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quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Deixados para trás 8

O PERÍODO DA TRIBULAÇÃO COMPLETA 42 MESES;
A GRANDE TRIBULAÇÃO CHEGA AO TERCEIRO DIA
Os Crentes
Rayford Steele - Idade: cerca de 45 anos; ex-capitão aviador do 747 das Linhas
Aéreas Pan-Continental; perdeu esposa e filho no Arrebatamento; ex-piloto do
potentado da Comunidade Global, Nicolae Carpathia; membro fundador do
Comando Tribulação; tornou-se fugitivo internacional; suspeito do assassinato de
Nicolae Carpathia; vive exilado na nova casa secreta no Edifício Strong, em
Chicago.
Cameron ("Buck") Williams - Idade: pouco mais de 30 anos; ex-articulista
sênior do Semanário Global; ex-editor do Semanário Comunidade Global, de
propriedade de Carpathia; membro fundador do Comando Tribulação; editor da
revista virtual A Verdade; fugitivo exilado no Edifício Strong, em Chicago.
Chloe Steele Williams - Idade: pouco mais de 20 anos; ex-aluna da
Universidade Stanford; perdeu a mãe e o irmão no Arrebatamento; filha de
Rayford; esposa de Buck; mãe de Kenny Bruce, um bebê de 14 meses;
presidente da Cooperativa Internacional de Mercadorias, associação secreta
composta de crentes; membro fundadora do Comando Tribulação; fugitiva
exilada no Edifício Strong, em Chicago.
Tsion Ben-Judá - Idade: beirando os 50 anos; ex-estudioso das doutrinas dos
rabinos e estadista israelense; revelou sua crença em Jesus como o Messias em
um programa de TV levado ao ar internacionalmente, o que provocou o
assassinato de sua esposa e de dois filhos adolescentes; fugiu para os Estados
Unidos; professor e líder espiritual do Comando Tribulação; suas pregações

diárias, via Internet, alcançam mais de um bilhão de pessoas; fugitivo exilado no
Edifício Strong, em Chicago.
Dr. Chaim Rosenzweig - Idade: beirando os 70 anos; botânico e estadista
israelense; descobridor da fórmula que fez florescer os desertos de Israel;
recebeu o título de Homem do Ano pelo Semanário Global; assassino confesso
de Carpathia; reside no Edifício Strong, em Chicago.
Mac McCullum - Idade: beirando os 60 anos; piloto de Carpathia; reside na Nova
Babilônia, Estados Unidos Carpathianos.
David Hassid - Idade: cerca de 25 anos; diretor de primeiro escalão da CG;
reside em Nova Babilônia.
Annie Christopher - Idade: pouco mais de 20 anos; cabo da Comunidade
Global; chefe do setor de cargas do Fênix 216; namorada de David Hassid; está
desaparecida; reside em Nova Babilônia.
Leah Rose - Idade: beirando os 40 anos; ex-enfermeira-chefe do Arthur Young
Memorial Hospital de Palatine, Illinois; reside no Edifício Strong, em Chicago.
Sr. e Sra. Lukas ("Laslos") Miklos - Idade: cerca de 45 anos; magnatas do
ramo de mineração de linhito; residem na Grécia, Estados Unidos Carpathianos.
Abdullah Smith - Idade: 30 e poucos anos; ex-piloto de aviões de caça
jordanianos; co-piloto do Fênix 216; reside em Nova Babilônia.
Ming Toy - Idade: 22 anos; viúva; guarda do Presídio de Reabilitação Feminina
da Bélgica (PRFB); designada para trabalhar no funeral de Carpathia em Nova
Babilônia.
Chang Wong - Idade: 17 anos; irmão de Ming Toy; reside na China, Estados

Unidos Asiáticos; encontra-se em Nova Babilônia para assistir ao funeral de
Carpathia em companhia dos pais, os quais ignoram sua conversão.
O Que Afirma Ser Crente
Al B. (conhecido como "Albie") - Idade: beirando os 50 anos; nome oficial
desconhecido; nascido em Al Basrah, no norte do Kuwait; ex-gerente da Torre da
Pista de Pouso de Al Basrah; lida com o mercado negro internacional; contou a
Buck Williams que se converteu do islamismo para o cristianismo por ter
estudado os ensinamentos de Tsion Ben-Judá pela Internet; tem o selo dos
crentes visível na testa; está colaborando com o Comando Tribulação no norte
de Illinois, Estados Unidos Norte-americanos.
Os Inimigos
Nicolae Jetty Carpathia - Idade: 36 anos; ex-presidente da Romênia; ex-
secretário-geral da Organização das Nações Unidas; auto designado potentado
da Comunidade Global; assassinado em Jerusalém; ressuscitou no palácio da
CG, em Nova Babilônia.
Leon Fortunato - Idade: pouco mais de 50 anos; braço direito de Carpathia;
supremo comandante da CG; reside na Nova Babilônia.
A Indecisa
Hattie Durham - Idade: pouco mais de 30 anos; ex-comissária de bordo das
Linhas Aéreas Pan-Continental; ex-assistente pessoal de Carpathia; foi vista pela
última vez nos Estados Unidos Norte-americanos.

PRÓLOGO Extraído de O Possuído

O locutor disse:
- Senhoras e senhores da Comunidade Global, com a palavra o Supremo
Potentado, Sua Excelência Nicolae Carpathia.
Nicolae aproximou-se da câmera, forçando o operador a reenquadrar a
cena. Ele olhava diretamente para as lentes.
- Meus caros súditos - ele começou a dizer -, atravessamos juntos uma
semana difícil, não? Fiquei profundamente comovido com os milhões de pessoas
que fizeram um esforço tremendo para vir a Nova Babilônia a fim de assistir a
uma cerimônia que, felizmente, não foi a de meu funeral. As demonstrações de
emoção foram encorajadoras para mim. Conforme vocês sabem e eu já
mencionei, há alguns grupos remanescentes de resistência à nossa luta pela paz
e harmonia. Há também aqueles que adquiriram fama por terem proferido as
mais terríveis ofensas, blasfêmias e falsos testemunhos contra mim, usando
termos que ninguém gostaria de ser merecedor. Creio que todos vocês
concordam que hoje provei quem sou. Vocês estão certos em fazer o que suas
mentes e corações mandam. Continuem a me seguir. Vocês assistiram a tudo, e
seus olhos não mentem. Também estou ansioso por acolher em nosso meio
todos os ex-seguidores da seita radical que se convenceram de que não sou o
inimigo. Ao contrário, posso ser o objeto de devoção da própria religião deles, e
oro para que eles não se fechem a essa possibilidade. Antes de encerrar, desejo
dizer algumas palavras diretamente a meus opositores. Eu sempre permiti a
existência de opiniões divergentes, sem rancor ou amargura. Contudo, existem
pessoas entre vocês que têm-me chamado publicamente de anticristo e se
referido a este período da história como Tribulação. Tomem estas palavras como
uma promessa pessoal: Se insistirem em continuar com seus ataques

subversivos contra meu caráter e contra a harmonia mundial que me esforcei
tanto para instituir, a palavra tribulação não servirá sequer para começar a
descrever o que lhes está reservado. Se estes últimos três anos e meio foram
considerados por vocês como tribulação, vão saber o que significa sofrimento de
verdade quando chegar a Grande Tribulação.
UM

O relógio marcava meio-dia em Nova Babilônia, e David Hassid estava
muito agitado. Perdera Annie de vista e não tinha notícia dela. Apesar disso, ele
mal conseguia desgrudar os olhos dos gigantescos telões no pátio do palácio. A
imagem do infatigável Nicolae Carpathia, que acabara de ressuscitar depois de
ter ficado três dias morto, ocupava a tela inteira, vibrando de energia. David
acreditava que, se estivesse perto daquele homem, seria eletrocutado por uma
espécie de descarga elétrica demoníaca.
Sem conseguir tirar da mente o desaparecimento de sua amada, David foi
arrastado pela multidão e passou pelos enormes monitores e guardas até chegar
à beira do esquife, onde poucas horas antes jazia o corpo do rei do mundo.
Será que David veria alguma evidência de que o homem estava agora
possuído pelo próprio Satanás? O corpo, o cabelo, o porte e a aparência eram os
mesmos. Porém, um ligeiro ar de desassossego e precaução faiscava de seus
olhos. Embora sorrindo e conversando mansamente, parecia que Nicolae mal
podia conter o monstro que havia dentro dele. Fúria controlada, violência
protelada, vingança em estado latente vibravam pelos músculos de seu pescoço
e ombros. David tinha a impressão de que, de repente, o homem irromperia de
seu terno e da própria pele, expondo-se ao mundo como a repulsiva serpente
que ele era.
A atenção de David foi brevemente desviada para uma pessoa postada ao
lado de Carpathia. Quando ele voltou a lançar um olhar fortuito àquele rosto que

continuava belo, não estava preparado para ser encarado pelo inimigo de sua
alma. Evidentemente, Nicolae o conhecia, mas o olhar dele, mesmo sem deixar
transparecer que o reconhecera, não transmitia o ar de aprovação e de
encorajamento que David costumava receber. Aquele olhar de simpatia que
Nicolae costumava lançar-lhe sempre o enervou, mas agora ele preferia o
anterior a este. Era um olhar penetrante, que parecia traspassar seu corpo a
ponto de quase forçá-lo a dar um passo à frente e confessar a sua deslealdade e
a de todos os companheiros do Comando Tribulação.
Apesar de saber que Satanás não era onisciente, David sentia dificuldade
em aceitar que aqueles olhos não pertenciam a alguém que conhecia seus
segredos. Ele queria fugir dali, mas não se atreveu. Ficou satisfeito quando
Nicolae voltou a concentrar-se na tarefa do momento: ser o objeto da adoração
do mundo.
David voltou apressado ao seu posto, mas alguém havia-se apropriado do
carrinho de golfe utilizado para transportá-lo de um lado para o outro. Irritado,
resolveu fazer valer sua autoridade. Pegou o telefone e, mesmo com dificuldade
para articular as palavras, gritou para o supervisor dos serviços de transporte:
- Se eu não tiver um veículo aqui dentro de dois minutos, alguém vai ter o
pescoço...
- Um carrinho elétrico, senhor? - perguntou o supervisor, com um sotaque
acentuado, que David imaginou ser australiano.
- Claro!
- Há poucos aqui, diretor, mas...
- Eu sei, porque alguém passou a mão no meu!
- Eu ia dizer que ficaria satisfeito em emprestar-lhe o meu, dadas as
circunstâncias.
- Circunstâncias?
- A ressurreição, é claro! Falando francamente, diretor Hassid, eu adoraria
poder entrar na fila.
- Basta me trazer...
- O senhor acha que eu poderia? Mesmo estando uniformizado? Sei que

eles afastaram os civis do pátio. O pessoal não gostou muito, mas como
funcionário...
- Eu não sei! Preciso de um veículo! Já!
- O senhor me daria uma carona até o local onde ele está antes de ir ao
lugar que deseja...
- Sim! Ande logo!
- O senhor está emocionado, diretor?
- O quê?
O homem falou pausadamente, complacente:
- So-bre-a-res-sur-rei-ção!
- Você está em seu veículo? - perguntou David, com voz firme.
- Sim, senhor.
- É com isso que eu estou emocionado.
O homem continuou a falar, mas David desligou o telefone e ligou para o
supervisor da multidão.
- Estou procurando Annie Christopher - ele disse.
- Setor?
- Cinco-três.
- O setor 53 está vazio, diretor. Ela deve ter sido designada para outra
função ou liberada.
- Se ela foi designada para outra função, você deve saber qual é, não?
- Estou verificando.
O supervisor dos serviços de transporte apareceu dirigindo o carrinho de
golfe, com o rosto brilhando de felicidade. David entrou no carrinho com o fone
ainda no ouvido.
- Vou ver deus - disse o homem.
- Ah, sim - disse David. - Aguarde um instante.
- O senhor pode acreditar? Ele tem de ser deus. Quem mais poderia ser? Vi
com estes dois olhos... só que foi pela TV. Ressuscitou. Eu vi o homem morto,
tenho certeza. Se eu conseguir vê-lo pessoalmente, não vou mais ter dúvidas,
certo?

David assentiu com a cabeça, tampando o ouvido livre.
- Eu disse que não vou mais ter dúvidas, certo?
- Entendi! - gritou David. - Agora, aguarde um instante.
- Aonde estamos indo, chefe?
David esticou o pescoço para olhar para o homem, sem acreditar que ele
continuava a tagarelar.
- Eu perguntei aonde estamos indo. O senhor vai me deixar lá ou eu vou
levá-lo a algum lugar?
- Vou deixá-lo lá! Faça o que quiser!
- Perdão!
Não era assim que David costumava tratar as pessoas, até mesmo as
ignorantes. Mas ele precisava saber se Annie havia sido designada para outra
função e onde ela estava.
- Nada! - disse o supervisor da multidão pelo telefone.
- Quer dizer que ela foi liberada? - disse David, um pouco mais aliviado.
- Talvez. Não temos nenhum registro.
David até pensou em ligar para o posto de atendimento médico, mas logo
repreendeu-se e achou que estava exagerando.
0 homem do serviço de transportes dirigia o carrinho com habilidade em
meio à multidão, que começava a dispersar. Pelo menos a maioria. As pessoas
pareciam assustadas. Algumas tinham uma expressão zangada. Haviam
aguardado horas para ver o corpo e, agora que Carpathia ressuscitara, estavam
sendo afugentadas dali sem vê-lo, tudo por causa do lugar em que se
encontravam.
- Este é o lugar mais próximo que posso chegar com o carrinho - disse o
homem, freando com tanta força que David quase perdeu o equilíbrio. - O senhor
vai trazê-lo de volta para mim?
- Claro - disse David, tentando controlar-se para, ao menos, agradecer ao
homem. Enquanto se sentava no banco do motorista, ele perguntou: - Você
visitou a Austrália depois da reorganização dos países?
O homem franziu as sobrancelhas e apontou para David, como que lhe

dando uma reprimenda:
- Um homem tão importante como o senhor devia ser capaz de saber
diferenciar um australiano de um neozelandês.
- Eu me enganei - disse David. - Obrigado pela carona. Enquanto ele se
afastava, o homem gritou:
- É claro que, agora, somos todos cidadãos orgulhosos dos Estados Unidos
do Pacífico!
David tentou desviar os olhos do povo enlutado, agora transformado em
povo feliz, que acenava para ele, não para pedir carona, mas em busca de
informações. Às vezes, ele era obrigado a frear para não atropelar alguém que
lhe fazia a mesma pergunta. Os sotaques eram variados, mas todos queriam
saber a mesma coisa:
- Existe um jeito de podermos ver Sua Excelência?
- Não sei informar - dizia David. - Afastem-se, por favor. Estou em missão
oficial.
- Não é justo! Esperamos a noite inteira e metade do dia debaixo do sol
quente, e para quê?
Havia outros que dançavam nas ruas, compondo canções e cânticos em
homenagem a Carpathia, seu novo deus. David olhou novamente para os
gigantescos monitores onde Carpathia era mostrado brevemente
cumprimentando os últimos milhares de pessoas que foram conduzidas até ele,
com um rápido aperto de mão. À esquerda de David, os guardas lutavam para
impedir que mais gente entrasse sorrateiramente no pátio.
- Ninguém mais pode entrar na fila! - eles gritavam o tempo todo.
Os telões mostravam os peregrinos desmaiando ao se aproximarem do
esquife, sendo agora agraciados por Nicolae em toda a sua glória. Muitos
curvavam-se, catatônicos, pelo simples fato de aproximar-se dele. Os guardas os
levantavam e os forçavam a caminhar, mas, quando Sua Excelência dirigia
mansamente a palavra a alguns deles e os tocava, muitos desfaleciam e caíam
nos braços dos guardas.
Nicolae murmurava:

- Que bom ver você. Obrigado por ter vindo. Sinta-se abençoado.
mesmo tempo, David ouvia Leon dizer com voz mansa:
Ao
- Adore seu rei. Curve-se diante de Sua Majestade. Adore o Senhor Nicolae,
o seu deus.
A nota dissonante vinha dos guardas encarregados de tirar dali aquela
massa humana de pessoas trêmulas e de ampará-las quando desmaiavam de
êxtase.
- Ridículo! - os guardas resmungavam uns aos outros, enquanto microfones
transmitiam ao vivo a cacofonia de Fortunato, de Carpathia e dos queixosos a
todos os alto-falantes do sistema de som. - Continuem caminhando! Vamos! Mais
um desmaiado! Levante-se! Rápido!
Finalmente, David chegou ao setor 53, que estava, conforme lhe disseram,
completamente vazio. Os portões para conter a multidão haviam tombado, e o
gigantesco placar fora pisoteado. David parou e apoiou os braços no volante do
carrinho. Ao afastar o quepe, sentiu o calor dos raios ultravioletas do sol. Suas
mãos estavam encharcadas de suor, e ele sabia que pagaria caro por aquelas
horas sob o sol. Mas não podia voltar para a sombra sem antes encontrar Annie.
Enquanto o povo passava ao redor do setor pelo qual Annie havia sido
responsável, David olhou para o chão. O asfalto parecia derreter. Além das
embalagens de sorvetes e doces e dos copos de água e refrigerantes atirados ao
chão sob o calor escaldante, ele avistou alguma coisa parecida com resíduos de
suprimentos médicos. Quando ele ameaçou descer para ver de perto, um casal
de idosos entrou no carrinho e pediu carona até o aeroporto.
- Isso aqui não é um veículo para transportar pessoas -ele disse
distraidamente, mas tomando o cuidado de retirar a chave antes de descer do
carrinho.
- Que grosseria! - exclamou a mulher.
- Vamos - disse o homem.
David caminhou com passos firmes até o setor 53 e ajoelhou-se no chão. O
calor minava-lhe as energias. Ele examinou as embalagens vazias de
esparadrapos, gaze, pomada e até mesmo um tubo de oxigênio. Alguém havia

sido socorrido ali. Não teria de ser Annie necessariamente. Poderia ter sido outra
pessoa. Mesmo assim, ele precisava ter certeza. David voltou para o carrinho,
que estava com todos os lugares tomados, com exceção do dele.
- Se os senhores não estiverem necessitando de atendimento médico - ele
disse, discando um número de telefone -, subiram no carrinho errado.
Ao chegar ao nono andar do Edifício Strong, em Chicago, Rayford Steele
achou o local tão confortável que conseguiu afastar da mente os maus
pressentimentos em relação a Albie. A verdade sobre seu amigo do Oriente
Médio, de tez morena e pequena estatura, seria posta à prova em breve. Albie
havia sido incumbido de pilotar um caça a jato de Palwaukee a Kankakee, onde
Rayford o pegaria mais tarde em um helicóptero da Comunidade Global.
Além de descobrir uma sala abarrotada de computadores de última geração
- ainda dentro das embalagens originais -, Rayford encontrou um pequeno quarto
contíguo a um enorme escritório especial para executivos. O local era decorado
como um pequeno apartamento de um hotel luxuoso. Ele percorreu andar por
andar e encontrou a mesma decoração em pelo menos quatro escritórios de
cada pavimento.
- Temos muito mais requinte do que imaginávamos - ele disse aos exaustos
componentes do Comando Tribulação. -Enquanto não pintarmos as janelas de
preto, vamos ter de colocar algumas camas nos corredores perto dos elevadores
para não serem vistas de fora.
- Pensei que ninguém se atrevesse a chegar perto daqui - disse Chloe,
segurando Kenny, que dormia em seu colo, enquanto Buck cochilava com a
cabeça apoiada no ombro dela.
- Nunca se sabe o que a imagem por satélite tem condição de mostrar -
disse Rayford. - Podemos estar dormindo profundamente, enquanto o Serviço de
Segurança e Inteligência da CG tira fotos de nós da estratosfera.
- Vou colocar estes dois na cama - ela disse - antes que eu desmaie de
cansaço.

- Eu já trouxe minhas coisas para cá - disse Leah, levantando-se
lentamente. - Onde estão essas camas e onde vamos colocá-las?
- Eu gostaria de poder ajudar - disse Chaim com os dentes cerrados por
estar com a mandíbula amarrada.
Rayford o deteve com um gesto.
- O senhor está aqui conosco e vai me obedecer. Precisamos que o senhor
e Buck estejam em perfeito estado de saúde.
- E eu preciso que vocês estejam alertas para estudar - disse Tsion. - Vocês
me forçaram a passar por muitas provas. Agora vão fazer o curso de suas vidas.
Rayford, Chloe, Leah e Tsion passaram meia hora transportando camas
pelo elevador e improvisando quartos em um corredor interno do 25° andar.
Quando Rayford entrou cautelosamente no helicóptero equilibrado precariamente
no patamar que agora servia como novo teto da torre, todos estavam dormindo,
com exceção de Tsion. O rabino parecia sentir-se revigorado, e Rayford não
conseguia entender o motivo.
Rayford deixou as luzes do painel do helicóptero ligadas e, é claro, as luzes
externas desligadas. Depois de acionar os rotores, ele aguardou alguns instantes
para decolar até que seus olhos se acostumassem à escuridão. De cada lado do
helicóptero, havia um espaço livre de seis metros. Não havia nada mais perigoso
- principalmente para um piloto especialista em aviões de grande porte - do que
as correntes de ar dentro do helicóptero que funcionavam como uma imensa
chaminé. Rayford já havia presenciado helicópteros despencarem no espaço
depois de permanecerem pairando no ar por muito tempo no mesmo lugar. Mac
McCullum tentara dar-lhe uma explicação baseada nas leis da física, mas
Rayford não havia prestado atenção a ponto de assimilar os detalhes. Alguma
coisa acontecia aos rotores, que sugavam o ar da parte inferior do helicóptero
tirando-lhe a capacidade de flutuação. Quando o piloto percebia que estava
despencando, já havia destruído o equipamento, e, quase sempre, todos a bordo
morriam.
Rayford necessitava dormir tanto quanto seus companheiros, mas tinha de
buscar Albie. A questão não era só essa, é claro. Ele poderia ter ligado para o

amigo e dizer-lhe para ficar escondido até a noite seguinte. Mas Albie não
conhecia o país e teria de encontrar um lugar para dormir ou registrar-se em um
hotel sob nome falso. Agora que Carpathia havia ressuscitado e que a CG
aumentara seu contingente de prontidão, por quanto tempo ele poderia se fazer
passar por um funcionário daquela organização?
De qualquer forma, Rayford precisava saber se Albie estava "com ele ou
contra ele", conforme seu pai costumava dizer. Rayford se emocionara ao ver o
selo dos crentes na testa de Albie, porém grande parte do que aquele homem
fizera nas horas que antecederam o nascer do sol chegaram a confundi-lo,
deixando-o atônito. Um homem astuto e vivido como Albie, que tanto os ajudara
pondo em risco a própria vida, seria o pior de todos os inimigos. Rayford
preocupava-se, imaginando que poderia ter conduzido, inadvertidamente, o
Comando Tribulação à toca do inimigo.
Rayford prendeu a respiração quando o helicóptero começou a roncar no
pequeno espaço no topo da torre. Ele havia posicionado cuidadosamente a
aeronave no meio do espaço livre, deixando apenas um canto para orientar-se
no momento de levantar vôo. Se ele mantivesse as hélices eqüidistantes das
paredes, permaneceria no centro até levantar vôo.
Como era desagradável a sensação de ser um homem vulnerável e tão em
evidência! Ele imaginou que David Hassid poderia ter-se enganado confiando em
informações antigas, sem se dar conta de que a CG sabia que Chicago era um
lugar seguro por estar fora dos limites de radiação. O próprio Rayford ouvira
Carpathia dizer que não havia usado radiação para destruir a cidade, pelo menos
inicialmente. Talvez a CG tivesse incutido essa idéia na mente do povo só para
atrair os rebeldes e conduzi-los a um único local a fim de que fossem facilmente
exterminados.
Mesmo depois de levantar vôo da torre, Rayford não se atreveu a acender
as luzes. Ele voaria baixo para não ser detectado pelo radar. Queria também
ficar invisível ao sistema de vigilância que fotografava por satélite, mas o sensor
de temperatura era tão requintado que até mesmo um helicóptero com as luzes
apagadas apareceria na tela como um objeto de cor laranja.

Um arrepio percorreu-lhe a espinha, enquanto ele deixava sua imaginação
divagar. Estaria sendo seguido por uma meia dúzia de helicópteros iguais ao
seu? Talvez não os ouvisse nem os visse. Eles poderiam estar aguardando em
algum lugar, até mesmo no solo. Como poderia saber?
Desde quando ele passara a visualizar mentalmente tantos problemas? Os
perigos verdadeiros eram muitos, e ele não devia ficar conjeturando outros.
Rayford ajustou as luzes do painel na posição mais fraca e, em seguida, viu que
estava se desviando da rota. O erro era fácil de ser reparado, mas ele receava
confiar em seu cérebro, mesmo em uma aeronave pequena como aquela. Certa
vez, Mac lhe dissera que pilotar um helicóptero em relação a um 747 era o
mesmo que dirigir uma bicicleta em relação a um veículo esportivo. Com base
naquela comparação, Rayford concluiu que seu esforço maior seria permanecer
sentado do que manejar os instrumentos do painel. Mas ele jamais havia
planejado fazer um vôo cego em um helicóptero sobre uma imensa metrópole
deserta, na escuridão da madrugada. Ele precisava chegar a Kankakee, pegar
Albie e voltar para a torre antes do alvorecer. Não havia um minuto sequer a
perder. A última coisa que ele queria era ser visto sobrevoando uma área restrita
em plena luz do dia. Ser detectado na calada da noite era uma coisa. Ele poderia
arriscar-se, confiar em seus instintos. Mas, sob a luz do sol, ele não teria
condições de esconder-se e morreria antes de conduzir alguém à nova casa
secreta.
Em Nova Babilônia, os peregrinos frustrados haviam formado uma nova fila,
composta de milhares de pessoas, do lado de fora do palácio da Comunidade
Global. Os guardas da CG interromperam a fila, dizendo ao povo que o
potentado ressurreto teria de sair do pátio quando terminasse de cumprimentar
aqueles que, por um motivo ou outro, estavam no lugar certo no momento certo.
David desviou-se do caminho que dava acesso ao posto de atendimento
médico e presenciou a reação da multidão. O povo não saía do lugar, não se
dispersava. Os guardas, cujas mensagens por megafones eram negligenciadas,

resolveram parar para ouvir as reclamações do povo. David, com olhar de
perplexidade, estacionou atrás de um dos jipes. Um guarda, tão atordoado
quanto ele, encolheu os ombros. O que tinha o megafone na mão disse:
- Façam como quiserem, mas vocês não vão conseguir nada.
- Temos uma idéia! - gritou um homem com sotaque hispânico.
- Estou ouvindo - disse o guarda. A multidão perto dele aquietou-se.
- Vamos adorar a estátua! - ele disse, ouvindo gritos de aprovação.
- O que ele disse? O que ele disse? - perguntavam as pessoas mais
distantes.
- O supremo comandante Fortunato não disse que deveríamos adorar a
estátua? - perguntou o homem.
- De onde você é, meu amigo? - inquiriu o guarda, com admiração na voz.
- Méjico! - gritou o homem em seu idioma nativo, sendo aplaudido por seus
companheiros.
- Você tem o coração de um toureiro! - disse o guarda. -Vou ver se é
possível.
A notícia espalhou-se, enquanto o guarda sentava-se para falar ao telefone.
De repente, ele se levantou e fez um sinal de positivo com o polegar, dizendo:
- Vocês estão autorizados a adorar a imagem de Sua Excelência, o
potentado ressurreto!
A multidão aplaudiu.
- Os líderes de vocês consideraram genial essa idéia!
A multidão começou a cantar, aproximando-se cada vez mais do pátio.
- Por favor, mantenham a ordem! - ordenou o guarda. -Vocês ainda vão ter
de aguardar uma hora. Mas vão ter seu desejo atendido!
David sacudiu a cabeça enquanto fazia uma manobra de retorno e dirigiu-se
ao pátio. O povo ao longo do caminho lhe perguntava:
- É verdade? Podemos pelo menos adorar a estátua? David não respondeu
à maioria deles, mas, quando a multidão cercava seu carrinho, ele era forçado a
frear para não atropelar alguém. Vez por outra, fazia um movimento afirmativo
com a cabeça para delírio do povo. Todos corriam para a fila, que já se alongava

por quase meio quilômetro. Será que aquele dia teria fim?
DOIS

Rayford repreendeu a si mesmo mentalmente. Havia calculado mal o tempo
que gastaria para pegar Albie, decidir o que fazer com o caça a jato e o
Gulfstream e retornar à nova casa secreta antes do alvorecer. Os primeiros raios
de sol começavam a brilhar no horizonte. Rayford apalpou o bolso da calça à
procura de seu telefone. Não o encontrou. Tateou a maleta de vôo, o paletó e o
chão. Nada.
Seu primeiro impulso foi o de praguejar, mas depois de ter voltado à razão
dias antes, reconheceu que precisava controlar-se mais. Aprendera um princípio
com um velho amigo da faculdade que, na época, ele havia considerado muito
esotérico e piegas. Seu amigo, um homem de visão, chamava o que fazia de
"princípio da reação oposta". Em momentos como aquele que Rayford vivenciava
naquele instante, o amigo forçava-se a agir de maneira diametralmente oposta
ao que sentia. Se tivesse vontade de gritar, sussurrava. Se quisesse esmurrar
alguém, dava um tapinha carinhoso no ombro da pessoa.
Rayford só voltara a lembrar-se daquele velho amigo e de suas idéias
malucas no dia em que voara sozinho, com o coração carregado de emoções, do
Oriente Médio para a Grécia e de lá para os Estados Unidos. E, agora, havia
decidido pôr em prática aquela idéia. Queria amaldiçoar a si mesmo por sua
negligência a ponto de ter perdido o telefone. Mas, em vez disso, ele vasculhava
sua mente à procura de uma reação oposta. Uma das reações opostas a
amaldiçoar seria abençoar, mas a quem ele abençoaria? A outra era orar.
Senhor, ele começou a murmurar, mais uma vez necessito de ajuda. Estou
furioso comigo mesmo e tenho poucas alternativas. Sinto-me exausto, mas
preciso que me mostres o que devo fazer.
Quase que instantaneamente, Rayford lembrou-se de que Albie estava com

seu telefone. Albie tinha um também, mas, na correria para pegar suas coisas,
Rayford colocara seu telefone na mão do amigo. Em breve, ele teria de pedir a
alguém que instalasse uma base de rádio na casa secreta com um canal sigiloso
ligado ao helicóptero, de modo que eles pudessem comunicar-se diretamente.
No momento, ele não podia contar aos membros do Comando Tribulação onde
se encontrava e que só retornaria altas horas da noite daquele mesmo dia.
Rayford também não tinha condições de saber se Albie estava bem. Teria
de pousar o helicóptero, fornecer seu nome falso à torre e esperar que Albie
estivesse aguardando por ele.
David deixou recados no telefone de Annie e tentou todos os recursos de
que dispunha para descobrir o paradeiro dela. O pessoal do posto de
atendimento médico estava atarefado demais para procurar o nome dela nos
computadores.
- Não haveria meios de cadastrá-la no sistema - alguém Informou a David -,
mesmo se ela estivesse aqui.
- Vocês não registram o código de barra dos crachás de funcionários
quando eles são internados?
- Ninguém está sendo internado, diretor. Todos passam por uma triagem. Os
vivos recebem tratamento, e os mortos, atestado de óbito. O registro não está na
lista de prioridades, mas temos idéia de fazer isso.
- Como posso saber se ela está aí?
- O senhor pode vir aqui para verificar, mas não interfira e não atrapalhe o
andamento dos trabalhos.
- Onde está sendo feita a triagem?
- Siga pelo lado direito da tenda principal. Fica bem longe de lá. Tentamos
colocar os feridos na sombra de três tendas, mas o espaço é pequeno. A todo o
momento, temos de transferir alguém para colocar outro.
- A maioria sofreu insolação? - perguntou David.
- A maioria foi atingida por raio, diretor.

- Torre chamando helicóptero da CG! Está me ouvindo?
- Aqui é helicóptero da CG, Kankakee - disse Rayford, tentando esconder
que estava aturdido. - Peço-lhe desculpas. Dei um cochilo.
- Não chegou a dormir, espero.
- Não, senhor.
- Apresente-se.
- Ah, sim... piloto civil sob as ordens do subcomandante Marcus Elbaz.
- Sr. Berry?
- Positivo.
- O subcomandante Elbaz pediu que tranqüilizássemos o senhor a respeito
de seu telefone.
- Positivo!
- Autorizado a pousar ao sul, onde ele vai encontrar-se com o senhor no
hangar 2. Estamos com falta de funcionários. O senhor deve cuidar da própria
segurança e reabastecer o helicóptero.
Dez minutos depois, Rayford perguntou a Albie por quanto tempo ele
conseguiria manter aquela farsa de oficial da CG.
- Enquanto seu companheiro Hassid estiver dando ordens no palácio. Ele é
um jovem extraordinário, Rayford. Confesso que levei alguns sustos aqui. Eles
foram durões, mesmo estando com falta de funcionários. Tive de enfrentar dois
postos de controle.
Rayford semicerrou os olhos.
- Eles me autorizaram a chegar até aqui sem olhar muito para meu rosto, e
eu nem sequer contatei a torre.
- Porque você está comigo e é um piloto civil.
- Você convenceu o pessoal, não?
- Completamente, graças a seu amigo. Além de me incluir nos registros da
CG, fornecendo nome, patente e número de série, ele também me designou para
trabalhar nesta parte dos Estados Unidos Norte-americanos. Estou aqui em

missão oficial. Consegui ser melhor do que a maioria dos funcionários
verdadeiros da CG.
- David é muito bom - disse Rayford.
- Ele é ótimo. Eu esbravejei, demonstrei impaciência e fingi que eles se
meteriam em uma tremenda encrenca se demorassem muito tempo para me
liberar. Mas eles não moveram uma palha sequer até que o segundo posto de
controle digitou meu nome no computador e acessou o banco de dados de
David. Um dia esse rapaz vai ter de me contar como consegue fazer isso. Ele
incluiu todas as informações sobre mim, e, quando meus documentos bateram
com o que apareceu na tela, fiquei por cima. Aí, eu comecei a gritar, ordenando
que eles facilitassem sua chegada e que tínhamos assuntos urgentes para tratar.
Rayford contou a Albie que seria impossível voltar para a casa secreta antes
do escurecer e que talvez tivesse de levá-lo de volta a Palwaukee para ele
conduzir o Gutfstream a Kankakee.
- Você quer divertir-se um pouco? - perguntou Albie. -Gostaria de ver se a
CG já pôs fogo na antiga casa secreta, e, se ainda não pôs, você gostaria de
fazer esse servicinho para eles?
- Até que não é má idéia - disse Rayford. - Se eles já incendiaram a casa,
tudo bem, mas, se começarem a vasculhar tudo à procura de provas, vou ficar
preocupado com o que deixamos lá.
- Eles não têm funcionários para fazer isso - disse Albie, caminhando em
direção ao helicóptero. - Está abastecido?
Rayford assentiu com a cabeça.
- O caça também está abastecido, pronto para decolar quando for
necessário. - disse Albie.
Ele passou a sacola por cima do ombro, pegou o telefone que estava dentro
e o entregou a Rayford.
- Há três ligações para mim - resmungou Rayford enquanto eles subiam no
helicóptero. - Espero que tudo esteja bem em Chicago. Quando chegaram estas
ligações?
- As três chegaram cerca de meia hora atrás, uma seguida da outra. Não

apareceram os números de quem ligou, e eu achei que não devia atender.
Depois que eles ataram os cintos, Rayford disse:
- Acho melhor ligar para a casa secreta. Tsion atendeu com voz sonolenta.
- Sinto muito tê-lo acordado, doutor - disse Rayford.
- Oh, capitão Steele, não há problema. Eu cochilei sem perceber. Ouvi o
telefone de Chloe tocar várias vezes, mas ela estava dormindo pesado. Ninguém
despertou. Todos estão exaustos. Quando atendi, a pessoa já havia desligado.
Em seguida, o telefone tocou novamente, e eu o levei para um lugar sossegado.
- Rayford, era a Srta. Durham!
- Você tem certeza?
- Tenho, e ela parecia desesperada. Implorei para que ela me contasse
onde estava e disse-lhe que todos nós a amávamos muito e que estávamos
orando por ela, mas a moça queria falar só com você. Disse que tentou ligar para
o seu celular. Eu disse que tentaria falar com você. Tentei duas vezes, mas não
consegui nada. De qualquer forma, você tem o número dela.
- Vou ligar para ela.
- Eu gostaria que você me mantivesse informado.
- Tsion, vá descansar um pouco. Você tem muito trabalho a fazer, encontrar
um lugar para instalar seu computador, doutrinar Chaim...
- Oh, Rayford, estou tão empolgado com isso que mal posso me conter. E
tenho muitas coisas a transmitir pelo computador a meu público. Mas você está
certo, precisa ligar para a Srta. Durham. Se não houver nada muito importante,
você nos conta quando voltar. Francamente, achei que você já deveria estar
aqui.
- Eu calculei mal o tempo, Tsion. Não vou ter condições de voltar antes de o
dia clarear. Mas agora estou com meu telefone.
- E você tem de encontrar-se com seu amigo do Oriente Médio.
- Já me encontrei com ele.
- Ele está bem, Rayford? Perdoe-me por perguntar, mas ele parecia
preocupado.
- Está tudo bem aqui, doutor.

