a isso?" Eu pergunto a ele, mais duramente do que eu
pretendia.
"Não há nada a fazer," ele diz de volta. "Só conversando."
Agora que eu sei que ela está ali, é difícil ignorar a criança. Ela desliza e se junta a nós em
estações diferentes. Como eu, ela é esperta com plantas, escala com ligeireza, e tem boa mira.
Ela consegue atingir o alvo todas as vezes com o estilingue. Mas o que é um estilingue contra
um macho de 100 quilos com uma espada?
De volta no andar do Distrito 12, Haymitch e Effie nos interrogam durante o café da manhã e o
jantar sobre cada momento do dia. O que fizemos, quem nos observou, como os outros
tributos nos avaliam. Cinna e Portia não estão por perto, então não há ninguém para
acrescentar sanidade às refeições. Não que Haymitch e Effie estejam brigando mais. Ao invés,
eles parecem ser uma só mente, determinada a nos colocar em forma. Cheios de direções sem
fim sobre o que devemos fazer e não fazer no treinamento. Peeta é mais paciente, mas eu fico
cheia e de mal humor.
Quando finalmente escapamos para cama na segunda noite, Peeta murmura, "Alguém deveria
dar uma bebida a Haymitch."
Eu faço um som que está entre uma bufada e uma risada. Então me paro. Está mexendo muito
com a minha mente, tentar ter noção de quando supostamente somos amigos e quando não
somos. Pelo menos quando formos para a arena, eu saberei em que pé estamos. "Não. Não
finjamos quando não há ninguém por perto."
"Tudo bem, Katniss," ele diz cansadamente. Depois disso, só falamos na frente das pessoas.
No terceiro dia de treinamento, eles começam a nos chamar do almoço para nossas sessões
particulares com os Gamemakers. Distrito por distrito, primeiro o garoto, então a garota
tributo. Como sempre, o Distrito 12 é condenado a ser o último. Nós nos tardamos na sala de
jantar, não certos de onde mais ir. Ninguém volta uma vez que tenham partido. Enquanto a
sala se esvazia, a pressão para parecer amigável se alivia. Na hora que chamam Rue, somos
deixados sozinhos. Nós nos sentamos em silêncio até que eles evocam Peeta. Ele se levanta.
"Lembre-se o que Haymitch disse sobre ter certeza de jogar os pesos." As palavras saem da
minha boca sem permissão.
""Obrigado. Eu irei," ele diz. "Você... atire diretamente."
Eu concordo. Eu não sei por que eu disse algo. Apesar de que, se eu for perder, eu prefiro que
Peeta vença do que os outros. É melhor para o nosso distrito, para minha mãe e Prim.
Após cerca de quinze minutos, eles chamam o meu nome. Eu aliso meu cabelo, coloco meus
ombros para trás, e entro no ginásio. Instantaneamente, eu sei que estou encrencada. Eles
estão aqui há muito tempo, os Gamemakers. Estiveram sentados por outras vinte e três
demonstrações. Tomaram muito vinho, a maioria deles. Querem mais do que tudo ir para
casa.
Não há nada que eu possa fazer a não ser continuar com o plano. Eu ando até a estação de
arqueirismo. Ah, as armas! Eu estava louca para colocar minhas mãos nelas há dias! Arcos
feitos de madeira e plástico e metal e material que eu nem mesmo sei o nome. Flechas com
penas cortadas em linhas uniformes perfeitas. Eu escolho um arco, penduro-o, e amarro o
coldre de flechas combinando por sobre o meu ombro. Há uma linha de tiro, mas é por demais
limitada. O centro de um círculo padrão e silhuetas humanas. Eu ando até o centro do ginásio
e escolho meu primeiro alvo. O boneco usado para prática de faca. Mesmo quando recuo com
o arco, eu sei que algo está errado. A corda é mais apertada do que a que eu uso em casa. A
flecha é mais rígida.
Eu erro o boneco por alguns poucos centímetros e perco o pouco de atenção que eu havia
conseguido. Por um instante, fico humilhada, então eu me dirijo de volta para o centro do
círculo. Eu atiro novamente e novamente até eu me acostumar com essas novas armas.
De volta ao centro do ginásio, eu tomo minha posição inicial e espeto o boneco bem no
coração. Então eu desfaço a corda que segura o saco de areia de boxe, e o saco se abre
enquanto cai com tudo no chão. Sem parar, eu rolo de ombros para frente, levanto-me com
um joelho, e mando uma flecha em uma das luzes penduradas acima do chão do ginásio. Uma
chuva de faíscas estoura do ornamento.
É um tiro excelente. Eu me viro para os Gamemakers. Alguns estão acenando em aprovação,
mas a maioria deles está fixada em um porco assado que acabou de chegar em sua mesa do
banquete.
De repente eu fico furiosa, que com a minha vida em risco, eles nem mesmo tem a decência de
prestar atenção em mim. Que um porco morto está roubando a minha cena. Meu coração
começa a martelar, eu consigo sentir o meu rosto queimando. Sem pensar, eu puxo uma
flecha do meu coldre e mando-a diretamente para a mesa dos Gamemakers. Eu ouço gritos de
amedrontamento enquanto as pessoas recuam. A flecha espeta a maçã na boca do porco e a
alfineta na parede atrás dele. Todos me encaram em descrença.
"Obrigada pela sua atenção," eu digo. Então eu dou uma ligeira saudação e ando diretamente
na direção da saída sem ser dispensada.

8

Enquanto eu passo em direção ao elevador, arremesso meu arco para um lado e meu coldre
para o outro. Eu passo esbarrando pelos Avoxes boquiabertos que guardam os elevadores e
bato no botão doze com meu punho. As portas deslizam juntas e eu me movo rapidamente
para cima. Eu na verdade o faço voltar para o chão antes que minhas lágrimas comecem a
correr pelas minhas bochechas. Posso ouvir os outros me chamando da sala de estar, mas eu
vou voando pelo hall em direção ao meu quarto, abro a porta, e me jogo na cama. Então eu
realmente começo a soluçar.
Agora eu fiz! Agora eu realmente arruinei tudo! Se eu tinha mesmo um fantasma de chance,
sumiu quando eu mandei aquela flecha voando para os Gamemakers. O que eles farão comigo
agora? Prender-me? Executar-me? Cortar a minha língua e me tornar uma Avox, assim eu
posso esperar pelos futuros tributos de Panem? O que eu estava pensando, atirando nos
Gamemakers? É claro, eu não estava pensando, eu estava atirando na maçã porque eu estava
muito irritada por ser ignorada. Eu não estava tentando matar nenhum deles. Se eu estivesse,
eles estariam mortos!
Oh, o que importa? Não é como se eu fosse ganhar os Games de qualquer forma. Quem se
importa com o que eles fazem comigo? O que me assusta de verdade é o que eles podem fazer
com a minha mãe e Prim, como minha família pode sofrer agora por causa da minha
impulsividade. Eles vão tomar seus poucos pertences, ou mandar a minha mãe para prisão e
Prim para a casa comunitária, ou matá-las? Eles não a matariam, matariam? Por que não? O
que importa a eles?
Eu devia ter ficado e me desculpado. Ou rido, como se fosse uma grande brincadeira. Então
talvez eu achasse alguma indulgência. Mas em vez disso corri daquele lugar da maneira mais desrespeitosa possível.
Haymitch e Effie estão batendo na minha porta. Eu grito para eles irem embora e
eventualmente eles vão. É preciso pelo menos uma hora para eu chorar tudo para fora. Então
eu só fico deitada encolhida na cama, afagando os lençóis de seda, assistindo ao pôr-do-sol
acima do doce e artificial Capitol.
Inicialmente, eu espero os guardas virem me buscar. Mas à medida que o tempo passa, parece
menos possível. Eu me acalmo. Eles ainda precisam de uma garota tributo do Distrito 12, não
precisam? Se os Gamemakers querem me punir, eles podem fazê-lo publicamente. Esperar até
eu estar na arena e atiçar animais selvagens famintos em mim. Pode apostar que eles terão
certeza que eu não tenho um arco e uma flecha para me defender.
Antes disso, eles me darão uma pontuação tão baixa, que ninguém em juízo certo iria me
patrocinar. Isso é o que vai acontecer hoje à noite. Visto que o treinamento não é aberto a
observadores, os Gamemakers anunciam uma pontuação para cada jogador. Dá a audiência
um ponto de partida para as apostas que continuarão através do Games. O número, que é
entre um e doze, um sendo irremediavelmente ruim e doze sendo alta de forma inalcançável,
anuncia a promessa de um tributo. A marca não é uma garantia de que a pessoa ganhará. É
apenas uma indicação do potencial que o tributo mostrou no treino. Freqüentemente, por
causa das variáveis na real arena, tributos com alta pontuação caem quase imediatamente. E
há poucos anos, um garoto que ganhou os Games recebeu apenas um três. Ainda assim, os
pontos podem ajudar ou prejudicar um tributo individualmente em termos de patrocínio. Eu
estava esperando que minhas habilidades em atirar pudessem me conseguir um seis ou sete,
mesmo se eu não sou particularmente poderosa. Agora tenho certeza que terei a pontuação
mais baixa dos vinte e quatro. Se ninguém me patrocinar, minhas chances de ficar viva
diminuem para quase zero.
Quando Effie bate na porta para me chamar para o jantar, decido que posso ir também. As
pontuações serão televisionadas hoje à noite. Não é como se eu pudesse esconder o que
aconteceu para sempre. Eu vou para o banheiro e lavo minha face, mas ainda está vermelha e
manchada.
Todos estão esperando na mesa, até Cinna e Portia. Eu queria que os estilistas não tivessem
aparecido porque, por alguma razão, eu não gosto da idéia de desapontá-los. É como se eu
tivesse jogado fora todo o bom trabalho que eles fizeram nas cerimônias de abertura sem
pensar. Evito olhar para todo mundo enquanto tomo uma pequena colherada da sopa de
peixe. O salgado me lembra as minhas lágrimas.
Os adultos começam a jogar conversa fora sobre a previsão do tempo, e eu deixo os meus
olhos encontrar os de Peeta. Ele levanta as sobrancelhas. Uma pergunta. O que aconteceu? Eu
só balanço um pouco a minha cabeça. Então, enquanto eles estão servindo o prato principal,
eu ouço Haymitch dizer, "Ok, chega de conversa fiada, só o quão ruim vocês foram hoje?"
Peeta tem um sobressalto. "Eu não sei se isso importa. Até o momento que eu apareci,
ninguém nem se importou em olhar para mim. Eles estavam cantando algum tipo de canção
de bebida, eu acho. Então, eu atirei alguns objetos pesados até que eles me disseram que eu
podia ir."
Isso me faz sentir um pouquinho melhor. Não é como se Peeta tivesse atacado os
Gamemakers, mas ao menos ele estava provocando, também.
"E você, querida?" diz Haymitch.
De alguma forma Haymitch me chamando de querida me marca o suficiente para que eu pelo
menos seja capaz de falar. "Eu atirei uma flecha nos Gamemakers."
Todo mundo pára de comer. "Você o quê?" O horror na voz de Effie confirma minhas piores
suspeitas.
"Eu atirei uma flecha neles. Não exatamente neles. Na direção deles. Como Peeta disse, eu
estava atirando e eles estavam me ignorando e eu só... eu só perdi a minha cabeça, então
atirei na maçã da boca daquele estúpido porco assado deles!" eu disse audaciosamente.
"E o que eles disseram?" diz Cinna cuidadosamente.
"Nada. Ou eu não sei. Eu saí depois disso," digo.
"Sem ser dispensada? arfa Effie.
"Eu me dispensei," digo. Lembro de como prometi a Prim que eu tentaria de verdade ganhar e
senti como se uma tonelada de carvão tivesse caído sobre mim.
"Bem, é isso," diz Haymitch. Então ele passa manteiga no pão.
"Você acha que eles me prenderão?" pergunto. "Duvido. Seria um saco te substituir a esse
ponto," diz Haymitch.
"E a minha família?" digo. "Elas serão punidas?"
"Não acho. Não faria muito sentido. Veja, eles teriam que revelar o que aconteceu no Centro
de Treinamento para ter um efeito que valha a pena na população. Pessoas saberiam o que
você fez. Mas eles não podem visto que é um segredo, portanto seria uma perda de tempo."
Diz Haymitch. "É mais provável que eles tornem sua vida um inferno na arena."
"Bem, eles já prometeram fazer isso conosco de qualquer forma," diz Peeta.
"Verdade," diz Haymitch. E eu percebo que o impossível tem acontecido. Eles estão de fato me
animando. Haymitch pega uma costela de porco com seus dedos, o que faz Effie congelar, e
embebeda no seu vinho. Ele arranca um pedaço de carne e começa a rir. "Como foram as caras
deles?"
Posso sentir as beiras da minha boca subindo. "Chocados. Terrificados. Uh, ridículos, alguns
deles." Uma imagem estoura dentro da minha cabeça. "Um homem jogou para trás uma tigela
de ponche."
Haymitch gargalha e todos nós começamos a rir exceto Effie, embora até ela esteja abafando
um sorriso. "Bem, eles mereceram. É trabalho deles prestar atenção em você. E só porque
você vem do Distrito Doze não é desculpa para te ignorarem." Então seus olhos olham ao
redor como se ela tivesse dito algo escandaloso. "Sinto muito, mas é assim que eu penso," ela
diz para ninguém em particular.
"Eu vou conseguir uma pontuação muito ruim," digo.
"Pontuações apenas importam se eles são muito bons, ninguém presta muita atenção em
pontuações ruins ou medíocres. Pelo o que eles sabem, você podia estar escondendo seus
talentos para conseguir uma pontuação baixa de propósito. Pessoas usam essa estratégia,"
disse Portia.
"Eu espero que seja assim que as pessoas interpretem o quatro que eu provavelmente
conseguirei," diz Peeta. "E olhe lá. Sério, não há nada menos impressionante que assistir uma
pessoa pegar uma bola pesada e jogá-la alguns metros. Uma quase caiu no meu pé."
Eu dei uma risada para ele e percebi que estava faminta. Corto um pedaço do porco, passo no
purê de batatas, e começo a comer. Está ok. Minha família está salva. E se eles estão salvos,
nenhum dano real foi feito.
Depois do Jantar, nós nos sentamos na sala de estar para assistir o anunciamento das
pontuações na televisão. Primeiro eles mostram uma foto do tributo, então mostram suas
pontuações abaixo. Os Tributos Profissionais naturalmente conseguem notas de oito a dez. A
maioria dos outros jogadores tem média cinco. Surpreendentemente, a pequena Rue vem com
um sete. Eu não sei o que ela mostrou aos jurados, mas ela é tão pequena que deve ter sido
impressionante.
Distrito 12 vem por último, como o usual. Peeta consegue um oito do, no mínimo, par de
Gamemakers que deviam tê-lo assistido. Eu empurro minhas unhas contra minhas palmas
enquanto meu rosto aparece, esperando o pior. Então eles mostram o número onze na tela.
Onze!
Effie Trinket solta um berro, e todo mundo está batendo nas minhas costas e me animando e
me parabenizando. Mas isso não parece real.
"Deve ter sido um engano. Como... como isso pôde acontecer?" eu pergunto a Haymitch.
"Acho que eles gostaram do seu temperamento," ele diz. "Eles tem um show para carregar.
Eles precisam de alguns jogadores esquentadinhos."
"Katniss, a garota que estava em chamas," diz Cinna e me dá um abraço. "Oh, espere até você
ver seu vestido para a entrevista."
"Mais chamas?" eu pergunto.
"De uma espécie," ele diz de forma travessa.
Peeta e eu parabenizamos um ao outro, outro momento estranho. Ambos fizemos bem, mas o
que isso significa para o outro? Eu escapo para o meu quarto o mais rápido possível e entro
sob os cobertores. O estresse do dia, particularmente o choro, me esgotou. Eu divago,
suavizada, aliviada, e com o número onze ainda brilhando atrás das minhas pálpebras.
No amanhecer, eu deito na cama por um momento, assistindo o sol aparecer numa bela
manhã. É domingo. Um dia fora de casa. Pergunto-me se Gale já está na floresta. Usualmente
nós devotamos todo o Domingo para estocar para toda a semana. Levantando cedo, caçando e
colhendo, então negociando no Hob. Penso em Gale sem mim. Ambos podemos caçar
sozinhos, mas somos melhor como um par. Particularmente se estamos tentando pegar uma
caça sozinhos. Mas também nas pequenas coisas, ter um par suaviza a carga, poderia mesmo
fazer a árdua tarefa de preencher a mesa da minha família divertida.
Eu estava lutando sozinha por uns seis meses quando eu pela primeira vez vi Gale na floresta.
Era um Domingo de Outubro, o ar frio e pungente como coisas mortas. Eu tinha passado a
manhã competindo com os esquilos por nozes e a tarde suavemente quente vadeando em
lagoas rasas colhendo katniss. A única comida que eu tinha pegado era um esquilo que tinha
praticamente corrido por sobre meus dedos dos pés em busca de bolotas, mas os animais
ainda estariam em ação quando a neve queimasse minhas outras fontes de comida. Tendo
desviado mais longe do que o habitual, eu estava voltando apressada para casa, arrastando
meu saco de tecido grosso e eu percebi um coelho morto. Ele estava pendurado pelo seu
pescoço por um fino fio uns trinta centímetros acima da minha cabeça. Uns quinze metros
mais longe estava outro.
Eu reconheci a armadilha porque meu pai as tinha usado. Quando a presa é pega, ela é puxada
para o ar fora do alcance de animais famintos. Eu tinha tentado usar armadilhas todo o verão
sem sucesso, então eu não podia evitar deixar cair meu saco para examiná-la. Meus dedos
estavam quase no fio acima dos coelhos quando uma voz chamou. "Isso é perigoso."
Eu pulei para trás quando Gale se materializava de trás de uma árvore. Ele devia estar me
assistindo o tempo todo. Ele tinha apenas quatorze, mas tinha claramente 1,80m e era tão
adulto para mim. Eu o tinha visto por aí em Seam e na escola. E uma outra vez. Ele tinha
perdido o pai na mesma explosão que matou o meu. Em Janeiro, eu tinha ficado do lado
enquanto ele recebia sua medalha de coragem do Edifício da Justiça, outro filho mais velho
sem pai. Lembrei de seus dois irmãos pequenos agarrando sua mãe, uma mulher cuja barriga
inchada anunciava que ela estava apenas há alguns dias de dar a luz.
"Qual é o seu nome?" ele disse, aproximando-se e soltando o coelho da armadilha. Ele tinha
outros três pendurados no seu cinto.
"Katniss," disse, mal audível.
"Bem, Catnip, a punição por roubar é a morte, ou você não tinha ouvido?" ele disse.
"Katniss," eu disse mais alto. "E eu não estava roubando. Eu só queria ver sua armadilha. As
minhas nunca pegam nada."
Ele fez uma cara feia para mim, não convencido. "Então de onde você conseguiu o esquilo?"
"Eu atiro." Puxei meu arco do meu ombro. Eu ainda estava usando a versão pequena que meu
pai tinha feito para mim, mas eu estava praticando com o maior quando podia. Estava
esperando que com a primavera eu pudesse ser capaz de derrubar uma caça maior.
Os olhos de Gale se fixaram no arco. "Posso vê-lo?" eu entreguei a ele. "Só lembre-se, a
punição por roubar é a morte."
Aquela foi a primeira vez que eu o vi sorrir. Transformava-o de alguém ameaçador para
alguém que você desejaria conhecer. Mas levou alguns meses para eu retornar esse sorriso.
Nós conversamos sobre caçada, então. Eu contei a ele que eu podia ser capaz de conseguir
para ele um arco se ele tinha algo para negociar. Não comida. Eu queria conhecimento. Eu
queria preparar minhas próprias emboscadas que pegassem uma correia de coelhos gordos
em um dia. Ele concordou que algo podia ser trabalhado. Enquanto as estações passavam, nós
rancorosamente começamos a dividir nosso conhecimento, nossas armas, nossos lugares
secretos que eram cheios de ameixas selvagens ou perus. Ele me ensinou a capturar com a
armadilha e a pescar. Eu mostrei a ele quais as plantas para comer e eventualmente dei a ele
um dos nossos preciosos arcos. E então um dia, sem nenhum de nós dizê-lo, tornamo-nos um
time. Dividindo o trabalho e as presas. Tendo certeza que ambas nossas famílias tinham
comida.
Gale me dava uma sensação de segurança que eu tinha carência desde a morte do meu pai.
Seu companheirismo substituiu as longas horas solitárias na floresta. Eu me tornei muito
melhor em caçar quando não tinha que olhar por sobre meu ombro constantemente, quando
alguém estava assistindo minhas costas. Mas ele se tornou muito mais do que um
companheiro de caçada. Ele se tornou meu confidente, alguém com quem eu podia dividir os
pensamentos que eu nunca podia dar voz dentro do muro. Em troca, ele confiou em mim.
Estar fora na floresta com Gale... às vezes eu era feliz de verdade.
Eu o chamei de amigo, mas no último ano parecia uma palavra muito casual para o que Gale
era para mim. Uma pontada de saudades dispara pelo meu peito. Se ele só tivesse aqui comigo
agora! Mas, claro, eu não quero isso. Eu não o quero na arena onde ele estaria morto em
poucos dias. Eu só... eu só sentia a falta dele. E odeio estar tão sozinha. Ele sente minha falta?
Ele deve.
Penso no onze brilhando sob meu nome na última noite. Sei exatamente o que ele diria para
mim. "Bem, há algum espaço para melhorias ali." E então ele me daria um sorriso e eu o
retornaria sem hesitação agora.
Não posso evitar comparar o que eu tenho com Gale com o que eu finjo que tenho com Peeta.
Como eu nunca questiono os motivos de Gale quando eu não faço nada mais que duvidar do
último. Não é uma comparação justa, de fato. Gale e eu estávamos jogando juntos pela
necessidade mútua de sobreviver. Peeta e eu sabemos que a sobrevivência do outro significa a
própria morte. Como se iludir com isso?
Effie está batendo na porta, lembrando-me que há outro "grande, grande, grande dia!" pela
frente. Amanhã a noite será nossa entrevista na televisão. Acho que toda a equipe terá suas
mãos cheias nos preparando para isso.
Eu me levanto e tomo um banho rápido, sendo um pouco mais cuidadosa com os botões em
que eu bato, e sigo em direção ao salão de Jantar. Peeta, Effie, e Haymitch estão reunidos ao
redor da mesa conversando em vozes baixas. Isso parece estranho, mas a fome vence minha
curiosidade e eu carrego meu prato com o café da manhã antes de me juntar a eles.
O cozido é feito com pedaços de cordeiro e ameixas secas hoje. Perfeito no fundo de arroz
selvagem. Eu despejo aproximadamente meio monte quando noto que ninguém está falando.
Tomo um grande gole de suco de laranja e seco minha boca. "Então, o que está acontecendo?
Você está me treinando para as entrevistas hoje, certo?"
"Certo," diz Haymitch.
"Você não tem que esperar até eu terminar. Eu posso escutar e comer ao mesmo tempo,"
digo.
"Bem, houve alguma mudança de planos. Sobre nossa atual abordagem," diz Haymitch.
"O que é?" pergunto. Não estou certa sobre qual é a nossa atual abordagem. Tentando
parecer medíocre na frente dos outros tributos é o último pedaço de estratégia que eu
lembro.
Haymitch encolhe os ombros. "Peeta me pediu para ser treinado separadamente."

9

Traição. Essa é a primeira coisa que eu sinto, o que é ridículo. Para que houvesse traição, deveria ter havido confiança antes.
Entre Peeta e eu. E confiança não fizera parte do acordo. Somos tributos. Mas o garoto que
tinha arriscado levar uma surra para me dar pão, aquele que me acalmou na carruagem, que me cobriu no caso da Avox ruiva, que insistiu para que Haymitch conhecesse
minhas
habilidades de caça... havia alguma parte de mim que não conseguia evitar confiar nele?
Por outro lado, estou aliviada por podermos parar com o fingimento de sermos amigos.
Obviamente, qualquer tênue conexão que tínhamos tolamente formado tinha se partido. E
bem na hora, também.
Os Games começam em dois dias, e confiança só será uma fraqueza. O que quer que tenha
ativado a decisão do Peeta ­ e eu suspeito que tenha a ver comigo ter sido melhor que ele no
treinamento ­ eu deveria simplesmente estar grata por isso. Talvez ele finalmente tenha
aceitado o fato de que quanto mais cedo nós reconhecermos abertamente que somos
inimigos, melhor.
"Ótimo," eu digo. "Então qual o cronograma?"
"Cada um de vocês terá quatro horas com a Effie para a apresentação e quatro comigo para
conteúdo," diz Haymitch. "Você começa com a Effie, Katniss."
Eu não consigo imaginar o que Effie pode me ensinar que levará quatro horas, mas ela me põe
para trabalhar até o último minuto. Vamos para o meu quarto e ela me coloca em um vestido
comprido e sapatos de salto alto, não os que eu estarei usando para a entrevista verdadeira, e
me instrui a andar. Os sapatos são a pior parte. Eu nunca usei salto alto e eu não consigo me
acostumar a basicamente ficar balançando nas pontas dos pés.
Mas Effie corre em cima deles o tempo todo, e eu estou determinada que se ela consegue
fazer isso, eu também consigo. O vestido oferece outro problema.
Fica enrolando ao redor dos meus sapatos, então, é claro, eu o puxo para cima, e então Effie
lança-se sobre mim como um falcão, batendo nas minhas mãos e gritando, "Não acima do
tornozelo!" Quando eu finalmente conquisto andar, há ainda sentar, postura ­ aparentemente
eu tenho uma tendência de abaixar a minha cabeça ­ comtato visual, gestos da mão, e sorrir.
Sorrir é quase todo sobre sorrir mais. Effie me faz dizer uma centena de frases banais
começando com um sorriso, enquanto sorrio, ou terminando com um sorriso. Na hora do
almoço, os músculos nas minhas bochechas estão contorcendo-se por uso exagerado.
"Bem, esse é o melhor que eu consigo," Effie diz com um suspiro. "Lembre-se, Katniss, você
quer que a audiência goste de você."
"E você não acha que eles gostarão?" Eu pergunto.
"Não se você olhar feio para eles o tempo todo. Por que você não guarda isso para a arena? Ao
invés, pense que você está entre amigos," diz Effie.
"Eles estão apostando quanto tempo eu viverei!" Eu estouro. "Eles não são meus amigos!"
"Bem, tente e finja!" retruca Effie. Então ela se recompõe e sorri radiantemente para mim.
"Viu, assim. Eu estou sorrindo para você mesmo que você esteja me irritando."
"Sim, parece muito convincente," eu digo. "Eu vou comer." Eu tiro meus saltos e piso
pesadamente até a sala de Jantar, subindo minha saia até as minhas coxas.
Peeta e Haymitch parecem estar de muito bom humor, então eu acho que a sessão de
conteúdo deve ser uma melhora dessa manhã. Eu não podia estar mais errada. Após o almoço,
Haymitch me leva para a sala de estar, me direciona para o sofá, e então só franze a testa para
mim por um tempo.
"O quê?" Eu finalmente pergunto.
"Estou tentando descobrir o que fazer com você," ele diz. "Como vamos apresentá-la. Você vai
ser charmosa? Arredia? Feroz? Até agora, você está brilhando como uma estrela. Você se
voluntariou para salvar sua irmã. Cinna te fez parecer inesquecível. Você tirou a maior nota do
treinamento. As pessoas estão intrigadas, mas ninguém sabe quem você é. A impressão que
você causar amanhã decidirá exatamente o que eu conseguirei para você em termos de
patrocinadores," diz Haymitch.
Tendo observado as entrevistas dos tributos a minha vida toda, eu sei que há uma verdade no
que ele está dizendo. Se você conquistar a multidão, sendo ou humorística ou brutal ou
excêntrica, você ganha boas graças.
"Qual a abordagem do Peeta? Ou eu não posso perguntar?" Eu digo.
"Amigável. Ele tem um tipo de humor auto-depreciativo natural," diz Haymitch. "Enquanto que
quando você abre sua boca, você parece mais mal-humorada e hostil."
"Não pareço!" Eu digo.
"Por favor. Eu não sei de onde você puxou aquela garota alegre e acenadora de antes na
carruagem, mas eu não a vi antes ou desde então," diz Haymitch.
"E você me deu tantas razões para ser alegre," eu contrapus.
"Mas você não tem que me agradar. Eu não vou te patrocinar. Então finja que eu sou a
audiência," diz Haymitch. "Me fascine."
"Ótimo!" Eu rosno. Haymitch toma o papel de entrevistador e eu tento responder suas
perguntas de uma maneira vencedora. Mas eu não consigo. Eu estou nervosa demais com
Haymitch pelo que ele disse e que eu ainda tenho que responder as perguntas. Tudo em que
consigo pensar é em como o negócio todo é injusto, o Hunger Games. Por que eu estou
pulando de um lado para o outro como algum cão treinado tentando agradar pessoas que eu odeio?
Quanto mais a entrevista prolonga-se, mais a minha fúria parece subir à superfície, até que eu
literalmente estou cuspindo respostas para ele.
"Está certo, chega," ele disse. "Temos que encontrar outro ângulo. Não só você é hostil, como
eu não sei nada sobre você. Eu te fiz cinqüenta perguntas e ainda não faço ideia da sua vida, a
sua família, do que você gosta. Eles querem saber sobre você, Katniss."
"Mas eu não quero que eles saibam! Eles já estão tomando o meu futuro! Eles não podem ter
as coisas que eram importantes para mim no passado!" Eu digo.
"Então minta! Invente alguma coisa!" diz Haymitch.
"Não sou boa mentindo," eu digo.
"Bem, é melhor você aprender rápido. Você tem tanto charme quanto uma lesma morta," diz
Haymitch.
Ai. Isso machuca. Até mesmo Haymitch deve saber que ele foi duro demais, porque sua voz
suaviza. "Tenho uma ideia. Tente agir humilde."
"Humilde," eu ecoo.
"Que você não consegue acreditar que uma menininha do Distrito Doze se deu tão bem. O
negócio todo foi mais do que você poderia ter sonhado. Fale sobre as roupas do Cinna. Como
as pessoas são legais. Como a cidade te fascina. Se você não vai falar sobre se, pelo menos
elogie a audiência. Simplesmente fique virando de volta, está bem. Entusiasme-se."
As próximas horas são agonizantes. De uma só vez, fica claro que eu não consigo me
entusiasmar. Nós tentamos o eu metida, mas eu simplesmente não tenho a arrogância.
Aparentemente, eu sou "vulnerável" demais para ferocidade. Eu não sou vivaz. Engraçada.
Sexy. Ou misteriosa.
Ao final da sessão, eu não sou ninguém. Haymitch começou a beber por volta do vivaz, e uma
beirada maldosa arrastou-se para sua voz. "Eu desisto, querida. Só responda as perguntas e
tente não deixar a audiência ver o quanto você os despreza abertamente."
Eu janto naquela noite no meu quarto, pedindo um número escandaloso de iguarias, comendo
até passar mal, e então descontando minha raiva do Haymitch, dos Hunger Games, de cada ser
vivo em Capitol ao quebrar pratos pelo meu quarto. Quando a garota do cabelo vermelho vem
para arrumar minha cama, seus olhos se arregalam com a bagunça. "Só deixa!" Eu grito para
ela. "Só deixa isso em paz!"
Eu a odeio, também, com seus sabidos olhos reprovadores que me chamam de covarde, de
monstro, de fantoche de Capitol, tanto agora quanto antes. Para ela, a justiça deve finalmente
estar acontecendo. Por fim minha morte ajudará a pagar pela vida do garoto na floresta.
Mas ao invés de fugir da sala, a garota fecha a porta atrás de si e vai para o banheiro. Ela volta
com um pano úmido e limpa meu rosto gentilmente, então limpa o sangue de um prato
quebrado das minhas mãos. Por que ela está fazendo isso? Por que eu estou deixando-a?
"Eu devia ter tentado salvá-la," eu sussurro.
Ela balança sua cabeça. Isso significa que estávamos certos ao ficar parados? Que ela me
perdoou?
"Não, foi errado," eu digo.
Ela bate em seus lábios com seus dedos e então aponta para o meu peito. Eu acho que ela
quer dizer que eu simplesmente teria acabado uma Avox, também. Provavelmente teria. Uma
Avox ou morta.
Eu passo a próxima hora ajudando a garota ruiva limpar o quarto. Quando todo o lixo foi
jogado no dispositivo de coleta e tratamento de lixo e a comida fora limpada, ela arruma a
minha cama. Eu engatinho entre os lençóis como uma menina de cinco anos e deixo-a me
ajeitar. Então ela se vai. Eu quero que ela fique até eu pegar no sono. Estar lá quando eu
acordar. Eu quero a proteção dessa garota, mesmo que ela nunca tenha tido a minha.
De manhã, não é a garota, mas sim meu time de preparação que está sobre mim. Minhas
lições com Effie e Haymitch acabaram. Esse dia pertence ao Cinna. Ele é minha última
esperança. Talvez ele possa me fazer parecer tão maravilhosa que ninguém ligará para o que
saia da minha boca.
O time trabalha em mim até o fim da tarde, transformando a minha pele em um cetim
resplandecente, gravando padrões nos meus braços, pintando desenhos de chamas nas
minhas vinte unhas perfeitas. Então Venia trabalha no meu cabelo, entrelaçando tranças de
vermelho em um padrão que começa no meu ouvido esquerdo, se enrola ao redor da minha
cabeça, e então cai em uma trança pelo meu ombro direito. Eles limpam o meu rosto com uma
camada de maquiagem pálida e desenham meus traços de volta. Enormes olhos negros, lábios
vermelhos cheios, cílios que desviam um pouco de luz quando eu pisco. Finalmente, eles
cobrem o meu corpo inteiro com um pó que me faz brilhar em poeira dourada.
Então Cinna entra com o que eu presumo ser meu vestido, mas eu não consigo realmente ver,
porque está coberto. "Feche seus olhos," ele ordena.
Eu consigo sentir a seda interior enquanto eles o deslizam pelo meu corpo nu, então o peso.
Deve ser uns dezoito quilos. Eu aperto a mão da Octavia enquanto eu cegamente coloco meus
sapatos, feliz por descobrir que eles são pelo menos cinco centímetros mais baixos do que o
par que a Effie me fez praticar. Há algum ajuste e manuseio. Então silêncio.
"Posso abrir meus olhos?" Eu pergunto.
"Sim," diz Cinna. "Abra-os."
A criatura de pé perante a mim no espelho inteiro veio de outro mundo. Onde peles brilham e
olhos relampejam e aparentemente eles fazem suas roupas de jóias. Porque o meu vestido,
ah, o meu vestido é inteiramente coberto em pedras preciosas reflexivas, vermelhas e
amarelas e brancas com um pouquinho de azul que acentua as pontas do desenho de chamas.
O movimento mais leve dá a impressão que eu sou engolfada por línguas de fogo.
Eu não estou bonita. Eu não estou linda. Eu estou tão radiante quanto o sol.
Por um tempo, simplesmente me encaramos. "Ah, Cinna," eu finalmente sussurro. "Obrigada."
"Gire para mim," ele diz. Eu estico meus braços e giro em um círculo. O time de preparação
grita em admiração.
Cinna dispensa o time e me faz mover com o vestido e os sapatos, que são infinitamente mais
manejáveis que os da Effie. O vestido paira de tal jeito que eu não tenho que levantar a saia
quando ando, deixando-me com menos uma coisa com a qual me preocupar.
"Então, todos prontos para a entrevista então?" pergunta Cinna. Eu consigo ver por sua
expressão que ele está falando com Haymitch. Que ele sabe o quanto eu sou terrível.
"Eu sou horrível. Haymitch me chamou de lesma morta. Não importa o que tentássemos, eu
não conseguia. Eu simplesmente não consigo ser uma dessas pessoas que ele quer que eu
seja," eu digo.
Cinna pensa nisso por um momento. "Por que você simplesmente não é você mesma?"
"Eu mesma? Isso não é nada bom, também. Haymitch diz que eu sou mal humorada e hostil,"
eu digo.
"Bem, você é... perto do Haymitch," diz Cinna com um sorriso irônico. "Eu não te acho isso. O
time de preparação te adora. Você até mesmo conquistou os Gamemakers. E quanto aos
cidadãos de Capitol, bem, eles não conseguem parar de falar sobre você. Ninguém consegue
evitar admirar o seu espírito."
Meu espírito. Esse é um novo pensamento. Eu não tenho certeza do que exatamente isso
significa, mas sugere que eu sou uma lutadora. De um jeito meio corajoso. Não é como se eu
nunca fosse amigável. Está bem, talvez eu não saia por aí amando todo mundo que eu
conheço, talvez meus sorrisos sejam difíceis de aparecer, mas eu realmente gosto de algumas
pessoas.
Cinna toma minhas mãos geladas nas suas quentes. "Suponha, quando você responder as
perguntas, que você acha que está se dirigindo a um amigo lá em casa. Quem seria seu melhor
amigo?" pergunta Cinna.
"Gale," eu digo instantaneamente. "Só que não faz muito sentido, Cinna. Eu nunca diria essas
coisas sobre mim ao Gale. Ele já as conhece."
"E quanto a mim? Você consegue pensar em mim como um amigo?" pergunta Cinna.
De todas as pessoas que eu conheci desde que eu deixei minha casa, Cinna é de longe a minha
favorita. Eu gostei dele de cara e ele não me decepcionou ainda. "Eu acho que sim, mas,"
"Eu vou estar sentado na plataforma principal com os outros estilistas. Você será capaz de
olhar diretamente para mim. Quando te fizerem uma pergunta, me encontre, e responda-a o
mais honestamente possível," diz Cinna.
"Mesmo se o que eu pensar for horrível?" Eu pergunto. Porque pode ser, sério.
"Especialmente se o que você acha é horrível," diz Cinna. "Você tentará?"
Eu aceno. É um plano. Ou pelo menos algo a que se agarrar.
Cedo demais é hora de ir. A entrevista se dá em um palco construído na frente do Centro de
Treinamento. Uma vez que eu deixo o meu quarto, serão só minutos até eu estar na frente da
multidão, das câmeras, de toda Panem.
Enquanto Cinna vira a maçaneta, eu paro sua mão. "Cina..." Eu estou completamente tomada pelo medo do palco.
"Lembre-se, eles já te amam," ele diz gentilmente. "Só seja você mesma."
Nós nos encontramos com o resto do povo do Distrito 12 no elevador. Portia e sua gangue
tinham trabalhado arduamente. Peeta parece formidável em um terno preto com ênfases de
chama. Enquanto parecemos bem juntos, é um alívio não estar vestida identicamente.
Haymitch e Effie estão todos arrumados para a ocasião. Eu evito Haymitch, mas aceito os
elogios de Effie. Effie pode ser cansativa e tola, mas ela não é destrutiva como o Haymitch.
Quando o elevador abre, os outros tributos estão sendo alinhados para tomar o palco. Todos
nós vinte e quatro sentamos em um grande arco durante as entrevistas. Eu serei a última, ou a
penúltima, já que a menina tributo precede o garoto de cada distrito. Como eu gostaria de ser
a primeira e acabar com esse negócio todo!
Agora eu terei que ouvir como todos os outros são vivazes, engraçados, humildes, ferozes, e
charmosos antes de eu ir. Além disso, a audiência vai começar a ficar entediante, exatamente
como os Gamemakers ficaram. E eu não posso exatamente atirar uma flecha na multidão para
chamar sua atenção.
Logo antes de desfilarmos até o palco, Haymitch aparece atrás de Peeta e eu e rosna,
"Lembre-se, vocês ainda são um casal feliz. Então ajam de acordo."
O quê? Eu achei que tínhamos abandonado isso quando Peeta pediu um treinamento
separado. Mas acho que esse era um negócio particular, não público. De qualquer jeito, não há
muita chance de interação agora, enquanto andamos em fila indiana até nossos assentos e
tomamos nossos lugares.
Simplesmente pisar no palco deixa minha respiração rápida e superficial. Eu consigo sentir
minha pulsação em minhas têmporas. É um alívio ir até a minha cadeira, porque com os saltos
e as minhas pernas tremendo, eu tenho medo de tropeçar. Apesar da noite estar caindo, a
Cidade Circular é mais clara que um dia de verão. Uma unidade de assentos elevados foi
organizada para os convidados de prestígio, com os estilistas comandando a fileira da frente.
As câmeras irão se virar para eles quando a multidão estiver reagindo ao seu trabalho. Uma
enorme sacada de uma construção lateral foi reservada para os Gamemakers. Equipes de
televisão reinvindicaram a maioria das outras sacadas. Mas a Cidade Circular e as avenidas que
a alimentam estão completamente lotadas de pessoas. Uma sala só para espectadores. Nas
casas e salões comunitários pelo país, cada televisão está ligada. Cada cidadão de Panem está
atento. Não haverá apagões hoje.
Caesar Flickerman, o homem que faz as entrevistas por mais de quarenta anos, saltita pelo
palco. É um pouco assustador, porque sua aparência permaneceu virtualmente imutável
durante todo esse tempo. Mesmo rosto debaixo de uma camada de maquiagem branca pura.
Mesmo penteado que ele tinge de uma cor diferente para cada Hunger Games. Mesmo terno
de cerimônia, azul escuro pingado com mil minúsculos bulbos elétricos que piscam como
estrelas.
Eles fazem cirurgia em Capitol, para fazer as pessoas parecerem mais jovens e mais magras. No
Distrito 12, parecer velho é meio que uma realização, já que tantas pessoas morrem cedo.
Você vê uma pessoa idosa e quer parabenizá-la por sua longevidade, perguntar o segredo da
sobrevivência. Uma pessoa rechonchuda é invejada porque ela não está apenas sobrevivendo
dia a dia como a maioridade de nós. Mas aqui é diferente. Rugas não são desejáveis. Uma
barriga redonda não é um sinal de sucesso.
Esse ano, o cabelo de Caesar é azul acinzentado e suas pálpebras e lábios estão cobertos com a
mesma matiz. Ele parece bizarro, mas menos assustador do que no ano passado, quando sua
cor fora carmesim e ele parecera estar sangrando. Caesar conta algumas piadas para aquecer a
audiência, mas então parte para os negócios.
A garota tributo do Distrito 1, parecendo provocadora em um vestido dourado transparente,
anda até o centro do palco para se juntar a Caesar para sua entrevista. Você consegue afirmar
que seu mentor não teve problema algum em bolar um ângulo para ela. Com aquele cabelo
loiro flutuante, olhos verde esmeralda, seu corpo alto e exuberante... ela é totalmente sexy.
Cada entrevista dura apenas três minutos. Então uma campainha soa e é a vez do próximo
tributo. Eu digo isso do Caesar, ele realmente faz seu melhor para deixar os tributos brilharem.
Ele é amigável, tenta deixar os nervosos à vontade, ri de umas piadas podres, e consegue
transformar uma resposta fraca em uma memorável somente pelo jeito com que ele reage.
Eu sento como uma dama, do jeito que Effie me mostrou, enquanto os distritos deslizam. 2, 3,
4. Todos parecem estar jogando de algum ângulo.
O garoto monstruoso do Distrito 2 é uma máquina de matar cruel. A garota de rosto de raposa
do Distrito 5 é dissimulada e elusiva, Eu avistei Cinna assim que ele tomou seu lugar, mas até
mesmo sua presença não conseguiu me relaxar. 8, 9, 10. O garoto aleijado do 10 é bem quieto.
Minhas palmas estão suando adoidadas, mas o vestido encravado de jóias não é absorvente e
elas derrapam diretamente por ele se eu tento secá-las. 11.
Rue, que está vestida em um vestido diáfano completo com asas, flutua até Caesar. Um
silêncio cai sobre a multidão ao sinal mágico dessa pequena e delicada tributo. Caesar é muito
doce com ela, elogiando o seu sete no treinamento, uma nota excelente para alguém tão
pequeno. Quando ele pergunta a ela qual será sua maior habilidade na arena, ela não hesita.
"Eu sou muito difícil de se capturar," ela diz em uma voz trêmula. "E se eles não puderem me
pegar, eles não podem me matar. Então não descarte."
"Eu não iria em um milhão de anos," diz Caesar encorajadoramente.
O garoto tributo do Distrito 11, Thresh, tem a mesma pele negra de Rue, mas as semelhanças
param ali. Ele é um dos gigantes, provavelmente um metro e noventa e cinco e o porte de um
boi, mas eu notei que ele rejeitou os convites dos Tributos Profissionais de juntar a seu grupo.
Ao invés, ele tem estado bastante solitário, falando com ninguém, mostrando pouco interesse
no treinamento. Mesmo assim, ele conseguiu um dez e não é difícil de imaginar que ele
impressionou os Gamemakers. Ele ignora as tentativas de Caesar de brincadeira e responde
com um sim ou não simplesmente permanecendo em silêncio.
Se eu ao menos fosse do tamanho dele, eu podia me safar sendo mal humorada e hostil e
ficaria tudo bem! Eu aposto que metade dos patrocinadores estão pelo menos considerando-
o. Se eu tivesse algum dinheiro, eu mesma apostaria nele.
E então eles estão chamando Katniss Everdeen, e eu me sinto, como se em um sonho, levantar
e andar até o centro do palco. Eu aperto a mão esticada de Caesar, e ele tem os bons modos
de não limpar imediatamente a sua mão em seu terno.
"Então, Katniss, Capitol deve ser uma mudança e tanto do Distrito Doze. O que mais te
impressionou desde que você chegou aqui?" pergunta Caesar.
O quê? O que ele disse? É como se as palavras não fizessem sentido algum.
Minha boca ficou seca como serragem. Eu desesperadamente encontro Cinna na multidão e
travo meus olhos com ele. Eu imagino as palavras saindo de seus lábios. "O que mais te
impressionou desde que você chegou aqui?" Eu vasculho meu cérebro por algo que me fez
feliz aqui. Seja honesta, eu penso. Seja honesta.
"O cozido de cordeiro," eu saio.
Caesar ri, e eu vagamente percebo que parte da audiência se juntou a ele.
"Aquela com as ameixas secas?" pergunta Caesar. Eu aceno. "Ah, eu o como de monte." Ele se
vira de lateral para audiência com terror, a mão em seu estômago. "É notável, não é?" Eles
gritam reassegurações de volta a ele e aplaudem. Isso é o que eu quis dizer sobre Caesar. Ele
tenta te ajudar.
"Agora, Katniss," ele diz confiantemente, "Quando você saiu na cerimônia de abertura, meu
coração realmente parou. O que você achou daquele traje?"
Cinna levanta uma sobrancelha para mim. Seja honesta. "Você quer dizer depois de eu ter
superado meu medo de ser queimada viva?" Eu pergunto.
Uma risada alta. Uma real da audiência.
"Sim. Comece aí," diz Caesar.
Cinna, meu amigo, eu deveria dizer a ele de qualquer jeito. "Eu achei que Cinna foi brilhante e
foi o traje mais lindo que eu já vi e eu não consegui acreditar que estava usando ele. Eu não
consigo acreditar que estou usando isso, tampouco." Eu levanto minha saia para espalhá-la.
"Quero dizer, olhe para ela!"
Enquanto a audiência faz oohs e aahs, eu vejo Cinna fazer o menor movimento circular com
seu dedo. Mas eu sei o que ele está dizendo.
Gire para mim.
Eu rodo em um círculo uma vez e a reação é imediata.
"Ah, faça isso novamente!" diz Caesar, e então eu levanto meus braços e rodopio ao redor sem
parar, deixando a saia voar para cima, deixando o vestido me engolfar em chamas. A audiência
começa a aplaudir. Quando eu paro, eu aperto o braço de Caesar.
"Não pare!" ele diz.
"Eu preciso, estou tonta!" Eu também estou dando risinhos, o que eu acho que nunca fiz em
minha vida. Mas o nervosismo e os rodopios ganharam de mim.
Caesar envolve um braço protetor ao meu redor. "Não se preocupe, estou com você. Não
posso fazê-la seguir os passos do seu mentor."
Todos estão vaiando enquanto as câmeras acham Haymitch, que agora já é famoso por seu
mergulho de cabeça na colheita, e ele acena para ele de um jeito bom humorado e aponta de
volta para mim.
"Está tudo bem," Caesar assegura à multidão. "Ela está segura comigo. Então, e quanto a nota
do treinamento. On-ze. Dê-nos uma dica do que aconteceu lá."
Eu olho para os Gamemakers na sacada e mordo meu lábio.
"Hum... tudo que eu posso dizer é que acho que foi inédito."
As câmeras estão bem nos Gamemakers, que estão rindo e assentindo.
"Você está nos matando," diz Caesar como se estivesse com uma dor real. "Detalhes.
Detalhes."
Eu me dirijo a sacada. "Não devo falar sobre isso, certo?"
O Gamemaker que caiu na tigela de ponche grita, "Ela não deve!"
"Obrigada," eu digo. "Desculpa. Meus lábios estão selados."
"Vamos voltar então para o momento que chamam o nome da sua irmã na colheita," diz
Caesar. Seu humor está mais silencioso agora.
"E você se voluntariou. Pode nos falar sobre ela?"
Não. Não, não para todos vocês. Mas talvez para Cinna. Eu não acho que estou imaginando a
tristeza em seu rosto. "Seu nome é Prim. Ela só tem doze anos. E eu a amo mais que tudo."
Você conseguia ouvir um alfinete cair na Cidade Circular agora.
"O que ela disse para você; Depois da colheita?" Caesar pergunta.
Seja honesta. Seja honesta. Eu engulo em seco. "Ela me pediu para tentar arduamente
ganhar." A audiência está congelada, segurando-se em cada palavra minha.
"E o que você disse?" Caesar estimulou gentilmente.
Mas ao invés de calor, eu sinto uma gelada rigidez tomar conta do meu corpo. Meus músculos
ficam tensos como quando antes de uma matança. Quando eu falo, minha voz parece ter caído
uma oitava. "Eu jurei que iria."
"Aposto que sim," diz Caesar, dando-me um apertão. A campainha soa. "Desculpa, nosso
tempo acabou. Muita sorte, Katniss Everdeen, tributo do Distrito Doze."
Os aplausos continuam por muito tempo depois de eu estar sentada. Eu olho para Cinna para
tranqüilização. Ele me dá um jóia sutil.
Eu ainda estou maravilhada na primeira parte da entrevista de Peeta. Ele conquista a audiência
de cara, contudo; eu os ouço rindo, gritando. Ele joga com o negócio de filho do padeiro,
comparando os tributos com os pães de seus distritos. Então tem uma anedota engraçada
sobre os riscos dos chuveiros de Capitol.
"Diga-me, eu cheiro a rosas?" ele pergunta a Caesar, e então há toda uma cena onde eles se
revezam cheirando um ao outro, o que traz a casa abaixo.
Eu estou voltando a prestar atenção quando Caesar pergunta a ele se ele tem uma namorada
em casa.
Peeta hesita, então dá uma sacudida não convincente de sua cabeça.
"Um rapaz bonito como você. Deve haver uma garota especial. Vamos, qual o nome dela?" diz
Caesar.
Peeta suspira. "Bem, tem essa garota. Eu tenho uma queda por ela desde que consigo me
lembrar. Mas tenho bastante certeza de que ela nem mesmo sabia que eu estava vivo até a
colheita."
Sons de simpatia da multidão. Eles encontram ligação com amor platônico.
"Ela tem outro cara?" pergunta Caesar.
"Eu não sei, mas muitos outros garotos gostam dela," diz Peeta.
"Então, faça o seguinte. Ganhe, volte para casa. Ela não pode te recusar então, hein?" diz
Caesar encorajadoramente.
"Eu não acho que vai funcionar. Ganhar... não vai ajudar no meu caso," diz Peeta.
"Por que não?" diz Caesar, perplexo.
Peeta cora um tom de beterraba e gagueja. "Porque... porque... ela veio aqui comigo."