- Ele também se converteu, correto?
- Sim.
- E vai morar conosco?
- Provavelmente.
- Então, vou aguardar o momento de doutriná-lo também.
David ficou espantado ao chegar ao posto de atendimento médico. Visitara
várias vezes as instalações internas, as quais, apesar de simples, eram bem
organizadas. O local, que começara como um posto de primeiros socorros para
atender uma dúzia de pessoas durante o velório de Carpathia, agora parecia um
hospital móvel do exército.
Os demais pontos de atendimento de emergência estavam sendo
desmontados. Os feridos eram levados para o centro de triagem no pátio ou para
as instalações internas.
Filas e mais filas de macas improvisadas lotavam o pátio.
- Por que vocês não transportam estas pessoas para dentro? - perguntou
David, ajeitando o colarinho de seu uniforme.
- Por que você não cuida de seu trabalho e deixa que nós cuidemos do
nosso? - disse o médico, que atendia uma vítima de insolação.
- Eu não tive a intenção de criticar. Acontece que...
- Acontece que estamos todos aqui fora - disse o médico. -Pelo menos a
maioria de nós. Grande parte dos pacientes está com sintomas de insolação e
desidratação, e grande parte dos mortos foi atingida por raio.
- Estou procurando...
- Sinto muito, diretor, mas o senhor vai ter de procurar essa pessoa por
conta própria. Não estamos preocupados com os nomes e as nacionalidades
destas pessoas. Só estamos tentando mantê-las vivas. Cuidaremos da papelada
mais tarde.
- Havia uma funcionária minha designada para...
- Sinto muito! Não pense que estou sendo negligente, mas não posso ajudá-

lo! Entendeu?
- Ela sabia como evitar insolação e desidratação.
- Ótimo. Agora, até logo.
- Ela estava trabalhando no setor 53.
- Acho que o senhor não vai querer saber o que houve no setor 53 - disse o
médico, voltando a cuidar de seu paciente.
- O que houve?
- Muitas vítimas de raio. Houve uma descarga elétrica muito grande lá.
- Para onde as vítimas foram transportadas?
O médico não queria mais conversar com David. Ele fez um gesto para um
assistente.
- Conte a ele.
O jovem falou com sotaque francês.
- Para nenhum lugar especial. Algumas vieram para cá. Outras foram
tratadas naquele setor. Outras, nas instalações internas.
David deu partida no carrinho de golfe, mas, em seguida, o abandonou e
passou a pé pela fila de vítimas. Sua missão era impossível. Como ele poderia
identificar alguém ali? Annie estava usando uniforme. Apesar de ter certeza de
que a reconheceria, todos os pacientes estavam sob lençóis umedecidos para
esfriar o corpo, só com os pés à mostra. Ele teria de olhar o rosto de cada um. E
estaria interferindo no trabalho dos médicos.
Enquanto caminhava com passos apressados sob o intenso calor, David
pegou uma garrafa d'água presa em seu cinto e constatou que ela estava vazia.
Ele tinha a garganta seca e sabia que sua sede não agüentaria mais que alguns
minutos. Desde quando não tomava um gole d'água? Desde quando não comia?
Desde quando não dormia?
Os telões mostravam Viv Ivins, Leon Fortunato e Nicolae Carpathia
cumprimentando os peregrinos, murmurando palavras carinhosas, abençoando-
os, tocando-os. As ondas de Calor que subiam do asfalto fizeram o uniforme de
David grudar em sua pele como se fosse um tecido encharcado. Ele parou e
curvou-se para recuperar o fôlego, mas sua garganta parecia inchada, a boca

incapaz de produzir saliva, e a traquéia apertada. Tontura. Annie. Sensação de
desmaio. Calor. Annie. A cabeça girando. Sede. Mãos vermelhas.
David inclinou-se para a frente; seu quepe escorregou e caiu. Sua mente
dizia para pegá-lo, mas as mãos pareciam grudadas nos joelhos. Não caia! Não
caia! Mas ele não podia fazer nada. Seus braços não se moviam. Seu rosto seria
o primeiro a bater no chão. Não, ele protegeria o queixo.
David caiu de cabeça no chão. O asfalto irregular arrancou-lhe um chumaço
de cabelos. Ele fechou os olhos imaginando a dor que sentiria e enxergou listras
brancas dançando à sua frente. Ainda com as mãos nos joelhos e as nádegas
para cima, ele rolou lentamente de lado e caiu sobre o quadril. Ao abrir os olhos,
viu sangue pingando de seu rosto e coagulando rapidamente até formar uma
poça no asfalto quente. Ele tentou movimentar-se, falar. De repente, tudo
escureceu à sua volta, e ele só conseguiu pensar que seria o próximo a entrar na
longa fila das vítimas.
- Quer que eu assuma o comando enquanto você faz a ligação? - perguntou
Albie.
- Acho que é melhor - disse Rayford.
Eles trocaram de lugar, e Rayford discou para o número de Hattie. Ela
atendeu sussurrando, com voz rouca, assustada, logo após o primeiro toque.
- Rayford, onde você está?
- Não posso dizer Hattie. Fale comigo. Onde você está?
- Colorado.
- Seja mais específica.
- Pueblo, no extremo norte, acho.
- A CG encontrou você?
- Sim. E eles vão me mandar de volta para o Presídio da Bélgica.
Rayford permaneceu calado.
- Não me deixe pendurada na linha, Rayford. Já fomos longe demais.
- Hattie, não sei o que dizer.

- O quê?!
- O que você quer que eu faça?
- Venha me buscar! Não posso voltar para a Bélgica. Vou morrer lá.
- E o que você espera que eu faça?
- A coisa certa, Ray.
- Em outras palavras, arruinar minha vida e expor o Comando...
Clique.
Rayford não sabia dizer se ela desligou por ter-se sentido insultada ou
porque ouvira alguém se aproximando. Ele contou a Albie o teor da conversa.
- O que você vai fazer, meu amigo?
Rayford encarou Albie sob a iluminação fraca do painel de instrumentos e
sacudiu a cabeça.
- Essa mulher não pára de nos causar sofrimento. - Mas você se preocupa
com ela. Já me contou.
- Contei?
- Timtim por tintim. Talvez tenha sido Mac.
- Mac não conhece Hattie.
- Mas conhece você, e vocês dois costumavam conversar, não?
Rayford assentiu com a cabeça.
- Sabemos que ela saiu do PRFB e achamos que...
- PRFB?
- Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica.
- Ah, agora me lembro.
- Nós sabíamos que eles esperavam que ela os levasse até nós durante a
festa de gala em Jerusalém, mas...
- Com licença, Rayford, mas você quer que eu pegue a rota para sobrevoar
a antiga casa secreta ou vamos direto a Palwaukee?
- Depende. Eu preciso decidir se vou ou não ao Colorado.
- A escolha é sua, mas, se me permite dizer, eu esperava que você fosse
mais decidido. Eu estou representando o papel de uma autoridade, mas pareço
ser mais líder que você. Sei que seu pessoal o admira e o respeita.

- Eles não deveriam. Eu...
- Você fez as pazes com eles, Rayford. Eles o perdoaram. Voltou a ser o
líder deles. O que você vai fazer a respeito de Hattie Durham? Decida-se. Diga-
me o que vai fazer, diga ao pessoal do Edifício Strong e vá em frente.
- Eu não sei, Albie.
- Você nunca vai saber. Analise as opções, pese os prós e os contras e
tome uma decisão. A antiga casa secreta fica a dez minutos daqui. Comece com
uma pequena decisão.
- Vamos até lá para dar uma olhada.
- Melhor para você, Rayford.
- Não queira bancar o chefe, Albie. Estamos dentro de um helicóptero da
CG. Ninguém vai suspeitar de nós.
- Mas você tomou uma decisão. Agora pense alto a respeito de outra mais
importante. Vamos ao Colorado?
- Conforme eu estava dizendo, em vez de levar a CG até nós, ela foi para lá.
A família dela morreu, mas talvez ela tenha imaginado que reencontraria alguns
amigos no Colorado. Quem sabe? Não sei dizer se ela confundiu o pessoal da
CG por ter dado uma tacada de gênio ou por pura sorte, mas estou inclinado a
acreditar na última hipótese.
- Quer dizer que ela pode estar levando vocês até eles e não o contrário.
Rayford virou-se para o outro lado e olhou pela janela, orando
silenciosamente. Fazia poucos anos que sua paixão por Hattie Durham quase lhe
custara o casamento. Ele assumiu toda a culpa, mas desde então ela só se
meteu em confusões. Ele e os outros membros do Comando Tribulação
demonstraram carinho por ela e a aconselharam, deram-lhe abrigo e insistiram
para que aceitasse a Cristo. Mas ela não se deixou persuadir e tanto fez que
quase comprometeu a segurança do Comando Tribulação. Pelo que ele sabia, a
CG descobriu a casa secreta por causa de Hattie. O telefone de Rayford tocou.
- Hattie?
- Ouvi passos. Eles me colocaram em um quartinho dentro de um
esconderijo que fica a uma hora de distância ao sul de Colorado Springs.

- Estou muito longe daí.
- Oh, obrigada, Rayford. Eu sabia que podia contar...
- Eu ainda não decidi o que vou fazer, Hattie.
- Claro que decidiu. Você não vai me deixar aqui para ser mandada de volta
à prisão ou coisa pior. O que eu preciso fazer ? Prometer que vou me converter?
- Só se você estiver sendo sincera.
- Se você não vier me buscar, pode dar adeus a essa idéia.
Rayford desligou o telefone e suspirou fundo.
- Que idiota!
- Ela? - perguntou Albie. - Ou você por estar imaginando coisas?
- Ela! Está na cara que a CG quer atrair um de nós para lá. Assim que eles
me pegarem, vão me obrigar a fornecer informações sobre o resto do Comando
Tribulação. Quem eles realmente querem é Tsion. O resto de nós só serve para
perturbá-los. Tsion é o inimigo.
- Quer dizer que você tem de escolher entre essa tal Srta. Durham e Tsion
Ben-Judá? Quer meu voto?
- Não é assim tão fácil. Queremos que ela aceite a Cristo, Albie. É verdade.
Todos nós queremos.
- E você acha que, se a abandonarem agora, ela nunca vai se converter?
- Foi o que ela disse.
- Talvez o que vou dizer pareça frio demais, e admito que sou novato nesse
assunto, mas a escolha é dela, não? Você não pode tomar uma decisão por ela.
- Se eu for até lá, vai ser a coisa mais estúpida que já fiz. Eles a pegaram,
prenderam, ameaçaram mandá-la de volta à prisão, mas deixaram que ela
ficasse com um telefone na mão.
Albie esquadrinhou o horizonte.
- Então, a decisão é fácil.
- Eu gostaria que fosse.
- E é. Ou você decide que não vai ou analisa todas as possibilidades.
- Como assim?
- Há uma coisa de que você se esqueceu. Talvez duas.

- Diga.
- Incumba David de descobrir exatamente onde eles a prenderam e peça-lhe
que envie uma ordem de um comandante qualquer para manter Hattie lá até
aviso posterior. Aí, você liga para ela e diz que não vai até lá. Diga isso de
maneira que ela ou quem estiver ouvindo acredite. De repente, você aparece e
faz um ataque de surpresa, no momento em que tanto ela quanto a CG pensam
que você a abandonou.
Rayford mordeu o lábio.
- Talvez fosse melhor você ser o líder do Comando Tribulação. Mas esse
ataque de surpresa não significa que vou ter êxito. É bem provável que eles me
matem ou me prendam.
- Existe uma segunda possibilidade.
- Continuo ouvindo.
- Senhor? Diretor? O senhor está bem?
- Ele está inconsciente.
- Os olhos dele estão abertos, doutor.
- Ele caiu de ponta-cabeça no chão, feiticeira.
- Eu já lhe pedi para não me chamar de...
- Desculpe-me. Não sei se você já cuidou de feridos na guerra, mas este
aqui não conseguiu se segurar para não cair. Ele nem sequer poderia fechar os
olhos, mesmo que quisesse.
- Ajude-me a colocá-lo na...
- Lá vem você de novo, meu bem. Não sou um serviçal.
- E lá vem você de novo, doutor! Podemos deixá-lo aqui sangrando até
morrer ou posso fazê-lo lembrar que o número de pacientes é maior que o
número de atendentes.
A língua de David estava inchada, e ele não podia articular as palavras. Ele
só queria pedir água, mas sabia que sua cabeça também necessitava de
cuidados.

- Borrifador! - gritou a enfermeira de pele morena, e alguém entregou-lhe um
frasco. Ela borrifou água morna diretamente no rosto de David. Mas ele não
conseguiu piscar. Comparada ao calor do asfalto, que ele calculou estar a quase
50° C, a água parecia gelada. Algumas gotas molharam-lhe a boca e ele ofegou,
tentando sorvê-las.
O médico e a enfermeira o viraram cuidadosamente de costas. Em sua
mente, ele continuava com os olhos semicerrados sob o sol escaldante, mesmo
sabendo que eles estavam arregalados e ardendo. Ele queria pedir mais uma
borrifada, mas sentia-se paralisado. A enfermeira colocou carinhosamente o
quepe sobre seu rosto. Ele tentou não se mover para manter o quepe no lugar.
Se conseguisse falar, ele perguntaria por Annie, mas não linha condições. Ela
devia estar em algum lugar à procura dele.
Quando David foi transportado para uma maca de lona, 0 quepe escorregou
de seu rosto. Ele conseguiu piscar e, em breve, estava sob a sombra de uma
tenda abarrotada de gente. Alguém o colocara no último fio de sombra que
restava.
- Estado crítico? - perguntou alguém.
- Não - respondeu o médico. - Mas é melhor suturar logo a cabeça dele.
A primeira picada de injeção no couro cabeludo fez seu corpo inteiro sacudir
e estremecer, mas ele ainda não conseguia gritar. Em questão de segundos, o
topo da sua cabeça estava completamente anestesiado.
- Você pode fazer isso? - perguntou o médico.
- Não vai ficar igual a uma cirurgia plástica, vai?
- Passe o fio como se fosse amarrar uma bola de futebol. Tanto faz. Ele
sempre vai poder usar um chapéu.
Na verdade, David não se importava com a aparência de sua cabeça, e isso
foi bom, porque a enfermeira raspou rapidamente uma parte de cada lado do
corte, borrifou mais água nele, e começou a tirar uma enorme agulha da
embalagem.
- Es... tou... mal? - ele perguntou, com a língua enrolada.
- Você vai sobreviver - ela respondeu. - O ferimento foi superficial, embora

tenha atingido o crânio. Foi arrancada uma boa parte de carne de cima do osso.
Pelo menos uns 12 centímetros, na parte lateral da cabeça.
- Á...gua.
- Não entendi.
- Um... pouco.
Ela tirou rapidamente a tampa do borrifador, que ainda continha um pouco
de água.
- Aqui está.
A maior parte escorreu pelo pescoço de David, mas serviu para soltar sua
língua.
- Procurando cabo Christopher - ele disse.
- Não o conheço - ela disse. - Não se mexa.
- É ela. Annie Christopher.
- Diretor, tenho apenas cinco minutos para cuidar do senhor. Se o senhor
tiver sorte, vou encontrar um soro intravenoso e reidratá-lo. Mas, enquanto eu
estiver fazendo a sutura, o senhor não pode abrir a boca nem se mexer, senão
vai ficar com uma aparência horrível.
-Você está vendo o mesmo que eu? - perguntou Albie, semicerrando os
olhos. Rayford acompanhou o olhar dele e foi tomado pela emoção. Uma coluna
negra de fumaça de vários metros subia em direção ao céu.
- É a sua casa? - ele perguntou. Albie assentiu com a cabeça. Só pode ser.
- Aproxime-se o mais que puder - disse Rayford. - Aquela casa foi o meu lar
por um longo tempo.
- Está bem. Agora, você vai usar todas as possibilidades disponíveis? Ou
será que perdi dinheiro com este uniforme e com todas estas credenciais?

TRÊS

Buck despertou ao meio-dia, horário de Chicago, sentindo-se com o dobro
de sua idade. Como acontecia desde o dia do Arrebatamento, ele sabia
exatamente onde estava. No passado, era comum acordar em uma cidade
estranha e ter de lembrar-se de onde estava, quem era e o que fazia ali. Agora
não. Mesmo exausto, ferido e quase sem condições de raciocinar, o instinto de
preservação, mantinha bem ativa sua mente outrora tão desligada.
Havia dormido um sono profundo, mas, assim que abriu os olhos e olhou
para o relógio, ele sabia onde estava. Tudo fazia sentido de uma forma absurda.
Buck olhou para a parede perto do elevador de um arranha-céu bombardeado da
cidade de Chicago, ouviu vozes abafadas vindas do outro lado do corredor e
sentiu cheiro de café e de bebê. Kenny tinha um cheiro próprio - cheirinho de
bebê misturado com talco -, do qual Buck se lembrava com saudades quando
estava longe de casa.
Mas Kenny estava mesmo ali, e era mantido afastado das janelas dos
corredores por onde penetravam os raios de sol do meio-dia. Buck deitou-se de
costas e levantou um pouco o corpo apoiando-se nos cotovelos. Aparentemente,
Kenny desistira de tentar pular a barreira improvisada que o protegia e
contentou-se em brincar com o cordão solto de um de seus sapatos.
- Ei, Kenny Bruce - sussurrou Buck. - Venha aqui com o papai.
Kenny levantou a cabeça, apoiou-se nos pés e nas mãos para erguer o
corpo e caminhou com passos vacilantes até a cama.
- Pa-pá - ele disse.
Buck estendeu as mãos para pegá-lo, e aquela criaturinha gorducha subiu
em cima dele e deitou-se sobre seu corpo. Buck deixou a cabeça cair sobre o
travesseiro e passou os braços ao redor de Kenny. O garoto raramente tinha
paciência para ficar descansando nos braços do pai, mas agora parecia estar
pronto para tirar um cochilo. Buck gostaria de ficar deitado ali para sempre,
sentindo as batidas do pequenino coração do bebê em seu peito.
- Pa-pá tchau? - disse Kenny, e Buck não conseguiu conter as lágrimas.

Rayford havia tomado uma decisão, ou melhor, várias. Depois de ver a
antiga casa secreta totalmente destruída pelo fogo, ele instruiu Albie a retornar
para Kankakee, onde eles pegariam o caça da CG rumo ao Colorado.
- Agora estou gostando de ver, capitão - disse Albie.
- Gostando de ver o quê? - resmungou Rayford. - Acho que estou levando
nós dois para a morte.
- Você está fazendo a coisa certa.
Sem conseguir falar com David em Nova Babilônia, Rayford deixou um
recado pedindo que ele lhe telefonasse de volta e informou a localização exata
de Hattie. Disse também que, caso sua missão fracassasse, David deveria
informar ao pessoal da CG para manter Hattie lá até que alguém autorizado
fosse buscá-la.
David tinha condições de burlar outros sistemas da CG e enviar essas
ordens de forma que eles não pudessem saber de onde partiram. Ele era o único
responsável pelos códigos de segurança que mantinham essas transmissões
fora do alcance dos "inimigos da Comunidade Global". Portanto, ele podia usar
os canais sem ser detectado. "Assim que você puder", Rayford gravou na
secretária eletrônica particular de David, "ligue para Albie ou para mim
confirmando que preparou o caminho para nós."
Dentro de pouco tempo, Rayford teria de transmitir sua fotografia a David,
com sua nova aparência e nome, para que o jovem israelense pudesse "alistá-lo"
também nas Forças Pacificadoras da Comunidade Global. Enquanto isso, ele e
Albie pousariam na antiga Base Peterson da Força Aérea, pegariam um jipe que
David reservaria para eles, seguiriam suas instruções para chegar ao tal
esconderijo e libertariam a prisioneira.
Enquanto Albie retardava o pouso para deixar o tanque do caça quase
vazio, Rayford cochilou mais de duas horas. Albie o despertou para dizer-lhe que
David ainda não dera notícias.
- Isso não é bom sinal - disse Rayford, fazendo outra ligação para Nova

Babilônia. Ninguém atendeu. - Você tem um computador, Albie?
- Tenho um subnotebook, que pode ser conectado a satélite.
- Programado para comunicar-se com David?
- Se você souber quais são as coordenadas, posso dar um jeito.
Rayford encontrou o computador na sacola de vôo de Albie.
- As baterias estão fracas - ele disse.
- Ligue o computador na tomada do avião - disse Albie. -Eu não costumo
usar baterias de longa duração.
- Não desligue os motores depois que pousarmos - disse Rayford. - Isso
aqui pode demorar um pouco.
Albie fez um movimento afirmativo com a cabeça e comunicou-se por rádio
com o posto da CG.
- CG NB4047 chamando Torre Peterson.
- Você devia saber que o nosso nome mudou para Memorial a Carpathia -
foi a resposta.
- O erro foi meu, torre - disse Albie. - É a primeira vez que venho para cá
depois de muito tempo.
Albie piscou para Rayford, que tirou os olhos do computador. Albie nunca
esteve nos Estados Unidos antes.
- Vamos ter de tirar o Memorial do nome, não é verdade, 4047?
- Como assim?
- Ele ressuscitou.
Albie olhou com ar maroto para Rayford.
- Ah, sim, fiquei sabendo. Que coisa boa, não?
- Você devia responder dizendo assim: "Ele ressuscitou verdadeiramente."
Rayford fez um gesto como se estivesse enfiando o dedo na garganta. Albie
sacudiu a cabeça.
- Eu acredito nisso, torre - ele disse, olhando para Rayford.
- Viagem de negócios?
- Subcomandante em missão confidencial.
- Nome?

- Marcus Elbaz.
- Um momento.
- Estou com pouco combustível, torre.
- Estamos com pouco pessoal aqui, comandante Elbaz. Aguarde só um
minuto.
- Vamos pousar de qualquer maneira - disse Albie a Rayford, que estava
atarefado captando detalhes para conectar o computador a um satélite que o
ligaria diretamente com o computador de David.
- Tudo bem, senhor - disse a torre. - Seu nome aparece no sistema.
- Positivo.
- Mas o senhor não foi autorizado a fazer esta rota. Esteve em Kankakee?
- Eu vim de lá.
- E tem negócios aqui?
- Repito, missão confidencial.
- Oh, sim, sinto muito. O senhor necessita de mais alguma coisa?
- Reabastecer e ter um veículo pronto para rodar.
- Conforme eu lhe disse, senhor, não temos esse tipo de serviço aqui.
Podemos reabastecer sua aeronave sem problemas mediante código de
autorização. O transporte por terra está escasso.
- Pensei que você poderia dar um jeito.
- Estamos com falta de pessoal e...
- Você já disse isso.
- ... e francamente, senhor, não há ninguém aqui com patente semelhante à
sua.
- Espero, então, que alguém que esteja no comando obedeça minhas
ordens e consiga um veículo.
Uma longa pausa.
- Vou... hã... passar suas ordens adiante, senhor.
- Obrigado.
- E o senhor está autorizado a pousar.

David despertou no hospital do palácio. Sua cabeça latejava tanto que ele
mal conseguiu abrir os olhos. Em seu quarto havia dois outros pacientes
dormindo. Alguém tirara-lhe as roupas e o vestira com uma camisola de tecido
fino. Ele tinha uma agulha espetada na mão, ligada ao soro intravenoso. Com
muito esforço, conseguiu pegar seu relógio que estava na mesinha ao lado da
cama e segurou-o diante de si com os olhos turvos. Nove horas da noite! Não
podia ser.
Ele tentou sentar-se e percebeu que havia bandagens ao redor de sua
cabeça e das orelhas. Ouvia a própria pulsação e sentia dor a cada batida.
Estava escuro lá fora, mas um aparelho de TV, sem som, mostrava imagens dos
peregrinos que continuavam no pátio do palácio, ajoelhando-se, curvando-se,
adorando, orando diante da gigantesca estátua de Nicolae.
Do outro lado do leito, havia um controle-remoto. David não queria despertar
os outros pacientes, mas a legenda na tela estava em árabe. Depois de algumas
tentativas, ele conseguiu mudá-la para o inglês e viu que se tratava de letras de
canções, enquanto o povo passava lentamente diante da imagem. A câmera
recuou para mostrar a imensa multidão, aparentemente tão grande quanto a do
funeral. A fila fora do palácio tinha quase dois quilômetros.
David entrou em pânico. Fazia meses que ele não ficava tanto tempo
afastado de seu telefone e de seu computador.
Ao esticar o pescoço à procura de um telefone, sentiu uma dor muito forte e
foi forçado a deitar-se novamente. Ele puxou um cordão ligado ao posto de
enfermagem, mas ninguém apareceu. O número de enfermeiros em relação ao
de pacientes era ridiculamente inferior, mas, por certo, os funcionários do
hospital sabiam que ele era um diretor. Isso deveria servir para alguma coisa.
A reidratação por meio do soro estava funcionando, e ele precisava
urgentemente ir ao banheiro. Não havia nenhum "papagaio" por perto. Ele
acionou os controles na lateral do leito até conseguir abaixar uma das grades.
Fez uma careta ao virar as pernas de lado, dando uma pausa para acalmar a
pulsação rápida e recuperar o fôlego.

Finalmente, conseguiu colocar as duas mãos na beira do leito e pisou no
chão. O mármore estava frio demais para seus pés quentes, mas a sensação foi
boa. Ele levantou-se com o corpo balançando um pouco por causa da tontura e
esperou até equilibrar-se completamente. Assim que se sentiu em condições,
deu um passo em direção ao banheiro, mas a agulha espetada em sua mão o fez
lembrar que ele ainda estava ligado ao soro intravenoso. Ele recuou e sacudiu a
haste de metal presa na parede e no leito, mas, quando tentou arrastá-la, ela
ficou presa.
Um fio do monitor estava ligado à parede. Ele tentou puxá-lo, mas não
conseguiu desligá-lo nem arrastar a haste de metal. David sabia que deveria
haver um truque simples para fazer isso. Talvez estivesse parafusado ao
contrário ou precisasse ser arrancado com força ou coisa parecida. Ele só sabia
que precisava ir urgentemente ao banheiro. Sentindo uma dor lancinante,
arrancou o esparadrapo, tirando junto alguns pêlos da mão. Em seguida, puxou a
agulha de uma só vez. A ferroada fez encher seus olhos de lágrimas, e enquanto
o soro pingava no chão, ele fez mais urna fraca tentativa para tampar o tubo
condutor, amarrou-o e dirigiu-se ao banheiro.
Em questão de segundos, soou um alarme informando o posto de
enfermagem que um soro intravenoso havia sido desligado. Depois de usar o
banheiro, David abriu a porta do armário. Suas roupas estavam lá, mas o
telefone não. Ele quase teve uma vertigem de dor e de medo. Seria o fim?
Alguém teria dado retorno às ligações das pessoas do Comando Tribulação que
tentaram falar com ele? Será que havia sido descoberto? Deveria encontrar
Annie e sair dali? E se ela estivesse morta? Com certeza, ela preferiria vê-lo fugir
a arriscar-se em vão para tentar localizá-la.
Não havia nenhuma possibilidade. Ele não partiria sem ela ou sem saber
com certeza que estava morta.
- O que o senhor está fazendo fora da cama? - A voz não era de um
enfermeiro, mas de uma enfermeira.
- Fui ao banheiro - ele disse.
- Volte para a cama - ela disse. - O que o senhor fez com o soro?

- Eu estou bem.
- Temos "papagaios" e...
- Eu já usei o banheiro. Só quero...
- Fale mais baixo! Todos deste andar conseguem ouvir o que o senhor está
dizendo. Seus companheiros de quarto estão dormindo.
- Eu só preciso...
- Senhor, será que vou precisar chamar alguém aqui para amarrar sua
boca? Fale baixo!
- Eu estou falando baixo! É que...
De repente, David percebeu que as bandagens sobre suas orelhas o
forçavam a falar alto.
- Desculpe-me - ele disse. - Sou o diretor Hassid. Preciso encontrar ...
- Oh! O senhor é o diretor. Foi vítima do raio?
- Sim, fui atingido e bati o topo da cabeça no chão, mas estou aqui.
- O senhor não precisa...
- Desculpe-me. Eu só desmaiei por causa do calor. Estou bem.
- O senhor foi operado. Uma pequena cirurgia. Se o senhor é o diretor,
acho que devo dizer a alguém que já voltou a si.
- Por quê?
E por que ela perguntara sobre o raio? Teria Annie sido uma vítima do raio e
eles descobriram a ligação que havia entre os dois? Ele não queria perder a
noção das coisas.
- Eu não sei, senhor. Só faço o que me mandam. Há seis enfermeiros e dois
atendentes cuidando deste andar inteiro. Alguns andares estão com menos
funcionários ainda...
- Eu preciso saber onde está meu telefone. Eu o carrego comigo, e não está
em meu uniforme. Sei que você vai dizer que devo ficar longe de meu uniforme,
mas...
- Ao contrário. O senhor foi lavado com uma esponja quando chegou aqui.
Se o seu caso for ambulatorial, acho que pode vestir seu uniforme.
- Você acha?

Aquilo não podia ser verdade. Havia alguma coisa errada. David tinha
certeza de que precisaria sair fugido dali, mas agora estava sendo dispensado.
- Vou falar com minha supervisora, mas o senhor pode começar a vestir-se.
Pode fazer isso sozinho?
- Claro, mas...
- Então, comece a vestir-se. Eu voltarei logo. Ou ela.
David havia superestimado suas forças. Pegou suas roupas do armário e
sentou-se em uma cadeira para vestir-se, mas sentiu falta de ar e tontura, Sua
cabeça estava queimando como fogo e parecia que seu ferimento vertia água por
cima das orelhas; porém, quando ele passou a mão pela bandagem, constatou
que não havia nada. Ele não queria pensar no momento em que a bandagem
fosse retirada.
Depois de vestir o uniforme, mas ainda sem meias e sem sapatos, David
escancarou a porta para que a luz do corredor iluminasse o quarto. Olhou no
espelho e estremeceu de susto. Por ter pele lisa e morena, cabelos e olhos
pretos, ele costumava ser confundido com um adolescente, apesar dos seus
vinte e poucos anos. De agora em diante, isso jamais aconteceria. Quando foi
que ele envelheceu tanto?
Seu rosto estava magro, chupado e sem cor. Ele abaixou a cabeça e viu a
bandagem úmida de sangue. A faixa cobria-lhe as orelhas e passava por baixo
do queixo, fazendo-o lembrar de personagens de filmes antigos quando tinham
dor de dente. A cabeça de David parecia ter inchado sob a faixa apertada.
Quando colocou cuidadosamente o quepe na cabeça, ele constatou que o
inchaço era real. Não era possível saber qual a espessura das bandagens, mas o
quepe havia ficado pequeno demais. Suas tentativas de esconder os pontos para
não chamar a atenção dos outros também não surtiram efeito. Talvez ele
conseguisse encontrar um quepe maior - bem maior -, mas seria impossível
esconder a faixa que passava por baixo de seu queixo.
A supervisora da equipe de enfermagem bateu delicadamente na porta e
entrou enquanto David calçava as meias. Ela era loira, alta e magra, aparentando
ter o dobro da idade dele. O esforço era muito grande, e ele teve de endireitar o

corpo várias vezes e respirar fundo para aliviar um pouco a dor.
- Deixe-me ajudá-lo - disse a supervisora, com acentuado sotaque
escandinavo.
Ela ajoelhou-se no chão, ajudou-o a calçar as meias e os sapatos, e os
amarrou. David estava tão acabrunhado pela dor que quase chorou. Seria ela
cristã? Ele sentiu vontade de perguntar. Uma pessoa com um espírito tão
serviçal como o dela devia ser cristã ou estar prestes a converter-se.
- Senhora... - ele disse, tentando falar baixo.
A supervisora levantou a cabeça, e ele olhou para a testa dela na esperança
de ver o selo dos crentes. Não viu nada.
- Obrigado.
- Não há de quê - ela disse rapidamente. - Estou feliz por ajudar e gostaria
de poder fazer mais alguma coisa pelo senhor. Por mim, o senhor ficaria pelo
menos mais dois dias conosco.
- Preciso ir embora logo. Eu...
- Oh, eu sei disso. Ninguém quer ficar aqui, e quem pode censurar, depois
de toda aquela euforia da ressurreição? Mas o potentado convocou uma reunião
de seus diretores e assessores diretos às 22 horas, em seu escritório. O senhor
deve comparecer.
-Eu?
- O pessoal dele ficou sabendo que o senhor desmaiou por causa do calor,
sofreu alguns ferimentos e foi operado. Fomos informados de que, se seu caso
fosse ambulatorial, o senhor deveria comparecer.
- Entendo.
- Ainda bem que alguém entende. Na condição de paciente, o senhor não
deveria ficar andando por aí tão cedo...
- Disseram-me que a cirurgia foi superficial, simples.
- Uma cirurgia simples em outro paciente seria considerada uma operação
grave. 0 senhor sabe disso, tenho certeza. Sabe que a enfermeira fez o que pôde
e, por mais eficiente que seja, ela foi pressionada pela correria...
- A senhora sabe quem é ela? Tenho certeza de que era estrangeira...

- Hannah Palemoon - disse a supervisora.
- Eu gostaria de saber se ela pegou meu telefone. Estava em meu...
- Duvido, diretor. O senhor vai encontrar sua carteira, chaves e identidade
intactas. Sabemos muito bem que não devemos mexer nas coisas de alguém de
seu nível.
- Eu agradeço, mas...
- Ninguém pegou seu telefone. Será que ele não caiu em algum lugar ou foi
deixado em seu veículo?
David ergueu a cabeça. Talvez. Mas ele não estava falando ao telefone
quando caiu e, pelo que se lembrava, o aparelho não saiu de seu bolso.
- Onde posso encontrar a enfermeira Pale...
- Eu já lhe disse, diretor. A enfermeira não pegou seu telefone, e eu não vou
dizer onde ela se encontra. Nosso turno é de 24 horas de trabalho e 24 horas de
folga. Ela está descansando. E, se for igual a mim, dorme durante as primeiras
12 horas de folga e tem esse direito.
David assentiu com a cabeça, porém mal podia esperar para ligar seu
computador e verificar a lista dos funcionários.
- Senhora, estou preocupado com uma funcionária e preciso encontrá-la. O
nome dela é Annie Christopher. É chefe do serviço de carga do Fênix, mas hoje
foi designada para tomar conta do povo no setor 53.
- Houve problemas lá.
- Ouvi dizer. Por causa do raio?
- Exatamente. Vários mortos e feridos. Eu posso ver se ela consta de nosso
sistema. O senhor pode verificar no necrotério. David estremeceu.
- Eu gostaria que a senhora verificasse seu sistema.
- Pois não, senhor. Depois disso, é melhor o senhor voltar para seus
aposentos e descansar um pouco antes da reunião. O senhor sabe tão bem
quanto eu que não tem condições de ficar sentado diante de uma mesa, por mais
emocionante que seja encontrar-se com um homem que estava morto hoje de
manhã e agora está vivo. Venha comigo.
Ela o conduziu ao posto de enfermagem e consultou o computador.

- Não há ninguém chamado Christopher - ela disse -, mas o nosso sistema
está muito lento.
- Ela devia estar usando o crachá de funcionária - disse David.
- Talvez tenha sido roubado.
- Será que ela está no necrotério? - ele perguntou, tentando disfarçar a
emoção.
- Veja o lado bom das coisas - disse a supervisora. - Talvez não tenha
acontecido nada com ela.
Essa hipótese também não agradou a David. Por que não conseguiu falar
com Annie, e por que ela não tentou ligar para ele? Talvez tivesse tentado. Ele
precisava encontrar o telefone antes da reunião.
- Nada - disse Rayford. - Faz horas que David não liga o computador, e o
telefone dele não responde. Agora, não consigo mais deixar recado. Parece que
ele desligou o telefone.
- Estranho - disse Albie. - O pessoal de Pueblo não sabe que estamos indo
para lá.
- Não vai adiantar nada se não soubermos onde fica o tal lugar.
- Vamos descobrir.
- Você é um sujeito determinado, Albie, mas...
- Eu adoro o impossível. Mas o chefe é você. Preciso de sua permissão.
- Qual é seu plano?
- Verificar se sua nova cara e nova identidade vão funcionar.
- Oh, não.
- Vamos, homem. Seja confiante.
- Qual é o plano, Albie?
- Lá embaixo, vou usar minha patente. Vou pôr a culpa na demora do
computador por causa de toda aquela euforia em Nova Babilônia ou por
incompetência de alguém. Quem pode contestar? Você está comigo. Se exigirem
sua identidade, você mostra. De agora em diante, você não é mais civil. É um

recruta, um estagiário.
- Tudo bem.
- Além de insistir para ter um carro, vou extrair deles o local do esconderijo.
- Quero ver para crer.
- Eu adoro fazer demonstrações. Rayford desligou o computador de Albie.
- Então, me conte.
Kenny Bruce tentava puxar Buck para perto da barreira, como se soubesse
que seu pai poderia ajudá-lo a passar por cima dela. Mas Buck não conseguia
sair da cama. Sentia-se como se tivesse sobrevivido a um acidente de avião. Sua
espinha estava travada. Cada músculo, osso, junta e tendão doía. Ele sentou-se
tentando reunir forças para levantar-se e ir ao encontro de Chloe e das outras
pessoas.
Kenny, aparentemente conformado, subiu no colo do pai e segurou-lhe o
rosto com as duas mãos. Olhou dentro dos Olhos de Buck e disse:
- Mamã?
- Vamos ver a mamãe daqui a pouco, querido - disse Buck. Kenny passou o
dedo gorducho nas cicatrizes do rosto de Buck. - Estas marcas não incomodam
você, não é mesmo, meu camarada?
- Pa-pá - ele disse. - Mamã.
Buck conseguiu levantar-se e carregou Kenny. O garoto passou as pernas e
os braços ao redor do pai e encostou a cabeça em seu peito.
- Eu gostaria de levar você a todos os lugares aonde vou - disse Buck,
mancando por causa da perna que não dobrava.
- Mamã, pa-pá.
- Estamos indo, meu camarada.
Buck preparou-se para ouvir as brincadeiras de sempre por ser a última
pessoa a levantar-se, mas, quando se aproximou do pessoal, ninguém notou sua
presença. Leah estava sentada de costas para a parede, vestida com um roupão
e cochilando. Seus cabelos loiros tingidos, com raízes avermelhadas, estavam

enrolados em uma toalha. Chaim olhava para a mesa diante dele, com a cabeça
apoiada nas mãos. Em sua xícara de café, havia um canudinho. Tsion, em pé ao
lado de uma janela, mas tomando cuidado para não ser visto do lado de fora,
orava silenciosamente com a cabeça baixa.
Chloe andava de um lado para o outro, com o fone colado ao ouvido,
chorando. Ela olhou para Buck dando a entender que o viu chegar. Quando
Kenny tentou descer do colo do pai para correr até ela, Buck cochichou:
- Fique mais um pouco com o papai, está bem?
Chloe estava dizendo:
- Eu entendo, Zeke... Eu sei, querido, eu sei. Deus sabe... Tudo vai dar
certo. Vamos buscar você, não se preocupe... Zeke, Deus sabe... Só depois que
escurecer, mas tenha forças, ouviu?
Quando Chloe desligou, todos olharam para ela.
- O Zeke Grande foi preso - ela disse.
- O Zeke pai? - perguntou Tsion.
Zeke Jr. era muito maior que o pai, mas os dois eram conhecidos por Zeke
Grande e Zeke Pequeno. Chloe assentiu com a cabeça.
- O pessoal da CG o prendeu esta manhã. Ele foi algemado e acusado de
subversão.
- E não pegaram o Zeke Jr.? - perguntou Buck, colocando Kenny no chão?
- Zeke! - disse Kenny, rindo. Chloe deu de ombros.
- O esconderijo deles é bem mais protegido que o nosso, e acho que o Zeke
Pequeno nunca sai de casa.
- Zeke! - repetiu Kenny.
- O Zeke Pequeno vem para cá? - perguntou Leah.
- Para onde mais ele iria? A CG está vigiando o local, inquirindo as pessoas
que param lá para abastecer o carro.
- Como ele sabe?
- Ele tem um monitor improvisado para vigiar o pai. Foi por isso que ele ficou
sabendo que o Zeke Grande foi preso. Ele sabe que seu pai não vai entregá-lo,
mas sabe também que não pode mais ficar lá. Ele está empacotando suas

coisas.
- É verdade - disse Buck. - Ele deve estar pegando todos os arquivos e
aquela parafernália para falsificar documentos antes que a CG descubra tudo.
- Será bom que ele venha para cá - disse Tsion. - Ficará protegido e poderá
ajudar muita gente. Cameron, como você está se sentindo?
- Aparentemente, melhor que Chaim. Chaim levantou a cabeça e tentou
sorrir.
- Eu vou ficar bem - ele disse entre os dentes por estar com a mandíbula
amarrada. - Não tenho tempo a perder. Estou ansioso para estudar e aprender.
Tsion afastou-se da janela.
- Arranjei um aluno que não pode falar. Você precisa ouvir e ler. Vai
conhecer a fundo o nosso povo antes que imagina. O povo escolhido de Deus.
Estou emocionado diante dessa perspectiva. Vou usar o mesmo material de
minhas aulas pela Internet, nas quais exponho Carpathia como o anticristo.
- Você vai direto ao assunto, não é verdade? - disse Buck.
- Perfeitamente - disse o rabino. - O desafio está lançado, conforme vocês
costumam dizer. Não há mais dúvidas sobre ele, nem deveria haver. Estou
convencido de que Leon é seu falso profeta, e vou dizer isso também. Aqueles
que têm ouvidos para ouvir não serão enganados. Não demorará muito para que
a besta possuída por Satanás derrame toda a sua ira contra os judeus.
Chaim levantou a mão. Buck quase não conseguiu entender a pergunta feita
com esforço, com voz abafada.
- E o que vamos fazer? - Chaim perguntou. - Não somos páreo para ele.
- Você verá, meu amigo - disse Tsion. - Vai aprender hoje a história dos
judeus e seu futuro. Deus protegerá seu povo, agora e para sempre.
- Estou gostando de ser crente - Chaim conseguiu dizer,
- Buck - disse Chloe, aproximando-se dele e o abraçando, temos de planejar
o resgate de Zeke.
- Só me faltava esta. Outra missão.
- Você dormiu, não?
- Como um anjinho.

- Não diga.
- Bem...
- Ou você ou eu, companheiro - disse Chloe. - Se você precisar de mais um
dia para descan...
- Estou pronto - disse Buck.
- Eu posso ajudar - interpelou Leah. - Estou bem.
- Talvez vocês dois - disse Chloe. - Tenho de contar as novidades ao
pessoal da cooperativa, incentivar todos a trabalharem juntos.
- Vamos precisar de um piloto - disse Buck. - Descer com um helicóptero da
CG no meio dos guardas que estão vigiando o local e dar uma bronca neles por
terem deixado um suspeito lá. Prendemos Zeke Jr. e o trazemos para cá. E
então? O que vocês acham de meu plano?
- Não vamos ter nenhum helicóptero aqui esta noite, querido - disse Chloe. -
Talvez só amanhã à noite, e não podemos arriscar fazendo Zeke aguardar tanto
tempo.
- Onde está o helicóptero? E seu pai? E Albie?
QUATRO

David correu até seu escritório e ligou para Annie. Ninguém atendeu. Em
seguida, ligou para o setor de veículos motorizados. O homem que lhe trouxera o
carrinho de golfe estava de folga, e o que atendeu o telefone disse:
- Não, senhor, não encontramos nenhum telefone. Não havia nada lá.
Encontramos o carrinho vazio. Meu chefe ficou furioso e só se acalmou quando
soube que o senhor foi levado para o posto de atendimento médico. O senhor
está bem?
-Sim.
- Precisa do carrinho?
- Não.

- Há alguma coisa que eu possa fazer pa...
Mas David já havia desligado. Ele abriu seu computador e viu mensagens
urgentes piscando e mostrando palavras e números em códigos usados por seus
companheiros do Comando Tribulação. Ele teria de ligar para eles o mais rápido
possível, mas por ora, antes daquela reunião diabólica, precisava recuperar seu
telefone e descobrir o paradeiro de Annie.
O relógio de David marcava 21h35. Ele acessou o banco de dados da CG e
clicou em Funcionários, Setor Médico, Enfermagem, Sexo Feminino, Letra P. Lá
estava: "Palemoon, Hannah L., quarto e ramal 4223. Uma voz sonolenta atendeu
após o quinto toque.
- Enfermeira Palemoon? - ele perguntou.
- Sim, quem é?
- Desculpe-me por ligar a esta hora e peço que me perdoe por acordá-la,
mas...
- Hassid?
- Sim, desculpe-me, mas...
- Seu telefone está comigo.
- Oh, graças a De... Que bom! Ele está ligado?
- Não, eu o desliguei. Você vem buscá-lo ou posso voltar a dormir?
- Posso ir até aí? Se você não se importar, eu...
- Tenho uma coisa para lhe mostrar.
O que estaria acontecendo? Alguém lhe preparara uma armadilha? Por que
ela concordou que ele fosse buscar o telefone? E por que o telefone ficou com
ela? A título de precaução, ele acionou o computador para desligar o dispositivo
de escuta, instalado do lado de fora do quarto dela, que poderia gravar a
conversa entre eles.
Assim que desligou o programa, ele viu novamente o sinal de mensagens
urgentes piscando na tela. Rayford e Albie deviam estar desesperados, tentando
falar com ele. David não tinha tempo para dar retorno às ligações, mas e se eles
tivessem notícias de Annie? Seria melhor dar uma espiada nas mensagens.
Os pedidos dos dois o deixaram atordoado. Não havia mais tempo de ajudar

Rayford e Albie no Colorado, mas David começou a digitar rapidamente. Sua
cabeça doía, o ferimento umedecia a bandagem, e seus olhos piscavam
nervosamente. Ele digitou os números que invalidavam os códigos de segurança
das Forças Pacificadoras. Sob o nome falso de um comandante de alto nível
baseado em Nova Babilônia, David autorizou Marcus Elbaz a pousar no Campo
de Aviação Memorial a Carpathia, em Colorado Springs. Também o autorizou a
apropriar-se temporariamente de um veículo para capturar uma fugitiva do
Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica, atualmente presa em um
esconderijo no extremo norte de Pueblo. Depois de digitar mais alguns códigos,
ele descobriu o local exato do esconderijo e o nome do subdiretor encarregado -
Pinkerton Stephens. Felizmente, a patente de Stephens era inferior à do
subcomandante Elbaz.
David decidiu que informaria posteriormente o nome, a patente e o número
de série para Rayford usar, esperando que os dois já tivessem conseguido
passar pela CG. Eram 21h50 - Hannah Palemoon estava aguardando, e ele não
podia chegar atrasado à grande reunião. Se ele estivesse bem de saúde e em
boa forma física, seria fácil correr até o quarto dela, pegar seu telefone e chegar
ao escritório de Carpathia antes do início da reunião. Mas, ferido como estava,
seria muito difícil.
Ele poderia ligar para Fortunato na última hora e explicar que chegaria
alguns minutos atrasado por ter acabado de sair do hospital. Porém, não queria
perder nada do que seria discutido naquela reunião. Assim que fechou a porta de
seu quarto e começou a caminhar em direção ao elevador, ele cambaleou e
precisou apoiar-se na parede. Respire fundo, ele disse a si mesmo. É preferível
chegar atrasado a não chegar.
.
- Pegue o meu barbeador - disse Albie. - Não posso me apresentar com a
barba por fazer.
- Faltam apenas alguns minutos para pousarmos - disse Rayford.

- Eu tenho um co-piloto, não tenho?
Rayford pegou o barbeador elétrico de Albie na sacola e assumiu o
comando, enquanto Albie barbeava-se e ajeitava o nó da gravata. Quando o
controle de terra confirmou o pouso, Albie respondeu. Em seguida, arrancou os
fones de ouvido e colocou o quepe. No momento em que eles desembarcaram,
Rayford surpreendeu-se mais uma vez com Albie. Aquele homem pequenino do
Oriente Médio parecia mais alto, mais imponente.
- Vou mostrar-lhe onde fica o local de reabastecimento para que o senhor
possa encher o tanque antes de decolar, comandante Elbaz.
- Você não pode fazer isso para mim enquanto tomo algumas providências?
- Lamento muito, senhor, estamos com falta de funcio...
- Eu sei. Vá em frente.
Rayford caminhava um passo atrás de Albie enquanto eles se dirigiam ao
escritório. Ele esperava que David o alistasse nas Forças Pacificadoras da CG
com uma patente mais alta. Como ele poderia supervisionar um homem com
patente mais alta que a sua?
O funcionário da recepção cumprimentou-os e disse:
- Eu informei à chefia que seu nome não consta de nosso computador,
portanto não temos veículo para fornecer-lhe. Porém, se o senhor me der o
número do pedido para reabastecimento, posso liberar...
- Como assim? - disse Albie.
- O senhor vai ter de cuidar sozinho do reabastecimento, porque...
- Eu sei. Preciso de um veículo para uma missão importante, e tem de ser
já. Ou você está achando que vou alugar um carro?
- Senhor, só estou informando o que a chefia me disse. Eu...
- Peça que ele venha aqui.
- Não é ele, senhor, é ela.
- Não me importa quem seja. Peça que ele, ou ela, venha aqui.
A chefe do campo de aviação apareceu antes que o funcionário a
chamasse. Ela os cumprimentou, sem sorrir.
- Judy Hamilton a seu dispor, comandante.

- Nem tanto a meu dispor, é o que parece.
- Não há muita coisa que eu possa fazer, senhor, mas aceito sugestões.
- Você tem um veículo disponível?
- Nenhum, senhor.
- Preciso de um para usar por meio dia, com tanque cheio.
- Não há nenhum, senhor.
- Você tem um veículo seu?
- Eu, senhor?
Albie deu um longo suspiro.
- Você entende inglês, Hamilton? Estou perguntando se você tem um
veículo seu.
- Não recebi nenhum veículo da CG, senhor.
- Não foi isso que eu perguntei. Como você vem trabalhar?
- De carro.
- Então você deve ter um.
- O carro é meu, senhor.
- Foi o que eu perguntei. Se você tem um veículo seu, Judy. Vou tomar seu
veículo emprestado esta tarde, e a Comunidade Global lhe reembolsará as
despesas. O reembolso que recebemos é de um Nick por quilômetro.
Ela ergueu as sobrancelhas.
- O manual diz que é metade disso, senhor.
- Eu sei - disse Albie. - Vou autorizar por causa de sua cooperação.
- Não vou ser repreendida por não ter entendido, senhor?
- Só por insubordinação, Hamilton, que é a palavra que uso para definir
sarcasmo.
- Quer dizer que o senhor vai me pagar um Nick por quilômetro para usar
meu carro?
- Você será reembolsada rapidamente.
- Não.
- Não?
- Não, o senhor não vai usar meu carro.

- Não entendi, Hamilton.
- Tenho uma reunião no Monumento daqui a duas horas, e a C-25 foi aberta
só por uma semana. As outras pistas estão fechadas. Preciso partir já.
- E você acha que sua reunião é mais importante do que atender a um
subcomandante?
- Desta vez sim, senhor, por causa de sua atitude.
- Você está se recusando a me emprestar seu carro?
- O senhor entendeu bem.
Albie olhou de esguelha para ela, com o rosto vermelho.
- Vou dar queixa de você, Hamilton. Você vai ser punida.
- Mas não esta tarde. O senhor também vai ser punido.
- Eu?
- Já faz tempo que o potentado ressuscitou e o senhor não cumprimentou
meu funcionário nem a mim com a nova frase.
- Tenho andado muito atarefado e voando o tempo todo.
- O senhor não sabe que devemos cumprimentar as pessoas dizendo "Ele
ressuscitou" e que a resposta deve ser "Ele ressuscitou verdadeiramente"?
- Claro, mas... minha senhora, eu também preciso saber qual é a localização
exata do esconderijo no extremo norte de Pueblo onde...
- O senhor tem alguma ordem para me mostrar?
- Infelizmente não.
- Cabo, verifique o computador mais uma vez. Quero ver o que temos sobre
o subcomandante Elbaz e se podemos incluir ameaça e grosseria em seu
prontuário.
- Hamilton, eu...
Ela fez um gesto para que ele se calasse.
- Ei - disse o cabo -, isso não estava aqui antes. Veio direto do alto escalão
de Nova Babilônia. Veja.
Hamilton olhou na tela e perdeu a cor. Rayford soltou a respiração. A mulher
limpou a garganta e disse:
- Parece que está tudo em ordem, comandante. Eu... hã... gostaria de

propor uma trégua.
- Diga.
- O senhor tem autorização para receber o veículo e vamos encontrar um.
Se quiser usar meu carro, posso pegar o jipe.
- Você me emprestaria o seu carro?
- Além de emprestar-lhe meu carro, não vou relatar sua quebra de protocolo.
Mas o senhor tem de me prometer que também não vai relatar minha
insubordinação.
Buck e Chloe deixaram o bebê aos cuidados de Leah, enquanto Tsion e
Chaim estudavam. O casal desceu à garagem da torre, onde Buck havia
estacionado o Land Rover no meio de outros veículos.
- Devemos ser gratos por este lugar ter tantos carros elegantes - disse
Chloe. - Veja só.
Buck sorriu ao ver a diferença entre os carros elegantes e o Rover sujo e
amassado, apesar de ser relativamente novo. Ele deu um tapa na capota do
carro, o que provocou um eco por todo o estacionamento.
- A velha Bessie está conosco há muito tempo, não? Chloe sacudiu a
cabeça. "Bessie?", ela pensou. Vocês, homens, têm a mania de dar nomes de
mulher a seus carros.
Buck encostou-se em um pilar, chamou Chloe para perto de si e a abraçou.
- Pense um pouco - ele disse. - É o melhor elogio que posso fazer a um
carro ou a uma mulher.
- Continue. Você já vai receber o troco.
- Não, se você pensar um pouco.
Ela afastou-se dele e ergueu a cabeça, apontando para a têmpora.
- Hum, deixe-me ver se o velho Charley e eu podemos resolver esta parada.
Dar um nome masculino a meu cérebro é o maior elogio que posso fazer a ele e
aos homens.

- Vamos - disse Buck. - Pense no quanto este carro tem sido útil para nós.
Ele nos ajudou a vencer o trânsito quando a guerra estourou. Manteve você viva
quando saiu da pista e caiu em cima da árvore. Rodou comigo para dentro de
uma cratera e saiu de lá, pulou e atravessou obstáculos.
- Você tem razão - ela disse. - Homem nenhum teria feito aquilo.
- Você e Charley descobriram isso sozinhos?
- Sim. E sabe o que mais? Acho que um carro da marca Hummer vai servir
para nós desta vez.
- Temos um?
- Dois. Do outro lado, perto dos carros de luxo.
Chloe conduziu Buck até uma área mais escura do subsolo.
- Todos os espaços são numerados e coincidem com os números das
chaves que se encontram no quadro da recepção. A maioria dos carros daqui
está com o tanque quase cheio ou completamente cheio.
- O pessoal devia estar preparado.
- Parece que estavam ouvindo boatos de guerra. Buck deu um tapa de leve
na cabeça de Chloe.
- Obrigado, Charley - disse Buck, examinando os carros, dezenas deles, a
maioria novinhos em folha. Ele deu um assobio. - Quando Deus abençoa, Ele
abençoa mesmo. -Chloe estava calada. - No que você está pensando?
Ela mordeu os lábios e colocou as mãos no bolso da jaqueta.
- Como seria bom se tivéssemos nos apaixonado em outra época da
História!
Buck assentiu com a cabeça.
- Não teríamos nos convertido.
- Alguém nos teria convertido. Olhe para nós. Este é o maior divertimento
que tenho depois de muito tempo. Parece que estamos em uma revendedora de
carros escolhendo um modelo para nós. Temos um lindo bebê e uma babá de
graça, e só precisamos decidir a cor e o modelo do carro que queremos.
Ela encostou-se em um Hummer branco, e Buck a acompanhou.
- Parecemos mais envelhecidos do que somos - ela disse, sacudindo a

cabeça - feridos, marcados, assustados. Daqui a pouco tempo, passaremos
nossos dias lutando para continuar vivos. Eu me preocupo com você o tempo
todo. Está sendo difícil viver nestes últimos tempos, e eu não poderia viver sem
você.
- Sim, você poderia.
- Mas não gostaria. E você, viveria sem mim? Talvez eu não devesse
perguntar.
- Não há problema, Chloe, eu sei o que você quer dizer. Temos uma causa,
uma missão a cumprir, e tudo parece transparente como cristal. Mas eu não
gostaria de viver sem você. Eu viveria. Teria de viver. Para Kenny. Para Deus.
Para o restante do Comando Tribulação. E, conforme Tsion diz, para o reino.
Você foi a melhor coisa que já me aconteceu. Vamos cuidar um do outro, ajudar
um ao outro a viver. Temos apenas três anos e meio pela frente, mas quero
chegar até lá. Você não quer?
- Claro.
Ela virou-se e o abraçou com força por alguns instantes. E os dois trocaram
um longo beijo.
Quando conseguiu chegar, com muito custo, ao quarto andar da torre onde
moravam os funcionários, David notou que a porta do quarto 4223 estava
entreaberta, deixando escapar um pouco de claridade para o corredor. Quando
ele fez menção de bater na porta, uma mão morena saindo da manga de um
roupão entregou-lhe o telefone.
- Obrigado, senhora - ele disse. - Estou com pressa.
- Senhora? - disse a enfermeira Palemoon. - Não sou tão mais velha que
você, rapaz. Quantos anos você tem?
- Por quê?
Ela abriu a porta e encostou-se languidamente no batente.
Tinha os cabelos amarrados em forma de rabo-de-cavalo e os olhos

sonolentos. David ficou surpreso ao ver como ela era baixinha.
- Ainda não cheguei aos 30 - ela disse -, por isso pare de me chamar de
senhora, está bem?
- Está bem. Mas estou atrasado para uma reunião. Eu só queria agradecer-
lhe e...
- Eu disse que queria mostrar-lhe uma coisa.
- É verdade. O que é? E por que você ficou com meu telefone?
- Tem a ver com o que eu queria lhe mostrar.
David não queria ser grosseiro, mas qual seria o jogo? Ela continuava
parada, de braços cruzados, olhando para ele com as sobrancelhas erguidas.
- Está bem - ele disse. - O que é? Ela não se mexeu.
Oh, não, ele pensou. Ela não pode estar tentando insinuar-se para mim. Por
favor!
David guardou o telefone no bolso e levantou as mãos em gesto de
rendição.
- Oh! - ela disse. - Você está no escuro.
Claro que estou.
Ela endireitou o corpo e ligou o interruptor perto da porta, do lado de dentro
do quarto. A pequena lâmpada iluminou os dois. Ela imitou o gesto dele. David
prendeu a respiração.
Ela deve estar brincando!, ele pensou.
Havia o selo dos crentes na testa dela.
- Pode verificar - ela disse. - Não vou censurar você. Sei que o seu é
verdadeiro. Eu o esfreguei com álcool.
David olhou para cima e para o corredor. Pediu licença a ela, lambeu o
polegar e esfregou-o em sua testa. Depois de olhar para os lados, ele inclinou-se
e a abraçou rapidamente.
- Irmã - ele murmurou. - Que bom ver você! Eu não sabia que tínhamos
alguém dos nossos no setor médico.
- Acho que não há mais nenhum crente lá - ela disse. - Assim que vi o selo
em sua testa e soube que você era diretor, pensei em seu telefone.

- Você foi brilhante - ele disse.
- Obrigada. Voltarei a entrar em contato com você.
- Obrigado, enfermeira Pa...
- Hannah - ela disse. - Por favor, David.
Enquanto se dirigia ao elevador, ele verificou seu telefone. Havia várias
mensagens, nenhuma de Annie. Ele iria ao necrotério como última tentativa.
Discou para o escritório do supremo comandante. Sandra, a assistente de
Carpathia e Fortunato, atendeu:
- Que bom saber que você já está em pé - ela disse. - Eles estão à sua
espera. Vou informar que você vai chegar dentro de alguns minutos.
Supondo que David houvesse incluído a autorização de Albie no sistema e
informado a localização do esconderijo em Pueblo, Rayford correu até o caça
para pegar o computador de Albie e levá-lo na viagem.
- Esta estrada era interestadual - disse Rayford, dirigindo a estranha minivan
de Judy Hamilton pela C-25 em direção ao sul. - Logo tudo vai passar a chamar-
se Santo Nick.
Albie estava acessando o banco de dados.
- Está aqui. As estradas interestaduais e as saídas continuam em
reconstrução. Procure uma saída à esquerda para Pueblo. Vou ler o que temos
aqui. Xi! Pinkerton Stephens. É o homem que vamos ver lá.
- Já ouviu falar dele? Albie sacudiu a cabeça.
- Faça esta pergunta amanhã.
Poucos minutos depois, eles passaram por um edifício pré-fabricado, bem
afastado da estrada. Rayford disse:
- Eu só queria saber uma coisa. Por que você não pegou o jipe da CG para
dar um ar de mais autenticidade?
- Surpresa. Você disse a Srta. Durham que não íamos até lá, sabendo que a
CG estava ouvindo sua conversa. Eles não estão esperando a chegada de

ninguém. Vão ficar curiosos quando aparecermos. Eu vou exibir minha farda com
patente superior à deles. Não vão reconhecer o civil que está comigo. Vão ficar
mais preocupados em nos impressionar do que em criar caso. E tem mais. Eu
não gostaria de transportar aquela mulher dentro de um jipe aberto, e você?
Rayford sacudiu a cabeça.
- Você acha mesmo que vamos surpreender o pessoal de lá?
- Só por pouco tempo. O guarda do portão vai informar ao pessoal que
chegou alguém do alto comando.
Rayford fez uma manobra de retorno e dirigiu-se para a entrada. O guarda
do portão pediu-lhe que dissesse o motivo da visita.
- Sou apenas o motorista do subcomandante que está a meu lado.
O guarda abaixou-se para ver o rosto de Albie e fez continência.
- Com quem o senhor vai encontrar-se?
- Com Stephens. Deixe-me passar. Estou atrasado.
- Assine aqui, por favor.
Rayford assinou "Marvin Berry", e o guarda fez um gesto autorizando a
passagem.
Quando eles entraram no escritório, a mulher sentada atrás de uma
escrivaninha ouvia uma voz estranha pelo interfone, aguda e nasal. Rayford não
sabia dizer se era de homem ou de mulher.
- Um subcomandante quer ver-me? - perguntou a voz.
- Sim, Sr. Stephens. Verifiquei o nome no banco de dados da CG e o único
Marvin Berry registrado como nosso funcionário não faz parte das Forças
Pacificadoras. Ele é um velho pescador no Canadá.
- Esta história não está cheirando bem - disse a voz.
É um homem, pensou Rayford, mas qual é o problema dele?
- Um momento, senhor - disse a mulher, levantando-se ao ver o
subcomandante atrás de Rayford. - Seu nome é Berry?
- Berry é meu motorista - disse Albie, com voz alterada. - Procure Elbaz em
seu computador. Ninguém de minha família sabe pescar.
- Mistério solucionado, Sr. Stephens - disse a mulher pelo interfone. - O

guarda do portão pediu a assinatura do motorista.
- Incompetente! - esbravejou Stephens pelo interfone. -Mande-o entrar!
- O guarda?
- O subcomandante!
Ela apontou para a primeira porta à esquerda de um corredor, mas, quando
Rayford fez menção de acompanhar Albie, ela disse:
- Só o subcomandante, por favor.
- Ele está comigo - disse Albie. - Eu resolvo este assunto com o chefe.
- Oh, eu não sei.
- Mas eu sei - disse Albie, parando diante da porta e batendo.
- Entre - soou a voz inexpressiva.
- Entrar? - repetiu Albie em um sussurro. - Ele vai ficar constrangido quando
perceber que não abriu a porta para um superior.
Albie abriu a porta, entrou e parou repentinamente, fazendo com que
Rayford colidisse com ele.
- Desculpe-me - disse Rayford.
Ele não conseguiu enxergar Stephens, mas ouviu o barulho de um motor
elétrico.
- Perdoe-me a quebra de protocolo - soou a voz quando a cadeira de rodas
de Stephens surgiu na frente deles.
Rayford foi tomado de surpresa. O homem tinha apenas uma perna; a outra
fora amputada acima do joelho. A mão direita tinha pequenas protuberâncias em
lugar dos dedos, e a esquerda, apesar de ter todos os dedos, havia sofrido
graves ferimentos.
- Eu gostaria de me levantar, mas não posso.
- Entendo - disse Albie, apertando a mão direita do homem, com hesitação.
Rayford fez o mesmo, e ambos obedeceram ao gesto de Stephens e
sentaram-se nas duas cadeiras que lotavam a pequena sala. E o rosto dele? O
pescoço, as faces e as orelhas de Stephens eram avermelhados e cheio de
cicatrizes. Ele usava um topete postiço. Com exceção dos lábios no meio de seu
rosto, o restante - queixo, nariz, olhos e testa - parecia ser uma peça só, da cor

de um aparelho de audição plástico.
- Eu não o conheço, Elbaz - disse Stephens, parecendo um homem sem
língua nem nariz. - O seu rosto, Berry, me é familiar. Você é da CG?
- Não, senhor.
- Estou aqui a trabalho - disse Albie. - Não trago uma cópia impressa das
ordens que recebi, mas...
- Desculpe-me, subcomandante, mas tenho uma aqui. O senhor aguardaria
um minuto?
- Claro, mas...
- Só um minuto. Sei que o senhor é superior a mim, mas, se não estiver com
muita pressa, tenha um pouco de paciência comigo. Sua história é verídica. Vou-
lhe prestar toda e qualquer ajuda que o senhor necessitar. E quanto a você,
Berry, já trabalhou na CG?
Rayford, desconcertado diante daquela voz e daquele homem desfigurado,
hesitou.
- Não... hã... não, senhor. Nem nas Forças Pacificadoras.
- Então, trabalhou em outro setor.
- Eu não disse isso.
- Mas trabalhou. Você já teve alguma ligação com a CG, não? Seu rosto me
é familiar. Ou eu o conheço ou já ouvi falar de você. Ou, então, aposto que
conheço um amigo seu.
Albie olhou firme para Rayford, e Rayford parou de falar. Sem saber o
motivo da pergunta, Rayford limitou-se a olhar para o homem, tentando lembrar-
se de alguma coisa. Onde ele poderia ter encontrado esse tal de Pinkerton
Stephens? Jamais esqueceria um rosto como aquele.
- Naquela época eu era um homem inteiro, Sr. Berry, se for este o seu
verdadeiro nome.
Rayford sentia-se cada vez mais desconfortável. Será que conhecia aquele
homem? Conseguiria sair dali? E Hattie? Albie tinha o corpo retesado e parecia
mais desconfortável que ele.
Stephens levantou a cabeça, olhou mais uma vez demoradamente para

Rayford e virou-se para Albie.
- Muito bem, subcomandante Elbaz. Qual o assunto que o trouxe até aqui?
- Fui incumbido de buscar uma pessoa presa aqui, senhor.
- Quem lhe disse que tenho alguém preso aqui?
- Meus superiores, senhor. Disseram que a pessoa não colaborou, que
houve falha em um certo plano ou missão e que devemos levá-la de volta para o
PRFB.
- PRFB? O que é isso?
- Você sabe o que é, Stephens, se for mesmo quem diz ser.
- Para o senhor é um absurdo que um homem pela metade ocupe uma
função importante na CG, não é verdade? -perguntou Stephens.
- Eu não disse isso.
- Mas deu a entender, não?
- Não acho.
- O senhor já viu outro homem como eu ocupando uma posição igual a esta,
subcomandante Elbaz?
- Não, não vi.
- Mas eu a ocupo, quer o senhor goste ou não. E vai ter de tratar do assunto
comigo.
- Tudo bem. Depois que eu for embora, você vai ver que está tudo em
ordem e...
- Por acaso eu disse que tinha uma pessoa presa aqui, subcomandante?
- Não, mas sei que você tem.
- O senhor sabe quem sou.
- Sei.
- O PRFB é um presídio feminino, senhor. O senhor acha que tenho uma
mulher presa aqui?
Albie assentiu com a cabeça.
- Este lugar se parece com um centro de detenção?
- Os centros de detenção adquirem formas diferentes durante tempos
diferentes.

- É verdade. Existe algum motivo para o senhor não ter-me cumprimentado
com o novo protocolo?
- Tenho problemas em lembrar-me disso, Sr. Stephens.
- Sério? A propósito, o senhor sabe que tem uma mancha na testa?
Albie teve um sobressalto. Rayford sentiu um arrepio percorrer-lhe o corpo.
Um funcionário das Forças Pacificadoras da CG teria condições de ver o selo na
testa de Albie? As peças encaixavam-se no lugar tão depressa que Rayford mal
conseguia acompanhar. Até que ponto a situação estaria comprometida? Albie
sabia de tudo!
- Tenho? - disse Albie inocentemente, passando a palma da mão na testa.
- Ah, agora está melhor - disse Stephens.
Albie desceu a mão devagar até encostá-la na arma presa na cintura. Se ao
menos Rayford tivesse uma.
- Cavalheiros - disse Stephens com a voz bem mais clara - se os senhores
tiverem a bondade de acompanhar-me, poderemos retomar nossa conversa em
outra sala. Desta vez começaremos com o protocolo correto, que tal?
Ele passou com a cadeira de rodas por Rayford e Albie, abriu a porta e
passou por ela antes que fechasse. Albie a segurou, e Rayford o acompanhou
pelo corredor. Albie desafivelou o coldre onde havia uma arma 9 mm. Rayford se
perguntou se teria tempo de correr, passar pela porta da frente e chegar a van
antes que Albie percebesse sua fuga. Ele hesitou, esperando que o barulho da
cadeira de rodas abafasse o ruído de seus passos caso tomasse essa decisão.
Albie, porém, virou-se para trás e fez um gesto para que Rayford
caminhasse adiante dele, atrás da cadeira de rodas que se movia rapidamente.
Mesmo que conseguisse fugir, havia Hattie. Ele não tinha escolha, a não ser
continuar ali e representar seu papel.

CINCO

Buck sentou-se dentro do Hummer branco, confirmou que o tanque estava
cheio, verificou os pneus, descobriu onde estavam as chaves e ligou o motor.
- Que nome vamos dar a este carro? - perguntou Chloe.
- É um carro forte e robusto - respondeu Buck. - Tem o nome Chloe escrito
em todos os lugares.
Faltavam muitas horas para escurecer, e eles entraram em contato com
Zeke várias vezes para perguntar o que ele sabia a respeito do posicionamento
dos guardas da CG. Ficaram sabendo que eles estavam procurando rebeldes
que paravam para abastecer o carro no posto de gasolina de seu pai, sem
sequer imaginar que Zeke Jr. estava lá. Mas como Buck poderia tirá-lo de lá sem
ser visto?
Quando Buck e Chloe retornaram à nova casa secreta, Kenny estava
dormindo e Leah lia um livro.
- Buck, Tsion pediu que você se reunisse com ele e Chaim - disse Leah. - E
Chloe vai me pôr a par dos assuntos da cooperativa.
- Tenho de começar a me comunicar com todo o pessoal - disse Chloe,
ligando o computador.
Leah puxou uma cadeira para perto dela, e Buck subiu ao andar de cima
onde ficava o esconderijo de Tsion.
Que ótimo lugar ele conseguira para instalar-se! Em uma sala com tamanho
suficiente apenas para comportar a mesa em formato de U, Tsion havia montado
uma estação de trabalho semelhante a uma cabina de avião, tendo tudo o que
necessitava ao alcance das mãos. Com o computador diante de si e suas
anotações e a Bíblia apoiadas um pouco acima, ele estava pronto para transmitir
suas mensagens. Buck surpreendeu-se ao ver a pequena quantidade de livros
que Tsion trouxera, mas ele explicou que a maioria dos materiais de que
necessitava estava gravada no possante disco rígido de seu computador.
Chaim, sentado em uma cadeira confortável, parecia muito bem
acomodado. Seus ferimentos durante a queda do avião foram mais graves do

que os de Buck, porém ele chorava de alegria quando Tsion começou a doutriná-
lo.
- Grande parte do que vou lhe ensinar você já ouviu falar desde a juventude,
Chaim - disse o rabino -, mas, agora que Deus abriu seus olhos e o fez
compreender que Jesus é o Messias, você ficará admirado ao ver que tudo isso
tem lógica e faz sentido.
Chaim balançou o corpo, chorando e assentindo com a cabeça.
- Eu entendo - ele disse repetidas vezes -, eu entendo. Buck, com os olhos
arregalados, ouvia um resumo daquilo que aprendera durante os últimos três
anos lendo as mensagens virtuais de Tsion. Às vezes, o rabino se emocionava,
parava de falar e, depois, dizia, exultante:
- Chaim, você não sabe quanto oramos por você, infinitas vezes, para que
Deus abrisse seus olhos. Você quer descansar um pouco, meu irmão?
Chaim balançou a cabeça negativamente, mas levantou a mão dando a entender
que compreendia tudo apesar de estar com as mandíbulas amarradas.
- Deus está abrindo meus olhos para muita coisa - ele conseguiu dizer. -
Cameron, aproxime-se de mim. Preciso perguntar-lhe uma coisa.
Com um olhar, Buck pediu a permissão de Tsion. Depois de receber
autorização, ele puxou sua cadeira para perto de Chaim.
- Eu nunca entendi - disse Chaim - por que você não compareceu à primeira
reunião de Nicolae e sua equipe de líderes na Organização das Nações Unidas.
Você se lembra?
- Claro.
- Perdoe-me por cuspir em você, Cameron, mas estou com dificuldade para
falar.
- Não se preocupe.
- Eu não consigo imaginar o motivo. Você desperdiçou o maior privilégio de
sua vida, a oportunidade que nenhum jornalista que se preze poderia perder.
Você foi convidado. Eu o convidei! Você disse que compareceria, mas não
compareceu. Nova York inteira comentou sua ausência. Você foi rebaixado de
cargo por causa disso. Por quê? Por que você não compareceu?

- Eu estava lá, Chaim.
- Ninguém viu você lá! Nicolae ficou decepcionado, com raiva. Todos
perguntaram por você. Seu chefe, como era mesmo o nome dele?
- Steve Plank.
- O Sr. Plank também não entendeu! Hattie Durham estava lá! Foi você
quem a apresentou a Carpathia, e não compareceu à reunião, conforme ela
esperava.
- Eu estava lá, Chaim.
- Eu também estava lá, Cameron. E seu lugar na mesa estava vazio.
Buck queria dizer mais uma vez que esteve lá, mas, de repente, se deu
conta do que estava acontecendo e por que Chaim resolvera levantar o assunto
depois de tanto tempo.
- Agora seus olhos estão sendo abertos, não é verdade, Chaim?
O ancião pousou a mão trêmula no joelho de Buck.
- Eu não conseguia entender. Para mim, não fazia sentido. Jonathan
Stonagal deixou Nicolae em situação constrangedora por ter perseguido você.
Nicolae humilhou Stonagal diante de todos, induzindo-o a cometer suicídio, cujo
tiro atingiu Joshua Todd-Cothran mortalmente.
Buck queria dizer que presenciara tudo e que não foi assim que aconteceu,
mas resolveu aguardar.
- Nada daquilo fez sentido - choramingou Chaim. - Nada. Mas os olhos não
mentem. Stonagal tomou a arma do segurança, deu um tiro em si mesmo e
atingiu seu colega.
- Chaim - murmurou Buck -, os olhos não mentem. Mas o anticristo mente.
Rosenzweig começou a tremer de tal forma que seu corpo todo balançava. Ele
apertou as mãos contra as faces para impedir que seus lábios tremessem.
- Por que você não compareceu, Cameron?
- Por que eu não haveria de comparecer, Chaim? O que teria me impedido?
- Não posso imaginar!
- Nem eu!
- Então, por quê? Por quê?

Buck não respondeu. Desistiu de tentar convencer o amigo.
- Fui incumbido de comparecer - ele disse. - Meu chefe esperava que eu
fosse.
- Sim, sim!
- Eu era o jornalista principal de todas as reportagens de capa da revista de
maior circulação da História. Aquele momento era o ápice de minha carreira. Por
que eu haveria de atirá-lo pela janela?
Rosenzweig balançou a cabeça de um lado para o outro, com lágrimas nos
olhos e mãos trêmulas.
- Você não faria isso.
- Claro que não. Quem faria?
- Talvez você já soubesse que Nicolae era o anticristo e não queria ser visto
ao lado dele.
- Na época, eu já sabia ou imaginava que sabia. Não teria ido lá sem a
proteção de Deus.
- E você não tinha essa proteção?
- Tinha.
- E por que não foi? Você teria sido o único presente à reunião que contaria
com a proteção de Deus.
Buck limitou-se a fazer um sinal afirmativo com a cabeça. Os olhos de
Chaim brilharam, como se ele estivesse pensando em uma coisa acontecendo a
milhares de quilômetros de distância. Suas pupilas movimentavam-se
rapidamente.
- Você esteve lá! - ele disse.
- Sim, estive.
- Você esteve lá, não é verdade, Cameron?
- Estive.
- E presenciou tudo!
- Tudo!
- Mas não viu o que os outros viram, inclusive eu.
- Vi o que realmente aconteceu. Vi a verdade.

Chaim tocava freneticamente as laterais de sua cabeça com as mãos e,
apesar de estar com a mandíbula amarrada, ele descreveu o que vira naquela
ocasião e o que via agora.
- Nicolae! Nicolae assassinou os dois homens! Obrigou Stonagal a ajoelhar-
se diante dele, encostou a arma no ouvido do homem e matou os dois com um
único tiro!
- Foi exatamente o que aconteceu.
- Mas Nicolae nos contou o que vimos, contou o que deveríamos lembrar, e
nossa percepção tornou-se realidade!
Chaim virou-se de lado e ajoelhou-se, apoiando sua frágil cabeça nas mãos
e os cotovelos no assento da cadeira.
- Ó Deus, ele orou, abre meus olhos. Ajuda-me sempre a enxergar a
verdade, a tua verdade. Não permitas que eu seja conduzido por um louco,
enganado por um mentiroso. Obrigado, Deus Jeová.
Em seguida, levantou-se lentamente, abraçou Buck e olhou para Tsion.
- Verdadeiramente Nicolae é o anticristo - disse Chaim. -É necessário que
alguém o detenha. Quero fazer o que for possível.
Tsion sorriu pesarosamente.
- Você já tentou, lembra-se?
- Claro que me lembro, mas não pelos motivos que tenho hoje.
- Se você acha que conhece as profundezas da depravação daquele homem
- disse Tsion -, espere para ver o que ele tem em mente para o povo escolhido
de Deus.
Chaim sentou-se e esticou o braço para pegar um bloco de papel.
- Quero que você me fale sobre esta parte, Tsion. Por favor.
- No devido tempo, meu amigo. Você ainda tem de aprender mil coisas
antes.
A despeito da dor que sentia, David conseguiu descansar. Poderia ter ficado
mais tempo na cama do hospital, mas dormira o sono dos justos, e sua mente -

pelo menos -estava revigorada. Seus pensamentos confundiam-se, e ele não
conseguia separar a apreensão que sentia a respeito de Annie dos cuidados que
deveria tomar na reunião com Carpathia. Já havia estado muitas vezes na
presença de forças malignas, mas nunca na do próprio Satanás. David
murmurou uma oração em favor de Annie, agradeceu a ajuda da enfermeira
Palemoon e as lições de Tsion quando lhe ensinou que Satanás - apesar de ser
mais poderoso que qualquer ser humano - não tinha os mesmos poderes do
Senhor Deus. "Ele não é onisciente", dissera Tsion. "Nem onipresente. Ele é
velhaco, persuasivo, controlador, sedutor, possessivo e opressivo, porém Aquele
que está dentro de você é muito maior que aquele que está no mundo."
- Eles estão aguardando sua chegada - disse Sandra. -Parece que o
potentado ressurreto não quer que você perca nada do que vai ser discutido ali.
- Que bom.
- E, agora que você chegou, vou embora. E isso também é bom. Tive um
longo dia.
- Nós dois tivemos.
- Você está bem? Ouvi dizer que sofreu uma queda.
- Estou melhor.
- Boa noite, diretor Hassid. E... ah, sim, eu já estava me esquecendo. Ele
ressuscitou.
David olhou firme para a secretária e comparou a testa dela - sem nada
visível - com a da bela irmã morena que acabara de conhecer.
- Ele ressuscitou verdadeiramente - retrucou David, sabendo exatamente o
que queria dizer.
Ele bateu na porta, entrou e ficou surpreso ao ver que todos se levantaram
no momento de sua chegada, inclusive Carpathia e Fortunato.
- Meu querido David - disse Carpathia -, que bom você ter-se recuperado a
tempo de participar conosco desta reunião.
- Obrigado - disse David quando Jim Hickman, o diretor do Serviço de
Inteligência, puxou uma cadeira para ele.
- Sim - disse Hickman. - É muito bom mesmo!

Ele sorriu e olhou para Carpathia, querendo confirmar se suas palavras
haviam agradado ao chefe. O potentado mordeu os lábios e semicerrou os olhos,
sem dar-lhe atenção. Para David, a atitude de Carpathia foi proposital. Hickman
foi escolhido por Fortunato, e Carpathia não escondia sua opinião sobre o
homem, considerando-o um bufão.
O grupo composto de 24 pessoas, mais Nicolae e Leon, estava reunido ao
redor de uma enorme mesa de mogno no escritório de Carpathia. Era a primeira
vez que David participava de uma reunião com tantas pessoas. Ele pressentiu
algo terrível quando se sentou e viu uma Bíblia surrada em cima da mesa, na
frente de Nicolae. Assim que David se sentou, todos fizeram o mesmo, com
exceção de Carpathia. O homem parecia revigorado. Sua respiração era tão
rápida que ele chegava a assobiar entre os dentes quando proferia as palavras.
Parecia um jogador de futebol no vestiário preparando-se para o primeiro chute
do jogo decisivo de um campeonato.
- Senhores e senhoras - ele começou a dizer -, acabei de nascer de novo!
Os presentes explodiram em gargalhada. Mesmo depois que todos se
acalmaram, Nicolae continuou a rir e prosseguiu:
- Confiem no que estou dizendo, não há nada melhor que ressuscitar!
Todos assentiram com a cabeça e sorriram. David, sabendo que o Chefe da
Segurança Walter Moon tinha os olhos fixos nele, fez o mesmo discretamente.
- Eu morri, pessoal, se é que alguém ainda duvida. - Todos negaram com
um movimento de cabeça. - Sr. Fortunato, devemos publicar fotografias da
autópsia, o relatório do legista e provas da ressurreição. Sempre haverá céticos,
mas todos os que estiveram lá conhecem a verdade.
- Conhecemos - disseram vários.
David sentiu uma força maligna tão penetrante vinda de Carpathia que
precisou retesar o corpo, receando desmaiar. De repente, Nicolae o encarou.
- Diretor Hassid, você esteve lá.
- Estive, senhor.
- Viu tudo?
- Perfeitamente, senhor.