PARTE II

Os Games

10

Por um momento, as câmeras focam nos olhos abatidos de Peeta enquanto o que ele diz
afunda. Então posso ver meu rosto, a boca meio aberta numa mistura de surpresa e protesto,
ampliada em todas as telas enquanto eu percebo, Eu! Ele quer dizer eu! Junto meus lábios e
fito o chão, esperando que isso oculte as emoções que começam a ferver dentro de mim.
"Oh, isso é que é má sorte," diz Caesar, e há uma ponta real de dor na sua voz. A multidão está
murmurando de acordo, uns poucos dando gritinhos agonizantes.
"Não é bom," concorda Peeta.
"Bem, eu não acho que algum de nós pode te culpar. É difícil não se apaixonar por essa jovem
dama," diz Caesar. "Ela não sabia?"
Peeta balança a cabeça. "Não até agora."
Eu deixo meus olhos fitarem a tela por tempo suficiente para ver que o rubor nas minhas
bochechas é claro.
"Vocês não amariam puxá-la de volta para cá e conseguir uma resposta?" Caesar pergunta à
audiência. A multidão grita assentindo. "Tristemente, regras são regras, e o tempo de Katniss
Everdeen acabou. Bem, sorte para você, Peeta Mellark, e acho que eu falo por toda a Panem
quando eu digo que nosso coração vai com o seu."
O rugido da multidão é ensurdecedor. Peeta tem absolutamente apagado o resto de nós do
mapa com sua declaração de amor por mim. Quando a audiência finalmente se aquieta, ele
sufoca um calmo "Obrigado" e retorna à sua cadeira. Nós ficamos de pé para o hino. Eu tenho
que levantar minha cabeça por respeito obrigatório e não posso fugir de ver que todas as telas
estão agora dominadas pelas imagens de Peeta e eu, separados por poucos passos que nas
cabeças dos observadores não podem ser violados. Pobre de nós.
Mas eu sei melhor.
Depois do hino, os tributos voltam em fila para o salão do Centro de Treinamento e para os
elevadores. Eu tenho a certeza de entrar num carro que não tem Peeta. A multidão retarda
nossas comitivas de estilistas e orientadores e acompanhantes, então nós temos apenas uns
aos outros como companhia. Ninguém fala. Meu elevador pára para colocar quatro tributos
antes de eu estar sozinha e então acho a porta abrindo no décimo segundo andar. Peeta tinha
acabado de sair do seu carro quando eu bato minhas palmas no seu peito. Ele perde o
equilíbrio e colide em um vaso feio cheio de flores falsas. O vaso se inclina e quebra-se em
centenas de pequenos pedaços. Peeta cai nos cacos, e sangue imediatamente flui de suas
mãos.
"Para que foi isso?" ele diz, perplexo.
"Você não tinha nenhum direito! Nenhum direito de dizer aquelas coisas sobre mim!" eu gritei
para ele.
Agora os elevadores se abrem e todo o grupo está lá, Effie, Haymitch, Cinna, e Portia.
"O que está acontecendo?" diz Effie, uma nota de histeria em sua voz. "Você caiu?"
"Depois que ela me empurrou," diz Peeta enquanto Effie e Cinna o ajudam a se levantar.
Haymitch se vira para mim. "Você o empurrou?"
"Isso foi idéia sua, não foi? Tornar-me algum tipo de tola na frente de todo o país?" eu replico.
"Foi idéia minha," diz Peeta, recuando enquanto ele puxa os pedaços de cerâmica de suas
palmas. "Haymitch só me ajudou com isso."
"Sim, Haymitch é muito útil. Para você!" Eu digo.
"Você é uma tola," Haymitch diz com desgosto. "Você acha que ele te prejudicou? Aquele
garoto só deu a você algo que você nunca poderia conseguir sozinha."
"Ele me fez parecer fraca!" eu digo.
"Ele fez você parecer desejável! E vamos encarar, você pode usar toda a ajuda que conseguir
nesse departamento. Você era tão romântica quanto sujeira até ele dizer que queria você.
Agora todos eles querem. Você é tudo sobre o que eles estão falando. Os desafortunados
amantes do Distrito Doze!" diz Haymitch.
"Mas nós não somos amantes desafortunados!" eu digo.
Haymitch agarra meus ombros e me prende contra a parede. "Quem se importa? É tudo um
grande show. É tudo como você é percebida. O máximo que eu poderia dizer sobre você
depois da sua entrevista era que você estava boa o bastante, embora isso em si seja um
pequeno milagre. Agora eu posso dizer que você é uma arrasa-corações. Oh, oh, oh, como os
garotos de volta para casa caem saudosamente aos seus pés. O que você pensa que vai te
conseguir mais patrocinadores?"
O cheiro de vinho do seu hálito me deixa doente. Eu empurro suas mãos dos meus ombros e
me afasto, tentando limpar minha cabeça.
Cinna se aproxima e coloca seus braços ao meu redor. "Ele está certo, Katniss."
Eu não sei o que pensar. "Eu deveria ter sido informada, então eu não pareceria tão estúpida."
"Não, sua reação estava perfeita. Se você soubesse, não seria tão real," diz Portia.
"Ela só está preocupada com o namorado dela," diz Peeta bruscamente, jogando fora um
pedaço da urna manchada de sangue.
Minhas bochechas queimam de novo ao pensar em Gale. "Eu não tenho um namorado."
"Que seja," diz Peeta. "Mas eu aposto que ele é esperto o bastante para reconhecer um blefe
quando ele o vê. Além disso, você não disse que me amava. Então o que importa?"
As palavras estão penetrando. Minha raiva sumindo. Eu estou rasgada agora entre pensar que
eu estava sendo usada e pensar que eu estava tendo uma vantagem. Haymitch está certo. Eu
sobrevivi à entrevista, mas o que eu era realmente?
Uma garota boba girando num vestido cintilante. Dando risadinhas. O único momento de
qualquer substância que eu abençoei foi quando eu conversei sobre Prim. Comparar isso com
Thresh, seu silêncio, seu poder mortal, e eu sou esquecível. Boba e brilhante e esquecível. Não,
não inteiramente esquecível, tenho meu onze do treino.
Mas agora Peeta fez de mim um objeto de amor. Não só dele. Ouvi-lo dizer que eu tenho
muitos admiradores. E se a audiência realmente pensa que nós estamos apaixonados... lembro
o quão forte eles responderam a sua confissão. Amantes desafortunados. Haymitch está certo,
eles engolem essas coisas em Capitol. De repente me preocupo se eu não reagi direito.
"Depois de ele dizer que me amava, você achou que eu poderia estar apaixonada por ele,
também?" perguntei.
"Eu achei," diz Portia. "O modo como você fugiu, o olhar para as câmeras, o rubor." Os outros gritam, concordando.
"Você é ouro, querida. Você vai ter patrocinadores se enfileirando ao redor do bloco," diz
Haymitch.
Estou embaraçada com a minha reação. Eu me forço a admitir. Peeta. "Sinto muito por te empurrar."
"Não tem problema," ele encolhe os ombros. "Embora isso é tecnicamente ilegal."
"Suas mãos estão bem?" pergunto.
"Elas ficarão bem," ele diz.
No silêncio que se seguiu, o cheiro delicioso do nosso Jantar flutua da sala de Jantar. "Vamos lá,
vamos comer," diz Haymitch. Todos nós o seguimos para a mesa e pegamos nossos pratos.
Mas então Peeta está sangrando tanto, e Portia o leva para tratamento médico. Nós
começamos a cremosa sopa rose-petal sem eles. Na hora que nós terminamos, eles chegam.
As mãos de Peeta estavam cobertas de ataduras. Eu não posso evitar sentir-me culpada.
Amanhã nós estaremos na arena. Ele tinha feito um favor para mim e eu tinha respondido a
ele com agressão. Eu nunca vou parar de dever a ele?
Depois do Jantar, nós assistimos a gravação na sala de estar. Eu parecia enfeitada e superficial,
girando e rindo no meu vestido, embora os outros me assegurassem que eu era charmosa.
Peeta na verdade é charmoso e totalmente cativante como o garoto apaixonado. E lá estava
eu, ruborizando e confusa, bonita pelas mãos de Cinna, desejável pela confissão de Peeta,
trágica pelas circunstâncias, e por tudo em conta, inesquecível.
Quando o hino termina e a tela fica preta, um silêncio cai no cômodo. Amanhã ao amanhecer,
nós seremos despertados e preparados para a arena. Os reais Games não começam até as dez
porque muitos dos residentes de Capitol levantam tarde. Mas Peeta e eu temos que fazer um
começo mais cedo. Não tem como dizer o quão longe nós viajaremos para a arena que foi preparada para os Games esse ano.
Sei que Haymitch e Effie não irão conosco. Tão breve eles partirem daqui, eles estarão no
Posto de Comando dos Games, esperando loucamente inscrever nossos patrocinadores,
trabalhando uma estratégia de como e quando nos mandar os presentes. Cinna e Portia
viajarão conosco para o mesmo lugar onde seremos lançados na arena. Ainda as despedidas
finais devem ser ditas aqui.
Effie toma ambos nós pela mão e, com lágrimas de verdade em seus olhos, nos deseja sorte.
Agradece-nos por sermos os melhores tributos que ela já teve o privilégio de apadrinhar. E
então, porque é Effie e ela aparentemente é obrigada por alguma lei a dizer algo terrível, ela
acrescenta "Eu não estaria nem um pouco surpresa se eu finalmente for promovida para um
distrito decente próximo ano!"
Então ela nos beija nas bochechas e sai apreçada, sujeitada ou pela despedida emocional ou
pela possível melhora em seu destino.
Haymitch cruza os braços e olha para nós.
"Alguma palavra final como conselho?" pergunta Peeta.
"Quando o gongo soar, caia fora de lá. Vocês nem eram vocês até o banho de sangue em
Cornucópia. Só para deixar claro, ponha o máximo de distância possível entre vocês e os
outros, e encontrem uma fonte de água," ele diz. "Entenderam?"
"E depois disso?" pergunto.
"Fiquem vivos," diz Haymitch. É o mesmo conselho que ele nos deu no trem, mas ele não está
bêbado e rindo dessa vez. E nós apenas acenamos. O que há mais para dizer?
Quando eu vou ao meu quarto, Peeta demora-se para conversar com Portia. Estou satisfeita.
Quaisquer palavras de despedidas para nós trocarmos podem esperar até amanhã. Meus
cobertores estão esticados de novo, mas não há sinal da garota Avox de cabelos vermelhos.
Queria saber o nome dela. Devia ter perguntado. Ela podia escrever, talvez. Ou representá-lo.
Mas talvez aquilo apenas resultaria em uma punição para ela.
Tomo banho e lavo a cor dourada, a maquiagem, o odor de beleza do meu corpo. Tudo o que
resta dos esforços da equipe de design são as chamas nas minhas unhas. Decido mantê-las
para lembrar a audiência quem eu sou. Katniss, a garota que estava em chamas. Talvez isso me
dê algo para segurar nos próximos dias.
Eu coloco uma camisola grossa de lã e subo na cama. Preciso de cinco segundos para notar que
eu nunca iria dormir. E eu precisava dormir desesperadamente porque na arena todo o
momento em que eu cedesse à fadiga seria um convite à morte.
Isso não é bom. Uma hora, duas, três passam, e minhas pálpebras se recusam a ficarem
pesadas. Não posso parar de tentar imaginar exatamente em que terreno estarei amanhã.
Deserto? Pântano? Uma frígida devastação? Acima de tudo eu espero por árvores, que podem
me fornecer alguns meios de dissimulação e comida e abrigo. Freqüentemente há árvores
porque paisagens áridas são maçantes e os Games se resolvem muito rápido sem elas. Mas
como será o clima? Que armadilhas os Gamemakers esconderam para animar os momentos
mais lentos? E ainda há meus tributos companheiros...
Quanto mais ansiosa eu estou para dormir, mais o sono me evita. Finalmente, eu estou
inquieta demais mesmo para ficar na cama. Eu ando no chão, coração batendo muito rápido,
respiração muito curta. Meu quarto parece uma cela de uma prisão. Se eu não conseguir ar
logo, vou começar a atirar coisas novamente. Corro no corredor em direção à porta do
telhado. Não está trancada, mas entreaberta. Talvez alguém tenha esquecido de fechá-la, mas
isso não importa. O campo de força ao redor do telhado previne qualquer forma desesperada
de escapar. E eu não estou procurando escapar, apenas encher meus pulmões de ar. Quero
ver o céu e a lua na última noite em que ninguém estará me caçando.
O telhado não é iluminado a noite, mas logo que meu pé descalço toca a superfície de azulejo,
vejo sua silhueta, negra contra as luzes que iluminam interminavelmente no Capitol. Há muita
comoção acontecendo nas ruas, música e canto e buzina, nada que eu podia escutar através
do grosso vidro dos painéis da janela no meu quarto. Eu podia escapulir agora, sem ele me
notar; ele não me ouviria acima do ruído. Mas o ar da noite está tão doce, que não posso
suportar retornar àquela gaiola abafada do meu quarto. E que diferença isso faz? Se nós
falarmos ou não?
Meus pés movem-se silenciosamente sobre os azulejos. Estou apenas a um metro dele quando
eu digo, "Você deveria dormir um pouco."
Ele se sobressalta, mas não se vira. Posso vê-lo balançando suavemente a cabeça. "Não queria
perder a festa. É por nós, depois de tudo."
E venho ao seu lado e me inclino contra a beira da grade. As ruas largas estão cheias de
pessoas dançando. Eu soslaio para ver suas pequenas figuras em mais detalhes. "Eles estão em
fantasias?"
"Quem poderia dizer?" Peeta responde. "Como todas essas roupas malucas que eles usam
aqui. Não pôde dormir, também?"
"Não pude desligar a minha mente," digo.
"Pensando na sua família?" ele pergunta.
"Não," admito um pouco culpada. "Tudo o que eu posso fazer é pensar sobre isso amanhã. O
que é sem sentido, é claro." Na luz que vem de baixo, posso ver sua face agora, a estranha
forma que ele apóia suas mãos enfaixadas. "Eu realmente sinto muito quanto a suas mãos."
"Isso não importa, Katniss," ele diz. "Eu nunca fui um candidato nesses jogos, de qualquer
forma."
"Isso não é maneira de pensar," digo.
"Por que não? É verdade. Minha melhor esperança é não dar vexame e..." Ele hesita.
"E o quê?" digo.
"Eu não sei como dizer exatamente. Apenas... eu quero morrer como eu mesmo. Isso faz
algum sentido?" ele pergunta. Eu balanço minha cabeça. Como ele poderia morrer como
alguém além de si mesmo? "Eu não quero que eles me mudem. Tornem-me algum tipo de
monstro que eu não sou."
Mordo meu lábio me sentindo inferior. Enquanto eu estive ruminando sobre a disponibilidade
de árvores, Peeta estava se esforçando em como manter sua identidade. Sua própria pureza.
"Você quer dizer que não matará ninguém?" pergunto.
"Não, quando a hora chegar, tenho certeza que matarei como todo mundo. Eu não posso cair
sem lutar. Só continuo desejando que eu pudesse pensar num modo de... mostrar ao Capitol
que eles não são donos de mim. Que eu sou mais que um pedaço em seus Games," diz Peeta.
"Mas você não é," digo. "Nenhum de nós é. É como os Games funcionam."
"Ok, mas dentro desse quanto ainda há você, ainda há eu," ele insiste. "Você não vê?"
"Um pouco. Apenas... sem ofensa, mas quem se importa, Peeta?" digo.
"Eu me importo. Quero dizer, o que mais eu sou autorizado a me importar a esse ponto?" ele
pergunta irritado. Ele prende aqueles olhos azuis nos meus agora, exigindo uma resposta.
Eu dou um passo para trás. "Importe-se com o que Haymitch disse. Sobre ficar vivo."
Peeta sorri para mim, triste e desdenhoso. "Ok. Obrigado pelo toque, querida."
É como um tapa na minha cara. Ele usando o afeito arrogante de Haymitch. "Olhe, se você
quer passar as últimas horas da sua vida planejando alguma morte nobre na arena, é escolha
sua. Eu quero passar as minhas no Distrito Doze."
"Não me surpreenderia se você conseguir," diz Peeta. "Dê a minha mãe o meu melhor quando
você voltar, ok?"
"Conte com isso." digo. Então me viro e deixo o telhado. Passo o resto da noite entrando e
saindo de um cochilo, imaginando as observações cortantes que farei a Peeta de manhã. Peeta
Mellark. Nós veremos o quão alto e poderoso ele é quando ele enfrentar a vida e a morte. Ele
provavelmente se transformará naqueles tributos bestas enfurecidos, o tipo que tenta comer
o coração de alguém depois de matá-los. Houve um cara assim há alguns anos do Distrito 6
chamado Titus. Ele ficou completamente selvagem e os Gamemakers tiveram que paralisá-lo
com armas elétricas para juntar os corpos dos jogadores que ele tinha matado antes que ele os comesse. Não há regras na arena, mas canibalismo não fica bem com a
audiência do Capitol,
então eles tentaram acabar com isso. Havia alguma especulação de que a avalanche que
finalmente levou Titus para fora foi projetada especificamente para assegurar que o vencedor não
era um lunático.
Não vejo Peeta de manhã. Cinna aparece antes do amanhecer, me dá uma simples troca para
vestir, e me guia para o telhado. Meu vestido final e preparações estarão sozinhos nas
catacumbas sob a própria arena. Um aerobarco aparece do nada no ar, justo como aquele na
floresta no dia em que eu vi a garota Avox de cabelos vermelhos capturada, e uma escada
caindo. Eu posiciono minhas mãos e piso nos degraus mais baixos e instantaneamente é como
se eu tivesse congelada. Algum tipo de corrente me junta a escada enquanto estou deslizando
segura para dentro.
Espero a escapa para me libertar então, mas ainda estou presa quando uma mulher num
casaco branco se aproxima de mim carregando uma seringa. "Esse é apenas seu localizador,
Katniss. Quanto mais parada você estiver, mais eficiente eu posso colocá-lo," ela diz.
Parada? Eu estou uma estátua. Mas isso não me previne da sensação do golpe afiado de dor
enquanto a agulha insere o dispositivo metálico de localização profundamente sob a pele no
lado do meu antebraço. Agora os Gamemakers sempre serão capazes de traçar meu lugar na
arena. Não iriam querer perder um tributo.
Tão logo o localizador está no lugar, a escada me liberta. A mulher desaparece e Cinna é
retomado do telhado. Um garoto Avox vem e nos direciona ao quarto onde será o café da
manhã. Apesar da tensão no meu estômago, eu como o máximo que posso, embora nenhuma
das comidas deliciosas faça alguma impressão em mim. Estou tão nervosa que poderia estar
comendo poeira de carvão. A única coisa que me distrai de tudo é a visão das janelas enquanto
nós navegamos pela cidade e então para a imensidão além dela. Isso é o que os pássaros
vêem. Apenas eles são livres e salvos. O oposto de mim.
A corrida continua por meia-hora antes da janela ficar escura, sugerindo que nós estamos nos
aproximando da arena. O aerobarco aterrissa e Cinna e eu voltamos para a escada, só que
dessa vez ela segue para baixo dentro de um tubo subterrâneo, dentro das catacumbas que
ficam sob a arena. Nós seguimos instruções para o meu destino, uma sala para minha
preparação. No Capitol, eles a chamam de Sala de Abertura. Nos distritos, é referida como
Curral. O lugar para onde os animais vão antes do abate.
Tudo é novo em folha, serei o primeiro e único Tributo a usar essa Sala de Abertura. As arenas
são sítios históricos, preservados depois dos Games. Destinos populares para os moradores de
Capitol visitarem, nas férias. Ir por um mês, re-assistir os Games, passear pelas catacumbas,
visitar os sítios onde as mortes ocorreram. Você pode mesmo tomar parte no
restabelecimento. Dizem que a comida é excelente.
Eu luto para manter meu café da manhã no estômago enquanto tomo banho e limpo os meus
dentes. Cinna faz em meu cabelo a simples trança que é minha marca registrada. Então as
roupas chegam, a mesma para cada tributo. Cinna não tinha falado nada sobre meus trajes,
nem sequer sabe o que estará no pacote, mas ele me ajuda a vestir minha roupa de baixo,
calça marron-amarelada simples, blusa verde claro, cinto marrom vigoroso, e um fino casaco
de capuz preto que cai nas minhas coxas. "O material dessa jaqueta é desenhado para refletir
o calor do corpo. Espere algumas noites frias," ele diz.
As botas, usadas sobre meias muito justas, são melhores do que eu podia ter esperado. Couro
macio diferente do de casa. Essas aqui têm uma sola de borracha estreita e flexível. Bons para
corrida.
Penso que eu terminei quando Cinna puxa o broche de mockingjay de ouro do seu bolso. Tinha
me esquecido completamente dele.
"Onde você conseguiu isso?" pergunto.
"Na roupa verde que você usou no trem," diz. Lembro agora de tirar do vestido da minha mãe,
prendendo-o na camisa. "É sua lembrança do distrito, certo?" Aceno e ele o prega na minha
camisa. "Ele quase abriu o conselho de revisão. Alguns pensaram que o pino podia ser usado
como uma arma, o que lhe dá uma vantagem injusta. Mas, finalmente, deixaram-no," diz
Cinna. "Eles eliminaram o anel daquela garota do Distrito Um, entretanto. Se você torcer a
jóia, um prego pula para fora. Envenenado. Ela disse que não tinha conhecimento do anel
transformado e não tinham como provar que ela soubesse. Mas ela perdeu sua lembrança.
Aqui, você está pronta. Dê um giro. Tenha certeza que tudo está confortável."
Eu ando, corro em um círculo, balanço meus braços. "Sim, está ótimo. Perfeito."
"Então não há nada a fazer a não ser esperar pela chamada," diz Cinna. "A não ser que você
ache que pode comer mais?"
Eu recuso a comida, mas aceito um copo de água que tomo aos golinhos enquanto esperamos
no sofá. Eu não quero roer minhas unhas ou morder meus lábios, então eu me encontro
mordendo a parte de dentro da minha bochecha. Ela ainda não está totalmente curada de
alguns dias atrás. Logo o gosto de sangue enche a minha boca.
Nervosismo ecoa em terror enquanto eu antecipo o que está por vir. Eu podia estar morta,
morta sem rodeios, em uma hora. Menos até. Meus dedos obsessivamente rastream a
protuberância um pouco dura no meu antebraço, onde a mulher tinha injetado o dispositivo
de rastreamento. Eu pressiono, embora doa, eu pressiono tão forte que um pequeno inchaço
começa a se formar.
"Você quer conversar, Katniss?" Cinna pergunta.
Balanço a minha cabeça, mas depois de um momento estendo minha mão a ele. Cinna segura
com as duas mãos. E é assim como nós sentamos até uma agradável voz feminina anunciar
que é a hora da abertura.
Ainda apertando uma das mãos de Cinna, eu ando mais e fico em cima de uma placa circular
de metal. "Lembre-se do que Haymitch falou. Corra, encontre água. O resto virá depois," diz.
Eu aceno. "E lembre-se disso. Eu não estou autorizado a apostar, mas se eu pudesse, meu
dinheiro estaria em você."
"Verdade?" sussurro.
"Verdade," diz Cinna. Ele se inclina e me beija na testa. "Boa sorte, garota em chamas." E
então um cilindro de vidro está descendo ao meu redor, quebrando nosso aperto de mão,
cortando-o de mim. Ele coloca seus dedos sob seu queixo. Cabeça erguida.
Eu levanto meu queixo e fico tão reta quanto posso. O cilindro começa a levantar. Por talvez
quinze segundos, eu estou na escuridão e então eu posso sentir a placa metálica me
empurrando para fora do cilindro, para o ar aberto. Por um momento, meus olhos estão
ofuscados pela brilhante luz do sol e eu estou consciente apenas do vento forte com o cheiro
esperançoso de pinheiros.
Então escuto o lendário locutor, Claudius Templesmith, enquanto sua voz ruge ao meu redor.
"Damas e cavalheiros, deixem o septuagésimo quarto Hunger Games começarem!"

11

Sessenta segundos. É esse o tempo que devemos permanecer nos nossos círculos de metal
antes do som de um gongo nos liberar. Pise para fora antes de dar um minuto, e minas
terrestres arrancarão suas pernas. Sessenta segundos para absorver o círculo de tributos,
todos eqüidistantes de Cornucópia, uma gigante trombeta de corno dourada na forma de um
cone com uma ponta curva, a boca de qual tem pelo menos seis metros e dez centímetros de
altura, derramando as coisas que nos darão vida aqui na arena. Comida, recipientes de água,
armas, remédios, vestimentas, iniciadores de fogo. Espalhados pela Cornucópia estão outros
suprimentos, seu valor diminuindo quanto mais distante estejam da trombeta. Por exemplo, a
apenas três passos dos meus pés está um plástico de noventa centímetros quadrados.
Certamente seria de alguma utilidade em um aguaceiro. Mas ali na boca, eu consigo ver uma
barraca de acampar que protegeria de quase qualquer tipo de tempo. Se eu tivesse coragem
de ir brigar por ela contra os outros vinte e três tributos. O que eu fui instruída a não fazer.
Nós estamos em um pedaço aberto de chão terreno. Uma planície de terra de chão. Atrás dos
tributos na minha frente, eu não consigo ver nada, indicando ou uma ladeira excessiva ou até
mesmo um precipício. À minha direita tem um lago. À minha esquerda e às minhas costas, um
mastro de floresta de pinheiro. É aqui que Haymitch iria querer que eu fosse. Imediatamente.
Eu ouço as instruções dele na minha cabeça. "Só para deixar claro, ponha o máximo de
distância possível entre vocês e os outros, e encontrem uma fonte de água."
Mas é tentador, tão tentador, quando eu vejo os prêmios esperando lá perante mim. E eu sei
que se eu não pegá-los, alguma outra pessoa pegará. Que os Tributos Profissionais que
sobrevivem ao banho de sangue dividirão a maioria dessa pilhagem vital. Algo captura a minha
atenção. Lá, descansando em um amontoado de cobertores, está um estojo prateado de
flechas e um arco, já pendurado, só esperando ser engajado. Esse é meu, eu penso. É para
mim.
Eu sou rápida. Eu consigo correr a toda velocidade mais rápido do que qualquer uma das
garotas na nossa escola, apesar de algumas conseguirem me vencer em corridas de distância.
Mas esse comprimento de trinta e seis metros, é para isso que fui feita. Eu sei que posso pegá-
los, eu sei que consigo alcançá-los primeiro, mas então a pergunta é quão rápido eu consigo
sair dali? Depois que eu tiver afastado os pacotes e pegado as armas, outros terão chegado na
trombeta, e um ou dois eu talvez seja capaz de alvejar, mais digamos que há uma dúzia, a
queima-roupa, eles poderiam me abater com as lanças e clavas. Ou seus próprios punhos
poderosos.
Ainda assim, eu não serei o único alvo. Aposto que muitos dos outros tributos rejeitariam uma
garota menor, mesmo uma que tirou onze em seu treinamento, para abater seus adversários
mais ferozes.
Haymitch nunca me viu correr. Talvez se ele tivesse visto, ele teria me dito para ir adiante.
Pegar a arma. Já que é essa a arma que pode ser a minha salvação. E eu só vejo um arco na
pilha inteira. Eu sei que o minuto deve estar quase acabando e terei que decidir qual a minha
estratégia será... e eu estava me encontrando posicionando meu pé para correr, não para longe para a
prisão da floresta cercante, mas na direção da pilha, na direção do arco. Quando de repente eu
noto Peeta, ele está a cerca de cinco tributos à minha direita, uma distância bem boa, ainda
assim, consigo afirmar que ele está olhando para mim e eu acho que ele pode estar
balançando sua cabeça. Mas o sol está nos meus olhos, e enquanto eu estou quebrando minha
cabeça sobre isso, o gongo soa.
E eu perdi! Eu perdi minha chance! Porque esses poucos segundos extras que eu perdi por não
estar pronta são o bastante para mudar de ideia sobre ir. Meus pés se arrastaram por um
momento, confusos com a direção que o meu cérebro queria tomar e então eu me arremessei
para frente, removi a placa de plástico e um pão de forma. As escolhas são tão pequenas e eu
estou tão brava com Peeta por me distrair que eu corri a toda velocidade por dezoito metros
para pegar uma mochila laranja brilhante que poderia carregar qualquer coisa, porque eu não
consigo suportar partir com literalmente nada.
Um garoto, eu acho que do Distrito 9, pega a mochila ao mesmo tempo que eu e por um breve
instante nós lutamos por ela e então ele tosse, respingando sangue no meu rosto. Eu recuo,
enojada pelo respingo quente e grudento. Então o garoto desliza para o chão. É quando eu
vejo a faca nas suas costas. Outros tributos já alcançaram a Cornucópia e estão se espalhando
para atacar. Sim, a garota do Distrito 2, há nove metros, correndo na minha direção, uma mão
apertando meia dúzia de facas. Eu a vi jogá-las no treinamento. Ela nunca erra. E eu sou seu
próximo alvo.
Todo o medo geral que eu estive sentindo se condensa em um medo imediato dessa garota,
dessa predadora que pode me matar em segundos. Adrenalina é atirada através de mim e eu
atiro a mochila por sobre um ombro e corro a toda velocidade para a floresta. Eu consigo ouvir
a lâmina assobiando na minha direção e eu levanto a mochila reflexivamente para proteger a
minha cabeça. A lâmina se aloja na mochila. Com ambas as alças nos meus ombros agora, eu
corro para as árvores. De algum modo eu sei que a garota não me perseguirá. Que ela será
atraída de volta para a Cornucópia antes que todas as coisas boas acabem. Um sorriso irônico
cruza o meu rosto. Obrigada pela faca, eu penso.
Na beira da floresta eu me viro por um instante para analisar o campo. Em torno de mais ou
menos uma dúzia de tributos estão despedaçando na trombeta. Diversos já estão caídos
mortos no chão. Aqueles que fugiram estão desaparecendo nas árvores ou no vazio oposto a
mim. Eu continuo correndo até que a floresta tenha me escondido dos outros tributos, então
diminuo para uma corrida leve uniforme que acho que consigo manter por algum tempo. Pelas
próximas horas, eu alterno entre correr de leve e andar, colocando o máximo de distância
quanto consigo entre eu e meus competidores. Eu perdi meu pão durante a luta com o garoto
do Distrito 9, mas consegui enfiar meu plástico na minha manga então enquanto eu ando eu
dobro-o organizadamente e enfio-o em um bolso. Eu também solto a faca ­ é fina com uma
lâmina longa e afiada, serrada próxima ao cabo, o que será útil para serrar coisas ­ e deslizo-a
no meu cinto. Eu não ouso parar para examinar o conteúdo da mochila ainda. Eu
simplesmente continuo, pausando apenas para checar perseguidores.
Eu posso continuar por um longo tempo. Eu sei disso pelos dias na floresta. Mas eu precisarei
de água. Essa foi a segunda instrução do Haymitch, e já que eu meio que estraguei o primeiro,
eu fico de olho por qualquer sinal dela. Sem sorte.
A floresta começa a desenvolver-se, e os pinheiros estão mesclados com uma variedade de
árvores, algumas eu reconheço, algumas são completamente estrangeiras para mim. Uma
hora, eu ouço um barulho e puxo minha faca, pensando que talvez eu tenha que me defender,
mas eu só assustei um coelho. "Bom te ver," eu sussurro. Se há um coelho, pode haver
centenas simplesmente esperando para serem capturados.
O chão se inclina. Eu não gosto disso particularmente. Vales me fazem sentir aprisionada. Eu
quero ficar no alto, como nas colinas ao redor do Distrito 12, onde consigo ver meus inimigos
se aproximando. Mas eu não tenho escolha a não ser continuar indo.
Estranho, mas não me sinto muito mal. Os dias me empanturrando se provaram válidos. Eu
tenho capacidade de resistência mesmo tendo dormido pouco. Estar na floresta é rejuvenescente.
Estou feliz pela solidão, apesar de ser uma ilusão, porque eu provavelmente estou na tela
agora. Não consistentemente, mas em intervalos. Há tantas mortes para se mostrar no
primeiro dia que um tributo viajando pela floresta não é muito que se ver. Mas eles mostrarão
o bastante de mim para informar às pessoas que eu estou viva, intacta e me movendo. Um dos
dias mais pesados de aposta é a abertura, quando as casualidades iniciais aparecem. Mas isso
não se compara ao que acontece quando o campo se espreme em um punhado de jogadores.
É final da tarde quando eu começo a escutar os canhões. Cada tiro representa um tributo
morto. A luta deve ter finalmente acabado na Cornucópia. Eles nunca coletam os corpos do
banho de sangue até que os assassinos tenham se dispersado. No dia da abertura, eles nem ao
menos disparam os canhões até a luta inicial acabar, porque é difícil demais ter uma noção das
fatalidades. Eu me permito pausar, ofegando, enquanto conto os tiros. Um... dois... três...
continuamente até que se chegue a onze. Onze mortos no total. Treze restantes para jogar.
Minhas unhas arranham o sangue seco do garoto do Distrito 9 que tossiu no meu rosto. Ele se
foi, certamente. Eu me pergunto sobre Peeta. Ele durou o dia? Eu saberei em algumas horas.
Quando eles projetarem as imagens dos mortos no céu para o resto de nós vermos.
Repentinamente, eu sou sobrecarregada pelo pensamento que Peeta possa já estar perdido, drenado de sangue, coletado, e em processo de ser transportado de volta para
Capitol para ser
limpo, vestido novamente, e mandado em uma caixa de madeira simples de volta para o
Distrito 12. Não mais aqui. Se dirigindo para casa. Eu tentei arduamente me lembrar se eu o
tinha visto uma vez que a ação começara. Mas a última imagem que consigo invocar é o Peeta
balançando sua cabeça enquanto o gongo soa.
Talvez seja melhor, se ele já tiver partido. Ele não tinha confiança alguma de que poderia
vencer. E eu não acabarei com a tarefa desagradável de matá-lo. Talvez seja melhor se ele tiver saído dessa de vez.
Eu desmorono próxima a minha mochila, exausta. Eu preciso vasculhar o que tem nela de
qualquer jeito antes que a noite caia. Ver o que eu tenho para trabalhar. Enquanto eu
desengancho as alças, eu consigo sentir que tem uma estrutura forte, apesar de ser de uma
cor infeliz. Esse laranja praticamente brilhará no escuro. Eu faço uma nota mental para
camuflá-la cedo amanhã.
Eu abro rapidamente a aba. O que eu mais quero, bem nesse momento, é água. A diretriz do
Haymitch para achar água imediatamente não era arbitrária. Eu não durarei muito sem ela.
Por alguns dias, eu serei capaz de funcionar com os sintomas desagradáveis da desidratação,
mas após isso eu deteriorarei para um desamparo e estarei morta em uma semana, no
máximo. Eu cuidadosamente coloco a vista os estoques. Um fino saco de dormir preto que
reflete o calor corporal. Um pacote de bolachas. Um pacote de tiras de carne seca. Uma
garrafa de iodo. Uma caixa de fósforos de madeira. Um rolo pequeno de arame. Um par de
óculos de sol. E uma garrafa de plástico de dois litros com uma tampa para levar água que está
totalmente seca.
Nada de água. Seria tão difícil assim para eles encherem a garrafa? Eu me torno consciente da
secura na minha garganta e boca, das rachaduras nos meus lábios. Eu estivera me movendo o
dia todo. Estava quente e eu tinha suado muito. Eu faço isso em casa, mas sempre houve
riachos para se beber, ou neve para derreter se chegasse a esse ponto.
Enquanto eu tornava a encher minha mochila eu tive um péssimo pensamento. O lago. Aquele
que eu vi enquanto estava esperando pelo gongo soar. E se aquela fosse a única fonte de água
na arena? Desse jeito eles garantiriam nos atrair para uma briga. O lago é uma jornada de dia
todo de onde eu me sento agora, uma jornada muito mais árdua com nada para beber. E
então, mesmo que o alcance, com certeza deverá estar pesadamente segura por alguns dos
Tributos Profissionais. Eu estou prestes a entrar em pânico quando me lembro do coelho que
eu assustei hoje mais cedo. Ele tem que beber, também. Eu só tenho que achar onde.
O crepúsculo está chegando e eu estou facilmente enferma. As árvores são finas demais para
oferecer muito esconderijo. A camada de folhas de pinheiro que abafa os meus passos tanto
dificulta localizar animais quando eu preciso das trilhas deles para achar água. E eu ainda estou
me dirigindo colina abaixo, cada vez mais profundamente para um vale que parece
interminável.
Estou com fome, também, mas eu ainda não ouso assaltar meu estoque precioso de bolachas
e carne. Ao invés, eu uso a minha faca e vou trabalhar em um pinheiro, cortando a casca de
árvore e raspando um grande punhado de cortiça macia. Eu lentamente mastigo o negócio
enquanto ando. Após uma semana da comida mais chique do mundo, é um pouco difícil
engolir. Mas eu já comi muitos pinheiros na minha vida. Eu me ajustarei rapidamente.
Mais uma hora, e fica claro que eu tenho que achar um lugar para acampar. Criaturas da noite
estão saindo. Eu consigo ouvir o pio de uma coruja ou o uivo ocasional, minha primeira pista
de que estarei competindo com predadores pelos coelhos. Se eu serei vista como uma fonte
de alimento, é cedo demais para afirmar. Pode haver qualquer quantidade de animais me
perseguindo nesse momento.
Mas nesse instante, eu decido tornar meus tributos companheiros uma prioridade. Tenho
certeza de que muitos continuarão caçando pela noite. Aqueles que venceram na Cornucópia
terão comida, uma abundância de água do lago, tochas ou lanternas, e armas que estão se
coçando para usar. Eu só posso esperar que eu tenha viajado longe e rápido o bastante para
estar fora de alcance.
Antes de me assentar, eu pego meu arame e armo duas armadilhas de movimento nos galhos
cortados. Eu sei que é arriscado armar emboscadas, mas a comida acabará logo aqui. E eu não
posso armar armadilhas quando estiver fugindo. Ainda assim, eu ando mais cinco minutos
antes de acampar.
Eu escolho a minha árvore cuidadosamente. Um salgueiro, não terrivelmente alto, mas alojado
em um grupo de outros salgueiros, oferecendo esconderijo nesses galhos longos e fluidos. Eu
subo, ficando com os galhos mais fortes perto do tronco, e acho uma forquilha vigorosa como
minha cama. Leva algum tempo, mas eu arranjo o saco de dormir de uma maneira
relativamente confortável. Eu coloco minha mochila no fundo do saco, então me deslizo para
dentro. Como precaução, eu removo meu cinto, enrolo-o todo ao redor do galho e do meu
saco de dormir, e o recoloco na minha cintura. Agora se eu rolar no meu sono, eu não irei cair
no chão. Eu sou pequena o bastante para enfiar o topo do saco por sobre a minha cabeça, mas
eu coloco meu capuz também. A medida em que a noite cai, o ar esfria rapidamente. Apesar
do risco que eu corri em pegar a mochila, eu sei agora que foi a escolha certa. Esse saco de
dormir, radiando e preservando o meu calor corporal, será inestimável. Tenho certeza de que
há diversos tributos cuja maior preocupação agora é como se manter quente, enquanto eu na
verdade serei capaz de ter algumas horas de sono. Se eu apenas não estivesse com tanta
sede...
A noite acabou de chegar quando eu ouço o hino que precede o recapitulamento das mortes.
Através dos galhos eu consigo ver o selo de Capitol, que parece estar flutuando no céu. Eu na
verdade estou vendo outra tela, uma enorme que é transportada por um de seus aerobarcos
ausentes. O hino dissipa-se e o céu fica escuro por um momento. Em casa, estaríamos
assistindo a cobertura total de cada uma das mortes, mas isso dá uma vantagem injusta para
os tributos vivos. Por exemplo, se eu coloco minhas mãos num arco e acerto alguém, meu
segredo seria revelado a todos. Não, aqui na arena, tudo que vemos são as mesmas fotografias
que mostraram quando televisionaram nossas notas do treinamento. Fotos de rosto simples.
Mas agora, ao invés de notas, eles postam apenas números de distritos. Eu tomo um longo fôlego
à medida que os rostos dos onze tributos mortos começam e marcam um por um nos meus dedos.
A primeira a aparecer é a garota do Distrito 3. Isso quer dizer que todos os Tributos
Profissionais do 1 e do 2 sobreviveram. Nenhuma surpresa aqui. Então o garoto do 4. Eu não
esperava essa, geralmente todos os Profissionais sobrevivem ao primeiro dia. O garoto do
Distrito 5... eu acho que a garota de rosto de raposa o matou. Ambos os tributos do 6 e do 7. O
garoto do 8. Ambos do 9. Sim, ali está o garoto por quem eu briguei pela mochila. Eu conto nos
meus dedos, só mais um tributo morto faltando. É o Peeta? Não, lá está a garota do Distrito
10. É isso. O selo de Capitol está de volta com um floreio musical final. Então a escuridão e os
sons da floresta retornaram.
Estou aliviada por Peeta estar vivo. Eu digo a mim mesma novamente que se eu for morta, a
vitória dele beneficiará mais a minha mãe e a Prim. É isso o que eu digo a mim mesma para
explicar as emoções conflitantes que surgem quando eu penso no Peeta. A gratitude por ele
ter me dado uma vantagem ao professar seu amor por mim na entrevista. A raiva por sua
superioridade no telhado. O temor que possamos ficar cara a cara a qualquer momento nessa
arena.
Onze mortos, mas nenhum do Distrito 12. Eu tento perceber quem sobrou. Cinco Tributos
Profissionais. A cara de raposa. Thresh e Rue. Rue... então ela sobreviveu ao primeiro dia
afinal. Eu não posso evitar me sentir feliz. Isso dá dez de nós. Os outros três eu descobrirei
amanhã. Agora que está escuro, e que eu viajei muito, e eu estou aconchegada altamente
nessa árvore, agora eu devo tentar descansar.
Eu não durmo realmente há dois dias, e então houve o longo dia de jornada até a arena.
Lentamente, eu permito que meus músculos relaxem. Que meus olhos fechem. A última coisa
que eu penso é que é sorte eu não roncar.....
Snap! O som de um galho quebrando me acorda. Por quanto tempo eu dormi? Quatro horas?
Cinco? A ponta do meu nariz está congelada. Snap! Snap! O que está havendo? Esse não é o
som de um galho sob o pé de alguém, mas a explosão aguda de alguém vindo de uma árvore.
Snap! Snap! Eu julgo ser há centenas de metros a minha direita. Lentamente, silenciosamente,
eu me viro naquela direção. Por alguns minutos, não há nada além de escuridão e um pouco
de arrastamento de pés. Então eu vejo uma faísca e um fogo pequeno começa a florescer. Um
par de mãos se aquece nas chamas, mas eu não consigo distinguir mais que isso.
Eu tenho que morder o meu lábio para não gritar cada nome imundo que conheço para o
iniciador do fogo. O que está pensando? Um fogo logo ao anoitecer teria sido uma coisa.
Aqueles que batalharam na Cornucópia, com sua força superior e excedente de fornecimentos,
não seria possível para eles estarem perto o bastante para avistar chamas então. Mas agora,
quando eles provavelmente estiveram passando um pente fino na floresta por horas
procurando as vítimas. Tanto faz se você também estivesse acenando uma bandeira e
gritando, "Venha e me pegue!"
E aqui estou eu, a uma distância curta do maior idiota dos Games. Presa em uma árvore. Não
ousando fugir, já que minha localização em geral acabou de ser anunciada para qualquer
assassino que se importa. Quero dizer, eu sei que está frio aí e nem todo mundo tem um saco
de dormir. Mas então você cerra seus dentes e agüenta até o amanhecer!
Eu me deito ardendo no meu saco pelas próximas horas, na verdade pensando que se eu
conseguir sair dessa árvore, eu não terei o menor problema em dizimar meu vizinho próximo.
Meu instinto tem sido de fugir, não lutar. Mas obviamente essa pessoa é um perigo. Pessoas
estúpidas são perigosas. E essa provavelmente não tem muita arma, enquanto eu tenho essa faca excelente.
O céu ainda está escuro, mas eu consigo sentir os primeiros sinais do amanhecer se
aproximando. Estou começando a achar que nós ­ quero dizer, a pessoa cuja morte eu estou
agora planejando e eu ­ nós podemos realmente ter passado despercebidos. Então eu ouço.
Diversos pares de pés correndo. O iniciador do fogo deve ter cochilado. Eles estão em cima
dela antes que ela possa escapar. Eu sei que é uma garota agora, eu consigo afirmar pela
súplica, pelo grito agonizante que se segue. Então há uma risada e parabenizações de diversas
vozes. Alguém grita, "Doze já foram e faltam onze!" o que consegue uma rodada de assovios
de apreciação.
Então eles estão lutando em bando. Não estou realmente surpresa. Regularmente alianças são
formadas nos estágios primários dos Games. Os fortes se juntam para caçar os fracos, então,
quando a tensão começa a se tornar grande demais, começam a se virar uns contra os outros.
Eu não tenho que pensar muito em quem formou essa aliança. Serão os Tributos Profissionais
restantes dos Distritos 1, 2 e 4. Dois garotos e três garotas. Aqueles que almoçavam juntos.
Por um momento, eu ouço-os checando os suprimentos da garota. Eu posso afirmar por seus
comentários que eles não acharam nada de bom. Eu me pergunto se a vítima é a Rue, mas
rapidamente descarto esse pensamento. Ela é brilhante demais para estar preparando uma
fogueira como essa.
"É melhor nos afastarmos para que eles possam pegar o corpo antes que ele comece a feder."
Estou quase certa que esse é o garoto bruto do Distrito 2. Há murmúrios de assentimento e
então, para meu horror, eu escuto o bando se dirigindo na minha direção. Eles não sabem que
eu estou aqui. Como poderiam? E eu estou bem escondida no grupo de árvores. Pelo menos
enquanto o sol permanece abaixado. Então meu saco de dormir preto se transformará de
camuflagem em encrenca. Se eles simplesmente continuarem se movendo, eles passarão por
mim e terão ido embora em um minuto.
Mas os Profissionais param na clareira a cerca de nove metros da minha árvore. Eles têm
lanternas, tochas. Eu consigo ver um braço aqui, uma bota ali, através dos intervalos nos
galhos. Eu viro pedra, nem mesmo ousando respirar. Eles me avistaram? Não, ainda não. Eu
consigo afirmar pelas palavras deles que suas mentes estão em outro lugar.
"Não deveríamos ter ouvido um canhão já?"
"Eu diria que sim. Nada para impedir que eles entrem imediatamente."
"A não ser que ela não esteja morta."
"Ela está morta. Eu mesmo a imobilizei."
"Então onde está o canhão?"
"Alguém deveria voltar. Se certificar que o trabalho foi feito."
"É, não queremos ter que localizá-la duas vezes."
"Eu disse que ela está morta!"
Uma discussão ocorre até que um tributo silencia os outros. "Estamos perdendo tempo! Eu
vou terminar com ela e vamos nos mover."
Eu quase caio da árvore. A voz pertence ao Peeta.
12
Graças a Deus, eu tive a perspicácia de me cingir. Eu rolei para o lado de fora da bifurcação e
encarei o chão, segura no lugar pelo cinto, por um lado, e meus pés escarranchados na
mochila dentro do meu saco de dormir, apoiados contra o tronco. Deve ter havido algum
farfalho quando eu me inclinei de lado, mas os Profissionais estavam muito concentrados em
sua discussão para perceber.
"Vá em frente, então, Lover Boy," diz o garoto do Distrito 2. "Veja por si mesmo."
Eu só tenho um vislumbre de Peeta, iluminado pela tocha, voltando para a garota pelo fogo.
Seu rosto está inchado dos machucados, há uma bandagem manchada de sangue em um
braço, e pelo som de seu andar, está mancando. Lembro dele balançando sua cabeça, me
dizendo para não entrar na briga pelos suprimentos, quando o tempo todo, o tempo todo ele
planejava se atirar no centro das coisas. Justo o oposto do que Haymitch tinha dito para ele
fazer.
Ok, eu posso engolir isso. Ver todos aqueles suprimentos foi tentador. Mas isso... isso é outra
coisa. Essa parceria com a matilha de lobos Profissionais para caçar o resto de nós. Ninguém
do Distrito 12 pensaria em fazer uma coisa dessas! Tributos Profissionais são excessivamente
cruéis, arrogantes, melhor alimentados, mas só porque são os cãezinhos do Capitol.
De modo universal, um sólido ódio de todos menos aqueles de seus próprios distritos. Posso
imaginar as coisas que eles estão dizendo sobre ele em casa agora. E Peeta teve a ousadia de
conversar comigo sobre desonra?
Obviamente, o garoto nobre do telhado estava jogando apenas mais um jogo comigo. Mas
esse será seu último. Eu assistirei avidamente o céu de noite por sinais de sua morte, se eu
mesma não matá-lo primeiro.
Os Tributos Profissionais estão silenciosos até que ele sai do campo auditivo, então usam vozes
baixas.
"Por que nós apenas não o matamos logo agora e acabamos com isso?"
"Deixe-o por enquanto. Qual é o dano? E ele é útil com aquela faca."
Ele é? Isso é novidade. Que monte de coisas interessantes eu estou aprendendo sobre meu
amigo Peeta hoje.
"Além disso, ele é nossa melhor chance de encontrá-la."
Eu levo um momento para registrar que eles estão se referindo a mim.
"Por quê? Você acha que ela está mesmo naquela coisa romântica e sentimental?"
"Ela deve. Parece muito simplória para mim. Toda vez que eu penso nela dando voltas naquele
vestido, tenho vontade de vomitar."
"Gostaria de saber como ela conseguiu aquele onze."
"Aposto que o Lover Boy sabe."
O som de Peeta retornando os silencia.
"Ela estava morta?" Pergunta o garoto do Distrito 2.
"Não. Mas ela está agora," diz Peeta. Justo então, o canhão dispara. "Prontos para ir adiante?"
O grupo dos Profissionais começa a correr justo enquanto a alvorada começa irromper, e as
músicas dos pássaros preenchem o ar. Eu permaneço na minha posição estranha, os músculos
tremendos com o esforço por um longo tempo, então me suspendo de volta ao meu galho. Eu
preciso descer, continuar, mas por um momento eu fico deitada ali, digerindo o que acabei de
escutar. Não só Peeta está com os Profissionais, ele está os ajudando a me encontrar. A garota
simplória que tem que ser levada a sério por causa de seu onze. Porque ela pode usar seu arco
e flecha. O que Peeta sabe melhor que qualquer um.
Mas ele não disse pra eles ainda. Ele está guardando essa informação porque sabe que é tudo
que o mantém com vida? Ele ainda está fingindo me amar para a audiência? O que está se
passando pela cabeça dele?
De repente, os pássaros ficam silenciosos. Então um pássaro dá uma chamada de alerta. Uma
simples nota. Como aquela que Gale e eu escutamos quando a Avox de cabelos vermelhos foi
pega. Alto, acima da fogueira morrendo, um aerobarco se materializa. Um enorme conjunto de
dentes de metal cai. Devagar, gentilmente, a tributo morta é levada para dentro do aerobarco.
Então ele some. Os pássaros retomam o canto.
"Mexa-se," sussurro para mim mesma. Esquivo-me do saco de dormir, e o coloco na mochila.
Respiro fundo. Enquanto estava oculta na escuridão e no saco de dormir e ramos de salgueiro,
é provável que tenha sido difícil para as câmeras conseguirem um bom close de mim. Sei que
eles devem estar me rastreando agora mesmo. No minuto que eu bato no chão, tenho
garantido meu close-up.
A audiência estará fora de si, sabendo que eu estava na árvore, que eu escutei a conversa dos
Profissionais, que eu descobri que Peeta estava com eles. Até que eu planeje exatamente
como eu vou jogar, é melhor, ao menos, passar por cima das coisas. Não perplexa. Certamente
não confusa ou assustada.
Não, eu preciso ver um passo à frente no jogo.
Então enquanto deslizo para fora das folhagens e dentro da luz do amanhecer, paro por um
segundo, dando às câmeras tempo para focarem em mim. Então inclino minha cabeça
levemente para o lado e dou um sorriso. Vejam! Deixem-no imaginarem o que isso significa!
Eu estou para abandonar o lugar quando penso nas cobras. Talvez seja imprudente checá-las
com os outros tão perto. Mas eu tenho. Muitos anos de caçada, eu acho. E a isca de uma
possível comida. Sou recompensada com um ótimo coelho. Num piscar de olhos, eu limpei e
retirei as tripas do animal, deixando a cabeça, os pés, rabo, pele, e vísceras sob uma pilha de
folhas. Gostaria de ter fogo ­ comer coelho cru pode te dar febre, uma lição que aprendi da
pior forma ­ quando penso no tributo morto. Eu corro de volta ao seu campo. Certo o
bastante, o carvão do fogo de sua morte ainda está quente. Eu corto o coelho, colo num galho
em forma de espelho, e coloco-o sobre as brasas.
Estou satisfeita com as câmeras agora. Quero que os patrocinadores vejam que eu posso
caçar, que eu sou uma boa aposta porque não cairei em armadilhas tão facilmente quanto os
outros irão pela fome. Enquanto o coelho assa, eu môo parte dos ramos carbonizados e passo-
o sobre minha mochila laranja. O tom a escurece, mas eu sinto que uma camada de lama iria
ajudar definitivamente. É claro, para ter lama, precisaria de água...
Eu puxo meus utensílios, seguro minha saliva, chuto alguma sujeira sobre as brasas, e tomo a
direção oposta da que os Profissionais foram. Como metade do coelho enquanto eu vou, então
embrulho as sobras em um plástico para mais tarde. A carne pára o rugido no meu estômago,
mas faz pouco para sossegar minha sede. Água é minha maior prioridade agora.
Enquanto eu marcho, tenho certeza que ainda estou prendendo as telas em Capitol, então
tenho o cuidado de continuar a esconder minhas emoções. Mas que diversão Claudius
Templesmith deve estar tendo com seus comentaristas convidados, dissecando o
comportamento de Peeta, minha reação. O que fazer de tudo? Peeta tem revelado suas
verdadeiras cores? O que isso afeta nas chances de aposta? Nós perderemos patrocínios? Nós
ao menos temos patrocínio? Sim, tenho certeza que temos, ou pelo menos tínhamos.
Certamente Peeta acabou nossa dinâmica de namorados celebridades. Ou não? Talvez, uma
vez que ele não fale muito sobre mim, nós ainda possamos conseguir algo disso. Talvez as
pessoas pensem que é algo que nós planejamos juntos se eu parecer que estou divertida
agora.
O sol se eleva no céu e mesmo através da cobertura parece excessivamente iluminado. Cubro
os meus lábios com a gordura do coelho e tento não arquejar, mas é inútil. Só se passou
apenas um dia e eu estou desidratada rápido. Tento pensar em tudo que sei sobre achar água.
Corro morro abaixo, então, de fato, continuar a descer nesse vale não é uma má idéia. Se eu
pudesse apenas localizar uma pista do jogo ou um ponto particularmente verde na vegetação,
podia me ajudar bastante, mas nada parece mudar. Há apenas um leve declive gradual, os
pássaros, a mesmice nas árvores.
Enquanto o dia passa, sei que estou com problemas. O pouco que eu pude urinar era castanho
escuro, minha cabeça está doendo, e há uma mancha seca na minha língua que se recusa a
umedecer. O sol machuca meus olhos então eu pego meus óculos escuros, mas quando eu os
coloco, eles fazem algo suspeito com a minha visão, então apenas os coloco de volta na minha
mochila.
É fim de tarde quando acho que encontrei ajuda. Identifico um grupo de arbustos de bagas e
me apresso em tirar as frutas, sugando o doce suco de suas peles. Mas justo quando eu estou
segurando-os para os meus lábios, realmente olho para eles. O que eu pensei que era arando
tinha o formato levemente diferente, e quando eu abro um, o interior é vermelho vivo. Eu não
reconheço essas bagas, talvez elas sejam comestíveis, mas eu estou achando que essa é uma
vil armadilha da parte dos Gamemakers. Até o instrutor de plantas no Centro de Treinamento
nos disse para fugir de bagas a menos que você esteja 100 por cento certa de que elas não
sejam tóxicas. Algo que eu já sabia, mas estou com tanta sede que preciso de tempo para ter a
força de jogá-las fora.
Fadiga está começando a me envolver, mas não o cansaço usual que segue uma longa
caminhada. Tenho que parar e descansar freqüentemente, embora eu saiba que a única cura
para o que me aflige requer procura contínua. Experimento uma nova tática ­ subir nas
árvores tão alto que ouso no meu instável estado ­ para procurar algum sinal de água. Mas tão
longe eu consigo ver em qualquer direção, há o mesmo implacável trecho de floresta.
Determinada a continuar até o cair da noite, caminho até estar tropeçando sobre meus pés.
Exausta, eu me lanço em cima de uma árvore e me prendo lá. Não tenho apetite, mas chupo
os ossos do coelho para dar a minha boca algo para fazer. A noite cai, o hino toca, e no alto do
céu vejo a figura de agora, que aparentemente era do Distrito 8. À qual o Peeta voltou para
acabar.
Meu medo do grupo de Profissionais é mínimo comparado à minha sede ardente. Além disso,
eles estão seguindo para longe de mim e por enquanto eles também terão de descansar. Com
a escassez de água, eles podem ter que retornar para o lago para encher as garrafas.
Talvez, esse é o único curso para mim também.
A manhã traz agonia. Minha cabeça palpita a cada batida do coração. Movimentos simples
mandam punhaladas de dor através das minhas juntas. Eu caio mais do que pulo da árvore.
Toma alguns minutos para eu juntar meus utensílios. Em algum lugar dentro de mim, sei que
isso é errado. Eu deveria estar agindo mais cuidadosamente, movendo-me com mais urgência.
Mas minha mente parece enevoada e formar um plano é difícil. Inclino-me para trás contra o
rtronco da árvore, um dedo delicadamente alisando a superfície de lixa da minha língua,
enquanto avalio minhas opções. Como eu consigo água?
Retornar ao lago. Nada bom. Eu nunca faria isso.
Esperar por chuva. Não há nem uma nuvem no céu.
Continuar procurando. Sim, essa é minha única chance. Mas então, outro pensamento me
bate, e a explosão de raiva que se segue traz meu senso de volta.
Haymitch! Ele podia me mandar água! Aperte um botão e a envie para mim em um pára-
quedas de prata em minutos. Sei que devo ter patrocinadores, no mínimo um ou dois que
podem bancar meio litro de água para mim. Sim, é caro, mas essas pessoas, elas são feitas de
dinheiro. E eles estarão apostando em mim também. Talvez Haymitch não perceba o quão
profunda é minha necessidade.
Digo numa voz tão alta quanto ouso. "Água." Espero, esperançosa, por um pára-quedas descer
do céu. Mas nada está vindo.
Algo está errado. Eu estava enganada sobre ter patrocinadores? Ou o comportamento de
Peeta fez com que eles todos recuassem? Não, não acredito. Há alguém aí fora que quer me
comprar água, só Haymitch está recusando em deixá-la passar para cá. Como meu mentor, ele
tem o controle do fluxo de presentes dos patrocinadores. Sei que ele me odeia. Ele deixou isso
bem claro. Mas o bastante para me deixar morrer? Disso? Não pode fazer isso, pode? Se um
mentor maltrata seus tributos, será responsabilizado pelos telespectadores, pelas pessoas do
Distrito 12. Mesmo Haymitch não se arriscaria, arriscaria? Diga o que quiser sobre meus
companheiros negociantes de Hob, mas não acho que eles dariam boas-vindas a ele lá se me
deixasse morrer dessa forma. E então onde ele iria conseguir a sua bebida? Então... o quê? Ele
está tentando me fazer sofrer por desafiá-lo? Ele está direcionando todo o patrocínio para
Peeta? Ele está tão bêbado até para notar o que está acontecendo nesse momento? De
alguma forma não acredito nisso e não acredito que ele está tentando me matar por
negligência, também. Ele tem, na verdade, no seu próprio modo desagradável, genuinamente
tentado me preparar para isso. Então, o que está acontecendo?
Eu enterro meu rosto em minhas mãos. Não há perigo de lágrimas agora, eu não poderia
produzir nenhuma nem para salvar a minha vida. O que Haymitch está fazendo? Apesar da
minha raiva, ódio, e suspeitas, uma pequena voz detrás da minha cabeça sussurra uma resposta.
Talvez ele esteja te mandando uma mensagem, ela diz. Uma mensagem. Dizendo o quê? Então
eu sei. Só há uma boa razão para Haymitch estar segurando a água de mim. Porque ele sabe
que eu quase estou encontrando-a.
Eu cerro meus dentes e me coloco de pé. Minha mochila parece ter triplicado o peso. Encontro
um galho quebrado que vai servir como uma bengala e começo a caminhada. O sol está forte,
ainda mais abrasador que os primeiros dois dias. Sinto-me como um velho pedaço de couro,
secando e chicoteando no calor. Todo passo é um esforço, mas me recuso a parar. Eu me
recuso a sentar. Se eu sentar, há uma boa chance de não ser capaz de me levantar de novo, de
que eu nem lembre minha tarefa.
Que presa fácil eu sou! Qualquer tributo, até a pequena Rue, poderia me pegar agora,
meramente pulando sobre mim e me matando com minha própria faca, e eu teria pouca força
para resistir. Mas se alguém está na minha parte da floresta, ignora-me. A verdade é, eu sinto
como se estivesse a milhões de quilômetros de outra alma viva.
Não sozinha, porém. Não, eles com certeza têm as câmeras me seguindo agora. Penso nos
anos assistindo tributos morrendo de fome, congelando, sangrando, ou desidratando até a
morte. A menos que haja uma briga muito boa acontecendo em algum lugar, eu estou sendo a
atração.
Meus pensamentos voltam a Prim. É provável que ela não esteja me assistindo ao vivo, mas
eles mostram as gravações na escola durante o almoço. Por ela, tenho que parecer o menos
desesperada possível.
Mas pela tarde, sei que o final está chegando. Minhas pernas estão tremendo e meu coração
acelerado. Eu continuo esquecendo exatamente o que estou fazendo. Tropeço repetidamente
e consigo recuperar meus pés, mas quando a vara escorrega por debaixo de mim, eu
finalmente caio no chão incapaz de me levantar. Deixo meus olhos se fecharem.
Eu me enganei quanto ao Haymitch. Ele não tem nenhuma intenção de me ajudar.
Está tudo certo, penso. Não é tão ruim aqui. O ar é menos quente, significando que a noite se
aproxima. Há um suave, doce cheiro que me lembra lírios. Meus dedos batem no chão macio,
deslizando facilmente sobre ele. Esse é um bom lugar para morrer, penso.
Minhas pontas dos dedos fazem pequenos padrões de giros na terra fria e escorregadia. Eu
adoro lama, penso. Quantas vezes eu segui as caças com a ajuda dessa macia e legível superfície. Bom para picadas de abelha, também. Lama. Lama. Lama! Meus olhos
se abrem e
eu enfio meus dedos na terra. É lama! Meu nariz se ergue no ar. E aqueles são lírios! Aguapés!
Eu rastejo agora, sobre a lama, arrastando-me em direção ao cheiro. Cinco metros de onde eu
caí, rastejo pela confusão de plantas até a poça. Flutuando na superfície, flores amarelas no
florescer, estão meus belos lírios.
É tudo o que posso fazer para não mergulhar o meu rosto na água e engolir tudo o que posso.
Mas tenho juízo o bastante para me abster. Com as mãos tremendo, pego minha garrafa
térmica e a encho com água. Acrescento o que eu lembro ser o número certo de gotas de iodo
para purificá-la. A meia hora de espera é uma agonia, mas eu consigo. Ao menos, penso que é
meia hora, mas é certamente o tempo que posso suportar.
Devagar, calma agora, digo para mim mesma. Tomo um gole e me obrigo a esperar. Então
outro. Durante o próximo par de horas, eu tomo metade do galão. Então um segundo. Preparo
outro antes de me retirar para uma árvore onde eu continuo bebericando, comendo coelho, e
até mesmo um dos meus preciosos biscoitos. No momento que o hino toca, sinto-me
consideravelmente melhor. Não há rostos essa noite, nenhum tributo morreu hoje. Amanhã
eu ficarei aqui, descansando, camuflando minha mochila com lama, pegando alguns daqueles
pequenos peixes que eu vi enquanto bebia, desenterrando as raízes do aguapé para fazer uma
boa refeição. Eu me aconchego debaixo do meu saco de dormir, segurando minha garrafa de
água como se fosse minha própria vida, que, é claro, é.
Umas poucas horas depois, um barulho de pés me balança do meu sono. Eu olho ao redor em
confusão. Ainda não amanheceu, mas meus doloridos olhos podem ver.
Seria difícil perder a parede de fogo descendo sobre mim.

13

Meu primeiro impulso é descer da árvore, mas eu estou amarrada. De algum modo, meus
dedos tateando soltam a fivela e eu caio no chão num amontoado, ainda embrulhada em meu
saco de dormir. Não há tempo para qualquer tipo de arrumação. Felizmente, minha mochila e
garrafa de água já estão no saco. Eu empurro a fivela, hasteio o saco sobre meu ombro, e fujo.
O mundo se transformou em chamas e fumaça. Galhos queimando explodem das árvores e
caem em chuvas de faíscas aos meus pés. Tudo que posso fazer é seguir os outros, os coelhos
e veados e eu até mesmo avisto uma matilha de cachorros selvagens disparando pela floresta.
Eu confio no sentido de direção deles porque seu instinto é mais aguçado que o meu. Mas eles
são muito mais velozes, voando pelo matagal tão graciosamente enquanto minhas botas
enroscam em raízes e troncos caídos de árvores, que não há maneira de eu acompanhá-los.
O calor é horrível, mas pior que o calor é a fumaça, que ameaça me sufocar a qualquer
momento. Eu puxo o colar da minha camiseta sobre meu nariz, grata por encontrá-la
ensopada com suor, e ela me oferece um fino véu de proteção. E eu corro, sufocando, meu
saco batendo contra minhas costas, meu rosto cortado com os galhos que se materializam sem
aviso do nevoeiro cinza, porque eu sei que devo correr.
Isso não é nenhuma fogueira de tributo que saiu de controle, nenhuma ocorrência acidental.
As chamas que pressionam sobre mim tem uma altura anormal, uma uniformidade que as
marca como feitas por humanos, feitas por máquinas, feitas por Gamemakers. As coisas
estavam quietas demais hoje. Nenhuma morte, talvez nem mesmo uma luta. A audiência em
Capitol estaria se entediando, clamando que esses Games estavam a beira de serem
sonolentos. Isso é uma coisa que os Games não podem ser.
Não é difícil seguir a motivação dos Gamemakers. Há o bando dos Profissionais e então há o
resto de nós, provavelmente espalhados longe e escassamente pela arena. Esse fogo foi
designado para nos revelar, para nos atrair. Pode não ser o dispositivo mais original que eu já
havia visto, mas é muito, muito eficiente.
Eu pulo por sobre uma lenha em chamas. Não alto o bastante. A ponta final da minha jaqueta
pega fogo e eu tenho que parar para arrancá-la do meu corpo e extirpar as chamas. Mas eu
não ouso deixar a jaqueta, queimada e ardendo como estava, eu arrisco enfiá-la no meu saco
de dormir, esperando que a falta de ar sufoque o que eu não extingui. Isso é tudo que eu
tenho, o que eu carrego nas costas, e é pouco para se sobreviver.
Em uma questão de minutos, minha garganta e nariz estavam queimando. A tosse começou
logo depois e meus pulmões começaram a parecer que realmente estavam sendo cozinhados.
Desconforto transformou-se em agonia até que cada respiração mandava uma dor abrasadora
pelo meu peito. Eu consigo me abrigar debaixo de uma pedra brotando bem quando o vômito
começou, e eu perco meu Jantar escasso e o pouco de água que sobrou no meu estômago.
Agachando de quatro, eu forço o vômito até que não tenha sobrado nada para subir.
Eu sei que preciso continuar me mexendo, mas estou tremendo e tonta agora, arfando por ar.
Eu me permito uma colherada de água para limpar minha boca e cuspir, então tomo alguns
goles da minha garrafa. Você tem um minuto, eu digo a mim mesma. Um minuto para
descansar. Eu tomo tempo para reordenar meus suprimentos, estofar o saco de dormir, e
desordenadamente enfiar tudo na mochila. Meu minuto acabou. Eu sei que é hora de me
mexer, mas a fumaça encobriu meus pensamentos. Os animais de pernas ligeiras que eram a
minha bússola me deixaram para trás. Eu sei que não estive nessa parte da floresta antes, não
havia pedras de tamanho considerável como essa na qual estou me abrigando nas minhas
viagens anteriores. Para onde os Gamemakers estão me levando? De volta para o lago? Para
um terreno totalmente novo cheio com novos perigos? Eu tinha acabado de encontrar
algumas horas de paz na poça quando esse ataque começou. Haveria algum jeito de eu viajar
paralelamente ao fogo e conseguir voltar para cá, para enfim uma fonte de água? A parede de
fogo devia ter um fim e não queimaria indefinitivamente. Não porque os Gamemakers não
pudessem mantê-la queimando, mas porque, novamente, isso chamaria acusações de tédio da
audiência. Se eu conseguisse voltar para trás da linha de fogo, eu conseguiria evitar encontrar
os Profissionais. Eu tinha acabado de decidir tentar e voltar, apesar de precisar de quilômetros
de viagem para longe do inferno e então uma rota muito tortuosa de volta, quando a primeira
bola de fogo explode na pedra a cerca de sessenta centímetros da minha cabeça. Eu salto de
debaixo do meu leito, energizada por medo renovado.
O jogo deu uma virada. O fogo era só para nos fazer mover, agora a audiência verá uma
diversão de verdade. Quando eu ouço o próximo sibilo, eu me abaixo no chão, não tomando o
tempo para olhar. A bola de fogo atinge uma árvore à minha esquerda, engolfando-a em
chamas. Permanecer parada é morrer. Mal estou de pé quando a terceira bola atinge o chão
onde estava deitada, mandando uma pilastra de fogo atrás de mim. O tempo perde o
significado agora que eu tento freneticamente desviar dos ataques. Eu não consigo ver de
onde estão sendo mandados, mas não é um aerobarco. Os ângulos não são extremos o
bastante. Provavelmente todo esse segmento da floresta foi armado com lançadores de
precisão que estão escondidos em árvores ou pedras. De algum lugar, em uma sala gelada e
imaculada, um Gamemaker está sentado com um par de controles, os dedos no gatilho que
poderiam acabar com a minha vida em um segundo. Tudo o que precisa é um golpe direto.
Qualquer plano vago que eu tinha concebido em relação a retornar para a minha poça é
apagado da minha mente enquanto eu ziguezagueio e salto para evitar bolas de fogo. Cada
uma é somente do tamanho de uma maçã, mas engloba um poder tremendo em contato.
Cada sentido que eu tenho fica em sobrecarga à medida que a necessidade de sobreviver toma
conta. Não há tempo para julgar se um movimento é o correto. Quando há um sibilo, eu ajo ou
morro.
Algo me mantém movendo para frente, contudo. Toda uma vida de assistir os Hunger Games
me informa que certas áreas da arena são equipadas para certos ataques. E que se eu
conseguir simplesmente sair dessa seção, eu talvez consiga sair do alcance dos lançadores. Eu
talvez também possa então cair diretamente numa sepultura de víboras, mas não posso me
preocupar com isso agora.
Por quanto tempo eu me arrastei desviando das bolas de fogo, não sei dizer, mas os ataques
finalmente começam a diminuir. O que é bom, porque eu novamente estou tendo ânsias.
Dessa vez é uma substância ácida que escalda a minha garganta e acha caminho até o meu
nariz também. Sou forçada a parar enquanto meu corpo convulsiona, tentando
desesperadamente se livrar dos venenos que estive sugando durante o ataque. Eu espero pelo
próximo sibilo, o próximo sinal para fugir. Não vem. A força da ânsia espremeu lágrimas dos
meus olhos doloridos. Minhas roupas estão ensopadas em suor. De algum modo, através da
fumaça e do vômito, eu capturo o cheiro de cabelo queimado. Minhas mãos remexem minha
trança e descobrem que uma bola de fogo cauterizou pelo menos quinze centímetros dela.
Mechas de cabelo escuro esfarelam nos meus dedos. Eu encaro-as, fascinada pela
transformação, quando o sibilo é registrado.
Meus músculos reagem, só que não rápidos o bastante dessa vez. A bola de fogo atinge o chão
do meu lado, mas não antes de derrapar pela minha panturrilha direita. Vendo a perna da
minha calça pegando fogo me faz pirar. Eu giro e corro para trás de quatro, esperneando,
tentando me retirar do horror. Quando eu finalmente reganho sentido o bastante, eu rolo a
perna para frente e para trás no chão, o que sufoca a pior parte. Mas então, sem pensar, eu
rasgo o tecido restante com as minhas próprias mãos.
Eu sento no chão, a alguns metros do calor emanado da bola de fogo. Minha panturrilha está
gritando, minhas mãos cobertas por açoites vermelhos. Estou tremendo demais para me
mover. Se os Gamemakers quiserem me finalizar, agora é a hora.
Eu ouço a voz do Cinna, carregando imagens de tecidos ricos e pedras preciosas brilhantes.
"Katniss, a garota que estava pegando fogo." Que risada gostosa os Gamemakers deviam estar
dando dessa. Talvez, as lindas vestimentas de Cinna tenham até mesmo trazido essa tortura
particular para mim. Eu sei que ele não podia ter previsto isso, deve estar sofrendo por mim,
porque, de fato, eu acredito que ele gosta de mim. Mas no todo, talvez aparecer
completamente pelada naquela carruagem tivesse sido mais seguro para mim.
O ataque agora tinha acabado. Os Gamemakers não me querem morta. Ainda não, de
qualquer maneira. Todos sabem que eles poderiam destruir todos nós dentro de segundo após
o gongo de abertura. O esporte real do Hunger Games é observar os tributos matando uns aos
outros. De vez em quando, eles matam um tributo só para lembrar aos jogadores que eles
podem. Mas na maioria, eles nos manipulam para confrontar uns aos outros cara-a-cara. O
que quer dizer que, se não estão mais atirando em mim, tem pelo menos um outro tributo
próximo.
Eu me arrastaria para uma árvore e me acobertaria agora se pudesse, mas a fumaça ainda está grossa o bastante para me matar. Eu me faço ficar de pé e começo a mancar
para longe da
parede de chamas que ilumina o céu. Parece não estar mais me perseguindo, exceto com suas nuvens pretas fedorentas.
Outra luz, a do dia, começa a emergir suavemente. Giros de fumaça capturam os raios solares.
Minha visibilidade é pobre. Eu consigo ver talvez treze metros em qualquer direção. Um
tributo podia facilmente estar escondido de mim daqui. Eu devia puxar minha faca como
precaução, mas eu duvido da minha habilidade de segurá-la por muito tempo. A dor nas
minhas mãos não pode de jeito algum competir com a da minha panturrilha. Eu odeio
queimaduras, sempre as odiei, mesmo uma pequena adquirida quando puxava uma fornada
de pão do forno. É o pior tipo de dor para mim, mas eu nunca experimentei nada como isso.
Eu estou tão cansada que nem ao menos noto que estou no lago até estar até o tornozelo. É
alimentada por uma nascente, borbulhando de uma fenda em algumas pedras, e
agradavelmente gelada. Eu enfio minhas mãos na água rasa e sinto alívio instantâneo. Não é
isso que minha mãe sempre diz? O primeiro tratamento para uma queimadura é água gelada?
Que reduz o calor? Mas ela queria dizer queimaduras menores. Provavelmente ela
recomendaria isso para as minhas mãos. Mas e quanto à minha panturrilha? Apesar de eu não
ter tido coragem ainda de examiná-la, suponho que seja um ferimento de um nível totalmente
diferente.
Eu deito de barriga na beirada do lago por um tempo, balançando minhas mãos na água,
examinando as pequenas chamas em minhas unhas que estavam começando a descascar.
Ótimo. Já tive fogo o bastante por uma vida.
Eu lavo o sangue e as cinzas do meu rosto. Eu tento relembrar tudo que eu sei sobre
queimaduras. São ferimentos comuns em Seam, onde cozinhamos e aquecemos nossas casas
com carvão. Então há os acidentes nas minas... Uma família uma vez trouxe um jovem
inconsciente implorando para minha mãe ajudá-lo. O médico do distrito que é responsável por
tratar os minerados tinha descartado-o, dito a família para levá-lo para casa para morrer. Mas
eles não aceitavam isso. Ele ficou deitado na mesa da nossa cozinha, desacordado
inteiramente. Eu vislumbrei o ferimento em sua coxa, carne aberta e carbonizada, queimada
até o osso, antes que eu fugisse de casa. Eu fui para a floresta e cacei o dia todo, assombrada
pela terrível perna, as memórias da morte do meu pai. O que foi engraçado é que, Prim, que
tem medo de sua própria sombra, ficou e ajudou. Minha mãe diz que curandeiros nascem, e
não são feitos. Elas fizeram seu melhor, mas o homem morreu, justamente como o médico
tinha dito.
Minha perna precisa de atenção, mas eu ainda não consigo olhar para ela. E se for tão ruim
quanto do homem e eu conseguir ver o meu osso? Então eu lembro da minha mãe dizendo
que se uma queimadura é severa, a vítima podia nem ao menos sentir dor, porque os nervos
estariam destruídos. Encorajada por isso, eu me sento e balanço minha perna na minha frente.
Eu quase desmaio ao ver a minha panturrilha. A carne é um vermelho brilhante coberto com
bolhas. Eu me forço a tomar fôlegos profundos e vagarosos, sentindo-me bem certa que as
câmeras estão no meu rosto. Eu não posso mostrar fraqueza com esse ferimento. Não se eu
quiser ajudar. Pena não te dá ajuda. Admiração por sua recusa em ceder te dá. Eu corto o
restante da perna da calça no joelho e examino o ferimento mais de perto. A área queimada é
cerca do tamanho da minha mão. Nenhuma pele está preta. Eu acho que não é tão ruim para
ensopar. Cuidadosamente, eu estiquei minha perna no lago, sustentando o calcanhar da minha
bota numa pedra para que o couro não ficasse muito encharcado, e suspiro, porque isso
oferecia mesmo algum alívio. Eu sei que há ervas, se eu conseguisse achá-las, que acelerariam
a cura, mas eu não consigo exatamente lembrar. Água e tempo serão provavelmente tudo que
eu terei com o que trabalhar.
Eu deveria estar me mexendo? A fumaça está lentamente dissipando, mas ainda é pesada
demais para ser saudável. Se eu continuar longe do fogo, eu não estarei andando diretamente
para as armas dos Profissionais? Além do mais, toda vez que eu levanto minha perna da água, a dor
ressalta tão intensamente que eu tenho que deslizar para dentro de novo. Minhas mãos estão
ligeiramente menos exigentes. Elas conseguem aguentar pequenos intervalos do lago.
Então eu lentamente coloco o motor de volta em ação. Primeiramente eu encho minha garrafa
com a água do lago, trato-a, e quando tempo o bastante passou, começo a reidratar meu
corpo. Após um tempo, eu me forço a mordiscar uma bolacha de água e sal, o que ajuda a
acalmar meu estômago. Eu enrolo meu saco de dormir. Exceto por algumas marcas pretas, é
relativamente incólume. Minha jaqueta é outro assunto. Fedendo e queimada, pelo menos
trinta centímetros nas costas não havia conserto algum. Eu corto a área danificada, ficando
com uma vestimenta que fica simplesmente no final das minhas costelas. Mas o capuz está
intacto e é bem melhor do que nada.
Apesar da dor, o entorpecimento começa a tomar conta. Eu iria para uma árvore e tentaria
descansar, exceto que eu seria facilmente avistada. Além do mais, abandonar meu lago seria
impossível. Eu arrumo organizadamente meus suprimentos, até mesmo coloco meu saco nos
meus ombros, mas não consigo partir. Eu avisto algumas plantas aquáticas com raízes
comestíveis e faço uma pequena refeição com meu último pedaço de coelho. Tomo um gole
de água. Observo o sol fazer um vagaroso arco pelo céu. Onde eu iria, de qualquer jeito, que
fosse mais seguro que aqui? Eu recuo sobre meu saco, sobrecarregada por sonolência. Se os
Profissionais me querem, que eles me achem. Eu penso antes de ser levada em um estupor.
Que eles me achem.
E eles me acham. É uma sorte eu estar pronta para me mover, porque quando ouço os passos,
eu tenho menos de um minuto de dianteira. A noite começou a cair. No momento em que
acordo, estou de pé e correndo, respingando pelo lago, voando sobre os matagais. Minha
perna me desacelera, mas eu sinto que meus perseguidores não estão tão velozes quanto
eram antes que o fogo, tampouco. Eu ouço suas tossidas, suas vozes ásperas chamando uns
aos outros.
Ainda assim, eles estão cercando, bem como um bando de cachorros selvagens, então eu faço
o que fiz minha vida toda em tais circunstâncias. Eu escolho uma árvore alta e começo a
escalar. Se correr dói, escalar é agonizante, porque requere não só esforço, mas contato direto
das minhas mãos na casca da árvore. Eu sou rápida, contudo, e na hora que eles alcançaram a
base do meu tronco, estou a seis metros de altura. Por um instante, nós paramos e
inspecionamos um ao outro. Eu espero que eles não consigam ouvir o martelar do meu
coração.
Pode ser agora, eu penso. Que chance eu tenho contra eles? Todos os seis estão aqui, os cinco
Profissionais e Peeta, e minha única consolação é que eles estão bem acabados, também.
Mesmo assim, olhe para as armas deles. Olhe para os rostos deles, sorrindo maliciosamente e
rosnando para mim, uma morte certa acima deles. Parece bastante desesperançoso. Mas
então outra coisa é assimilada. Eles são maiores e mais fortes que eu, sem dúvida, mas
também são mais pesados. Há uma razão por ser eu e não Gale a se arriscar a arrancar as
frutas mais altas, ou roubar os ninhos de pássaro mais remotos. Eu devo pesar pelo menos
vinte dois ou vinte e sete quilos a menos que o menor dos Profissionais.
Agora eu sorrio. "Como vocês estão?" eu chamo alegremente.
Isso os deixa desconcertados, mas eu sei que a multidão irá amar.
"Bem o bastante," diz o garoto do Distrito 2. "Você?"
"Está um pouco quente para o meu gosto," eu digo. Eu quase consigo ouvir a risada de Capitol. "O ar é melhor aqui em cima. Por que você não sobe?"
"Acho que irei," diz o mesmo garoto.
"Aqui, tome isso, Cato," diz a garota do Distrito 1, e ela lhe oferece o arco prateado e a caixa
de flechas. Meu arco! Minhas flechas! Só a visão deles me deixa tão nervosa que eu quero
gritar, comigo mesma, com o traidor Peeta por me distrair de pegá-los. Eu tento fazer contato
visual com ele agora, mas ele parece estar intencionalmente evitando o meu olhar enquanto
ele lustra sua faca com a bainha de sua camiseta.
"Não," diz Cato, empurrando o arco. "Eu ficarei melhor com a minha espada." Eu consigo ver a
arma, uma lâmina pequena e pesada em seu cinto.
Eu dou a Cato tempo de se arvorar antes de eu começar a escalar novamente. Gale sempre diz
que eu o lembro de um esquilo, do jeito que eu consigo subir até mesmo o galho mais
delgado. Parte disso é por causa do meu peso, mas parte é por prática. Você tem que saber
onde colocar suas mãos e pés. Já estou a mais nove metros acima quando ouço o estrondo e
olho para baixo para ver Cato sacudindo-se violentamente enquanto ele e o galho caem. Ele
acerta o chão com força e estou esperando que ele possivelmente tenha quebrado seu
pescoço quando ele se levanta novamente, xingando como um demônio.
A garota com as flechas, Glimmer, eu ouço alguém chamá-la ­ credo, os nomes que as pessoas
no Distrito 1 dão a seus filhos são tão ridículos ­ de qualquer jeito, Glimmer escala a árvore até
que os galhos começam a quebrar sob seus pés e então tem o bom senso de parar. Estou a
pelo menos vinte e quatro metros de altura agora. Ela tenta atirar em mim e fica evidente de
imediato que ela é incompetente com um arco. Uma das flechas, contudo, fica alojada na
árvore próxima a mim e consigo pegá-la. Eu a aceno provocativamente acima de sua cabeça,
como se esse fosse o único propósito de recuperá-la, quando na verdade eu quero usá-la se eu
tiver a chance de fazê-lo. Eu poderia matá-los, cada um deles, se aquelas armas prateadas
estivessem em minhas mãos.
Os Profissionais se reagrupam no chão e eu consigo ouvi-los rosnando conspiratoriamente
entre si, furiosos por eu tê-los feito parecer tolos. Mas o crepúsculo chegou e sua janela para
me atacar está se fechando. Finalmente, eu ouço Peeta dizer severamente, "Ah, deixe que ela
fique lá em cima. Não é como se ela fosse a algum lugar. Nós lidaremos com ela de manhã."
Bom, ele está certo sobre uma coisa. Eu não vou a lugar algum. Todo o alívio da água do lago
se foi, deixando-me sentir a potência total das minhas queimaduras. Eu desço para uma
forquilha na árvore e desajeitadamente preparo minha cama. Coloco minha jaqueta. Deito
meu saco de dormir. Me amarro e tento me impedir de gemer. O calor do saco é demais para
a minha perna. Eu faço um corte no tecido e pairo minha panturrilha no ar. Eu pingo água no
ferimento, nas minhas mãos.
Toda a minha bravata se foi. Estou fraca da dor e faminta, mas não consigo me forçar a comer.
Mesmo que eu consiga sobreviver à noite, o que a manhã trará? Eu encaro a folhagem
tentando me forçar a descansar, mas as queimaduras proíbem isso. Pássaros estão se
preparando para a noite, cantando canções de ninar para seus filhotes. Criaturas da noite
emergem. Uma coruja pia. O fraco odor de cangambá corta a fumaça. Os olhos de algum
animal me espreitam de uma árvore vizinha ­ talvez um gambá ­ capturando a chama das
tochas dos Profissionais. De repente, estou apoiada em um cotovelo. Esses não são olhos de
gambá, conheço muito bem sua reflexão envidraçada. De fato, esses não são nem ao menos
olhos de animais. Nos últimos raios turvos de luz, eu a vejo, observando-me silenciosamente
entre os galhos. Rue.
Por quanto tempo ela estava aí? O tempo todo, provavelmente. Parada e invisível enquanto a
ação se desdobrava na frente dela. Talvez ela tenha se dirigido para sua árvore pouco antes de
mim, escutando que o bando estava tão perto.
Por um tempo nós seguramos os olhares uma da outra. Então, sem nem ao menos o farfalhar
de uma folha, sua pequena mão desliza para fora e aponta para algo acima da minha cabeça.

14

Meus olhos seguem a linha do seu dedo apontado para a folhagem acima de mim. No início,
não tenho idéia de para o que ela esteja apontando, mas então, uns 13 metros acima, percebo
a vaga forma na luz turva. Mas de... de quê? Algum tipo de animal? Parece do tamanho de um
racum, mas está pendurado no galho, oscilando sempre ligeiramente. Há algo mais. Entre os
sons noturnos familiares de uma floresta, meus ouvidos registram um baixo zumbido. Então
percebo. É ninho de vespas.
Medo me atravessa, mas eu tenho juízo suficiente de continuar parada. Depois de tudo, não
sei que tipo de vespas vivem ali. Poderia ser o tipo ordinário deixe-nos-em-paz-e-nós-
deixaremos-vocês-em-paz. Mas esses são os Hunger Games, e ordinário não é a regra. É mais
provável que elas sejam uma das mutações do Capitol, tracker jacker. Como os jabberjays,
aquelas vespas assassinas eram geradas em laboratório e posicionadas estrategicamente,
como um campo minado, em torno dos distritos durante a guerra. Maiores do que as vespas
normais, eles têm um sólido corpo especial de ouro e uma picada que gera um nódulo do
tamanho de uma ameixa em contato. A maior parte das pessoas não consegue tolerar mais
que poucas picadas. Algumas morrem na primeira. Se você viver, as alucinações trazidas pelo
veneno podem levar as pessoas à loucura. E há outra coisa, essas vespas vão caçar qualquer
um que incomode seu ninho e atacá-lo até matá-lo. É de onde a parte do nome tracker vem.
Depois da guerra, o Capitol destruiu todos os ninhos ao redor de suas cidades, mas os
próximos aos distritos foram deixados intocados. Outro lembrete de nossa fraqueza, suponho,
bem como os Hunger Games. Outra razão para se manter dentro da cerca do Distrito 12.
Quando Gale e eu chegávamos perto de um ninho de Tracker jackers, nós imediatamente
caminhávamos para a direção oposta.
Então é isso que está pendurado sobre mim? Olho de volta para Rue por ajuda, mas ela evaporou na sua árvore.
Dada as circunstâncias, penso que não importa que tipo de ninho de vespa é. Estou ferida e
emboscada. A escuridão me dá um breve adiamento, mas no momento em que o sol subir, os
Profissionais formularão um plano para me matar. Não tem chance de eles fazerem de outra
forma depois que eu os fiz parecerem estúpidos. Aquele ninho pode ser a única opção que eu
tenho. Se eu pudesse derrubá-la em cima deles, poderia ser capaz de escapar. Mas eu
arriscaria minha vida no processo.
É claro, nunca serei capaz de me aproximar do ninho o bastante para soltá-lo. Terei que serrar
o galho do tronco e mandar toda a coisa para baixo. A parte dentada da minha faca deve ser
capaz de fazer isso. Mas minhas mãos seriam? E a vibração da serração levantará o enxame? E
se os Profissionais descobrirem o que estou fazendo e moverem seu acampamento? Isso iria
acabar com todo o propósito.
Noto que a melhor chance que terei de fazer a serração sem ser notada será durante o hino.
Que pode começar a qualquer instante. Arrasto-me para fora do meu saco, asseguro-me que
minha faca está no meu cinto, e começo o meu caminho acima na árvore. Isso em si é perigoso
visto que os galhos estão se tornando precariamente finos até para mim, mas persevero.
Quando alcanço o membro que suporta o ninho, o zumbido se torna mais distintivo. Mas ainda
é estranhamente fraco, se esses forem tracker jackers. É a fumaça, penso. Ela os sedou. Essa
foi uma das defesas que os rebeldes encontraram para combater as vespas.
O selo do Capitol brilha acima de mim e o hino ruge. É agora ou nunca, penso, e começo a
serrar. Bolhas estouram na minha mão direita enquanto eu desajeitadamente arrasto a faca
para trás e adiante. Logo que eu pego o entalhe, o trabalho requer menos esforço, mas é
quase mais do que eu posso lidar. Cerro meus dentes e olho para o céu ocasionalmente para
registrar se houve nenhuma morte hoje. Está certo. A audiência ficará satisfeita me vendo
machucada e forçada a subir nas árvores e com um grupo abaixo de mim. Mas o hino está
acabando e estou apenas a três quartos do caminho pela madeira quando a música acaba, e o
céu fica escuro, e sou forçada a parar.
E agora? Poderia provavelmente terminar o trabalho pela sensação do tato, mas esse pode
não ser o plano mais esperto. Se as vespas estão muito debilitadas, se o ninho cair, se eu
tentar escapar, isso tudo pode ser uma perda fatal de tempo. Melhor, penso, esgueirar-se aqui
de madrugada e mandar o ninho para os inimigos.
Na luz fraca das tochas dos Profissionais, movimento-me de volta para minha bifurcação para
achar a melhor surpresa que eu já tive. Sobre meu saco de dormir está um pequeno pote de
plástico preso a um pára-quedas prateado. Meu primeiro presente de um patrocinador! Haymitch deve ter mandado durante o hino. O pote cabe facilmente na palma da
minha mão.
O que pode ser? Não comida, com certeza. Desaperto a tampa e sei pelo cheiro que é
remédio. Cautelosamente, eu examino a superfície do remédio. A pulsação nas pontas dos
meus dedos some.
"Ah, Haymitch," sussurro. "Obrigada." Ele não me abandonou. Nem me deixou para defender-
me sozinha. O custo desse remédio deve ter sido astronômico. Provavelmente não um, mas
vários patrocinadores contribuíram para comprar esse pequeno pote. Para mim, era sem
preço.
Mergulho dois dedos no pote e espalho o bálsamo sobre minha panturrilha. O efeito é quase
mágico, apagando a dor em contato, deixando uma agradável sensação fria. Isso não é mistura
de ervas que minha mãe tritura das plantas da floresta, é medicamento de alta tecnologia
fabricado em laboratórios do Capitol. Quando minha panturrilha está tratada, esfrego uma
camada fina em minhas mãos. Depois de empacotar o pote no pára-quedas, guardo-o seguro
na minha mochila. Agora que a dor se tranqüilizou, é tudo que posso fazer para me
reposicionar no saco antes de dormir.
Um pássaro que aterrissou apenas há alguns metros de mim me alerta que um novo dia está
amanhecendo. Na luz cinza da manhã, examino minhas mãos. O remédio transformou todas as
manchas vermelhas e irritadas em uma pele de bebê macia e rosa. Minha perna ainda está
inflamada, mas a queimação é muito menor. Aplico uma nova camada de remédio e
silenciosamente pego minhas coisas. O que quer que aconteça, vou ter que me mexer, e
mexer rápido. Também como um biscoito e uma fatia de carne e tomo alguns goles de água.
Quase nada ficou no meu estômago ontem, e já estou começando a sentir os efeitos da fome.
Abaixo de mim, posso ver o grupo de Profissionais e Peeta dormindo no chão. Por sua posição,
inclinada contra o tronco da árvore, penso que Glimmer ficou responsável pela guarda, mas a
fadiga a venceu.
Meus olhos apertam enquanto eles tentam compreender a árvore próxima a mim, mas não
posso perceber Rue. Visto que ela me deu a dica, parece justo avisá-la. Além disso, se vou
morrer hoje, é Rue quem quero que ganhe. Mesmo que isso signifique um pouco de comida
extra para minha família, a idéia de Peeta sendo coroado vencedor é insuportável.
Chamo o nome de Rue num sussurro quieto e os olhos aparecem, arregalados e alertas,
imediatamente. Ela aponta para o ninho novamente. Seguro minha faca e faço o movimento
da serração. Ela acena e desaparece. Há um farfalho na árvore mais próxima. Então o mesmo
som de novo um pouco além. Percebo que ela está pulando de árvore em árvore. Tudo o que
posso fazer é não rir alto. É isso o que ela mostrou para os Gamemakers? Imagino-a voando ao
redor do equipamento de treino nunca tocando o chão. Deveria ter conseguido pelo menos
um dez.
Listras rosadas aparecem ao leste. Não posso me dar ao luxo de esperar mais. Comparada a
agonia da subida de ontem à noite, essa é moleza. No ramo da árvore que segura o ninho,
posiciono minha faca no entalhe e estou começando a puxar os dentes pela madeira quando
vejo algo se movendo. Lá, no ninho. O brilho dourado de um tracker jacker fazendo
preguiçosamente o seu caminho através da superfície cinza parecida com papel. Sem dúvida,
está agindo um pouco subjugado, mas as vespas estão em cima e se movendo, e isso significa
que os outros logo estarão fora também. Suor aparece nas palmas das minhas mãos,
espumando pelo remédio, e faço o melhor para secá-las na minha camisa. Se eu não partir
esse galho em questão de segundos, o enxame inteiro pode emergir e me atacar.
Não tem sentido ficar adiando. Respiro fundo, pego o cabo da faca e forço para baixo o mais
forte que posso. Para trás, para frente, para trás, para frente! Os tracker jackers começam a
zunir e temo que eles estejam vindo. Para trás, para frente, para trás, para frente! Uma dor
aguda dispara pelo meu joelho e percebo que um me encontrou e os outros virão logo. Para
trás, para frente, para trás, para frente. E logo quando a faca atravessa, arremesso o final do
galho o mais longe que posso. Ele cai através dos galhos mais baixos, esbarrando
temporariamente em alguns poucos, mas então se deforma até romper com uma pancada no
chão.
O inchaço. A dor. O líquido. Assistir Glimmer se debater até a morte no chão. É demais para
lidar antes mesmo de o sol clarear o horizonte. Não quero pensar em como Glimmer deve
parecer agora. Seu corpo desfigurado. Seus dedos inchados endurecidos ao redor do arco...
O arco! Em algum lugar na minha mente confundida um pensamento se conecta a outro e
estou de pé, balançando-me através das árvores de volta para Glimmer. O arco. As flechas.
Devo pegá-los. Não escutei os disparos dos canhões ainda, então talvez Glimmer esteja em
algum tipo de coma, seu coração ainda lutando contra o veneno das vespas. Mas assim que ele
parar e os canhões sinalizarem sua morte, um aerobarco aparecerá e retomará seu corpo,
tirando o único arco e bainha de flechas que eu vi nos Games. E me recuso a deixar escapá-los
pelos meus dedos novamente!
Alcanço Glimmer logo quando os canhões disparam. Os tracker jackers sumiram. Essa garota,
bela de forma impressionante no seu vestido dourado na noite das entrevistas, está
irreconhecível. Suas feições erradicadas, seus membros três vezes maior que o tamanho
normal. Os inchaços das picadas já começaram a explodir, emitindo líquido verde putrefato ao
seu redor. Tenho que quebrar alguns dos que costumavam serem seus dedos com uma pedra
para libertar o arco. A bainha de flechas está presa sob suas costas. Tento girar seu corpo
puxando um braço, mas a carne desintegra-se em minhas mãos e caio no chão.
Isso é real? Ou as alucinações começaram? Esfrego meus olhos apertados e tento respirar pela
minha boca, ordenando-me a não ficar doente. Café da manhã deve ficar no estômago, pode
ser dias antes de eu caçar novamente. O segundo canhão dispara e estou achando que a
garota do Distrito 4 acabou de morrer. Ouço os pássaros ficarem silenciosos e então um dá um
grito de aviso, o que significa que um aerobarco está para aparecer.
Confusa, penso que é para Glimmer, embora isso não faça sentido porque ainda estou no
painel, ainda brigando pelas flechas. Eu inclino para trás sobre meus joelhos e as árvores ao
meu redor começam a rodar em círculos. No meio do céu, localizo o aerobarco. Atiro-me sobre
o corpo de Glimmer como se fosse protegê-lo, mas então vejo a garota do Distrito 4 sendo
elevada no ar e sumindo.
"Faça isso!" Eu me ordeno. Apertando minha mandíbula, empurro minhas mãos sob o corpo
de Glimmer, segurando o que deve ser sua caixa torácica, e a forçando sobre seu estômago.
Não posso evitar, estou respirando rapidamente agora, a coisa toda tão aterrorizante e estou
perdendo minha noção do que é real. Puxo a bainha de flechas prateada, mas ela está presa
em alguma coisa, sua omoplata, alguma coisa, e finalmente a solto. Estou rodeando a bainha
com meus braços quando ouço passos, alguns passos, vindo pelos arbustos, e percebo que os
Profissionais estão voltando. Eles estão voltando para me matar ou pegar suas armas, ou
ambos.
Mas é muito tarde. Puxo uma flecha pegajosa da bainha e tento posicioná-la na corda do arco,
mas em vez de uma corda vejo três e o cheiro das cordas é tão repulsivo que não sou capaz de
fazer. Não sou capaz. Não sou capaz.
Estou desamparada quando o primeiro caçador movimenta-se através das árvores, lança
levantada, posicionada para atirar. O choque no rosto de Peeta não faz sentido para mim.
Espero o golpe. Em vez disso seu braço cai do seu lado.
"O que você ainda está fazendo aqui?" ele sibila para mim. Encaro sem compreender
enquanto uma gota de água pinga do ferrão sob seu ouvido. Todo o seu corpo começa a
cintilar como se ele tivesse mergulhado no orvalho. "Você está louca?" Ele está me
empurrando com o cabo da lança agora. "Levante! Levante!" levanto, mas ele ainda está me
empurrando. O quê? O que está acontecendo? Ele me empurra para longe dele rudemente.
"Corra!" ele grita. "Corra!"
Atrás dele, Cato corta seu caminho pelos galhos. Ele está molhado, também, e ferroado
gravemente sob um olho. Pego o brilho da luz do sol em sua espada e faço como Peeta diz.
Segurando apertado meu arco e flechas, batendo em árvores que aparecem do nada,
tropeçando e caindo enquanto tento me equilibrar. Ultrapasso minha poça e entro numa
floresta não familiar. O mundo começa a se dobrar de forma alarmante. Uma borboleta incha
até o tamanho de uma casa então se espedaça em milhões de estrelas. Árvores se
transformam em sangue e salpicam minhas botas. Formigas começam a rastejar para fora das
bolhas em minhas mãos e não consigo me livrar delas. Elas sobem pelos meus braços, meu
pescoço. Alguém está gritando, um grito longo, alto e agudo que nunca pára para respirar.
Tenho a vaga idéia de que talvez seja eu. Tropeço e caio em um buraco forrado com
minúsculas bolhas laranja que zumbem como o ninho de tracker jacker. Dobrando meus
joelhos até meu queixo, espero pela morte.
Nauseada e desorientada, sou capaz de formar apenas um pensamento. Peeta Mellark acabou
de salvar a minha vida.
Então as formigas perfuram meus olhos e eu perco os sentidos.

15

Eu entro em um pesadelo, do qual eu acordo repetitivamente só para encontrar um terror
maior me aguardando. Todas as coisas que eu mais temo, todas as coisas que eu temo pelos
outros se manifestam em detalhes tão vívidos que eu não posso evitar acreditar que sejam
reais. Cada vez que eu acordo, eu penso, Por fim, isso acabou, mas não acabou. É só o começo
de um novo capítulo de tortura. De quantas maneiras que observo Prim morrer? Revivo os
últimos instantes do meu pai? Sinto o meu próprio corpo ser despedaçado? Essa é a natureza
do veneno do tracker jacker, tão cuidadosamente criado para alvejar o lugar onde o medo vive
no seu cérebro.
Quando eu finalmente volto a mim, eu fico deitada quieta, esperando pelo próximo ataque de
imagens. Mas eventualmente eu aceitei que o veneno deve ter finalmente saído do meu
sistema, deixando meu corpo quebrado e fraco. Eu ainda estou deitada de lado, presa na
posição fetal. Eu levanto uma mão até meus olhos para achá-los seguros, intocados por
formigas que nunca existiram. Simplesmente esticar meus membros requisita um esforço
enorme. Tantas partes de mim doem, não parece que vale a pena fazer um inventário delas.
Muito, muito lentamente eu consigo me sentar. Estou num buraco raso, não enchido pelas
bolhas laranjas zumbindo da minha alucinação, mas com folhas velhas e mortas. Minhas
roupas estão úmidas, mas eu não sei se a causa era ou água da lagoa, orvalho, chuva, ou suor.
Por um longo tempo, tudo que eu consigo fazer é tomar pequenos goles da minha garrafa e
observar um besouro rastejar pela lateral de um arbusto de madressilva.
Por quanto tempo fiquei desacordada? Era de manhã quando eu perdi a razão. Agora era de
tarde. Mas a dureza nas minhas juntas sugeria que mais de um dia tinha passado,
possivelmente até dois. Se sim, eu não teria jeito de saber quais tributos tinha sobrevivido
àquele ataque do tracker jacker. Nem a Glimmer ou a garota do Distrito 4. Mas havia o garoto
do Distrito 1, ambos os tributos do Distrito 2, e Peeta. Eles morreram das picadas?
Certamente, se sobreviveram, seus últimos dias devem ter sido tão horríveis quanto os meus
próprios. E quanto à Rue? Ela é tão pequena, não seria preciso muito veneno para domá-la.
Mas também... os tracker jackers teriam que pegá-la, e ela tinha tido uma boa dianteira.
Um gosto ruim e podre penetra a minha boca, e a água tem pouco efeito nisso. Eu me arrasto
até o arbusto de madressilva e arranco uma flor. Eu gentilmente puxo o estame da flor e
coloco a gota de néctar na minha língua. A doçura se espalha pela minha boca, pela minha
garganta, aquecendo minhas veias com lembranças do verão, e a floresta da minha casa e a
presença de Gale ao meu lado. Por alguma razão, nossa discussão daquela última manhã volta
até mim.
"Nós poderíamos fazer, sabe."
"O quê?"
"Deixar o distrito. Fugir. Viver na floresta. Você e eu, nós podemos fazer isso."
E de repente, eu não estou pensando no Gale, mas no Peeta e... Peeta! Ele salvou a minha
vida! eu penso. Porque na hora que nos encontramos, eu não conseguia afirmar o que era real
e o que o veneno do tracker jacker tinha me feito imaginar. Mas se ele tinha me salvado, e
meus instintos diziam que ele tinha, por que motivo? Ele simplesmente está trabalhando no
ângulo de Lover Boy que ele tinha iniciado na entrevista? Ou ele realmente estava tentando
me proteger? E se ele estivesse, o que ele estava fazendo com aqueles Profissionais, pra
começo de conversa? Nada disso fazia sentido.
Eu me pergunto por um momento o que Gale achou do incidente e então eu empurro esse
negócio todo para fora da minha mente porque por alguma razão Gale e Peeta não coexistem
bem juntos nos meus pensamentos.
Então eu me foco na coisa realmente boa que aconteceu desde que eu pousei na arena. Eu
tenho um arco e flechas! Uma inteira dúzia de flechas se você contar aquele que eu recuperei
na árvore. Elas não possuem semelhança alguma com o limo verde nocivo que saiu do corpo
da Glimmer ­ o que me leva a crer que isso pode não ter sido inteiramente real ­, mas elas
têm uma boa quantidade de sangue seco nelas. Eu posso limpá-las mais tarde, mas eu tiro um
minuto para atirar algumas numa árvore próxima. Elas são mais parecidas com as armas do
Centro de Treinamento do que com as minhas lá em casa, mas quem liga? Eu posso trabalhar
com elas.
As armas me davam uma perspectiva totalmente nova nos Games. Eu sei que tenho
adversários fortes para enfrentar. Mas eu não sou mais uma mera presa que corre e se
esconde e toma medidas desesperadas. Se Cato saísse pelas árvores agora, eu não fugiria, eu
atiraria. Descubro que estou na verdade antecipando o momento com prazer.
Mas primeiro, eu tenho que colocar um pouco de força de volta no meu corpo. Estou muito
desidratada novamente e meu suprimento de água está terrivelmente baixo. A pequena
camada de gordura que eu consegui adquirir ao me empanturrar durante o tempo de
preparação em Capitol se foi, além de diversos quilos a mais, também. Meus quadris e costelas
estão mais proeminentes do que eu me lembro desde aqueles terríveis meses após a morte do
meu pai. E então há os meus ferimentos a se conter ­ queimaduras, cortes, e contusões de
bater nas paredes, e três picadas de tracker jackers, que estão tão doloridas e inchadas como
nunca. Eu trato as minhas queimaduras com pomada e tento untar um pouco as minhas
picadas também, mas não faz efeito algum nelas.
Minha mãe conhecia um tratamento para elas, algum tipo de folha que podia retirar o veneno,
mas ela raramente tinha motivo para usá-la, e eu nem me lembro nome, quanto mais de sua
aparência.
Primeiro água, eu penso. Você pode caçar pelo caminho agora. É fácil ver a direção de onde
vim pelo caminho de destruição que meu corpo desvairado fez pela folhagem. Então eu ando
em outra direção, esperando que meus inimigos ainda estão presos no mundo surreal do
veneno do tracker jacker.
Eu não posso me mover muito rapidamente, minhas juntas rejeitam quaisquer movimentos
abruptos. Mas eu estabeleço minha passada lenta de caçadora que eu uso quando persigo
uma caça. Dentro de poucos minutos, eu avisto um coelho e faço a minha primeira matança
com o arco e a flecha. Não é o meu tiro limpo normal no olho, mas eu o tomo. Após cerca de
uma hora, eu acho um riacho, raso, mas largo, e mais do que o suficiente para as minhas
necessidades. O sol está quente e severo, então enquanto eu espero minha água purificar, eu
me dispo até ficar de roupa de baixo e arrasto-me na corrente branda. Estou imunda da
cabeça aos pés, tento me chapinhar, mas eventualmente só fico parada na água por alguns
minutos, deixando ela limpar a fuligem e o sangue e a pele que começou a descascar das
minhas queimaduras. Após lavar as minhas roupas e pendurá-las nos arbustos para secar, eu
sento no banco ao sol por um pouquinho, desembaraçando meu cabelo com meus dedos. Meu
apetite retorna e eu como um biscoito e uma tira de bife. Com um punhado de musgo, eu poli
o sangue das minhas armas de prata.
Refrescada, eu trato das minhas queimaduras de novo, tranço meu cabelo novamente, e me
visto nas minhas roupas úmidas, sabendo que o sol iria secá-las logo. Seguindo o riacho contra
sua corrente parece o mais inteligente a se fazer. Estou viajando colina acima agora, o que eu
prefiro, com uma fonte de água fresca não só para mim, mas possivelmente para caça. Eu
facilmente acerto um pássaro estranho que deve ser alguma forma de peru selvagem.
No fim da tarde, eu decido construir uma pequena fogueira para cozinhar a carne, apostando
que o pôr-do-sol ajudaria a esconder a fumaça e eu posso apagar o fogo ao cair da noite. Eu
limpo a caça, tomando cuidado extra com o pássaro, mas não há nada de alarmante nele. Uma
vez que as penas são depenadas, ele não é maior que uma galinha, mas é rechonchudo e
firme. Eu acabo de colocar a primeira porção sobre os carvões quando eu ouço o galho se
quebrar.
Em um movimento, eu me viro para o som, trazendo o arco e flecha no meu ombro. Não há
ninguém ali. Ninguém que eu consiga ver, de qualquer jeito. Então eu avisto a ponta da bota
de uma criança simplesmente espiando detrás de um tronco de uma árvore. Meus ombros
relaxam e eu sorrio. Ela consegue se mover pela floresta como uma sombra, você tem que dar-
lhe esse crédito. Como mais ela poderia ter me seguido? As palavras saem da minha boca
antes que eu possa pará-las.
"Sabe, eles não são os únicos que podem formar alianças," eu digo.
Por um instante, não há resposta. Então um dos olhos da Rue espia por trás do tronco. "Você
me quer como aliada?"
"Por que não? Você me salvou com aqueles tracker jackers. Você é esperta o bastante para
ainda estar viva. E eu não pareço conseguir me livrar de você," eu digo. Ela pestaneja para
mim, tentando decidir. "Está com fome?" Eu consigo vê-la engolir em seco, seu olho vacilando
para a carne. "Vamos, então, eu tive duas matanças hoje."
Rue sai hesitantemente no aberto. "Posso curar suas picadas."
"Pode?" eu pergunto. "Como?"
Ela procura na mochila que carrega e puxa um punhado de folhas. Tenho quase certeza de que
são essas as que a minha mãe usa. "Onde encontrou elas?"
"Por aí. Nós todos carregamos elas quando trabalhamos nos pomares. Elas deixaram um
monte de ninhos lá," diz Rue. "Tem um monte aqui também."
"É mesmo. Você é do Distrito Onze. Agricultura," eu digo. "Pomares, hein? Deve ser assim que
você consegue voar pelas árvores como se tivesse asas." Rue sorri. Eu parei em uma das
poucas coisas que ela admitirá ter orgulho. "Bem, vamos lá, então. Me conserta."
Eu caio pesadamente ao lado da fogueira e subo a perna da minha calça para revelar a picada
no meu joelho. Para minha surpresa, Rue coloca o punhado de folhas em sua mão e começa a
mastigá-las. Minha mãe usaria outros métodos, mas não é como se tivéssemos muita opção.
Após um minuto, mais ou menos, Rue pressiona um bloco verde nojento de folhas mastigadas
e cuspe no meu joelho.
"Ahhh." O som sai da minha boca antes que eu possa pará-lo. É como se as folhas estivessem
realmente sugando a dor da picada.
Rue dá uma risadinha. "Sorte você ter tido o bom senso de puxar os ferrões, ou seria muito
pior."
"Põe no meu pescoço! Põe na minha bochecha!" eu quase imploro.
Rue enche sua boca com outro punhado de folhas, e logo eu estou rindo, porque o alívio é tão
doce. Eu noto uma queimadura grande no antebraço da Rue. "Eu tenho algo para isso." Eu
deixo minhas armas de lado e unto seu braço com o remédio para queimadura.
"Você tem bons patrocinadores," ela diz saudosamente.
"Você não recebeu nada ainda?" eu pergunto. Ela balança sua cabeça. "Você irá, contudo.
Veja. Quanto mais perto chegarmos do fim, mais as pessoas perceberão como você é esperta."
Eu viro a carne.
"Você não estava brincando, sobre me querer como aliada?" ela pergunta.
"Não, eu estou falando sério," eu digo. Eu quase consigo ouvir Haymitch urrando enquanto eu
me junto à criança franzina. Mas eu quero ela. Porque ela é uma sobrevivente, e eu confio
nela, e por que não admitir? Ela me lembra a Prim.
"Está bem," ela diz, e estica sua mão. Nós apertamos. "É um acordo."
É claro, esse tipo de acordo só pode ser temporário, mas nenhuma de nós menciona isso.
Rue contribui para a refeição com um grande punhado de algum tipo de raiz dura. Assada
sobre o fogo, elas tem o doce e picante gosto de pastinaca. Ela reconhece a ave, também,
alguma coisa selvagem que chamam de groosling em seu distrito. Ela diz que às vezes uma
manada vaga pelo pomar e eles têm um almoço decente nesse dia. Por um tempo, toda a
conversa para enquanto enchemos nossos estômagos. O groosling tem uma carne deliciosa
que é tão gorda, a gordura pinga no seu rosto quando você a morde.
"Ah," diz Rue com um suspiro. "Eu nunca comi uma perna inteira sozinha."
Aposto que não. Aposto que ela raramente tem carne. "Pegue a outra," eu digo.
"Sério?" ela pergunta.
"Pegue o que quiser. Agora que eu tenho um arco e flecha, eu posso conseguir mais. Além
disso, eu tenho armadilhas. Eu posso te mostrar como montá-las," eu digo. Rue ainda olha
incerta para a perna. "Ah, pega," eu digo, colocando a perna da galinha em sua boca. "Só ficará
boa por alguns dias, de qualquer jeito, e nós temos o pássaro todo, além do coelho." Uma vez
que ela tomou posse dela, seu apetite ganha e ela dá uma bocada enorme.
"Eu achava que, no Distrito Onze, você teria um pouco mais para comer do que nós. Sabe, já
que vocês plantam comida," eu digo.
Os olhos de Rue se alargam. "Ah, não, não podemos comer as colheitas."
"Eles te prendem, ou algo assim?" eu pergunto.
"Eles te açoitam e fazem todo mundo assistir," diz Rue. "O prefeito é muito severo quanto a
isso."
Eu posso afirmar pela expressão dela que não é uma ocorrência tão incomum. Um
açoitamento público é algo raro no Distrito 12, apesar de um ocorrer ocasionalmente.
Tecnicamente, Gale e eu podíamos ser açoitados diariamente por caçar ilegalmente na floresta
­ bem, tecnicamente, podíamos conseguir muito pior ­ exceto que todos os oficiais compram
a nossa carne. Além do mais, nosso prefeito, o pai da Madge, não parece gostar muito de tais
eventos. Talvez ser o distrito menos prestigioso, mais pobre, e mais ridicularizado do país tem
suas vantagens. Tal como ser amplamente ignorado pelo Capitol enquanto produzíssimos
nossas quotas de carvão.
"Você tem todo o carvão que quer?" Rue pergunta.
"Não," eu respondo. "Só o que compramos e o que quer que fique preso nas nossas botas."
"Eles nos alimentam um pouquinho a mais durante a colheita, para que as pessoas possam
continuar por mais tempo," diz Rue.
"Você não tem que estar na escola?" eu pergunto.
"Não durante a colheita. Todos trabalham nessa época," diz Rue.
É interessante, escutar sobre a vida dela. Nós temos tão pouca comunicação com qualquer um
fora do nosso distrito. De fato, eu me pergunto se os Gamemakers estão bloqueando a nossa
conversa, porque mesmo que a informação parece ser inofensiva, eles não querem que
pessoas em distritos diferentes saibam umas sobre as outras.
Como Rue sugeriu, nós deitamos toda a nossa comida para planejar adiantadamente. Ela viu a
maior parte da minha, mas eu acrescento as últimas bolachas e tiras de bife à pilha. Ela coletou
uma bela coleção de raízes, nozes, verduras frescas, e até mesmo algumas bagas.
Eu rolo uma baga estranha nos meus dedos. "Você tem certeza de que isso é seguro?"
"Ah, sim, nós a temos lá em casa. Eu estou comendo elas há dias," ela diz, enfiando um
punhado em sua boca. Eu mordo uma hesitantemente, e é tão boa quanto as nossas amoras
silvestres. Ter a Rue como aliada parece uma escolha melhor o tempo todo. Nós dividimos
nosso suprimento de comida, para que, caso fôssemos separadas, ambas ficaríamos bem por
alguns dias. Fora a comida, Rue tem um pequeno odre de água, um estilingue caseiro, e um
par extra de meias. Ela também tem um caco afiado de pedra que usa como faca. "Eu sei que
não é muito," ela diz, como se estivesse envergonhada, "mas eu tinha que sair da Cornucópia
rápido."
"Você fez bem," eu digo. Quando eu espalho meus utensílios, ela arfa um pouco quando vê o
óculos de sol.
"Como você conseguiu ele?" ela pergunta.
"Na minha mochila. Ele foi inútil até agora. Não bloqueia o sol e dificulta enxergar," eu digo com um levantar de ombros.
"Ele não é para o sol, ele é para a escuridão," exclama Rue. "As vezes, quando colhemos à
noite, eles passam alguns pares para aqueles que ficam mais ao alto das árvores. Onde a luz
das tochas não alcança. Uma vez, esse garoto Martin, tentou ficar com o seu. Escondeu em sua
calça. Eles o mataram no ato."
"Eles mataram um garoto por ficar com isso?" eu digo.
"Sim, e todos sabiam que ele não era perigoso. Martin não era bem da cabeça. Quer dizer, ele
ainda agia como alguém de três anos. Ele só queria o óculos para brincar," diz Rue.
Ouvir isso me faz sentir que o Distrito 12 é algum tipo de refúgio seguro. É claro, as pessoas
desmaiam por causa de fome o tempo todo, mas eu não consigo imaginar os Peacekeepers
assassinando uma criança boba, Tem uma garotinha, uma das netas da Greasy Sae, que vaga
por Hob. Ela não é bem certa das ideias, mas ela é tratada como um tipo de animal de
estimação. As pessoas lhe jogam restos e coisas.
"Então o que ele faz?" eu pergunto a Rue, pegando o óculos.
"Ele te deixa ver na completa escuridão," diz Rue. "Experimente-os hoje à noite quando o sol
se por."
Eu dou alguns fósforos à Rue e ela se certifica de que eu tenho folhas o bastante no caso das
minhas picadas doerem novamente. Nós extinguimos nossa fogueira e nos dirigimos corrente
acima até quase o anoitecer.
"Onde você dorme?" eu pergunto a ela. "Nas árvores?" Ela assente. "Só com a sua jaqueta?"
Rue ergue seu par extra de meias. "Eu tenha essas para as minhas mãos."
Eu penso em como as noites têm sido frias. "Você pode compartilhar o meu saco de dormir se
quiser. Nós duas cabemos facilmente." Seu rosto ilumina-se. Eu posso afirmar que isso é mais
do que ela ousava esperar.
Nós escolhemos uma forquilha alta em uma árvore e nos acomodamos pela noite, bem
quando o hino começa a tocar. Não houve mortes hoje.
"Rue, eu só acordei hoje. Quantas noites eu perdi?" O hino deveria bloquear nossas palavras,
mas ainda assim eu sussurro. Eu até mesmo tomo a precaução de cobrir meus lábios com a
minha mão. Eu não quero que a audiência saiba o que eu estou planejando contar a ela sobre
Peeta. Entendendo a minha dica, ela faz o mesmo.
"Duas," ela diz. "As garotas dos Distritos Um e Quatro estão mortas. Há dez de nós restantes."
"Algo estranho aconteceu. Pelo menos, eu acho que sim. Pode ter sido o veneno do tracker
jacker me fazendo imaginar coisas," eu digo. "Você conhece o garoto do meu distrito? Peeta?
Eu acho que ele salvou a minha vida. Mas ele estava com os Profissionais."
"Ele não está com eles agora," ela diz. "Eu os espiei em seu acampamento base no lago. Eles
voltaram antes que tivessem um colapso por causa das picadas. Mas ele não está lá. Talvez ele
tenha mesmo te salvado e teve que fugir."
Eu não respondo. Se, de fato, Peeta me salvou, eu estou devendo a ele novamente. E isso não
pode ser pago de volta. "Se ele salvou, foi tudo provavelmente só parte de sua atuação. Sabe,
para fazer as pessoas pensarem que ele está apaixonado por mim."
"Ah," diz Rue pensativamente. "Eu não achei que fosse uma atuação."
"Claro que é," eu digo. "Ele arquitetou isso com o nosso mentor." O hino acabou e o céu fica
preto. "Vamos experimentar esse óculos." Eu peguei o óculos e os coloquei. Rue não estava
brincando. Eu consigo ver tudo, desde as folhas nas árvores até o gambá passeando pelos
arbustos há uns bons quinze metros de distância. Eu poderia matá-lo daqui se eu quisesse. Eu
poderia matar qualquer um.
"Eu me pergunto quem mais tem um desses," eu digo.
"Os Profissionais têm dois. Mas eles têm de tudo no lago," Rue diz. "E eles são tão fortes."
"Somos fortes, também," eu digo. "Só que de uma maneira diferente."
"Você é. Você consegue atirar," ela diz. "O que eu posso fazer?"
"Você pode se alimentar. Eles podem?" eu pergunto.
"Eles não precisam. Eles têm todos aqueles suprimentos," Rue diz.
"Digamos que eles não tivessem. Digamos que os suprimentos se foram. Quanto tempo eles
durariam?" eu digo. "Quer dizer, é o Hunger Games, certo?"
"Mas, Katniss, eles não estão com fome," diz Rue.
"Não, não estão. Esse é o problema," eu concordo. E pela primeira vez, eu tenho um plano.
Um plano que não é motivado pela necessidade de fugir e evadir. Um plano ofensivo. "Acho
que vamos ter que consertar isso, Rue."