- Então, você viu que ressuscitei.
- Jamais vou negar isso.
Carpathia deu uma risadinha amigável. Em seguida, caminhou até sua mesa
e postou-se atrás de uma enorme poltrona estofada, de couro vermelho,
passando a mão nela como se a estivesse acariciando.
- Parece que estou vendo tudo isso pela primeira vez - ele disse aos 24
pares de olhos que o fitavam com admiração. -Leon, o que existe acima de meu
escritório?
- Nada, senhor. Estamos no 18° andar, o mais alto de todos.
- Não há nenhum depósito ou casa de força para os elevadores?
- Nada, senhor.
- Quero mais espaço, Leon. Você está anotando tudo?
- Sim, senhor.
- O que você já anotou?
- Fotografias da autópsia, relatório do legista, provas da ressurreição.
- Acrescente a ampliação de meu escritório. Quero que ele tenha o dobro de
altura, com um teto transparente que me faça ser visto do céu.
- Providenciarei tudo, Excelência.
- Para quando? - perguntou Carpathia. - Quem poderia dar-me esta
resposta?
Fortunato apontou para o diretor de construção, o qual levantou timidamente
a mão.
- Muito bem - disse Nicolae dirigindo-se ao homem -, posso ter a certeza de
que este assunto terá prioridade máxima?
- Pode apostar sua vida, senhor - disse o homem. Carpathia deu uma
sonora gargalhada.
- Quero lhe dizer uma coisa, diretor. Sei que não vou poder usar este
escritório por alguns dias por causa da sujeira provocada pela destruição do teto.
Mas quero que esse trabalho seja feito o mais rápido possível, humanamente
falando, e você sabe por quê?
- Acho que sim, senhor.

- Você sabe?
O homem assentiu com a cabeça.
- Essa foi boa! Vamos ouvir o que ele tem a dizer!
- Porque acredito que o senhor deixou de ser humano e pode fazer isso
mais rápido que minha equipe, mesmo que eles trabalhem dia e noite.
- Somente Deus concede esse poder, diretor.
- Acredito que estou na presença dele, potentado. Nicolae sorriu.
- Eu também acredito. - Ele virou-se e fez um gesto a todos. - Enquanto
fiquei morto por três dias, meu espírito estava tão forte e poderoso que eu sabia,
eu sabia que meu tempo ia chegar. Quando a morte se mostrou vitoriosa sobre
mim, eu desejei voltar a viver. Eu provoquei minha ressurreição. Eu me forcei a
voltar a viver.
Um murmúrio percorreu a sala. Os homens e as mulheres presentes
concordaram em voz alta e apertaram as mãos como se estivessem orando por
ele ou adorando-o.
Nicolae pegou a Bíblia. Para David, parecia que ele a segurava com carinho.
- Você devem estar querendo saber o que isto está fazendo aqui - ele disse.
Ele a abriu e colocou-a na mesa, com a lombada voltada para cima.
- Isto aqui é o falso livro daqueles que se opõem a mim. É o livro santo
daqueles que não me aceitam e que não me aceitarão, apesar de tudo o que
viram com os próprios olhos. - Ele deu um soco na Bíblia. - Isto aqui contém
mentiras sobre o povo escolhido de Deus e a suprema mentira de que existe
alguém acima de mim.
Todos os presentes, exceto um, murmuraram expressando desaprovação.
Carpathia dirigiu-se à ponta da mesa e cruzou os braços, afastando as
pernas uma da outra.
- Usaremos o próprio esquema deles para fazê-los caírem de joelhos. Os
judeus, que aguardam a chegada de seu adorado Messias na Terra Santa,
decidiram destruir-me na cidade que eles tanto amam. Retornarei para lá em
triunfo, e eles terão uma oportunidade de arrepender-se e ver a luz. E os
judaístas, aqueles que acreditam que o Messias já veio e foi embora, que

acreditam que Jesus é o seu Salvador, a quem eu nunca vi e acho que vocês
também não, dizem que ele também tem raízes em Jerusalém. Se os judaístas
quiserem ver o deus vivo e verdadeiro, que viajem para lá, porque é para lá que
em breve eu irei. Se o templo sagrado for a residência do Deus altíssimo, então o
deus mais alto de todos residirá lá, no alto do trono. Eles me verão na cidade em
que me mataram, no alto e acima de todos.
Muitos diretores levantaram as mãos fechadas em sinal de vitória e de
encorajamento.
- Agora, passemos a alguns planos. Não deixei dúvidas na mente de
ninguém sobre quem sou e não sinto mais a necessidade de existir um
intermediário entre mim e a minha equipe. Meu querido companheiro, o supremo
comandante Leon Fortunato, tem-me assistido com eficiência desde o primeiro
dia em que subi ao poder, e agora necessito dele para outra missão crucial, a
qual ele já aceitou com entusiasmo. Aquela nobre tentativa que veio a fracassar
será levada a efeito com sucesso e sairá vitoriosa. A Fé Mundial Enigma
Babilônio fracassou porque, apesar de seu sublime objetivo de unificar as
religiões do mundo, não adorava a nenhum deus a não ser a si mesma. Seu
objetivo de unificação nunca foi alcançado. Seu deus era nebuloso e impessoal.
Agora que Leon Fortunato passou a ser o Reverendíssimo Pai do
Carpathianismo, os devotos do mundo finalmente terão um deus pessoal, cuja
força, poder e glória foram demonstrados quando eu ressuscitei!
Muitos aplaudiram. Carpathia fez um gesto para que Leon se levantasse e
falasse, enquanto ele próprio se afastava, continuando em pé.
- É com profunda humildade que aceito esta missão - disse Leon,
caminhando em direção a Nicolae, ajoelhando-se e beijando as mãos do
potentado. Em seguida, levantou-se e retornou à cabeceira da mesa. - Apesar de
saber que Sua Excelência não necessita da ajuda de um simples mortal como
eu, permitam-me esclarecer que o nome da nova religião foi idéia minha. Não foi
nenhuma tacada de gênio. Que outro nome poderíamos dar a uma fé cujo
objetivo de nossa adoração é Sua Excelência? A emoção extravasada pelos
cidadãos naquele mesmo dia fez nascer a idéia de que deveríamos reproduzir a

imagem de Sua Excelência, a grande estátua, e erigi-la em todas as cidades
mais importantes do mundo. Os planos já foram enviados, solicitando que cada
cidade construa a imagem. Elas terão um quarto do tamanho da imagem original,
que, conforme os senhores sabem, é quatro vezes maior que o de um homem.
Não é necessária a ajuda de um cientista para calcularmos que as réplicas terão
o tamanho de um homem. Enquanto jazia morto, nosso mui querido potentado
imbuiu-me de poderes para invocar fogo do céu a fim de matar aqueles que se
opunham a ele. O potentado abençoou-me com o poder de fazer a estátua falar
para que pudéssemos ouvir o que se passava no coração dele. Isso confirmou
em mim o desejo de servi-lo como meu deus pelo resto de meus dias, e é o que
farei enquanto Nicolae Carpathia conceder-me a graça de respirar.
- Obrigado, meu querido servo - disse Nicolae assim que Leon se sentou. -
Agora, abençoados companheiros, tenho uma missão para cada um de vocês.
Elas foram preparadas antes de minha morte e agora farão muito mais sentido.
Uma de minhas mais antigas e queridas amigas, uma mulher mais próxima a
mim que um parente, lhes fornecerá algumas explicações. Sra. Ivins, por favor,
venha até aqui.
Viv Ivins, empertigada e elegante, com seus cabelos cinza-azulados presos
no topo da cabeça, caminhou até a cabeceira da mesa e abraçou Nicolae.
Enquanto ela distribuía pastas com o nome de cada diretor impresso na capa,
Nicolae disse:
- A maioria de vocês sabe que a Sra. Ivins ajudou-me a ressuscitar. Durante
muitos anos, acreditei que ela fosse minha tia. Éramos muito apegados um ao
outro. Ela trabalhou em um projeto para ajudar-me a estabelecer certos
controles, infelizmente necessários, em relação aos direitos e deveres dos
cidadãos. A maioria das pessoas é leal a mim, sabemos disso. Muitas que não
eram ou estavam indecisas vão passar para o nosso lado e, conforme vocês
verão, por um bom motivo. Mas existem aquelas facções, principalmente as duas
já mencionadas por mim, que não são leais. Talvez elas já tenham visto o erro
que cometeram e decidam ser leais a mim daqui em diante. Se assim for, não
terão nenhum problema com as proteções e garantias que entendo devam ser

postas em prática. Estou pedindo àqueles que são leais à Comunidade Global,
especificamente a mim e à fé unificada, que se disponham a ter uma marca de
lealdade. Walter Moon levantou-se.
- Senhor, eu lhe imploro, permita-me ser o primeiro a ter essa marca.
- Não devemos atropelar as coisas, irmão - disse Nicolae. - Talvez você
tenha seu desejo atendido. Apesar de estar emocionado com sua dedicação,
como você sabe que não vou marcá-lo com ferro quente como fazemos com o
gado?
Moon colocou as mãos abertas sobre a mesa, curvou a cabeça e disse:
- Tendo o senhor, o meu senhor, como testemunha, eu suportaria tudo e
ostentaria a marca com um orgulho inigualável.
- Ora, ora - disse Nicolae -, se o sentimento de toda a população for igual ao
do diretor Moon, não necessitaremos tomar medidas drásticas para seu
cumprimento, não é verdade?
David folheou os papéis de sua pasta até bater os olhos em uma palavra
assustadora.
- Guilhotinas? - ele disse em voz alta, sem ter tempo de refletir.
- Agora estamos atropelando as coisas - disse Nicolae. - E desnecessário
informar que este seria o último recurso e oro para que jamais seja necessário.
- Eu ofereceria de bom grado a minha cabeça - disse Moon com entusiasmo
exagerado -, se fosse tão tolo a ponto de negar meu senhor.
Nicolae virou-se para David.
- Você é o responsável pelas compras de artigos técnicos, correto?
David assentiu com a cabeça.
- Acho que não temos uma quantidade suficiente de equipamentos desse
tipo para todos os relutantes. Devemos fazer uma estimativa e estar preparados.
Conforme eu disse, meu maior sonho é que ninguém se recuse a ter a marca da
lealdade. Sra. Ivins, por favor.
- Na primeira página do material que lhes foi entregue -ela começou a dizer,
em tom de voz preciso e articulado, com um leve sotaque de seu dialeto romeno
-, antes que os senhores cheguem à palavra guilhotinas...

Ela deu uma risadinha, mas David continuou sério.
- ...há uma lista das dez regiões mundiais e um número correspondente. Ele
é o resultado de uma equação matemática que identifica aquelas regiões e suas
relações com Sua Excelência, o Potentado. A marca da lealdade, que explicarei
em detalhes, começará com esses números, identificando a região de cada
cidadão. Os números subseqüentes, armazenados em um biochip introduzido
sob a pele, servirão para identificar a pessoa até o ponto era que não haverá
ninguém com numeração igual.
De repente, Leon levantou-se e começou a falar, como se estivesse em
transe.
- Todo homem, mulher e criança, independentemente de posição social,
receberá esta marca na mão direita ou na testa. Aqueles que se recusarem a
receber a marca, assim que ela estiver disponível, não terão permissão para
comprar ou vender, sendo liberados somente após terem concordado em recebê-
la. Aqueles que se recusarem permanentemente serão condenados à morte, e
qualquer cidadão portador da marca terá o direito e a responsabilidade de
denunciá-los. A marca terá o nome de Sua Excelência ou o número determinado.
Após dizer isso, Leon sentou-se pesadamente na cadeira. Viv Ivins sorriu
com benevolência e disse:
- Obrigada, Reverendo.
Todos riram, inclusive Leon.
David receava que as batidas fortes de seu coração e as mãos trêmulas o
denunciassem. E se alguém tivesse a idéia brilhante de aplicar a marca, naquela
mesma noite, em todos os participantes da reunião? Ele chegaria ao céu antes
que Annie recebesse a notícia de sua morte.
- Baseamo-nos na tecnologia - prosseguiu Viv. - O biochip em miniatura com
os números armazenados será introduzido sem nenhuma dor em questão de
segundos, como se fosse uma vacina. Os cidadãos poderão escolher um dos
locais para a aplicação. Ficará visível apenas uma cicatriz de pouco mais de um
centímetro. À esquerda, em tinta preta impossível de ser removida, aparecerá o
número que designará a região do indivíduo. Esse número pode ser incluído no

chip, caso a pessoa prefira que apareça em sua pele uma das variações do
nome do potentado.
- Variações? - perguntou alguém.
- Sim. Achamos que a maioria vai preferir os números ao lado da cicatriz.
Mas há os que poderão optar pelas pequenas iniciais NJC do mesmo tamanho
dos números. Poderá ser usada a versão Nicolae, que praticamente cobrirá o
lado esquerdo da testa.
- Isso seria para os mais leais - disse Nicolae, com um sorriso malicioso. -
Alguém como... digamos... o diretor Hickman, por exemplo.
Hickman corou e disse bem alto:
- Inclua-me nesta lista, Viv!
- A utilidade do chip embutido é dupla - ela prosseguiu.
- Primeiro, deixa evidente a lealdade ao potentado. Segundo, serve como
forma de pagamento e recebimento para comprar e vender. Os scanners no nível
dos olhos permitirão que compradores e vendedores sejam debitados ou
creditados. Vários assobios de admiração ecoaram pelo ambiente. A cabeça de
David latejava. Ele levantou a mão.
- Pois não, diretor Hassid - disse Viv.
- O que a senhora tem em mente em relação ao prazo para a aplicação
dessa marca?
- Você acha que já tem cicatrizes suficientes na cabeça? -ela perguntou,
sorrindo.
- Também aplicaram soro intravenoso em minha mão.
- Não há motivo para preocupações - ela disse. - Embora o potentado e o
ex-supremo comandante achem que os funcionários devem servir de exemplo ao
mundo, você terá 30 dias, a partir de amanhã, para cumprir a ordem.
- Eu vou receber a marca esta noite - disse alguém -, mesmo não sendo o
Hickman!
Um mês, pensou David. Um mês para fugir da armadilha. O que seria dele,
de Annie, de Mac e de Abdullah? E de Hannah Palemoon?
Viv disse ter certeza de que nos próximos dias todos os diretores cumpririam

seu papel na questão das imagens de Carpathia e na aplicação da marca de
lealdade. A seguir, ela complementou:
- Sua Excelência vai tecer um comentário final.
- Obrigado, Viv - disse Nicolae. - Quero lhes contar a história de uma família
que conheci hoje, e vocês sabem que conheço milhares. Temos um belo núcleo
de cidadãos leais! Esse núcleo é representado pela lealdade de uma família
asiática chamada Wong.
David esforçou-se para manter a calma.
- A filha do casal trabalha conosco no Presídio de Reabilitação Feminina de
Bruxelas. A família está bem de vida e é grande colaboradora da Comunidade
Global. O pai sente muito orgulho de sua família e de seu registro de lealdade.
Mas, quem mais me impressionou foi Chang, o filho de 17 anos. Ele é um jovem
que, de acordo com o pai, me ama e ama tudo que se refere ao mundo de hoje.
Deseja trabalhar aqui no palácio. Embora falte um ano para concluir o curso
secundário, ele prefere trazer seus talentos para cá.
E que talentos! Vou providenciar para que ele complete os estudos aqui,
porque esse jovem é um gênio! Ele é capaz de programar qualquer computador,
analisar e consertar qualquer problema que exista no sistema operacional. Ele
me mostrou documentos, certificados de conclusão de cursos e cartas de
recomendação. Esse tipo de garoto é o nosso futuro, e o nosso futuro nunca foi
tão promissor.
Aquele garoto, pensou David, preferiria morrer a receber a marca.
SEIS

Enquanto seguia a cadeira de rodas pelo corredor, mal conseguindo
respirar, Rayford não parava de pensar nos erros que cometera. Se conseguisse
sair livre daquela situação, seria o líder mais determinado que o Comando
Tribulação podia imaginar.

Eles se dirigiram a uma sala menor que a anterior. Pinkerton Stephens abriu
a porta e fez uma manobra com a cadeira, deixando espaço para Rayford e Albie
entrarem. Ele apontou para Rayford uma cadeira cinza de aço perto da parede,
de frente para uma mesa da mesma cor e do mesmo material. Albie sentou-se à
esquerda de Rayford.
Stephens fechou e trancou a porta e resmungou alguma coisa sobre a sala
ser segura e sem escuta clandestina. Em seguida, dirigiu-se para o outro lado da
mesa, empurrando uma cadeira que estava no caminho. Depois de ajustar a
cadeira de rodas no nível da mesa, ele inclinou-se para a frente, apoiou os
cotovelos no tampo e cruzou as mãos sob o queixo.
Uma parte de Rayford relutava em olhar para o homem; a outra não
conseguia desgrudar os olhos dele.
- Agora - Stephens começou a dizer lentamente -, subcomandante Elbaz, se
este for o seu nome verdadeiro, pode afivelar o coldre de sua arma e ficar com
as mãos longe dela. Fazemos parte do mesmo time, e você não precisa ter medo
de mim. Quanto a você, Berry, apesar de estar sem farda e usando um nome
falso, também não precisa ter medo de mim. Vocês vão ter a agradável surpresa
de descobrir que nós três pertencemos ao mesmo time.
Rayford queria dizer "Duvido", mas receava não poder emitir nenhum som,
mesmo que tentasse.
- Podemos começar tudo de novo, cavalheiros? - perguntou Stephens.
Se ao menos..., pensou Rayford.
- Elbaz, você é um oficial superior a mim, por isso tem a responsabilidade de
iniciar esta reunião com o protocolo correto.
- Ele ressuscitou - disse Albie desgraçadamente na opinião de Rayford.
- Quem ressuscitou verdadeiramente? - disse Stephens. Rayford atribuiu a
frase errada ao problema físico do homem, fosse ele qual fosse. Albie limitou-se
a olhar para Stephens. Rayford notou que Albie tirara a mão da arma mas não
havia afivelado o coldre. Rayford pensou em pegar a arma, matar os dois e fugir
com Hattie.
- Comandante Elbaz, você tem uma missão a cumprir aqui. Vou lhe dar

permissão depois de satisfazer minha curiosidade a respeito de vocês dois. Sei
que é difícil alguém olhar para mim, que vocês estão imaginando o que
aconteceu comigo. Por mais esforço que eu faça, é difícil entender o que eu digo.
Vocês já viram alguém sem a maior parte do rosto?
Os dois sacudiram a cabeça. Stephens colocou o polegar inteiro sob o
queixo e disse:
- Assim que eu retirar a prótese vou ter dificuldade para me expressar, por
isso vou falar o mínimo possível.
Um puxão rápido!
Rayford estremeceu quando Stephens puxou com força a película de
plástico que ficava debaixo do queixo.
Mais um puxão rápido! E outro!
À medida que ele continuava, ficou claro que a prótese era uma única peça
que substituía a maior parte de seu queixo, nariz, cavidades oculares e testa. A
prótese era presa por grampos de metal encaixados no que restara dos ossos da
face. Stephens segurou-a no lugar com a mão sem dedos e disse:
- Preparem-se. Não vou deixar que vocês olhem por muito tempo.
Albie levantou a mão.
- Sr. Stephens, não é necessário. Temos uma missão a cumprir aqui, mas
não vejo necessidade de...
Ele parou de falar quando Stephens puxou a peça inteira do rosto, deixando
à mostra uma cavidade monstruosa. Apenas uma parte dos lábios deixava
transparecer que havia um ser humano ali, e Rayford esforçou-se para não cobrir
os olhos. O homem não tinha nariz, e as cavidades oculares estavam expostas.
Rayford achou que ele conseguia enxergar pelo cérebro, através dos buracos na
testa.
Rayford voltou a respirar naturalmente depois que Stephens recolocou a
prótese.
- Perdoem-me, cavalheiros - disse Stephens -, mas, conforme eu imaginava,
nenhum de vocês viu o que eu queria que vissem.
- O que foi que não vimos? - perguntou Albie, visivelmente abalado.

- Alguma coisa que explica o que vejo no rosto de vocês.
- Estou perdido - disse Rayford.
- Você não está perdido - disse Stephens, com um sorriso retorcido. - Já
esteve perdido, mas agora foi encontrado. Vocês gostariam que eu retirasse
novamente a prótese e...
- Não - disseram Rayford e Albie em uníssono. E Albie complementou: - Vá
direto ao assunto.
Pinkerton cruzou as mãos sob o queixo, e seus olhos pareciam perfurar a
mente de Albie.
- Como eu respondi quando você disse: "Ele ressuscitou"? Albie parecia ter
readquirido a voz e o controle.
- Entendi você dizer: "Quem ressuscitou verdadeiramente?"
- Foi o que eu disse. E qual foi sua resposta? Albie remexeu-se no lugar e
limpou a garganta.
- Creio que, de acordo com o protocolo, eu devo dizer "Ele ressuscitou", e
você deve responder "Ele ressuscitou verdadeiramente".
- Tudo bem, mas você não respondeu à minha pergunta. Quem ressuscitou
verdadeiramente?
Então, pensou Rayford, o negócio é comigo. Ele continuou em silêncio,
sabendo que o momento da verdade havia chegado e aguardando para ver qual
seria o resultado.
- Repita mais uma vez, comandante.
Albie respirou fundo e olhou para Rayford. A marca falsa em sua testa
parecia verdadeira.
- Ele ressuscitou - resmungou Albie.
- Quem ressuscitou verdadeiramente? - disse Stephens, forçando outro
sorriso nos lábios deformados.
- Oh, pelo amor de Deus! - disse Albie. - Estou cansado deste jogo.
- Cristo! - sussurrou Stephens, com euforia. - Vamos, irmãos! A resposta à
pergunta é "Cristo!" Cristo ressuscitou verdadeiramente! Estou vendo o selo dos
crentes na testa de vocês dois! Vocês não viram o meu por causa da

deformidade de meu rosto. Olhem agora!
Desta vez ele puxou a prótese da parte superior do rosto. Rayford e Albie
inclinaram-se para a frente, e lá, em meio aos ferimentos cauterizados, estava o
selo, bem visível. Enquanto Stephens recolocava a prótese, Rayford virou-se e
segurou a cabeça de Albie com as duas mãos. Em seguida, apoiou a parte de
trás com a mão esquerda e esfregou a direita na testa de Albie.
- Satisfeito? - perguntou Albie, sorrindo.
Rayford tremia como geléia. Atirou o corpo para trás na cadeira, ofegante e
incapaz de mexer um só dedo.
- Afinal, quem são vocês? - perguntou Stephens. Rayford inclinou-se para a
frente.
- Eu sou...
- Oh, eu sei quem você é. Fiquei sabendo imediatamente, apesar de sua
nova aparência. Mas quem é esse sujeito aí?
Albie apresentou-se.
Stephens inclinou-se para frente e sacudiu a cabeça. Em seguida, virou-se
para Rayford.
- Deixei o Sr. Steele completamente atordoado, não?
- Atordoado é uma palavra branda - disse Rayford.
- Você e eu trabalhamos para Carpathia na mesma época, Rayford. Antes
disso, seu genro trabalhou para mim.
- Você é Steve Plank?
- Em carne e osso, ou o que restou. Esmagado, retalhado, queimado e dado
como morto pelo terremoto da ira do Cordeiro. Antes disso, fiquei amargurado
durante semanas, lendo as matérias de Buck, pensando coisas a respeito de
Carpathia. Decidi que, se Buck e os outros crentes estivessem certos a respeito
de um terremoto global, eu devia estar convertido quando ocorresse o primeiro
tremor de terra. Eu estava orando quando o edifício desabou. Rayford balançou a
cabeça de um lado para o outro.
- Mas por que você voltou a trabalhar para a CG?
- A idéia ocorreu-me no hospital. Ninguém, inclusive eu, sabia quem eu era.

Quando minha memória voltou, inventei um nome e uma história. Isso foi há 21
meses. Durante um ano de terapia e reabilitação, tive tempo para pensar onde
eu queria ficar. Eu queria estraçalhar Carpathia.
- E por que não contou a ninguém? Todos pensaram que você estava morto.
- Os melhores segredos são guardados entre duas pessoas, desde que uma
delas esteja morta. Um dos golpes mais sujos de Carpathia foi a maneira como
ele tratou Hattie Durham. Eu ingressei nas Forças Pacificadoras e fiquei de olho
nela até trazê-la para cá. Orei muito para que este dia chegasse. Vou seguir
ordens, cumprir regras, fazer meu trabalho, e vocês vão resgatá-la.
David entrou em pânico. Depois de assistir à apresentação surrealista de
Carpathia, Fortunato e Viv Ivins, ele estava na fila para sair dali com os outros.
Mas Carpathia postou-se perto da porta, aceitando abraços, apertos de mão,
beijos e mesuras dos diretores. O desavergonhado Hickman ajoelhou-se e
passou os braços ao redor das pernas de Nicolae, chorando copiosamente. O
potentado revirou os olhos e lançou um olhar aterrador a Fortunato.
Quando ficou em sexto lugar na fila, David orou desesperadamente. O que
ele deveria fazer? Como ser humano, queria simular qualquer coisa para não ser
descoberto e não prejudicar o restante do Comando Tribulação. Mas não podia,
não queria, ajoelhar-se diante do anticristo. Seria impossível que uma quebra de
protocolo passasse despercebida. Parecia que ele seria o único diretor que não
diria tolices sobre o líder ressurreto.
Senhor Deus, ajuda-me! orou silenciosamente. Seria o fim? Deveria ele
dizer o que pensava e esperar pelo melhor? Ou deveria apertar a mão de
Carpathia e dizer algumas palavras neutras, tais como "Que bom ver o senhor
bem depois de ter morrido" ou "Seja bem-vindo ao mundo dos vivos"?
A não ser pelo ar de reprovação diante da atitude de Hickman, Carpathia
acolhia com gentileza e humildade as palavras doces de seu pessoal.
- Obrigado. Sou muito grato por seu companheirismo e apoio. Teremos
ótimos dias pela frente. Sim. Sim.

Quando ficou em segundo lugar na fila, David sentiu náuseas. Literalmente.
Seu couro cabeludo dolorido vibrava contra as bandagens a cada batida do
coração. Ele tentou Orar, tentou entender qual era a vontade de Deus naquele
momento. Mas, quando o diretor à sua frente afastou-se depois de abraçar
longamente o potentado, David parou sem saber o que fazer.
Carpathia estendeu os braços e disse:
- David, meu querido David.
David não conseguia se mexer e percebeu que todos Olhavam para ele.
Carpathia parecia atônito, tentando puxá-lo para perto de si. David disse:
- Poten... poten... Excelên...
A seguir, inclinou-se para a frente. A última coisa que ele viu antes de cair e
bater com a cabeça no piso de mármore foi que vomitou em cima de Carpathia.
- Como vai, Zeke? - perguntou Buck por telefone, visualizando a figura do
rapaz, que gostava de usar roupas pretas e folgadas, escondido no porão do
posto de gasolina de seu pai na cidade destruída de Des Plaines.
- Estou bem - foi a resposta sussurrada. - Estou vendo TV para me distrair e
tenho um bom estoque de comida aqui. Só que o lugar é muito escuro. E não há
nada para ver na TV a não ser toda aquela baboseira sobre Carpathia.
- Você está de olho no pessoal da CG?
- Estou. Toda vez que ouço barulho de motor, corro até o monitor para ver o
que está acontecendo. Alguns motoristas não são nossos clientes. Eles vêem a
bomba e param. Aí, o carro da CG surge, vindo do outro lado da estrada, e pára
na frente deles.
- Um jipe?
- Não, um carro pequeno de quatro portas, de cor escura.
- Ótimo.
- Ótimo por que, Sr. Williams?
- Porque eu vou chegar aí com um Hummer branco para pegar você, e ele
vai passar por cima desse fusquinha.

- Não é um fusquinha, senhor. É...
- É apenas uma maneira de falar, Zeke.
- Saquei.
- Quer dizer que os carros que chegam aí não são cercados pela frente e
por trás?
- Não, eles só têm um carro aqui. Eu fui espiar.
- Você foi espiar?
- Fui. Eu sei que não devia, mas estava cansado de ficar aqui. Subi a
escada e consegui ver o outro lado da estrada. Você sabe que ela nunca foi
consertada. Eles jogaram um pouco de asfalto há mais de um ano, e só. A
estrada foi ficando toda esburacada, e agora só existem pedaços de asfalto. Não
passam muitos carros por aqui.
- Você tem certeza de que a CG não sabe que você está aí?
- Tenho. Eles não sabem que existe um porão. Nem deveria existir. Foi
cavado por meu pai e eu.
- Onde estão os entulhos?
- Lá nos fundos, do outro lado da porta da entrada de serviço.
- Hum, eu nunca notei nada. Qual é a distância entre a escada secreta e o
porão?
- Uns três metros.
- Quer dizer que, se eu chegar pelos fundos do posto, vou ver uma porta
bem no meio da parede, e você pode chegar até ela subindo a escada e
caminhando uns três metros beirando o muro dos fundos.
- Isso mesmo.
- Se você perceber que estou chegando, pode sair escondido pelos fundos
sem ser visto pelo pessoal da CG, é isso?
- Mas acho que eles vão ver você.
- É isso o que me preocupa. Não queremos que eles saibam que você
estava escondido no porão. Você sai e se arrasta pelos fundos do posto. Vou
levar um cobertor para esconder você.
- Estou levando muita coisa comigo.

- Não há problema. Se eles me virem e me pararem, vou dar um jeito de
escapar, mas quero fazer o possível para que eles não saibam que cheguei.
O telefone deu um sinal avisando Buck que havia outra ligação. Era Rayford.
- Zeke, vou ligar para você depois. Pode ser a qualquer momento. Deixe
tudo pronto. - Buck apertou o botão. - Aqui é Buck.
- Buck, você não imagina com quem eu acabei de orar.
- Hattie?
- Não, você nunca vai adivinhar.
David despertou no hospital do palácio durante a madrugada. Havia alguém
acariciando-lhe a mão.
- Não fale - ela cochichou. Era a enfermeira Palemoon. -Você é uma
celebridade.
-Eu?
- Silêncio. O palácio todo está comentando que você vomitou em Carpathia.
David estava novamente ligado ao soro intravenoso. Sentia-se melhor.
- Você trocou minhas roupas?
- Sim, agora descanse.
- Pensei que você estivesse de folga.
- Estava, mas me trouxeram até aqui porque fui eu quem suturou você.
Nenhum médico gosta de sair da cama a estas horas.
- Hannah, eu preciso sair daqui.
- Não. Você devia ter ficado conosco mais alguns dias, e agora vai ter essa
chance.
- Eu não posso, nem você. - Ele contou baixinho o que ouvira na reunião. -
Temos de sair daqui antes de 30 dias ou estar preparados para arcar com as
conseqüências.
- Eu estou preparada, David. Você não?
- Você sabe o que quero dizer. Preciso encontrar minha noiva e dois pilotos.
Se você conhecer outros crentes...

- Noiva? Você está comprometido com alguém?
- Com Annie Christopher, a chefe do setor de cargas do Fênix.
- Eu não sei o que lhe dizer, David. Se ela estivesse aqui, já teria aparecido
no sistema.
- Você poderia verificar mais uma vez? E veja se consegue trazer Mac
McCullum e Abdullah Smith até aqui.
- Isso tudo é uma farsa, Albie - disse Plank. - Acha que posso relatar que um
tal subcomandante Elbaz esteve aqui apresentando suas credenciais e que eu
segui a lei à risca?
- Meu nome está tão evidente no banco de dados da CG que ninguém vai
questionar - disse Albie. - Talvez estranhem o fato de não me conhecerem
pessoalmente.
- Em breve - disse Rayford -, vou receber minhas credenciais e Albie vai se
reportar a mim. Só não quero comprometer o rapaz que trabalha internamente,
aquele que prepara tudo para nós.
- Como alguém vai saber que as instruções partiram dele ou do palácio? -
perguntou Albie.
- Não sei. Talvez ele esteja impedido de nos ajudar, mas vamos ter de
informá-lo sobre o que está acontecendo.
Plank conduziu-os pelo corredor, passou pela recepcionista e chegou ao
local da cela.
- Ouvi um barulho ali atrás há alguns minutos - gritou a Sra. Garner de sua
mesa.
- Briga?
- Uma pancada, só isso.
Plank bateu na porta da cela de Hattie, mas ninguém respondeu.
- Senhora - ele disse em voz alta -, o pessoal da CG está aqui para levá-la
de volta ao PRFB. - Plank piscou para Rayford e Albie. - Posso entrar, senhora?
Plank pegou a chave-mestra, destrancou a porta e abriu-a alguns

centímetros até encontrar resistência. Albie e Rayford deram um passo à frente
para ajudar, mas Plank disse:
- Eu sei como lidar com isso.
Ele afastou a cadeira de rodas e, em seguida, arremessou-a contra a porta,
mas havia uma cama atravessada para impedir a entrada de alguém.
- Oh, não! - ele disse.
Rayford passou na frente dele e atirou-se com o ombro contra a porta para
forçar a entrada.
O cômodo estava escuro, mas quando ele bateu a mão no interruptor
começaram a sair faíscas do teto, no lugar onde deveria haver uma luminária. A
luz que vinha do corredor mostrava que a luminária estava no chão, amarrada à
ponta de um lençol. A outra ponta estava presa ao redor do pescoço de Hattie,
que se encontrava no chão, estrebuchando.
- Tentou pendurar-se na luminária - disse Plank.
Albie pulou por cima dele e ajoelhou-se perto de Hattie. Ele e Rayford
demoraram um pouco para desamarrar o lençol. Rayford virou-a de costas, e ela
tombou a cabeça como se estivesse morta. Quando seus olhos se acostumaram
à escuridão, ele viu que os dela estavam abertos, com as pupilas dilatadas.
- Ela está se mexendo! - cochichou Albie, segurando-a pelo cinto e
levantando-a um pouco do chão. Rayford tampou-lhe o nariz para que ela abrisse
a boca e começou a fazer respiração boca a boca. O frágil corpo dela levantava
e abaixava à medida que ele introduzia ar em seus pulmões. Albie pressionava-
lhe o peito para que ela soltasse o ar.
- Feche a porta - disse Albie a Plank.
- Vocês não precisam de iluminação?
- Feche a porta! - cochichou Albie, desesperado. - Vamos salvar esta moça,
mas ninguém pode saber de nada.
Plank manobrou a cadeira para afastar a cama do caminho e fechou a porta.
- Sinto o pulso dela - disse Albie. - Você está bem, Ray? Quer que eu tome
o seu lugar?
Rayford sacudiu a cabeça e continuou com a respiração boca a boca até

Hattie começar a tossir. Finalmente, ela começou a engolir golfadas de ar e soltá-
las. Rayford sentou-se pesadamente no chão, com as costas apoiadas na
parede. Hattie começou a chorar e a proferir palavrões.
- Não posso nem me matar - ela disse entre os dentes. - Por que não me
deixaram morrer? Não posso voltar para aquela prisão.
Ela chorava copiosamente, rolando no chão.
- Ela não reconhece ninguém - disse Albie.
Hattie olhou de esguelha para cima. Rayford acendeu uma lâmpada
pequena.
- Não, não sei quem são vocês - ela disse, olhando para Albie e depois para
Rayford. - Eu conheço o comandante Pinkerton, mas quem são esses dois
idiotas?
Albie apontou para Rayford.
- Ele salvou sua vida. Eu sou apenas o idiota amigo dele. Hattie sentou-se
no meio da cela, com os joelhos erguidos e as mãos ao redor deles. Proferiu
mais um palavrão.
- Você não vai voltar para o PRFB, Hattie - disse Rayford. Foi então que ela
reconheceu a voz dele.
- O quê? - ela disse, com ar de espanto na voz.
- Sim, sou eu - disse Rayford. - Não há segredos nesta cela.
- Você veio? - ela perguntou, com voz esganiçada, arrastando-se até ele e
tentando abraçá-lo.
Rayford amparou-a. Ela olhou para Plank.
- Mas...
- Estamos juntos nesta missão - disse Rayford.
- Eu quase me matei - disse Hattie.
- A bem da verdade - disse Albie -, você se matou.
- O quê?
- Você está morta.
- Do que você está falando?
- Você quer sair daqui? Quer ficar longe da CG? Vai ter de sair daqui morta.

- O que você está dizendo?
- Você chamou seu amigo para resgatá-la. Ele se recusou. Você ficou
desesperada. Quando perdeu as esperanças e soube que ia voltar para o
Presídio da Bélgica, você entrou em desespero, escreveu um bilhete e enforcou-
se. Viemos buscá-la, mas foi tarde demais. O que poderíamos fazer? Relatar o
suicídio e nos livrar do corpo.
- Eu escrevi um bilhete - ela disse. - Vejam!
Hattie apontou para um pedaço de papel que caíra da cama.
Rayford pegou-o e leu-o sob a lâmpada.
"Obrigada por não terem feito nada por mim, meus velhos AMIGOS!!!",
ela havia escrito. "Jurei que não voltaria ao PRFB e não vou voltar. Vocês
não têm condições de vencer essa gente."
- Assine o bilhete - disse Rayford.
Hattie massageou o pescoço e tentou limpar a garganta. Encontrou a caneta
e assinou o bilhete.
- Por quanto tempo você consegue prender a respiração? - perguntou Albie.
- Não muito, a ponto de me matar.
- Vamos tirá-la daqui debaixo de um lençol. Você também vai ter de parecer
morta quando a colocarmos no avião. Acha que vai conseguir?
- Vou fazer o que for necessário. - Ela olhou para Plank. -Você também está
envolvido nessa história?
- Quanto menos você souber, melhor - ele disse, olhando para Albie e
depois para Rayford.
- Por mim, ela nunca vai precisar saber.
Ambos concordaram com um movimento de cabeça. Plank lhes disse para
deixarem o lençol como estava, com a luminária presa em uma das pontas.
- Usem o outro lençol da cama para cobri-la. Façam isso já.
Rayford arrancou o lençol da cama, e Hattie deitou-se em cima do colchão.
Ele levantou o lençol acima dela e o deixou cair naturalmente. Plank abriu a
porta.
- Sra. Garner! - ele gritou -, aconteceu uma tragédia!