16

Rue decidiu confiar em mim totalmente. Sei disso porque logo que o hino acaba ela se abraça
contra mim e dorme. Nem eu tenho nenhum temor dela, como não tomo nenhuma precaução
particular. Se ela me quisesse morta, tudo o que ela precisaria fazer era desaparecer daquela
árvore sem mostrar o ninho de tracker jacker. O que me irrita, bem no fundo da minha mente,
é o óbvio. Ambas não podemos ganhar esses Games. Mas visto que as chances ainda estão
contra nossa sobrevivência, consigo ignorar esse pensamento.
Além disso, estou distraída pela minha última ideia sobre os Profissionais e seus suprimentos.
De algum modo Rue e eu temos que encontrar uma forma de destruir a comida deles. Tenho
certeza que se alimentar será um tremendo esforço para eles. Tradicionalmente, a estratégia
dos Tributos Profissionais é pegar toda a comida cedo e trabalhar a partir daí. Os anos em que
eles não a protegeram bem ­ um ano um grupo de répteis repugnantes a destruíram, noutro
uma inundação provocada pelos Gamemakers a levou ­ foram geralmente os anos em que
tributos de outros distritos tinham vencido. O fato de os Profissionais terem crescido em um
mar de rosas é, na verdade, sua desvantagem, porque eles não sabem como é ficar com fome.
Não da forma que Rue e eu sabemos.
Mas estou muito exausta para começar qualquer plano detalhado essa noite. Minhas feridas
sarando, minha mente ainda um pouco enevoada pelo veneno, e o calor de Rue ao meu lado,
sua cabeça encostada no meu ombro, me dá uma sensação de segurança. Percebo, pela
primeira vez, o quão sozinha eu estava na arena. O quão confortante a presença de outro ser
humano pode ser. Cedo a minha sonolência, resolvendo que amanhã vou virar a mesa.
Amanhã, serão os Profissionais que terão que se cuidar.
A explosão do tiro dos canhões me acorda. O céu está marcado com luzes, os pássaros já
trepidando. Rue se empoleira em um galho perto de mim, suas mãos segurando alguma coisa.
Nós esperamos, escutando por mais tiros, mas não há nenhum mais.
"Quem você pensa que era?" não posso evitar pensar em Peeta.
"Não sei. Poderia ser qualquer um dos outros," diz Rue. "Acho que saberemos essa noite."
"Quem ainda resta novamente?" pergunto.
"O garoto do Distrito Um. Ambos os tributo do Dois. O garoto do Três. Thresh e eu. E você e
Peeta," diz Rue. "São oito. Espere, e o garoto do Dez, aquele com a perna ruim. Ele faz nove."
Há alguém mais, mas nenhuma de nós consegue se lembrar de quem é.
"Queria saber como esse último morreu," diz Rue.
"Não diga. Mas é bom para nós. Uma morte deve segurar a multidão um pouco. Talvez
tenhamos tempo para fazer algo antes que os Gamemakers decidam que as coisas estão muito
devagar," digo. "O que há em suas mãos?"
"Café da manhã," diz Rue. Ela revela dois grandes ovos.
"Eles são de que tipo?" pergunto.
"Não tenho certeza. Há uma área pantanosa por aqui. Algum tipo de pássaro aquático," ela
diz.
Seria legal cozinhá-los, mas nenhuma de nós quer correr o risco com o fogo. Acho que o
tributo que morreu hoje era uma vítima dos Profissionais, o que significa que eles se
recuperaram o bastante para estar de volta aos Games. Nós duas sugamos de dentro do ovo,
comendo perna de coelho e algumas bagas. É um bom café da manhã em qualquer lugar.
"Pronta para fazer?" digo, puxando minha mochila.
"Fazer o quê?" diz Rue, mas pela forma como ela salta, pode-se dizer que está dentro de
qualquer coisa que eu proponha.
"Hoje nós levamos a comida dos Profissionais," digo.
"Sério? Como?" Pode-se ver o brilho de excitação nos seus olhos. Dessa forma, ela é
exatamente o oposto de Prim, para quem aventuras são experiências difíceis.
"Não tenho idéia. Vamos, temos que calcular um plano enquanto caçamos," digo.
Nós não conseguimos caçar muito porque estou muito ocupada pegando cada pedaço de
informação que posso tirar de Rue sobre a base dos Profissionais. Ela só esteve os espiando
brevemente, mas ela é observadora. Eles montaram seu campo ao lado do lago. Seus
suprimentos estão juntos uns trinta metros afastados. Durante o dia, eles deixavam outro
tributo, o garoto do Distrito 3, para vigiar os suprimentos.
"O garoto do Distrito Três?" pergunto. "Ele está trabalhando com eles?"
"Sim, ele fica no acampamento o tempo todo. Ele foi picado, também, quando eles levaram os
tracker jackers para o lago," diz Rue. "Acho que eles concordaram em deixá-lo viver se ele
atuasse como guarda. Mas ele não é muito grande."
"Que armas ele tem?" pergunto.
"Nada demais que eu pude ver. Uma lança. Ele talvez seja capaz de nos arrastar com isso, mas
Thresh poderia matá-lo facilmente," diz Rue.
"E a comida apenas está a céu aberto?" digo. Ela acena. "Algo não está certo em tudo isso."
"Eu sei. Mas não posso dizer o que é exatamente," diz Rue. "Katniss, mesmo se nós
consigamos chegar à comida, como iríamos livrar-nos dela?"
"Queimando. Derrubando no lago. Ensopando-a com combustível." Cutuco Rue na barriga,
como eu faria com Prim. "Comê-la!" Ela ri. "Não se preocupe, pensarei em algo. Destruir coisas
é muito mais fácil que construí-las."
Por enquanto, nós escavamos raízes, juntamos bagas e verduras, planejamos uma estratégia
em voz baixa. E eu vim a conhecer Rue, a mais velha de seis crianças, protetora feroz de seus
irmãos, que dá suas rações para os mais novos, que explora os campos num distrito onde os
Pacificadores são bem menos gentis que os nossos. Rue, que quando você a pergunta o que
ela mais ama no mundo, responde, de todas as coisas, "Música."
"Música?" digo. No nosso mundo, classifico música em algum lugar entre fitas de cabelo e
arco-íris em termos de inutilidade. Ao menos um arco-íris te dá uma indicação do tempo.
"Você tem muito tempo para isso?"
"Nós cantamos em casa. No trabalho, também. É por isso que eu adoro seu broche," ela diz,
apontando para o mockingjay do qual eu já tinha me esquecido.
"Você tem mockingjays?" pergunto.
"Ah, sim. Tenho alguns que são meus amigos especiais. Nós podemos cantar para trás e para
frente por horas. Eles carregam mensagens para mim," ela diz.
"O que você quer dizer?" digo.
"Geralmente sou a maior, então sou a primeira a ver as penas que sinalizam o fim do tempo.
Há uma pequena música em especial que faço," diz Rue. Ela abre a boca e canta uma pequena
execução de quatro notas numa voz clara e suave. "E os mockingjays a espalham por todo o
pomar. É como todos sabem que é a hora de parar," ela continua. "Eles podem ser perigosos
entretanto, se você chegar muito perto de seus ninhos. Mas você não pode culpá-los por isso."
Eu libero o broche e o dou para ela. "Aqui, pegue-o. Significa mais para você do que para
mim."
"Ah, não," diz Rue, fechando seus dedos para trás sobre o broche. "Eu gosto de vê-lo em você.
É como eu decidi que podia confiar em você. Além disso, eu tenho isso." Ela puxa um colar
feito de algum tipo de erva de sua camisa. Nele está pendurado uma estrela de madeira
rudemente esculpida. "É um amuleto de boa sorte."
"Bem, funcionou até agora," digo, prendendo o mockingjay de volta na minha camisa. "Talvez
você deva ficar com isso."
No almoço, temos um plano. No início da tarde, estamos prontas para executá-lo. Ajudo Rue a
coletar e colocar a madeira para as duas primeiras fogueiras, para a terceira ela terá tempo
sozinha. Decidimos nos encontrar depois do terreno onde comemos nosso primeiro alimento
juntas. O rio deve ajudar a me guiar de volta pra lá. Antes de partir, tenho a certeza que Rue
está bem estocada com comida e fósforos. Até insisto que ela tome meu saco de dormir, no
caso de não ser possível nos encontrar no cair da noite.
"E você? Não terá frio?" ela pergunta.
"Não se eu pegar outro saco no lago," digo. "Sabe, roubar não é ilegal aqui," digo com um
sorriso.
No último minuto, Rue decide me ensinar seu sinal mockingjay, o que ela dá para indicar que o
dia de trabalho acabou. "Talvez não funcione. Mas se você ouvir mockingjays cantando, saiba
que estou bem, apenas não consegui voltar a tempo."
"Há muitos mockingjays aqui?" Pergunto.
"Você não os viu? Eles têm ninhos em todos os lugares," diz. Tenho que admitir que não notei.
"Ok, então. Se tudo for de acordo com o plano, verei você no Jantar," digo.
Inesperadamente, Rue atira seus braços ao meu redor. Hesito apenas por um momento antes
de abraçá-la de volta.
"Seja cuidadosa," diz para mim.
"Você também," digo. Viro-me e volto para o rio, sentindo-me um pouco preocupada. Com
Rue ser assassinada, com Rue não ser assassinada e nós duas sendo deixadas por último, com
deixar Rue sozinha, com deixar Prim sozinha em casa. Não, Prim tem minha mãe e Gale e um
padeiro que prometeu que ela não terá fome. Rue tem apenas a mim.
Quando alcanço o lago, tenho só que seguir a descida para o lugar onde eu inicialmente fiquei
depois do ataque dos tracker jackers. Tenho que ser cautelosa enquanto me movo ao longo da
água, porque encontro meus pensamentos preocupados com perguntas sem respostas, a
maioria envolvendo Peeta. O canhão que atirou cedo essa manhã, aquilo significava sua
morte? Sendo assim, como ele morreu? Nas mãos de um Profissional? E foi uma vingança por
ter me deixado viva? Eu me esforço de novo para lembrar aquele momento sobre o corpo de
Glimmer, quando ele apareceu entre as árvores. Mas só o fato de que ele estava brilhando
leva-me a duvidar de tudo que aconteceu.
Devo ter me movido muito devagar ontem porque alcanço o trecho raso onde tomei meu
banho há poucas horas. Paro para tornar a encher minha água e adicionar uma camada de
lama a minha mochila. Parece ter uma tendência a voltar ao laranja não importa quantas vezes
eu a cubra.
Minha proximidade do acampamento dos Profissionais afia meus sentidos, e quanto mais
perto fico deles, mais ponderada sou, parando freqüentemente para tentar escutar sons
anormais, uma flecha já encaixada no meu arco. Não vejo nenhum tributo, mas noto algumas
das coisas que Rue mencionou. Pedaços de bagas doces. Um arbusto com as folhas que
curaram minhas picadas. Grupos dos ninhos de tracker jackers nas vizinhanças da árvore em
que eu estava presa. E aqui e acolá, um brilho preto-e-branco da asa de um mockingjay nos
galhos sobre a minha cabeça.
Quando alcanço a árvore com o ninho abandonado, paro por um momento, para reunir
coragem. Rue deu instruções específicas sobre como chegar ao melhor lugar para espiar perto
do lago desse ponto. Lembre-se, digo para mim mesma. Você é a caçadora agora, não eles.
Seguro meu arco firme e continuo. Vou para o bosque que Rue me disse e de novo tenho que
admirar sua esperteza. É bem no limite da floresta, mas a folhagem é tão espessa que posso
facilmente observar o acampamento dos Profissionais sem ser localizada. Entre nós está a
extensão plana onde os Games começaram.
Há quatro tributos. O garoto do Distrito 1, Cato e a garota do Distrito 2, e um garoto magro e
pálido que deve ser do Distrito 3. Ele fez quase nenhuma impressão em mim durante nosso
tempo no Capitol. Posso me lembrar quase nada sobre ele, nem suas vestes, nem sua
pontuação no treinamento, nem sua entrevista. Mesmo agora, enquanto ele está sentado lá
ocupando-se com algum tipo de caixa de plástico, ele é facilmente ignorado na presença de
seus grandes e dominantes companheiros. Mas ele deve ser de algum valor ou eles não teriam
se incomodado em deixá-lo vivo. Ainda assim, vê-lo apenas me dá uma sensação de
intranqüilidade quando ao motivo dos Profissionais possivelmente deixarem-no como um
guarda, por que eles permitiram que ele vivesse.
Todos os quatro tributos parecem ainda estar se recuperando do ataque dos tracker jackers.
Mesmo daqui, posso ver os grandes pedaços inchados em seus corpos. Eles não devem ter tido
a consciência de remover os ferrões, ou se tiveram, não sabem sobre as folhas que as curam.
Aparentemente, quaisquer que sejam os remédios que encontraram em Cornucópia foram
ineficazes.
A Cornucópia está na sua posição original, mas dentro deve ter sido limpo. A maioria dos
suprimentos, seguros em caixotes, sacos e caixas de plástico, está empilhada ordenadamente
em uma pirâmide, no que parece ser uma distância questionável do acampamento. Outros
estão espalhados ao redor do perímetro da pirâmide, quase imitando o esboço de suprimentos
ao redor da Cornucópia ao assalto dos Games. O teto de tecido que, além de desencorajar os
pássaros, parece ser uma proteção inútil da pirâmide.
Toda a estrutura é completamente complicada. A distância, a rede, e a presença do garoto do
Distrito 3. Uma coisa é certa, destruir aqueles suprimentos não vai ser tão fácil quanto parece.
Algum outro fator está em jogo aqui, e é melhor que eu compreenda logo o que é. Meu palpite
é que a pirâmide é uma armadilha de alguma maneira. Penso em buracos escondidos, redes
que caem, um segmento que quando quebrado envia um dardo venenoso no seu coração.
Realmente, as possibilidades são infinitas.
Enquanto penso nas minhas opções, ouço Cato gritar. Ele está apontando para a floresta,
muito além de mim, e sem me virar sei que Rue deve ter acendido a fogueira. Tivemos a
certeza de juntar madeira verde para fazer a fumaça notável. Os Profissionais começam a se
armar imediatamente.
A discussão é interrompida. Está alto o bastante para eu escutar que a preocupação é se o
garoto do Distrito 3 deveria ficar ou acompanhá-los.
"Ele vem. Precisamos dele na floresta, e seu trabalho aqui está feito, de qualquer forma.
Ninguém pode tocar aqueles suprimentos," diz Cato.
"E o Lover Boy?" diz o garoto do Distrito 1.
"Eu continuo te dizendo, esqueça-o. Sei onde eu o cortei. É um milagre que ele não sangrou
até a morte ainda. De qualquer modo, ele não está em condições de nos atacar," diz Cato.
Então Peeta está aí fora na floresta, gravemente ferido. Mas ainda estou no escuro sobre o
que o motivou a trair os Profissionais.
"Vamos," diz Cato. Ele empurra uma lança para as mãos do garoto do Distrito 3, e eles se
deslocam na direção do fogo. A última coisa que ouço enquanto eles entram na floresta é Cato
dizendo, "Quando nós a encontrarmos, eu a matarei no meu estilo, sem ninguém interferir."
De algum modo não acho que ele está falando de Rue. Ela não derrubou um ninho de tracker
jackers nele.
Fico parada por meia hora ou mais, tentando calcular o que fazer com os suprimentos. A única
vantagem que tenho com o arco e flecha é a distância. Eu podia mandar uma flecha em
chamas na pirâmide facilmente o bastante ­ sou boa o suficiente na mira para acertar aquelas
aberturas na rede ­ mas não há garantia de que pegue. Mas provável que se queime e aí? Não
conseguiria nada e daria a eles muita informação minha. Que eu estava aqui, que tenho um
cúmplice, que posso usar o arco e flecha com precisão.
Não há alternativa. Vou ter que me aproximar e ver se não posso descobrir o que exatamente
protege os suprimentos. Na realidade, estou quase me revelando quando um movimento é
capturado pelo meu olho. Algumas centenas de metros a minha direita, vejo alguém emergir
da floresta. Por um segundo, acho que é Rue, mas então reconheço Foxface ­ ela é a única que
nós não podíamos nos lembrar essa manhã ­ rastejando para o plano. Quando decide que é
seguro, ela corre para a pirâmide, com passos rápidos e pequenos. Justo antes de alcançar o
círculo de suprimentos que foram espalhados ao redor da pirâmide, ela pára, examina o chão,
e cuidadosamente coloca seu pé em um ponto. Então começa a se aproximar da pirâmide com
pulinhos estranhos, às vezes parando sobre um pé, oscilando levemente, às vezes arriscando
poucos passos.
Num certo ponto, ela se lança no ar, sobre um pequeno barril e pousa equilibrada nas pontas
dos pés. Mas ela erra o alvo um pouco, e seu ímpeto a joga para frente. Ouço-a dar um berro
agudo quando suas mãos batem no chão, mas nada acontece. Em um momento, ela fica de pé
e continua até alcançar a maior parte dos suprimentos.
Então, estou certa quanto à armadilha explosiva, mas claramente é mais complexa do que
imaginei. Estava certa quanto à garota, também. Quão astuta ela é para ter descoberto esse
caminho até a comida e ser capaz de replicá-lo tão bem? Ela enche sua bolsa, tomando alguns
itens de uma variedade de recipientes, biscoitos de um caixote, um punhado de maçãs de um
saco que está suspenso numa corda do lado de fora da caixa. Mas só um punhado de cada,
não o bastante para indicar que tem comida faltando. Não o bastante para causar suspeita. E
depois ela está fazendo sua dançinha estranha de volta para fora do círculo e corre para
dentro da floresta novamente, sã e salva.
Percebo que estou cerrando os dentes de frustração. Foxface confirmou o que eu estava
pensando. Mas que tipo de armadilha eles armaram que requer tanta destreza? Tem tantos
pontos de gatilho? Porque ela gritou assim que suas mãos fizeram contato com a terra? Você
pensaria... e rapidamente começa a surgir em mim... você pensaria que todo o chão iria
explodir.
"É minado," murmuro. Isso explica tudo. A disposição dos Profissionais de deixar seus
suprimentos, a reação de Foxface, o envolvimento com o garoto do Distrito 3, onde eles têm
fábricas, onde eles têm televisões e automóveis e explosivos. Mas onde ele as conseguiu? Nos
suprimentos? Esse não é o tipo de arma que os Gamemakers geralmente dão, visto que eles
gostam de ver tirarem sangue pessoalmente. Saio dos arbustos e atravesso uma das placas
metálicas que elevaram os tributos para a arena. O chão ao redor dela foi escavado e colocado
de volta.
O campo minado foi desativado depois dos sessenta segundo ficando sobre as placas, mas o
garoto do Distrito 3 deve ter dado um jeito de ativá-las. Nunca vi ninguém nos Games fazer
isso. Aposto que isso chocou até os Gamemakers.
Bem, viva para o garoto do Distrito 3 por ativar mais de um deles, mas o que eu deveria fazer
agora? Obviamente, não posso ir passear nessa bagunça sem explodir. E quanto a mandar uma
flecha em chamas, isso é mais ridículo agora. As minas começam a funcionar com a pressão.
Não tem que ser muito, tampouco. Um ano, uma garota derrubou sua lembrança, uma
pequena bola de madeira, enquanto ela estava em sua placa, e eles literalmente tiveram de
limpar os seus pedaços do chão.
Meu braço é muito bom, talvez seja capaz de atirar algumas lá e explodir o quê? Talvez uma
mina? Isso começaria uma reação em cadeia. Ou não? O garoto do Distrito 3 teria colocado as
minas de modo que uma única mina não perturbaria as outras? Protegendo assim os
suprimentos, e se assegurando da morte do invasor. Mesmo se eu explodir uma mina,
trarei os Profissionais de volta com certeza. E de qualquer forma, o que estou pensando? Há
aquela rede, amarrada claramente para desviar de tal ataque. Além disso, o que eu realmente
precisaria é atirar trinta pedras de uma vez só, desencadeando uma reação em cadeia,
demolindo tudo.
Olho de volta para a floresta. A fumaça do segundo fogo de Rue está se elevando em direção
ao céu. A essa hora, os Profissionais provavelmente já começaram a suspeitar de algum tipo de
truque. O tempo está correndo.
Há uma solução para isso, sei que há, se eu puder me focar. Fito a pirâmide, as caixas, os
caixotes, pesadas demais para desmoronar com uma flecha. Talvez uma contenha óleo de
cozinha, e a idéia da flecha em chamas está revivendo quando noto que posso acabar
perdendo todas as vinte flechas e não conseguir um acerto na caixa de óleo, como eu tinha
adivinhado. Estou verdadeiramente pensando em tentar recriar o caminho da Foxface para a
pirâmide na esperança de encontrar um novo meio para destruição quando meus olhos caem
no saco de maçãs. Eu poderia cortar a corda com um tiro, como fiz tanto no Centro de
Treinamento? É um saco grande, mas ainda assim talvez pode ser boa o bastante para apenas
uma explosão. Se eu apenas pudesse soltar todas as maçãs...
Sei o que fazer. Passo para a pastagem e pego três flechas para fazer o trabalho. Coloco meus
pés com cuidado, bloqueando o resto do mundo enquanto miro meticulosamente. A primeira
flecha rasga do lado da bolsa perto do topo, deixando uma fenda no saco. A segunda amplia o
buraco. Posso ver a primeira maçã balançando quando lanço o terceiro arco, pegando o
retalho rasgado e cortando-o do saco.
Por um momento, o tempo parece congelar. E depois as maçãs caem no chão e sou jogada
para trás.

17

O impacto com a terra da planície compactada sob pressão me tira o fôlego. Minha mochila
pouco faz para suavizar o golpe. Felizmente meu coldre de flechas ficou preso na curva do meu
cotovelo, poupando tanto ele quanto o meu ombro, e minha flecha está presa no meu aperto.
O chão ainda treme com as explosões. Eu não consigo ouvi-las. Eu não consigo ouvir nada no
momento. Mas as maçãs devem ter ativado o suficiente de minas, fazendo com que
escombros ativassem as outras. Eu consigo proteger meu rosto com meus braços enquanto
pedaços despedaçados de substâncias, algumas queimando, choviam ao meu redor. Uma
fumaça ácida enche o ar, o que não é o melhor remédio para alguém que está tentando
recuperar a habilidade de respirar.
Após cerca de um minuto, o chão para de vibrar. Eu rolo de lado e me permito um momento
de satisfação ao ver a ruína fumegante que recentemente fora a pirâmide. Provavelmente os
Profissionais não conseguirão salvar nada disso.
É melhor eu cair fora daqui, eu penso. Eles virão diretamente para esse lugar. Mas, uma vez de
pé, eu percebo que escapar talvez não seja tão simples. Estou tonta. Não do tipo ligeiramente
instável, mas do tipo que faz as árvores precipitarem-se ao seu redor e faz com que a terra se
mova em ondas sob seus pés.
Eu dou alguns passos e de algum modo acabo de quatro. Eu espero alguns minutos para fazer
isso passar, mas não passa.
Pânico começa a se assentar. Eu não posso ficar aqui. Fugir é essencial.
Mas eu não posso tampouco andar ou escutar. Eu coloco uma mão no meu ouvido esquerdo,
aquele que estava virado na direção da explosão, e ela sai sangrenta. Eu fiquei surda da
explosão? A ideia me apavora. Eu confio tanto nos meus ouvidos quanto nos meus olhos como
caçadora, talvez mais às vezes. Mas eu não posso deixar meu medo aparecer. Absolutamente,
positivamente, eu estou ao vivo em cada tela em Panem.
Nada de rastros de sangue, eu digo a mim mesma, e consigo puxar meu capuz sobre minha
cabeça, amarrar a corda sob meu queixo com dedos não cooperantes. Isso deve ajudar a
enxugar o sangue. Eu não consigo andar, mas consigo rastejar? Eu me movo para frente em
tentativa. Sim, se eu for bem devagar, eu consigo rastejar. A maior parte da floresta oferecerá
uma cobertura insuficiente.
Minha única esperança é voltar à maranha da Rue e me esconder na folhagem. Eu não posso
ser pega aqui de quatro no aberto. Não só eu vou enfrentar a morte, mas com certeza será
uma longa e dolorosa pelas mãos de Cato. Pensar que Prim teria que assistir isso me mantém
obstinadamente indo em direção, centímetro por centímetro, ao esconderijo.
Outra explosão me golpeia e me põe de cara no chão. Uma mina errante, disparada por um
engradado desmoronando. Isso acontece mais duas vezes. Eu sou lembrada daquelas últimas
sementes que estouram quando Prim e eu estouramos pipoca no fogo em casa.
Dizer que eu escapei no último segundo é uma atenuação. Eu literalmente acabei de me
arrastar para o amontoado na base das árvores quando sai Cato, movimentando-se em alta
velocidade no aberto, logo seguido por seus companheiros. Sua raiva é tão extrema que podia
ser cômica ­ então as pessoas realmente arrancam seus cabelos e batem no chão com seus
punhos ­ se eu não soubesse que estava direcionada a mim, ao que eu tinha feito a ele.
Acrescente a isso a minha proximidade, minha inabilidade de correr ou me defender, e de fato,
o negócio todo tinha me apavorado. Estou feliz por meu esconderijo tornar impossível que as
câmeras deem uma olhada de perto em mim, porque estou roendo minhas unhas como se não
houvesse amanhã. Mordiscando os últimos pedaços de esmalte, tentando impedir meus
dentes de trepidarem.
O garoto do Distrito 3 joga pedras nas ruínas e deve ter declarado que todas as minas foram
ativadas, porque os Profissionais estão se aproximando dos destroços.
Cato terminou a primeira fase de seu ataque de raiva e desconta sua raiva nos restantes
fumegantes ao chutar vários recipientes abertos. Os outros tributos estão cutucando a
baderna, procurando algo para salvar, mas não há nada. O garoto do Distrito 3 fez seu trabalho
bem demais. Essa ideia deve ocorrer ao Cato também, porque ele se vira para o garoto e
parece estar gritando com ele. O garoto do Distrito 3 só tem tempo de se virar e correr antes
que Cato o prenda com uma chave de braço de costas. Eu consigo ver a ondulação dos
músculos nos braços de Cato enquanto ele dá um solavanco severo na cabeça do garoto para o
lado.
Foi rápida assim. A morte do garoto do Distrito 3.
Os outros dois Profissionais pareciam estar tentando acalmar Cato. Eu consigo afirmar que ele
quer voltar para a floresta, mas eles ficam apontando para o céu, o que me confunde até que
eu percebo, É claro. Eles acham que quem quer que tenha acionado as explosões está morto.
Eles não sabem sobre as flechas e as maçãs. Eles presumem que a armadilha explosiva foi à
culpada, mas que o tributo que explodiu os suprimentos foi morto fazendo isso. Se tivesse
havido um tiro de canhão, ele poderia ter sido perdido facilmente nas explosões
subseqüentes.
Os restos despedaçados do ladrão removidos pelo aerobarco.
Eles se retiram para o lado mais distante do lago para permitir que os Gamemakers recuperem
o corpo do garoto do Distrito 3. E eles esperam. Eu acho que um canhão é disparado. Um
aerobarco aparece e leva o garoto morto. O sol mergulha abaixo do horizonte. A noite cai. No
céu, eu vejo o selo e sei que o hino deve ter começado. Um momento de escuridão. Eles
mostram o garoto do Distrito 3. Eles mostram o garoto do Distrito 10, que deve ter morrido
essa manhã. Então o selo reaparece. Então, agora eles sabem.
O bombardeador sobreviveu. Na luz do selo, eu consigo ver Cato e a garota do Distrito 2
colocarem seus óculos de visão noturna. O garoto do Distrito 1 acende um galho de árvore
para fazer uma tocha, iluminando a determinação amarga no rosto de todos. Os Profissionais
caminham de volta à floresta para caçar.
A tontura diminuiu e embora meu ouvido esquerdo ainda esteja ensurdecido, eu consigo ouvir
um zumbido no meu direito, o que parece ser um bom sinal. Não há razão para deixar o meu
esconderijo, contudo. Eu estou tão segura quanto posso estar, aqui na cena do crime. Eles
provavelmente acham que o bombardeador tem uma vantagem de duas ou três horas sobre
eles.
Ainda assim, passa um tempão antes de eu arriscar um movimento.
A primeira coisa que eu faço é procurar meus próprios óculos e colocá-los, o que me relaxa um
pouco, ter pelo menos um dos meus sentidos de caçadora funcionando. Eu bebo um pouco de
água e limpo o sangue da minha orelha. Temendo que o cheiro de carne atraia predadores não
desejados ­ sangue fresco já é ruim o bastante ­ eu faço uma bela refeição de verduras frescas
e raízes e bagas que Rue e eu coletamos hoje.
Onde está a minha pequena aliada? Ela conseguiu voltar para o local de encontro? Ela está
preocupada comigo? Pelo menos o céu mostrou que estamos vivas.
Eu contei rapidamente os tributos sobreviventes nos meus dedos. O garoto do 1, ambos do 2,
Foxface, ambos do 11 e 12. Somente oito de nós. As apostas deviam estar ficando muito
quentes no Capitol.
Eles farão especiais sobre cada um de nós agora. Provavelmente entrevistarão nossos amigos e
familiares. Faz muito tempo desde que um tributo do Distrito 12 chegou ao top oito. E agora
há dois de nós. Embora pelo que Cato dissera, Peeta está prestes a sair. Não que Cato seja o
especialista em qualquer coisa. Ele não tinha acabado de perder seu estoque inteiro de
suprimentos?
Que comece o septuagésimo quarto Hunger Games, Cato, eu penso. Que ele comece de
verdade.
Uma brisa gelada surgiu. Eu alcanço meu saco de dormir antes de lembrar que eu o deixei com
a Rue. Eu devia pegar outro, mas com as minas e tudo, eu esqueci. Eu começo a tremer. Já que
pernoitar durante a noite em uma árvore não é sensato, de qualquer forma, eu afundo em um
buraco sob os arbustos e me cubro com folhas de pinheiros. Eu ainda estou congelando. Eu
estendo minha coberta de plástico sobre a parte superior do meu corpo e posiciono minha
mochila para bloquear o vento. É um pouco melhor. Eu começo a ter mais empatia pela garota
do Distrito 8 que acendeu uma fogueia naquela primeira noite.
Mas agora sou eu quem precisa cerrar meus dentes e agüentar até de manhã. Mais folhas,
mais folhas de pinheiro. Eu enfio meus braços dentro da minha jaqueta e puxo meus joelhos
até meu peito. De algum modo, eu adormeço.
Quando eu abro meus olhos, o mundo parece ligeiramente fraturado, e levo um minuto para
perceber que o sol deve estar bem acima e que o óculos fragmenta a minha visão. Enquanto
eu sento e removo-os, eu ouço uma risada em algum lugar perto do lago e congelo. A risada
está distorcida, mas o fato de que ela é registrada significa que eu devo estar recuperando
minha audição. Sim, meu ouvido direito consegue escutar novamente, apesar de estar
zumbindo. Quanto ao ouvido esquerdo, pelo menos o sangramento parou.
Eu espio entre os arbustos, com medo de que os Profissionais tenham retornado, me
prendendo aqui por um tempo indefinido. Não, é a Foxface, de pé nos escombros da pirâmide
e rindo. Ela é mais esperta que a maioria dos Profissionais, realmente achando alguns itens
úteis nas cinzas. Um pote de metal. A lâmina de uma faca. Estou perplexa por seu divertimento
até que eu percebo que com as provisões dos Profissionais eliminadas, ela realmente pode ter
uma chance. Exatamente como o resto de nós. Passa pela minha cabeça me revelar, recrutá-la como uma segunda aliada contra o bando. Mas eu descarto. Há algo naquele
sorriso astucioso
que me faz ter certeza que ao fazer amizade com a Foxface eu iria no fim ganhar uma facada
pelas costas. Com isso em mente, essa pode ser uma ótima hora para atirar nela. Mas ela
ouviu algo, não eu, porque sua cabeça vira para longe, na direção da declinação, e ela corre a
toda velocidade para a floresta. Eu espero. Ninguém, nada aparece. Ainda assim, se a Foxface
achou que era perigoso, talvez seja hora de eu sair daqui também. Além do mais, eu estou
ansiosa para contar a Rue sobre a pirâmide.
Já que eu não faço ideia sobre onde os Profissionais estão, a rota de volta pelo riacho parece
tão boa quanto qualquer outra. Eu me apresso, arco carregado em uma mão, um pedaço
grande de groosling frio na outra, porque eu estou esfomeada agora, e não só de folhas e
bagas, mas de gordura e proteína da carne. A viagem para o riacho é rotineira. Uma vez lá, eu
reencho minha água e me limpo, tomando um cuidado particular com meu ouvido
machucado. Então eu viajo colina acima usando o riacho como guia.
Uma hora, eu acho pegadas de botas na lama pela margem. Os Profissionais estiveram aqui,
mas faz tempo. As pegadas são profundas porque foram feitas na lama fofa, mas agora elas
quase secaram no sol quente. Eu não fui cuidadosa o bastante quanto ao meu próprio rastro,
contando com uma pegada leve e as folhas de pinheiro para esconder meus passos. Agora eu
retiro minhas botas e meias e fico descalça no leito do riacho.
A água gelada tem um efeito revigorante no meu corpo, no meu espírito. Eu capturo dois
peixes, presas fáceis nesse riacho vagaroso, e vou e como um cru, apesar de ter acabado de
comer o groosling. O segundo eu salvo para Rue.
Gradualmente, sutilmente, o zumbido no meu ouvido direito diminuiu até que vai embora
inteiramente. Eu me acho tocando a minha orelha esquerda periodicamente, tentando afastar
o que quer que enfraqueça sua habilidade de coletar sons. Se há alguma melhora, não é
detectável. Eu não consigo me ajustar à surdez. Isso me faz sentir desequilibrada e indefesa na
minha esquerda. Até mesmo cega. Minha cabeça fica virando para o lado machucado,
enquanto minha orelha direita tenta compensar pela parede de nada onde ontem havia um
fluxo constante de informação. Quanto mais o tempo passa, menos esperança eu tenho de
que esse é um machucado que irá sarar.
Quando eu alcanço o local do nosso primeiro encontro, eu tenho certeza de que não foi
violado. Não há sinal da Rue, não no chão ou nas árvores. Isso é estranho. Ela já devia ter
retornado, já que é meio dia. Indubitavelmente, ela passou a noite numa árvore em algum
lugar. O que mais ela poderia fazer sem luz e com os Profissionais com seus óculos de visão
noturna vagueando pela floresta. E a terceira fogueira que ela devia acender ­ apesar de eu ter
esquecido de procurá-la na noite passada ­ era a mais distante do nosso local. Ela
provavelmente só está sendo cuidadosa ao voltar.
Eu gostaria que ela se apressasse, porque eu não quero ficar andando por aqui por muito
tempo. Eu quero passar a tarde viajando para terrenos mais altos, caçando pelo caminho. Mas
não há realmente nada para mim fazer exceto esperar.
Eu lavo o sangue da minha jaqueta e o cabelo e limpo minha crescente lista de ferimentos. As
queimaduras estão muito melhores, mas eu coloco um pouco de remédio nelas de qualquer
modo. A coisa principal a se preocupar agora é impedir a infecção de se espalhar. Eu vou em
frente e como o segundo peixe. Ele não vai durar muito no sol quente, mas deve ser fácil o
bastante pegar alguns mais com uma lança para a Rue. Se ela apenas aparecesse.
Me sentindo muito vulnerável no solo com a minha audição desequilibrada, eu escalo uma
árvore para esperar. Se os Profissionais aparecerem, esse será um bom lugar para atirar neles.
O sol se move lentamente. Eu faço coisas para passar o tempo. Mastigo folhas e aplico-as às
minhas picadas, que estão reduzidas, mas ainda delicadas. Penteio meu cabelo úmido com
meus dedos e faço uma trança. Enlaço minhas botas. Checo meu arco e minhas nove flechas
restantes. Testo meu ouvido esquerdo repetitivamente por sinais de vida ao farfalhar uma
folha perto dele, mas sem bons resultados.
Apesar do groosling e do peixe, meu estômago está rosnando, e eu sei que vou ter o que
chamamos de dia vazio lá no Distrito 12. Esse é um dia onde não importa o que você coloca na
sua barriga, nunca é o bastante. Não ter nada a fazer exceto sentar em uma árvore piora,
então eu decido desistir. Afinal de contas, eu perdi muito peso na arena, eu preciso de
algumas calorias extras. E ter o arco e as flechas me deixa muito mais confiante sobre meus
prospectos futuros.
Eu lentamente descasco e como um punhado de nozes. Minha última bolacha. O pescoço do
groosling. Isso é bom porque leva tempo para limpar. Finalmente, uma asa de groosling e o
pássaro é história. Mas é um dia vazio, e mesmo com tudo isso eu começo a sonhar acordada
com comida. Particularmente com os pratos imorais servidos em Capitol. O frango no molho
cremoso de laranja. Os bolos e pudins. Pão com manteiga. Macarrão com molho verde. O
carneiro e guisado de ameixa seca. Eu chupo algumas folhas de menta e digo a mim mesma
para superar isso. A menta é boa porque geralmente bebemos chá de menta após o Jantar,
então engana o meu estômago, fazendo-o pensar que a hora de comer passou. Mais ou
menos.
Pendurada na árvore, com o sol me esquentando, um punhado de menta, meu arco e flechas a
mão... esse é o mais perto de relaxar que eu estive desde que entrei na arena. Se apenas a Rue
aparecesse, e nós pudéssemos ir embora. À medida que as sombras crescem, minha
inquietação crescia também. Ao fim da tarde, eu resolvo ir procurá-la. Eu posso, pelo menos,
visitar o local onde ela acendeu a terceira fogueira e ver se há alguma pista sobre seu
paradeiro. Antes que eu vá, eu espalho algumas folhas de menta ao redor da nossa velha
fogueira de acampamento. Já que as coletamos a uma boa distância, Rue entenderá que eu
estive aqui, enquanto elas não significarão nada para os Profissionais.
Em menos de uma hora, estou no lugar onde concordamos em acender a terceira fogueira e
eu sei que algo deu errado. A madeira fora arrumada primorosamente, espalhada
habilidosamente com estopim, mas nunca fora acesa. Rue montou a fogueira, mas nunca
voltou aqui. De algum modo entre a segunda coluna de fumaça que eu espiei antes de explodir
os suprimentos e esse local, ela se encrencou.
Eu tenho que me lembrar que ela ainda está viva. Ou não está? Será que houve um tiro do
canhão anunciando sua morte nas horas matinais quando até mesmo o meu bom ouvido
estava danificado demais para captar? Ela aparecerá no céu hoje à noite? Não, eu me recuso a
acreditar nisso. Poderia haver uma centena de outras explicações. Ela poderia ter se perdido.
Encontrado um bando de predadores ou outro tributo, como Thresh, e teve que se esconder.
O que quer que tenha acontecido, tenho quase certeza de que ela está presa em algum lugar,
em algum lugar entre a segunda fogueira e a não acesa aos meus pés. Algo está mantendo-a
em cima de uma árvore.
Eu acho que vou caçá-lo.
É um alívio estar fazendo algo após sentar por toda à tarde. Eu me arrasto silenciosamente
pelas sombras, deixando-as me esconderem. Mas nada parece suspeito. Não havia sinal de
nenhum tipo de luta, nenhum rompimento de folhas no chão. Eu paro por apenas um
momento quando ouço. Eu tenho que inclinar minha cabeça para o lado para ter certeza, mas
ali está ele de novo. A canção de quatro notas da Rue saindo da boca de um mockinjay. Aquela
que quer dizer que ela está bem.
Eu sorrio e me movo na direção do pássaro. Outro, a apenas uma pequena distância, pega o
punhado de notas. Rue estivera cantando para eles, e recentemente. De outro modo, eles
teriam pego outra canção. Meus olhos se levantam para as árvores, procurando por um sinal
dela. Eu engulo em seco e canto suavemente de volta, esperando que ela saiba que é seguro
se juntar a mim. Um mockingjay repete a melodia para mim. E é aí que eu ouço o grito.
É o grito de uma criança, o grito de uma menina, não há ninguém na arena capaz de fazer esse
som exceto Rue. E agora eu estou correndo, sabendo que isso pode ser uma armadilha,
sabendo que os três Profissionais podem estar aprumados para me atacar, mas eu não consigo
evitar.
Há outro grito agudo, dessa vez o meu nome. "Katniss! Katniss!"
"Rue!" eu grito de volta, para que ela saiba que estou por perto. Então, eles sabem que estou
por perto, e com sorte a garota que os atacou com os tracker jackers e tirou um onze que eles
ainda não conseguem explicar será o bastante para tirar a atenção deles dela. "Rue! Estou
indo!"
Quando eu chego na clareira, ela está no chão, irremediavelmente presa numa rede. Ela só
tem tempo de esticar sua mão pela rede e dizer meu nome antes que a lança entre em seu corpo.

18

O garoto do Distrito 1 morre antes que possa arrancar a lança. Minha flecha entra no centro
do seu pescoço. Ele cai de joelhos e divide o breve resto da sua vida em tirar a flecha e se
afogar em seu próprio sangue. Eu carrego novamente, movendo minha mira de um lado para o
outro, enquanto grito para Rue, "Há mais? Há mais?"
Ela tem que dizer várias vezes antes de eu ouvir. Rue rolou de lado, seu corpo curvado para
dentro e ao redor da lança. Empurro o garoto para longe dela e puxo minha faca, libertando-a
da rede. Uma olhada na ferida e sei que está além da minha capacidade de curar, além da de
qualquer um, provavelmente. A ponta da lança está enterrada até o cabo em seu estômago.
Eu me encolho ante a ela, encarando desamparadamente a arma cravada. Não há sentido em
palavras de conforto, em dizer a ela que ela ficará bem. Não é tola. Sua mão se estende e a
agarro como se fosse a linha da vida. Como se fosse eu que estivesse morrendo em vez dela.
"Você explodiu a comida?" ela sussurra.
"Cada pedaço," digo.
"Você tem que ganhar," diz.
"Eu vou. Vou ganhar por nós duas agora," prometo. Ouço um canhão e olho para cima. Deve
ser pelo garoto do Distrito 1.
"Não vá." Rue aperta sua mão na minha.
"Claro que não. Estou bem aqui," digo. Eu me aproximo dela, puxando sua cabeça para o meu
colo. Gentilmente afago o cabelo grosso e escuro atrás de seu ouvido.
"Cante," ela diz, mas eu mal capturo a palavra.
Cantar? Penso. Cantar o quê? Sei algumas músicas. Acredite ou não, havia música na minha
casa também. Músicas que eu ajudei a escrever. Meu pai me pressionava com aquela voz
notável ­ mas não canto desde sua morte. Exceto quando Prim está muito doente. Então canto
para ela as mesmas músicas que ela gostava quando bebê.
Cantar. Minha garganta está apertada com as lágrimas, rouca por causa da fumaça e fatigada.
Mas se esse é o último pedido de Prim, quer dizer, de Rue, tenho que ao menos tentar. A
música que vem para mim é uma canção de ninar simples, uma que cantamos para bebês
irritados e famintos dormirem. É velha, muito velha, acho. Feita há muito tempo em nossas
colinas. O que meu professor de música chama de ar da montanha. Mas as palavras são fáceis
e suaves, prometendo que o amanhã será mais promissor que esse terrível pedaço de tempo
que chamamos de hoje.
Dou uma pequena tosse, limpo a garganta, e começo:
Bem dentro da campina, sob o salgueiro
Uma cama de grama, um macio travesseiro verde
Deite sua cabeça, e feche seus olhos sonolentos
E quando de novo eles abrirem, o sol nascerá.
Aqui é seguro, aqui é quente
Aqui as margaridas te guardam de qualquer dano
Aqui seus sonhos são doces e o amanhã os tornará verdadeiros
Aqui é o lugar onde eu te amo.
Os olhos de Rue se fecharam. Seu peito se move, mas apenas suavemente. Minha garganta
libera as lágrimas e elas descem pelas minhas bochechas. Mas tenho que terminar a música
por ela.
Bem dentro da campina, escondido longe
Um manto de folhas, um raio de lua irradia
Esqueça suas tristezas e deixe seus problemas aquietarem
E quando de novo for amanhã, eles irão partir.
Aqui é seguro, aqui é quente
Aqui as margaridas te guardam de qualquer dano
As linhas finais mal são audíveis.
Aqui seus sonhos são doces e o amanhã os tornará verdadeiros
Aqui é o lugar onde eu te amo.
Tudo está parado e quieto. Então, de modo quase assustador, os mockingjays recolhem minha
música.
Por um momento, fico sentada lá, observando minhas lágrimas caírem em seu rosto. O canhão
de Rue dispara. Eu me inclino para frente e pressiono meus lábios contra sua testa. Devagar,
como se para não acordá-la, deito sua cabeça no chão e libero sua mão.
Eles vão querer que eu saia daqui. Assim eles podem coletar os corpos. E não há nada pelo que
ficar. Viro o garoto do Distrito 1 sob seu rosto e pego sua mochila, retomo a flecha que acabou
com sua vida. Corto da mochila de Rue de suas costas também, sabendo que ela iria querer
que eu pegasse-a, mas deixasse a lança em seu estômago. Armas nos corpos serão
transportadas para o aerobarco. A lança não tem nenhuma utilidade para mim, então quanto
mais cedo ela se for, melhor.
Não posso parar de olhar para Rue, menor do que nunca, um filhote encolhido num ninho.
Não posso deixá-la assim. Passado o dano, mas parecendo completamente indefesa. Odiar o
garoto do Distrito 1, que também parece tão vulnerável na morte, parece impróprio. É o
Capitol que eu odeio, por fazer isso com todos nós.
A voz de Gale está na minha cabeça. Sua fúria contra o Capitol não mais à toa, não mais para
ser ignorada. A morte de Rue me forçou a confrontar minha própria fúria contra a crueldade, a
injustiça a qual eles nos infligem. Mas aqui, mesmo mais forte do que em casa, sinto minha
impotência. Não há como ter vingança contra o Capitol. Há?
Então me lembro das palavras de Peeta no terraço. "Só continuo desejando que eu pudesse
pensar num modo de... mostrar ao Capitol que eles não são donos de mim. Que eu sou mais
que um pedaço em seus Games". E pela primeira vez, compreendo o que ele quis dizer.
Eu quero fazer alguma coisa, aqui, agora, para envergonhá-los, para responsabilizá-los, para
mostrar ao Capitol que não importa o que eles nos forcem a fazer existe uma parte de cada
tributo que eles não podem comandar. Que Rue foi mais que um pedaço em seus Games. E eu
também.
Eles vão ter que exibir isso. Ou, mesmo se eles escolham virar as câmeras para outro lugar
nesse momento, eles vão ter que trazê-las de volta quando coletarem seus corpos e todos a
verão então e saberão que fui eu que fiz. Dou um passo para trás e dou uma última olhada
para Rue. Ela realmente poderia estar dormindo na campina, apesar de tudo.
"Tchau, Rue," sussurro. Pressiono os três dedos do meio da minha mão esquerda contra meus
lábios e estendo-os em sua direção. Então me afasto sem olhar para trás.
Os pássaros estão silenciosos. Em algum lugar, um mockingjay dá o assobio de aviso que
precede um aerobarco. Não sei como ele sabe. Deve ouvir coisas que os humanos não podem.
Eu paro, meus olhos focados no que está adiante, não no que está acontecendo atrás de mim.
Não leva muito tempo, e a usual música dos pássaros recomeçam e sei que ela se foi.
Outro mockingjay, um jovem pelo que parece, pousa num galho ante a mim e irrompe na
melodia de Rue.
Minha música, o aerobarco, eram estranhas demais para esse novato pegar, mas ele dominou
um punhado de suas notas. As que dizem que está a salvo.
"Sã e salva," digo enquanto passo por baixo do galho. "Não temos de nos preocupar com ela
agora." Sã e salva.
Não tenho idéia de onde ir. A breve sensação de lar que tive naquela noite com Rue sumiu.
Meus pés vagam por aqui e acolá até pôr-do-sol. Não estou com medo, nem mesmo alerta. O
que me faz um alvo fácil. Exceto que matarei qualquer um que eu encontrar agora. Sem
emoção ou o mais suave tremor em minhas mãos. Meu ódio pelo Capitol não diminuiu nem
um pouco meu ódio pelos competidores. Especialmente pelos Profissionais. Eles, pelo menos, podem pagar pela morte de Rue.
Ninguém se materializa, entretanto. Não há muitos de nós e é uma grande arena. Em breve eles
serão empurrados por alguma armadilha para nos forçar a nos juntar. Mas houve bastante
sangue hoje. Talvez nós consigamos dormir.
Estou puxando minha mochila numa árvore para acampar quando um paraquedas prateado
cai ante a mim. Um presente dos patrocinadores. Mas por que agora? Estou em uma boa
condição de suprimentos. Talvez Haymitch notou meu desânimo e está tentando me animar
um pouco. Ou pode ser algo para ajudar meu ouvido?
Abro o paraquedas e encontro um pequeno pão. Não é tão pão branco e suave do Capitol. É
feito de grão de ração escura e em forma de um crescente. Polvilhado com sementes. Eu
relembro a lição de Peeta sobre os vários pães dos distritos no Centro de Treinamento. Esse
pão veio do Distrito 11. Eu cuidadosamente levando o pão ainda quente. Quanto deve custar
para as pessoas do Distrito 11, que não podem nem mesmo se alimentarem? Quantos devem
ter dado uma moeda para juntar o suficiente por esse pão? Isso é por Rue, certamente. Mas
em vez de perder o presente quando ela morreu, eles autorizaram Haymitch a dá-lo para mim.
Como um agradecimento? Ou porque, como eu, eles não gostem de débitos? Por qualquer
razão, esse é o primeiro. Um presente de um distrito para um tributo que não é dos seus.
Eu levanto meu rosto e dou um passo para os últimos raios de luz do pôr-do-sol. "Meu
obrigado para as pessoas do Distrito Onze," digo. Quero que eles saibam que sei de onde veio.
Que todo o valor do presente foi reconhecido.
Subo perigosamente alto na árvore, não por segurança, mas para ficar tão longe quanto posso.
Meu saco de dormir está dobrado de modo organizado na mochila da Rue. Amanhã vou
ordenar os suprimentos. Amanhã vou fazer um novo plano. Mas hoje à noite, tudo que posso
fazer é me segurar e comer alguns pedaços de pão. É bom. Tem gosto caseiro.
Logo o sinal está no céu, e o hino toca no meu ouvido direito. Vejo o garoto do Distrito 1, Rue.
É tudo por essa noite. Sobraram seis de nós, penso. Apenas seis. Com o pão ainda preso em
minhas mãos, eu caio no sono imediatamente.
Às vezes, quando as coisas estão particularmente ruins, meu cérebro me dá um sonho feliz.
Uma visita do meu pai na floresta. Uma hora de luz do sol e bolo com Prim. Hoje à noite me dá
Rue, ainda enfeitada com suas flores, empoleirada no alto mar de árvores, tentando me
ensinar como conversar com os mockingjays. Não vejo nenhum sinal de suas feridas, nenhum
sangue, apenas uma garota brilhante e risonha. Ela canta músicas que nunca ouvi numa voz
melódica e clara. Continuamente. Através da noite. Há um período sonolento no qual posso
ouvir as últimas notas de sua música embora ela esteja perdida nas folhas. Quando acordo,
estou momentaneamente confortada. Tento segurar a sensação pacífica do sonho, mas ela
rapidamente desaparece, deixando-me mais triste e sozinha que nunca.
Lentidão impregna todo meu corpo, como se houvesse líquido em minhas veias. Perdi a
vontade de fazer até as tarefas mais simples, para fazer nada além de deixar aqui, encarando
cegamente a cobertura de folhas. Por algumas horas, permaneço sem me mover. Como
sempre, é a pensamento do rosto ansioso de Prim enquanto ela me assiste nas telas em casa
que me tira da letargia.
Eu me dou uma série de comandos simples a seguir, como "Agora você tem de se sentar,
Katniss. Agora você tem de beber água, Katniss." Obedeço as ordens com movimentos lentos e
robóticos. "Agora você tem de ordenar as bolsas, Katniss."
Na bolsa de Rue está meu saco de dormir, seu quase vazio odre de água, um punhado de
nozes e raízes, um pedaço do coelho, suas meias extras, e sua munição. O garoto do Distrito 1
tem algumas facas, duas pontas de lança de reposição, uma lanterna, uma pequena bolsa de
couro, um estojo de primeiros socorros, uma garrafa cheia de água, e um pacote de frutas
secas. Um pacote de frutas secas! De todo que ele poderia ter escolhido. Para mim, esse é um
sinal de extrema arrogância. Por que se incomodar em carregar comida quando você tem tal
generosidade de volta ao acampamento? Quando você vai matar seus inimigos tão
rapidamente que você estará de volta a casa antes de ficar com fome? Posso apenas esperar
que os outros Profissionais se preocupem tão pouco com comida e agora se encontrem sem
nada.
Falando nisso, meus próprios suprimentos estão baixos. Termino o pão do Distrito 11 e o resto
do coelho. Como começou, desapareceu rápido. Tudo que restou são as raízes e nozes de Rue,
as frutas secas do garoto, e um pedaço de bife. Agora você tem de caçar, Katniss, digo a mim
mesma.
Obedientemente guardo os suprimentos que quero na minha bolsa. Depois de descer da
árvore, escondo as facas e as pontas de lança do garoto numa pilha de pedras para que
ninguém mais posa usá-las. Perdi meu rumo com toda a perambulação que diz ontem de
tarde, mas tento e volto na direção do riacho. Sei que estou no curso quando passo pela
terceira fogueira apagada de Rue. Pouco depois, descubro um grupo de pássaros empoleirado
nas árvores e consigo tomar três antes de eles perceberem o que os atingiu. Retorno para o
sinal de fogo de Rue e acendo-o, não me importando com a fumaça excessiva. Onde você está,
Cato? Penso enquanto asso os pássaros e as raízes de Rue. Estou esperando bem aqui.
Quem sabe onde os Profissionais estão agora? Ou muito longe para me alcançar ou muito
certos de que esse é um truque ou... é possível? Muito apavorados comigo? Eles sabem que eu
tenho um arco e flechas, é claro, Cato me viu tirá-los do corpo de Glimmer, mas eles já
somaram dois mais dois? Descobriram que eu explodi os suprimentos e matei o companheiro
Profissional deles? Possivelmente eles acham que Thresh fez isso. Seria mais fácil ele vingar a
morte de Rue do que eu? Sendo do mesmo distrito? Não que ele já teve algum interesse nela.
E Foxface? Ela estava por ali para observar eu explodir os suprimentos? Não. Quando a peguei
rindo nas cinzas na manhã seguinte, foi como se alguém tivesse dado a ela uma linda surpresa.
Duvido que eles pensem que Peeta acendeu esse sinal de fogo. Cato está certo de que ele está
morto. Encontro-me desejando poder contar a Peeta sobre as flores que coloquei sobre Rue.
Que agora entendo o que ele estava tentando dizer no telhado. Talvez se ele ganhar os Games,
ele me verá na noite do vencedor, quando eles exibirem novamente os destaques dos Games
na tela sobre o palco onde fizemos nossas entrevistas. O ganhador se senta num lugar de
honra na plataforma, rodeado por sua equipe de suporte.
Mas eu falei para Rue que eu estaria lá. Por nós duas. E de alguma forma isso parece até mais
importante que a promessa que fiz a Prim.
Eu realmente penso que tenho uma chance de fazer agora. Ganhar. Não é só ter flechas e ser
mais inteligente que os Profissionais algumas vezes, embora essas coisas ajudem. Às vezes
acontece quando eu estava segurando a mão de Rue, observando a vida ser drenada dela.
Agora estou determinada a vingá-la, a fazer sua perda inesquecível, e posso apenas fazer isso
ganhando e através disso me fazendo inesquecível.
Eu asso demais os pássaros esperando que alguém apareça para atirar, mas ninguém aparece.
Talvez os outros tributos estejam por aí batendo em alguém até a morte. O que seria bom.
Desde o banho de sangue, eu fui apresentada nas telas mais do que me importaria.
Eventualmente, enrolo minha comida e volta ao riacho para tornar a encher minha água e
tomar alguma. Mas a indolência da manhã volta e embora seja apenas o início da tarde, subo
numa árvore e me organizo para a noite. Meu cérebro começa a repetir os eventos de ontem.
Continuo vendo Rue ser furada com a lança, minha flecha atingindo o pescoço do garoto. Não
sei nem por que eu me importo com o garoto.
Então percebo... ele foi minha primeira presa.
Junto com outras estatísticas que eles reportam para ajudar as pessoas a escolher suas
apostas, cada tributo tem uma lista de mortes. Acho que tecnicamente tenho crédito por
Glimmer e pela garota do Distrito 4, também, por derrubar o ninho sobre elas. Mas o garoto
do Distrito 1 foi a primeira pessoa que eu sabia que morreria pelas minhas ações. Numerosos
animais perderam suas vidas pelas minhas mãos, mas apenas um humano. Ouço Gale dizendo,
"Que diferença pode ser, realmente?"
Incrivelmente similar na execução. Um arco puxado, uma flecha atirada. Inteiramente
diferente nas conseqüências. Matei o garoto cujo nome nem mesmo sei. Em algum lugar sua
família está chorando por ele. Seus amigos clamam por meu sangue. Talvez ele tinha uma
namorada que realmente acreditava que ele retornaria...
Mas então penso no corpo imóvel de Rue e sou capaz de banir o garoto da minha mente. Ao
menos, por ora.
Foi um dia sem ocorrências de acordo com o céu. Sem mortes. Pergunto-me quanto tempo
teremos até a próxima catástrofe nos reunir novamente. Se for essa noite, quero dormir um
pouco primeiro. Cubro meu ouvido bom para bloquear as notas do hino, e então ouço as
trombetas e me sento ereta em antecipação.
Na maioria, a única comunicação que os tributos têm de fora da arena é o número de mortos
noturno. Mas ocasionalmente, há trombetas que seguem um anúncio. Usualmente, isso seria
uma chamada para um festim. Quando comida é escassa, os Gamemakers convidam os
jogadores a um banquete, em algum lugar conhecido como a Cornucópia, como uma
persuasão para juntar e lutar. Algumas vezes há um festim e outras nada além de um naco de
pão velho pelo qual os tributos competem. Eu não iria por comida, mas essa seria a hora ideal para matar alguns competidores.
A voz de Claudius Templesmith ruge de cima, congratulando os seis de nós que restam. Mas
ele não está nos convidando para um festim. Ele está dizendo algo muito confuso. Houve uma
mudança nas regras dos Games. Uma mudança nas regras! Isso por si só pode levar a reflexão,
visto que não temos realmente alguma regra para falar, exceto não pisar fora do seu círculo
por sessenta segundos e a regra tácita de não comer uns aos outros. Sob uma nova regra,
ambos os tributos do mesmo distrito serão declarados vencedores se forem os últimos vivos.
Claudius dá uma pausa, como se ele soubesse que nós não entendemos, e repete a mudança
de novo.
A novidade é captada. Dois tributos podem vencer esse ano. Se eles foram do mesmo distrito.
Ambos podem viver. Dois de nós podem viver.
Antes que eu possa me conter, grito o nome de Peeta.

PARTE III

O Vencedor

19

Eu tampo minha boca com as minhas mãos, mas o som já tinha escapado. O céu fica preto e eu
ouço um coro de sapos começar a cantar. Estúpida! Eu digo a mim mesma. Que coisa estúpida
de se fazer! Eu espero, congelada, para que a floresta fique cheia de assaltantes. Então eu me
lembro que não restou quase ninguém.
Peeta, que foi ferido, é agora meu aliado. Quaisquer dúvidas que eu tivera sobre ele dissipam-
se porque se qualquer um de nós tirar a vida do outro agora seremos parias quando
retornarmos ao Distrito 12. De fato, eu sei que se estivesse assistindo eu odiaria qualquer
tributo que não se aliou imediatamente com seu parceiro de distrito. Além do mais,
simplesmente faz sentido proteger um ao outro. E no meu caso ­ sendo uma dos amantes
desafortunadas do Distrito 12 ­ é um requisito absoluto se eu quiser mais ajuda dos
patrocinadores simpatizantes.
Os amantes desafortunados... Peeta deve ter jogado esse ângulo o tempo todo. Por que mais
os Gamemakers fariam essa mudança sem precedentes nas regras? Para que dois tributos
tenham uma chance de ganhar, o nosso "romance" deve ser tão popular com a audiência que
condená-lo ameaçaria o sucesso dos Games. Não graças a mim. Tudo que eu fiz foi conseguir
não matar o Peeta. Mas o que quer que ele tenha feito na arena, ele deve ter convencido a
audiência que foi para me manter viva. Balançando sua cabeça para me impedir de correr para
a Cornucópia. Lutando com Cato para me deixar escapar. Até mesmo se juntar aos
Profissionais deve ter sido um movimento para me proteger. Peeta, ao que parece, nunca foi
um perigo para mim.
O pensamento me faz sorrir. Eu deixo minhas mãos caírem e levanto meu rosto para a luz do
luar para que as câmeras definitivamente a capturem.
Então, quem resta para se temer? Foxface? O tributo de seu distrito está morto. Ela está
operando sozinha, de noite. E sua estratégia tem sido evadir, não atacar. Eu não acho
realmente que, mesmo que ela tenha ouvido a minha voz, ela faria qualquer coisa exceto
esperar que outro me matasse.
Então tem o Thresh. Tudo bem, ele é uma ameaça distinta. Mas eu não o vi, nenhuma vez,
desde que os Games começaram. Eu penso em como a Foxface ficou alarmada quando
escutou um som no local da explosão. Mas ela não se virou para a floresta, ela se virou para o
que quer que exista do outro lado dela. Para aquela área da arena que cai em algo que não
conheço. Eu tenho quase certeza de que a pessoa da qual ela fugiu era Thresh, e que aquele
era seu domínio. Ele nunca teria me ouvido de lá e, mesmo que tivesse, estou muito no alto
para que alguém do tamanho dele me alcance.
Então resta Cato e a garota do Distrito 2, que agora estão com certeza celebrando a nova
regra. Eles são os únicos que restam que se beneficiam com isso além de Peeta e de mim. Eu
corro deles agora, arriscando que eles tenham me ouvido chamar o nome de Peeta? Não, eu
penso. Deixe eles virem. Deixe eles virem com seus óculos de visão noturna e seus corpos
pesados de quebrar galhos. Bem no alcance das minhas flechas. Mas eu sei que não virão. Se
eles não vieram à luz do dia até a minha fogueira, eles não arriscarão o que poderia ser outra
armadilha à noite. Quando eles vierem, será em seus próprios termos, não porque eu deixei
que eles soubessem meu paradeiro.
Fique quieta e durma um pouco, Katniss, eu me instruo, apesar de desejar começar a procurar
Peeta agora. Amanhã, você o achará.
Eu durmo, mas de manhã sou extra-cuidadosa, pensando que embora os Profissionais possam
hesitar em me atacar em uma árvore, eles são completamente capazes de montar uma
armadilha para mim. Eu me certifico de me preparar completamente para o dia ­ tomando um
grande café-da-manhã, amarrando com firmeza minha mochila, preparando minhas armas ­
antes que eu desça. Mas tudo parece pacífico e tranqüilo no chão.
Hoje eu terei que ser escrupulosamente cuidadosa. Os Profissionais saberão que estou
tentando localizar Peeta. Eles podem muito bem querer esperar até que eu faça isso antes de
fazerem seu movimento. Se ele está tão profundamente ferido quanto Cato acha, eu estarei
na posição de ter que defender nós dois sem qualquer assistência. Mas se ele está tão
incapacitado, como ele conseguiu permanecer vivo? E como diabos vou encontrá-lo?
Eu tento pensar em qualquer coisa que Peeta já tenha dito que pode me dar uma indicação
sobre onde ele está se escondendo, mas nada soa familiar. Então eu volto ao último momento
em que o vi brilhando na luz do sol, gritando para que eu corresse. Então Cato apareceu, sua
espada exposta. E depois que eu parti, ele feriu Peeta. Mas como Peeta escapou? Talvez ele
tenha agüentado melhor o veneno do tracker jacker do que Cato. Talvez essa tenha sido a
variável que permitiu que ele escapasse. Mas ele fora picado também. Então quão distante ele
poderia ter chegado, esfaqueado e cheio de veneno? E como ele permaneceu vivo todos esses
dias desde então? Se o ferimento e as picadas não o mataram, certamente a sede o teria
levado agora.
E é quando eu consigo minha primeira pista sobre seu paradeiro. Ele não poderia ter
sobrevivido sem água. Eu sei disso por causa dos meus primeiros dias aqui. Ele deve estar
escondido em algum lugar perto de uma fonte. Há o lago, mas eu acho que essa é uma opção
improvável já que está tão perto da base do acampamento dos Profissionais. Algumas poças
alimentadas por nascentes. Mas você realmente seria um alvo fácil em uma dessas. E o riacho.
Aquele que vai do acampamento que Rue e eu fizemos até lá embaixo perto do lago e além. Se
ele ficasse perto do riacho, ele podia mudar sua localização e sempre ficar próximo à água. Ele
podia andar na corrente e apagar quaisquer vestígios. Ele pode até ser capaz de pegar um ou
dois peixes.
Bem, é um local para começar, de qualquer maneira.
Para confundir a mente dos meus inimigos, eu começo uma fogueira com muita madeira
verde. Mesmo que eles achem que é um ardil, espero que eles decidam que estou escondida
em algum lugar próximo. Quando, na realidade, estarei caçando o Peeta.
O sol queima a bruma matinal quase imediatamente e eu consigo afirmar que o dia será mais
quente que o normal. A água está fria e agradável nos meus pés descalços enquanto eu me
dirijo corrente abaixo. Estou tentada a chamar o nome de Peeta enquanto ando, mas decido
não fazê-lo. Terei que encontrá-lo com meus olhos e um ouvido bom ou ele terá que me achar.
Mas ele saberá que estarei procurando, certo? Ele não tem uma opinião tão baixa de mim para
pensar que eu ignoraria a nova regra e ficaria sozinha. Teria? Ele é muito difícil de se prever, o
que poderia ser interessante sob circunstâncias diferentes, mas no momento só providencia
um obstáculo extra.
Não demora muito para alcançar o ponto onde eu parti para ir ao acampamento dos
Profissionais. Não há sinal do Peeta, mas isso não me surpreende. Eu já passei acima e abaixo
dessa extensão por três vezes desde o incidente do tracker jacker. Se ele estivesse próximo, eu
certamente teria suspeitado disso. O riacho começa a curvar para esquerda numa parte da
floresta que é nova para mim. Ribanceiras lamacentas cobertas por plantas aquáticas levam a
pedras grandes que aumentam de tamanho até eu começar a me sentir meio presa. Não seria
pouca coisa escapar do riacho agora. Lutar contra Cato ou Thresh enquanto eu escalo esse
terreno rochoso. De fato, eu acabo de decidir que estou completamente no caminho errado,
que um garoto ferido seria incapaz de navegar para dentro e fora dessa fonte d'água, quando
vejo o vestígio sangrento descendo pela curva de uma pedra grande desgastada. Está muito
seco agora, mas as linhas manchadas correndo lado a lado sugerem que alguém ­ que talvez
não estivesse em total controle de suas faculdades mentais ­ tentou limpá-las.
Abraçando as pedras, eu me movo lentamente na direção do sangue, procurando por ele. Eu
encontro mais algumas manchas de sangue, uma com algumas fibras de tecido coladas nela,
mas sem sinal de vida. Eu me descontrolo e digo seu nome em uma voz abafada. "Peeta!
Peeta!" Então um mockingjay pousa numa árvore desgastada e começa a imitar meus tons,
então eu paro. Eu desisto e desço até o riacho, pensando, Ele deve ter se deslocado. Para
algum lugar mais abaixo.
Meu pé acabou de romper a superfície da água quando ouço uma voz.
"Está aqui para acabar comigo, querida?"
Eu me viro. Veio da esquerda, então eu não consigo captar muito bem. E a voz estava rouca e
fraca. Ainda assim, deve ter sido o Peeta. Quem mais na arena me chamaria de querida? Meus
olhos examinam cuidadosamente a ribanceira, mas não há nada. Só lama, as plantas, a base
das pedras.
"Peeta?" eu sussurro. "Onde você está?" Não há resposta. Será que eu simplesmente imaginei
isso? Não, tenho certeza que foi real e muito próximo também. "Peeta?" eu me arrasto pela ribanceira.
"Ora, não pise em mim."
Eu pulo para trás. Sua voz estava bem abaixo do meu pé. Ainda não há nada. Então seus olhos
se abrem, inconfundivelmente azuis na lama marrom e nas folhas verdes. Eu arfo e sou
recompensada por um vestígio de dentes brancos enquanto ele ri.
É a palavra final em camuflagem. Esqueça arremessar pesos por aí. Peeta deveria ter ido para
sua sessão privada com os Gamemakers e se pintado de árvore. Ou de uma pedra grande
desgastada. Ou de uma ribanceira lamacenta cheia de ervas daninhas.
"Feche seus olhos novamente," eu ordenei. Ele fecha, e sua boca também, e desaparece
completamente. A maior parte do que julgo ser seu corpo está na verdade sob uma camada de
lama e plantas. Sua face e braços estão tão habilidosamente disfarçados para que fiquem
invisíveis. Eu me ajoelho ao lado dele. "Eu acho que todas aquelas horas decorando bolos
vieram a calhar."
Peeta sorri. "Sim, glacê. A defesa final dos moribundos."
"Você não vai morrer," eu digo a ele firmemente.
"Quem disse?" Sua voz está tão atormentada.
"Eu disse. Estamos no mesmo time agora, sabe," eu digo a ele.
Seus olhos se abrem. "Então, ouvi dizer. Que legal da sua parte achar o que restou de mim."
Eu puxo minha garrafa d'água e dou-lhe pra beber. "O Cato te cortou?" eu pergunto.
"Perna esquerda. Bem acima," ele responde.
"Vamos te colocar no riacho, te lavar para que eu possa ver que tipos de machucados você
tem," eu digo.
"Incline-se um minuto primeiro," ele diz. "Preciso te dizer algo." Eu me inclino e coloco meu
ouvido bom nos lábios dele, o que provoca cócegas quando ele sussurra. "Lembre-se, estamos
loucamente apaixonados, então não tem problema me beijar quando sentir vontade."
Eu levanto minha cabeça abruptamente, mas acabo rindo. "Obrigada, lembrarei disso." Pelo
menos, ele ainda é capaz de fazer piada. Mas quando eu começo a ajudá-lo a ir até o riacho,
toda a leveza desaparece. São apenas sessenta centímetros de distância, quão difícil pode ser?
Muito difícil, quando percebo que ele é incapaz de se mover um centímetro sozinho. Ele está
tão fraco que o melhor que pode fazer é não resistir. Eu tento arrastá-lo, mas apesar do fato
de eu saber que ele está fazendo tudo que pode para ficar quieto, gritos agudos de dor
escapam dele. A lama e as plantas parecem tê-lo aprisionado e eu finalmente tenho que dar
um puxão gigantesco para libertá-lo de suas amarras. Ele ainda está há sessenta centímetros
da água, deitado ali, os dentes cerrados, as lágrimas cortando caminho na sujeira em seu
rosto.
"Olha, Peeta. Vou te rolar até o riacho. É bem raso lá, tudo bem?" eu digo.
"Excelente," ele diz.
Eu agacho ao lado dele. Não importa o que aconteça, eu digo a mim mesma, não pare até que
ele esteja na água. "No três," eu digo. "Um, dois, três!" Eu só consigo dar uma rodada
completa antes de ter que parar por causa do som horrível que ele faz. Agora ele está na beira
do riacho. Talvez isso seja melhor, de qualquer jeito.
"Está bem, mudança de planos. Não vou te colocar totalmente dentro," eu digo a ele. Além do
mais, se eu colocá-lo dentro, quem sabe se eu serei capaz de tirá-lo?
"Nada mais de rolar?" ele pergunta.
"Já acabou. Vamos te limpar. Fique de olho na floresta por mim, está bem?" eu digo. É difícil
saber por onde começar. Ele está tão empastado com lama e folhas desbotadas, não consigo
nem ver suas roupas. Se ele estiver usando roupas. O pensamento me faz hesitar por um
momento, mas então eu mergulho. Corpos nus não são nada demais na arena, certo?
Eu tenho duas garrafas d'água e o odre de água da Rue. Eu as apoio contra as pedras no riacho
para que as duas estejam sempre enchendo enquanto eu entorno a terceira sobre o corpo do
Peeta. Leva um tempo, mas eu finalmente me livro da lama o bastante para achar suas roupas.
Eu gentilmente abro sua jaqueta, desabotoo sua camiseta e as tiro dele. Sua camiseta está
tão emplastrada em seus ferimentos que eu tenho que cortá-la com a minha faca e banhá-lo
novamente para soltá-la. Ele está muito ferido com uma ampla queimadura ao longo de seu
peito e quatro picadas de tracker jackers, se contar aquela embaixo de sua orelha. Mas eu me
sinto um pouco melhor. Esse tanto eu posso consertar. Eu decido cuidar da parte superior de
seu corpo primeiro, para aliviar um pouco da dor, antes que eu cuide de qualquer dano que
Cato tenha feito a sua perna.
Já que cuidar de seus ferimentos parece inútil quando ele está deitado no que virou uma poça
de lama, eu consigo apoiá-lo contra uma pedra grande e desgastada. Ele fica sentado lá, sem
reclamar, enquanto eu lavo todos os traços de terra de seu cabelo e pele. Sua pele está muito
pálida à luz do sol e ele não parece mais forte e troncudo. Eu tenho que escavar as picadas de
tracker jacker de seus inchaços, o que faz com que ele recue, mas no instante que eu aplico as
folhas ele suspira em alívio. Enquanto ele seca ao sol, eu lavo sua camiseta e jaqueta imundas
e espalho-as sobre as pedras grandes desgastadas. Então eu aplico o creme contra queimadura
em seu peito. É quando eu noto como sua pele ficou quente. A camada de lama e as garrafas
d'água disfarçaram o fato de que ele está queimando de febre. Eu procuro no kit de primeiros
socorros que consegui do garoto do Distrito 1 e encontro pílulas que reduzem sua
temperatura. Minha mãe na verdade sucumbe as compras ocasionalmente quando seus
medicamentos caseiros falham.
"Engula-as," eu digo a ele, e ele obedientemente toma o remédio. "Você deve estar faminto."
"Na verdade não. É engraçado, eu não tenho estado faminto há dias," diz Peeta. De fato,
quando eu lhe ofereço groosling, ele torce seu nariz para ele e o afasta. É quando eu fico
sabendo como ele está doente.
"Peeta, precisamos te dar comida," eu insisto.
"Vai simplesmente voltar," ele diz. O melhor que eu posso fazer é fazê-lo comer alguns
pedacinhos de maça seca. "Obrigado. Estou muito melhor, sério. Posso dormir agora, Katniss?"
ele pergunta.
"Logo," eu prometo. "Preciso olhar para a sua perna primeiro." Tentando ser o mais gentil que
consigo, removo suas botas, suas meias, e então muito lentamente tiro sua calça, centímetro
por centímetro. Eu consigo ver o rasgo que a espada de Cato fez no tecido sobre sua coxa, mas
de jeito algum me preparo para o que há abaixo. O corte profundamente inflado esvaindo
tanto sangue quanto pus. O inchaço da perna. E pior de tudo, o cheiro da carne supurando.
Eu quero fugir. Desaparecer na floresta como eu fiz naquele dia que eles trouxeram a vítima de
queimadura para a nossa casa. Ir caçar enquanto a minha mãe e a Prim cuidam do que eu não
tenho nem a habilidade nem a coragem de enfrentar. Mas não há ninguém aqui exceto eu. Eu
tento capturar o comportamento calmo que minha mãe assume quando lida com casos
particularmente ruins.
"Bem horrível, hein?" diz Peeta. Ele está me observando atentamente.
"Mais ou menos." Eu dou de ombros como se não fosse nada demais. "Você deveria ver
algumas das pessoas que levam pra minha mãe das minas." Eu me abstenho de dizer como eu
geralmente saio da casa sempre que ela trata de alguém com algo pior que um resfriado.
Pensando nisso, eu nem gosto muito de ficar perto de tosses. "A primeira coisa que se deve
fazer é limpá-lo bem."
E deixei Peeta de cueca porque ela não está em má condição e eu não quero puxá-la sobre sua
coxa inchada e, tudo bem, talvez a ideia de vê-lo pelado me deixa desconfortável. Essa é outra
coisa sobre a minha mãe e a Prim. Nudez não tem efeito sobre elas, não lhes dá motivo algum
para envergonhamento. Ironicamente, a esta altura dos Games, minha irmãzinha seria de
muito mais utilidade para Peeta do que eu sou. Eu movo meu quadrado de plástico sob ele
para que possa lavar o resto dele. Com cada garrafa que eu derramo sobre ele, pior seu
ferimento aparece. O resto da parte inferior de seu corpo está muito bom, só uma picada de
tracker jacker e algumas poucas queimaduras que eu trato rapidamente. Mas o corte em sua
perna... que diabos posso fazer com isso?
"Por que não deixamos respirar um pouco e então..." eu dissipo.
"E então você remenda?" diz Peeta. Ele parece quase com pena de mim, como se soubesse
como estou perdida.
"É mesmo," eu digo. "Enquanto isso, coma isso." Eu ponho algumas metades de peras secas
em sua mão e volto para o riacho para lavar o resto de suas roupas. Quando elas estão
esticadas e secando, eu examino o conteúdo do kit de primeiros socorros. São coisas bem
básicas. Bandagens, pílulas de febre, remédios para acalmar estômagos.
Nada do calibre que eu preciso para tratar o Peeta.
"Teremos que experimentar alguns," eu admito. Eu sei que as folhas dos tracker jacker
extraem a infecção, então eu começo com elas. Dentro de minutos pressionando o punhado
de coisas verdes mastigadas no ferimento, pus começa a escorrer pela lateral de sua perna. Eu
digo a mim mesma que isso é uma coisa boa e mordo o interior da minha bochecha forte
porque meu café-da-manhã está ameaçando fazer uma reaparição.
"Katniss?" Peeta diz. Eu encontro seus olhos, sabendo que meu rosto deve estar de algum tom
de verde. Ele balbucia as palavras. "E quanto aquele beijo?"
Eu caio em risada porque a coisa toda é tão revoltante que não consigo agüentar.
"Algo errado?" ele pergunta um tanto ingenuamente demais.
"Eu... eu não sou nada boa com isso. Eu não sou a minha mãe. Eu não faço ideia do que estou
fazendo e odeio pus," eu digo. "Ui!" eu me permito soltar um resmungo enquanto lavo a
primeira rodada de folhas e aplico a segunda. "Uuui!"
"Como você caça?" ele pergunta.
"Confie em mim. Matar coisas é muito mais fácil que isso," eu digo. "Apesar de que, pelo que
sei, possa estar te matando."
"Pode se apressar um pouquinho?" ele pergunta.
"Não. Cala a boca e coma suas peras," eu digo.
Após três aplicações e o que parece ser um balde de pus, o ferimento parece mesmo melhor.
Agora que o inchaço abaixou-se, eu consigo ver o quão profundamente a espada de Cato
cortou. Até o osso.
"E agora, Dra. Everdeen?" ele pergunta.
"Talvez eu coloque um pouco da pomada pra queimadura nisso. Eu acho que ajuda com
infecção, de qualquer jeito. E enfaixar?" eu digo. Eu faço isso e a coisa toda parece muito mais
controlável, coberta em algodão branco limpo. Apesar de que, contra a bandagem estéril, a
bainha de sua cueca parece nojenta e transbordando com doenças contagiosas. Eu puxo a
mochila da Rue. "Aqui, cubra-se com isso e eu lavarei sua cueca."
"Ah, eu não ligo se você me vir," diz Peeta.
"Você é exatamente como o resto da minha família," eu digo. "Eu ligo, tudo bem?" Eu viro de
costas e olho para o riacho até que a cueca chapinhe na corrente. Ele deve estar se sentindo
um tantinho melhor se ele consegue atirar.
"Sabe, você é meio sensível para uma pessoa tão letal," diz Peeta enquanto eu bato sua cueca
entre duas pedras para limpá-la.
"Gostaria de ter deixado você dar um banho no Haymitch no final das contas."
Eu torço meu nariz para a memória. "O que ele te mandou até agora?"
"Nadinha," diz Peeta. Então há uma pausa, enquanto ele se dá conta.
"Por que, você conseguiu algo?"
"Remédio para queimadura," eu digo quase timidamente. "Ah, e um pouco de pão."
"Eu sempre soube que você era a favorita dele," diz Peeta.
"Por favor, ele não suporta ficar no mesmo cômodo que eu," eu digo.
"Porque vocês são muito parecidos," resmunga Peeta. Eu ignoro isso, no entanto, porque essa
realmente não é a hora de eu insultar o Haymitch, que é meu primeiro impulso.
Eu deixo Peeta cochilar enquanto suas roupas secam, mas ao final da tarde, eu não ouso
esperar ainda mais. Eu gentilmente balanço seu ombro. "Peeta, temos que ir agora."
"Ir?" Ele parece confuso. "Ir para onde?"
"Pra longe daqui. Corrente abaixo talvez. Para algum lugar em que possamos nos esconder até
que você esteja mais forte," eu digo. Eu ajudo-o a se vestir, deixando seus pés descalços para
que possamos andar na água, e puxo-o na vertical. Seu rosto é drenado de cor no momento
que coloca peso em sua perna. "Vamos. Você consegue fazer isso."
Mas ele não consegue. Não por muito tempo, pelo menos. Nós andamos cerca de quarenta e
cinco metros correnteza abaixo, com ele apoiado no meu ombro, e eu posso afirmar que ele
vai desmaiar. Eu o sento na ribanceira, coloco sua cabeça entre seus joelhos, e dou tapinhas
em suas costas sem jeito enquanto vasculho a área. É claro, eu adoraria colocá-lo em cima de
uma árvore, mas isso não vai acontecer. Podia ser pior, contudo. Algumas dessas pedras
formam pequenas estruturas parecidas com cavernas. Eu ponho meus olhos em uma a cerca
de dezoito metros acima do riacho. Quando é capaz de ficar em pé, eu meio guio, meio
carrego-o até a caverna. Na verdade, eu gostaria de procurar um lugar melhor, mas esse terá
que servir porque meu aliado está ferido. Branco feito papel, arfando, e, apesar de ter
começado agora a esfriar, ele está tremendo.
Eu cubro o chão da caverna com uma camada de folhas de pinheiro, desenrolo meu saco de
dormir, e o enfio dentro dele. Eu ponho algumas pílulas e um pouco de água dentro dele
quando ele não está notando, mas ele se recusa a comer até mesmo a fruta. Então ele
simplesmente fica deitado ali, seus olhos treinados no meu rosto enquanto eu construo um
tipo de cobertura de vinhas para esconder a boca da caverna. O resultado é insatisfatório. Um
animal poderia não questionar isso, mas um humano veria que mãos tinham manufaturado
isso rápido o bastante. Eu rasgo-a em frustração.
"Katniss," ele diz. Eu vou até ele e tiro o cabelo de seus olhos. "Obrigado por me encontrar."
"Você teria me encontrado se pudesse," eu digo. Sua testa está queimando. Como se o
remédio não está fazendo efeito algum.
De repente, do nada, fico com medo que ele vá morrer.
"Sim. Olha, se eu não voltar", ele começa.
"Não fale assim. Eu não drenei todo esse pus por nada," eu digo.
"Eu sei. Mas só no caso de eu não," ele tenta continuar.
"Não, Peeta, eu não quero nem discutir isso," eu digo, colocando meus dedos em seus lábios
para silenciá-lo.
"Mas eu," ele insiste.
Impulsivamente, eu me inclino para frente e beijo ele, parando suas palavras. Isso está
provavelmente atrasado, de qualquer jeito, já que ele está certo, nós devíamos estar
loucamente apaixonados. É a primeira vez que eu beijei um garoto, o que deveria fazer algum
tipo de impressão, eu acho, mas tudo que consigo registrar é como seus lábios estão
anormalmente quentes de febre. Eu me separo e puxo a beirada do meu saco de dormir ao
redor dele. "Você não vai morrer. Eu proíbo isso. Está certo?"
"Está certo," ele sussurra.
Eu saio no ar frio da noite bem quando um paraquedas flutua do céu. Meus dedos
rapidamente desfazem o nó, esperando por algum medicamento real para tratar a perna de
Peeta. Ao invés disso eu encontro pote de caldo quente.
Haymitch não podia estar me mandando uma mensagem mais clara. Um beijo equivale a um
pote de caldo. Eu quase consigo ouvir seu resmungo.
"Você deveria estar apaixonada, querida. O garoto está morrendo. Me dê algo com o que
possa trabalhar!"
E ele está certo. Se eu quero manter Peeta vivo, eu tenho que dar à audiência algo a mais para
se preocupar. Amantes desafortunados desesperados para chegar em casa juntos. Dois
corações batendo como um. Romance.
Nunca tendo me apaixonado, isso será realmente difícil. Eu penso nos meus pais. O jeito como
meu pai nunca falhou em trazer presentes para ela da floresta. O modo como o rosto de minha
mãe se iluminava ao som das botas dele na porta. O jeito como ela quase tinha parado de viver
quando ele morreu.
"Peeta!" eu digo, tentando o tom especial que minha mãe usava só com o meu pai. Ele
cochilou novamente, mas eu o beijo para acordá-lo, o que parece assustá-lo. Então ele sorri
como se fosse ficar feliz em ficar deitado ali me olhando para sempre. Ele é ótimo nessas coisas.
Eu levanto o pote. "Peeta, olhe o que Haymitch te mandou."

20

Dar o caldo para Peeta levou uma hora de persuasão, súplicas, ameaças, e sim, beijos, mas
finalmente, gole por gole, ele esvaziou o pote. Deixo-o dormir então e atendo às minhas
próprias necessidades, engolindo um suprimento de ervas e raízes enquanto observo o
relatório diário no céu. Sem novas casualidades. Mesmo assim, Peeta e eu demos à audiência
um dia bastante interessante. Se tivermos sorte, os Gamemakers vão nos permitir uma noite
pacífica.
Automaticamente procuro ao redor uma boa árvore para me abrigar antes de perceber que
acabou. Pelo menos por enquanto. Não posso deixar Peeta desprotegido no chão. Eu deixo a
cena de seu último esconderijo na margem do córrego intocado ­ como eu poderia ocultá-la?
­ e estamos a poucos cinqüenta metros rio abaixo. Ponho meus óculos, colocando minhas
armas ao alcance, e sento-me para me manter em vigilância.
A temperatura cai rapidamente eu logo estou tremendo até os ossos. Eventualmente, eu sedo
e deslizo para dentro do saco de dormir com Peeta. Está quente e eu me aconchego
agradecida até perceber que está mais do que quente, está excessivamente quente porque o
saco está refletindo a febre dele. Verifico sua testa e encontro-a queimando e seca. Não sei o
que fazer. Deixo-o no saco e espero que o calor excessivo termine a febre? Tiro-o dali e espero
que o ar da noite o esfrie? Acabo apenas umedecendo uma tira de gaze e colocando-a sobre
sua testa. Parece fraco, mas tenho medo de fazer algo drástico demais.
Passo a noite meio sentada, meio deitada ao lado de Peeta, refrescando a gaze, tentando não
pensar no fato de, juntando-me a ele, eu me fiz muito mais vulnerável do que quando estava
sozinha. Presa ao chão, de guarda, com uma pessoa muito doente para tomar conta. Mas eu
sabia que ele estava machucado. E ainda fui atrás dele. Eu só tenho de confiar que qualquer
que seja o instinto que me mandou encontrá-lo era bom.
Quando o céu fica róseo, noto o brilho de suor do lábio de Peeta e descubro que a febre
acabou. Ele não voltou ao normal, mas a febre baixou alguns graus. Noite passada, quando eu
estava recolhendo vinhas, topei com as bagas de Rue. Descasquei a fruta e amassei no pote de
caldo com água fria.
Peeta se esforça para se levantar quando eu alcanço a caverna. "Eu acordei e você não estava
aqui," ele diz. "Estava preocupado com você."
Tenho de rir quando eu o tranqüilizo. "Você estava preocupado comigo? Você já se olhou
ultimamente?"
"Pensei que Cato e Clove tinham te encontrado. Eles gostam de caçar a noite," diz, ainda sério.
"Clove? Quem é essa?" Pergunto.
"A garota do Distrito Dois. Ela ainda está viva, certo?" diz.
"Sim, há apenas eles e nós, e Thresh e Foxface," digo. "Esse é o apelido que eu dei para a
garota do Cinco. Como você se sente?"
"Melhor do que ontem. Essa é uma enorme melhoria sobre a lama," diz. "Roupas limpas e
remédio e saco de dormir... e você."
"Ah, certo, a coisa toda de romance. Estendo a mão para tocar sua bochecha e ele a pega e
pressiona contra seus lábios. Lembro-me do meu pai fazendo isso com a minha mãe e
pergunto de onde Peeta pegou isso. Não tenho certeza se foi do pai dele e da bruxa.
"Sem mais beijos para você até que tenha comido," digo.
Nós conseguimos colocá-lo contra a parede e ele, obedientemente, engole as colheradas de
mingau de uvas que eu fiz. Ele recusa as ervas novamente, no entanto.
"Você não dormiu," Peeta diz.
"Estou bem," digo. Mas a verdade é, estou exausta.
"Durma agora. Vou ficar observando. Vou te acordar se algo acontecer," diz. Eu hesito.
"Katniss, você não pode ficar acordada para sempre."
Ele tem um ponto aqui. Tenho que dormir eventualmente. E provavelmente é melhor fazer
isso agora quando ele parece relativamente alerta e temos a luz do dia do nosso lado. "Tudo
bem," digo. "Mas só por algumas horas. Então você me acorda."
É muito quente para o saco de dormir agora. Eu coloco-o sobre o chão da caverna e deito, uma
mão no meu arco carregado no caso de eu ter de atirar a qualquer momento. Peeta se senta
ao meu lado, inclinando-se contra a parede, sua perna ruim estirada ante a ele, seus olhos
focados no mundo lá fora. "Vá dormir," diz suavemente. Sua mão afaga uma mecha do meu
cabelo sobre minha testa. Diferente dos beijos e das carícias encenadas até agora, esse gesto
parece natural e confortante. Não quero que ele pare e ele não para. Ele ainda está tocando
meu cabelo quando caio no sono.
Tempo demais. Dormi tempo demais. Sei do momento em que abro meus olhos que é de
tarde. Peeta está no meu lado, sua posição inalterada. Sento-me, sentindo-me meio defensiva,
mas melhor do que estive em dias.
"Peeta, você deveria me acordar depois de algumas horas," digo.
"Pra quê? Nada aconteceu aqui," ele diz. "Além disso, eu gosto de te observar dormir. Você
não faz cara feia. Melhora muito sua aparência."
Isso, é claro, me traz uma cara feia que o faz rir. É quando percebo quão seco seus lábios
estão. Toco sua testa. Quente como um fogão a carvão. Ele afirma que esteve bebendo, mas o
recipiente ainda está todo cheio para mim. Dou a ele mais pílulas para febre e fico perto dele
enquanto ele toma o primeiro, e depois um segundo quarto de água. Então olho suas feridas
menores, as queimaduras, as picadas, que estão mostrando melhoras. Eu me firmo e desato
sua perna.
Meu coração para meu estômago. Está pior, muito pior. Não há pus em evidência, mas o
inchaço aumentou e a pele brilhante está inflamada. Então vejo as listras vermelhas
começando a subir pela sua perna. Envenenamento sangüíneo. Se não for parado, vai matá-lo
com certeza. Minhas folhas mastigadas e pomada não vão pará-lo. Vamos precisar de um forte
antibiótico do Capitol. Não posso imaginar o custo de um remédio tão forte.
Se Haymitch juntar toda contribuição de todos os patrocinadores, ele teria o bastante? Duvido.
Presentes sobem em preço à medida que os Games continuam. O que compra uma refeição
completa num dia compra um biscoito no dia doze. E o tipo de remédio que Peeta precisa teria
sido um prêmio desde o início.
"Bem, há mais inchaço, mas o pus se foi," digo numa voz instável.
"Sei o que envenenamento sangüíneo é, Katniss," diz Peeta. "Mesmo que minha mãe não seja
uma curandeira."
"Você só tem de sobreviver aos outros, Peeta. Eles vão te curar no Capitol quando nós
ganharmos," digo.
"Sim, é um bom plano," diz. Mas sinto que isso é mais para meu benefício.
"Você tem que comer. Mantenha sua força para cima. Vou fazer sua sopa," digo.
"Não acenda o fogo," diz. "Não vale a pena."
"Vamos ver," digo. Quando levo o pote para o riacho, estou abatida com quão brutalmente
quente está. Juro que os Gamemakers estão progressivamente aumentando a temperatura do
dia e diminuindo a noite. O calor das pedras do lago me da uma ideia, entretanto. Talvez eu
não precise acender o fogo.
Eu me sento numa grande pedra lisa no meio do caminho entre o lago e a caverna. Depois de
purificar meio pote de água, coloco-o sob a luz do sol e acrescento algumas pedras quentes do
tamanho de ovos na água. Sou a primeira a admitir que eu não saiba cozinhar muito bem. Mas
visto que fazer sopa consiste basicamente em jogar tudo num pote e esperar, esse é um dos
meus melhores pratos. Moo ervas até que elas quase se tornem uma massa e misturo com as
raízes de Rue. Felizmente elas já foram torradas, assim preciso apenas esquentá-las. Agora
mesmo, entre a luz do sol e as pedras, a água está quente. Coloco nela a carne e as raízes, tiro
as pedras, e vou procurar algo verde para temperá-lo um pouco. Em pouco tempo, encontro
um tufo de cebolinhas crescendo na base de algumas pedras. Perfeito. Corto-as bem finas e
acrescento-as ao pote, trocando as pedras novamente, colocando a tampa, e deixando o resto
acontecer.
Vejo poucos sinais do jogo ao redor, mas não me sinto confortável deixando Peeta sozinho
enquanto caço, então faço meia dúzia de armadilhas e rezo para ter sorte. Pergunto-me sobre
os outros tributos, como eles estão fazendo agora que sua principal fonte de comida explodiu.
Pelo menos três deles, Cato, Clove, e Foxface, contavam com ela. Provavelmente Thresh não,
entretanto. Tenho o pressentimento que ele deve dividir algum dos conhecimentos de Rue de
como se alimentar da terra. Eles estão lutando entre si? Procurando por nós? Talvez um deles
tenha nos localizado e esteja apenas esperando pelo momento certo para atacar. A ideia me
envia de volta para a caverna.
Peeta está estendido sobre o saco de dormir nas formas das pedras. Embora ele tenha se
animado quando eu entrei, está claro que ele se sente miserável. Ponho uns panos frios sobre
sua testa, mas eles ficam quentes logo que tocam sua pele.
"Você quer algo?" Pergunto.
"Não," diz. "Obrigado. Espere, sim. Conte-me uma história."
"Uma história? Sobre o quê?" Digo. Não sou uma boa contadora de histórias. É como cantar.
Mas de vez em quando, Prim consegue uma de mim.
"Algo feliz. Conte-me sobre o dia mais feliz que você pode se lembrar," diz Peeta.
Algo entre um suspiro e um bufo de exasperação deixa minha boca. Uma história feliz? Isso
requer muito mais esforço que a sopa. Eu espremo meu cérebro por boas memórias. A maioria
envolve Gale e eu fora caçando e de alguma forma não penso que essas iriam ser boas para
Peeta e a audiência. Resta Prim.
"Eu já te contei como consegui a cabra de Prim?" Pergunto. Peeta balança a cabeça, e olha
para mim com expectativa. Então eu começo. Mas cuidadosamente. Porque minhas palavras
estão saindo para toda Panem. E enquanto as pessoas sem dúvida somaram dois mais dois e
perceberam que caço ilegalmente, não quero machucar Gale ou Greasy Sae ou a açougueira,
ou até os Pacificadores de casa que são meus clientes, por anunciar publicamente que eles
quebram a lei, também.
Aqui está a verdadeira história de como consegui dinheiro para a cabra de Prim, Lady. Era uma
tarde de sexta, o dia anterior ao décimo aniversário de Prim no final de maio. Logo que a
escola terminou, Gale e eu entramos na floresta, porque eu queria conseguir o bastante para
trocar por um presente para Prim. Talvez algum novo tecido para um vestido ou uma escova
de cabelo. Nossas armadilhas foram bem feitas e a floresta estava cheia de verduras, mas isso
realmente era nada mais que nossa média de uma noite de sexta. Estava desapontada quando
voltamos, mesmo Gale dizendo que seria melhor no dia seguinte. Nós estávamos descansando
por um momento perto do riacho quando o vimos. Um jovem cervo, provavelmente de um
ano, pelo seu tamanho. Seus chifres ainda estavam crescendo, ainda pequenos e revestidos de
veludo. Posicionado para correr, mas inconsciente de nós, não familiar com humanos. Bonito.
Menos bonito, talvez, quando duas flechas o pegaram, uma no pescoço, outra no peito. Gale e
eu atiramos ao mesmo tempo. O cervo tentou correr, mas tropeçou, e a faca de Gale deslizou
pelo seu pescoço antes que ele soubesse o que estava acontecendo. Momentaneamente, senti
uma dor por matar algo tão jovem e inocente. E então meu estômago rugiu ao pensar naquela
carne jovem e inocente.
Um veado! Gale e eu tínhamos apenas pegado três no total. O primeiro, uma corça que tinha
machucado a perna de alguma forma, quase não contava. Mas sabíamos por experiência que
não deveríamos levar a carcaça para o Hob. Isso causou caos com pessoas barganhando as
partes e, na verdade, tentando pegar alguns pedaços para si. Greasy Sae interferiu e mandou
nossa corça para a açougueira, mas não antes de ele ser muito danificado, pedaços grande de
carne levados, a pele cheia de buracos. Embora todos tenham pagado justamente, isso baixou
o preço da caça.
Dessa vez, esperamos até o anoitecer e passamos pelo buraco na cerca perto da açougueira.
Embora conhecíamos os caçadores, não seria bom carregar o veado de 10 quilos pelas ruas do
Distrito 12 à luz do dia, como se estivéssemos esfregando-o na cara dos oficiais.
A açougueira, uma mulher pequena e volumosa de nome Rooba, veio para a porta de trás
quando batemos. Você não discute com Rooba. Ela te dá um preço, que você pega ou parte,
mas é um preço justo. Pegamos sua oferta do veado e jogou dois bifes de veado que podíamos
pegar depois do abate. Mesmo com o dinheiro dividido por dois, nem Gale nem eu tivemos
tanto de uma vez em nossas vidas. Decidimos manter em segredo e surpreender nossas
famílias com o dinheiro da carne no final do próximo dia.
Foi daí onde tirei dinheiro para a cabra, mas contei a Peeta que vendi um velho medalhão de
prata da minha mãe. Isso não pode machucar ninguém. Então pego a história do final da tarde
do aniversário de Prim.
Gale e eu fomos ao mercado na praça para que eu pudesse comprar o material do vestido.
Enquanto eu estava correndo meus dedos sobre um grosso pano azul de algodão, algo
apareceu na minha vista. Há um velho que mantém um pequeno rebanho de cabras do outro
lado de Seam. Não sei seu nome real, todos o chamam apenas de Homem da Cabra. Suas
juntas são inchadas e deformadas em ângulos dolorosos, e ele tem uma tosse seca que prova
que ele passou anos nas minas. Mas ele é sortudo. Em algum momento ele juntou dinheiro
suficiente para essas cabras e agora tem algo a fazer na sua velhice além de morrer de fome.
Ele é imundo e impaciente, mas as cabras são limpas e o leite delas é rico se você pode bancar.
Uma das cabras, uma branca com manchas pretas, estava caída numa carroça. Era fácil ver o
por que. Algo, provavelmente um cão, bateu no seu ombro e uma infecção começou. Isso era
ruim, o Homem da Cabra tinha segurado-a para pegar seu leite. Mas eu pensei que conhecia
alguém que podia consertar.
"Gale," sussurrei. "Quero uma cabra para Prim."
Possuir uma cabra pode mudar sua vida no Distrito 12. Os animais podem viver à quase tudo, e
Meadow tem a alimentação perfeita, e eles podem dar quatro galões de leite por dia. Para
beber, fazer leite, vender. Não é nem contra a lei.
"Ela está muito mal," disse Gale. "É melhor dar uma olhada mais de perto."
Aproximamo-nos e compramos um copo de leite para dividir, então ficamos perto da cabra
como se estivéssemos curiosos.
"Deixem-na," disse o homem.
"Apenas olhando," disse Gale.
"Bem, olhem rápido. Ela vai pra açougueira logo. Dificilmente alguém vai comprar o leite dela, então eles apenas pagam metade do preço," disse o homem.
"Quanto a açougueira está dando por ela?" Perguntei.
O homem encolheu os ombros. "Fiquem por aí e vejam." Virei-me e vi Rooba vindo pela praça
para nós. "Sorte você aparecer," disse o Homem da Cabra quando ela chegou. "A garota está de olho na sua cabra."
"Não se ela a comprou," digo cuidadosamente.
Rooba olha para mim de baixo para cima e franze o cenho para a cabra. "Ela não é. Olhe para
aquele ombro. Aposto que metade da carcaça estará muito podre, até para salsicha."
"O quê?" disse o Homem da Cabra. "Nós tínhamos um trato."
"Nós tínhamos um trato com o animal com poucas marcas de dentes. Não essa coisa. Venda-a
para a garota se ela for estúpida o bastante para levá-la," disse Rooba. Quando ela se retirava,
vi sua piscadela.
O Homem da Cabra estava furioso, mas ainda quis se livrar daquela cabra. Levou meia hora
para acertar o preço. Uma boa multidão se juntou para dar opinião. Era um excelente negócio
se a cabra vivesse; e um roubo se ela morresse. As pessoas tomavam seus lados na discussão,
mas eu levei a cabra.
Gale se ofereceu para carregá-la. Acho que ele queria ver o rosto de Prim tanto quanto eu.
Num momento de vertigem, comprei um laço rosa e atei no seu pescoço. Então corremos para
minha casa.
Você deveria ter visto a reação de Prim quando entramos com a cabra. Lembrar-se da garota
que chorou para salvar aquele terrível gato velho, Buttercup. Ela estava tão excitada que
começou a chorar e rir ao mesmo tempo. Minha mãe estava menos animada, vendo o
machucado, mas então começou a trabalhar neles, moendo ervas e persuadindo a mistura a
descer pela garganta do animal.
"Eles parecem você," diz Peeta. Quase esqueci que ele estava ali.
"Ah, não, Peeta. Eles trabalharam com mágica. Aquela coisa não poderia morrer mesmo se
tentasse," digo. Mas então mordo minha língua, percebendo como deve ter soado para Peeta,
que estava morrendo, nas minhas incompetentes mãos.
"Não se preocupe. Não estou tentando," ele brinca. "Termine a história."
"Bem, é isso. Só lembro-me daquela noite, Prim insistiu em dormir com Lady no cobertor
próximo ao fogo. E antes de dormirem, a cabra lambeu sua bochecha, como se estivesse
dando a ela um beijo de boa noite ou algo assim," digo. "Já era louca por ela."
"Ainda estava usando a fita rosa?" ele pergunta.
"Acho que sim," digo. "Por quê?"
"Estou apenas tentando imaginar," diz pensativamente. "Posso ver porque esse dia te deixou
feliz."
"Bem, eu sabia que aquela cabra seria uma pequena mina de ouro," digo.
"Sim, é claro que eu estava me referindo a isso, não ao último presente que você deu a sua
irmã que ama tanto que tomou seu lugar na colheita," diz Peeta secamente.
"A cabra se pagou por si só. Muitas vezes," digo num tom superior.
"Bem, ela não ousaria mais nada depois de você ter salvado a vida dela," diz Peeta. "Tenciono
fazer a mesma coisa."
"Sério? O que você vai me custar de novo?" pergunto.
"Muitos problemas. Não se preocupe. Você ganhará de volta tudo," diz.
"Você não está fazendo sentido," digo. Testo sua testa. A febre não subiu. "Você está mais frio,
entretanto."
O som de trombetas me assusta. Fico de pé e vou até a boca da caverna rapidamente, não
querendo perder uma sílaba. É meu novo melhor amigo, Claudius Templesmith, e como eu
esperava, ele está nos convidando para um banquete. Bem, nós não estamos com tanta fome
e, na verdade, eu afasto sua oferta com indiferença quando ele diz, "Agora esperem. Alguns de
vocês podem já estar rejeitando minha oferta. Mas não é um banquete ordinário. Cada um de
vocês precisa de algo desesperadamente."
Eu preciso de algo desesperadamente. Algo para curar a perna de Peeta.
"Cada um de vocês vai encontrar esse algo numa mochila, marcada com o número do seu
distrito, na Cornucópia ao amanhecer. Pensem bem sobre recusar a aparecer. Para alguns de
vocês, essa será a última chance," diz Claudius.
Não há nada mais, apenas suas palavras pairando no ar. Pulo quando Peeta agarra meu ombro
de trás. "Não," ele diz. "Você não vai arriscar sua vida por mim."
"Quem disse que eu ia?" digo.
"Então, você não vai?" ele pergunta.
"Claro que não vou. Dê-me algum crédito. Você acha que vou correr direto para alguma
competição livre contra Cato, Clove e Thresh? Não seja estúpido," digo, ajudando-o a se deitar.
"Vou deixá-los lutar, e veremos quem estará no céu amanhã de noite, e vamos planejar daí."
"Você é uma péssima mentirosa, Katniss. Não sei como você sobreviveu por tanto tempo." Ele
começa a me imitar. "Eu sabia que aquela cabra seria uma pequena mina de ouro. Você está
mais frio, entretanto. É claro que eu não vou." Ele balança a cabeça. "Nunca jogue cartas. Você
vai perder até sua última moeda," diz.
A raiva ruboriza meu rosto. "Certo, eu vou, e você não pode me parar!"
"Posso te seguir. Ao menos metade do caminho. Posso não chegar à Cornucópia, mas se eu
gritar seu nome, aposto que algo pode me encontrar. E então vou estar morto, com certeza,"
ele diz.
"Você não conseguirá andar cem metros daqui com essa perna," digo.
"Então vou me arrastar," diz Peeta. "Você vai e eu vou, também."
Ele é teimoso o bastante e talvez só forte o bastante para fazer. Vir uivando atrás de mim na
floresta. Mesmo se um tributo não encontrá-lo, alguma coisa mais vai. Ele não pode se
defender. Provavelmente terei de prendê-lo na caverna para ir. E quem sabe o que o esforço
pode fazer com ele?
"O que eu deveria fazer? Sentar aqui e ver você morrer?" digo. Ele pode saber que não é uma
opção. Que a audiência me odiaria. E francamente, eu me odiaria, também, se nem tentasse.
"Não vou morrer. Eu prometo. Se você prometer não ir," ele diz.
Estamos em algo como um empate. Sei que não posso argumentar com ele nessa, então nem
tento. Finjo, relutante, concordar. "Então você tem de fazer o que eu disser. Beba sua água,
acorde-me quando eu disser, e coma cada pedaço de sopa, não importa quão nojento ela seja!" Grito para ele.
"Feito. Está pronta?" ele pergunta.
"Espere aqui," digo. O ar ficou frio embora o sol ainda esteja alto. Estou certa sobre os
Gamemakers bagunçando a temperatura. Pergunto-me se a coisa que alguém precisa
desesperadamente é um bom banquete. A sopa ainda está boa e quente no pote de ferro. E,
na verdade, não tem um gosto muito ruim.
Peeta come sem reclamar, até raspa o pote para mostrar seu entusiasmo. Ele fala como está
deliciosa, que deveria ser encorajador, se você não soubesse o que a febre faz às pessoas. Ele é
como escutar Haymitch antes que o álcool o afogue na incoerência. Dou a ele outra dose de
remédio para febre antes dele dormir completamente.
Quando desço até o riacho para me lavar, tudo que posso pensar é que ele vai morrer se eu
não for ao banquete. Vou mantê-los por um dia ou dois, e então a infecção vai atingir seu
coração ou seu cérebro ou seus pulmões e ele se vai. E eu estarei aqui sozinha. De novo.
Esperando pelos outros.
Estou tão perdida nos pensamentos que acho perto um paraquedas, embora ele flutuasse ante
a mim. Então eu me lanço atrás dele, puxando-o da água, rasgando o tecido prateado para
recuperar o frasco. Haymitch fez! Ele conseguiu remédio ­ não sei como, persuadiu algumas
tolas mulheres românticas para vender suas joias ­ e posso salvar Peeta! É um frasco tão
pequeno, porém. Deve ser forte o bastante para curar alguém tão doente como Peeta. Uma
onda de dúvidas me atravessa. Destampo o frasco e dou uma cheirada profunda. Minha força
cai ao doentio cheiro doce. Sem dúvidas, é sonífero. Um remédio comum no Distrito 12.
Barato, em relação aos outros remédios, mas muito viciante. Quase todos têm uma dose ou
outra. Temos uma garrafa em casa. Minha mãe dá a histéricos pacientes para desacordá-los
para dar pontos numa ferida ruim ou aquietar suas mentes ou apenas ajudar alguém em dor a
atravessar a noite. É apenas um pouco. Um frasco desse tamanho poderia desacordar Peeta
por todo um dia, mas qual é o bom disso? Estou tão
furiosa que estou quase atirando a última oferta de Haymitch no riacho,
percebo. Um dia todo? É mais do que eu preciso.
Eu moo um punhado de bagas para que o gosto não seja não notável e acrescento folhas de hortelã em boa medida. Então volto para a caverna. "Trouxe para você um banquete.
Achei
bagas um pouco rio abaixo."
Peeta abre sua boca para o primeiro pedaço sem hesitação. Ele engole e depois franze o cenho
levemente. "Elas são muito doces."
"Sim, elas são bagas doces. Minha mãe faz geleia com eles. Você nunca as provou antes?"
digo, empurrando a próxima colherada na sua boca.
"Não," ele diz, quase surpreso. "Mas o gosto é familiar. Bagas doces?"
"Bem, você não pode consegui-las no mercado, elas são silvestres," digo. Outro bocado desce.
Apenas um para ir.
"Elas são doces como xarope," diz, tomando a última colherada. "Xarope." Seus olhos se
ampliam quando ele percebe a verdade. Eu pressiono minha mão sobre sua boca e seu nariz
fortemente, forçando-o a engolir em vez de cuspir. Ele tenta vomitar a mistura, mas é tarde demais, ele já está perdendo a consciência. Mesmo quando ele desacorda,
posso ver em seus
olhos que o que fiz é imperdoável.
Sento-me sobre meus calcanhares e olho para ele com uma mistura de tristeza e satisfação.
Uma baga mancha seu queixo, e eu o limpo. "Quem não pode mentir, Peeta?" digo, embora ele não possa me escutar.
Isso não importa. O resto de Panem pode.