- Oh, meu...
- Não, não se aproxime! Fique onde está. A prisioneira se enforcou, e a CG
vai cuidar do corpo.
- Oh, comandante! Foi esse o barulho que ouvi?
- Talvez.
- Eu poderia ter feito alguma coisa? Deveria?
- A senhora não poderia ter feito nada. Vamos deixar que estes homens
façam o trabalho. Traga-me a maca que está no depósito.
- Eu não vou precisar olhar, não é verdade, senhor?
- Eu vou cuidar disso. Vá buscar a maca. Mais tarde eu dito um relatório.
Apesar do rosto lívido e dos protestos da Sra. Garner, Rayford percebeu que
ela acompanhou o "corpo" com os olhos até ser colocado na minivan. Ele se
surpreendeu diante da habilidade de Hattie de parecer imóvel sob o lençol.
Plank concordou em ligar para o Campo de Aviação Memorial a Carpathia a
fim de autorizar o subcomandante Elbaz e seu motorista a estacionarem o
veículo de Judy Hamilton ao lado do caça a jato para colocarem um corpo que
seria transportado no avião. Não, eles não necessitariam de ajuda e gostariam
que o caso fosse tratado com a maior discrição possível.
Quando faltavam alguns quilômetros para chegar ao campo de aviação,
Hattie voltou a cobrir-se com o lençol. Apesar dos olhares curiosos através dos
vidros da minivan, Rayford e Albie a colocaram dentro do caça sem levantar
suspeitas.
SETE

Assim que escureceu, Buck tirou o Hummer da garagem no subsolo do
Edifício Strong, com os faróis apagados. Ele passara a tarde improvisando uma
conexão especial entre as luzes do freio e as das lanternas traseiras. Assim que
saísse do perímetro urbano de Chicago, ele não queria correr o risco de ser

parado por causa de mau funcionamento das lanternas traseiras, mas também
não queria que as luzes do freio acendessem quando ele chegasse ao
esconderijo de Zeke.
Zeke era um especialista em assuntos dessa natureza e orientou Buck por
telefone. Seria ótimo ter Zeke morando na nova casa secreta para ajudá-los
nesse tipo de detalhe. As luzes do breque estavam desligadas. Com os faróis
acesos ou não, Buck teria de acionar manualmente a luz do freio todas as vezes
que freasse. Havia um fino fio vermelho que saía de trás do carro, passava pelo
banco traseiro e terminava ao lado do motorista. Ele só precisaria lembrar-se de
usá-lo.
Ninguém sabia com que freqüência a CG investia tempo, equipamento e
pessoal para sobrevoar a cidade que, de acordo com seus bancos de dados,
havia sofrido um alto nível de radioatividade. Não fazia sentido alguém
aproximar-se do local. Se os índices fossem verdadeiros, ninguém conseguiria
viver ali por muito tempo. Somente David Hassid e o Comando Tribulação
conheciam a realidade dos fatos.
Apesar de Rayford saber disso, seu plano era pousar e decolar o helicóptero
na torre durante a noite. E Buck, ou qualquer pessoa que chegasse ou partisse
de carro, deveria entrar e sair da garagem somente depois do anoitecer. Essa
era uma boa estratégia, porque todas as luzes da cidade - exceto as do Edifício
Strong - estavam desligadas. Se não houvesse luar, seria quase impossível
enxergar alguma coisa naqueles escombros com quilômetros de extensão que
um dia haviam sido as ruas da cidade de Chicago.
Buck saiu da garagem lentamente dirigindo o enorme Hummer, que rodava
com facilidade sobre o terreno acidentado. Ele precisava acostumar-se com o
carro, o maior que já havia dirigido. Era confortável, possante e - para satisfação
de Buck - surpreendentemente silencioso. Buck imaginara que dirigir o Hummer
seria o mesmo que dirigir um tanque de guerra.
Enquanto estivesse rodando pela cidade de Chicago, seria difícil acostumar-
se com o carro. Só depois que entrasse na estrada é que Buck ganharia
confiança. Lá, não haveria ninguém prestando atenção nele. Meia hora depois,

ele chegou ao limite da cidade e pegou uma estrada deserta que dava acesso
aos subúrbios. Acendeu os faróis e ligou, com a mão esquerda, o botão para
acionar a luz do freio.
Perto de Park Ridge havia uma parte da estrada reconstruída com vários
quilômetros de asfalto novo e algumas luzes sinalizadoras de trânsito. O restante
da região norte de Illinois parecia ter regredido aos tempos das diligências. Em
meio aos escombros, havia trilhas abertas pelos carros que ali passavam, e a
chuva deixara alguns trechos praticamente intransitáveis.
Buck avistou duas viaturas da CC e poucos carros particulares rodando.
Assim que se sentiu seguro, ele testou a potência do Hummer e praticou
algumas manobras para a esquerda e para a direita em velocidades diferentes.
Ele foi acentuando as manobras à medida que acelerava, mantendo o corpo
firmemente preso pelo cinto de segurança. Nada alterava a estabilidade do
Hummer. Buck encontrou uma área deserta onde ninguém poderia vê-lo e fez
duas manobras rápidas em um terreno inclinado. O Hummer parecia querer
mais. Seu porte robusto, seu peso e sua potência conferiam-lhe uma mobilidade
inigualável. Buck sentia-se como se estivesse participando de um comercial de
TV.
Em um trecho de terra, ele pisou fundo no acelerador. Quando chegou a
quase 130 km/h, ele brecou com força e virou o volante. O sistema antitrava
impediu que ele patinasse ou tombasse. Buck não via a hora de competir com o
"carrinho" que a CG estava usando na área vigiada de Des Plaines.
Buck precisava acalmar-se. A idéia era pegar Zeke sem ser visto. Ele
pararia no posto como se fosse um cliente comum e abalroaria o carro da CG
caso eles se aproximassem para investigar. Mas os guardas, equipados com
telefones, rádios e uma rede de comunicação, poderiam cercá-lo facilmente. Se
Buck encontrasse uma forma de aproximar-se do posto pelos fundos, com os
faróis apagados, talvez não fosse visto nem mesmo no momento de sair dali com
Zeke.
Seu telefone tocou. Era Zeke.
- Você está perto? - perguntou o jovem.

- Mais ou menos. O que houve?
- Vamos ter de pôr fogo neste lugar.
- Por quê?
- Assim que eles acharem que já prenderam todos os rebeldes que usavam
este posto aqui, vão pôr fogo em tudo, certo?
- Talvez - disse Buck. - E por que não deixar esta tarefa a cargo deles?
- Eles podem querer revistar antes.
- E o que vão encontrar?
- O porão, é claro. Não quero deixar nenhuma prova aqui que possa
entregar meu pai.
- O que mais vão querer fazer com ele?
- Ele foi preso porque estava vendendo gasolina sem autorização da CG.
Eles vão multar meu pai ou deixá-lo atrás das grades por um mês ou dois. Se
descobrirem que a gente estava falsificando documentos aqui, ele vai passar a
ser inimigo do Estado.
- Bem lembrado - disse Buck. Ele estava sempre se surpreendendo com a
experiência de vida daquele rapaz aparentemente tão ingênuo. Quem poderia
supor que um ex-drogado, com habilidade para fazer tatuagens, era o melhor
falsificador de documentos no ramo?
- E tem mais, Williams. Também vendemos alguns petiscos aqui.
Guloseimas, se esta for a palavra certa. Você sabe, porque já comprou essas
coisas aqui. O meu plano é o seguinte. Instalo um marcador de tempo ligado a
uma vela de ignição. Você sabe que não é a gasolina que queima.
- Como assim? - Buck sentia-se um completo idiota. Apesar de ter sido um
jornalista que viajou o mundo inteiro, ali estava um rapaz praticamente analfabeto
tentando dizer-lhe que o fogo na gasolina não é o que parece ser.
- É verdade. Não é a gasolina que queima. Quando eu trabalhava no posto
ajudando meu pai, no tempo em que nosso negócio era legal, eu costumava
atirar cigarros dentro de um balde de gasolina que ficava lá nos fundos.
- Não acredito.
- Eu juro.

- Cigarros acesos?
- Eu juro, é verdade. Era assim que a gente apagava os cigarros. Eles
apagavam como se tivessem sido jogados dentro de um balde d'água.
- Não estou entendendo nada.
- A gente guardava gasolina lá para limpar as mãos. Sujeira de graxa. Além
de encher os tanques e anotar os números dos cartões de crédito, às vezes a
gente também precisava mexer nas rodas dos carros.
- Até agora, não entendi como você tinha coragem de atirar um cigarro
aceso dentro de um balde de gasolina.
- Muitas pessoas não sabem disso ou não acreditam.
- Como vocês sabiam que aquilo não ia explodir?
- Se a gasolina tivesse sido colocada há pouco tempo no balde, a gente
precisava esperar um pouco. Se tivesse um pouco de vapor acima dela, como
acontecia logo depois que era despejada no balde ou no tanque de um carro, aí
sim era perigoso chegar perto com qualquer tipo de chama.
- Mas assim que ela se assentava, os vapores desapareciam?
- Desapareciam, e a gente jogava os tocos de cigarro lá dentro.
- Então, o problema é com os vapores.
- Isso mesmo, os vapores é que queimam.
- Entendi. E aí? O que você tem em mente?
- Veja só, Williams, com um motor acontece a mesma coisa. O motor de um
carro espirra jatos de gasolina nos cilindros e a vela de ignição solta faíscas, mas
não queima a gasolina.
- Os jatos de gasolina emitem vapores, que, em essência, explodem no
cilindro - disse Buck.
- Agora você entendeu.
- Ótimo. Já estou a caminho daí. Explique qual é a sua idéia.
- Eu arrastei duas caixas pesadas para perto de um monte de lixo nos
fundos e peguei uma sacola grande de lona. Coloquei os meus arquivos, meus
equipamentos, tudo lá dentro. Ainda sobrou espaço para um pouco de
mantimento.

- Já temos mantimento suficiente, Zeke.
- A gente nunca consegue ter comida suficiente. Deixei tudo lá esperando
sua chegada. Se eles não virem você chegando, eu corro, jogo tudo dentro do
carro e entro em seguida.
- Parece um bom plano. E como você vai fazer para queimar tudo antes?
- Ah, é verdade. Tenho algumas peças de carro aqui. Eu corto uma parte de
um cano que vai até o depósito da gasolina, que corre ao lado do muro que
cavamos aqui fora, e engancho um injetor de combustível nele. Quando eu sair,
ligo a torneira, a gasolina passa pelo injetor de combustível e começa a espirrar.
- Em pouco tempo, o porão vai ficar cheio de gasolina.
- De vapores.
- Correto. E aí você acende um fósforo, atira-o na escada e corre para o
carro?
Zeke riu.
- Não ria alto - disse Buck.
- Eles não conseguem me ouvir. Mas não vai ser assim. Se eu atirar um
fósforo aceso lá embaixo, a coisa vai explodir em mim e atingir todo o caminho
até Chicago. Você nem ia precisar vir até aqui.
- Então, com o que você vai atear fogo?
- Eu ligo uma vela de ignição a um marcador de tempo. Preciso de mais ou
menos cinco minutos para sair sem me arriscar muito. E, no momento certo,
bum!
- Bum!
- É isso aí!
- Zeke, mesmo que eu concordasse, você não teria tempo de instalar tudo
isso. Estou a menos de dez minutos daí.
- Achei que você ia concordar.
- E...?
- Está tudo pronto.
- Você está brincando.
- Não. Se você está a menos de dez minutos daqui, vou marcar 15 minutos.

Quando eu sair, abro a torneira.
- Rapaz, você é esperto demais.
- Eu sei como fazer essas coisas.
- Claro que sabe, mas quero que me faça um favor.
- Diga.
- Marque cinco minutos, mas só ligue o marcador depois de abrir a torneira,
quando você estiver saindo. Combinado?
- Combinado.
- Ah, mais uma coisa. Eu preciso estar aí antes de você abrir a tal torneira.
- Correto. Isso é muito importante.
- Se não, Zeke, bum.
- É isso aí.
- Ligo para você assim que chegar.
- O nome dela não consta de nosso sistema, David - disse a enfermeira
Palemoon. Ele tentou sentar-se, mas ela o deteve.
- O que não significa que tenha acontecido o pior.
- Como você pode dizer isso? O sol está nascendo e até agora não recebi
notícias dela. Ela teria me ligado se pudesse!
- David, você precisa acalmar-se. Neste quarto não há outras pessoas, mas
não é seguro. Seus amigos estão a caminho, mas você não pode confiar em
mais ninguém.
- Preste atenção, Hannah, você precisa me tirar daqui. Não posso ficar por
mais alguns dias. Tenho muito o que fazer antes de ir embora de Nova Babilônia.
- Eu posso conseguir remédios, roupas e outras coisas, mas você está
ferido.
- Não estou preocupado com isso. Você iria... - A voz dele ficou embargada.
- Você iria...
- Você quer que eu vá até o necrotério? - Ela disse estas palavras com tanta
compaixão que David quase ficou sufocado pelo sofrimento.

Ele assentiu com a cabeça.
- Volto logo. Se seus amigos chegarem nesse meio-tempo, diga a eles que
existem ouvidos por toda parte.
Rayford, Albie e sua carga humana do Colorado pousaram em uma
pequena pista perto de Bozeman, Montana. Eles não quiseram voltar para
Kankakee sem dormir um pouco antes. Albie enganou e ameaçou o pequeno
contingente da CG ao lado da pista. Eles aceitaram a história de que Albie estava
transportando um criminoso e autorizaram os três a seguirem de jipe até a
cidade.
Bozeman estava praticamente destruída, mas restara ali um hotel pequeno,
onde eles alugaram dois quartos.
- Acho que não vamos ter de nos preocupar em manter você trancada -
disse Rayford a Hattie.
- Comparada à PRFB - ela disse -, a nova casa secreta deve ser um céu.
- Você ficará lá dentro pelo resto da vida - ele disse. - Há mais pessoas lá, e
você vai ser nosso principal alvo.
- Pelo menos uma vez na vida, eu vou ouvir os outros - ela disse.
- Não diga coisas que não vai fazer.
- Eu não vou mais dizer coisas que não vou fazer. Hattie tinha um milhão de
perguntas acerca de Pinkerton Stephens, mas Rayford e Albie limitaram-se a
dizer que "ele é um dos nossos". Depois, ela quis conhecer a história de Albie, e
ele lhe contou que se converteu depois de uma vida inteira como muçulmano.
- Você sabe o que quero dizer quando menciono o nome de Tsion Ben-
Judá? - ele perguntou.
- Se eu sei? Eu o conheço pessoalmente. Você está falando de um homem
que ama quem não merece ser amado...
- Você está falando de si mesma, moça?
Ela deu um longo suspiro e assentiu com a cabeça.
- De quem mais eu poderia estar falando?

- Permita-me dizer-lhe uma coisa. Eu era uma pessoa que não merecia
amor. Nunca fui bom marido nem bom pai. Agora toda a minha família está
morta. Fui um criminoso,e a única pessoa que se interessou por mim me pagava
muito bem para obter o que necessitava. Eram coisas ilegais. Comecei a
justificar minha existência quando o mercado negro em que eu trabalhava foi
usado para opor-se ao novo legislador maligno do mundo. Mas eu não o
chamava de anticristo. Não conhecia essa palavra. Eu estava trabalhando nesse
mesmo ramo quando o mundo ficou caótico. Meu deus era o dinheiro, e eu sabia
como consegui-lo. Quando Mac e Rayford necessitaram de meus serviços - ele
prosseguiu -, fiquei um pouco aliviado, porque eles pareciam ser boa gente. Eu
não estava mais ajudando criminosos. Observei o comportamento deles, ouvi o
que tinham a me dizer. Aos olhos da Comunidade Global, eles eram foragidos,
mas para mim aquilo era um distintivo de honra. Quando todas as coisas que
Mac e Rayford me contaram começaram a acontecer, eu não quis admitir a eles
que estava intrigado. A palavra não era bem esta. Eu estava morrendo de medo.
Se tudo aquilo fosse verdade, eu era um estranho no ninho. Não era crente.
Comecei a ler as mensagens do Dr. Ben-Judá pela Internet sem o conhecimento
de meus amigos. Eu continuava orgulhoso. O que mais me impressionou foi o Dr.
Ben-Judá ter deixado tão claro que Deus amava os pecadores. E eu sabia que
era um pecador. Não conseguia entender como alguém podia me amar. Fiz um
download da Bíblia para meu computador e a comparava com os ensinamentos
do Dr. Ben-Judá. Vi onde ele conseguia suas informações, mas como eram
lindas as suas mensagens! Elas tinham de vir de Deus. O que eu estava
aprendendo ia de encontro a todas as coisas que ouvi e que me ensinaram.
Minha primeira oração foi tão infantil que nunca tive coragem de repeti-la na
frente de outras pessoas. Eu disse a Deus que era um pecador e que queria
acreditar que Ele me amava e que me perdoaria. Contei a Ele que a religião
ocidental era tão estranha para mim que eu não sabia se conseguiria entendê-la
um dia. Eu disse ao Senhor: "Se tu és mesmo um Deus vivo e verdadeiro,
esclarece isso para mim." Eu pedi perdão pela vida que levei e disse que Ele era
minha única esperança. Só isso. Não senti nada, talvez eu tenha me achado um

pouco tolo. Mas naquela noite dormi como não dormia havia anos. Oh, não me
interprete mal. Eu não tinha certeza de haver me aproximado de Deus. Não tinha
certeza se Ele era mesmo quem o Dr. Ben-Judá e os outros diziam ser. Eu só
sabia que havia feito tudo o que podia. Tinha sido honesto comigo mesmo e
honesto com Ele. Se Ele fosse quem eu esperava, iria me ouvir. Era o máximo
que eu poderia esperar. Albie endireitou o corpo e inspirou profundamente.
- Só isso? - perguntou Hattie. - Não houve mais nada? Ele sorriu.
- Achei que devia fazer uma pausa para ver se deixei você com sono depois
de toda essa conversa.
- Vocês dois foram os únicos que ficaram acordados a noite toda. Conte-me
o que aconteceu depois.
- Acordei na manhã seguinte com uma sensação de expectativa. Eu não
sabia o que fazer. Antes mesmo de comer alguma coisa, senti uma fome e uma
sede profunda pela Bíblia. Fome e sede. Não existem outras palavras para
expressar o que eu sentia. Acreditava de todo o coração que ela era a Palavra de
Deus, e eu precisava lê-la. Liguei o computador e li, li, li e li. A sensação foi
indescritível. Eu compreendi tudo! Queria ler mais. Queria extrair mais coisas
para mim. Só depois do meio-dia, quando eu comecei a sentir fraqueza, foi que
me dei conta de que não havia comido nada até aquela hora. Agradeci a Deus
infinitas vezes sua Palavra, sua verdade e suas respostas à minha oração.
Agradeci porque Ele se revelou a mim. De vez em quando, eu parava de ler a
Bíblia para ver se o Dr. Ben-Judá havia incluído alguma novidade. Comecei a
seguir algumas orientações dele sobre alguns links e encontrei um site onde
havia uma oração à qual ele dá o nome de oração do pecador.
Fiz aquela oração e vi que era parecida com uma que eu já havia feito. Eu
era um crente, um filho de Deus que recebeu seu perdão, um pecador a quem
Ele amava.
Hattie parecia incapaz de dizer alguma coisa, e Rayford já havia
presenciado aquele tipo de comportamento. Muitas pessoas já haviam contado a
ela como se converteram. Ela conhecia a verdade e o caminho a seguir, mas
simplesmente não se decidia.

- Existe um motivo para que eu lhe conte a minha história - disse Albie. - E
não é só porque eu quero convencer você. Nós, que passamos a conhecer a
verdade, queremos que todo mundo também conheça. Mas fiquei intrigado com
o que você disse a respeito de si mesma. Você disse que o Dr. Ben-Judá ama
quem não merece ser amado. E ele ama mesmo. Essa é uma qualidade do
cristão, uma característica de Jesus. Quando você disse que não merecia ser
amada, eu me identifiquei com você. E tem mais, Srta. Durham. Vou usar uma
frase do Dr. Ben-Judá. Ele costuma dizer que algumas verdades "comprovam a
mentira" que existe em certas afirmações falsas. Você já ouviu falar disso e sabe
o que significa? Ela assentiu com a cabeça.
- Isso se aplica a você, minha jovem. Eu acabei de conhecer você, e Deus
me concedeu a graça de amá-la fraternalmente. Rayford, sua família e seus
amigos falam sempre de você e do amor que lhe dedicam. Isso comprova a
mentira que existe em sua afirmação de que não merece ser amada.
- Eles não deveriam me amar - ela disse em voz baixa.
- Claro que não deveriam. Você se conhece. Conhece seu egoísmo, seu
pecado. Deus também não devia nos amar, mas Ele nos ama. E é por causa
dele que amamos uns aos outros. Não existe explicação humana para isso.
Aflito, Rayford orava em silêncio por Hattie. Será que Deus incutira uma
teimosia tão grande naquela moça por ela ter rejeitado a Cristo durante tanto
tempo? Será que ela não conseguiria enxergar a verdade, mudar de opinião? E,
se assim fosse, por que Deus permitia que Rayford e seus amigos se
preocupassem tanto com ela?
De repente, ela se levantou, caminhou em direção a Rayford, curvou o corpo
e beijou-lhe o topo da cabeça. Em seguida, fez o mesmo com Albie, segurando o
rosto dele com as duas mãos.
- Não se preocupem comigo esta noite - ela disse. - Não vou fugir.
- Você não tem motivos para fugir - disse Albie. - Não está sob nossa
custódia. Na verdade, está morta.
- De qualquer forma - disse Rayford levantando-se e esticando o corpo -,
para onde você iria? Que lugar seria mais seguro do que aquele para onde

estamos levando você?
- Obrigada por terem salvado minha vida - ela disse, dirigindo-se para seu
quarto.
Assim que ela fechou a porta, Rayford disse:
- Eu só espero que tudo isso não tenha sido em vão. Eles a ouviram abrir e
fechar a porta e, depois, caminhar dentro do quarto.
- Não foi em vão - disse Albie.
Rayford estava extremamente cansado, mas, quando começou a tirar a
roupa para deitar-se, ele ouviu um som que se sobressaía ao barulho do
chuveiro ligado por Albie. Parecia som de vozes no quarto ao lado. Ele encostou
o ouvido na parede. Não eram vozes. Era som de choro, de soluços, de gemidos.
Hattie devia estar abafando o pranto com o rosto enterrado no travesseiro ou
cobertor.
Meia hora depois, deitado na cama em frente à de Albie e aguardando o
sono chegar, Rayford ainda ouvia os lamentos de Hattie através da parede. Ele
ouviu Albie virar e ajeitar o travesseiro e acomodar-se para dormir. - Senhor -
murmurou Albie -, salva aquela moça.
Buck passou direto pelo pequeno posto de gasolina fingindo não ter notado
a viatura da CG no meio de algumas árvores do outro lado da estrada. Nem
chegou a reduzir a velocidade para não chamar a atenção. Pelo que ele
percebera, havia dois guardas da CG dentro do carro. Ele ligou para Zeke.
- Alguma novidade?
- Nenhuma. Foi você que acabou de passar por aqui? Que lindeza de carro!
- Vou dar a volta e ver se posso entrar pelos fundos com os faróis apagados.
Devo levar uns dez minutos. Assim que eu estiver na posição certa, ligo para
você.
Buck continuou a rodar até não conseguir mais enxergar o posto de gasolina
pelo espelho retrovisor, supondo que os guardas da CG também não
conseguiriam mais enxergá-lo. Ele apagou os faróis e virou à direita, rodando

devagar pelo terreno acidentado. O posto ainda estava a alguns quilômetros de
distância, e Buck queria ter a certeza de que não encontraria nenhuma cerca ou
buraco que pudesse prejudicar o Hummer.
Em um determinado ponto, enquanto se dirigia para os fundos do posto
depois de ter virado mais duas vezes à direita, ele sentiu que um lado do carro
afundou no chão e temeu que uma das rodas tivesse caído em alguma cratera.
Quando a grade da frente bateu em uma coisa sólida, ele freou e acendeu os
faróis por alguns instantes e desligou-os em seguida para que a CG não tivesse
tempo de notar a presença de um carro ali. Buck percebeu que precisava dar
marcha a ré e virar o volante para a esquerda, a fim de contornar um monte de
um metro e meio de altura de entulho e de tábuas.
Ele queria acender novamente os faróis para ver se havia alguma coisa
mais obstruindo o caminho até o posto, mas não se atreveu. Assim que teve uma
noção do local, ele começou a rodar lentamente pelo terreno acidentado,
balançando, sacolejando e - tomara! - sem levantar muita poeira. Era uma noite
estrelada, e, se a CG notasse alguma poeira no ar, com certeza iria bisbilhotar o
que estava acontecendo nos fundos do posto.
Buck ligou para Zeke.
- Estou ouvindo o barulho do carro - disse Zeke.
- Você está ouvindo? Daí de dentro? Isso não é bom.
- Foi o que pensei. Você está pronto para me pegar?
- Saia rápido. Você está carregando alguma coisa?
- Estou levando mais uma sacola. Achei que devia deixar o mínimo de
coisas para trás.
- Bem pensado. Saia daí.
- Preciso abrir a torneira e ligar o marcador de tempo.
- Quanto tempo mais?
- Cinco minutos.
- Alguma coisa no monitor?
- Eles estão sentados dentro do carro.
- Ótimo. Prepare-se.

Buck sabia que poderia voltar por aquele mesmo caminho. Embora o terreno
fosse muito acidentado, ele calculou que poderia rodar a uns 60 km/h. Para evitar
que os guardas da CG ouvissem o barulho do Hummer, ele resolveu saltar do
carro e colocar as coisas dentro para ganhar tempo.
A luz interna do carro não acendeu quando ele abriu a porta para sair. Ele
não a fechou. Abriu a porta traseira do outro lado, rastejou e começou a pegar as
coisas. A primeira caixa era muito pesada, e ele quase gemeu com o esforço
para carregá-la. Em seguida, ouviu Zeke subindo a escada.
Buck colocou a caixa no banco traseiro do carro sentindo dores por todo o
corpo em razão de seus recentes ferimentos. Quando deu a volta no carro para
pegar a outra caixa, imaginando que Zeke poderia cuidar da sacola que
carregava e da que estava no chão, ele quase trombou com o rapaz,
assustando-o.
Zeke soltou um grito. Buck tentou silenciá-lo, mas Zeke atirou a sacola no
chão e voltou correndo para seu esconderijo, batendo a porta com força. Buck
ouviu os passos do rapaz descendo a escada. Agora eles estavam fazendo muito
barulho.
Buck abriu a porta e o chamou desesperadamente, o mais baixo que podia.
- Zeke, sou eu! Vamos embora! Já!
- Oh, não! - gritou Zeke. - Pensei que fossem eles! O marcador de tempo
está ligado, a gasolina está correndo. E eles estão chegando, Buck. Estou vendo
pelo monitor!
Buck virou-se e abriu a porta traseira do carro. Pegou a sacola que estava
ali e a outra que Zeke atirou no chão e as jogou no banco traseiro. Deixou a porta
aberta, sentou-se ao volante e deu partida no Hummer. Zeke saiu do esconderijo
e jogou-se no banco traseiro, derrubando uma das sacolas para fora do carro,
pela porta que Buck deixou aberta.
Buck pisou fundo no acelerador, mas Zeke gritou:
- Não podemos deixar aquela sacola para trás! Ela está cheia de coisas
importantes para nós!
A porta havia começado a fechar-se quando Buck acelerou, mas assim que

ele pisou no freio, ela balançou e enroscou-se nas dobradiças.
- Pegue a sacola! - ele gritou.
Zeke deitou-se por cima do banco e esticou o corpo para pegar a sacola,
arrastando consigo a outra sacola. A viatura da CG estava contornando o posto
em frente a Buck.
- Acelere! Acelere! - berrou Zeke, forçando-se a sentar-se no banco traseiro
com as duas sacolas pesadas enrascadas debaixo dos braços.
A porta continuava aberta, mas Buck tinha de sair rápido dali. Ele acelerou a
toda e arremessou o carro de encontro à viatura da CG. Os guardas apontaram
as armas e, aparentemente, estavam tentando alcançar as maçanetas para sair.
Sabendo que não podia ficar sob a mira das balas, Buck mudou o câmbio para
marcha a ré e acelerou. O carro possante escalou o monte de entulhos perto da
porta do esconderijo de Zeke.
Buck parou no topo do monte, e o carro começou a balançar acima de seus
perseguidores. Ele engatou a marcha e partiu. Quando os guardas da CG viram
o carro começar a aproximar-se, eles abaixaram as armas e saíram do caminho.
O Hummer caiu quase na vertical, chocando-se contra o capô da viatura e
estourando dois dos pneus dianteiros. O motor da viatura começou a soltar água
e fumaça, e Buck teve a certeza de que destruíra completamente o veículo da
CG.
Sem olhar para os guardas, afastou-se uns dois metros, girou rapidamente o
volante para a direita e desapareceu na escuridão da noite. Zeke conseguira
fechar a porta de seu lado, mas nem ele nem Buck tiveram tempo de prender os
cintos de segurança. Quando o Hummer disparou em alta velocidade, os dois
foram atirados de um lado para o outro como se fossem duas bonecas de pano,
batendo a cabeça no teto e os ombros nas portas. Buck freou de repente.
- O que houve? - perguntou Zeke.
- Vamos prender os cintos!
Feito isso, os dois voaram estrada afora. Pouco menos de cinco minutos
depois, enquanto Buck procurava um caminho para levá-los de volta a Chicago,
o céu atrás deles transformou-se em uma enorme bola de fogo alaranjada.

Alguns segundo s depois, o estrondo fez o carro balançar. Buck, movido a
adrenalina, percebeu que ambos estiveram muito próximos da morte.
Zeke, rindo como uma criança virava-se a todo o momento para ver o
horizonte em chamas.
- Conseguimos fazer direitinho aquele trabalho! - ele disse em meio a uma
gostosa gargalhada.
OITO

Acabrunhados, Mac e Abdullah conversavam em voz baixa no quarto do
hospital onde David se encontrava.
- Trinta dias? - Mac repetiu várias vezes. - É difícil de acreditar.
- Não podemos mais ficar aqui - disse Abdullah - Sei que não deveria, mas
acho que vou sentir falta deste lugar.
- Eu vou, com certeza - disse David, aguçando os ouvidos todas as vezes
que ouvia passos no corredor. - Há muita coisa que podemos fazer daqui de
dentro, coisas que não vamos ser capazes de fazer do lado de fora.
Mac deu um longo suspiro como se sentisse velho e cansado.
- David, pode parecer bajulação de minha parte, mas saiba que eu não
bajularia você nem que você fosse o potentado. Nós dois sabemos que você é
um tremendo especialista em tecnologia. Trate de sarar depressa e faça tudo o
que puder para controlar esse lugar, mesmo estando em qualquer outra parte do
mundo. Isso é possível?
- Teoricamente, sim - disse David. - Mas não vai ser fácil.
- Você conseguiu instalar "grampos" em cada canto deste lugar e esmiuçou
tudo. Você não pode acessar, de longe, os computadores daqui da mesma forma
que fez com os daquele edifício em Chicago, para onde todos nós vamos ter de ir
um dia? David deu de ombros.
- E possível. Mas não tenho condições psicológicas de fazer isso sem ter

Annie por perto. - David notou uma troca de olhares entre Mac e Abdullah. - O
que é? Vocês sabem de alguma coisa e não querem me contar?
Mac sacudiu a cabeça.
- Estamos tão preocupados quanto você. Não dá para entender. Annie não
deixaria você sem notícias de jeito nenhum. - Após uma pausa, os olhos dele
brilharam.
- A não ser que ela tenha ficado trancada no depósito novamente.
Apesar de tudo, David conseguiu sorrir. Annie era uma das funcionárias
mais disciplinadas, mais responsáveis que ele havia tido, mas às vezes tomava
atitudes completamente diferentes de seu modo de ser.
A maneira como Hannah Palemoon bateu na porta entreaberta deu a
entender a David que ela trazia más notícias. Um soluço subiu-lhe à garganta.
Mac levantou-se e David fez um gesto para que ele não saísse do quarto.
- Entre - disse Mac.
David tentou não olhar para a pequena caixa de papelão nas mãos de
Hannah e procurou, desesperadamente, ver se havia algum traço de otimismo no
rosto dela. Hannah aproximou-se lentamente e colocou a caixa perto dos pés de
David.
- Sinto muitíssimo - ela disse, e David sentiu uma completa desolação.
A dor e o cansaço desapareceram diante do sofrimento grande demais para
suportar. Ele curvou o corpo e colocou as duas mãos fechadas sob o rosto. Virou
para o outro lado e juntou os dois joelhos trazendo-os para perto do queixo.
- Foi o raio? - A pergunta quase não conseguiu passar por sua garganta
apertada.
- Foi - sussurrou Hannah. - Não deve ter havido dor nem sofrimento.
Sou grato por isso, pensou David. Pelo menos, ela não sofreu.
- David - disse Mac com voz rouca -, o Smitty e eu vamos ficar lá fora.
- Eu gostaria que vocês não saíssem - David conseguiu dizer.
Ele ouviu os dois se sentarem novamente.
- Eu trouxe alguns objetos pessoais dela - disse Hannah. David tentou
sentar-se na cama, mas voltou a sentir a maldita tontura. - Uma bolsa, um

telefone, jóias e um par de sapatos.
Depois de algum esforço, David conseguiu sentar-se e colocou a caixa entre
os joelhos. Seu olfato captou cheiro de coisa queimada. O telefone havia
derretido. Um dos sapatos tinha furos no salto e na sola provocados pelo calor
intenso.
- Eu preciso vê-la - ele disse.
- Eu não recomendaria - disse Hannah.
- Não vá, David - insistiu Mac.
- Eu preciso ir! Só assim vou ter certeza de que ela morreu. Aqui estão as
coisas dela, mas você a viu, Hannah?
A enfermeira assentiu com a cabeça.
- Mas você não a conhecia. Chegou a vê-la antes? Ela balançou a cabeça
negativamente.
- Que eu saiba, não. David, não sei como lhe dizer isso. Se a mulher que
está no necrotério fosse minha melhor amiga, eu não a reconheceria.
Os soluços retornaram e David empurrou a caixa para os pés da cama,
sacudindo a cabeça, com os dedos pressionados contra as têmporas doloridas e
sensíveis.
- Vocês sabiam que ela foi o meu primeiro amor? - ele perguntou.
Ninguém respondeu.
- Namorei algumas garotas antes, mas... - ele colocou a mão nos lábios -...
ela foi o amor da minha vida.
Mac levantou-se e pediu a Abdullah que fechasse a porta. Em seguida, ele
puxou a cortina ao redor do leito para que os quatro ficassem próximos um do
outro sob a fraca iluminação. Mac pôs a mão no ombro de David. Abdullah
pousou a sua no joelho dele. Hannah tocou os pés dele sob o lençol.
Senhor Deus, disse Mac baixinho, faz tempo que deixamos de questionar
por que as coisas acontecem. Sabemos que nos concedeste um tempo extra de
vida e que pertencemos a ti. Não compreendemos o que aconteceu. Estamos
tristes. É difícil aceitar. Somos agradecidos porque Annie não sofreu. Nesse
ponto, a voz dele ficou embargada e difícil de ser entendida. Nós a invejamos

porque ela está contigo, mas sentimos sua falta. Uma parte de David foi
arrancada e jamais poderá ser reposta. Continuamos a confiar em ti, a acreditar
em ti, e queremos servir-te pelo tempo que nos permitires. Suplicamos-te que
permaneças ao lado de David neste momento e que abrandes o seu sofrimento
para que ele possa levar adiante o teu trabalho.
Mac não conseguiu prosseguir. Abdullah complementou:
Oramos em nome de Jesus.
- Obrigado - disse David, virando-se para o outro lado novamente. - Por
favor, fiquem mais um pouco.
Deitado ali, com os amigos em pé ao redor de seu leito e protegidos pela
cortina, ele se deu conta de que não haveria um funeral formal para Annie. E se
houvesse, por ela ser funcionária, ele teria de portar-se friamente como um
chefe, 8 não chorando de tristeza como um namorado. Ele havia imaginado que,
quando fosse forçado a fugir, não permitiria que seu afastamento a tornasse
suspeita diante das pessoas com quem ela mantinha contato.
David ouviu a cortina sendo aberta. Hannah colocou a caixa sob a cabeceira
da cama. Mac e Abdullah voltaram a sentar-se.
- Você precisa dormir - disse Hannah. - Quer que eu faça alguma coisa? Ele
sacudiu a cabeça. Sinto muito, Hannah, mas tenho de ver Annie. Você me
ajudaria a desligar o soro e a descer da cama?
Ela parecia prestes a recusar-se, mas ele viu um brilho nos Olhos de
Hannah, como se uma idéia tivesse surgido em sua cabeça.
- Você tem certeza? - ela perguntou.
- Certeza absoluta.
- Não vai ser fácil.
- E ficar aqui é fácil?
Vou buscar uma cadeira de rodas e levar você com o soro ligado.
Zeke estava vestido à sua moda característica quando Buck o apresentou
ao pessoal do Comando Tribulação, inclusive Tsion, na nova casa secreta.

Quando o chefe voltar, vamos integrá-lo oficialmente ao Comando
Tribulação - disse Buck. - Por enquanto, encontre um lugar para acomodar-se
com um pouco de privacidade e pegue o que precisar. Sinta-se em casa, como
se pertencesse à família.
- É isso mesmo - disse Tsion, abraçando o jovem musculoso.
Com suas botas pretas de motociclista de sola grossa e bico quadrado,
jeans preto e camiseta sob um colete de couro preto, Zeke contrastava
violentamente com o rabino em pé diante dele trajando malha de lã e calça de
veludo.
- Seja bem-vindo e que Deus o abençoe.
Desajeitado e tímido, Zeke apertou a mão de todos e retribuiu levemente os
abraços, sempre com os olhos fixos no chão, murmurando palavras de
agradecimento. No entanto, pouco tempo depois ele começou a explorar o local.
Desfez a mala, arrastou uma cama e arrumou suas coisas. Após uma hora, ele
retornou ao ponto de encontro do pessoal perto dos elevadores.
- Este prédio fica na parte alta da cidade - ele disse.
- Literalmente - disse Leah, com ar de surpresa ao ver aquele rapaz que um
dia mudara seu rosto e lhe dera uma nova identidade.
Zeke olhou para ela, e Buck teve a impressão de que ele não entendeu o
que Leah quis dizer mas teve receio de admitir. Para disfarçar seu embaraço e
mudar de assunto, Zeke vasculhou os bolsos da calça e do colete e pegou um
maço de notas de 20 dólares, atirando-o com força em cima da mesa.
- Quero pagar minha estada aqui - ele disse. - Guardem isso em algum
lugar.
- Seria melhor você aguardar até oficializarmos tudo - disse Buck. - Rayford
vai chegar amanhã à noite e...
- Não precisa, está tudo certo. O dinheiro fica como um donativo, caso eu
não seja aceito.
- Não acho que isso vai acontecer - disse Chloe, segurando Kenny Bruce
em pé no colo, encostado em seu ombro, aguardando que ele arrotasse.
- Opa! - disse Zeke em voz baixa ao ver o bebê. Ele aproximou-se devagar e

estendeu os braços para carregar Kenny. - Posso?
- Pode - disse Chloe. - Suas mãos estão limpas? Zeke parou e levantou as
mãos na altura dos olhos.
- Elas precisam estar limpas por causa do trabalho que faço. Não posso
sujar as carteiras de identidade. Elas parecem sujas porque eu também trabalho
com motores, mas só estão manchadas.
Ele ajoelhou-se no chão diante de Chloe e colocou sua mão carnuda nas
costas de Kenny. A mão aberta era quase da largura das costas do bebê. Zeke
tocou de leve o cabelo macio do garoto.
- Sente-se e segure-o no colo - disse Chloe, enquanto os outros
observavam.
Buck virou-se e viu Chaim com os olhos rasos d'água.
- Você também quer pegá-lo? - ele perguntou com ar de pilhéria.
- Faz muito tempo que não pego um bebê no colo - disse Chaim entre os
dentes, esforçando-se para ser compreendido. - Seria um privilégio.
Enquanto passava pelos braços de todos, Kenny adormeceu. Tsion foi o
último a segurá-lo e o entregou rapidamente a Chloe. Ele disse com voz
embargada:
- Meus filhos eram adolescentes quando... quando... mas essas
lembranças...
- Precisamos identificar um corpo - disse Hannah Palemoon à recepcionista,
empurrando a cadeira de rodas de David para dentro do necrotério.
- Assine aqui - disse uma senhora mais velha, com ar de tédio.
- Não é preciso - disse Hannah. - O sistema está com problemas há vários
dias. E não há ninguém para conferir.
A mulher fez uma careta.
- Menos trabalho para mim. Estou aqui provisoriamente.
O coração de David batia forte enquanto Hannah o empurrava passando por
filas e filas de corpos até onde a vista podia alcançar - em macas, em geladeiras,

cobertos com lençol da cabeça aos pés, um ao lado do outro no chão.
- Ela não está aqui, está? - perguntou David.
- Na sala ao lado, depois daquela parede.
Hannah conduziu David até os pés de uma cama onde havia um corpo
coberto com lençol. Ele tinha a respiração trêmula. Hannah levantou a parte do
lençol em cima de um dos pés e examinou a chapa de metal presa ao dedão
para ter a certeza de que era o corpo certo.
- Você tem certeza de que quer ver? - ela perguntou. David assentiu com a
cabeça, agora com um pouco de indecisão.
Ela mostrou-lhe a chapa de metal onde estava escrito o nome de Annie, sua
função, número de série, data do nascimento e data do óbito. O pé estava
inchado e sem cor, mas com certeza era o dela. David esticou os braços para
segurá-lo com as duas mãos e ficou chocado ao senti-lo frio e enrijecido.
O pé, cujo sapato foi atingido pelo raio, era o outro. David começou a afastar
o lençol, fingindo não ter ouvido Hannah pigarrear.
- David...
Ele estremeceu diante do que viu. O calcanhar estava aberto ao meio e o
dedão, mutilado. Ele colocou o lençol no lugar, abaixou a cabeça e perguntou:
- Você tem certeza de que ela não sentiu nenhuma dor?
- Tenho.
- Fortunato recebeu poderes para invocar fogo do céu sobre aqueles que
não adoraram a imagem.
- Eu sei.
- Eu poderia ter sido atingido.
- Eu também?
- Por que ela?
Hannah não respondeu. David tentou rodar sozinho a cadeira entre os leitos
para chegar à outra extremidade do corpo. O tubo do soro enroscou-se em
algum lugar.
- Deixe-me ajudá-lo - disse Hannah, continuando a empurrá-lo lentamente.
Quando David se aproximou do lençol, Hannah curvou-se sobre o ombro

dele e colocou a mão em seu braço.
- Olhe apenas para o rosto dela. O crânio sofreu um trauma violento.
Ele hesitou.
- E tem mais, David. Ninguém fechou os olhos dela. Eu tentei, mas passou
muito tempo e a rigidez cadavérica... bem, só um agente funerário tem condições
de fazer isso.
Ele concordou, ofegante. Sua cabeça latejava. Quando conseguiu controlar
a respiração, David levantou o lençol e o afastou até o pescoço dela, tomando
cuidado para não olhar. Depois de mais um longo suspiro, seus olhos
encontraram-se com os dela.
Por um instante, ele achou que não era Annie. Os olhos dela estavam fixos
em um ponto a milhões de quilômetros de distância. O rosto inchado tinha uma
tonalidade arroxeada. Queimaduras nas orelhas e no pescoço evidenciavam os
lugares dos brincos e do colar.
David ficou olhando para ela por tanto tempo que Hannah resolveu dizer
alguma coisa.
- Podemos ir?
Ele sacudiu a cabeça.
- Quero ficar em pé.
- Você não deve.
- Ajude-me.
Ela empurrou o suporte do soro para colocá-lo mais perto dele.
- Segure-se neste suporte. Se a sala começar a girar, sente-se novamente.
- Começar a girar?
Ela travou as rodas da cadeira e colocou a mão nas costas dele para
ampará-lo. Ele apoiou a mão esquerda no braço da cadeira e deu impulso com a
direita para levantar-se. Em pé e zonzo, tendo a mão de Hannah amparando-o
pelas costas, David segurou o rosto de Annie com a mão livre. Apesar da rigidez
do corpo, ele imaginou que ela poderia sentir seu toque carinhoso. Curvou-se
sobre ela até encostar o rosto em um tufo de cabelo caído na testa. Atrás do tufo
havia um orifício do tamanho de um dólar de prata, deixando o cérebro à mostra.