21

Nas horas restantes antes do anoitecer, eu reúno pedras e faço e faço o meu melhor para
camuflar a abertura da caverna. É um processo demorado e árduo, mas após suar muito e
deslocar as coisas do lugar, estou bastante satisfeita com o meu trabalho. A caverna parece ser
agora uma parte de uma pilha maior de pedras, como muitas na vizinhança. Eu ainda posso
rastejar até o Peeta por uma pequena abertura, mas é indetectível do lado de fora. Isso é bom,
porque eu precisarei dividir aquele saco de dormir novamente hoje à noite. E, também, se eu
não voltar do banquete, Peeta ficará escondido, mas não inteiramente aprisionado. Apesar de
eu duvidar que ele possa agüentar muito mais sem remédio. Se eu morrer no banquete, o
Distrito 12 provavelmente não terá um vencedor.
Eu faço uma refeição com o peixe menor e mais espinhento que habita o riacho aqui abaixo,
encho cada recipiente com água e a purifico, e limpo minhas armas. Eu tenho nove flechas
restantes. Eu debato se devo deixar a faca com Peeta para que ele tenha alguma proteção
enquanto eu estiver longe, mas realmente não há razão. Ele estava certo sobre camuflagem
ser sua última defesa final. Mas eu talvez ainda tenha uso para a faca. Quem sabe o que
poderei encontrar?
Essas são algumas das coisas de que estou bastante certa. Que pelo menos Cato, Clove e
Thresh estarão por perto quando o banquete começar. Não tenho muita certeza sobre a
Foxface, já que confrontação direta não é seu estilo ou ponto forte. Ela é ainda menor do que
eu e está desarmada, a não ser que tenha pego algumas armas recentemente.
Ela provavelmente ficará em algum lugar por perto, vendo o que pode catar. Mas os outros
três... ficarei ocupada. Minha habilidade de matar a distância é minha melhor vantagem, mas
eu sei que terei que ir até o fim para conseguir aquela mochila, a com o número 12 que
Claudius Templesmith mencionou.
Eu observo o céu, esperando por um oponente a menos ao amanhecer, mas ninguém aparece
hoje à noite. Amanhã haverá rostos lá no alto. Banquetes sempre resultam em fatalidades.
Eu engatinho até a caverna, guardo meus óculos, e me aconchego próxima ao Peeta.
Felizmente, eu tive aquele bom e longo sono hoje. Tenho que permanecer acordada. Eu não
acho realmente que alguém atacará nossa caverna hoje à noite, mas não posso arriscar perder
o amanhecer.
Tão fria, hoje a noite está tão amargamente fria. Como se os Gamemakers tivessem mandado
uma infusão de ar congelado na arena, o que pode ser exatamente o que tenham feito. Eu me
deito próxima ao Peeta no saco, tentando absorver cada pedacinho do calor da febre dele. É
estranho estar tão fisicamente próxima a alguém que está tão distante. Peeta podia muito
bem estar de volta em Capitol, ou no Distrito 12, ou na lua agora, e ele não estaria mais difícil
de se alcançar. Eu nunca me senti mais sozinha desde que os Games começaram.
Simplesmente aceite que será uma noite ruim, eu digo a mim mesma. Eu tento não fazê-lo,
mas não consigo evitar pensar na minha mãe e em Prim, me perguntando se elas pregarão o
olho esta noite. Nesse estágio tão avançado dos Games, com um evento importante como o
banquete, as aulas provavelmente serão canceladas. Minha família pode assistir naquela
televisão de ferro-velho cheia de estática em casa ou se juntar à multidão na praça e assistir
nas telas grandes e claras. Elas terão privacidade em casa, mas apoio na praça. As pessoas lhes
falarão coisas bondosas, lhes darão um pouco de comida se puderem se dar ao luxo. Me
pergunto se o padeiro já as procurou, especialmente agora que Peeta e eu somos um time, e
cumpriu sua promessa de manter a barriga da minha irmã cheia.
Os ânimos devem estar altos no Distrito 12. Raramente temos alguém por quem torcer nesse
estágio dos Games. Claro, as pessoas estão animadas pelo Peeta e por mim, especialmente
agora que estamos juntos. Se eu fechar meus olhos, posso imaginar seus gritos para as telas,
nos encorajando. Eu vejo seus rostos ­ Greasy, Sae e Madge e até mesmo os Peacekeepers
que compram as minhas carnes ­ torcendo por nós.
E Gale. Eu o conheço. Ele não estará gritando e torcendo. Mas ele estará assistindo, cada
momento, cada reviravolta, e desejando que eu volte para casa. Me pergunto se ele está
torcendo para que Peeta volte também. Gale não é meu namorado, mas seria, se eu abrisse
essa porta? Ele falou sobre nós fugirmos juntos. Isso era apenas um cálculo prático das nossas
chances de sobrevivência longe do distrito? Ou algo mais?
Me pergunto o que ele acha de todos esses beijos.
Através de uma rachadura nas pedras, eu observo a lua cruzar o céu. Ao que eu julgo serem
três antes do amanhecer, eu começo os preparos finais. Tenho cuidados em deixar Peeta com
água e o kit médico bem ao seu lado. Nada mais será de muito uso se eu não retornar, e até
mesmo isso iria apenas prolongar sua vida por um curto período. Após algum debate, eu tiro
sua jaqueta e a fecho sobre a minha própria. Ele não precisa dela. Não agora no saco de dormir
com sua febre, e durante o dia, se eu não estiver ali para removê-la, ele assará nela. Minhas
mãos já estão duras de frio, então eu pego o par de meias extra de Rue, corto buracos para os
meus dedos, e coloco-as. De qualquer jeito, ajuda. Eu encho sua pequena sacola com um
pouco de comida, uma garrafa d'água, e bandagens, enfio a faca no meu cinto, pego meu arco
e flechas. Estou prestes a partir quando me lembro da importância de sustentar a rotina dos
amantes desafortunados e me inclino e dou um beijo longo e demorado em Peeta. Imagino os
suspiros lacrimejantes emanando de Capitol e finjo afastar uma lágrima própria. Então passo
espremida pela abertura nas pedras para a noite.
Minha respiração forma nuvenzinhas brancas quando atinge o ar. Está tão frio quanto uma
noite de novembro lá em casa. Uma quando deslizei para a floresta, lanterna na mão, para me
juntar a Gale num local pré-arranjado onde nos sentaríamos agasalhados juntos, tomando chá
de ervas de frascos de metal, enrolados em colchas, esperando que alguma caça passasse pelo
nosso caminho enquanto a manhã chegava. Ah, Gale, eu penso. Se ao menos você me
protegesse agora...
Me movo o mais rápido que ouso. Os óculos são muito notáveis, mas eu ainda sinto falta
solenemente do uso do meu ouvido esquerdo. Eu não sei o que a explosão fez, mas danificou
algo profundo e irreparável. Não importa. Se eu chegar em casa, serei tão rica que serei capaz
de pagar alguém para ouvir para mim.
A floresta sempre parece diferente de noite. Mesmo com os óculos, tudo tem um ângulo
estranho. Como se as árvores e flores e pedras diurnas tivessem ido para cama e tivessem
mandado versões ligeiramente agourentas de si mesmas para tomarem seu lugar. Não tento
nada arriscado, como tomar uma nova rota. Eu caminho pelo riacho e sigo o mesmo trajeto de
volta ao esconderijo da Rue perto do lago. Ao longo do caminho, não vejo sinal de outro
tributo, nem uma baforada de ar, nem um tremor de galho. Ou sou a primeira a chegar ou os
outros se posicionaram na noite passada. Ainda falta mais de uma hora, talvez duas, quando
eu me retorço para um arbusto e espero o sangue começar a fluir.
Eu mastigo algumas folhas de menta, meu estômago não aceita muito mais. Graças a Deus,
tenho a jaqueta de Peeta, assim como a minha própria. Se não, eu seria forçada a me mover
para permanecer aquecida. O céu vira um cinza nebuloso de manhã e ainda não há sinal dos
outros tributos. Não é muito surpreendente, na verdade. Todos se distinguiram ou pela força
ou pela letalidade ou perspicácia. Eles supõe, eu me pergunto, que tenho Peeta comigo? Eu
duvido que Foxface e Thresh saibam que ele foi ferido.
Melhor ainda se acharem que ele está cobrindo por mim quando eu for pegar a mochila.
Mas onde está? A arena se iluminou o bastante para eu remover meus óculos. Eu consigo
ouvir os pássaros matinais cantando. Não está na hora? Por um segundo, entro em pânico
achando que estou no local errado. Mas não, estou certa de que me lembro de Claudius
Templesmith especificando a Cornucópia. E ali está. E aqui estou eu. Então onde meu
banquete?
Bem quando o primeiro raio de sol brilha na dourada Cornucópia, há um distúrbio na campina.
O chão perante a boca da tromba se dividi em dois e uma mesa redonda com uma toalha
branca-de-neve sobe na arena. Na mesa estão quatro mochilas, duas pretas grandes com os
números 2 e 11, uma verde de tamanho médio com o número 5, e uma laranja minúscula ­
sério, eu podia carregá-la ao redor do meu punho ­ que deve estar marcada com um 12.
A mesa acabou de cair no lugar quando uma figura lança-se para fora da Cornucópia, pega a
mochila verde, e sai a toda velocidade.
Foxface! É bem coisa dela inventar uma ideia tão esperta e arriscada! O resto de nós está ainda
aprumado em torno da campina, avaliando a situação, e ela pegou a dela. Ela nos prendeu,
também, porque ninguém quer persegui-la, não enquanto sua própria mochila está tão
vulnerável na mesa. Foxface deve ter deixado propositadamente as outras mochilas, sabendo
que roubando uma sem seu número iria definitivamente encorajar um perseguidor.
Essa deveria ter sido a minha estratégia! Na hora que superei minhas emoções de surpresa,
admiração, raiva, ciúmes, e frustração, observo aquela juba de cabelos avermelhados
desaparecer nas árvores bem longe da área de alcance. Hum. Estou sempre temendo os
outros, mas talvez Foxface seja a verdadeira oponente aqui.
Ela me custou tempo, também, porque agora está claro que eu preciso ir para a mesa a seguir.
Quem quer que chegue antes de mim irá facilmente pegar a minha mochila e ir embora. Sem
hesitação, eu corro a toda velocidade para a tabela. Eu consigo sentir a emergência do perigo
antes de o ver. Felizmente, a primeira faca vem voando pelo meu lado direito, então sou capaz
de ouvir e consigo desviar com o meu arco. Me viro, retrocedendo a corda do arco e mando
uma flecha diretamente no coração da Clove. Ela se vira exatamente o suficiente para evitar
um golpe fatal, mas a ponta perfura seu braço esquerdo. Infelizmente, ela joga com o direito,
mas é o suficiente para retardá-la por alguns momentos, tendo que puxar a flecha do seu
braço, avaliar a gravidade do ferimento. Eu continuo me movimentando, posicionando a
próxima flecha automaticamente, como só alguém que caçou durante anos sabe fazer.
Estou na mesa agora, meus dedos fechando sobre a minúscula mochila laranja. Minha mão
desliza entre as correias e eu a puxo pelo meu braço, é realmente pequena demais para caber
em qualquer outra parte da minha anatomia, e eu estou me virando novamente para atirar
quando a segunda faca me pega na testa. Ela corta em cima da minha sobrancelha direita,
abrindo uma ferida que envia um fluxo escorrendo pelo meu rosto, cegando meu olho,
enchendo minha boca com o gosto picante e metálico do meu próprio sangue. Eu cambaleio
para trás, mas ainda consigo enviar minha flecha pronta na direção geral do meu agressor. Eu
sei enquanto ela deixa as minhas mãos que vai errar. E então Clove bate em mim, me deixando
cair de costas, prendendo meus ombros no chão, com seus joelhos.
É isso, eu penso, e espero, por Prim, que seja rápido. Mas Clove quer saborear o momento. Até
mesmo sente que tem tempo. Sem dúvida Cato está em algum lugar próximo, a protegendo,
esperando pelo Thresh e possivelmente pelo Peeta.
"Onde está o seu namorado, Distrito Doze? Ainda persistindo?" ela pergunta.
Bem, enquanto estivermos falando eu estou viva. "Ele está lá fora agora. Caçando o Cato," eu
rosno para ela. Então eu grito a plenos pulmões. "Peeta!"
Clove comprime seu punho na minha traqueia, muito eficazmente cortando a minha voz. Mas a
cabeça dela está virando de lado a lado, e eu sei que por um momento ela está pelo menos
considerando que eu estou dizendo a verdade. Já que nenhum Peeta aparece para me salvar,
ela se volta para mim.
"Mentirosa," ela diz com um sorriso. "Ele está quase morto. Cato sabe onde o cortou. Você
provavelmente está com ele amarrado em alguma árvore enquanto você tenta manter seu
coração batendo. O que está na mochilinha bonita? O remédio para o Lover Boy? Que pena que ele nunca vai recebê-lo."
Clove abre sua jaqueta. Está forrada com um impressionante conjunto de facas. Ela seleciona
cuidadosamente uma de aparência quase delicada com uma lâmina cruel e curvada. "Eu
prometi ao Cato que se ele me deixasse ter você, eu daria ao público um bom espetáculo."
Luto agora em um esforço para removê-la, mas não adianta.
Ela é muito pesada e seu aperto em mim é muito firme.
"Esqueça, Distrito Doze. Nós vamos te matar. Bem como nós matamos sua aliadinha patética...
qual era o nome dela? Aquela que pulava nas árvores? Rue? Bem, Rue primeiro, depois você, e
então eu acho que nós vamos simplesmente deixar a natureza cuidar do Lover Boy. Como isso
soa?" Clove pergunta. "Agora, por onde começar?"
Ela descuidadamente retira o sangue da minha ferida com a manga da sua jaqueta. Por um
momento, ela analisa meu rosto, inclinando-o de lado a lado como se fosse um bloco de
madeira e ela estivesse decidindo exatamente que padrão esculpir nele. Eu tento morder sua
mão, mas ela pega o cabelo no alto da minha cabeça, me forçando de volta ao chão. "Eu
acho..." ela quase ronrona. "Eu acho que vamos começar com a sua boca." Eu aperto os meus
dentes juntos enquanto ela traça provocativamente o contorno dos meus lábios com a ponta
da lâmina.
Eu não fecho meus olhos. O comentário sobre Rue me encheu de fúria, fúria o suficiente que
eu penso em morrer com alguma dignidade. Como o meu último ato de rebeldia, vou encará-la
enquanto conseguir enxergar, o que provavelmente não será um período de tempo
prolongado, mas eu vou encará-la, eu não vou gritar. Eu vou morrer, de meu próprio jeitinho,
invicta.
"Sim, eu não acho que você vai ter muito mais uso para os seus lábios. Quer soprar para o
Lover Boy um último beijo?" ela pergunta, eu junto um bocado de sangue e saliva e cuspo no
rosto dela. Ela fica vermelha de raiva. "Muito bem. Vamos começar."
Eu me preparo para a agonia que certamente se seguirá. Mas enquanto sinto a ponta abrir o
primeiro corte em meu lábio, alguma forma grande arranca Clove do meu corpo e então ela
grita. Fico muito estupefata de primeira, incapaz demais de processar o que aconteceu. O
Peeta, de alguma forma, veio ao meu resgate? Os Gamemakers soltaram algum animal
selvagem para aumentar a diversão? Um aerobarco inexplicavelmente a puxou pelo ar?
Mas quando eu me levanto com meus braços dormentes, vejo que não é nenhuma das
alternativas acima. Clove está balançando a trinta centímetros do chão, presa nos braços de
Thresh. Solto um suspiro, vendo-o assim, elevando-se sobre mim, segurando Clove como uma
boneca de pano. Me lembro dele grande, mas ele parece mais maciço, mais poderoso do que
eu me lembrava. Aliás, ele parece ter ganho peso na arena. Ele vira a Clove e a arremessa no chão.
Quando ele berra, eu pulo, nunca tendo ouvido-o falar acima de um murmúrio. "O que você
fez para aquela menininha? Você a matou?"
Clove está lutando para trás de quatro, como um inseto frenético, chocada demais até mesmo
para chamar por Cato. "Não! Não, não fui eu!"
"Você disse o nome dela. Eu ouvi você. Você a matou?" Outro pensamento traz uma onda
fresca de raiva a seus traços. "Você a cortou como você ia cortar esta menina aqui?"
"Não! Não, eu"... Clove vê a pedra, cerca do tamanho de um pequeno pedaço de pão na mão
de Thresh e perde a cabeça. "Cato!" ela chia. "Cato!"
"Clove!" eu ouvi a resposta de Cato, mas ele está muito longe, posso afirmar isso, para ajudá-
la. O que ele estava fazendo? Tentando conseguir a Foxface ou o Peeta? Ou ele estivera
deitado esperando por Thresh e simplesmente tinha julgado mal a localização dele?
Thresh desce a pedra com força contra a têmpora de Clove.
Não está sangrando, mas consigo ver o amasso em seu crânio e sei que ela é um caso perdido.
Ainda há vida nela agora, contudo, na rápida ascensão e queda de seu peito, no baixo gemido
escapando de seus lábios.
Quando Thresh gira para mim, a pedra levantada, eu sei que não há propósito em correr. E
meu arco está vazio, a última flecha armada tinha ido parar na direção de Clove. Estou presa
no brilho dos seus estranhos olhos castanhos dourados. "O que ela quis dizer? Sobre Rue ser
sua aliada?"
"Eu ­ eu ­ nós nos unimos. Explodimos os suprimentos. Eu tentei salvá-la, eu tentei. Mas ele
chegou lá primeiro. Distrito 1," eu digo. Talvez se ele souber que eu ajudei a Rue, ele não
escolherá algum fim lento e sádico para mim.
"E você o matou?" ele exige.
"Sim. Eu matei ele. E a enterrei em flores," eu digo. "E eu cantei para ela até dormir."
Lágrimas brotam dos meus olhos. A tensão e a luta saem de mim com a lembrança. E fico
oprimida pela Rue, e pela dor na minha cabeça, e pelo meu medo de Thresh, e pelo gemido da
menina morrendo a alguns metros de distância.
"Até dormir?" Thresh diz rispidamente.
"Até morrer. Eu cantei até que ela morresse," eu digo. "O seu distrito... eles me mandaram
pão." Minha mão levanta-se, mas não para pegar uma flecha que eu sei que nunca vou
alcançar. Só para enxugar meu nariz. "Faça isso rápido, está bem, Thresh?"
Emoções conflitantes cruzam o rosto de Thresh. Ele abaixa a pedra e aponta para mim, quase
acusadoramente. "Só dessa vez, eu te deixarei ir. Pela garotinha. Você e eu, estamos quites.
Não se deve mais nada. Entendeu?"
Aceno porque entendo mesmo. Sobre se dever. Sobre odiar isso. Entendo que se Thresh
ganhar, ele terá que voltar e enfrentar um distrito que já quebrou todas as regras para me
agradecer, e ele está quebrando as regras por me agradecer também. E eu entendo que, no
momento, Thresh não vai esmagar o meu crânio.
"Clove!" a voz de Cato está muito mais perto agora. Eu posso afirmar pela dor nela que ele a vê
no chão.
"É melhor você correr agora, Garota do Fogo," diz Thresh.
Não precisa me dizer duas vezes. Eu me reviro e meus pés mergulham na terra batida
enquanto eu fujo de Thresh e Clove e do som da voz de Cato. Só quando eu alcanço a floresta
eu me viro por um instante. Thresh e ambas as mochilas grandes estão desaparecendo pela
beirada da campina até a área que eu nunca vi. Cato se ajoelha ao lado da Clove, lança na mão,
implorando para ela ficar com ele. Em um instante, ele perceberá que é fútil, ela não pode ser
salva. Eu bato contra as árvores, repetidamente afastando o sangue que está vertendo em
meus olhos, fugindo como a criatura selvagem e ferida que sou. Após alguns minutos, ouço o
canhão e sei que Clove morreu, que Cato ficará atrás dos rastros de um de nós. Ou do Thresh
ou do meu. Estou dominada com terror, fraca por causa do meu ferimento na cabeça,
tremendo. Eu carrego uma flecha, mas Cato consegue jogar a lança quase tão longe quanto eu
consigo atirar.
Só uma coisa me acalma. Thresh está com a mochila de Cato contendo o negócio que ele
precisa desesperadamente. Se eu tivesse que apostar, Cato se dirigiu atrás de Thresh, não de
mim. Ainda assim, não retardo quando chego na água. Eu mergulho diretamente, as botas
ainda calçadas, e me debato correnteza abaixo. Eu tiro as meias de Rue que estive usando
como luvas e as pressiono na minha testa, tentando estancar o fluxo de sangue, mas elas ficam
encharcadas em minutos.
De alguma forma eu volto para a caverna. Eu me aperto para passar pelas pedras. À luz
manchada, eu puxo a pequena mochila laranja do meu braço, abro o fecho, e despejo o
conteúdo no chão. Uma caixa magra contendo uma agulha hipodérmica.
Sem hesitar, eu aperto a agulha no braço do Peeta e pressiono lentamente o êmbolo.
Minhas mãos vão até a minha cabeça e então caem no meu colo, escorregadias de sangue.
A última coisa que me lembro é de uma mariposa verde-e-prata primorosamente bela
pousando na curva do meu pulso.

22

O som de chuva batendo contra o teto de nossa casa gentilmente me puxa para consciência.
Luto para retornar ao sono, entretanto, enrolada num quente bolo de cobertores, segura em
casa. Vagamente estou consciente de que minha cabeça dói. Possivelmente eu tenho gripe e é
por isso que posso ficar na cama, embora possa dizer que dormi por muito tempo. A mão da
minha mãe acaricia minha bochecha e não a afasto como eu faria se estivesse totalmente
acordada, nunca querendo que ela saiba o quanto desejo aquele toque gentil. O quanto eu
senti a sua falta embora ainda não confiasse nela. Então há uma voz, uma voz errada, não da
minha mãe, e estou com medo.
"Katniss," diz. "Katniss, você pode me ouvir?"
Meus olhos se abrem e a sensação de segurança desaparece. Não estou em casa, não com
minha mãe. Estou numa caverna escura e fria, meus pés nus congelando apesar do cobertor, o
ar maculado com o claro cheiro de sangue. O rosto pálido e cansado de um garoto entra na
minha visão, e depois de um inicial golpe de alarme, sinto-me melhor. "Peeta."
"Hey," ele diz. "Bom ver seus olhos novamente."
"Por quanto tempo estive apagada?" pergunto.
"Não tenho certeza. Acordei ontem de manhã e você estava deitada ao meu lado numa poça
de sangue assustadora," ele diz. "Acho que finalmente parou, mas eu não me sentaria nem
nada."
Eu cuidadosamente levanto minha mão para minha cabeça e encontro-a enfaixada. Esse
simples gesto me deixa fraca e tonta. Peeta segura uma garrafa nos meus lábios e bebo com
sede.
"Você está melhor," digo.
"Muito melhor. O que quer que você injetou no meu braço fez um truque," diz. "Essa manhã,
quase todo o inchaço da minha perna tinha sumido."
Ele não parecia zangado por eu tê-lo enganado, drogado, e corrido para o banquete. Talvez eu
esteja apenas abatida demais e vou escutar depois quando estiver mais forte. Mas por enquanto, ele é toda gentileza.
"Você comeu?" pergunto.
"Sinto muito por dizer que engoli três pedaços daquelas ervas antes de perceber que elas
deveriam durar mais. Não se preocupe, estou de volta à dieta rígida," diz.
"Não, é bom. Você precisa comer. Vou caçar em breve," digo.
"Não tão em breve, certo?" ele diz. "Você só tem de me deixar tomar conta de você por ora."
Eu realmente não pareço ter muita escolha. Peeta me alimenta com pedaços de ervas e uvas
secas e me faz beber muita água. Ele esfrega meus pés para aquecê-los e os enrola em sua
jaqueta antes de enfiar o saco de dormir de volta ao redor do meu queixo.
"Suas botas e meias ainda estão molhadas e o tempo não está ajudando muito," ele diz. Há um
ruído de um trovão, e vejo a eletricidade iluminando o céu através da abertura das pedras. A
chuva goteja pelos vários buracos do teto, mas Peeta construiu um tipo de cobertura sobre
minha cabeça e a parte superior do meu corpo, prendendo um pedaço de plástico na pedra
acima de mim.
"O que provocou essa tempestade? Quero dizer, quem é o alvo?" diz Peeta.
"Cato e Thresh," digo sem pensar. "Foxface está em seu esconderijo em algum lugar, e Clove...
ela me cortou e então..." Minha voz falha.
"Sei que Clove está morta. Vi no céu noite passada," diz. "Você a matou?"
"Não. Thresh quebrou sua cabeça com uma pedra," digo.
"Sorte que ele não te pegou, também," diz Peeta.
A memória do banquete retorna com força total e me sinto doente. "Ele me pegou. Mas me
deixou." Então, é claro, tenho de contar a ele. Sobre coisas que mantive para mim mesma,
porque ele estava tão doente para perguntar e eu não estava pronta para reviver, de qualquer
modo. Como a explosão e meu ouvido e Rue morrendo e o garoto do Distrito 1 e o pão. Tudo
que leva ao que aconteceu com Thresh e como ele estava pagando uma dívida de sorte.
"Ele te deixou porque não queria dever a você nada?" pergunta Peeta com descrença.
"Sim. Não espero que você entenda. Você sempre teve o suficiente. Mas se você vivesse em
Seam, eu não teria de explicar," digo.
"E não tente. Obviamente sou muito turvo para compreender."
"É como o pão. Como eu nunca pareço pargar a dívida com você por aquilo," digo.
"O pão? O quê? De quando éramos crianças?" diz. "Acho que podemos deixar isso. Quero
dizer, você só me trouxe de volta da morte."
"Mas você não me conhecia. Nós nunca tínhamos nos falado. Além disso, é o primeiro
presente que é sempre o mais difícil de pagar. Eu não estaria nem ao menos aqui se você não
tivesse me ajudado então," digo. "Por que você fez, de qualquer maneira?"
"Por quê? Você sabe o porquê," Peeta diz. Dou com minha cabeça um leve e doloroso agito.
"Haymitch disse que demoraria bastante para te convencer."
"Haymitch?" pergunto. "O que ele tem a ver com isso?"
"Nada," Peeta diz. "Então, Cato e Thresh, huh? Acho que é esperar demais que eles se
destruam simultaneamente?"
Mas o pensamento apenas me irrita. "Acho que nós gostaríamos de Thresh. Acho que ele seria
nosso amigo no Distrito Doze," digo.
"Então vamos esperar que Cato mate Thresh, assim não teremos de fazer isso," diz Peeta
cruelmente.
Não quero nem um pouco que Cato mate Thresh. Não quero que ninguém mais morra. Mas
essa não é absolutamente o tipo de coisa que vencedores dizem na arena. Apesar dos meus
esforços, posso sentir as lágrimas se acumulando nos meus olhos.
Peeta olha para mim com preocupação. "O que é? Você está sentindo muita dor?"
Dou a ele outra resposta, porque é igualmente verdadeira, mas pode ser levada como um
breve momento de fraqueza em vez de uma fraqueza terminal. "Quero ir para casa, Peeta,"
digo queixosamente, como uma criança pequena.
"Você vai. Prometo," ele diz, e se inclina para me dar um beijo.
"Quero ir para casa agora," digo.
"Não me diga. Volte a dormir e sonhe com casa. E você vai estar lá de verdade antes que você
saiba," ele diz. "Ok?"
"Ok," sussurro. "Acorde-me se me precisar para vigiar."
"Estou bem e descansado, graças a você e a Haymitch. Além disso, quem sabe quanto isso vai durar?" diz.
O que ele quer dizer? A tempestade? A breve trégua que ela trás para nós? Os próprios
Games? Não sei, mas estou muito triste e cansada para perguntar.
É de tarde quando Peeta me acorda. A chuva se tornou torrencial, mandando fluxos de água
através do nosso teto, onde houve apenas goteiras. Peeta colocou o pote de caldo sob a pior e
reposicionou o plástico para desviar a maior parte de mim. Sinto-me um pouco melhor, capaz
de sentar sem ficar tão tonta, e estou absolutamente faminta. Assim está Peeta. Está claro que
ele esperou eu acordar para comer e está ávido para começar.
Há pouco restou muito. Dois pedaços de ervas, uma pequena mistura de raízes, e um punhado
de frutas secas.
"Deveríamos racionar?" Peeta pergunta.
"Não, vamos acabá-lo. As ervas estão ficando velhas, de qualquer jeito, e a última coisa que
precisamos é ficar doente por causa de comida estragada," digo, dividindo a comida em duas
pilhas iguais. Tentamos comer devagar, mas ambos estamos com tanta fome que terminamos
em dois minutos. Meu estômago não está satisfeito. "Amanhã é dia de caçar," digo.
"Eu não vou ser de muita ajuda nisso," Peeta diz. "Nunca cacei antes."
"Eu mato e você cozinha," digo. "E você pode sempre colher."
"Queria que existisse algum arbusto de pão por aí," diz Peeta.
"O pão que me mandaram do Distrito 11 ainda estava quente," digo com um suspiro. "Aqui,
coma esses." Dou a ele duas folhas de hortelã e coloco algumas na minha boca.
É difícil até para ver a projeção no céu, mas é claro o suficiente para saber que não houve mais
mortes hoje. Então Cato e Thresh não saíram ainda.
"Para onde Thresh foi? Quero dizer, o que há do outro lado do círculo?" Pergunto a Peeta.
"Um campo. Até o ponto que você pode ver é cheio de ervas tão altas quanto meus ombros.
Não sei, talvez algumas delas tenham sementes. Há partes de diferentes cores. Mas não há
trilhas," diz Peeta.
"Aposto que algumas delas têm sementes. Aposto que Thresh sabe quais, também," digo.
"Você foi lá?"
"Não. Ninguém realmente queria seguir Thresh naquelas ervas. Tem uma sensação sinistra lá.
Toda vez que olho para o campo, tudo em que consigo pensar são coisas escondidas. Cobras,
animais raivosos, e areia movediça," Peeta diz. "Pode haver qualquer coisa lá."
Não digo a Peeta, mas suas palavras me lembram das advertências que dão a nós sobre não ir
além da cerca no Distrito 12. Não posso evitar, por um momento, compará-lo a Gale, que veria
aquele campo como uma potencial fonte de comida tanto quanto uma ameaça. Thresh
certamente viu. Não é que Peeta seja frágil, exatamente, ele provou que não é covarde. Mas
há coisa que você não questiona tanto, acho, quando sua casa sempre cheira como uma
fornada de pães, enquanto que Gale questiona tudo. O que Peeta pensaria das brincadeiras
irreverentes que passam entre nós quando quebramos a lei todo dia? Iria chocá-lo? As coisas
que dissemos sobre Panem? As desgraças de Gale contra o Capitol?
"Talvez haja um arbusto de pão naquele campo," digo. "Talvez seja por isso que Thresh pareça
melhor alimentado agora do que quando começamos os Games."
"Ou isso ou ele tem generosos patrocinadores," diz Peeta. "Pergunto-me o que nós teríamos
de fazer para conseguir que Haymitch nos mande algum pão."
Levanto minhas sobrancelhas antes de me lembrar que ele não sabe sobre a mensagem que
Haymitch nos enviou há duas noites. Um beijo igual a um pote de caldo. Não é o tipo de coisa
que posso deixar escapar, tampouco. Dizer meus pensamentos em voz alta seria confessar
para a audiência que esse romance foi fabricado para brincar com suas simpatias e isso
resultaria em nenhuma comida. De alguma forma aceitável, eu tenho de começar tudo de
volta no caminho certo. Algo simples para começar. Estendo a mão e tomo a dele.
"Bem, ele provavelmente usou muito recurso ajudando-me a te desacordar," digo de forma
travessa.
"Sim, sobre aquilo," diz Peeta, entrelaçando seus dedos nos meus. "Não tente algo como
aquilo novamente."
"Ou o quê?" pergunto.
"Ou... ou..." Ele não pode pensar em nada bom. "Só me dê um minuto."
"Qual é o problema?" digo com um sorriso.
"O problema é que nós dois estamos vivos. O que apenas reforça a ideia na sua cabeça de que
você fez a coisa certa," diz Peeta.
"Eu fiz a coisa certa," digo.
"Não! Só não, Katniss!" Seu aperto fica mais forte, machucando minha mão, e há raiva real em
sua voz. "Não morra por mim. Você não vai me fazer qualquer favor. Certo?"
Estou assustada com sua intensidade, mas reconheço uma excelente oportunidade de
conseguir comida, então eu tento continuar. "Talvez eu tenha feito por mim mesma, Peeta,
você já pensou nisso? Talvez você não seja o único que... que se preocupe com... o que seria
se..."
Eu me atrapalho. Não sou tão boa com as palavras como Peeta. E enquanto estou
conversando, a ideia de perder Peeta de verdade me atinge novamente e percebo o quanto
não quero que ele morra. E não é sobre os patrocinadores. E não é sobre o que vai acontecer
em casa. E não é só porque eu queira ficar sozinha. É ele. Eu não quero perder o garoto com o
pão.
"Se o quê, Katniss?" ele diz suavemente.
Eu gostaria de fechar as persianas, bloquear esse momento dos olhos curiosos de Panem.
Mesmo que isso signifique perder comida. O que quer que eu esteja sentindo, não é problema
de ninguém além de mim.
"Esse é exatamente o tipo de tópico que Haymitch me disse para me afastar," digo
evasivamente, embora Haymitch nunca tenha dito nada do tipo. De fato, ele provavelmente
está me amaldiçoando agora mesmo por deixar a bola cair durante tal mudança emocional.
Mas Peeta de algum modo percebe.
"Então tenho apenas de preencher os vazios eu mesmo," diz, e se move para mim.
Esse é o primeiro beijo em que ambos estamos totalmente conscientes. Nenhum de nós
manco por doença ou dor ou simplesmente inconsciente. Nossos lábios nem queimando de
febre ou gelados. Esse é o primeiro beijo com o qual sinto uma agitação dentro do meu peito.
Quente e curiosa. Esse é o primeiro beijo que me faz querer outro.
Mas eu não consigo. Bem, eu consigo um segundo beijo, mas é apenas um suave na ponta do
meu nariz, porque Peeta está distraído. "Acho que seu machucado está sangrando de novo.
Venha, deite-se, é hora de se deitar, de qualquer maneira," diz.
Minhas meias estão secas o bastante para usá-las agora. Faço Peeta colocar sua jaqueta de
volta. O frio úmido parece me cortar até meus ossos, então ele deve estar meio congelado.
Insisto em ficar na primeira vigia, também, embora nenhum de nós pense que alguém virá
nesse tempo. Mas ele não vai aceitar a menos que eu esteja com o saco, também, e estou com
tantos calafrios que é inútil discutir.
Em contraste com duas noites atrás, quando sentia que Peeta estava a milhões de milhas de
distância, estou impressionada com seu imediatismo agora. Quando nos sentamos, ele puxa
minha cabeça para usar seu braço como travesseiro, e o outro fica sobre mim protetoramente
mesmo quando ele vai dormir. Ninguém me segurou dessa forma por um longo tempo. Desde
que meu pai morreu e eu parei de confiar na minha mãe, os braços de ninguém me fizeram
sentir segurança.
Com a ajuda dos óculos, observo as gotas de água batendo no chão da caverna. Rítmica e
tranqüila. Várias vezes, eu cochilo brevemente e então acordo de repente, culpada e furiosa
comigo mesma. Depois de três ou quatro horas, não posso evitar, tenho de acordar Peeta
porque não posso manter meus olhos abertos. Ele não parece se importar.
"Amanhã, quando estiver seco, vamos encontrar um lugar tão alto nas árvores em que ambos
possamos dormir em paz," prometo enquanto caio no sono.
Mas amanhã não é melhor em termos de tempo. O dilúvio continua como se os Gamemakers
tencionassem nos lavar. O trovão é tão poderoso que parece tremer o chão. Peeta está
considerando sair da caverna para procurar por comida, mas digo a ele que nessa tempestade
seria inútil. Ele não será capaz de ver um metro ante seus olhos e apenas conseguirá ficar
molhado até os ossos. Ele sabe que estou certa, mas a mordida nos nossos estômagos está se
tornando dolorosa.
O dia se transforma em noite e não há pausa no tempo. Haymitch é nossa única esperança,
mas nada é iminente, ou por falta de dinheiro ­ tudo vai custar uma quantia exorbitante ­ ou
porque ele está insatisfeito com nossa performance. Provavelmente o último. Eu seria a
primeira a admitir que não estamos exatamente fascinantes hoje. Privados de comida, fracos
de ferimentos, tentando não reabrir as feridas. Estamos sentados aconchegados um no outro
no saco de dormir, sim, mas principalmente para nos manter quentes. A coisa mais excitante
que fazemos é cochilar.
Não estou muito certa de como aumentar o romance. O beijo na noite passada foi ótimo, mas
trabalhar para outro vai levar alguma premeditação. Há garotas no Seam, algumas garotas
comerciantes, também, que navegam nessas águas facilmente. Mas nunca tive muito
tempo ou uso para isso. De qualquer forma, só um beijo não é mais suficiente, porque se fosse
nós teríamos comida noite passada. Meus instintos me dizem que Haymitch não está
procurando apenas afeição física, ele quer algo mais pessoal. O tipo de coisa que ele estava
tentando conseguir que eu contasse sobre mim quando estávamos praticando para a
entrevista. Sou podre nisso, mas Peeta não é. Talvez a melhor aproximação seja fazer com que
ele fale.
"Peeta," digo suavemente. "Você disse na entrevista que tinha uma queda por mim desde
sempre. Quando o sempre começou?"
"Ah, vamos ver. Acho que no primeiro dia na escola. Tínhamos cinco anos. Você usava um
vestido de lã vermelho e seu cabelo... estava em duas tranças em vez de uma. Meu pai
apontou para você quando estávamos esperando para o alinhamento," Peeta diz.
"Seu pai? Por quê?" pergunto.
"Ele disse, "Vê aquela garota? Quis casar com a mãe dela, mas ela fugiu de mim com um
mineiro de carvão'," Peeta diz.
"O quê? Você está brincando!" exclamo.
"Não, verdade," Peeta diz. "E eu disse, "Um mineiro de carvão? Porque ela quis um mineiro de
carvão se poderia ter você?' E ele disse, "Porque quando ele canta... até os pássaros param
para escutar'."
"Isso é verdade. Eles param. Quero dizer, eles paravam," digo. Estou impressionada e
surpreendentemente movida, pensando no padeiro dizendo isso a Peeta. Golpeia em mim
minha própria relutância em cantar, minha própria demissão de música pode não ser porque
eu pensava que era uma perda de tempo. Pode ser porque me lembra tanto meu pai.
"Então naquele dia, na assembléia musical, a professora perguntou quem sabia a canção do
vale. Sua mão subiu logo no ar. Ela te levantou no banco e você cantou para nós. E juro, todos
os pássaros do lado de fora da janela ficaram em silêncio," Peeta diz.
"Ah, por favor," digo, rindo.
"Não, aconteceu. E logo quando sua música terminou, eu soube ­ bem como sua mãe ­ que eu
estava perdido," Peeta diz. "Então, pelos próximos onze anos, tentei criar coragem para falar
com você."
"Sem sucesso," acrescento.
"Sem sucesso. Então, de algum modo, meu nome sendo escolhido na colheita foi uma sorte,"
diz Peeta.
Por um momento, estou quase estupidamente feliz e depois confusão me varre. Porque nós
deveríamos estar fazendo isso, fingir estarmos apaixonados não é estarmos apaixonados. Mas
a história de Peeta tem um fundo de verdade. Essa parte sobre meu pai e os pássaros. E eu
cantei no primeiro dia na escola, embora não me lembre da música. E o vestido de lã
vermelho... havia um, passado para Prim depois da morte do meu pai.
Isso explicaria outra coisa, também. Por que Peeta apanhou para me dar o pão naquele dia
terrível. Então, se todos aqueles detalhes são verdade... poderia ser tudo verdade?
"Você tem uma... memória fora do comum," digo hesitante.
"Eu me lembro de tudo sobre você," diz Peeta, colocando uma mecha solta do meu cabelo
atrás do meu ouvido. "Era você quem não prestava atenção."
"Estou prestando agora," digo.
"Bem, não tenho muita concorrência aqui," ele diz.
Quero me afastar, fechar as portas outra vez, mas sei que não posso. É como se eu ouvisse
Haymitch sussurrando no meu ouvido. "Diga! Diga!"
Engulo com força e as palavras saem. "Você não teve muita concorrência em qualquer lugar."
E dessa vez, sou eu quem se inclina.
Nossos lábios mal se tocam quando um som metálico do lado de fora nos faz pular. Meu arco
sobe, a flecha já preparada para voar, mas não há outro som. Peeta espreita através das
pedras, e então dá um berro. Antes que eu possa pará-lo, ele se abaixa na chuva, então
estende algo para mim. Um paraquedas prateado amarrado a uma cesta. Abro-a de uma vez e
o que há dentro é um banquete ­ pães, queijo de cabra, maçãs, e o melhor de tudo, uma
terrina com um ensopado de cordeiro junto com arroz. O prato que eu disse a Caesar
Flickerman que era a coisa mais impressionante que o Capitol tinha a oferecer.
Peeta volta para dentro, seu rosto iluminado como o sol. "Acho que Haymitch finalmente ficou
cansado de nos observar morrer de fome."
"Também acho," respondo.
Mas na minha cabeça posso ouvir as palavras presunçosas, senão levemente exasperadas,
"Sim, isso é o que eu estava procurando, querida."

23

Cada célula do meu corpo quer que eu mergulhe no cozido e coma até me satisfazer, jogando
punhado atrás de punhado em minha boca. Mas a voz de Peeta me para. "É melhor irmos com
calma nesse cozido. Lembra-se da primeira noite no trem? A comida farta me deixou doente e
eu não estava nem mesmo morrendo de fome, então."
"Você está certo. E eu poderia simplesmente inalar o negócio todo!" eu digo
arrependidamente. Mas não o faço. Estamos muito sensíveis. Cada um de nós pega um
rolinho, metade de uma maçã, e uma porção do tamanho de um ovo de cozido e arroz. Eu me
forço a comer o cozido em pequeninas colheradas ­ eles nos mandaram até mesmo talheres e
pratos ­ saboreando cada mordida. Quando terminamos, eu encaro ansiosamente o prato. "Eu
quero mais."
"Eu também. Te digo uma coisa. Esperamos uma hora, se continuar desse jeito, então nós nos
servimos de novo," diz Peeta.
"Acertado," eu digo. "Vai ser uma longa hora."
"Talvez não tanto," diz Peeta. "O que foi que você estava dizendo logo antes da comida
chegar? Algo sobre mim... nenhuma competição... melhor coisa que já aconteceu com você..."
"Eu não me lembro dessa última parte," eu digo, esperando que esteja muito turvo aqui para
as câmeras captarem meu rubor.
"Ah, está certo. Isso era o que eu estava pensando," diz ele. "Chega mais, eu estou
congelando."
Eu abro espaço para ele no saco de dormir. Nós nos encostamos contra a parede da caverna, a
minha cabeça em seu ombro, seus braços em volta de mim. Eu posso sentir Haymitch me
cutucando para continuar com o ato. "Então, desde que tínhamos cinco, você nunca nem
notou outras garotas?" Eu lhe pergunto.
"Não, eu notei quase todas as garotas, mas nenhuma delas deixou uma impressão duradoura,
só você," ele diz.
"Tenho certeza de que seus pais ficariam animados, você gostando de uma garota de Seam,"
eu digo.
"Dificilmente. Mas eu não poderia me importar menos. De qualquer forma, se voltarmos, você
não será uma garota de Seam, você será uma garota da Vila dos Vitoriosos," ele diz.
Está certo. Se vencermos, cada um irá ganhar uma casa na parte da cidade reservada para os
vitoriosos do Hunger Games. Há muito tempo, quando os Games começaram, o Capitol
construíra uma dúzia de casas chiques em cada distrito. É claro, no nosso apenas uma está
ocupada. A maioria das outras nunca teve moradores.
Um pensamento perturbador me atinge. "Mas então, o nosso único vizinho será Haymitch!"
"Ah, isso vai ser bom," diz Peeta, apertando seus braços ao meu redor. "Você e eu e Haymitch.
Muito acolhedor. Piqueniques, aniversários, longas noites de inverno ao redor da fogueira
recontando velhos contos do Hunger Games."
"Eu te disse, ele me odeia!" eu digo, mas não posso deixar de rir com a imagem de Haymitch
se tornando meu novo amigo.
"Só às vezes. Quando ele está sóbrio, eu nunca o ouvi dizer uma coisa negativa sobre você," diz
Peeta.
"Ele nunca está sóbrio!" eu protesto.
"Está certo. Em quem estou pensando? Ah, sei. É Cinna quem gosta de você. Mas isso é
principalmente porque você não tentou fugir quando ele botou fogo em você," diz Peeta. "Por
outro lado, Haymitch... bem, se eu fosse você, eu evitaria Haymitch completamente. Ele te
odeia."
"Eu pensei que você tinha dito que eu era a sua favorita," eu digo.
"Ele me odeia mais," diz Peeta. "Eu não acho que as pessoas, de um modo geral, sejam suas
coisas favoritas."
Eu sei que o público apreciará nós nos divertindo às custas de Haymitch. Ele tem estado por
perto há tanto tempo, ele é praticamente um velho amigo de alguns deles. E depois de seu
mergulho de cabeça para fora do palco na colheita, todo mundo o conhece. A esta altura, eles
terão arrastado-o para fora da sala de controle para entrevistas sobre nós. Não há como
prever que tipo de mentiras ele inventou. Ele tem uma espécie de desvantagem porque a
maioria dos mentores tem um parceiro, um outro vencedor para ajudá-lo, enquanto que
Haymitch tem que estar pronto para entrar em ação a qualquer momento. Meio que como eu
quando estava sozinha na arena. Eu me pergunto como ele está agüentando, com a bebida, a
atenção, e o stress de tentar nos manter vivos.
É engraçado. Haymitch e eu não nos damos bem em pessoa, mas talvez Peeta esteja certo
sobre nós sermos parecidos, porque ele parece ser capaz de se comunicar comigo pelo
sincronismo dos seus presentes.
Como eu saber que tinha que estar perto de água quando ele a negou e como eu sabia que o
xarope do sono não era apenas algo para aliviar a dor de Peeta e como agora eu sei que eu
tenho que bancar o romance. Ele não fez muito esforço para se conectar com Peeta, na
verdade. Talvez ele ache que uma tigela de caldo de carne seria apenas uma tigela de caldo de
carne para Peeta, enquanto eu veria as restrições que viriam com ela.
Um pensamento me atinge, e eu estou espantada que a pergunta tenha levado tanto tempo
para aparecer. Talvez seja porque só recentemente comecei a ver Haymitch com um grau de
curiosidade. "Como você acha que ele fez isso?"
"Quem? Fez o quê?" Peeta pergunta.
"Haymitch. Como você acha que ele ganhou os Games?" eu digo.
Peeta considera isto por um bom tempo antes de responder. Haymitch é muito robusto, mas
não tem um físico de se admirar como Cato ou Thresh. Ele não é particularmente bonito. Não
da maneira que faz com que patrocinadores façam chover presentes para você. E ele é tão
grosseiro, é difícil imaginar alguém unindo-se a ele. Há apenas uma maneira de Haymitch
poder ter vencido, e Peeta diz bem quando eu mesma estou chegando a essa conclusão.
"Ele foi mais esperto que os outros," diz Peeta.
Aceno, então deixo a conversa acabar. Mas secretamente estou me perguntando se Haymitch
ficou sóbrio o suficiente para ajudar Peeta e eu porque achou que poderíamos ter a
inteligência para sobreviver.
Talvez ele nem sempre tenha sido um bêbado. Talvez, no começo, ele tentou ajudar os
tributos. Mas depois ficou insuportável. Deve ser um inferno ser mentor de duas crianças e
depois vê-las morrer. Ano após ano após ano. Percebo que se eu sair daqui, isso se tornará o
meu trabalho. Ser a mentora da menina do Distrito 12. A ideia é tão repelente, eu a empurro
da minha mente.
Cerca de meia hora se passa antes de decidir que tenho que comer de novo. O próprio Peeta
está com muita fome para discutir.
Enquanto eu estou servindo mais duas pequenas porções de cozido de carneiro e arroz, nós
ouvimos o hino começar a tocar. Peeta pressiona seus olhos contra uma fenda na rocha para
ver o céu.
"Não haverá nada para ver hoje à noite," eu digo, muito mais interessada no cozido do que o
céu. "Nada aconteceu ou nós teríamos ouvido um canhão."
"Katniss," Peeta diz calmamente.
"O quê? Devemos dividir outro rolinho, também?" Eu pergunto.
"Katniss," ele repete, mas eu me encontro querendo ignorá-lo.
"Eu vou dividir um. Mas eu vou poupar o queijo para amanhã," eu digo. Vejo Peeta olhando
para mim. "O quê?"
"Thresh está morto," diz Peeta.
""Ele não pode estar," eu digo.
"Eles devem ter disparado o canhão durante o trovão e nós perdemos," diz Peeta.
"Você tem certeza? Quer dizer, está chovendo canivetes lá fora. Eu não sei como você
consegue ver alguma coisa," eu digo. Eu o afasto das rochas e espremo meus olhos para o céu
escuro e chuvoso. Por cerca de dez segundos, eu vislumbro uma imagem distorcida de Thresh
e então ele se vai. Bem assim.
Eu desmorono pelas rochas, esquecendo momentaneamente da tarefa às mãos. Thresh está
morto. Eu deveria estar feliz, certo?
Menos um tributo a encarar. E um poderoso também. Mas eu não estou feliz. Tudo em que
posso pensar é em Thresh me deixando ir, deixando-me correr por causa da Rue, que morreu
com aquela lança em seu estômago...
"Você está bem?" pergunta Peeta.
Eu dou de ombros evasivamente e seguro meus cotovelos com as minhas mãos, abraçando-os
perto do meu corpo. Eu tenho que enterrar a dor verdadeira, porque quem vai apostar em um
tributo que fica choramingando a morte de seus adversários? Rue era uma coisa. Éramos
aliadas. Ela era tão jovem. Mas ninguém vai entender a minha tristeza pelo assassinato de
Thresh. A palavra me para bruscamente. Assassinato! Felizmente, eu não disse em voz alta.
Isso não vai me ganhar nenhum ponto na arena. O que eu digo é, "É só que... se não
ganhássemos... Eu queria que Thresh ganhasse. Porque ele me deixou ir. E por causa da Rue."
"Sim, eu sei," diz Peeta. "Mas isso significa que estamos um passo mais perto do Distrito
Doze." Ele empurra um prato de comida nas minhas mãos. "Coma. Ainda está quente."
Eu dou uma mordida no cozido para mostrar que eu realmente não me importo, mas é como
cola na minha boca e é um grande esforço engolir. "Significa também que Cato vai voltar a nos caçar."
"E ele tem suprimentos de novo," diz Peeta.
"Ele estará ferido, eu aposto," eu digo.
"O que te faz dizer isso?" Peeta pergunta.
"Porque Thresh nunca teria sucumbido sem uma luta. Ele é tão forte, quero dizer, ele era. E
eles estavam em seu território," eu digo.
"Que bom," diz Peeta. "Quanto mais Cato estiver ferido, melhor. Eu me pergunto como a
Foxface está se virando."
"Oh, ela está bem," eu digo irritada. Eu ainda estou com raiva que ela pensou em se esconder na Cornucópia e eu não. "Provavelmente será mais fácil pegar Cato do
que ela."
"Talvez eles irão se pegar, nós poderemos simplesmente ir para casa," diz Peeta. "Mas é melhor
termos cuidado extra com as vigilâncias. Eu cochilei algumas vezes."
"Eu também," eu admito. "Mas não hoje."
Nós terminamos nossa comida em silêncio e depois Peeta se oferece para ficar com a primeira
vigilância. Eu me enterro profundamente no saco de dormir ao lado dele, puxando meu capuz
sobre o meu rosto para escondê-lo das câmeras. Eu só preciso de alguns momentos de
privacidade onde eu posso deixar qualquer emoção cruzar o meu rosto sem ser vista. Sob o
capuz, eu silenciosamente digo adeus ao Thresh e agradeço-lhe pela minha vida. Eu prometo
me lembrar dele e, se eu puder, fazer algo para ajudar sua família e a de Rue, se eu ganhar.
Então eu escapo para o sono, confortável por uma barriga cheia e o calor constante de Peeta
ao meu lado.
Quando Peeta me acorda mais tarde, a primeira coisa que eu registro é o cheiro de queijo de
cabra. Ele está segurando metade de um rolinho aberto com o negócio branco cremoso e
coberto com fatias de maçã. "Não fique brava," diz ele. "Eu tive que comer de novo. Aqui está
a sua metade."
"Oh, bom," eu disse, imediatamente dando uma mordida enorme. O queijo gordo e forte tem
gosto daqueles que a Prim faz, as maçãs são doces e crocantes. "Humm."
"Fazemos uma torta de queijo de cabra e maçã na padaria," diz ele.
"Aposto que é caro," eu digo.
"Caro demais para a minha família comer. A não ser que tenha ficado muito estragado. É claro,
praticamente tudo o que comemos é estragado," diz Peeta, puxando o saco de dormir em
torno dele. Em menos de um minuto, ele está roncando.
Hum. Eu sempre assumi que os lojistas tinham uma vida mole.
E é verdade, Peeta sempre teve o suficiente para comer. Mas é meio deprimente ter que viver
sua vida de pão dormido, das fornadas duras e secas que ninguém mais queria. Uma coisa
sobre nós, já que trago a nossa comida para casa diariamente, é que a maioria está tão fresca
que você tem que se certificar de que ela não vai fugir.
Em algum momento durante o meu turno, a chuva para, não gradualmente, mas de uma vez
só. O aguaceiro acaba e há apenas os gotejamentos residuais de água dos galhos, a pressa do
córrego agora transbordando abaixo de nós. Uma linda lua cheia emerge, e mesmo sem os
óculos eu posso ver o lado de fora. Eu não consigo decidir se a lua é real ou apenas uma
projeção dos Gamemakers. Eu sei que estava cheia pouco antes de sair de casa. Gale e eu
assistimos-a subir à medida que caçávamos nas horas tardias.
Quanto tempo eu estive fora? Suponho que se passaram cerca de duas semanas na arena, e
houve aquela semana de preparação em Capitol. Talvez a lua tenha completado seu ciclo.
Por alguma razão, eu quero muito que seja a minha lua, a mesma que eu vejo da floresta em
torno do Distrito 12. Isso me daria algo para me agarrar no mundo surreal da arena onde a
autenticidade de tudo deve ser duvidada.
Quatro de nós restantes.
Pela primeira vez, permito-me realmente pensar na possibilidade de que poderia voltar para
casa. Para a fama. Para a riqueza. Para minha própria casa na Vila dos Vitoriosos. Minha mãe e
Prim viveriam lá comigo. Nada mais de medo da fome. Um novo tipo de liberdade. Mas
então... o quê? Como seria a minha vida diária? A maior parte dela foi consumida com a
aquisição de comida. Tire isso e eu não tenho muita certeza sobre quem eu realmente sou,
qual é a minha identidade. A ideia me assusta um pouco. Penso em Haymitch com todo o seu
dinheiro. O que sua vida se tornou? Ele vive sozinho, sem esposa ou filhos, a maior parte de
suas horas despertas ele está bêbado. Eu não quero acabar assim.
"Mas você não estará sozinha," eu sussurro para mim mesma. Eu tenho minha mãe e Prim.
Bem, por enquanto. E depois... eu não quero pensar no depois, quando Prim tiver crescido,
minha mãe falecido. Eu sei que nunca vou me casar, nunca arriscarei trazer uma criança ao
mundo. Porque se há uma coisa que ser um vitorioso não garante, é a segurança de seus
filhos. Os nomes dos meus filhos iriam direto para as bolas de colheita como os de todo
mundo. E eu juro que nunca vou deixar que isso aconteça.
O sol eventualmente nasce, sua luz deslizando pelas fendas e iluminando o rosto de Peeta. Em
quem ele vai se transformar se voltarmos para casa? O garoto desconcertante e de bom
caráter que pode prolongas mentiras tão convincentes que toda a Panem acredita que ele é
perdidamente apaixonado por mim, e, admito, há momentos em que ele me faz acreditar
nisso? Pelo menos, seremos amigos, eu penso. Nada mudará o fato de que salvamos as vidas
uns dos outros aqui. E além disso, ele será sempre o menino com o pão. Bons amigos.
Qualquer coisa além disso, contudo... e sinto os olhos cinzentos de Gale observando eu
observar Peeta, lá no Distrito 12.
Desconforto me faz mover. Eu me aproximo mais e chacoalho o ombro de Peeta. Seus olhos se
abrem sonolentamente e quando se concentram em mim, ele me puxa para um longo beijo.
"Estamos perdendo tempo de caça," eu digo quando finalmente rompo o beijo.
"Eu não chamaria isso de desperdício," diz ele se esticando bastante enquanto se senta. "Então
caçamos de estômago vazio para nos dar uma vantagem?"
"Nós não," eu digo. "Nós nos entupimos para nos dar poder de resistência."
"Conte comigo," diz Peeta. Mas posso ver que ele fica surpreso quando divido o resto do
cozido e do arroz e dou-lhe um prato completo. "Tudo isso?"
"Nós ganharemos isso de volta hoje," eu digo, e ambos avançamos em nossos pratos. Mesmo
frio, é uma das melhores coisas que eu já provei. Eu abandono o meu garfo e raspo os últimos
punhados de molho com o meu dedo. "Eu posso sentir Effie Trinket estremecendo com a
minha educação."
"Ei, Effie, veja isso!" diz Peeta. Ele joga seu garfo por cima do ombro e literalmente lambe o
prato até ficar limpo com a língua, fazendo sons altos de satisfação. Então ele sopra um beijo
pra ela e grita, "Nós sentimos sua falta, Effie!"
Eu cubro a boca com a mão, mas estou rindo. "Pare! Cato pode estar logo do lado de fora de
nossa caverna."
Ele pega a minha mão. "O que me importa? Eu tenho você para me proteger agora," diz Peeta,
puxando-me para ele.
"Vamos," eu digo exasperada, desembaraçando-me do seu aperto, mas não antes que ele receba outro beijo.
Uma vez que embalamos tudo e estamos do lado de fora de nossa caverna, o nosso humor
muda para um sério. É como se, pelos últimos dias, protegidos pelas rochas e da chuva e da
preocupação de Cato com Thresh, nos foi dado uma pausa, uma espécie de férias. Agora,
embora o dia esteja ensolarado e quente, ambos sentimos que estamos realmente de volta
nos Games. Eu entrego minha faca para Peeta, já que quaisquer armas que ele já possuíra se
foram há muito, e ele desliza-as para seu cinto. Minhas últimas sete flechas - das doze eu
sacrifiquei três na explosão, duas no banquete - chocalham um pouco perdidas na aljava. Eu
não posso me dar ao luxo de perder mais.
"Ele estará nos caçando agora," diz Peeta. "Cato não é um de esperar sua presa passar por
perto."
"Se ele estiver ferido," eu começo.
"Não importará," Peeta interrompe. "Se ele puder se mover, ele está vindo."
Com toda a chuva, o córrego invadiu suas margens em vários metros de cada lado. Paramos lá
para repor a nossa água. Eu verifico as armadilhas que montei dias atrás e fico sem nada. Não
é de se estranhar com esse tempo. Além do mais, eu não vi muitos animais ou sinais deles
nesta área.
"Se queremos comida, é melhor voltarmos ao meu antigo território de caça," eu digo.
"Você que manda. Apenas me diga o que você precisa que eu faça," diz Peeta.
"Fique de olho," eu digo. "Fica nas pedras o tanto quanto possível, não há sentido em deixar-
lhe pistas para seguir. E ouça por nós dois." Está claro, a este ponto, que a explosão destruiu a
audição na minha orelha esquerda de vez.
Eu andaria na água para cobrir as nossas pistas completamente, mas não tenho certeza se a
perna do Peeta poderia agüentar a corrente. Embora os remédios tenham apagado a infecção,
ele ainda está muito fraco. Minha testa dói ao longo do corte da faca, mas depois de três dias
o sangramento parou. Eu uso uma bandagem em volta da minha cabeça, contudo, apenas no
caso do esforço físico fazer ela voltar.
À medida enquanto nos dirigimos ao lado do córrego, passamos pelo lugar onde eu encontrei
Peeta camuflado nas ervas daninhas e lama. Uma coisa boa, entre a chuva e as margens
inundadas, é que todos os sinais de seu esconderijo foram eliminados. Isso significa que, se for
necessário, podemos voltar à nossa caverna. Caso contrário, eu não arriscaria com Cato atrás
de nós.
Os pedregulhos diminuem para rochas que eventualmente viram pedrinhas, e então, para meu
alívio, estamos de volta para folhas de pinheiro e a inclinação gentil do chão da floresta. Pela
primeira vez, percebo que temos um problema. Navegando pelo terreno rochoso com uma
perna ruim - bem, você naturalmente irá fazer algum ruído. Mas mesmo na cama lisa de
folhas, Peeta é barulhento. E eu quero dizer barulhento barulhento, como se ele estivesse
pisando forte ou algo assim. Eu me viro e olho para ele.
"O quê?" ele pergunta.
"Você tem que mover-se mais silenciosamente," eu digo. "Esqueça o Cato, você está
espantando cada coelho em um raio de dezesseis quilômetros."
"Sério?" ele diz. "Desculpe, eu não sabia."
Então, começamos de novo e ele está um pouquinhozinho melhor, mas mesmo com apenas
uma orelha funcionando, ele está me fazendo pular.
"Você pode tirar as suas botas?" eu sugiro.
"Aqui?" ele pergunta incrédulo, como se eu tivesse lhe pedido para andar descalço sobre
brasas ou algo assim. Eu tenho que me lembrar que ele ainda não está acostumado com a
floresta que é o lugar assustador e proibido para além das cercas do Distrito 12. Eu penso em
Gale, com seu piso de veludo. É assombroso o quão pouco som ele produz, mesmo quando as
folhas caíram e é um desafio mover-se sem espantar a caça. Tenho certeza de que ele está
rindo lá em casa.
"Sim," eu disse pacientemente. "Eu também tirarei. Dessa forma, nós dois vamos ficar mais
silenciosos." Como se eu estivesse fazendo barulho. Assim ambos nos livramos de nossas botas
e meias e, enquanto há alguma melhora, eu poderia jurar que ele está fazendo um esforço
para quebrar cada ramo que encontramos.
Não é preciso dizer que, embora tenham se passado várias horas para chegar ao meu antigo
acampamento com a Rue, eu não atirei em nada. Se a corrente se acalmasse, peixes poderiam
ser uma opção, mas a correnteza ainda é muito forte. Enquanto paramos para descansar e
beber água, eu tento encontrar uma solução. Idealmente, eu despejaria Peeta agora com
alguma tarefa simples de coletar raízes e iria caçar, mas então ele ficaria com apenas uma faca
para se defender contra as lanças e a força superior de Cato. Então o que eu realmente
gostaria é tentar escondê-lo num lugar seguro, então ir caçar e voltar e recolhê-lo.
Mas tenho a sensação de que seu ego não vai aceitar essa sugestão.
"Katniss," diz ele. "Nós precisamos nos dividir. Eu sei que estou espantando a caça."
"Só porque sua perna está machucada," eu digo com generosidade, porque, realmente, dá pra
dizer que isso é apenas uma pequena parte do problema.
"Eu sei," ele diz. "Então, por que você não segue em frente? Mostre-me algumas plantas para
coletar e dessa maneira ambos seremos úteis."
"Não se o Cato vier e te matar." Eu tentei dizer isso de uma maneira agradável, mas ainda soa
como se eu achasse que ele é fraco.
Surpreendentemente, ele apenas ri. "Olha, eu posso lidar com o Cato. Lutei com ele antes, não
lutei?"
É, e isso deu muito certo. Você acabou morrendo em uma orla de lama. É o que eu quero
dizer, mas não posso. Ele realmente salvou minha vida ao lutar contra o Cato, afinal. Eu tento
outra tática. "E se você subir em uma árvore e agisse como vigia enquanto eu caço?" eu digo,
tentando fazer isso soar como um trabalho muito importante.
"E se você me mostrar o que é comestível por aqui e ir nos buscar um pouco de carne?" diz
ele, imitando meu tom. "Só não vá longe, no caso de precisar de ajuda."
Eu suspiro e mostro-lhe algumas raízes para cavar. Nós precisamos mesmo de alimentos, sem
dúvida. Uma maçã, dois rolinhos, e um pedaço de queijo do tamanho de uma ameixa não vão
durar muito. Vou simplesmente caminhar por uma curta distância e esperar que Cato esteja longe.
Ensino-lhe um assobio de pássaro - não uma melodia como o da Rue, mas um assobio simples
de duas notas - que podemos usar para nos comunicarmos que estamos bem. Felizmente, ele
é bom nisso. Deixando-o com a mochila, eu saio.
Eu sinto que tenho onze novamente, presa não à segurança da cerca, mas a Peeta, permitindo-me dezoito, talvez vinte e sete metros de espaço para caçar. Longe dele,
porém, a floresta fica
viva com sons de animais. Tranqüilizada por seus assobios periódicos, permito-me derivar para
mais longe, e logo tenho dois coelhos e um esquilo gordo para exibir. Eu decido que é o
suficiente. Eu posso colocar armadilhas e talvez conseguir alguns peixes. Com as raízes de
Peeta, isto será o suficiente por hora.
Enquanto eu volto a curta distância, percebo que trocamos sinais faz um tempo. Quando o
meu assobio não recebe nenhuma resposta, eu corro. Rapidamente, eu encontro a mochila,
um arrumado monte de raízes ao lado. A folha de plástico foi colocada no terreno onde o sol
pode atingir a única camada de bagas que ela cobre. Mas onde está ele?
"Peeta!" eu chamo em pânico. "Peeta!" Eu me viro para o farfalhar de folhas e quase mando
uma flecha por ele. Felizmente, eu puxo meu arco no último segundo e fica preso em um
tronco de carvalho a sua esquerda. Ele salta para trás, atirando um punhado de bagas na
folhagem.
Meu medo sai como raiva. "O que você está fazendo? Você deveria estar aqui, não correndo
pela floresta!"
"Eu encontrei algumas bagas correnteza abaixo," diz ele, claramente confuso com a minha
explosão.
"Eu assobiei. Por que você não assobiou de volta?" eu repreendo-o.
"Eu não ouvi. A água está muito alta, acho," diz ele. Ele cruza e coloca suas mãos sobre meus
ombros. É quando sinto que estou tremendo.
"Eu pensei que Cato tinha te matado!" eu quase grito.
"Não, eu estou bem." Peeta envolve seus braços em volta de mim, mas eu não respondo.
"Katniss?"
Eu empurro, tentando entender meus sentimentos. "Se duas pessoas concordam em um sinal,
elas ficam por perto. Porque se um deles não responde, eles estão em apuros, está certo?"
"Está certo!" ele diz.
"Está certo. Porque foi isso que aconteceu com a Rue, e eu assisti ela morrer!" eu digo. Viro-
me para longe dele, vou até a mochila e abro uma garrafa de água fresca, apesar de ainda ter
um pouco na minha. Mas não estou pronta para perdoá-lo. Eu observo a comida. Os rolinhos e
as maçãs estão intocados, mas alguém pegou definitivamente parte do queijo. "E você comeu
sem mim!" Eu realmente não me importo, eu só quero algo pelo que ficar brava.
"O quê? Não, eu não comi," diz Peeta.
"Ah, e suponho que as maçãs comeram o queijo," eu digo.
"Eu não sei o que comeu o queijo," Peeta diz devagar e claramente, como se estivesse
tentando não perder a paciência, "mas não foi eu. Eu estive correnteza abaixo coletando
bagas. Você gostaria de algumas?"
Eu quero, na verdade, mas eu não quero ceder tão cedo. Mas eu ando até lá e olho para elas.
Eu nunca vi esse tipo antes.
Não, já vi. Mas não na arena. Estas não são as bagas da Rue, embora elas se pareçam. Também
não são iguais as que eu aprendi sobre no treinamento. Eu me inclino e apanho algumas,
rolando-as entre meus dedos.
A voz de meu pai volta para mim. "Estas não, Katniss. Nunca estas. Elas são nightlock. Você
estará morta antes que atinjam o seu estômago."
* a palavra "nightlock' foi criada pela autora, usando a junção dos nomes "nightshade'
(jurubeba) + "hemlock' (pinheiro do Canadá), ambas plantas extremamente venenosas.
Bem então, o canhão dispara. Eu me viro bruscamente, esperando que Peeta colapse no chão,
mas ele apenas levanta suas sobrancelhas. O aerobarco aparece a noventa metros, mais ou
menos, de distância. O que sobrou do corpo emagrecido de Foxface é levantado no ar. Eu
posso ver o brilho vermelho dos seus cabelos ao sol.
Eu deveria ter sabido no momento em que vi o queijo desaparecido...
Peeta pegou-me pelo braço, empurrando-me na direção de uma árvore. "Escale. Ele estará
aqui em um segundo. Teremos uma melhor chance lutando contra ele de cima."
Eu o paro, de repente calma. "Não, Peeta, ela foi matança sua, não do Cato."
"O quê? Eu nem sequer a vi desde o primeiro dia," diz ele. "Como eu poderia tê-la matado?"
Em resposta, seguro as bagas.

24

Leva algum tempo para explicar a situação para Peeta. Como Foxface roubou a comida da pilha
de suprimentos antes de eu explodi-la, como ela tentou tirar o bastante para ficar viva, mas
não o suficiente para alguém notar, como ela não questionaria a natureza das bagas se nós
estivéssemos preparando-nos para comê-las.
"Pergunto-me como ela nos encontrou," diz Peeta. "Minha culpa, eu acho, se eu estava tão
barulhento como você diz."
Estávamos tão difíceis de seguir quanto um rebanho de gado, mas tento ser gentil. "E ela é
esperta, Peeta. Bem, ela era. Até você superá-la."
"Não de propósito. Não parece justo de forma alguma. Quero dizer, nós estaríamos mortos,
também, se ela não tivesse comido as bagas antes." Ele se corrige. "Não, claro, não
estaríamos. Você as reconheceria, não?"
Assinto. "Nós as chamamos de fechos da noite."
"Até o nome soa mortal," diz. "Sinto muito, Katniss. Eu realmente pensei que elas pareciam as mesmas que você juntou."
"Não se desculpe. Isso significa que estamos um passo mais perto de casa, certo?" pergunto.
"Vamos acabar com o resto," Peeta diz. Ele recolhe uma folha de plástico azul,
cuidadosamente colocando as bagas dentro, e vai jogá-las na floresta.
"Espera!" grito. Encontro a bolsa de couro que pertencia ao garoto do Distrito 1 e encho-a com
punhados de fechos da noite. "Se elas enganaram Foxface, talvez possam enganar Cato
também. Se ele estiver nos caçando ou algo assim, podemos agir como se acidentalmente
derrubamos a bolsa, e se ele as comer"....
"Então olá Distrito Doze," Diz Peeta.
"Isso," digo, prendendo a bolsa no meu cinto.
"Ele vai saber onde estamos agora," diz Peeta. "Se ele estava em algum lugar por perto e viu o
aerobarco, vai saber que nós a matamos e virá atrás de nós."
Peeta está certo. Essa pode ser a oportunidade que Cato esteve esperando. Mas mesmo se
corremos agora, há carne para cozinhar e nosso fogo vai ser outro sinal da nossa localização.
"Vamos fazer fogo. Agora." Começo a juntar ramos e galhos.
"Você está pronta para encará-lo?" Peeta pergunta.
"Estou pronta para comer. Melhor cozinhar nossa comida enquanto temos chance. Se ele
souber que estamos aqui, ele sabe. Mas ele também sabe que há dois de nós e provavelmente
assuma que estamos caçando Foxface. Isso significa que você se recuperou. E o fogo significa
que não estamos nos escondendo, estamos convidando-o. Você se mostraria?" pergunto.
"Talvez não," ele diz.
Peeta é um diabo com o fogo, tentando trazer chama da madeira úmida. Num piscar de olhos,
tenho coelhos e esquilos torrando, as raízes, misturadas com folhas, cozinhando na brasa.
Tomamos turnos de juntar verduras e vigiar por causa de Cato, mas como eu antecipei, ele não
aparece.
Quando a comida está pronta, eu guardo a maior parte, deixando para nós a perna do coelho
para comermos enquanto caminhamos.
Quero ir mais alto na floresta, subir uma boa árvore, e fazer acampamento para a noite, mas
Peeta resiste. "Não posso subir como você, Katniss, especialmente com minha perna, e não
acho que poderia dormir a quinze metros do chão."
"Não é seguro ficar em aberto, Peeta," digo.
"Não podemos voltar para a caverna?" ele pergunta. "É perto da água e fácil para se
defender."
Suspiro. Várias horas mais de caminhada ­ ou deveria dizer estrondo ­ através da floresta para
chegar até a área que tivemos de deixar de manhã para caçar. Mas Peeta não pede por muito.
Ele seguiu minhas instruções todo dia e tenho certeza de que, se fosse o contrário, ele não me
faria passar a noite numa árvore. Percebo que não fui muito boa com Peeta hoje. Implicando
com quão barulhento ele era, gritando com ele sobre desaparecer. O romance divertido que
sustentamos na caverna desapareceu no aberto, sob o sol quente, com a ameaça de Cato
sobre nós. Haymitch deve estar irritado comigo. E quanto à audiência...
Eu me estico e dou a ele um beijo. "Claro. Vamos voltar para a caverna."
Ele parece satisfeito e aliviado. "Bem, essa foi fácil."
Tiro minha flecha do carvalho, com cuidado para não danificar a ponta. Essas flechhas são a
comida, segurança, e vida por si só agora.
Jogamos um pouco mais de madeira no fogo. Isso deve lançar fumaça por mais algumas horas,
embora eu duvide que Cato assuma alguma coisa a esse ponto. Quando chegamos ao riacho,
vejo que a água tem diminuído consideravelmente e que se move num ritmo lento, então
voltamos para ele. Peeta está feliz pelo favor e, visto que ele é muito mais silencioso na água
que na terra, é uma boa idéia. É uma longa caminhada para a caverna, entretanto, mesmo
descendo, mesmo com o coelho dos dando impulso. Ambos estamos exaustos pela marcha de
hoje e ainda mal alimentados. Mantenho meu arco carregado, ambos para Cato e qualquer
peixe que possa ver, mas o riacho parece estranhamente vazio de criaturas.
Quando alcançamos nosso destino, nossos pés estão pesados e o sol desce no horizonte.
Enchemos nossas garrafas de água e subimos a pequena inclinação para nosso esconderijo.
Não é muito, mas fora daqui é uma imensidão, e isso é a coisa mais próxima que temos de
uma casa. Será mais quente que uma árvore, também, porque provê algum abrigo do vento
que começou a vir continuamente do oeste. Coloco um bom Jantar, mas Peeta meio que
começa a cochilar. Depois de dias de inércia, a caçada tomou seu pedágio. Mando-o ir para o
saco de dormir e guardo o resto da sua comida para quando ele acordar. Ele dorme
imediatamente. Puxo o saco de dormir até seu queixo e beijo sua testa, não para a audiência,
mas para mim. Porque estou tão grata de ele ainda estar aqui, não morto no rio como eu
pensei. Tão grata por não ter de encarar Cato sozinha.
O brutal e sanguinário Cato, que pode quebrar um pescoço com o giro de seu braço, que tem o
poder de superar Thresh, que se destacou para mim desde o início. Ele provavelmente tem um
ódio especial por mim desde quando o superei no treinamento. Um garoto como Peeta iria
apenas encolher os ombros por isso. Mas tenho a sensação de que Cato levou a distração. O
que não é difícil. com raiva na sua ridícula reação ao encontrar os suprimentos explodidos. Os
outros estavam irritados, é claro, mas ele estava completamente louco. Pergunto-me agora se
Cato não é inteiramente são.
O céu se ilumina com o selo, e observo Foxface brilhar no céu e então desaparecer do mundo
para sempre. Ele não disse, mas não acho que Peeta se sentiu bem a matando, mesmo sendo
essencial. Não posso fingir que sinto falta dela, mas tenho de admirá-la. Acho que, se eles
tivessem nos dado algum tipo de teste, ela teria sido a mais esperta de todos os tributos. Se,
de fato, nós tivéssemos colocado uma armadilha para ela, aposto que ela teria percebido e
fugido das bagas. Foi a própria ignorância de Peeta que a trouxe para baixo. Passou muito
tempo tendo certeza de subestimar meus oponentes que esqueci que superestimá-los é tão
perigoso quanto.
O que me trás de volta para Cato. Mas enquanto penso que compreendo Foxface, quem ela
era e como ela operava, ele é um pouco mais escorregadio. Poderoso, bem treinado, mas
esperto? Não sei. Não como ela era. E totalmente sem a falta de controle que Foxface
demonstrava. Acredito que Cato pode facilmente perder seu julgamento com o ajuste de
temperatura. Não que eu me sinta superior nesse ponto. Penso no momento em que mandei a
flecha voando até a maçã na boca do porco quando estava tão irada. Talvez eu entenda Cato
melhor do que penso.
Apesar da fadiga no meu corpo, minha mente está alerta, então deixo Peeta dormir mais que o
usual. De fato, um suave dia cinzento começa quando balanço seu ombro. Ele olha, quase em
alarme. "Eu dormi a noite toda. Isso não é justo, Katniss, você deveria ter me acordado."
Eu me estico e entro na bolsa. "Vou dormir agora. Acorde-me se algo interessante acontecer."
Aparentemente nada acontece, porque quando abro meus olhos, a luz gente e brilhante da
tarde atravessa as pedras. "Nenhum sinal do nosso amigo?" pergunto.
Peeta balança a cabeça. "Não, ele está mantendo um preocupante perfil baixo."
"Quanto tempo você pensa que teremos antes que os Gamemakers nos una?" pergunto.
"Bem, Foxface morreu há quase um dia, então já deu tempo para a audiência fazer suas
apostas e ficar entediada. Acho que pode acontecer a qualquer momento," diz Peeta.
"Sim, tenho o pressentimento de que hoje é o dia," digo. Sento-me e olho para o terreno
pacífico. "Pergunto-me como eles vão fazer."
Peeta permanece em silêncio. "Não há nenhuma boa resposta.
"Bem, até eles fazerem, não tem sentido perder tempo caçando hoje. Mas provavelmente
iremos comer o que pudermos para o caso de acontecer problemas," digo.
Peeta guarda nossas ferramentas enquanto preparo uma grande refeição. O resto dos coelhos,
raízes, verduras, e pedaços com o último pedaço de queijo. A única coisa que deixo de reserva
é o esquilo e a maçã.
Quando terminamos, tudo que resta é uma pilha de ossos do coelho. Minhas mãos estão
engorduradas, o que faz crescer minha sensação de imundice. Talvez nós não temos banho
diariamente em Seam, mas nos mantemos mais limpas do que isso. Exceto pelos meus pés,
que andaram no riacho, estou coberta de uma camada de sujeira.
Deixar a caverna dá uma sensação de finalização. Não acho que haverá outra noite na arena de
modo algum. De um modo ou outro, morta ou viva, tenho o pressentimento de que vou
escapar hoje. Dou as rochas um tapinha de adeus, e vamos para o rio para nos lavar. Posso
sentir minha pele, comichando com a água fria. Posso fazer meu cabelo e fazer uma trança.
Estou me perguntando se devemos ser capaz de dar numa rápida esfregada nas nossas roupas
quando chegamos ao riacho. Ou o que costumava ser um riacho. Agora há apenas uma cama
de ossos secos. Toco o chão para senti-lo.
"Nem mesmo um pouco úmido. Eles devem ter drenado-o enquanto dormíamos." Digo. Um
medo de língua rachada, corpo dolorido e mente confusa trazida pela minha desidratação
passada desliza na minha consciência. Nossas garrafas e peles estão bem cheias, mas com dois
goles e nesse sol quente não vai levar muito tempo para acabá-las.
"A lagoa," diz Peeta. "É para onde querem que nós nos dirijamos."
"Talvez os lagos ainda tenham alguma água," digo esperançosamente.
"Podemos verificar," diz, mas ele está apenas me animando. Estou tentando me animar,
porque sei o que encontrarei quando retornarmos para o lago onde molhei minha perna. A
boca aberta e empoeirada de um buraco. Mas fazemos a viagem de qualquer jeito, apenas
para confirmar o que nós já sabemos.
"Você está certo. Eles estão nos dirigindo para a lagoa," digo. Onde não há cobertura. Onde
eles garantiram uma luta sangrenta até a morte, como nada para bloquear sua visão. "Você
quer ir direto ou esperar até a água acabar?"
"Vamos agora, enquanto temos comida e estamos descansados. Vamos logo terminar com
isso," ele diz.
Assinto. É divertido. Quase sinto como se fosse o primeiro dia dos Games novamente. Que eu
estou na mesma posição. Vinte e um tributos estão mortos, mas ainda tenho de matar Cato. E
realmente, ele não era aquele a matar? Agora parece que os outros tributos foram apenas
pequenos obstáculos, distrações, afastando-nos da real batalha dos Games. Cato e eu.
Mas não, há um garoto esperando ao meu lado. Sinto seus braços ao meu redor.
"Dois contra um. Deve ser moleza," diz.
"Na próxima vez que comermos, será em Capitol," respondo.
"Pode apostar que sim," diz.
Ficamos ali por um momento, presos num abraço, sentindo um ao outro, a luz do sol, o
farfalhar das folhas aos nossos pés. Então sem uma palavra, nos separamos e caminhamos
para a lagoa.
Não me importo agora que os passos de Peeta façam os roedores correrem, os pássaros
voarem. Temos de lutar contra Cato e eu faria isso aqui ou na planície. Mas duvido que eu
tenha escolha. Se os Gamemakers nos querem no aberto, então no aberto estaremos.
Paramos para descansar por uns momentos sob uma árvore onde os profissionais me
emboscaram. A casca do ninho de tracker jacker, batida até a polpa pela chuva e secada pelo
sol, confirma a localização. Toco-o com a ponta da bota, e ela se dissolve em poeira que é
rapidamente carregada pela brisa. Não posso evitar olhar para as árvores onde Rue
secretamente estava, esperando para salvar minha vida. Tracker jackers. O corpo inchado de
Glimmer. As terríveis alucinações...
"Vamos," digo, esperando escapar da escuridão que rodeia esse lugar. Peeta não discute.
Dado ao nosso início atrasado do dia, quando chegamos à planície já está no início da noite.
Não há sinal de Cato. Nenhum sinal de nada, exceto a Corpucópia dourada brilhando nos raios
de sol oblíquos. Só para garantir que Cato decidiu empurrar Foxface contra nós, circulamos a
Cornucópia para ter certeza de que ela está vazia. Então obedientemente, como se seguindo
instruções, andamos até a lagoa e enchemos nossos recipientes de água.
Franzo as sobrancelhas ao sol recuando. "Não queremos brigar com ele depois de escurecer.
Há apenas um par de óculos."
Peeta cuidadosamente coloca gotas de iodo na água. "Talvez seja isso que ele esteja
esperando. O que você quer fazer? Voltar para a caverna?"
"Isso ou encontrar uma árvore. Mas vamos dar a ele mais meia hora. Então vamos recuar,"
respondo.
Sentamos perto da lagoa, à vista. Não há como se esconder agora. Nas árvores no limite da
planície, posso ver os mockingjays se movimentando. Jogando melodias de volta e adiante
entre eles, como brilhantes bolas coloridas. Posso senti-los parar curiosos ao som da minha
voz, escutando mais. Repito as notas no silêncio. Primeiro um mockingjay garganteia a canção
de volta, e depois outro. Então todo o mundo se torna vivo com o som.
"Bem como seu pai," diz Peeta.
Meus dedos encontram o alfinete na minha camisa. "É a música de Rue," digo. "Acho que eles
se lembram."
A música cresce e eu reconheço o esplendor disso. Enquanto as notas se sobrepõe, uma
complementando a outra, formando uma harmonia linda e misteriosa. Esse era o som, então,
graças a Rue, que mandava os trabalhadores do Distrito 11 para casa cada noite. Alguém vai
começá-la na parada, pergunto-me, agora que ela está morta?
Por um momento, apenas fecho meus olhos e escuto, hipnotizada com a beleza da música.
Então algo começa a atrapalhar a canção. Executa cortes irregulares, linhas imperfeitas. Notas
dissonantes intercalam com a melodia. As vozes dos mockingjays se elevam num grito de
alarme.
Estamos de pé, Peeta empunhando sua faca, eu posicionada para atirar, quando Cato aparece
pelas árvores e corre até nós. Ele não tem nenhuma lança. De fato, suas mãos estão vazias,
embora ele corra direto para nós. Minha primeira flecha atinge seu peito e inexplicavelmente
cai de lado.
"Ele tem algum tipo de armadura!" grito para Peeta.
Bem a tempo, também, porque Cato está sobre nós. Eu me abraço, mas ele corre entre nós
sem diminuir a velocidade. Posso dizer pela sua respiração ofegante, o suor escorrendo de seu
rosto purpúreo, que ele esteve correndo muito por um longo tempo. Não em nossa direção.
De algo. Mas o quê?
Meus olhos examinam a floresta bem na hora de ver a primeira criatura entrando na planície.
Quando estou me virando, vejo outra meia dúzia se reunindo. Então estou tropeçando
cegamente atrás de Cato com nenhum pensamento exceto me salvar.

25

Mutações. Sem dúvidas sobre isso. Eu nunca tinha visto esses cães, mas eles não são animais
nascidos naturalmente. Eles lembram lobos enormes, mas lobos se equilibram sobre as patas
traseiras? Lobos acenam para o resto do bando com a pata dianteira como se tivesse um
pulso? Essas coisas eu posso ver a distância. De perto, tenho certeza de que mais atributos
ameaçadores serão revelados.
Cato correu em linha direta para a Cornucópia, e sem perguntas eu o segui. Se ele pensa que é
o lugar mais seguro, quem sou eu para discutir? Além disso, mesmo que eu conseguisse correr
para a floresta, seria impossível para Peeta fazer esse caminho com aquela perna ­ Peeta!
Minhas mãos tinham acabado de tocar o metal da cauda pontuda da Cornucópia quando eu
me lembro de que sou parte de um time. Ele está uns quinze metros atrás de mim, coxeando o
mais rápido que consegue, mas os cães estão se aproximando rapidamente. Atirei uma flecha
no bando e um cai, mas há muitos outros para tomar seu lugar.
Peeta está acenando para eu subir o chifre, "Vá, Katniss! Vá!"
Ele está certo. Não posso proteger nenhum de nós no chão. Começo a subir, escalando a
Conucópia com minhas mãos e meus pés. A superfície de ouro puro foi desenhada para lembrar
o chifre curvado que nós enchemos na colheita, então há pequenas pontas e fendas para
conseguir se agarrar de maneira decente. Mas depois de um dia sob o sol da arena, o metal
está quente o bastante para queimar minhas mãos.
Cato está deitado no topo do chifre, sete metros acima do chão, lutando para recuperar o
fôlego enquanto ele vomita sobre a ponta. Agora é a minha chance de acabar com ele. Paro no
meio do caminho para cima do chifre e carrego outra flecha, mas quando estou quase
deixando-a voar, ouço Peeta gritar. Eu me viro e vejo que ele acabou de alcançar a cauda, e os
cães estão logo em sua cola.
"Suba!" grito. Peeta começa a subir atrasado não apenas pela sua perna, mas pela faca na sua
mão. Atiro uma flecha na garganta do primeiro mutante que chega ao metal. Enquanto morre
a criatura ataca, descuidosamente abrindo cortes em alguns de seus companheiros. É quando
eu olho para as garras. Dez centímetros e claramente bem afiadas.
Peeta alcança meus pés e eu agarro seu braço e o puxo para cima. Então eu me lembro de
Cato esperando no topo e me viro, mas ele está dobrado com câimbras e mais preocupado
com os cães do que conosco. Ele fala algo ininteligível. O som de aspiração e rosnados vindo
dos cães não está ajudando.
"O quê?!" Grito para ele.
"Ele disse, "Eles podem subir?'" responde Peeta, levando a minha atenção de volta para a base
do chifre.
Os cães estão começando a se reunir. Enquanto eles se juntam, eles se levantam novamente
para facilmente ficar de pé sobre suas patas traseiras, dando a eles um aspecto
assustadoramente humano. Cada um tem uma pele grossa, alguns com o pelo liso, outros
ondulados, e as cores variam de preto até o que posso descrever como loiro. Há algo neles,
algo que faz os cabelos na minha nuca se arrepiarem, mas não posso dizer o quê.
Eles colocam seus focinhos no chifre, cheirando e provando o metal, colocando as patas sobre
a superfície e fazendo sons agudos com a outra. Deve ser assim como eles se comunicam,
porque o bando recua como se aguardasse. Então um deles, um cão de bom tamanho com
pelos loiros macios e ondulados começa a correr e pula no chifre. As patas traseiras devem ser
incrivelmente poderosas, porque elas chegam a meros três metros abaixo de nós, seus lábios
rosados se repuxando para um ranger de dentes. Por um momento a coisa fica lá, e naquele
momento percebo o que me deixa incomodada nesses cães. Os olhos verdes brilhando
para mim não são de nenhum cão ou lobo, nenhum canino que eu tenha visto.
Eles são inconfundivelmente humanos. E essa revelação mal é registrada quando percebo a
coleira com o número 1 incrustado com jóias e o horror daquilo me atinge. O cabelo loiro, os
olhos verdes, o número... é Glimmer.
Um som agudo escapa dos meus lábios e tenho problemas para segurar a flecha no lugar. Eu
estive esperando por fogo, apenas consciente demais do meu suprimento diminuído de
flechas. Esperando ver se as criaturas podiam, de fato, subir. Mas agora, mesmo quando o cão
começou a deslizar para trás, incapaz de encontrar algum apoio no metal, mesmo quando eu
posso ouvir o lento rangido das garras como unhas no quadro, eu atiro em sua garganta. O seu
corpo se debate e cai no chão com uma pancada.
"Katniss?" Posso sentir o aperto de Peeta no meu braço.
"É ela!" grito.
"Quem?" pergunta Peeta.
Minha cabeça gira de lado a lado enquanto examino o bando, tomando os vários tamanhos e
cores. O pequeno com pele vermelha e olhos cor de âmbar... Foxface! E ali, o cabelo pálido e
olhos castanho-esverdeados do garoto do Distrito 9 que morreu quando nós lutamos pela
mochila! E, o pior de tudo, o menor cão, com pelo preto lustroso, grandes olhos castanhos e uma
coleira onde se lê 11 entalhado. Mostrando os dentes com ódio. Rue...
"O que é, Katniss?" Peeta balança meu ombro.
"São eles. Todos eles. Os outros. Rue e Foxface e... todos os outros tributos," eu sufoco.
Ouço Peeta arfar em reconhecimento. "O que eles fizeram a eles? Você não acha... que esses
podem ser os olhos deles de verdade?"
Os olhos deles são o que menos me preocupa. E os cérebros deles? Eles têm alguma memória
dos tributos reais? Eles foram programados para odiar nossos rostos particularmente porque
nós sobrevivemos e eles foram insensivelmente assassinados? E os que nós matamos de
verdade... eles acreditam que estarão vingando suas mortes?
Antes que eu consiga pensar nisso, os cães começam um novo assalto ao chifre. Eles se
dividiram em dois grupos nos lados no chifre e estão usando aquelas traseiras poderosas para
subirem. Um par de dentes se fecha a centímetros da minha mão e então ouço Peeta gritar,
sinto o balanço do seu corpo, o peso pesado do garoto e do cão puxando-me para o lado. Se não
fosse pelo suporte do meu braço, ele estaria no chão, mas enquanto a coisa está aqui em cima,
toma toda a minha força para nos manter na curva de trás do chifre. E mais tributos estão
vindo.
"Mate, Peeta! Mate!" Estou gritando, e embora não possa ver exatamente o que está
acontecendo, sei que ele deve ter escaqueado a coisa porque o aperto fica mais leve. Sou
capaz de puxá-lo de volta para o chifre onde nós nos agarramos em direção ao topo, onde nos
aguarda dois males menores.
Cato ainda não está de pé, mas sua respiração está mais lenta e sei que em breve ele vai se
recobrar o bastante para vir atrás de nós, para nos lançar para a morte. Eu armo meu arco,
mas a flecha acaba indo para um cão que só pode ser Thresh. Quem mais pularia tão alto?
Sinto um momento de alívio porque finalmente estamos acima da linha dos cães e eu acabo de
me virar para encarar Cato quando Peeta dá um solavanco ao meu lado. Tenho a certeza de
que o bando o pegou quando seu sangue respinga no meu rosto.
Cato está na minha frente, quase no extremo do chifre, segurando Peeta com uma gravata,
cortando seu ar. Peeta está arranhando o braço de Cato, mas fracamente, como se estivesse
confuso sobre se é mais importante respirar ou tentar conter o jorro de sangue que sai do buraco que um cão deixou na sua panturrilha.
Eu miro uma das minhas duas últimas flechas na cabeça de Cato, sabendo que não teria
nenhum efeito se fosse no seu tronco ou nos membros, que posso ver agora que estão
cobertos por um piro de roupa, uma malha cor de carne. Alguma armadura de ótima qualidade
do Capitol. Era isso que estava no seu saco no banquete? Armadura para se defender contra
minhas flechas? Bem, eles se esqueceram de mandar uma proteção para o rosto.
Cato apenas ri. "Atire em mim e ele cai comigo."
Ele está certo. Se eu atirar nele e ele cair sobre os cães, é certo que Peeta vai morrer com ele.
Chegamos a um beco sem saída. Não posso atirar em Cato sem matar Peeta, também. Ele não
pode matar Peeta sem a garantia de uma flecha no seu cérebro. Ficamos parados como
estátuas, procurando por uma saída.
Meus músculos estão tão tensos que parecem que vão se quebrar a qualquer momento. Meus
dentes estão cerrados duramente. Os cães ficaram quietos e a única coisa que posso ouvir é o
sangue batendo no meu ouvido bom.
Os lábios de Peeta estão ficando azuis. Se eu não fizer algo rapidamente, ele vai morrer de
asfixia e então eu o perderei e Cato provavelmente vai usar seu corpo como uma arma contra
mim. Na verdade, tenho certeza de que esse será o plano de Cato, porque quando ele pára de rir, seus lábios formam um sorriso triunfante.
Como se fosse seu último esforço, Peeta levanta seus dedos, pingando sangue de sua perna,
até o braço de Cato. Em vez de tentar se livrar do aperto, seus dedos mudam de direção e
fazem um deliberado X sobre a parte de trás da mão de Cato. Cato percebe o que isso significa
exatamente um segundo depois de mim. Posso dizer pelo modo como seu sorriso desapareceu
de seus lábios. Mas é um segundo tarde demais porque, nessa hora, minha flecha está
perfurando sua mão. Ele grita e por reflexo liberta Peeta, que bate contra ele. Por um
momento terrível, penso que os dois vão cair. Eu corro para agarrar Peeta enquanto Cato
perde o equilíbrio no chifre úmido de sangue e cai no chão.
Nós o ouvimos cair, o ar deixando seu corpo com o impacto, e então os cães o atacam. Peeta e
eu nos abraçamos, esperando pelo canhão, esperando que a competição acabe, esperando
sermos libertados. Mas isso não acontece. Não ainda. Porque esse é o clímax dos Hunger
Games, e a audiência espera um show.
Eu não assisto, mas posso ouvir o ranger dos dentes, os rosnados, os uivos de dor tanto
humano quanto de besta enquanto Cato avança sobre o bando de cães. Não posso entender
como ele pode estar sobrevivendo até que me lembro da armadura o protegendo dos tornozelos até o pescoço e percebo como a noite pode ser longa. Cato deve ter uma
faca ou
uma espada ou alguma coisa, também, alguma coisa que ele tenha escondido nas suas roupas,
porque de vez em quando há um grito de morte de um cão ou o som de metal quando lâminas
colidem com o chifre de ouro. O combate continua ao lado da Cornucópia, e sei que Cato deve
estar tentando fazer uma manobra que pode salvar a sua vida ­ voltar para a cauda do chifre e
se reunir a nós. Mas no final, apesar das suas força e habilidade notáveis, ele é simplesmente derrotado.
Não sei quanto tempo se passa, talvez uma hora ou mais, quando Cato cai no chão e ouvi os
cães o agarrando, levando-o para dentro da Cornucópia. Agora vão acabar com ele, penso.
Mas ainda não há nenhum canhão.
Cai a noite e o hino toca e não há nenhuma imagem de Cato no céu, apenas os gemidos fracos
vindo do metal debaixo de nós. O ar gelado soprando pela planície me lembra de que os
Games não acabaram e podem não acabar por sabe-se lá quanto tempo, e ainda não há
garantia de vitória.
Viro minha atenção a Peeta e percebo que a perna dele está sangrando pior que nunca. Todos
os nossos suprimentos, nossas mochilas, permaneceram embaixo perto do lago, onde nós os
abandonamos quando corremos dos cães. Não tenho bandagens, nada para parar o fluxo de
sangue da sua panturrilha. Embora eu esteja tremendo com o vento cortante, tiro minha
jaqueta, removo minha blusa, e fecho minha jaqueta o mais rápido possível. Aquela breve
exposição faz com que meus dentes tremam além do meu controle.
O rosto de Peeta está pálido sob a luz da lua. Eu o faço deitar-se antes de sondar sua ferida.
Sangue escorregadio e quente corre pelos meus dedos. Uma bandagem não é suficiente. Eu vi
minha mãe amarrar um torniquete um punhado de vezes e tento replicá-lo. Corto uma manga
da minha camisa, enrolo duas vezes ao redor da sua perna bem debaixo do seu joelho, e faço
um nó. Eu não tenho uma vareta, então pego meu arco e insiro no nó, girando-o o mais
apertado que ouso. É um negócio arriscado ­ Peeta pode acabar perdendo sua perna ­ mas
quando eu peso isso com perder sua vida, que alternativa eu tenho? Eu enfaixo sua ferida com
o resto da minha camisa e me deito ao seu lado.
"Não durma," digo a ele. Não tenho certeza se isso é exatamente um protocolo médico, mas
tenho medo de que, se ele durma, ele nunca irá acordar novamente.
"Você está com frio?" ele pergunta. Ele abre o zíper da sua jaqueta e me pressiono contra ele
quando ele o fecha ao meu redor. É um pouco mais quente, dividir o calor dos nossos corpos
dentro da minha dupla camada de jaquetas, mas a noite é uma criança. A temperatura vai continuar a cair.
Mesmo agora posso sentir a Cornucópia, que queimava quando eu subi pela primeira vez,
lentamente virando gelo.
"Cato pode ganhar essa coisa ainda," sussurro para Peeta.
"Não acredite nisso," ele diz, puxando meu corpo, mas ele está tremendo mais do que eu.
As horas seguintes são as piores da minha vida, o que se você pensar bem significa muita coisa.
O frio pode torturar o bastante, mas o pesadelo real é escutar Cato, gemendo, implorando, e
finalmente apenas choramingando enquanto os cães trabalhavam nele. Depois de muito
pouco tempo, eu não me importo mais com quem ele é ou o que ele fez, tudo que quero é que
ele pare de sofrer.
"Por que eles apenas não o matam?" pergunto a Peeta.
"Você sabe por que," diz, e me puxa mais para perto.
E eu sei. Nenhum telespectador daria as costas para o show agora. Do ponto de vista dos
Gamemakers, essa é a última palavra em entretenimento.
E continua e continua e eventualmente consume completamente a minha mente, bloqueando
memórias e esperanças de um amanhã, apagando tudo além do presente, que começo a
acreditar que nunca vai mudar. Nunca haverá nada além de frio, medo e os sons agonizantes
do garoto morrendo no chifre.
Peeta começa a dormir agora, e em cada vez que faz, eu me encontro gritando seu nome cada
vez mais alto, porque se ele morrer agora, sei que provavelmente vou ficar completamente
insana. Ele está lutando, provavelmente mais por mim do que por ele, e é difícil porque
inconsciência seria uma forma própria de escapar. Mas a adrenalina que palpita pelo meu
corpo nunca iria me permitir segui-lo, então não posso deixá-lo. Eu apenas não posso.
A única indicação da passagem do tempo estava no céu, o sutil movimento da lua. Então Peeta
começa a apontá-lo para mim, insistindo que sei seu progresso e às vezes, por um momento,
sinto um brilho de esperança antes que a agonia da noite me engula novamente.
Finalmente, ouço-o sussurrar que o sol está subindo. Abro meus olhos e encontro estrelas
desaparecendo na luz pálida do amanhecer. Posso ver, também, como o rosto de Peeta se
tornou pálido. Como é pouco o tempo que ele tem. E sei que tenho de levá-lo de volta para o Capitol.
Ainda assim, o canhão não atira. Pressiono meu ouvido bom contra o chifre e posso ouvir a voz dele.
"Acho que ele está mais perto agora. Katniss, você pode atirar nele?" Peeta pergunta.
Se ele estiver perto da boca, posso ser capaz. Seria um ato de misericórdia a esse ponto.
"Minha última flecha está no seu torniquete," digo.
"Faça-o valer," diz Peeta, abrindo o zíper da sua jaqueta, deixando-me livre.
Então eu tiro a flecha, tentando colocar o torniquete de volta o mais apertado que meus dedos
congelados são capazes. Esfrego minhas mãos, tentando ganhar circulação. Quando eu rastejo
até o extremo do chifre e fico na ponta, sinto as mãos de Peeta me dando suporte.
Leva alguns momentos para encontrar Cato na luz turva, no sangue. Então a massa de carne
crua que costumava ser nosso inimigo faz um som, e sei onde sua boca está. E acho que o que
ele está tentando dizer é por favor.
Pena, não vingança, manda a flecha até seu crânio. Peeta me puxa de volta, arco na mão,
bainha vazia.
"Você conseguiu?" ele sussurra.
O tiro do canhão é a resposta.
"Então ganhamos, Katniss," ele diz de forma vazia.
"Viva para nós," solto, mas não há o prazer de vitória na minha voz.
Um buraco se abre na planície como se fosse combinado, o restante dos cães entram nele,
desaparecendo como se a terra se fechasse acima deles.
Nós esperamos pelo aerobarco para tomar os restos de Cato, pelas trombetas da vitória que
deveriam se seguir, mas nada acontece.
"Hey!" grito para o ar. "O que está acontecendo?" a única resposta é a vibração dos pássaros
acordando.
"Talvez seja o corpo. Talvez tenhamos de nos distanciar," diz Peeta.
Tento me lembrar. Você tem de se distanciar do tributo morto na morte final? Meu cérebro
está muito confuso para ter certeza, mas qual seria a outra razão para a demora?
"Ok. Acha que pode conseguir chegar até o lago?" pergunto.
"Acho que é melhor tentar," diz Peeta. Descemos pela cauda do chifre e caímos no chão. Se a
rigidez dos meus membros é assim ruim, como Peeta pode se mover? Eu me levanto primeiro,
balançando e curvando meus braços e pernas até que acho que posso ajudá-lo a se levantar.
De alguma forma, nós chegamos ao lago. Eu dou um punhado de água gelada para Peeta e trago o segundo para mim.
Um mockingjay dá um assobio longo e baixo, e lágrimas de alívio enchem meus olhos quando
o aerobarco aparece e leva o corpo de Cato. Agora eles vão nos levar. Agora podemos ir para casa.
Mas novamente não há nenhuma resposta.
"O que eles estão esperando?" diz Peeta fracamente. Entre a perda do torniquete e o esforço
de andar até o lago, sua ferida se abriu novamente.
"Eu não sei," digo. Seja o que for, não posso vê-lo perder mais sangue. Eu me levanto para
encontrar um pedaço de pau, mas quase imediatamente encontro a flecha que ricocheteou na
armadura de Cato. Isso acontece com a outra flecha. Quando eu me inclino para pegá-las, a
voz de Claudius Templesmith explode na arena.
"Saudações aos finalistas do septuagésimo quarto Hunger Games. A mudança anterior foi
revogada. Uma análise mais atenta às regras revelou que apenas um vencedor está
autorizado," diz. "Boa sorte e que as chances estejam em seu favor."
Há um pequeno barulho de estática e então nada mais. Eu fito Peeta com descrença enquanto
a verdade começa a fazer sentido. Eles nunca tiveram a intenção de deixar nós dois vivos. Isso
tudo foi planejado pelos Gamemakers para garantir o confronto mais dramático da história. E
como uma tola, caí nessa.
"Se você pensar bem, isso não é uma surpresa," ele diz suavemente. Observo como ele
dolorosamente consegue ficar de pé. Então ele está andando na minha direção, como se fosse
em câmera lenta, sua mão está puxando a faca do seu cinto ­
Antes que eu esteja consciente das minhas ações, meu arco está carregado com a flecha
apontada para o seu coração. Peeta levanta suas sobrancelhas e vejo que a faca já não está
mais em sua mão, e sim caiu na água. Deixo minha arma cair e dou um passo para trás, meu
rosto queimando em o que só pode ser vergonha.
"Não," diz. "Faça." Peeta manca em minha direção e coloca a arma de volta em minhas mãos.
"Não posso," digo. "Não vou."
"Faça. Antes que eles mandem aqueles mutantes de volta ou algo do tipo. Não quero morrer
como Cato," ele diz.
"Então você atira em mim," digo furiosa, empurrando a arma de volta para ele. "Você atira em
mim e vai para casa e viva com isso" E quando eu digo, sei que a morte agora mesmo seria
mais fácil que viver com isso.
"Você sabe que eu não posso," Peeta diz, jogando fora a arma. "Ótimo, vou primeiro, de
qualquer forma." Ele se inclina para baixo e retira sua bandagem, eliminando a barreira final
entre seu sangue e a terra.
"Não, você não pode se matar," digo. Estou de joelhos, cobrindo desesperadamente a
bandagem sobre sua ferida.
"Katniss," ele diz. "É o que eu quero."
"Você não vai me deixar aqui sozinha," digo. Porque se ele morrer, eu nunca irei para casa,
nunca realmente. Vou passar o resto da minha vida nessa arena tentando pensar na minha
saída.
"Escute," ele diz me puxando para eu ficar de pé. "Nós dois sabemos que eles precisam ter um
vencedor. E só pode ser um de nós. Por favor, faça isso. Por mim." E ele começa a falar o
quanto me ama, o que a vida seria sem mim, mas eu parei de escutar porque suas palavras
anteriores estão presas na minha cabeça, girando desesperadamente.
Nós dois sabemos que eles precisam ter um vencedor.
Sim, eles precisam ter um vencedor. Sem um vencedor, toda a coisa seria jogada na cara dos
Gamemakers. Eles teriam falhado com o Capitol. Possivelmente seriam executados, lenta e
dolorosamente, enquanto as câmeras exibiriam cada imagem em todo o país.
Se Peeta e eu morrêssemos, ou eles pensassem que iríamos morrer...
Meus dedos se atrapalham com a bolsa no meu cinto, soltando-a. Peeta vê e suas mãos
agarram meu pulso. "Não, não vou te deixar."
"Confie em mim," sussurro. Ele segura meu olhar por um longo tempo antes de me soltar. Eu
solto a parte superior da bolsa e coloco um punhado de bagas na sua mão. Então encho a
minha. "No três?"
Peeta se inclina para baixo e me beija uma vez, muito gentilmente. "No três," diz.
Ficamos de pé, costas contra costas, nossas mãos vazias apertando uma do outro.
"Mostre-os. Quero que todos vejam," diz.
Eu estendo meus dedos, e as bagas escuras brilham ao sol. Dou um último aperto na mão de
Peeta como um sinal, ou um adeus, e começamos a contar. "Um." Talvez eu esteja errada.
"Dois." Talvez eles não se importem se nós morrêssemos. "Três!" É tarde demais para mudar
de idéia. Levanto minha mão para minha boca, lançando um último olhar para o mundo. AS
bagas acabam de passar pelos meus lábios quando as trombetas começam a tocar.
A voz frenética de Claudius Templesmith grita acima delas. "Parem! Parem! Damas e
cavalheiros, tenho o prazer de apresentar os vencedores dos septuagésimo quarto Hunger
Games, Katniss Everdeen e Peeta Mellark! Dou-lhes ­ os tributos do Distrito Doze!"