David sacudiu a cabeça e voltou a sentar-se. Ele não queria pensar no
estrago que uma descarga elétrica provocada por um raio poderia ter feito nos
órgãos vitais. Agora ele acreditava no que Hannah lhe dissera. Annie não teve
tempo de ver o que a atingiu.
Hannah puxou a cadeira de David até os pés da cama. Ele segurou a
cabeça com as duas mãos, incapaz de chorar. Ouviu Hannah arrumando o lençol
e cobrindo Annie carinhosamente, como se ela estivesse viva.
Enquanto Hannah o conduzia para fora, ele murmurou algumas palavras de
agradecimento.
- Eu gostaria de ter conhecido essa moça - disse Hannah.
Na noite anterior, Rayford havia posto Buck, Chloe e Tsion a par da
situação. Quando o toque do telefone o despertou de madrugada em Montana,
ele imaginou que fosse um deles. Ao estender a mão para pegar seu celular, ele
percebeu que o toque era do telefone do quarto. Ele não havia fornecido o
número para ninguém. Quem poderia estar ligando? A recepção do hotel?
Alguém em seu encalço? Deveria identificar-se como Rayford Steele ou Marvin
Berry? Nem uma coisa nem outra, ele decidiu.
- Alô!
- Ray - disse Hattie -, sou eu. Estou acordada, em pé e com fome. Quero ir
embora daqui. E você?
Ele resmungou alguma coisa e olhou para a outra cama. Albie dormia
profundamente.
- Você está muita tagarela para o meu gosto - ele disse. - Estou deitado,
estou dormindo, estou sem fome e não faz sentido sairmos daqui tão cedo e
chegarmos a Kankakee antes de escurecer. Também não podemos ir para a
casa secreta durante o dia.
- Oh, Rayford! Vamos! Estou farta disto tudo. E estou morta, você se
lembra? Preciso de uma nova identidade, mas faz tempo que não me sinto tão
livre, graças a você. Que tal a gente comer alguma coisa?

- Não podemos aparecer em público.
- Você vai voltar a dormir de verdade?
- Voltar a dormir? Eu ainda não acordei.
- Estou falando sério.
- Não, acho que não. Alguém no quarto ao lado está fazendo muito barulho.
Ela bateu na parede.
- Vou continuar batendo até você me fazer companhia para a gente comer
alguma coisa.
- Está bem, garota morta. Preciso de 20 minutos.
- Daqui a 15 minutos vou estar esperando por você na porta de seu quarto.
- Então vai ter de esperar mais cinco.
Rayford ficou satisfeito por Albie não ter despertado com o barulho do
chuveiro ou enquanto ele trocava de roupa. Olhou pela janela e não viu nada,
nem ninguém. Pelo olho mágico da porta, viu Hattie espreguiçando-se ao sol,
logo depois da sombra provocada pela sacada do segundo andar. Ele espiou
pela fresta da cortina. O local estava deserto.
Rayford saiu do quarto e Hattie quase colidiu com ele.
- Quero ver, quero ver! - ela disse, olhando firme para ele. - Eu estou vendo
o seu! Isso significa que você pode ver o meu! Você está vendo?
Os olhos de Rayford ainda estavam ofuscados pela claridade do sol, mas
assim que ela o arrastou até a sombra perto da porta, ele viu. Seus joelhos
dobraram e ele quase caiu.
- Oh, Hattie! - ele disse, aproximando-se dela.
Hattie pulou em seus braços e o abraçou pelo pescoço com tanta força que
ele precisou afastá-la para poder respirar.
- O meu é igual ao seu? - ela perguntou. Ele riu.
- Como eu posso saber? Não consigo ver o meu. Mas o seu é parecido com
os das outras pessoas. Vale a pena acordar Albie.
- Ele está vestido?
- Claro. Por quê?
- Então vou mostrar no quarto.

Rayford abriu a porta e Hattie entrou apressada.
- Albie, acorde, seu dorminhoco! - ela disse. Ele não se mexeu.
Ela sentou-se na cama ao lado e o sacudiu. Ele resmungou alguma coisa.
- Vamos, Albie! O dia já nasceu!
- O quê? - ele disse, sentando-se na cama. - Alguma coisa errada?
- Nada mais vai dar errado! - ela disse, segurando o rosto dele com as duas
mãos e aproximando-se de seus olhos turvos. - Só quero que você veja o selo
em minha testa!
NOVE

Buck despertou ao alvorecer e fez a ronda para verificar se todos estavam
bem. Sorriu ao ver o reduto de Zeke e ficou satisfeito por ser um quarto privativo.
Zeke trabalhara até depois da meia-noite arrumando suas coisas e instalando
seu computador e outros equipamentos. Ouviu Zeke roncando alto. Quando Buck
espiou dentro do quarto, viu Zeke deitado no chão perto da cama. Cada louco
com sua mania, ele pensou.
A porta do quarto de Leah estava fechada e trancada. Ela ficou acordada
até tarde conversando por telefone com Ming Toy, que retornara ao trabalho no
Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica, preocupada porque seus pais
ficaram em Nova Babilônia aguardando seu irmão encontrar um cargo na CG.
Chloe trabalhou no computador depois de ter posto Kenny para dormir,
coordenando a cooperativa internacional. Ela insistiu para que as dezenas de
milhares de membros da cooperativa lessem a próxima carta de Tsion, na qual
ele planejava discutir a importância de todos estarem preparados para o
momento em que o edito de compra e venda começasse a vigorar. Na carta, ele
também solicitaria a colaboração de pilotos e motoristas voluntários para levarem
pequenos aviões e veículos a Israel para uma missão secreta.
Os outros dois membros do Comando Tribulação estavam acordados e

trabalhando. Chaim, debruçado sobre uma pilha de livros, vários deles abertos,
estudava a pedido de Tsion. Ele ergueu a cabeça e piscou os olhos quando Buck
espiou pela fresta da porta. Buck parecia entender a fala de Chaim melhor que
os outros.
- A Srta. Rose, a ruiva - disse Chaim.
- Leah.
- Sim. Ela é uma enfermeira experiente, você sabe. Buck assentiu com a
cabeça.
- Ela me disse que pode retirar os fios de metal quando eu estiver pronto.
Bem, estou mais que pronto. Um homem de minha idade não pode emagrecer
tão rápido assim. E quero falar com clareza!
- E o resto, como está?
- Meu corpo, você quer dizer? Sou um velho. Sobrevivi a um acidente de
avião. Não posso me queixar. Cameron, este prédio é uma dádiva de Deus! Que
luxo! Se tivéssemos de viver no exílio, este seria o lugar ideal. E aquele material
que o jovem Tsion me deu para ler, bem... eu o chamo de jovem porque ele foi
meu aluno, você sabe. Há ocasiões, Cameron, em que a Bíblia me parece um
espelho feio, sempre refletindo a imagem de minha alma pecaminosa. Mas aí eu
me alegro diante da redenção, da minha redenção. A história de Deus, a história
de seu povo, tudo isso adquire vida diante de meus olhos.
- Você se lembrou de comer alguma coisa?
- Eu não como. Eu só bebo líquido. Argh!! Obrigado por perguntar. Agora
estou bebendo a verdade de Deus.
- Continue.
- Ah, sim, vou continuar! A propósito, Tsion estava à sua procura. Ele o
encontrou?
- Não. Vou vê-lo agora.
Buck subiu ao andar de cima. Os dedos do Dr. Ben-Judá voavam sobre o
teclado do computador. Buck não queria incomodá-lo, mas o rabino notou sua
chegada. Sem erguer a cabeça e sem parar de digitar, ele disse:
- Cameron, é você? Há muita coisa por fazer. Acho que vou trabalhar o dia

inteiro. Por mais sombrio que seja o futuro, minha alegria é completa. As
profecias se cumprem a cada minuto. Você viu o que o engenhoso Zeke fez para
mim? Que rapaz valioso!
Buck olhou mais uma vez para confirmar. O computador principal de Tsion
tinha dois laptops conectados, um de cada lado.
- Não será mais necessário ficar entrando e saindo dos programas - disse
Tsion. - As Bíblias estão em um computador, os comentários em outro. E estou
escrevendo para meu povo no do meio!
- Feliz por voltar a escrever?
- Você nem imagina.
- Não quero interromper seu trabalho.
- Oh, não! Entre, Cameron. Eu preciso de você. - Tsion parou de digitar e
acionou o comando Imprimir. Páginas começaram a empilhar-se na bandeja da
impressora. Tsion girou a cadeira.
Sente-se, por favor! Você vai ser o meu primeiro leitor de hoje.
- É uma honra, mas...
- Antes de tudo, quero que me conte as novidades de nossos irmãos e irmãs
que estão longe daqui.
- Eu sei muito pouco. Não tivemos notícias de David, a não ser por
intermédio de Rayford, desde a ressurreição de Carpathia.
- E o que você ficou sabendo?
- Só sei que Ray e Albie tiveram dificuldade em localizá-lo. Eles precisavam
da ajuda de David para um plano que elaboraram, tentando tirar Hattie das
garras da CG. David deve ter recebido os recados deles na última hora, porque
tudo funcionou e a missão foi cumprida.
Tsion assentiu com a cabeça e mordeu os lábios.
- Louvado seja o Senhor - ele disse em voz baixa. - Ela está vindo para cá?
- Esta noite. Estamos esperando a chegada de Ray, Albie e Hattie depois
que escurecer.
- Vou orar pedindo proteção para eles. E devemos continuar a orar por ela, é
claro. Deus me deu a pesada missão de cuidar daquela moça.

Buck sacudiu a cabeça.
- Eu também recebi essa missão, Tsion. Mas se ela for uma causa perdida...
- Causa perdida? Cameron, Cameron! Você e eu já fomos causas perdidas.
Todos nós fomos. Chaim era o mais improvável de todos. Insistimos infinitas
vezes com ele, mas quem teria acreditado que aquele homem se converteria? Eu
não acreditava. Não desista da Srta. Durham.
- Eu não desisti.
- Para Deus, tudo é possível. Você já prestou atenção nesse jovem que
você trouxe para cá ontem à noite?
- Zeke? Ah, sim.
- Com certeza, ele nunca freqüentou igreja. É muito simpático, esperto. Mas
também é tímido, inculto, quase analfabeto. Mas que espírito meigo e gentil ele
tem! Que coração de servo! E que cabeça! Ele levaria os próximos três anos e
meio para ler um dos muitos livros que Chaim vai terminar amanhã, mas conhece
assuntos técnicos que eu levaria a vida inteira para aprender.
Buck deu um tapa na perna e começou a levantar-se.
- Não quero mais tomar seu tempo.
- Oh, você não está tomando meu tempo! Eu é que não paro de falar. Se
você não estiver muito ocupado, eu gostaria de contar com sua ajuda.
Buck voltou a sentar-se, e Tsion entregou-lhe um maço de páginas
impressas.
- Ainda faltam muitas páginas - disse o rabino -, mas preciso da opinião de
alguém. Não vou transmitir esta carta enquanto não tiver certeza de que tudo
está certo.
- Você sempre faz tudo certo, Tsion, mas eu gostaria de dar uma olhada.
- Então comece! Vou tentar ser mais rápido que você. Se eu começar a falar
novamente, tenha a bondade de me fazer calar.
Isso vai durar o dia inteiro, pensou Buck, ajeitando a pilha de papéis e
acomodando-se na cadeira para ler. De vez em quando, Tsion imprimia mais
páginas e Buck as tirava da bandeja da impressora para ler, ora sentado, ora em
pé, ora andando de um lado para o outro. Durante o tempo todo, ele agradecia a

Deus o talento de Tsion Ben-Judá e sua incrível inteligência.
Para: Os amados santos da tribulação espalhados pelos quatro
cantos da Terra, que crêem no Deus Jeová verdadeiro e em Jesus
Cristo, seu Filho imaculado, nosso Salvador e Senhor.
De: Seu servo, Tsion Ben-Judá, abençoado pelo Senhor com a
responsabilidade e o indescritível privilégio de transmitir-lhes, sob a
autoridade de seu Santo Espírito, os ensinamentos da Bíblia, a Palavra
de Deus
Assunto: O Início da Grande Tribulação
Meus queridos irmãos e irmãs em Cristo,
Conforme acontece todas as vezes que me dirijo a vocês, sinto um
misto de alegria e de tristeza. Meu espírito se regozija e se entristece
ao mesmo tempo. Perdoem-me pela demora em comunicar-me com
vocês, e agradeço a todos o interesse demonstrado quanto a meu
bem-estar. Meus companheiros e eu estamos bem, em lugar seguro e
louvando a Deus por esta nova base de operações. E desejo sempre
me lembrar de ser agradecido a Deus pelo milagre da tecnologia, que
me permite escrever a vocês, caros leitores do mundo inteiro.
Apesar de conhecer apenas alguns de vocês pessoalmente e de
aguardar com ansiedade o dia em que todos nos reuniremos, seja no
reino milenar, seja no céu, sinto dentro de mim que criamos um grande
vínculo familiar a partir do momento em que passamos a compartilhar
as riquezas infinitas da Bíblia por meio da moderna tecnologia.
Obrigado por suas orações constantes para que eu permaneça fiel e
confiante, a fim de cumprir a missão para a qual fui chamado e que
tenha saúde para prosseguir pelo tempo de vida que o Pai me
conceder.
Peço a todos vocês, que se dispuseram a traduzir estes textos
para os idiomas que ainda não foram incluídos em programas
especializados, que comecem a fazer seu trabalho imediatamente.

Pelo fato de não ter podido escrever-lhes durante alguns dias, creio
que esta carta será mais longa do que as que normalmente escrevo.
Aos responsáveis pelas regiões onde existem poucos computadores ou
onde a energia elétrica é escassa, havendo necessidade de cópias
impressas desta carta, peço que se sintam à vontade para realizarem
seu trabalho da maneira que lhes for mais conveniente. O importante é
que todas as palavras sejam comunicadas exatamente como aparecem
aqui.
Glória a Deus pelas notícias recebidas de que já ultrapassamos a
marca de um bilhão de leitores. Sabemos que existem muitos outros
irmãos e irmãs na fé que não têm acesso a computadores nem estudo
para poder ler estas palavras. Embora o atual sistema mundial continue
a negar esses números, acreditamos que são verdadeiros. Centenas
de milhares de pessoas juntam-se a nós a cada dia, e oramos para que
vocês tenham a oportunidade de acrescentar um número cada vez
maior de membros à nossa família.
Temos realizado muitas coisas juntos. Digo isso sem orgulho
pessoal, mas para a glória do Deus Altíssimo. Tenho-me empenhado
em repartir fielmente com vocês a Palavra da Verdade, da qual Deus
provou ser o autor infinitas vezes. Ao longo dos séculos, estudiosos
têm-se embasbacado diante das misteriosas passagens proféticas da
Bíblia, e confesso que já cheguei a ser um deles. A linguagem parecia
obscura, a mensagem profunda e indefinida, os significados um tanto
figurativos e simbólicos. Não obstante, quando comecei a fazer um
estudo minucioso e incisivo dessas passagens, com a mente e o
coração abertos, senti que Deus estava revelando alguma coisa a mim
que desobstruiu meu intelecto.
Eu havia descoberto, do ponto de vista estritamente acadêmico,
que quase 30% da Bíblia (Antigo e Novo Testamento juntos) consistiam
de passagens proféticas. Eu não conseguia entender por que Deus
teria incluído essas passagens se elas não podiam ser compreendidas

por seus filhos.
Embora as profecias messiânicas fossem razoavelmente claras e
tivessem me levado a acreditar que Jesus foi o único a cumpri-las, eu
orava sinceramente para que Deus me revelasse o segredo para o
restante das passagens proféticas. Ele me revelou da maneira mais
simples possível. Deus me fez entender as palavras em sua forma
literal, conforme eu fazia em relação a outros trechos da Bíblia, a
menos que o contexto e a fraseologia em si indicassem o contrário.
Em outras palavras, eu sempre entendi o significado literal de
passagens tais como: "Amai ao vosso próximo como a vós mesmos"
ou "Fazei aos outros aquilo que quereis que os outros vos façam".
Então, por que eu não poderia entender o significado literal de um
versículo que dizia que João, o autor do livro de Apocalipse, viu um
cavalo amarelo? Sim, eu entendi que o cavalo representava alguma
coisa. E a Bíblia dizia que João o viu. Eu aceitei aquela afirmação
literalmente, acompanhada de todas as outras afirmações proféticas (a
não ser quando mencionavam expressões como "semelhante a", que
deixavam claro o simbolismo ali existente).
Meus queridos amigos, as Sagradas Escrituras abriram-me os
olhos de uma maneira que eu nunca imaginei ser possível. E foi por
isso que fiquei sabendo que os Julgamentos Selados e os Julgamentos
das Trombetas estavam se aproximando. Fui capaz de interpretar a
forma que assumiriam e em que seqüência ocorreriam.
Foi por isso que fiquei sabendo que os Julgamentos das Taças
ainda hão de vir, e que serão exponencialmente piores que todos os
que já aconteceram. Foi por isso que fiquei sabendo que aquelas
pragas e provações eram mais terríveis que os julgamentos sobre um
mundo impiedoso e incrédulo. Foi por isso que fiquei sabendo que este
período inteiro da história é, também, mais uma evidência de nosso
longo sofrimento e da infinita bondade e misericórdia de Deus.
Para os crentes, digo que acabamos de virar uma página da

História. Para os céticos - e sei que há muitas pessoas que lêem
minhas mensagens de vez em quando só para nos chamar de
fanáticos -, digo que ultrapassamos o ponto das boas maneiras. Até
agora, apesar de ter falado de modo franco a respeito da Bíblia
Sagrada, tenho sido moderado quando menciono os atuais
governadores deste mundo.
Agora basta! Depois de presenciarmos que as profecias bíblicas
estão se cumprindo, que o líder deste mundo tem pregado a paz, mas
empunha uma espada, que ele morreu pela espada e ressuscitou
conforme a Bíblia predisse, e que seu homem de confiança foi imbuído
de poder maligno semelhante, não pode mais haver dúvidas:
Nicolae Carpathia, a quem o povo chama de Excelência e
Supremo Potentado da Comunidade Global, é anticristão e é o próprio
anticristo. A Bíblia diz que o anticristo ressurreto é literalmente
possuído por Satanás. Leon Fortunato, que mandou erigir uma imagem
do anticristo e agora obriga que todos a adorem ou arquem com as
conseqüências de sua desobediência, é o falso profeta do anticristo.
Conforme está escrito na Bíblia, ele tem poderes para fazer a imagem
falar e invocar fogo do céu para destruir aqueles que se recusam a
adorá-la.
O que virá a seguir? Reflitam sobre esta clara passagem profética
registrada em Apocalipse 13.11-18: "Vi ainda outra besta emergir da
terra; possuía dois chifres, parecendo cordeiro, mas falava como
dragão. Exerce toda a autoridade da primeira besta na sua presença.
Faz com que a terra e os seus habitantes adorem a primeira besta,
cuja ferida mortal fora curada. Também opera grandes sinais, de
maneira que até fogo do céu faz descer à terra, diante dos homens.
Seduz os que habitam sobre a terra por causa dos sinais que lhe foi
dado executar diante da besta, dizendo aos que habitam sobre a terra
que façam uma imagem à besta, àquela que, ferida à espada,
sobreviveu; e lhe foi dado comunicar fôlego à imagem da besta, para

que, não só a imagem falasse, como ainda fizesse morrer quantos não
adorassem a imagem da besta. A todos, os pequenos e os grandes, os
ricos e os pobres, os livres e os escravos, faz que lhes seja dada certa
marca sobre a mão direita, ou sobre a fronte, para que ninguém possa
comprar ou vender, senão aquele que tem a marca, o nome da besta,
ou o número do seu nome.
"Aqui está a sabedoria. Aquele que tem entendimento calcule o
número da besta, pois é número de homem. Ora, esse número é
seiscentos e sessenta e seis."
Não vai demorar muito tempo para que todos sejam obrigados a
ajoelhar-se diante de Carpathia ou de sua imagem, portar seu nome ou
número na testa ou na mão direita, ou enfrentar as conseqüências.
Que conseqüências? Aqueles que não portarem um sinal, ao qual
a Bíblia dá o nome de marca da besta, não terão permissão para
comprar ou vender legalmente. Se nos recusarmos publicamente a
aceitar a marca da besta, seremos decapitados. Embora meu maior
desejo na vida seja o de contemplar o Glorioso Aparecimento de meu
Senhor e Salvador Jesus Cristo no final da Grande Tribulação (daqui a
três anos e meio e mais alguns dias), que motivo maior poderia haver
para alguém sacrificar a própria vida?
Muitos de nós, talvez milhões, teremos de submeter-se a isso.
Apesar de nosso instinto natural de sobrevivência e da preocupação
que temos de naquela hora nos faltar coragem, lealdade e fidelidade,
desejo assegurar-lhes uma coisa. O Deus que os chama para o
derradeiro sacrifício também lhes dará forças para suportá-lo. Ninguém
poderá receber a marca da besta acidentalmente. Trata-se de uma
decisão definitiva que condenará vocês à eternidade sem Deus.
Ao mesmo tempo em que muitos serão chamados para viver em
segredo para colaborar com os irmãos e irmãs por meio de mercados
particulares, alguns serão pegos, identificados e decapitados em
público. Para esses, o único antídoto será rejeitar a Cristo e aceitar a

marca da besta.
Se você já se converteu, não será capaz de dar as costas a Cristo,
louvado seja Deus. Se ainda não se decidiu e não deseja seguir a
multidão, o que você fará quando tiver de aceitar a marca ou perder a
cabeça? Eu apelo para que você se converta hoje, aceite a Cristo para
poder contar com a proteção que vem do alto.
Estamos entrando no período mais sangrento da história da
humanidade. Aqueles que portarem a marca da besta sofrerão aflições
vindas da mão de Deus. Aqueles que quando ele quebrar seu pacto
com Israel e retirar sua garantia de proteger aquela nação.
Ele não demonstra nenhum favoritismo. Além de insultar os
judeus, ele matará os crentes em Jesus.
Se isso não acontecer, podem me chamar de herege ou de louco
e procurem outra fonte de esperança que não sejam as Sagradas
Escrituras.
Obrigado por sua paciência e pelo abençoado privilégio de poder
comunicar-me com vocês novamente. Quero deixar-lhes um raio de
esperança. Minha próxima mensagem abrangerá a diferença entre o
Livro da Vida e o Livro da Vida do Cordeiro e o que eles significam para
você e para mim. Até lá, fiquem tranqüilos, porque, se você for crente e
já colocou sua esperança e confiança na obra de Jesus Cristo para
perdoar nossos pecados e nos dar a vida eterna, seu nome está
registrado no Livro da Vida do Cordeiro.
E ele nunca poderá ser apagado.
Até nosso próximo encontro. Eu os abençôo em nome de Jesus. E
que Ele os abençoe e os guarde e faça resplandecer o seu rosto sobre
vocês e lhes dê a paz.
Quando terminou a leitura, com os olhos úmidos, Buck surpreendeu-se ao
ver que Tsion havia saído sem que ele tivesse percebido. Embora a mensagem
do rabino fosse longa, Buck tinha certeza de que, se os demais leitores

estivessem tão sedentos de conhecer a verdade quanto ele, todos a sorveriam e
entenderiam cada palavra.
E a diferença entre o Livro da Vida e o Livro da Vida do Cordeiro? Ele nunca
ouvira tal coisa e aguardava ansiosamente pelo momento de aprender mais. Ele
levantou-se e esticou o corpo, com as páginas ainda nas mãos.
Ao sair, ele viu um bilhete preso na porta. "Cameron, aceito sugestões. Se
você achar que o texto está razoável, pode digitar a tecla Enter e enviar a
mensagem pela Internet."
Aquela poderia parecer uma tarefa simples, corriqueira. Mas para Buck era
uma honra monumental. Ele dirigiu-se apressado ao computador de Tsion, tocou
de leve o mouse sem fio para desfazer o descanso de tela do monitor e, com
grande orgulho, apertou a tecla para enviar as palavras de Tsion a seus leitores
virtuais do mundo inteiro.
Rayford ofereceu-se para pilotar o caça no percurso de volta a Kankakee, a
fim de que Albie pudesse descansar um pouco. A maior parte da tarefa de "voar
e mentir", conforme eles diziam, ficara a cargo de Albie e havia sido muito
cansativa. Ludibriar o inimigo era uma missão espinhosa e, enquanto David não
conseguisse arrumar um título falso para Rayford, era Albie quem sempre ficava
na corda bamba.
Rayford ficou satisfeito quando Albie concordou em passar-lhe o comando
do caça, porque queria afastar-se um pouco de Hattie. Se ele estivesse livre para
ouvi-la, ela continuaria contando sua história. Ele já ouvira uma grande parte, e
agora preferia concentrar-se no vôo para não ter de ficar olhando para ela e
acompanhar o ritmo de toda a sua vivacidade.
A emoção que Rayford sentia a respeito da conversão de Hattie era
indescritível. Mal podia esperar para ver a reação do pessoal do Comando
Tribulação naquela noite, quando tomasse conhecimento da novidade. Ele
estava feliz em nome de todo o Comando Tribulação. Em diversas ocasiões, ele
e seus companheiros haviam perdido as esperanças em relação a Hattie.

Albie era um crente recém-convertido e não tinha condições de aconselhá-la
convenientemente, mas ela pedira reiteradas vezes que ele lhe contasse sobre a
sede de ler a Bíblia que Deus parecia ter incutido no coração dele.
- Eu não sei se já me senti assim - ela disse -, mas estou curiosa demais.
Vocês têm uma Bíblia para eu ler?
A Bíblia de Rayford continuava empacotada em algum lugar da casa
secreta, e Albie dissera que não possuía nenhuma, mas, de repente, ele se
lembrou.
- Tenho uma no disco rígido de meu computador!
- Que bom! - ela disse enquanto ele ligava o computador para encontrar a
Bíblia, mas ela estava na língua materna de Albie. - O milagre agora vai ser você
entender o que está escrito aí!
Albie tentou acessar o tradutor, mas não havia opção para seu idioma.
- Este é um assunto para tratarmos esta noite - ele disse.
- Entre muitos outros. Você sabe de uma coisa, Albie? Eu devo mil pedidos
de desculpas àquele pessoal.
- Verdade?
- Ah, sim. Nem sei por onde começar. Se ao menos você soubesse.
- Houve um tempo - ele disse - em que fui muito curioso. O capitão Steele é
testemunha de que os comerciantes de mercado negro desenvolvem certa
patologia em relação a fofocas. Somos discretos e não falamos muito, mas, oh!
como gostamos de ouvir. Mas saiba de uma coisa. Prefiro não ouvir as ofensas
que você cometeu contra aqueles que tanto amam você.
- Eu também prefiro não falar sobre isso.
- Pode ter certeza de que seus novos irmãos e irmãs também não vão
querer. Certa vez, um homem sábio me disse que os pedidos de desculpas
devem ser específicos, mas, depois que me converti, não tenho certeza de
concordar com ele. Se seus amigos souberem que você está profundamente
arrependida e que seus pedidos de desculpas são sinceros, acho que eles a
perdoarão.
- Mesmo sem ter de explicar que agora eu sei quanto ofendi aquela gente?

Albie ergueu a cabeça como se estivesse pensando na resposta.
- Sua reação não parece ser a de uma pessoa que nasceu de novo,
conforme diz o Dr. Ben-Judá. Parece?
Ela sacudiu a cabeça.
É como se eu estivesse remexendo na ferida. O telefone de Rayford tocou.
O código de área era de Colorado.
- Alô! - ele disse.
- Sr. Berry? - Era a voz inconfundível de Steve Plank.
- Sim.
- Você está mantendo meu nome em sigilo para a falecida?
- Com certeza, Sr. Stephens. Esta ligação não corre o risco de ser ouvida
por alguém?
De jeito nenhum.
- Então tenho o prazer de lhe contar que ela ressuscitou, tanto do ponto de
vista físico como espiritual.
Silêncio.
- Você entendeu o que eu disse, Pinkerton?
- Estou estarrecido. É uma novidade para mim. Você está falando sério?
- Positivo.
- Maravilha! Continue a manter meu nome em sigilo, mas diga a ela que lhe
dou as boas-vindas à família.
- Vou dizer.
- Também tenho boas notícias para você. Relatei aos superiores o
lamentável incidente na área de detenção. Eles disseram que eu devia me livrar
do corpo e enviar a papelada. Perguntei como poderia fazer isso... isto é, me
livrar do corpo... e eles responderam que não sabiam. Acho que existem muitos
corpos para eles cuidarem em todos os cantos do mundo. Sorte nossa!
- Existe uma ironia em tudo isso, você sabia, Pink?
- Que ironia?
- A CG já simulou a morte dela um dia.
- Eu me lembro. Ela deve ser uma mulher de sete vidas.

- Pelo menos três. E agora ela tem tudo o que necessita.
- Amém. Mantenha contato.
Quando eles entraram no espaço aéreo de Kankakee, Albie ligou o rádio
para conversar com a torre. Identificando-se como comandante Elbaz, ele pediu
permissão para transferir um corpo para seu helicóptero a fim de dar-lhe um
"destino apropriado".
- Não temos funcionários para ajudá-lo, comandante.
- Deixe estar. Não temos conhecimento da causa da morte ou se existe
possibilidade de contágio.
- No avião, estão só o senhor, o Sr. Berry e o cadáver?
- Positivo. A papelada foi cuidada pelo setor internacional.
- Permissão concedida para pouso. Ah, mais uma coisa, comandante. Fui
informado de que acabou de chegar uma encomenda de Nova Babilônia para o
senhor.
- Uma encomenda?
- Na caixa está carimbado Confidencial e Ultra-Secreto. É bem pesada. Eu
diria que tem perto de cem quilos.
- Ela pode ser colocada no helicóptero?
- Vamos ver o que podemos fazer. Se conseguirmos um operário e uma
empilhadeira, pode ser que ele faça esse serviço para o senhor.
- Obrigado.
Meia hora depois, enquanto Albie e Rayford transportavam Hattie para o
helicóptero sob um lençol, ela sussurrou: Há alguém por perto? Não, mas fique
quieta - disse Rayford.
- Eu preciso de uma nova identidade. Faz tempo que estou pedindo.
- Fique quieta, se não eu jogo você no chão - disse Albie.
- Você não teria coragem.
Ele fingiu soltar um dos lados da maca, e ela gritou.
- Vocês dois estão querendo provocar nossa prisão - disse Rayford.
Assim que Hattie foi colocada no helicóptero, Rayford lhe disse para ficar
imóvel enquanto estivessem em terra. Ele assumiu o comando porque conhecia

a rota e porque Albie nunca havia feito um pouso no interior de um arranha-céu
bombardeado.
Antes da decolagem, Albie virou-se para trás, por cima de Hattie, e começou
a abrir os lacres da caixa até encontrar uma grande quantidade de latas de tinta
preta em spray.
- O que você está fazendo? - perguntou Hattie.
- Abrindo a porta de emergência para que Rayford jogue você lá embaixo se
não parar de falar.
Um dia inteiro havia passado em Nova Babilônia, e David sentia-se bem o
suficiente para deixar o hospital. Hannah apareceu para trocar-lhe as roupas.
- Como estamos indo? - ela perguntou, perscrutando seus olhos.
- As enfermeiras sempre falam no plural, não é mesmo?
- Fomos treinadas para isso.
- Fisicamente, eu me sinto 100% melhor.
- Você ainda precisa de alguns cuidados.
- Tenho um trabalho profissional a fazer, Hannah.
- Você tem uma tonelada de trabalho a fazer. Vá com calma.
- Não sinto vontade alguma de fazer nada.
- Faça por Annie.
- Touché.
Depois de trocar a atadura, ela colocou as mãos carinhosamente nas
orelhas dele.
- Eu não queria ser grosseira, David. Falo sério. Sei que seu coração está
partido, mas, se esperar até o sofrimento desaparecer antes de fazer o que
precisa, já estará na hora de fugir daqui.
Ele concordou movendo a cabeça com ar desolado.
- Você vai ficar bem, David - ela disse. - Pode parecer uma frase banal, mas,
agora que conheço você um pouco, tenho certeza de que tudo vai dar certo.
Ele não tinha tanta certeza assim, mas ela estava tentando ajudar.

- Estive pensando - ela complementou.
- Que bom saber que alguém ainda tem a capacidade de pensar.
- Eu queria ser enfermeira quando assessorava um veterinário nos tempos
do colégio.
Ele ergueu as sobrancelhas.
- Isso é uma brincadeira que você costuma fazer com seus pacientes?
- Não é brincadeira. O veterinário costumava injetar biochips em animais de
estimação para que eles pudessem ser encontrados e identificados.
- Verdade?
- Não é isso o que a CG vai fazer com todo mundo? Ele assentiu com a
cabeça.
- Passei a ser uma especialista nisso.
- Acho que tomei remédios demais, Hannah. Explique-se melhor.
- Eles não vão precisar treinar pessoal para fazer esse trabalho e mandar
especialistas a todos os cantos para supervisionar o serviço?
David encolheu os ombros.
- Acho que sim. E daí? Parece ser um trabalho especializado. Você quer
uma carta de recomendação?
Ela suspirou fundo.
- Se você não estivesse machucado, eu lhe daria umas palmadas. Acredite
em mim. Você acha que eu quero ensinar a essa gente como aplicar a marca da
besta? Ou observar alguém aplicá-la? Estou procurando um meio de sairmos
daqui sem que ninguém perceba por que partimos. Você quer fazer parte da lista
dos dez mais procurados por Carpathia?
- Não.
- Então, procure Viv Ivins e ofereça os serviços de seus pilotos e de uma
enfermeira que tem um pouco de conhecimento sobre o assunto. Dê um jeito
para que a gente se envolva nessa história. Você é o criativo aqui. Eu só estou
lendo algumas idéias malucas.
- Não, continue. Sinto muito. Quero ouvir o que você tem a dizer.
- Você coloca todos nós no mesmo avião, talvez um bem grande, porque

quanto maior for a mentira, mais o povo vai acreditar. Derrube esse avião em
algum lugar, quem sabe no meio de um oceano, onde eles teriam tantos
problemas para nos resgatar que seria mais fácil confirmar que todos nós
morremos. A gente se une com seus amigos sem precisar ficar vigiando a CG o
tempo todo.
- Gostei.
- Você não está falando isso só da boca para fora?
- Não. É uma tacada de gênio.
- Foi só uma idéia.
- Uma grande idéia. Vou passá-la a Mac e Abdullah. Eles são especialistas
em encontrar falhas nos esquemas e...
- Eu já conversei com eles. Os dois também gostaram.
- Sobrou alguma coisa para mim, ou você resolveu fazer o meu serviço além
de cuidar dos doentes do palácio?
Ela mordeu o lábio.
- Eu só estava tentando ajudar.
- E ajudou.
- Nós dois sabemos que eu não posso fazer o seu serviço. Ninguém pode.
Foi o que eu quis dizer quando achei que você deveria transformar sua dor em
produtividade e fazer isso por Annie. É a única maneira de vencer o sofrimento.
Mac diz que, para o Comando Tribulação, você é o mais importante depois do
Dr. Ben-Judá.
- Ora, pare com isso.
- David! Pense um pouco em tudo o que você fez até agora. Não vai ser
preciso muita coisa depois que todos nós sairmos daqui, se você encontrar um
meio de manter tudo funcionando de um lugar qualquer.
Quando o telefone de Buck tocou, ele achou que devia ser Rayford dizendo
que ele, Albie e Hattie estavam chegando. Mas era Mac McCullum.
- Ei, Mac! - ele disse, levantando a mão para pedir silêncio. Buck teve de

sentar-se quando ouviu a notícia. - Oh, não. Não. Que coisa horrível... Oh!...
Como ele está?... Diga a ele que estamos com ele para o que precisar, está
bem? - O rosto de Buck contorceu-se e não conseguiu controlar as lágrimas. -
Obrigado por nos avisar, Mac.
Chloe correu até ele.
- O que foi Buck? O que aconteceu?
DEZ

Com licença, Rayford - disse Hattie, pousando a mão em seu ombro,
enquanto ele pilotava o helicóptero em direção ao Edifício Strong, sobrevoando a
cidade de Chicago. Albie estava cochilando.
Rayford afastou um dos fones de ouvido, e ela colocou as mãos sobre o
encosto da poltrona dele.
- Estou preocupada. Não sei como serei recebida lá.
- Você está brincando? Acho que três, no mínimo, vão ficar felizes demais.
- Agi de modo horrível com eles.
- Isso faz parte do passado.
- Mas eu preciso me desculpar. Em primeiro lugar, com você. Nem sei por
onde começar. Inventar aquela história sobre Amanda! Fazer você pensar mal
dela.
- Você já admitiu isso, Hattie.
- Não me lembro de ter pedido desculpas a você. Parece uma insignificância
diante do que fiz.
- Não posso negar que foi muito duro para mim - ele disse. - Mas vamos
deixar essa história para trás.
- Você é capaz de fazer isso?