26

Eu cuspi as bagas da minha boca, limpando minha língua com a ponta da minha camisa para
ter certeza de que nenhum suco permaneça. Peeta me puxa para o lago onde nós dois
limpamos nossas bocas com água, e então caímos um nos braços do outro.
"Você não engoliu nada?" pergunto a ele.
Ele balança a cabeça. "Você?"
"Acho que estaria morta agora se tivesse," digo. Posso ver seus lábios se movendo em
resposta, mas não posso escutá-lo acima do rugido da multidão no Capitol que está tocando
ao vivo pelos autofalantes.
O aerobarco se materializa acima de nossas cabeças e duas escadas caem, só que não há
chance de eu deixar Peeta. Eu mantenho um braço ao redor dele enquanto o ajudo a subir, e
nós dois colocamos um pé no primeiro degrau da escada. A corrente elétrica nos congela no
lugar, e dessa vez estou satisfeita porque não tenho certeza de que Peeta pode subir o resto
da escada. E visto que meus olhos estão olhando para baixo, posso ver que enquanto nossos
músculos estão imóveis, nada está impedindo que o sangue seja drenado da perna de Peeta.
Como previsto, no minuto em que a porta se fecha atrás de nós e a corrente pára, ele cai no
chão inconsciente.
Meus dedos ainda estão agarrando a parte de trás de sua jaqueta tão fortemente que quando
o levam fica um punhado de tecido preto na minha mão. Médicos num branco estéril, com
máscaras e luvas, já preparados para operar, entram em ação. Peeta está tão pálido e imóvel
na mesa de prata, tubos e fios brotam dele de todas as maneiras, e por um momento me
esqueço de que estamos fora dos Games e vejo os médicos como mais uma ameaça, mais
um grupo de mutts designados a matá-lo. Petrificada, eu corro até ele, mas sou pega e jogada
em outro quarto, e uma porta de vidro se fecha entre nós. Eu bato o vidro, gritando. Todos me
ignoram exceto um atendente do Capitol que aparece atrás de mim e me oferece uma bebida.
Eu caio no chão, meu rosto contra a porta, encarando sem compreender a taça na minha mão.
Suco gelado de laranja, com um canudo enfeitado. Quão errado parece na minha mão suja e
cheia de sangue com unhas imundas e cicatrizes. Fico com água na boca com o cheiro, mas o
coloco cuidadosamente no chão, não confiando em algo tão limpo e bonito.
Através do vidro, vejo os médicos trabalhando com ardor em Peeta, seus rostos vincados em
concentração. Vejo o fluxo de líquidos, extraídos pelos tubos, observo a parede de indicadores
e luzes que significam nada para mim. Não estou certa, mas acho que o coração dele parou
duas vezes.
É como estar em casa de novo, quando eles trazem uma pessoa irremediavelmente mutilada
de uma explosão da mina, ou uma mulher em seu terceiro dia de trabalho de parto, ou uma
criança faminta lutando contra a pneumonia e minha mãe e Prim, elas usam essa mesma
expressão em seus rostos. Agora é a hora de correr para a floresta, para se esconder nos
bosques até que o paciente tenha se ido há algum tempo e em outra parte de Seam os
carpinteiros façam o caixão. Mas estou presa aqui tanto pelas paredes do aero-barco como
pela mesma força que mantém os entes queridos da morte. Quantas vezes eu os vi, andando
ao redor da nossa mesa da cozinha e eu pensava, Por que eles não vão embora? Por que eles
ficam para assistir?
E agora eu sei. É porque você não tem escolha.
Eu me assusto quando pego alguém me encarando a apenas alguns centímetros de distância e
então percebo que é meu próprio rosto sendo refletido pelo vidro. Olhos selvagens, bochechas
encovadas, meu cabelo emaranhado. Violenta. Selvagem. Louca. Sem dúvidas todos estão a
uma distância segura de mim.
A próxima coisa que sei é que estamos pousando no teto do Centro de Treinamento e eles
estão levando Peeta, mas me deixando atrás da porta. Eu começo a me atirar contra o vidro,
gritando e eu acho que pego um relance de um cabelo rosa ­ deve ser Effie, tem de ser Effie
vindo me resgatar ­ quando sou picada por uma agulha pelas costas.
Quando acordo, temo me mover a princípio. Todo o teto brilha com uma luz amarela suave, permitindo que eu veja que estou num quarto que contém apenas minha cama.
Sem portas,
sem janelas visíveis. O ar tem um odor de algum picante e anti-séptico. Meu braço direito tem
alguns tubos que se estendem através da parede atrás de mim. Estou nua, mas as roupas de
cama são suaves contra minha pele. Eu temporariamente levanto minha mão esquerda acima
da coberta. Não foi apenas limpa, minhas unhas estão perfeitamente ovais, as cicatrizes de
queimaduras estão menos proeminentes. Toco minha bochecha, meus lábios, a cicatriz
enrugada acima da minha sobrancelha, e estou apenas correndo meus dedos através do meu
cabelo sedoso quando congelo. Com apreensão, despenteio o cabelo acima de meu ouvido
esquerdo. Não, não foi uma ilusão. Posso ouvir novamente.
Tento me sentar, mas algum tipo de larga tira de retenção ao redor da minha cintura me
impede de me levantar mais que alguns centímetros. O confinamento físico me deixa em
pânico e tento me levantar e livrar meus quadris através da tira quando uma porção de parede
se abre e entra a Avox ruiva carregando uma bandeja. Vê-la me acalma e paro de tentar
escapar. Quero fazer a ela um Milhão de perguntas, mas temo que alguma familiaridade cause
algum dano a ela. Obviamente estou sendo monitorada de perto. Ela coloca a bandeja sobre
minhas coxas e pressiona algo que me eleva para a posição sentada. Enquanto ela ajusta meus
travesseiros, arrisco uma pergunta. Digo alto, tão claro quanto minha voz enferrujada permita,
assim nada pareça ser um código. "Peeta conseguiu?" Ela assente para mim, e quando desliza
uma colher na minha mão, sinto uma pressão de amizade.
Acho que ela não queria que eu morresse, apesar de tudo. E Peeta conseguiu. Claro que
conseguiu. Com todos esses equipamentos caros aqui. Ainda assim, não tinha certeza até
agora.
Quando a Avox sai, a porta se fecha silenciosamente atrás dela e me viro faminta para a
bandeja. Uma tigela de caldo, uma pequena porção de maçã, e um copo de água. É isso?
Penso, irritada. Meu Jantar de retorno a casa não deveria ser um pouco mais espetacular? Mas
descubro que é um esforço terminar a refeição ante a mim. Meu estômago parece ter uma
contração do tamanho de um cavalo, e tenho de imaginar quanto tempo estive fora, porque
não tive problemas em comer um café da manhã de um tamanho razoável naquela última
manhã na arena. Há geralmente um intervalo de poucos dias entre o fim da competição e a
apresentação do vencedor, para que eles possam colocar a pessoa faminta, ferida e acabada
de volta ao normal. Em algum lugar, Cinna e Portia estarão criando nossas vestes para as
aparições públicas. Haymitch e Effie estarão arranjando o banquete para nossos
patrocinadores, revisando as perguntas para nossa entrevista final. De volta a casa, o Distrito
12 provavelmente está um caos enquanto eles tentam organizar celebrações de boas vindas
para mim e para Peeta, dado que a última celebração desse tipo foi há quase trinta anos.
Casa! Prim e minha mãe! Gale! Até a lembrança do gato velho e imundo de Prim me trás um
sorriso. Em breve estarei em casa!
Quero sair dessa cama. Para ver Peeta e Cinna, para descobrir mais sobre o que está
acontecendo. E por que eu não deveria? Estou bem. Mas quando eu tento começar meu
caminho fora da tira, sinto um líquido frio entrando na minha veia de um dos tubos e quase
imediatamente perco a consciência.
Isso continua a acontecer por uma quantia indeterminada de tempo. Eu acordando, comendo,
e, embora resista ao impulso de tentar escapar da cama, sendo nocauteada novamente.
Pareço estar num crepúsculo contínuo e estranho. Registrando apenas algumas coisas. A Avox
ruiva que não retornou desde a alimentação, minhas cicatrizes desaparecendo, e eu estou
imaginando? Ou realmente ouço a voz de um homem gritando Não com o sotaque de Capitol,
mas com o ritmo áspero de casa. E não posso evitar ter uma vaga e confortante sensação de
que alguém está cuidando de mim.
Então finalmente, a hora chega quando eu acordo e não há nada enfiado no meu braço
direito. A restrição ao redor da minha cintura foi retirada e estou livre para me mover. Começo
a me sentar, mas estou presa pela visão das minhas mãos. A perfeição da pele, macia e
brilhante. Não só as cicatrizes da arena se foram, como também aquelas que foram
acumuladas ao longo dos anos caçando tinham sumido sem deixar rastro. Minha testa parecia
cetim, e quando tento encontrar a queimadura na minha panturrilha, não há nada.
Deslizo minhas pernas para fora da cama, nervosa por não saber se elas iriam suportar meu
peso, mas elas estão fortes e firmes. Situado ao pé da cama há um traje que me faz hesitar. É
o que todos nós, tributos, usamos na arena. Olho para ele como se ele tivesse dentes até eu
me lembrar de que, é claro, isso é o que vou usar para cumprimentar minha equipe.
Estou vestida em menos de um minuto e inquieta defronte para a parede onde sei que há uma
porta, mesmo que eu não possa vê-la, quando de repente ela se abre. Entro num corredor
amplo e deserto que não parecia ter portas. Mas deve ter. E atrás de uma delas deve estar
Peeta. Agora que estou consciente e me movendo, fico mais e mais ansiosa por causa dele. Ele
deve estar bem ou então a Avox não teria dito aquilo. Mas preciso vê-lo por mim mesma.
"Peeta!" grito, já que não há ninguém para perguntar. Ouço meu nome em resposta, mas não
é a voz dele. É uma voz que me provoca primeiro irritação e depois entusiasmo. Effie.
Eu me viro e vejo todos eles esperando numa grande sala ao fim do corredor ­ Effie, Haymitch,
e Cinna. Meus pés se movem sem hesitação. Talvez um vencedor deveria mostrar mais
moderação, mais superioridade, especialmente quando ela sabe que isso estará na gravação,
mas não me importo. Corro para eles e me surpreendo quando me lanço nos braços do
Haymitch primeiro. Quando ele sussurra no meu ouvido, "Bom trabalho, querida," não soa
sarcástico. Effie está a beira das lágrimas e fica tocando no meu cabelo e falando sobre como
ela disse para todos que nós éramos pérolas. Cinna apenas me abraça com força e não diz
nada. Então percebo que Portia está ausente e sinto um mal pressentimento.
"Onde está Portia? Ela está com Peeta? Ele está bem, não está? Quero dizer, ele está vivo?" Eu
falo sem pensar.
"Ele está ótimo. Só que elas querem que vocês se encontrem apenas na cerimônia," diz
Haymitch.
"Ah. É isso," digo. O momento terrível pensando na morte de Peeta passa. "Acho que queria
vê-lo por mim mesma."
"Vá com Cinna. Ele tem de te deixar pronta," diz Haymitch.
É um alívio estar sozinha com Cinna, sentir seu braço protetor ao redor dos meus ombros
quando ele me leva para longe das câmeras, por algumas passagens e para um elevador que
vai até o corredor do Centro de Treinamento. O hospital é muito mais abaixo, até abaixo do
ginásio onde os tributos praticaram amarrando cordas e atirando lanças. As janelas do
corredor estão escuras, e um punhado de guardas está em serviço. Ninguém mais está lá para
nos ver entrar no elevador dos tributos. Nossos passos ecoam no vazio. E quando subimos
para o décimo segundo andar, os rosto de todos os tributos que nunca retornarão passam pela
minha cabeça e há um peso no meu peito.
Quando as portas do elevador se abrem, Venia, Flavius e Octavia me engolem, falando tão
rapidamente e com êxtase que não posso acompanhar suas palavras. O sentimento está claro,
porém. Eles estão verdadeiramente excitados por me ver e estou feliz por vê-los, também,
embora não como eu estava quando vi Cinna. É mais na forma como alguém ficaria feliz de ver
um trio de animaizinhos ao fim de um dia particularmente difícil.
Eles me levaram a uma sala de Jantar e tive uma refeição de verdade ­ bife assado, ervilhas e
pãezinhos ­ embora minhas porções ainda estivessem sendo bem controladas. Porque quando
eu pedi o segundo prato, levei um não.
"Não, não, não. Eles não querem que você vomite tudo no palco," diz Octavia, mas
secretamente ela desliza um pãozinho extra sob a mesa para eu saber que ela estava do meu
lado.
Voltamos para o meu quarto e Cinna desaparece por um momento enquanto a equipe me
deixa pronta.
"Ah, eles cuidaram do seu corpo inteiro," diz Flavius com inveja. "Nem uma falha foi deixada
na sua pele."
Mas quando olho para meu corpo nu refletido no espelho, tudo que posso ver é o quão magra
estou. Quero dizer, tenho certeza de que eu estava pior quando saí da arena, mas posso
facilmente contar minhas costelas.
Eles cuidam das configurações do chuveiro para mim, e vão trabalhar no meu cabelo, unhas e
maquiagem quando eu termino o banho. Eles tagarelam tão continuamente que quase não
tenho de responder, o que é bom, visto que não sou muito faladora. É divertido, porque
embora eles estejam falando sobre os Games, é só sobre onde eles estavam ou o que eles
estavam fazendo ou como eles se sentiram quando um evento específico aconteceu. "Eu ainda
estava na cama!" "Eu tinha acabado de pintar o meu cabelo!" "Juro que eu quase desmaiei!"
Tudo é sobre eles, não sobre garotos e garotas morrendo na arena.
Nós não chafurdamos em torno dos Games dessa maneira no Distrito 12. Nós cerramos nossos
dentes e assistimos porque devemos e tentamos voltar para nosso trabalho logo que eles
acabam. Para não odiar a minha equipe, eu ignoro a maioria das coisas que eles dizem.
Cinna volta com o que parece ser um despretensioso vestido amarelo nos braços.
"Você desistiu de toda aquela coisa de "garota em chamas'?" pergunto.
"De fato," ele diz, e o desliza pela minha cabeça. Imediatamente percebo o enchimento sobre
meus seios, acrescentando curvas que a fome roubou do meu corpo. Minhas mãos vão ao meu
peito e eu franzo as sobrancelhas.
"Eu sei," diz Cinna antes que eu possa falar algo. "Mas os Gamemakers queriam alterar você
cirurgicamente. Haymitch fez uma grande briga para evitar isso. Isso foi o prometido." Ele me
para antes que eu olhe para meu reflexo. "Espere, não se esqueça dos sapatos." Venia me
ajuda a colocar um par de sandálias de couro baixas e me viro para o espelho.
Eu ainda sou a "garota em chamas". O tecido brilha suavemente. Até o movimento de ar mais
leve ondula pelo meu corpo. Em comparação, o traje da carruagem parece extravagante, o
vestido da entrevista muito artificial. Nesse vestido, dou a ilusão de estar vestida à luz de velas.
"O que você acha?" pergunta Cinna.
"Acho que é melhor," digo. Quando consigo tirar meus olhos do tecido brilhante, tenho um
choque. Meu cabelo está frouxo, preso num simples elástico. A maquiagem arredonda e
preenche os ângulos magros do meu rosto. Um esmalte claro está sobre minhas unhas. O vestido
sem mangas se agarra às minhas costelas, e não à minha cintura, eliminando em grande
quantidade a necessidade de enchimento no meu corpo. A bainha cai até meus joelhos. Sem
saltos, você pode ser da minha estatura. Eu pareço muito simples, como uma garota. Uma garota
jovem. Quatorze anos, no máximo. Inocente. Inofensiva. Sim, é um choque que Cinna tenha
imaginado isso quando você se lembra de que eu acabei de ganhar os Games.
Essa é uma aparência bem calculada. Nada que Cinna desenha é arbitrário. Mordo meu lábio tentando imaginar sua motivação.
"Pensei que seria algo mais... sofisticado," digo.
"Eu achei que Peeta gostaria mais disso," ele responde cuidadosamente.
Peeta? Isso não tem nada a ver com Peeta. Tem a ver com o Capitol, os Gamemakers e a
audiência. Embora eu ainda não tenha entendido a idéia de Cinna, é um lembrete de que os
Games ainda não terminaram. E debaixo da sua resposta agradável, sinto um aviso. De algo
que ele não pode nem mencionar em frente a nossa própria equipe.
Tomamos o elevador para o nível onde fomos treinados. É costumeiro o vencedor e seu time
de suporte subir de debaixo do palco. Primeiro a equipe, seguida pela escolta, o estilista, o
mentor, e finalmente o vencedor. Apenas nesse ano, com dois vencedores que dividem a
mesma escolta e o mesmo mentor, toda a coisa tem de ser repensada. Eu me encontro numa
área pouco iluminada debaixo do palco. Uma nova placa de metal foi instalada para nos levar
para cima. Você ainda pode ver pequenas pilhas de serragem, cheirar a pintura fresca. Cinna e
a equipe vestem seus próprios trajes e tomam suas posições, deixando-me sozinha. Na
escuridão, vejo uma parede improvisada a uns dez metros e assumo que Peeta está do outro lado.
O barulho da multidão é alto, por isso não percebo Haymitch até ele me tocar no ombro. Dou
um pulo, assustada, ainda meio na arena, acho.
"Calma, sou só eu. Deixe-me dar uma olhada em você," Haymitch diz. Estendo meus braços e
dou uma volta. "Bom o bastante."
Isso não é muito um elogio. "Mas o quê?" digo.
Haymitch olha em volta do espaço mofado, e parece tomar uma decisão. "Mas nada. Que tal
um abraço para dar sorte?"
Ok, esse é um pedido estranho para Haymitch, mas, depois de tudo, somos vencedores. Talvez
um abraço para dar sorte seja regular. Mas, quando coloco meus braços ao redor do seu
pescoço, encontro-me emboscada em seu abraço. Ele começa a falar, muito rápido, bem
baixinho no meu ouvido, meu cabelo ocultando seus lábios.
"Escute. Vocês estão com problemas. Dizem que o Capitol está furioso por vocês se exibirem
na arena. A única coisa que eles não podem suportar é ser alvo de piada por toda a Panem,"
diz Haymitch.
Sinto medo me percorrer, mas dou uma risada como se Haymitch estivesse dizendo algo
completamente deleitoso porque nada está cobrindo minha boca. "E agora?"
"A única defesa de vocês é que vocês estavam completamente apaixonados e não eram
responsáveis pelos seus atos." Haymitch se afasta e ajusta minha liga de cabelo. "Entendeu,
querida?" Ele poderia estar falando sobre qualquer coisa agora.
"Sim," digo. "Você disse isso a Peeta?"
"Eu não tenho de dizer," diz Haymitch. "Ele já está."
"Mas você acha que eu não estou?" digo, tomando a oportunidade para ajustar a brilhante
gravata vermelha que Cinna deve tê-lo forçado a usar.
"Desde quando importa o que eu acho?" diz Haymitch. "Melhor tomar nossos lugares." Ele me
leva até o círculo metálico. "Essa é a sua noite, querida. Aproveite." Ele beija minha testa e
desaparece na escuridão.
Agarro minha saia, querendo que ela seja mais longa, querendo que ela cubra o tremor do
meu joelho. Então percebo que é inútil. Todo o meu corpo está tremendo como uma folha.
Esperançosamente, deve ser por causa da minha excitação. Afinal, essa é a minha noite.
O cheiro úmido e mofado ameaça me sufocar debaixo do palco. Um suor frio e pegajoso brota
da minha pele e não posso evitar sentir que as tábuas acima da minha cabeça vão desabar,
enterrar-me viva sob o entulho. Quando deixei a arena, quando as trombetas tocaram, eu
deveria estar salva. A partir de então. Pelo resto da minha vida.
Mas se o que Haymitch falou é verdade, e ele não tem razão para mentir, eu nunca estive em
um lugar tão perigoso na minha vida.
É bem pior que ser caçada na arena. Ali, eu poderia apenas morrer. Fim da história. Mas aqui
fora, Prim, minha mãe, Gale, as pessoas do Distrito 12, todo mundo com que eu me importo
poderiam ser punidas se eu não conseguisse fingir ser a garota-completamente-apaixonada que Haymitch sugeriu.
Então eu ainda tenho uma chance, entretanto. Engraçado, na arena, quando eu peguei aquelas
bagas, eu estava apenas pensando em enganar os Gamemakers, não em como minhas ações
iriam refletir no Capitol. Mas os Hunger Games são a arma deles e você não deveria ser capaz
de derrotá-la. Então agora o Capitol vai agir como se estivesse no controle o tempo todo.
Como se eles tivessem orquestrado todo o evento, até o suicídio duplo. Mas isso só vai
funcionar se eu fingir com eles.
E Peeta... Peeta vai sofrer, também, se isso sair errado. Mas o que Haymitch disse quando eu
perguntei se ele tinha contado a Peeta a situação? Que ele tinha de fingir que estava desesperadamente apaixonado?
"Não tenho de dizer. Ele já está."
Já pensando antes de mim nos Games novamente e consciente do perigo que corremos? Ou...
já desesperadamente apaixonado? Não sei. Eu nem comecei a analisar meus sentimentos por
Peeta. É muito complicado. O que eu fiz era parte dos Games. Como oposição ao que eu fiz por
raiva do Capitol. Ou por causa do que seria visto no Distrito 12. Ou porque, simplesmente, era
a única coisa decente a ser feita. Ou o que eu fiz porque me importava com ele.
Há questões a serem solucionadas quando voltar para casa, na paz e quietude da floresta,
quando ninguém está observando. Não aqui com todos os olhos sobre mim. Mas não vou ter
esse luxo por sabe-se lá quanto tempo. E agora, a parte mais perigosa dos Hunger Games está
para começar.

27

O hino retumba em meus ouvidos, e ouço Caesar Flickerman saudando o público. Será que ele
sabe o quanto é crucial escolher as palavras certas de agora em diante? Ele deveria saber. Ele
vai querer nos ajudar. A multidão irrompe em aplausos quando a equipe de preparação é
apresentada. Imagino Flaviu, Venia e Octavia gingando em direção ao palco e recebendo as
mais ridículas mesuras. É líquido e certo que eles não fazem a menor ideia. Então, Effie é
apresentada. Quanto tempo ela não esperou por esse momento. Espero que seja capaz de
aproveitar bastante porque por mais que Effie seja mal orientada, ela possui um instinto bem
certeiro para certas coisas e deve, pelo menos, estar suspeitando de que estamos em apuros.
Portia e Cinna recebem imensas demonstrações de entusiasmo, é claro. Eles foram brilhantes,
fizeram uma estreia esplendorosa. Agora compreendo o vestido que Cinna escolheu para eu
usar essa noite. Vou precisar parecer mais ingênua e inocente do que nunca. A aparição de
Haymitch proporciona uma rodada de efusivos aplausos que dura pelo menos cinco minutos.
Bem, ele conseguiu um feito inédito. Manteve não só um, mas dois tributos vivos. E se ele não
tivesse me alertado em tempo hábil. Será que eu agiria de maneira diferente? Será que eu o
ostentaria o episódio das amoras e esfregaria na cara da Capitol? Não, acho que não. Mas eu
poderia facilmente me portar de modo muito menos convincente do que preciso agora. Neste
exato momento. Porque estou começando a sentir a placa de metal me erguendo até o palco.
Luzes ofuscantes. O bramido ensurdecedor sacode o metal abaixo de mim. Então, vejo Peeta a
apenas alguns metros de distância. Ele parece tão límpido, saudável e belo, que mal o
reconheço. Mas seu sorriso é o mesmo, seja na lama, seja na Capitol e, quando o vejo, dou três
passos e me lanço em seus braços. Ele cambaleia para trás, quase perdendo o equilíbrio, e é
então que percebo que o equipamento de metal fininho em sua mão é uma espécie de
bengala.
Ele endireita a postura e nós grudamos um no outro enquanto o público entra em estado de
ebulição. Ele está me beijando e o tempo todo estou pensando, Você sabe? Você sabe o
quanto estamos correndo perigo? Depois de mais ou menos dez minutos disso, Caesar
Flickerman dá um tapinha em seu ombro para que o show possa prosseguir, e Peeta
simplesmente o empurra para o lado sem nem mesmo olhar para ele. O público enlouquece.
Ciente ou não da história, Peeta está, como de hábito, desempenhando o seu papel com muito
talento.
Por fim, Haymitch nos interrompe e nos dá um empurrãozinho bem-intencionado na direção
da cadeira do vitorioso. Normalmente, é uma única e bela cadeira de onde o tributo vencedor
assiste a um filme com os melhores momentos dos Jogos, mas como há dois vencedores, os
Gamemakers dos Games providenciaram um elegante sofá de veludo vermelho. Tão pequeno que minha mãe o chamaria de sofá do amor, eu acho. Sento-me tão perto de Peeta
que
praticamente estou no seu colo, mas uma olhadinha na direção de Haymitch me diz que isso
não é suficiente. Chutando as sandálias, ponho os pés ao lado e encosto a cabeça no ombro de
Peeta. Seu braço me envolve automaticamente e tenho a sensação de estar de volta à caverna,
enroscada nele, tentando me manter aquecida. Sua camisa é feita do mesmo material amarelo
que meu vestido, mas Portia o colocou em calças compridas pretas. Em vez de sandálias, está
usando um par de robustas botas pretas. Em que ele mantém solidamente plantadas no chão
do palco. Gostaria que Cinna tivesse me dado um traje similar, sinto-me muito vulnerável
nesse vestido diáfano. Mas imagino que essa era exatamente a proposta.
Caesar Flickerman faz mais algumas piadas e então chega a hora do show. Vai durar
exatamente três horas e todas as pessoas de Panem devem assistir. À medida que as luzes
começam a diminuir de intensidade e a insígnia aparece na tela, percebo que estou
despreparada para tudo isso. Não quero assistir a morte dos meus vinte e dois colegas
tributos. Vi mortes suficientes ao vivo. Meu coração começa a bater com força e sinto um
impulso muito forte para sair correndo dali. Como os outros vitoriosos encaram isso sozinhos?
Durante os melhores momentos, eles mostram de tempos em tempos a reação do vencedor
num quadradinho no canto da tela. Recordo-me de anos anteriores... alguns são triunfantes,
socando o ar, batendo no peito. A maioria parece simplesmente atônita. Tudo o que sei é que
a única coisa que está me mantendo nesse sofá do amor é Peeta ­ seu braço em meu ombro,
sua outra mão segura pelas minhas duas. É claro que os vitoriosos anteriores não tinham em
seu encalço a Capitol em busca de uma maneira de destruí-los.
Condensar várias semanas em três horas é um feito impressionante, principalmente se
considerarmos a quantidade de câmeras que estavam sendo usadas de uma vez. Quem quer
que seja o responsável pela edição dos melhores momentos tem de escolher que tipo de
história deseja privilegiar. Esse ano, pela primeira vez, eles estão contando uma história de
amor. Sei que Peeta e eu vencemos, mas uma quantidade de tempo desproporcional de
tempo foi gasta conosco, desde o início. Mas estou contente, porque isso acaba apoiando toda
aquela coisa dos loucamente apaixonados que é a minha defesa por haver desafiado a Capitol,
e ainda por cima significa que nós não teremos muito tempo para sentir remorso pelas mortes.
A primeira hora fora focaliza os eventos que antecederam a entrada na arena, a colheita, a
viagem de carruagem pela Capitol, nossas notas no treinamento e nossas entrevistas. Há uma
espécie de trilha sonora enaltecedora amparando as imagens que as torna duplamente
horríveis porque, é claro, quase todos que aparecem na tela já estão mortos.
Assim que chegamos à arena, há uma cobertura detalhada do banho de sangue e então os
diretores basicamente alternam entre tomadas dos tributos morrendo e tomadas de nós dois.
A maioria de Peeta, na verdade, é inegável que ele carregou nos ombros o negócio do
romance. Agora vejo o que o público viu, como ele enganou os Profissionais a meu respeito,
permaneceu acordado a noite inteira embaixo da árvore das Tracker jackers, lutou com Cato para
que eu escapasse e, mesmo enquanto estava deitado na lama, sussurrou meu nome durante o
sono. Comparada a ele, eu pareço uma desalmada ­ lançando bolas de fogo, deixando cair
ninhos de vespas e explodindo suprimentos ­ até começar a rastrear Rue. Eles mostram sua
morte integralmente, o arremesso da lança, minha fracassada tentativa de resgate, minha
flecha atravessando a garganta do garoto do Distrito 1, os últimos suspiros de Rue em meus
braços. E a canção. Apareço cantando todas as notas da canção. Algo dentro de mim se fecha e
fico insensível a tudo. É como assistir a pessoas totalmente estranhas em outra edição dos
Jogos Vorazes. Mas reparo que eles omitem a parte em que cubro de flores.
Certo. Porque até isso tem cheiro de rebelião.
As coisas melhoram para mim no momento em que eles anunciam que dois tributos do
mesmo distrito podem ficar vivos e grito o nome de Peeta, e depois tapo a boca com a mão. Se
pareci indiferente a ele antes, compenso agora, encontrando-o, cuidando para que ele volte a
ter saúde, indo ao ágape em busca de medicamentos e sendo bastante liberal com os meus
beijos.
Objetivamente, consigo ver que as bestas e a morte de Cato são tão hediondas agora quanto
antes, mas, ainda sim, é como se tudo isso estivesse acontecendo com pessoas que nunca vi na vida.
Então, chega o episódio das amoras. Posso ouvir o público pedindo silêncio, disposto a não
perder nada. Uma onda de gratidão aos diretores do filme toma conta de mim quando vejo
que eles terminam não com o anúncio de nossa vitória, mas comigo dando socos na porta de
vidro do aerodeslizador, berrando por Peeta enquanto eles tentam ressuscitá-lo.
Se tomarmos como base os critérios que garantirão minha sobrevivência a partir de agora,
esse é o meu melhor momento em toda a noite.
O hino está sendo tocado novamente e nós nos levantamos quando o Presidente Snow em
pessoa sobe ao palco seguido de uma garotinha carregando uma almofada onde se vê uma
coroa. Só há uma coroa, entretanto, e dá para ouvir a perplexidade da multidão ­ qual das
cabeças receberá a coroa? ­ até que o Presidente Snow torce o objeto, separando-o em duas
metades. Ele coloca a primeira metade na testa de Peeta com um sorriso. Ele ainda estava sorrindo
quando coloca a segunda metade em minha cabeça, mas seus olhos, apenas alguns
centímetros distantes dos meus, estão tão implacáveis quanto os de uma serpente.
É aí que percebo que, muito embora nós dois tivéssemos a intenção de comer amoras, sou eu
a culpada por ter tido a idéia. Eu sou a instigadora. Sou eu que merece a punição.
Muitas mesuras e saudações entusiasmadas se seguem. Meu braço está a ponto de cair de
tanto acenar para a multidão quando Caesar Flickerman finalmente dá o boa-noite ao público,
lembrando a todos que sintonizem amanhã para acompanhar as últimas entrevistas. Como se
houvesse alternativa.
Peeta e eu somos conduzidos até a mansão do Presidente para o Banquete da Vitória, onde
temos muito pouco tempo para comer, já que funcionários da Capitol e patrocionadores
particularmente generosos acotovelam-se no caminho tentando tirar fotos conosco. Rostos e
mais rostos resplandecentes despontam de todos os lados, cada vez mais embriagados à
medida que a noite avança. Ocasionalmente, vislumbro Haymitch, o que é reconfortante, ou o
Presidente Snow, o que é aterrorizante, mas continuo rindo e agradecendo as pessoas e
sorrindo para as fotos. A única coisa que nunca faço é soltar a mão de Peeta.
O sol está começando a surgir no horizonte quando nos dispersamos de volta ao décimo
segundo andar do Centro de Treinamento. Imagino que agora vou poder finalmente conversar
a sós com Peeta, mas Haymitch o manda ir com Portia arrumar alguma coisa apropriada para a
entrevista e me acompanha pessoalmente até os meus aposentos.
"Por que não posso falar com ele," pergunto.
"Vai ter tempo de sobra pra falar com ele quando a gente chegar em casa," diz Haymitch. "Vai
dormir, você vai estar no ar às duas."
Apesar da interferência apressada de Haymitch, estou determinada a ver Peeta privadamente.
Depois de virar e revisar na cama por algumas horas, vou até o corredor. Meu primeiro
pensamento é verificar o telhado, mas está vazio. Mesmo as ruas da cidade bem abaixo estão
desertas após a celebração da noite de ontem. Volto para a cama por um tempo e então
decido ir diretamente ao quarto dele, mas quando tento girar a maçaneta, descubro que a
porta do meu quarto foi trancada pelo lado de fora. Suspeito de Haymitch, a princípio, mas
sinto um temor muito mais insidioso de que a Capitol possa estar nos monitorando e nos
confinando. Estou impossibilitada de escapar desde que os Jogos Vorazes começaram, mas
isso aqui é diferente, muito mais pessoal. Isso aqui me dá a sensação de que fui aprisionada
por um crime e que estou aguardando a sentença.
Volto rapidamente para a cama e finjo dormir até que Effie Trinket aparece para me alertar
para o começo de mais um "grande, grande, grande dia!".
Tenho mais ou menos cinco minutos para comer uma tijela de grãos refogados antes da
chegada da equipe de preparação. Tudo o que tenho de dizer é: "A multidão adorou vocês!" e
é desnecessário falar pelas próximas horas. Quando Cinna aparece, ele dispensa todo mundo e
me dá um vestido branco bem extravagante e sapatos cor-de-rosa. Em seguida, ajusta
pessoalmente minha maquiagem até parecer que estou irradiando um brilho suave e rosado.
Ficamos conversando, mas estou com medo de perguntar a ele alguma coisa realmente
importante porque, depois do incidente da porta, não posso me livrar da sensação de estar
sendo constantemente observada.
A entrevista acontece na sala de estar ao fim do corredor. Um espaço foi reservado e o sofá do
amor está agora em outra posição e cercado de vasos com flores vermelhas e rosas. Só há um
punhado de câmeras para registrar o evento. Pelo menos não há plateia no local.
Caesar Flickerman me dá um abraço afetuoso quando adentro o local. "Congratulações,
Katniss. Como está?"
"Bem. Nervosa com a entrevista," respondo.
"Não fique. Será uma experiência agradabilíssima," diz ele, dando um tapinha encorajador em
minha bochecha.
"Não sou muito boa em falar sobre mim mesma," digo.
"Você não cometerá nenhum deslize," ele diz.
E penso, Oh, Caesar, se ao menos isso fosse verdade. A verdade é que o Presidente Snow deve
estar preparando alguma espécie de "acidente" para mim enquanto estivermos conversando.
Então, Peeta aparece, vistoso em vermelho e branco, puxando-me para o lado. "Quase não
consigo te ver. Haymitch parece empenhado em manter a gente afastado."
Haymitch, na verdade, está emprenhado em nos manter vivos, mas há ouvidos demais nos
escutando, de modo que digo apenas, "É mesmo, ele tem estado muito responsável
ultimamente."
"Bem, só falta essa entrevista e voltamos pra casa. Aí ele não vai mais poder ficar vigiando a gente
o tempo todo" ele diz.
Sinto uma espécie de arrepio percorrendo-me o corpo e não disponho de tempo para analisar
o motivo, porque eles já estão à nossa espera. Nós nos sentamos no sofá do amor com uma
certa formalidade, mas Caesar diz, "Ah, vamos lá, pode se enroscar nele se quiser. Fica muito
bonitinho." Então, levanto os pés e Peeta me puxa para perto dele.
Alguém faz a contagem regressiva e, em um instante, nós estamos sendo transmitidos ao vivo para
todo o país. Caesar Flickerman é maravilhoso, implica, faz piada, se engasga quando a ocasião
é propícia. Ele e Peeta já possuem a cumplicidade que estabeleceram naquela noite da
primeira entrevista, aquele estado de espírito alegre, então, eu apenas sorrio bastante e tento
falar o menos possível. Enfim, tenho de falar um pouco, mas, sempre que posso, redireciono a
conversa para Peeta.
Mas chega um momento em que Caesar começa a colocar questões que demandam respostas
completas. "Bem, Peeta, sabemos, pelos dias que passamos naquela caverna, que foi amor à
primeira vista de sua parte desde quando, os cinco anos de idade?" pergunta Caesar.
"Desde o momento que pus os olhos nela pela primeira vez," diz Peeta.
"Mas, Katniss, que coisa, hein? Imagino que a parte mais excitante para o público tenha sido
assistir a você cedendo aos encantos dele. Quando você se deu conta de que estava apaixonada
por ele?" pergunta Caesar.
"Hum, essa é difícil..." Dou um risinho leve e olho para as minhas mãos. Socorro.
"Bem, eu sei quando a coisa me tocou. Na noite em que você gritou o nome dele daquela
árvore," diz Caesar.
Obrigada Caesar!, penso comigo mesma, e desenvolvo a idéia.
"Foi mesmo, acho que foi lá. É o seguinte, até aquele momento, simplesmente tentava não
pensar quais poderiam ser os meus sentimentos, falando com toda honestidade, porque a
coisa toda era muito confusa e imaginar que eu realmente sentia alguma coisa por ele só
pioraria tudo ainda mais. Mas aí, naquela árvore, tudo mudou."
"Por que você acha que isso aconteceu?" demanda Caesar.
"Talvez... porque pela primeira vez... haveria uma chance de eu ficar perto dele," digo.
Atrás do cameraman, vejo Haymitch dando uma espécie de rosnado de alívio e sei que fiz a
coisa certa. Caesar pega um lenço e precisa de um tempo porque está emocionado demais.
Sinto Peeta pressionando a testa na minha têmpora e em seguida perguntando, "Então, agora
que estou perto de você, o que é que você vai fazer comigo?
Volto-me para ele e digo, "Vou te colocar em algum lugar onde você não possa se machucar."
E, quando ele me beija, as pessoas da sala dão um suspiro.
Para Caesar, esse é o momento natural para engatar a conversa com todas as formas de
ferimentos de que fomos vítimas na arena, queimaduras, ferroadas e perfurações as mais
diversas. Mas só esqueço que estou na frente das câmeras quando o assunto passa a ser as
bestas. E quando Caesar pergunta a Peeta como sua "nova perna" está funcionando.
"Nova perna?" E não consigo evitar levantar a barra da calça de Peeta. Oh, não," sussurro,
tocando o equipamento de metal e plástico que substituiu a carne.
"Ninguém contou pra você?" pergunta Caesar, delicadamente. Balanço a cabeça.
"Eu não tive oportunidade," diz Peeta, dando ligeiramente de ombros.
"É minha culpa," digo. "Porque usei aquele torniquete."
"Sim, é culpa sua eu estar vivo," diz Peeta.
"Ele tem razão," diz Caesar. "Ele certamente teria sangrado até morrer se não fosse por isso."
Imagino que isso seja verdade, mas não consigo deixar de me sentir chateada com relação a
isso, a ponto de sentir vontade de chorar, mas aí lembro que todo o país está me assistindo,
então, simplesmente enterro meu rosto na camisa de Peeta. Eles levam alguns minutos para
me convencer a tirar o rosto da camisa porque lá é bem mais confortável, ninguém pode me
ver. E quando reapareço, Caesar para um pouco de me fazer perguntas para que eu tenha
tempo de me recuperar. Na realidade, ele me deixa em paz até o episódio das amoras.
"Katniss, sei que você acabou de ter um choque, mas sou obrigado a perguntar. No momento
em que você pegou aquelas amoras, o que se passava em sua cabeça?" ele diz.
Faço uma longa pausa antes de responder, tentando organizar meus pensamentos. Esse é o
momento crucial, que decidirá se desafiei mesmo a Capitol ou fiquei tão louca com a
perspectiva de perder Peeta que não posso ser responsabilizada por minhas ações. O incidente
parece clamar por um grande e dramático discurso, mas tudo o que sai da minha boca é uma
frase quase inaudível, "Não sei, eu simplesmente... não consegui suportar a ideia de... viver sem ele"...
"Peeta? Alguma coisa a acrescentar?" pergunta Caesar.
"Não, acho que isso serve para nós dois," diz.
Caesar faz um sinal e a entrevista se encerra. Todos estão rindo e chorando e se abraçando,
mas ainda não tenho certeza até alcançar Haymitch. "Foi bom?" sussurro.
"Perfeito," responde ele.
Volto ao quarto para pegar algumas coisas e descubro que não há nada a ser pego a não ser o
broche com o mockingjay que Madge me deu. Alguém o devolveu em meu quarto depois dos
Games. Eles nos conduzem pelas ruas em um carro de janelas escuras, e o trem está
esperando por nós. Quase não temos tempo de nos despedir de Cinna e Portia, mas teremos
de nos encontrar daqui a alguns meses, quando faremos a turnê pelos distritos para
participarmos de várias cerimônias de comemoração pela vitória. É a maneira de a Capitol
lembrar às pessoas que os Hunger Games nunca se encerram de fato.
Nós recebemos várias medalhas inúteis e todos terão de fingir que nos amam.
O trem começa a se mover e nós mergulhamos na noite até ultrapassarmos o túnel, quando
consigo respirar livremente pela primeira vez desde a colheita. Effie está nos acompanhando,
assim como Haymitch, é claro. Nós começamos um farto Jantar e nos sentamos em silêncio em
frente à televisão para assistir à reprise da entrevista. Com a Capitol a cada segundo mais
distante de nós, começo a pensar na minha casa. Em Prim e em minha mãe. Em Gale. Peço
licença para trocar o vestido por uma calça e uma camisa simples. À medida que retiro lenta e
cuidadosamente minha maquiagem do rosto e prendo os cabelos, começo a me transformar
novamente em mim mesma. Katniss Everdeen. Uma garota que mora na Costura. Caça na
Floresta. Negocia no Hob. Miro o espelho enquanto tento lembrar quem sou e quem não sou.
Quando reencontro, a pressão do braço de Peeta em meus ombros já parece bem distante de
mim.
Quando o trem faz uma breve parada para reabastecer, nos é permitido sair para tomar um
pouco de ar fresco. Não há mais nenhuma necessidade de sermos vigiados. Peeta e eu
caminhamos ao longo do trilho, de mãos dadas, e não consigo achar nada para dizer, agora
que estamos sozinhos. Ele para para colher um maço de flores silvestres para mim. Quando ele
me entrega, faço um grande esforço para parecer satisfeita. Porque ele não tem como saber
que as flores rosas e brancas são a cobertura das cebolas selvagens e só me fazem lembrar das
horas que passei colhendo-as na companhia de Gale.
Gale. A perspectiva de encontrar Gale em questão de horas faz meu estômago revirar. Mas por
quê? Não consigo enquadrar bem a coisa em minha mente. Só sei que é como se estivesse
mentindo para alguém que confia em mim. Ou mais precisamente, para duas pessoas. Estive
me esquivando disso até agora por causa dos Games. Mas lá em casa não haverá Games atrás
dos quais poderei me esconder.
"Algum problema?" pergunta Peeta.
"Nada," respondo. Nós continuamos a caminhada até o fim da linha do trem, até onde tenho certeza quase absoluta de que não há nenhuma câmera escondida nos arbustos
rasteiros que
margeiam o trilho. Ainda assim nenhuma palavra me escapa da boca.
Haymitch me assusta ao colocar a mão em minhas costas. Até agora, no meio do nada, ele
mantém o tom de voz baixo. "Excelente trabalho, vocês dois. Basta manter o ritmo no distrito
até que as câmeras desapareçam. A gente vai se dar bem." Observo-o retornar ao trem,
evitando os olhos de Peeta.
"O que ele quis dizer?," pergunta Peeta.
"É a Capitol. Eles não gostaram da nossa armação com as amoras," solto.
"O quê? Do que você está falando?" pergunta ele.
"A coisa pareceu rebelde demais. Aí Haymitch tem me orientado nos últimos dias para eu não
piorar tudo," digo.
"Orientado você? Mas não a mim," diz ele.
"Ele sabia que você era suficientemente esperto para proceder da maneira correta," digo.
"Eu não sabia que havia algum motivo pra proceder de maneira correta," diz Peeta. "Então, o
que você está dizendo é que, nesses últimos dias e também eu acho que... lá na arena... aquilo
não passou de uma estratégia que vocês dois bolaram?"
"Não, eu nem conseguia conversar com ele na arena, não lembra?" insisto.
"Não, você sabia o que ele queria que você fizesse, não sabia?" diz Peeta. Mordo o lábio.
"Katniss?" Ele solta a minha mão e eu dou um passo à frente, como se estivesse tentando me
equilibrar. "As suas atitudes foram todas em função dos Games," diz Peeta.
"Nem todas," retruco, segurando minhas flores com força.
"Então quais foram e quais não foram? Não, não. Esquece isso. Aposto que a verdadeira
questão é o que vai sobrar quando a gente chegar em casa," diz Peeta.
"Não sei. Quanto mais a gente se aproxima do Distrito 12, mais confusa eu fico." Ele espera
mais alguma explicação, mas nada acontece.
"Bem, me avisa quando você tiver alguma resposta," diz ele, e a dor em sua voz é perceptível.
Sei que meus ouvidos estão curados porque, mesmo com o barulho do motor, consigo escutar
todos os passos que ele dá de volta ao trem. No momento em que subo a bordo, Peeta já está
em seu quarto para passar a noite. Também não o vejo na manhã seguinte. Na realidade, ele
só reaparece quando estamos entrando no Distrito 12. Ele me acena com a cabeça, o rosto
inexpressivo.
Quero dizer a ele que sua atitude não é justa. Que nós éramos estranhos. Que fiz o que era
preciso para permanecer viva, para que nós dois permanecêssemos vivos na arena. Que não
tenho como explicar como são as coisas com Gale porque não conheço nem a mim mesma.
Que não é uma boa ideia me amar porque nunca vou me casar mesmo e ele ia acabar me
odiando mais cedo ou mais tarde. Que não importa se tenho algum sentimento por ele,
porque jamais serei capaz de proporcionar o tipo de amor que se transforma em uma família,
em filhos. E como ele será capaz? Como ele será capaz depois de tudo o que passamos naquela
arena?
Também quero dizer a ele o quanto já estou sentindo a sua falta. Mas isso não seria justo de
minha parte.
Então, apenas ficamos parados em silêncio, observando nossa pequena e encardida estação
crescer à nossa volta. Pela janela, vejo que a plataforma está repleta de câmeras. Todos devem
estar assistindo ansiosamente à nossa volta para casa.
Com o canto do olho, vejo Peeta estender a mão. Olho para ele, sem muita certeza. "Uma
última vez? Para o público?" diz ele. Sua voz não está zangada, o que é pior. O garoto do pão já
está me escapando.
Pego sua mão, segurando com firmeza, preparando-me para as câmeras e abominando o
momento que finalmente terei de soltá-la.
-
FIM DO LIVRO UM

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