- Os outros também.
- Chloe perdeu a paciência comigo.
- Comigo também, Hattie. E eu mereci.
- Ela o perdoou?
- Claro. O amor perdoa tudo.
Hattie ficou em silêncio, mas Rayford continuava a sentir a pressão das
mãos dela no encosto de sua poltrona.
- O amor perdoa tudo - ela repetiu, como se estivesse refletindo sobre a
frase.
- Está na Bíblia. Primeira Carta aos Coríntios, capítulo 13.
- Eu não sabia - ela disse. - Mas espero aprender rápido.
- Quer mais um? Estou falando de memória, mas há um versículo no Novo
Testamento... mais de um, acho... que cita as palavras de Jesus. Diz
basicamente que, se perdoarmos os outros, Deus nos perdoará, mas, se não
perdoarmos os outros, Deus também não nos perdoará. Hattie riu.
- Isso nos deixa em um beco sem saída, não é mesmo? Parece que não
temos escolha.
- É verdade.
- Você acha que eu deveria encontrar esse versículo e decorá-lo para repetir
quando chegar lá? Acha que devo dizer que eles devem me perdoar? Que isso é
bom para eles?
Rayford virou-se para trás e olhou para ela, erguendo uma das
sobrancelhas.
- Estou brincando - ela disse. - Mas... você acha que todos eles conhecem
esse versículo?
- Pode apostar que Tsion conhece. Provavelmente em uma dúzia de
idiomas.
Ela calou-se por alguns instantes. Rayford apontou para o Edifício Strong ao
longe e deu uma leve batida no joelho de Albie.
- Acorde para ver isso, amigo.
- Estou nervosa - disse Hattie. - Eu estava preparada, mas agora não sei.

- Dê um crédito a eles - disse Rayford. - Você não vai se arrepender.
Ele apertou um botão de seu celular para chamar Buck e o entregou a
Hattie.
- Diga a Buck que o próximo ruído que ele ouvir será o de nossa chegada.
Buck contou a Chloe a notícia sobre Annie e, em seguida, reuniu o grupo
para relatar o fato. Nenhum deles conheceu Annie, mas Tsion, Buck, Chloe e
Leah haviam conversado tantas vezes com David que pareciam conhecer
pessoalmente aquela moça. Chaim e Zeke também foram chamados para
participar. Todos oraram por David, Mac e Abdullah. Zeke perguntou se eles
poderiam incluir seu pai na oração.
- Não sei para onde ele foi levado, mas eu conheço bem meu pai. Ele não
vai colaborar com aquela gente.
- David disse que os prisioneiros vão ser os primeiros a receber a marca -
disse Buck.
- Meu pai vai preferir morrer.
- Talvez esse seja o preço.
- Aposto dez contra um que ele vai levar pelo menos dois com ele - disse
Zeke.
O telefone de Buck tocou, e ele sentiu-se grato por Chloe atendê-lo.
- Hattie? - ela disse. - Onde vocês estão?... Perto como? Então, até daqui a
pouco... Sim, soubemos que papai e Albie conheceram um... um amigo que
trabalha lá dentro. Você deveria ser agradecida pelo tempo e esforço que... bem,
não sei se você sabe quanto isso foi arriscado. Meu pai e Albie investiram tempo
e dinheiro para voar até lá... Não sei se você fez alguma coisa para merecer tudo
isso... Não estou sendo mesquinha... ora, pare de choramingar, Hattie. Pelo que
sabemos, a antiga casa secreta se transformou em cinzas porque... Sim, vamos
conversar sobre esse assunto quando você chegar... Claro que ainda me importo
com você, mas não vamos ser tão bonzinhos quanto meu pai. A situação aqui é
delicada, e temos mais gente do que antes. Mesmo em um lugar tão grande

como este, a convivência não é fácil, principalmente com pessoas que costumam
pôr os seus interesses na frente dos... Está bem. Estamos aguardando a
chegada de vocês.
Hattie fechou o telefone com força e o colocou na mão de Rayford.
- Pelo jeito, você não falou com Buck - ele disse.
- Ela me odeia! - disse Hattie. - Não foi uma boa idéia eu ter vindo. Vocês
deviam ter-me deixado lá. Eu deveria ter voltado para o PRFB e correr o risco.
Não ia viver muito, mas pelo menos iria para o céu.
- Nós também deveríamos ter deixado você se matar? E aí, onde você
estaria agora?
- Chloe deu a entender que não vai me perdoar. Ah, ela não tem culpa. Eu
mereço.
Rayford notou que Hattie voltara a acomodar-se na poltrona, resmungando
alguma coisa.
- Eu não ouço o que você está falando - ele disse, manobrando o helicóptero
em direção ao edifício.
- Ela disse como eu deveria me sentir se estivesse do outro lado da história.
Hannah Palemoon fez um novo curativo em David, colocando um
esparadrapo na parte raspada de sua cabeça para não grudar nos cabelos. O
esparadrapo segurava os pontos no lugar facilitando a cicatrização, sem
necessidade de camadas de gaze cobrindo-lhe as orelhas e ataduras passando
por baixo do queixo. Ele se sentia quase normal, com exceção da dor - agora
mais branda - e da coceira que teria de suportar. A única coisa que ele podia
fazer para aliviá-la era passar os dedos ao redor da atadura, mas com muito
cuidado, porque os pontos só poderiam ser retirados dali a dois dias.
O quepe encaixou-se normalmente na cabeça. Ele se dirigiu a seu
apartamento para trocar de uniforme e olhou-se no espelho. Sua tez morena e

jovem e seus traços israelenses combinavam com o elegante uniforme de diretor
da CG. Mas, enquanto analisava sua figura no espelho, David se perguntou se
algum nazista dos livros de história que ele lera teria odiado o emblema da
suástica costurado na farda tanto quanto ele odiava o emblema da Comunidade
Global. Como ele adoraria poder abandonar tudo aquilo. E não demoraria muito.
Ao segurar a maçaneta interna da porta, ele parou. Embora se sentisse
melhor, ainda havia o cansaço de seu organismo em convalescença. Ele gostaria
de esticar-se na cama e de ficar imóvel por umas 12 horas, curtindo a dor e o
vazio que sentia. A insistência de Hannah em dizer que Annie não sofrera nem
por um segundo dava-lhe um pouco de conforto. Mas por que aquela descarga
elétrica que destruiu o sistema nervoso dela e todos os seus órgãos vitais não
conseguia acabar também com a saudade dentro dele, uma saudade que, de
agora em diante, não teria fim? Nenhum raio, por mais intenso que fosse, poderia
extinguir um amor tão puro.
Ele curvou a cabeça e orou suplicando força. Se ele tivesse, digamos, dois
meses para continuar ali, poderia dar-se ao luxo de ficar um ou dois dias
afastado até que o sofrimento abrandasse. Mas o tempo que ele tinha pela frente
não seria suficiente para tudo o que precisava ser feito. Por Annie, ele pensou
enquanto se dirigia a seu escritório. E ele não poderia esquecer-se de que cada
minuto era importante.
O fato de ter transferido as lembranças de Annie a uma parte sagrada e
protegida de sua mente não surtiu efeito quando ele encontrou Viv Ivins no
corredor, perto da porta de seu escritório.
- Quero falar com você - ela disse, com voz delicada e sotaque romeno. - Na
minha sala ou na sua?
David ficou satisfeito por ela não ter usado o cumprimento obrigatório "Ele
ressuscitou". David, Mac, Abdullah e Hannah haviam decidido responder com
"Ele ressuscitou verdadeiramente", sabendo, no íntimo, que se referiam a Cristo.
Talvez Vivian evitasse a formalidade porque, tecnicamente, ela não fazia parte
da hierarquia. Ela não usava uniforme, embora sempre aparecesse em público
trajando roupas de cores neutras: azul-claro, azul-escuro, preto, grafite e cinza.

Seus sapatos eram discretos, e os cabelos cinza-azulados ficavam presos no
alto da cabeça em um coque.
David estranhou o fato de poder optar por sua sala para reunir-se com ela.
Mesmo que ela não tivesse um cargo oficial, todos sabiam de sua afinidade com
o chefão, sendo tratada como uma espécie de filha, ou como tia dele. Diziam que
não havia laços de sangue entre eles, mas Carpathia deixara claro que a
considerava sua parente. Ela havia sido amiga íntima da família e ajudara os
falecidos pais do potentado a criarem seu único filho.
Viv Ivins não manifestava abertamente sua autoridade. Era uma condição
implícita conhecida por todos. Ela conseguia tudo o que desejava. Sua palavra
tinha o mesmo valor que a de Carpathia, portanto ela não precisava reivindicar
esse direito. Todos a aceitavam sem questionar.
- Por favor - disse David -, entre.
Ele sentiu-se satisfeito por ter alguém da chefia tão próximo a Carpathia
sentado em sua sala, a menos de seis metros do computador usado para destruir
as conquistas do potentado.
A assistente de David cumprimentou-o com ar preocupado. David limitou-se
a dizer:
- Bom-dia.
- Você está bem? - ela perguntou, sem desgrudar os olhos dele.
- Um pouco melhor, Tiffany, obrigado.
Ao notar a presença da visitante, ela hesitou.
- Sra. Ivins?
Viv fez um movimento afirmativo com a cabeça. David segurou a porta
aberta para ela entrar e fechou-a em seguida. Viv continuou em pé aguardando
que ele puxasse uma cadeira para ela. David pensou em dizer: "Você não tem
mão para puxar uma cadeira?" Mas ela permaneceu impassível, como se
estivesse aguardando um gesto de cavalheirismo da parte dele.
- Ouvi dizer que você já está melhor - ela disse, sentando-se, abrindo uma
pasta no colo e pegando um lápis preso na orelha -, portanto vamos ao trabalho.
Imagino que você já superou aquele infeliz incidente com Sua Excelência.

- A senhora está se referindo ao fato de eu ter vomitado em cima do líder do
mundo? - ele disse, provocando um sorriso amarelo no rosto dela. - Estou
tentando não pensar mais no assunto, mas, como as notícias voam, acredito que
todos os funcionários do palácio tenham tomado conhecimento daquele
incidente.
- A diretoria toda entendeu - ela disse.
Ele gostaria de perguntar se eles entenderam que vomitar em cima do
chefão havia sido a resposta a uma oração desesperada de não ser obrigado a
fingir uma adoração a ele.
Viv fez uma pequena marca ao lado do primeiro item de sua lista. David
perguntava-se o que ela deveria ter anotado como primeiro ponto a ser discutido.
Regurgitação?
- Passemos ao próximo assunto - ela disse. - Seu novo superior imediato
será James Hickman.
- Meu setor ficará subordinado ao Serviço de Inteligência?
- Não. Jim foi promovido a Supremo Comandante, posição ocupada
anteriormente pelo Reverendo Fortunato.
Para David, a palavra Inteligência incluída no antigo cargo de Hickman era
semelhante ao Reverendo do novo título de Fortunato.
- Tenho certeza de que essa idéia partiu de Leon... ou melhor, do
comandante Fortunato, e não do potentado.
David notou um leve ar de sorriso no rosto de Viv, mas ela não mordeu a
isca.
- Quer dizer que Jim passará a ocupar o antigo escritório de Leon? - ele
perguntou.
- Não atropele as coisas, Hassid. Peço que você use os títulos corretos ou
pelo menos a palavra Senhor ao referir-se às pessoas de nível hierárquico
superior. Você deve referir-se ao Sr. Hickman como Supremo Comandante e ao
Sr. Fortunato como Reverendo ou Reverendíssimo.
Posso escolher? pensou David. Ele preferia vomitar em Leon a chamá-lo de
Reverendíssimo ou coisa parecida. Foi necessário morder a língua para não

perguntar a Viv, isto é, à Sra. Ivins, se a bajulação de Hickman havia sido
responsável por sua promoção. Ou talvez aquela encenação tivesse sido uma
manifestação de agradecimento por uma promoção já efetuada.
- E minha resposta é não - prosseguiu Viv. - O novo Supremo Comandante
não passará a ocupar o antigo escritório do Reverendo Fortunato. O Sr. Hickman
trabalhará na mesma sala que a assistente de Sua Excelência.
- Sério? - perguntou David. - A sala de Sandra vai ficar um pouco apertada.
- Como devo dizer? Embora o Sr. Hickman tenha o mesmo título anterior do
Sr. Fortunato, sua função será menos importante.
- Como assim? Viv parecia frustrada, como se não estivesse acostumada a
dar explicações adicionais.
- Hassid, deve ter ficado óbvio para todos que um líder, cuja divindade foi
publicamente manifestada, não necessitaria de uma assistência do mesmo nível
que teve no passado. O Sr. Fortunato foi, em essência, o braço direito de Sua
Excelência. A função do Sr. Hickman será a de uma espécie de intermediador.
Como se fosse um sargento do exército ou arauto da cidade? pensou
David.
- E, é claro, você já conhece as novas responsabilidades do Reverendo
Fortunato.
Mais do que você pensa. Mas Falso Profeta não é um título apropriado para
constar de um cartão de visitas.
- Por favor, repita-as para mim.
- Ele será o chefe espiritual da Comunidade Global, dirigindo as
homenagens ao objeto de nossa adoração.
David assentiu com a cabeça. Tentando eliminar qualquer expressão que o
denunciasse, ele disse:
- E o que vai ser do antigo escritório de Leon, desculpe-me, do Reverendo
Fortunato?
- Ele vai fazer parte dos novos escritórios do potentado.
- Oh! Eu sabia que ele queria expandi-lo na vertical. Ele também vai
expandi-lo na horizontal?

- Ah, sim, vai ser imenso. Até agora, uma das vantagens da ressurreição é
que ele não vai mais ter necessidade de dormir. Acordado 24 horas por dia, ele
vai precisar de muito espaço para trabalhar.
- É verdade. Essa é boa. Satanás não precisa descansar.
- O novo escritório do potentado vai ser espetacular, diretor Hassid.
Abrangerá o antigo escritório dele e do Sr. Fortunato, a sala de reuniões e, acima
das paredes de três metros, haverá janelas de dez metros e teto transparente.
- Impressionante!
- Tenho certeza de que você terá audiências com ele, embora seus contatos
diretos daqui em diante passem a ser com o novo Supremo Comandante.
- Se eu fosse o potentado, haveria de querer um escritório bem grande para
manter uma boa distância entre mim e ele.
- Não entendi.
- Estou falando daquele incidente desagradável.
- Ah, sim. Foi engraçado.
Mas ela não demonstrou achar graça.
- O Sr. Hickman vai ter um local para reunir-se com seus subordinados -
perguntou David - ou vamos precisar falar baixo para não perturbar a assistente
do potentado?
- Vocês dois poderão dar um jeito nisso. Por exemplo, fazer as reuniões
aqui. Oh, não. Eu me esqueci da hora. Tenho outros compromissos a cumprir.
Perdoe-me a pressa, mas ainda tenho outros assuntos que desejo discutir
rapidamente com você.
Não, seu tempo acabou. Dê o fora daqui.
- Claro, Sra. Ivins. Eu compreendo.
- Durante sua internação, tivemos de tratar de vários assuntos importantes e
urgentes. Precisamos emitir pedidos para diversas compras técnicas que
envolvem embarque e manufatura internacionais.
David teve de controlar-se para não fazer uma careta. Ele sabia exatamente
do que ela estava falando, e esperava poder retardar esses pedidos para frustrar
os esforços do potentado.

- Compras técnicas? - ele disse.
- Injetores de biochips. E, é claro, os instrumentos de imposição à lealdade.
Instrumentos de imposição à lealdade!? Por que não dizer instrumentos que
separam o crânio do tronco?
- Guilhotinas, é isso?
Suas palavras fizeram-na estremecer.
- Por favor, diretor. Essa palavra faz lembrar coisas do século XVIII, e você
deve entender por que queremos evitar qualquer expressão que denote
violência, decapitação ou coisa parecida.
Coisa parecida?
- Com todo o respeito que lhe devo, a senhora não acha que o povo vai
entender qual será a finalidade das guilhotinas, ou melhor, dos instrumentos de
imposição à lealdade? Para que mais serviriam? Para cortar repolhos ao meio?
- Não vejo graça nenhuma no que você acaba de dizer.
- Eu também não, mas uma lâmina é uma lâmina. O povo vai ver uma
enorme lâmina de metal, com a parte inferior oblíqua e afiada, à espera de ser
acionada de cima de uma trave que, na parte inferior, tem o formato de meia-lua
e um balde embaixo. Acho que todo mundo vai adivinhar para que serve.
A Sra. Ivins remexeu-se na cadeira, fez outra marca em sua lista e disse:
- Eu não usaria uma linguagem tão grosseira, mas acho que... ou melhor,
tenho certeza de que não haverá necessidade de utilizarmos esses instrumentos.
- A senhora acha mesmo?
- Não tenho dúvidas. Eles servirão simplesmente como símbolo tangível da
seriedade com que o assunto deve ser tratado.
- Em outras palavras, ou manifestamos lealdade ou temos a cabeça cortada.
- Não haverá necessidade de dizer isso.
- Eu também acho.
- Mas, Sr. Hassid, eu aposto que apenas os casos mais renitentes, que
serão tão poucos e espaçados a ponto de merecerem ser noticiados, resultarão
em completa efetivação da obrigatoriedade.
Eu detestaria ver incompleta a efetivação da obrigatoriedade.

- A senhora acha que toda a oposição foi erradicada?
- Claro - ela disse. - Depois de presenciar a ressurreição de um homem que
ficou morto por três dias, quem, em sã consciência, ainda duvidaria de que ele é
Deus?
Rayford não teve a recepção esperada, e Chloe correu a seu encontro para
explicar. Ele assustou-se com a notícia da morte de Annie. Os três recém-
chegados ficaram tão estarrecidos quanto o restante do grupo. A maioria evitou
olhar para Hattie.
- Vocês têm notícias de David? - perguntou Rayford. - Ele está bem?
- Foi Mac quem ligou - disse Buck. - O pior é que David desmaiou de
exaustão ou pelo calor, não sabemos ao certo, e demorou um bocado para
começar a procurar Annie.
Rayford sacudiu a cabeça. Ele sabia que esse era o preço que eles teriam
de pagar, mas o sofrimento não lhes dava trégua.
- Acho que nem todos se conhecem aqui - ele disse, fazendo rapidamente
as apresentações.
- Com licença - disse Zeke -, eu poderia fazer uma pergunta boba?
- Pergunte o que quiser - disse Rayford.
- Não quero ofender a senhora - ele disse a Hattie -, mas eu não esperava
ver o selo em sua testa.
Tsion levantou-se, com os lábios trêmulos, e aproximou-se dela.
- É verdade, minha cara? - ele perguntou, colocando as mãos nos ombros
dela. - Deixe-me olhar para você.
Hattie assentiu com a cabeça e olhou para Buck e Chloe, que arregalaram
os olhos de susto. Tsion abraçou-a, chorando.
- Louvado seja Deus, louvado seja Deus! Senhor, tu levaste uma e nos
trouxeste outra. - Ele abriu os olhos. - Conte-nos tudo. Quando foi? Como foi? O
que aconteceu?
- Faz menos de 24 horas - ela disse. - Foi uma sucessão de fatos. Pensei

em todos vocês se preocupando comigo, me amando, insistindo, orando por
mim. E, se vocês ainda não ouviram a história de Albie, é melhor fazerem isso
logo.
Ela inclinou-se para Tsion e cochichou alguma coisa em leu ouvido.
- Claro - ele disse. - Chaim, Zeke, Albie e Leah, vamos deixar nossa nova
irmã passar alguns momentos a sós com a família Steele, está bem? Teremos
muito tempo pela frente para conhecê-la melhor.
Os outros levantaram-se e acompanharam Tsion, parecendo ter
compreendido. Apenas Zeke tinha um ar desconcertado.
Depois que todos saíram, Hattie levantou-se, enquanto Rayford, Buck e
Chloe se sentavam.
- Estou muito feliz por você - disse Chloe -, e falo sério, apesar de parecer
um pouco aturdida. Eu gostaria que você tivesse me contado pelo telefone.
Assim, eu não teria sido tão grosseira com você.
- Não se preocupe, Chloe, eu mereci. E não culpo ninguém por estar
chocado. Eu também estou chocada comigo mesma. Mas tenho muita coisa a
explicar. Explicar não é a palavra certa, porque não há como explicar
depravação. Mas eu preciso me desculpar. Fui tão mesquinha com você, com
todos vocês, em várias ocasiões. Não sei se vão me perdoar.
- Hattie - disse Chloe -, está tudo bem. Você não precisa...
- Preciso, sim. E tem mais, Chloe. Há uma coisa que você me disse tempos
atrás que nunca esqueci. Não consegui tirar isso da cabeça, apesar de ter
tentado várias vezes. Foi quando visitei vocês na casa de Loretta e acusei todos
de quererem mudar minha opinião a respeito de um aborto. E fiz outra acusação.
Eu disse que vocês só seriam capazes de me amar se eu concordasse com tudo
o que vocês queriam. Lembra-se?
Chloe assentiu com a cabeça. Hattie prosseguiu.
- Apesar de ser bem mais jovem do que eu, você disse que queria me amar
da maneira que Deus me amava, e que isso não dependia de eu concordar ou
não. Não dependia do que eu havia feito ou decidido. Você disse que me amava,
porque era assim que Deus nos ama, mesmo quando estamos mergulhados no

pecado.
- Não me lembro de ter sido tão explícita - disse Chloe, com os olhos
marejando lágrimas.
- Você tinha razão - disse Hattie. - Deus me amou mesmo quando eu estava
no fundo do poço. E pensar que quase me matei antes que Ele me alcançasse.
- Eles não conhecem essa parte da história - disse Rayford. Hattie contou-
lhes tudo, desde o dia em que a CG a prendeu no Colorado até aquele momento.
- Eu estava muito preocupada, pensando que vocês nunca me perdoariam -
ela concluiu.
Chloe levantou-se e a abraçou. Buck fez o mesmo e disse:
- Você nunca me perdoou por uma coisa que eu fiz, uma coisa pior do que
tudo o que você fez, Hattie.
- O que foi?
- Eu a apresentei a Nicolae Carpathia. Ela assentiu, sorrindo por entre
lágrimas.
- Foi uma coisa horrível, mas como você podia saber? No início, ele
enganou quase tudo mundo. Eu gostaria de nunca ler olhado para ele, mas tinha
de ser assim. Tudo favoreceu para que este dia chegasse.
David estava agitado. Queria que Viv Ivins saísse logo dali para ele começar
a trabalhar naquilo que lhe interessava. Ela não parava de falar de Fortunato.
- Ele vai ocupar o antigo escritório de Peter Mathews, mas nada será como
antes. A Fé Mundial Enigma Babilônio deixou de existir, porque não existe mais
nenhum enigma.
- Agora sabemos a quem devemos adorar, não é mesmo, Hassid?
- Claro que sim.
- Ah - ela disse -, só mais uma coisa. Você sabe que perdeu uma
funcionária? - Viv Ivins virou uma página de suas anotações e leu: - Solteira,
branca, sexo feminino, 22 anos, quase 23, Angel Rich Christopher.
Aparentemente, Rich é nome de família.

David prendeu a respiração e assentiu com a cabeça.
- Vítima de raio - complementou Viv. - Uma entre várias.
- Fiquei sabendo.
- Eu só queria dizer que, se você estiver planejando uma espécie de culto
em memória dela, recomendo que não leve a idéia adiante.
- Como assim?
- Perdemos um número muito grande de funcionários e não será prático
prestar homenagem a todos eles.
David sentiu-se ofendido, principalmente por Annie.
- Eu... hã... participei de outras cerimônias. Foram curtas, mas apropriadas.
- Bem, esta não seria apropriada. Entendido?
- Não.
- Não?
- Sinto muito, mas não entendi. Por que não seria apropriado homenagear
uma colega de trabalho que...
- Se você pensasse um pouco, entenderia.
- Vá direto ao assunto, por favor.
- Bem, Hassid, a Srta. Christopher foi atingida pelo raio quando o Reverendo
Fortunato estava invocando fogo do céu sobre aqueles que se recusavam a
reconhecer Sua Excelência, o Potentado, como o Deus vivo e verdadeiro.
- A senhora está dizendo que ela morreu por ser subversiva? Que Fortunato
a matou?
- Deus a matou, diretor. Não sei se subversiva é a palavra correta. Ficou
claro a todos os presentes, e sei que você também estava lá, que só os céticos
foram castigados naquele dia.
David mordeu os lábios e coçou a cabeça.
- Se não prestarmos homenagem a todos os funcionários que não
reconheceram Nicolae Carpathia como uma divindade, vou compreender e
aceitar.
- Foi o que pensei. - Ela levantou-se e aguardou que David lhe abrisse a
porta. - Tenha um bom dia, diretor. Se você precisar de mim, estarei às ordens.

- Só mais uma coisa.
- Diga.
- É a respeito dos injetores de biochip que a senhora mencionou. Eles são
semelhantes aos usados em animais domésticos?
- Creio que sim, com algumas modificações.
- Uma das enfermeiras que me atendeu disse que foi assistente de um
veterinário. Acho que ela tem experiência com esse tipo de tecnologia e pode ser
útil para nós.
- Boa idéia. Dê-me o nome dela. Vou verificar.
- Eu me esqueci - ele disse. - Mas vai ser fácil descobrir. Eu ligo para a
senhora.
Assim que Viv partiu, David ligou para Hannah.
- Vou dar o seu nome a Viv Ivins. Ela vai ligar para você.
- Tudo bem.
David contou-lhe sobre a proibição de seu departamento prestar
homenagem a Annie, mesmo que fosse um minuto de silêncio.
- Foi melhor assim - ela disse. - David, se a homenagem deixasse
transparecer que ela foi leal a Carpathia, você teria de se haver com ela no céu
um dia.
ONZE

Durante os vários dias que se seguiram na casa secreta, Rayford limitou-se
a observar o comportamento do grupo e a fazer anotações. Tsion e Chaim
passavam a maior parte do tempo estudando. Leah parecia entediada ajudando
Chloe na cooperativa internacional. Tentou aproximar-se de Hattie, mas a moça
estava enervando a todos da casa. Todos, menos Zeke. Ele se mantinha isolado
e não se deixava influenciar por idiossincrasias pessoais.
Rayford pediu a Tsion que dirigisse um rápido estudo bíblico diário ao grupo,

e eles oravam juntos. Todos aguardavam com ansiedade o momento de ler a
mensagem cibernética diária de Tsion. Eles se revezavam para pintar os vidros
internos das janelas de todos os andares que estavam usando para que ficassem
invisíveis do lado de fora, mesmo com as luzes acesas.
Uma semana depois de ter levado Hattie para a casa secreta, Rayford
convocou uma reunião para integrar oficialmente Chaim, Zeke, Albie e Hattie ao
Comando Tribulação.
Todos acompanhavam atentamente pela Internet e pela TV à procura de
informações sobre quando e como a marca da lealdade seria aplicada. Buck
retornou com todo o vigor ao seu trabalho na revista virtual A Verdade. Seus
contatos internacionais e sua habilidade em escrever reportagens que tinham um
cunho de autenticidade sem expor os crentes tornaram seu site bastante popular,
sendo superado apenas pelo de Tsion. Por meio dos contatos de Chloe na
cooperativa, Buck recrutou gráficas clandestinas do mundo inteiro, cujos
proprietários arriscavam a vida para publicar A Verdade e as mensagens de
Tsion àqueles que não tinham acesso a computadores.
Hattie, que a princípio comportou-se de maneira hesitante, passou a
demonstrar a mesma euforia e vibração daquela manhã em Bozeman. Rayford
gostava dessa animação e, aparentemente, Tsion também. Os olhos dos outros
demonstravam frieza todas as vezes que ela vibrava com uma novidade. O
Comando Tribulação tinha bastante espaço e privacidade, mas, mesmo dentro
de um imenso arranha-céu, ocorria a síndrome da clausura.
A falta de ar fresco tornou-se um problema. O sistema de ventilação do
edifício funcionava a contento, mas a brisa suave vinda de fora, que entrava
ocasionalmente por uma janela aberta, não era suficiente para aplacar a
ansiedade que todos tinham de sair e de ver a luz do sol. Rayford lhes disse que
seria muito arriscado. Até mesmo Kenny Bruce era levado para fora só depois do
anoitecer.
Os companheiros de Rayford começaram a ir falar com ele em particular.
Embora tomando cuidado para não haver mexericos entre eles, todos
apresentavam pedidos similares. Todos queriam missões fora da casa secreta.

Desejavam agir sem ter de ficar aguardando os ataques de Nicolae e da CG.
Todos, menos Zeke. Ele parecia contente com sua função. Fez um
inventário de todas as ferramentas e materiais necessários para instalar uma
base de operações para falsificar documentos de identidade da maneira mais
eficiente possível.
- Eu não sou um sujeito que gosta de ler livros - ele disse a Rayford -, mas
sei o que vai acontecer.
- Sabe?
- O Dr. Ben-Judá está treinando esse tal Chaim não-sei-o-quê para voltar a
Israel. Isso quer dizer que preciso arrumar uma nova identidade para ele, e não
vai ser apenas no papel. Ele vai ter de mudar de cara, porque é conhecido no
mundo inteiro.
Rayford limitou-se a assentir com a cabeça.
- A gente não pode mudar a altura e o peso de um homem - prosseguiu
Zeke -, e não sou cirurgião plástico. Mas existem coisas que eu posso fazer. Ele
vai ter de cortar aquele cabelo parecido com o de Einstein e fazer a barba. Vou
raspar todo o cabelo dele e tingir suas sobrancelhas de cor escura. Depois, ele
vai deixar crescer uma barbicha ou talvez costeletas e bigode, tudo tingido de cor
escura. Ele vai parecer mais moço e moderninho, mas completamente diferente
do que era. Os óculos vão desaparecer ou, então, vou ter de mudá-los. Posso
arrumar lentes de contato coloridas. Se ele não precisar de receita, tenho muitas
para ele escolher.
- Hã, hã - disse Rayford. - Zeke, por que você acha que ele vai voltar para
Israel?
- Ah, ele não vai? Então, eu me enganei. Só estava pensando...
- Não estou dizendo que você se enganou. Eu só queria saber por que
pensou isso.
- Não sei. Alguém vai ter de ir, e vocês não vão querer correr o risco de
mandar o Dr. Ben-Judá.
- Alguém vai ter de ir a Israel? Por quê?
Zeke franziu as sobrancelhas.

- Não sei. Se eu estiver errado, pode falar, porque quase sempre estou, mas
meu pai diz que tenho intuição. Tento entender as mensagens de Zion, mas eu já
disse que não sou bom de leitura. Acho que nunca li um livro inteiro, a não ser
alguns manuais de instrução, e isso já faz uns seis anos. Mas, para um cara
inteligente, Zion escreve de um jeito fácil de entender. Estou dizendo que o
inteligente é ele, não eu. Quase todos os caras inteligentes acham que estão
explicando alguma coisa, mas só eles entendem. Você sabe o que estou
dizendo?
- Claro.
- Pelo que entendi, depois de ler as últimas mensagens de Zion, Carpathia
está tramando alguma coisa. E essa coisa tem a ver com Jerusalém. Fiquei
sabendo que a Bíblia diz que o anticristo vai puxar o tapete dos judeus. Ele
também vai profanar o templo, lá dentro, e quebrar a promessa que fez.
- Acho que você entendeu bem, Zeke. E como Chaim entra nessa história?
- Zion diz que Deus está preparando um lugar seguro para os judeus se
esconderem, mas eles precisam de um líder. Zion pode fazer isso pela Internet,
mas eles vão precisar de alguém lá, alguém que eles possam ver. E esse alguém
tem de ser judeu. Também tem de ser crente. Tem de ser bastante popular ou,
pelo menos, ser capaz de fazer o povo segui-lo. E tem mais. Precisa ter muito
conhecimento. A única pessoa que logo vai conhecer mais coisas que Zion é
Chaim. Zion não pode ir para lá de jeito nenhum.
- A missão também é bastante arriscada para Chaim, não, Zeke?
- Não sei quem é o pior na cabeça de Carpathia, se o cara que está
espalhando para o mundo inteiro que ele é o próprio Demônio ou se o cara que
espetou uma espada no cérebro dele. A verdade é que nós, os crentes, vamos
poder viver sem Chaim, se for preciso. Mas, sem Zion, vai ser muito difícil.
Zeke ficou constrangido por ter dito isso. Rayford levantou-se e começou a
andar de um lado para o outro.
- Zeke, seu pai está certo quanto à sua intuição. Você acertou direitinho.
- Então, vou ter de despachar Chaim para lá com o nome de... como é
mesmo o novo nome dele?

- Tobias Rogoff.
- Certo. Vai ser este nome mesmo?
- Correto.
- Você não acha que ele vai ser reconhecido por muitas pessoas por causa
de sua voz e de sua aparência? As pessoas também costumam observar as
mãos. Vou ter de dar um jeito nisso.
- Você tem razão. Há muita gente que o conhece. E, se David estiver certo
quando diz que existe um videoteipe mostrando o momento em que ele
assassinou Carpathia, acho que a CG deve estar exibindo essa imagem ao
mundo inteiro. Mas Carpathia em pessoa afirmou que já perdoou seu agressor.
- Só que Carpathia também disse que não pode controlar a reação do povo,
por isso acho que Chaim vai viver na corda bamba, não é mesmo?
- Se ele conseguir abrigo no meio dos judeus, vai ter uma proteção
sobrenatural.
- Isso vai ser muito legal.
- Você disse que não é cirurgião plástico. Existem outras maneiras de mudar
a aparência de uma pessoa?
Zeke assentiu com a cabeça.
- Existe um aparelho para pôr na boca.
- Para mudar a arcada dentária.
- Certo. Eu usei um em Leah e tenho muitos outros. Posso mudar a
aparência dos dentes e do queixo de uma pessoa.
- E se essa pessoa estiver com a mandíbula amarrada?
- Melhor ainda. Leah vai tirar aqueles fios. Acho que posso fazer Chaim ficar
parecido com outra pessoa. Ele vai ter de usar roupa diferente, talvez andar de
maneira diferente. Basta colocar alguma coisa dentro dos sapatos. Estou às
ordens quando ele quiser.
David superava seu sofrimento trabalhando sem parar até ficar tão exausto
a ponto de dormir de cansaço. Ele incumbiu Mac e Abdullah de planejarem um

acidente para fazê-los desaparecer, de acordo com a idéia de Hannah. Nesse
ínterim, ele instalou por todo o palácio números de acesso que lhe permitiriam,
com alguns toques corretos no teclado do computador, entrar no sistema e
acompanhar o que se passava lá dentro, pelo menos enquanto o atual sistema
estivesse em uso.
Ouvir as conversas de Nicolae, Leon e Hickman passou a ser um hábito
para David, e ele também gostava de ouvir o que o chefe de segurança Walter
Moon tinha a dizer. Embora fosse bastante improvável que Moon se convertesse,
quem poderia ter certeza? Se isso acontecesse, teria de ser antes da aplicação
da marca nos funcionários, porque, conforme Tsion ensinou, a Bíblia dizia
claramente que se tratava de uma decisão definitiva. Mas, pelo que David
conseguiu deduzir, Moon queixava-se abertamente a seu assistente e a seus
subordinados mais fiéis por não ter sido ele o escolhido para ocupar a função de
Supremo Comandante. Ele passava a maior parte do tempo jurando -
ironicamente "sobre uma pilha de Bíblias" - que não teria aceitado o cargo se lhe
tivesse sido oferecido. Mas a verdade era tão visível que seus confidentes
sentiam-se na liberdade de dizer-lhe:
- Claro que você teria aceitado, se alguém lhe oferecesse.
David sonhava com a possibilidade de ter Moon como aliado, uma espécie
de galo de briga dentro do palácio com potencial para ser subversivo.
O novo diretor do serviço de inteligência, substituto de Jim Hickman, era um
paquistanês chamado Suhail Akbar, leal em tudo a Carpathia. Ele era o tipo de
pessoa que trabalhava nos bastidores, lento para manifestar uma opinião, mas
com um Currículo de fazer inveja a seu ex-superior, em se tratando de
experiência e treinamento. David temia que a inteligência daquele homem viesse
a lhe causar problemas. Inteligente não era um adjetivo adequado para Hickman.
Certa tarde, depois de um dia cansativo de trabalho infiltrando-se nos
computadores do palácio, David enviou o seguinte e-mail a Mac: "É difícil demais
a gente não ter meios de questionar nossa lealdade à CG e a Carpathia. De vez
em quando, eu desafio os chefões para que eles não desconfiem de mim, porque
acredito que eles suspeitam daqueles que demonstram uma lealdade cega.

Quero que eles II perguntem: 'Porque o Hassid nos desafia e, ao mesmo tempo,
é tão eficiente a ponto de tentar fazer deste lugar o melhor do mundo? '
"Mac, precisamos levar adiante nossos planos, inventar um problema que
explique nossa morte e que custe à CG um bom dinheiro em equipamentos. Eu
não me importaria de ver o avião afundar com uma carga valiosa de injetores de
biochips e até mesmo de instrumentos de imposição à lealdade. Será que as
guilhotinas aparecem em destaque nos catálogos de instrumentos para cortar
cabeças? Desculpe-me a brincadeira; não é assunto para piadas. Queira Deus
que Ele glorifique os corpos de todos os santos, até mesmo daqueles que foram
mutilados, cremados ou mortos por raio. "Sem querer ofender sua inteligência,
devo alertá-lo sobre a idéia de destruir o Fênix 216. Eu adoraria azucrinar
Carpathia fazendo com que ele perdesse seu precioso meio de transporte, mas
investimos muito naquele sistema de escuta clandestina, e agora posso ter
acesso a ele mesmo estando fora do avião. Enquanto Deus permitir que a gente
ouça a conversa entre eles, não vejo outro meio de escuta mais perfeito.
Desenvolvi um programa capaz de localizar a posição da aeronave via satélite. É
sempre muito divertido quando Carpathia imagina estar em um ambiente
totalmente seguro e fica descontraído. É comum a gente ver Carpathia fazendo
pose e falando com arrogância diante de seu pessoal, porém vale a pena ouvir
suas gargalhadas quando ele admite a seus asseclas mais confiáveis tudo o que
costuma negar na frente dos outros.
"E, por falar nisso, ele marcou uma reunião com Hickman, Moon, Akbar e
Fortunato, e estou planejando gravar tudo. Se você acha que as discussões
entre ele e Fortunato são engraçadas, espere para ouvir o que vou gravar e
enviar para você. Não se esqueça do código de segurança para receber todas
essas informações privilegiadas. Se alguém, inclusive você, tentar acessar esses
arquivos usando o código errado, saiba que instalei um vírus tão terrível que
pode ser chamado de monstro. Essa criatura não lê os programas e ataca o
disco rígido. "Só acredito que existe um vírus tão destruidor assim porque fui eu
que o desenvolvi. Esse vírus intercepta os impulsos que estão sendo
transmitidos de ponto a ponto no processador, conduz os impulsos à fonte de

força, seja ela elétrica ou movida por bateria, e transfere a corrente para a placa-
mãe. Se houvesse um componente inflamável ali, eu poderia fazer o computador
explodir na cara do hacker. Mas como tudo o que existe lá dentro é feito de
plástico e metal, o pior que pode acontecer é o material esquentar, soltar fumaça
e derreter. Depois disso, o computador ficará inutilizado.
"Vou deixar as outras novidades para mais tarde, meu amigo. Aguardo
informações concretas de você e Abdullah dentro de 48 horas. Nesse meio-
tempo, peço que vocês entrem em contato com Hannah. Vai ser menos arriscado
do que eu tentar falar com ela. Ninguém vai desconfiar de vocês. Animem aquela
moça e digam a ela que sairemos daqui a tempo. Ainda teremos anos produtivos
pela frente para nos dedicarmos à causa do reino."
Rayford tomou conhecimento das novidades assim que David se recuperou
dos ferimentos e ficou preocupado com a exigüidade de tempo para preparar
tudo de que precisavam. Ficou pensando qual seria a melhor maneira de destinar
funções para cada integrante do Comando, e a perspectiva da inclusão de quatro
membros vindos do palácio tinha seus prós e contras. Se todos fossem para
Chicago, ele incluiria em sua base de operações dois pilotos, uma enfermeira e
um dos maiores gênios do mundo em informática. Havia espaço suficiente, mas
Rayford tinha dúvidas a respeito de se a melhor solução seria ter o grupo inteiro
morando no mesmo lugar.
Pelo bem-estar psicológico de todos e das duas missões que eles tinham
pela frente - dificultar os planos de Carpathia e ganhar o maior número de almas
possível para o reino - faria mais sentido espalhar o talento do grupo ao redor do
mundo. Hattie e Leah estavam inquietas e ansiosas por ter alguma missão para
fazer fora dali. Chloe conformou-se em ficar em casa, por causa de Kenny e do
trabalho na cooperativa, mas Buck precisava saber o que se passava no mundo
para tornar sua revista virtual mais eficiente.
Rayford e Albie necessitavam de todos os pilotos que conseguissem reunir,
mas não havia aeronaves suficientes. Se Rayford e o esperto Zeke estivessem
certos a respeito do que Tsion queria fazer, milhares de pilotos e aeronaves
teriam de ser recrutados do mundo inteiro para transportar os crentes judeus

para um lugar seguro. Pilotos veteranos como Mac e Abdullah poderiam ajudar
nessa tarefa.
A certa altura, no meio da noite, Rayford deu-se conta de que precisava agir
rapidamente, apesar de ter mais de duas semanas para pensar e planejar a
melhor maneira de fazer uso do contingente que viria de Nova Babilônia. Tempo
era um elemento precioso que parecia nunca ser suficiente, mas justamente
naquele momento uma nova emergência provocaria grande tumulto.
O telefone de Rayford tocou, mas não havia ninguém na linha. Ele olhou no
visor e viu a seguinte mensagem de Lukas (Laslos) Miklos: "Fomos descobertos.
Pastor e minha esposa presos, entre outros. Orem, por favor. Ajudem-nos, por
favor."
A igreja clandestina de Ptolemaïs era a maior da Grécia e, provavelmente, a
maior dos Estados Unidos Carpathianos. Até agora, a presença da CG local não
havia apresentado nenhum problema. Rayford sabia, por experiência própria,
que os crentes da Grécia eram muito cuidadosos, mas, ao mesmo tempo,
receavam que os serviços de Segurança e Inteligência da CG não continuariam a
ignorá-los por muito tempo. Na opinião dos crentes da Grécia, o afrouxamento da
perseguição contra eles tinha um motivo. O líder local da CG imaginava que
Carpathia gostaria que a região homenageada com seu nome tivesse a
divulgação do menor índice possível de rebeldes entre as dez supercomunidades
globais.
As estratégias de relações públicas exibidas por Carpathia antes de seu
assassinato haviam mudado. Depois de sua ressurreição, a ênfase passou a
recair sobre a obrigatoriedade do cumprimento das leis. Para Rayford, o novo
Carpathia preferiria erradicar a oposição dentro da região que levava o seu nome
a fingir que ela não existia. Rayford pediria a David que verificasse a situação
para saber se seria conveniente enviar alguém do Comando Tribulação para lá.
Pelo que Rayford sabia, a Sra. Miklos era uma mulher pacífica e
profundamente consagrada. Mas Laslos lhe dissera que ela também era
determinada, obstinada e corajosa. Não recuava quando alguma autoridade a
confrontava a respeito da prática de sua fé. Rayford imaginou a CG invadindo o

local do culto e a Sra. Miklos resistindo e até mesmo provocando um rebuliço
para impedir que seu pastor, Demetrius Demeter, fosse levado para a prisão.
Porém, Rayford não permitiu que sua imaginação divagasse. Descobriria o
que pudesse por intermédio de David e talvez viajasse para a Grécia com Albie.
Ou, então, com Buck. Ele não queria deixar o Comando Tribulação sem nenhum
piloto.
David estava programando seu computador para ouvir a conversa na
reunião de Carpathia com Hickman e outros quando recebeu uma ligação de
Rayford comunicando o ataque da CG à igreja clandestina da Grécia.
- Vou-lhe informar o que conseguir descobrir - ele disse a Rayford.
David ligou para Walter Moon, mas, antes que o homem atendesse, recebeu
uma mensagem pelo pager pedindo que ligasse para o escritório de Hickman.
Escritório de Hickman? ele pensou. Hickman dividia uma sala com a
assistente de Carpathia. E Hickman não teria uma reunião com Carpathia logo a
seguir? David desligou e discou o número de Hickman. Sandra, a assistente,
atendeu.
- Aqui é Hassid - ele disse. - Vocês me enviaram uma mensagem pelo
pager?
- Sim. O Supremo Comandante gostaria que o senhor se reunisse com ele
na sala de conferências, no 18° andar.
Ao chegar lá, David deparou-se com uma enorme confusão. Apesar de ser
final de expediente e de Sandra estar se preparando para ir embora, o local
encontrava-se apinhado de operários trabalhando. Havia furadeiras, serras,
martelos, andaimes, escadas e outros tipos de materiais espalhados por toda
parte.
- Você não vai ser transferida para outro local enquanto eles estiverem
trabalhando? - perguntou David.
- Parece que não - disse Sandra saindo.
Hickman abriu a porta de uma sala de reuniões, não muito grande para seu

cargo, e fez um gesto para que David entrasse.
- Entre logo para que eu possa fechar a porta, Hassid. Há muita poeira aí
fora.
O novo Supremo Comandante, uma versão ocidental de Fortunato e com
menos classe ainda, estendeu sua mão gorducha e sacudiu a de David com
entusiasmo.
- E aí, como vai? Ah, sim, ele ressuscitou.
- Sim - disse David. Ao perceber o olhar de Hickman, ele complementou: -
Verdadeiramente.
Hickman parecia nervoso e apressado. David achou que poderia extrair
alguma informação daquele homem fazendo-se de bobo.
- E então? O expediente já está terminando, não? Como está sendo dividir
espaço com...
- Deixe isso para lá - disse Hickman, sentando-se. Sua enorme barriga
projetou-se por ele ter desabotoado o paletó do uniforme. - Tenho uma reunião a
seguir com os chefões e não quero chegar lá despreparado.
Eu sabia, pensou David.
- Em que posso ajudá-lo?
- Quero saber se tudo está atualizado, arrumado, nos trilhos, em dia.
David sacudiu a cabeça, atônito.
- Acho que sim. Do que estamos falando?
Hickman pegou um bloco surrado e virou algumas páginas.
- Guilhotinas, seringas?
- O senhor está falando dos instrumentos de imposição à lealdade e dos
injetores de biochips?
- Ah, sim, obrigado! - disse Hickman, fazendo alguns rabiscos. - Eu sabia
que Viv tinha dado um nome especial para essas coisas. Sabe, Hassid? Eu era
policial. Estou muito honrado com tudo isso e preciso provar à Sua Majestade...
ahn... Sua Excelência, que sou capaz de fazer tudo o que ele me pediu. Quero
mostrar que estou à altura do cargo que me deram.
- O senhor acha que está?

- Acho que minha lealdade e devoção ao potentado vão suprir a falta de
experiência que tenho neste cargo. E então? Em que pé estamos sobre aquelas
coisas? O que posso dizer a ele?
- Que está tudo encaminhado.
- Ótimo. Posso contar com você?
- Claro que sim, Ji..., isto é, supremo comandante.
- Ah, pode me chamar de comandante quando não houver ninguém por
perto. Nas outras ocasiões, você deve ser formal, claro.
- Claro.
- A propósito, você também cuida da compra de animais?
- O senhor quer dizer carnes de animais para alimento? Não, isso é com o
Setor de Alimentação.
- Estou falando de animais vivos. Não preciso de alimento. Preciso de um
animal vivo.
- Não faz parte de minha área. Eu cuido da compra de veículos, aviões,
computadores, equipamentos de comunicação.
- Quem vai me ajudar a encontrar um porco?
- Um porco, senhor?
- Grande e vivo, Hassid.
- Não faço idéia.
Hickman o encarou, aparentemente sem aceitar a explicação.
- Posso procurar - disse David. - Mas...
- Eu sabia que podia contar com você, David. Você é um bom rapaz. Quero
que me dê uma notícia amanhã bem cedo, porque fiquei sabendo que o chefão
vai me fazer esse pedido hoje.
- Oh, o senhor já conversou com ele?
- Não. Um colega, que gosta muito de mim, me deu a dica.
- Verdade?
- Ah, sim. Um sujeito como eu precisa ter amigos em todos os níveis da
hierarquia. O cara me contou hoje que esteve em uma reunião com Fortunato e
Carp... oh, desculpe-me! Sei que não devo falar assim, principalmente na frente

de um subordinado. Como seu superior, Hassid, vou pedir que você se esqueça
do que acabou de ouvir.
- Está esquecido, senhor.
- Ótimo. Pois bem, aquele cara da reunião com Sua Excelência e o
Reverendíssimo disse que eles estavam agitados... você sabe o que isso quer
dizer? Acho que a palavra certa é preocupados.
- Entendi, comandante.
- Eles estão aborrecidos, nervosos, sei lá o quê, com os judaístas.
- Já ouvi falar deles, senhor.
- Eu sei que sim. O chefe deles, aquele que as Forças Pacificadoras
pensaram que tinham tirado da frente e mandado para longe, apareceu em outro
lugar... não sabemos onde, o que não deixou Carpath... o potentado... nem um
pouco feliz, se é que você entende o que estou dizendo. Este tal de Judá está
falando cada vez mais de anti-Carpath... bem, acho que é essa a palavra certa.
O sujeito está espalhando essa idéia anti-Carpathia por toda parte. Ele diz
que a Bíblia Sagrada profetiza que o anticristo... é assim que ele chama Sua
Excelência, imagine só... ...vai profanar o templo e sacrificar um porco no altar.
- Não diga!
- Digo sim. Eu não estava lá, mas meu colega contou que o potentado está
espumando de raiva. Eu diria que ele está pipocando de raiva.
- Posso imaginar.
- Eu também. Ele disse ao Reverendo uma coisa mais ou menos assim: "Ah,
sim, bem, acho que vou mostrar a eles." Você sabe que ele pronuncia bem as
palavras, não fala como eu.
- Eu sei.
- Esse Nicolae Carpathia é um gênio. Perdoe-me por chamar Sua
Excelência pelo nome. Ele vai... como posso dizer?... cumprir a profecia... aquela
da Bíblia, aquela desse tal bem-judaísta...
- Tsion Ben-Judá.
- Certo! Ele vai sacrificar, de propósito, um porco no altar do templo de
Jerusalém, sabendo o que o cara e a Bíblia estão dizendo. Vai ser um tapa na

cara daquele homem, você não acha?
- Claro. Um tapa na cara de Deus, é isso.
- Mas, para todos os efeitos, eu não sei de nada disso, você entendeu?
- Entendi. Foi seu colega que ouviu e lhe contou.
- Correto. Mas quando ele... você sabe quem... me perguntar se posso
conseguir um porco, quero dizer que não há problema. Posso dizer isso a ele?
Você vai verificar com... ah... com seu pessoal, sei lá... e eu vou conseguir um
porco para ele, certo?
- Vou fazer o que for possível, senhor.
- Eu sabia. Seu porqueira! Você é bom mesmo.
- O senhor disse isso de propósito, não disse, senhor?
- Como assim?
- Disse porqueira por causa do porco.
Hickman caiu na gargalhada e fingiu ter usado a palavra de propósito.
Depois de readquirir o controle, ele disse:
- Você sabe o que eu quero, Hassid?
- Diga.
- Quero um porco, você está preparado para...?
- Estou preparado.
- Quero um porco bem grande para que Sua Excelência possa montar nele.
- O quê!?
- Você ouviu. Quero o maior porco que você já viu na vida. Do tamanho de
um pônei. Tão grande que a gente possa colocar uma sela... você sabe o que
quero dizer.
- Acho que não, comandante.
- Estou tentando ganhar alguns pontos, você entende, diretor? Você não
precisa ganhar pontos, porque é bom no que faz. Mas eu quero sugerir à Sua
Excelência que, se ele for desafiar seus maiores inimigos e competir com as
mesmas armas deles, vai ter de provar que é o melhor.
Desafiar e competir com as mesmas armas? Annie adoraria ouvir isso.
- O melhor?

- Ele vai ter de montar naquele porco dentro do templo!
- Oh, não.
David não podia imaginar Carpathia rebaixar-se tanto a ponto de submeter-
se a um espetáculo daquele.
- Eu tenho razão, Hassid. Você lê a Bíblia?
- O senhor quer saber se eu leio a Bíblia sempre?
- Quero.
- De vez em quando.
- Não existe uma história dizendo que Jesus entrou em Jerusalém montado
num burrico e que o povo cantava e sacudia folhas de árvore?
- Eu sou judeu.
- Então, você não lê o Novo Testamento. Bem, existe essa história, tenho
certeza. Imagine Sua Excelência se divertindo com aquilo tudo. Montado num
porco com pessoas em volta, pagas para cantar e sacudir folhas de árvores.
Senhor Deus, por favor!
- Não posso imaginar.
- Eu posso dar essa idéia, não posso, Hassid?
- Pode, senhor.
- Ei, está na hora da reunião. Consiga o porco para mim, está bem? Vou
dizer a ele que foi o melhor que encontramos.
- Aguarde notícias minhas.
Quando David estava saindo da sala, Hickman o chamou.
- Eu me esqueci de uma coisa - ele disse virando mais algumas páginas do
bloco. - É sobre uma moça dos Serviços Médicos, uma enfermeira. Aqui está. Ela
foi veterinária ou coisa parecida e já injetou biochips em cães e gatos.
- Não diga.
- É melhor você ver se podemos aproveitar os conhecimentos dela. Essa
moça pode ensinar os outros a fazer isso.
- Vou verificar. Como é o nome dela?
- Não tenho anotado aqui, Hassid. É um nome meio engraçado. Você vai
encontrar a tal moça.

- Vou perguntar por uma enfermeira que tem um nome engraçado, senhor.
DOZE

Rayford não conseguia dormir. Depois de percorrer vários andares do
imenso e sombrio Edifício Strong, ele passou pelo quarto de Chaim. A porta
estava escancarada, e, apesar da escuridão, Rayford notou o vulto do ancião.
Chaim estava sentado, imóvel, na cama. Ele devia ter ouvido e visto Rayford no
corredor. Rayford espiou dentro do quarto.
- Tudo bem, Dr. Rosenzweig?
Um suspiro forte passou por entre os dentes amarrados.
- Eu não sei, meu amigo.
- Quer conversar?
Uma risadinha.
- Você conhece minha cultura. Nós gostamos de conversar. Se tiver tempo,
entre. Seja bem-vindo.
Rayford puxou uma cadeira e sentou-se, no escuro, de frente para Chaim. O
botânico parecia não ter pressa nenhuma. Finalmente, ele disse:
- A moça vai tirar o fio de arame amanhã. O nome dela é Leah. Não venha
me dizer que está preocupado com isso.
- Não vejo a hora de livrar-me desse fio.
- Mas você está pensando em outra coisa.
Chaim voltou a mergulhar em silêncio. Em seguida, sua respiração tornou-
se ofegante, e ele encostou a cabeça no travesseiro, soluçando alto. Rayford
puxou a cadeira para perto da cama e colocou a mão no ombro de Chaim.
- Vamos conversar.
- Eu sofri muitas perdas! - choramingou Chaim. Rayford tinha dificuldade
para entender o que ele dizia. - Minha família! Meus empregados! Tudo por
minha culpa!

- A culpa não é mais sua. Agora é Carpathia quem domina tudo.
- Eu era tão orgulhoso! Tão cético! Tsion, Cameron, Chloe, você e as outras
pessoas que gostam de mim me alertaram, tentaram persuadir-me. Mas de que
adiantou? Eu era um intelectual. Sabia mais que os outros!
- Você aceitou ao Senhor, Chaim. Não devemos viver do passado. Todas as
coisas se tornaram novas.
- Mas veja onde eu estava algum tempo atrás! Tsion está feliz apesar de
tudo, tão feliz por mim, sempre me incentivando. Eu não tenho coragem de dizer
a ele o que estou pensando.
- E o que é?
- Sou culpado, capitão Steele! Eu poderia seguir seus conselhos, deixar o
passado para trás, se tivesse de lidar apenas com meu orgulho e ignorância.
Mas isso me fez passar por um sofrimento que nunca imaginei. Meus amigos
mais queridos e mais leais estão mortos por minha causa. Trucidados em minha
casa!
Rayford tentou não dizer frases feitas.
- Todos nós perdemos muita coisa - ele murmurou. - Eu perdi duas esposas
e um filho, muitos amigos... tantos, que se pensar nisso vou enlouquecer.
Chaim voltou a sentar-se e enxugou o rosto com as duas mãos.
- Este é o meu problema, Rayford. Quase enlouqueci de sofrimento, mas a
maior parte foi por remorso. Eu matei um homem! Sei que ele é o anticristo e que
estava destinado a morrer e a ressuscitar, mas eu não sabia disso quando
cometi o crime. Assassinei um homem que traiu meu país e a mim. Sou um
assassino! Pense nisso! Eu era um respeitado estadista e, mesmo assim, desci
até o ponto de assassinar alguém.
- Sua raiva é compreensível, Chaim. Eu queria matar Carpathia e sabia
exatamente quem ele era e que não ficaria morto por muito tempo.
- Mas eu premeditei tudo, capitão, planejei com meses de antecedência.
Inventei e fabriquei a arma, simulei um derrame só para aproximar-me dele sem
levantar suspeitas e realizei o trabalho exatamente como havia imaginado. Sou
um criminoso.

Rayford inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos nos Joelhos,
segurando a cabeça com as duas mãos.
- Você sabe que quase fiz o trabalho em seu lugar?
- Não estou entendendo.
- Você ouviu um disparo antes de atacar Carpathia.
- Sim.
- Partiu da minha arma.
- Não acredito.
Rayford contou a história da raiva que sentia, da mudança em sua
personalidade, do esquema montado, da compra da arma, de sua determinação
de realizar a tarefa. Chaim sacudia a cabeça sem parar. Não posso acreditar que
duas pessoas que se atreveram a atacar Nicolae se encontram agora no mesmo
cômodo. Mas você não matou ninguém. Eu matei com gosto e, até o momento
de perceber que necessitava de Deus, me sentia feliz por isso. Agora sofro de
remorso e vergonha, e o sofrimento é tanto que mal posso respirar.
- Você não encontra consolo em saber que este era o seu destino e que
você não pode ser culpado de assassinar um homem que está vivo?
- Consolo? Eu daria tudo o que possuo em troca de um momento de paz. O
problema não é quem eu matei, Rayford. É que eu matei. Eu desconhecia a
profundeza de minha maldade.
- E, apesar de tudo, Deus o salvou.
- Diga-me uma coisa. É possível a um ser humano sentir-se perdoado?
- Boa pergunta. Eu enfrento o mesmo dilema. Tenho plena confiança no
poder de Deus para perdoar e esquecer, de nos separar de nossos pecados
assim como o Oriente dista do Ocidente. Mas também sou humano. Eu não
esqueço e, por conseguinte, não me beneficio do perdão que Deus estende a
nós. O fato de nos sentirmos culpados não significa que Deus não tenha o poder
de nos absolver.
- Mas Tsion me disse que tenho uma grande missão pela frente, que posso
ser um daqueles que serão usados para conduzir meus compatriotas crentes a
lugar seguro, longe do anticristo. Como ele pode dizer essas coisas e como

posso fazer isso, se me sinto tão desolado?
Rayford levantou-se.
- Talvez a falácia esteja em pensar que você é quem vai conduzir o seu
povo.
- Eu gostaria muito de tirar esse peso das minhas costas, mas, conforme
Tsion diz, que outra pessoa seria? Ele próprio não pode arriscar-se.
- Estou dizendo que se trata de algo que Deus vai fazer por seu intermédio.
- Mas quem sou eu? Um cientista. Não sou eloqüente. Não conheço a
Palavra de Deus. Mal conheço a Deus. Até alguns dias atrás eu não era sequer
um judeu praticante.
- Mas quando criança você deve ter lido a Torá.
- Claro.
- Se Tsion tiver razão, porque nem mesmo ele tem certeza, essa poderá ser
a sua experiência da sarça ardente.
- Eu não sou Moisés.
- Você está disposto a permitir que Deus o use? Se Tsion estiver certo e
você fizer o que ele acha, você vai ser o Moisés da atualidade.
-Ora!
- Você poderia ser usado por Deus para fugir do governante maligno e levar
seu povo a um lugar seguro.
Chaim gemeu e deitou-se novamente.
- Moisés defendeu a mesma causa que você está defendendo - disse
Rayford. - A pergunta é se você está disposto.
- Eu sei.
- Você tem razão. Foi corrompido. Todos nós fomos até que Cristo nos
salvou. Deus pode fazer de sua vida um milagre.
Chaim resmungou alguma coisa.
- Como? - perguntou Rayford.
- Eu disse que quero estar disposto. Estou disposto a estar disposto.
- Já é um bom começo.
- Mas Deus vai ter de me modificar.

- Ele já o modificou.
- Ele precisa modificar mais. Aceitar essa missão é o mesmo que concordar
em sair voando por aí. A pessoa que aceitar essa missão deve ter consciência
limpa, confiança que só pode vir de Deus, e facilidade de comunicação muito
maior do que a minha. Eu era capaz de fazer um belo discurso na sala de aula,
mas falar a milhares de pessoas como Tsion tem feito, opor-se publicamente ao
anticristo, reunir o povo para fazer o que é certo? Eu não sei. Não tenho esse
dom.
- Mas você está disposto a confiar que Deus vai fazer a parte dele?
- Ele é a minha única esperança. Estou no limite de minhas forças.
Ao meio-dia em ponto em Nova Babilônia, horário de Carpathia, David saiu
do palácio pela primeira vez depois de dias. Os pontos de sua cabeça seriam
retirados às 14 horas, e ele aguardava com ansiedade o momento de voltar a ver
Hannah Palemoon, mesmo que fosse em uma sala esterilizada onde eles não
poderiam conversar à vontade.
O calor fez David lembrar-se do dia da ressurreição de Nicolae. Para ele,
era penoso demais caminhar por aquele palácio suntuoso sem Annie. Seu
sofrimento era recente demais, e sua dor tão profunda que o ferimento na cabeça
passou para o segundo plano. Hannah lhe dissera que a retirada das ataduras
seria mais dolorida que a retirada dos pontos. O quepe protegia o ferimento do
sol, mas o corpo de David começou a transpirar dentro do uniforme, e as
lembranças do trauma afloraram-lhe à mente.
A morte de grande parte da população mundial teve reflexos na força de
trabalho da sede da CG. O local, que antes se assemelhava a uma agitada
metrópole, agora não passava de uma estrutura vazia. O grande número de
funcionários entusiasmados, correndo apressados de um lado para o outro,
reduziu-se a alguns turistas e peregrinos, que esticavam o pescoço na tentativa
de ver alguma pessoa famosa.
David avistou, ao longe, um grupo de visitantes aglomerados ao redor de um

dos monitores externos de TV que transmitiam notícias da CG 24 horas por dia.
Ele caminhou lentamente até lá e postou-se atrás do grupo, sem ser notado. O
Reverendíssimo do Carpathianismo, Leon Fortunato, falava ao povo diretamente
de seu novo escritório.
David sacudiu a cabeça. Leon estava em pé diante de uma tribuna,
semelhante a um púlpito, e sua altura parecia ter mudado. Leon, um homem de
porte robusto, tez morena, medindo cerca de 1,80 m de altura, usava um manto
longo vermelho-escuro e azul, que lhe dava uma aparência pomposa. Quando o
falecido Peter Mathews postara-se diante da mesma tribuna, trajando um manto
espalhafatoso e impróprio para a ocasião, a impressão foi de que ele era mais
baixo que Leon, apesar de ter bem mais de 1,80 m. Leon devia estar em cima de
alguma caixa ou plataforma!
Ele lia um relatório sobre a competição mundial entre as legiões para
construir as réplicas da estátua de Carpathia. Evidentemente, os Estados Unidos
Carpathianos venceram com muitos pontos de vantagem, mas o restante das
regiões competiam pelo segundo lugar.
O relatório continha informações do mundo inteiro, mostrando quantas
comunidades haviam tentado produzir uma versão inédita da estátua. Os
regulamentos estipulavam que as réplicas precisavam ter, no mínimo, a altura de
um homem e ser monocromáticas. Nenhuma poderia ser do tamanho da original.
Com exceção desses requisitos, os comitês locais teriam liberdade para pôr em
prática sua criatividade. A maioria das estátuas era negra, porém havia muitas
douradas, algumas de cristal ou de fibra de vidro, uma verde, uma de cor
alaranjada, e várias com o dobro da altura de um homem (ou metade da altura
da estátua original). Fortunato demonstrou estar satisfeito com estas últimas e
anunciou planos para visitar os locais.
"No interesse de prestarmos amplas informações sobre os fatos, recaiu
sobre mim a tarefa de informar que Israel possui várias réplicas da estátua em
cidades tão improváveis como Haifa e Tel-Aviv, ao passo que Jerusalém ainda
não construiu a sua." Leon abaixou o tom da voz e passou a ser mais solene.
"Falando sob a autoridade do potentado ressurreto, digo que malditos são os

inimigos do senhor deste mundo que ousam enfrentar o altíssimo! Tomem
cuidado com eles!"
Nesse ponto, Leon tornou-se paternal, como se fosse um parente querido
lendo uma história para uma criança dormir. "Embora eu tenha recebido poderes
do alto para realizar todos os milagres que nosso mui amado líder realiza,
embora eu tenha comprovado esse poder quando invoquei fogo do céu para
destruir os desleais, afirmo que o senhor de todos vocês, Sua Excelência, é a
personificação do amor, do perdão e da longanimidade. O Supremo Potentado
pediu-me que anunciasse que ele tem seguidores devotos na capital da Terra
Santa. Mesmo tendo opinião contrária à dele, submeto-me à sua divina
sabedoria. O líder espiritual deles não esquecerá aqueles leais peregrinos, que
sofrem sob a insanidade e subversão justamente das pessoas incumbidas de
cuidarem da saúde espiritual de suas almas.
"Daqui a uma semana, o objeto de nossa adoração visitará seus filhos em
Jerusalém. Ele estará lá não apenas para enfrentar seus opositores, mas
também para abençoar e aceitar a adoração e o louvor dos cidadãos que não
têm a quem clamar, porque, além de ser um deus amoroso, ele é um deus justo.
"Como pastor de todos vocês, exorto ao número incontável de
carpathianistas oprimidos de Jerusalém, vivendo sob o domínio de rebeldes
insensatos, que demonstrem corajosamente seu apoio ao único digno de toda a
honra e glória quando ele chegar a essa cidade. Que sua entrada seja triunfal,
que ele seja recebido com uma honra sem precedentes. Desejo, em nome dele,
garantir-lhes proteção e segurança contra qualquer forma de retaliação que
vocês possam sofrer por terem agido corretamente ao enfrentar essa poderosa
oposição.
"Sabemos que existe uma liderança naquela cidade composta de um
pequeno número de judaístas e judeus ortodoxos, que se expõem à vingança de
nosso deus por persistirem nessa insanidade suicida. Se eles não enxergarem o
erro que estão cometendo e não se ajoelharem diante de seu senhor para
suplicar perdão, uma nova liderança será instalada naquela importante cidade
antes da partida de Sua Excelência.

"E para aqueles que afirmaram que o potentado não tem permissão para
entrar no templo, eu digo que não se atrevam a enfrentar os guerreiros do senhor
dos exércitos. Ele é um deus de paz e reconciliação, mas vocês não podem ter
outros deuses diante dele. Não será permitida a construção ou funcionamento de
casas de adoração em nenhum lugar deste planeta, a não ser que reconheçam
Sua Excelência como único objeto de devoção. Nicolae Carpathia, o potentado,
ressuscitou!"
O povo diante do monitor de TV gritou a costumeira resposta. David disse
silenciosamente:
- Jesus Cristo ressuscitou verdadeiramente.
Fortunato lembrou ao mundo que, dentro de dois dias, todas as estátuas
deveriam estar terminadas e prontas para ser adoradas.
"E, conforme vocês já sabem, as cem primeiras cidades que tiverem suas
estátuas aprovadas serão as primeiras a ter o privilégio de receber os centros de
aplicação da marca da lealdade."
Leon pediu a seus assessores que trouxessem um quadro em branco para
poder escrever e ilustrar seu discurso. David notou que, diante de seus
assessores, ele parecia ter mais de dois metros de altura. Fortunato usou uma
varinha para mostrar o desenho de um centro-padrão de aplicação da marca.
O centro continha um local espaçoso, onde milhares de pessoas por vez
seriam reunidas e separadas por cordões de isolamento. Ali elas assistiriam aos
discursos de Carpathia e Fortunato gravados em videoteipe.
Enquanto Fortunato falava, a cada quatro minutos era exibido um replay
mostrando o momento em que ele invocou fogo do céu sobre os dissidentes e o
momento da ressurreição de Carpathia. Fortunato fez uma pausa para deixar a
fita rodar, e David desviou o olhar. Os turistas aplaudiam.
Fortunato voltou a concentrar-se no seu esquema. Os cidadãos seriam
conduzidos a uma ou duas dúzias de cabinas ao ar livre - o número dependeria
do tamanho da cidade -, onde teriam de escolher o desenho e o tamanho da
marca e se ela seria aplicada na testa ou no dorso da mão direita.
"Um lembrete amigo", disse Fortunato com um sorriso irônico. "Se vocês

retardarem a decisão ou se esquecerem por causa da euforia do momento, será
aplicado em sua mão direita o prefixo que identifica sua região, perto da pequena
cicatriz provocada pela injeção do biochip.
"Temos sido constantemente interpelados sobre a possibilidade de
falsificação da marca. Apesar de ser impossível distinguir a marca falsa da
verdadeira, a não ser por pessoas altamente treinadas, os scanners dos biochips
não poderão ser enganados. Temos tanta confiança de que essa tecnologia é
100% segura que qualquer pessoa que for barrada pelo scanner será executada,
sem direito a apelação. Para comprar e vender, todos precisarão ter,
obrigatoriamente, um biochip implantado sob a pele para ser lido pelo scanner.
"E, sim, teremos instrumentos de imposição à lealdade em todos os centros
de aplicação da marca."
Para espanto de David, essa afirmação foi ilustrada com uma enorme e
reluzente guilhotina.
Fortunato deu uma gostosa gargalhada e disse: "Acho que nenhum cidadão
da Comunidade Global vai ter medo desse instrumento, a menos que ele
continue envolvido no culto dos judaístas ou dos judeus ortodoxos. Francamente,
somente os cegos ou aqueles que não tiveram acesso à TV foram impedidos de
presenciar a ressurreição de nosso deus e governante, portanto creio que não
mais existem céticos fora dos limites da cidade de Jerusalém. Bem, conforme
vocês podem ver", e ele riu novamente, "eles não vão durar muito tempo."
Em seguida, Fortunato pegou uma pilha enorme de cartas. "Aqui estão,
meus amigos, os pedidos daqueles que desejam ser os primeiros a mostrar
lealdade à Sua Excelência. Eles sentiriam orgulho de ter sua marca aplicada aqui
em Nova Babilônia. Cidadãos de qualquer lugar do mundo poderão receber a
marca aqui, mas o código numérico coincidirá com o de sua região. Esse
privilégio será concedido a um número limitado de pessoas, portanto
apresentem-se rapidamente ou terão de receber a marca nos centros de suas
respectivas cidades.
"A aplicação é dolorida? Não. Em razão da tecnologia avançada e da
eficiência da anestesia local, vocês só sentirão a pressão do injetor do biochip. O

efeito da anestesia durará até que todo o desconforto tenha passado.
"Eu os abençôo, meus amigos, em nome de nosso senhor e mestre
ressurreto, Sua Excelência, o Potentado, Nicolae Carpathia."
Rayford estava sonolento quando retornou a seu quarto, mas não conseguia
dormir. Passou uma hora ruminando tarefas para o Comando Tribulação.
Finalmente, concluiu que Albie e Buck deveriam viajar para a Grécia. Ele
precisaria ficar para manter o ânimo do grupo, e Buck precisaria conhecer de
perto o regime de Carpathia.
Depois de tomar essa decisão, Rayford entregou-se ao sono, planejando
pedir a Zeke que providenciasse uma nova carteira de identidade para Buck
naquela manhã. De seu posto em Nova Babilônia, David se encarregaria de
facilitar o caminho para Albie e Buck.
David informou o chefe dos Serviços de Alimentação que o supremo
comandante Hickman necessitava do maior porco vivo que existia. O animal
deveria estar disponível para a visita de Carpathia a Israel. Em seguida, ele
passou por seu escritório e ligou o computador para verificar se havia alguma
novidade antes de seu encontro com Hannah. Havia um e-mail urgente de Ming
Toy:
"Eu não sei mais a quem recorrer. Fiquei muito abalada com a notícia sobre
a perda de uma pessoa tão querida para você e estou orando para que Deus lhe
dê forças. Eu posso imaginar seu sofrimento. Diretor Hassid, você foi visto por
alguém de minha família desde que parti daí? Até a última vez que conversei
com eles, ninguém tinha notícias suas. Estou muito preocupada. Eles
conseguiram acomodações de graça até Chang ser registrado como empregado
da CG, e meu pai não cabe em si de tanta emoção. Minha mãe continua calada
como sempre, mas Chang me disse que está desesperado. Ele não quer
trabalhar para a CG de jeito nenhum, apesar da insistência de meu pai. Ter um

filho trabalhando para Carpathia é a maior honra que meu pai imaginaria receber.
"Chang ouviu dizer que todos os empregados receberão a marca dentro de
algumas semanas, mas corre um boato de que os empregados contratados
durante esse período serão os primeiros da fila. Você sabe alguma coisa sobre
isso? É verdade? Para essa gente, faz sentido. Por que eles haveriam de
contratar alguém sem saber antes se a pessoa é leal? Assim, ela não vai perder
tempo na fila para receber a marca.
"Meu pai insiste para que Chang entregue seus documentos ao
Departamento de Pessoal imediatamente e está ansioso por ver o filho entre os
primeiros da fila para receber a marca. E ele vai ficar mais feliz ainda se puder
presenciar esse momento. Chang está pronto para contar a meu pai que é crente
em Jesus e ser acusado de judaísta, mas ele tem medo de duas coisas.
Primeira, que meu pai o denuncie. Segunda, que meu pai exija que ele conte a
verdade sobre mim. Confie em mim, diretor Hassid; eu conheço meu pai. Ele
venderia os dois filhos para provar sua lealdade a Carpathia e à CG.
"Estou pedindo insistentemente a meu irmão que não admita nada a meu
pai, mas não sei por quanto tempo ele vai agüentar. A única coisa que pode
impedir meu irmão de trabalhar lá é fugir ou contar a verdade a meu pai. Você
tem meios de me ajudar? Sinto muito incomodá-lo durante essa fase terrível que
você está atravessando.
"Tenha certeza de que estou orando por você. Acho que você já sabe, mas
Leah me contou que seus companheiros na casa secreta estão orando por você
diariamente.
"Apresento-lhe meus respeitos e admiração. Sua irmã em Cristo, Ming Toy."
David ligou para o Departamento de Pessoal.
- Vocês podem me fornecer os dados sobre um tal de Chang Wong?
- Sim, senhor. Excelente currículo. Indicado publicamente por Carpathia,
pelo menos é o que a chefia diz. Muito inteligente. Ele vai trabalhar aqui assim
que cuidarmos de toda a sua documentação. A única pergunta é onde. Acho que
o senhor vai querer que ele trabalhe em seu departamento. Todos querem.
- Ainda não sei ao certo. É apenas uma suposição.

- O melhor lugar para ele seria em seu departamento. O senhor não vai
querer abrir mão desse rapaz, vai?
- É cedo demais para dizer, mas eu não sigo a cabeça dos outros. Não é
porque todos querem esse rapaz que vou ficar desesperado para aceitá-lo em
meu departamento.
- Isso é verdade. Mas ele seria uma mão na roda.
- O que mais vocês sabem sobre ele?
- Nada. Ele devia ter aparecido aqui ontem. Está escrito aqui. Assim que ele
apresentar os documentos e preencher o formulário de pedido de emprego,
vamos fazer-lhe uma oferta.
- E se ele aceitar?
- Será admitido.
- Ele não concluiu o Segundo Grau.
- Temos professores particulares aqui, mas ele tem capacidade até para dar
aulas no curso secundário.
- Quando ele vai começar?
- Daqui a alguns dias. Se houver alguma demora, será por causa do novo
regulamento. Você está sabendo, não?
- Não.
- Deve estar entre seus e-mails.
David não queria demonstrar ansiedade.
- Vou procurar. Obrigado.
- Você quer o rapaz se nós o contratarmos?
David tinha de raciocinar rápido. Se ele o aceitasse em seu departamento e
depois fugisse na companhia dos outros, o rapaz seria visto como inimigo do
Estado. Porém, se a fuga parecesse um acidente, não haveria suspeitas sobre
Chang ou sobre qualquer outra pessoa ligada a eles. Por outro lado, se a marca
fosse um pré-requisito para a contratação, o assunto poderia ser discutido. O
rapaz recusaria, o pai o obrigaria a aceitar, e fim da história. David não levantaria
suspeitas por querer o rapaz como seu funcionário nem por passar tempo ao
lado dele.

- Posso ter uma conversa preliminar com ele?
- Uma entrevista? Hum. Não faz parte do protocolo, mas não vejo mal
nenhum.
- Onde ele está morando?
- Quatro-zero-cinco-quatro.
Pertinho de Hannah. Será que ela sabe?
- Obrigado.
David dirigiu-se apressado ao hospital. Hannah cumprimentou-o
profissionalmente e fez as perguntas rotineiras sobre hemorragia, desconforto e
dor. Em seguida, pediu que ele a acompanhasse até uma sala reservada para
retirar os pontos.
- Você parece bem de saúde, mas um pouco perturbado - ela disse,
aplicando uma solução anti-séptica em sua cabeça que ensopou a atadura.
- Não sei por que razão - ele resmungou.
- Sarcasmo? Lembre-se, estou do seu lado.
- Você sabia que os Wongs estão morando em seu andar?
- Quem são os Wongs?
David deu um tapa na testa.
- Não faça assim - ela disse. - O local está esterilizado. Feche os olhos. -
David obedeceu, e ela aplicou novamente a solução anti-séptica. - E então, quem
são os Wongs?
David contou-lhe a história da família Wong.
- O que você vai fazer? - ela perguntou.
- Instalar um "grampo" no quarto deles.
- Você pode fazer isso?
- Posso fazer qualquer coisa.
- Estou começando a achar que sim. Mas como?
- Eu vou lhe contar, mas aí...
- Ah, sim, eu sei, você teria de me matar. - Ela pareceu constrangida por ter
dito essas palavras a alguém que acabara de perder a noiva. - Sinto muito - ela
murmurou.

- A culpa foi minha. Fui eu que comecei.
Ela empurrou levemente a atadura, provocando lágrimas de dor nos olhos
dele.
- Tenha um pouco de paciência - ela disse, despejando mais líquido.
- Essa solução não deveria facilitar a retirada da atadura?
- É o que dizemos a nós mesmas. Felizmente você caiu nas mãos de um
ótimo cirurgião. Ah, sim, e também nas minhas mãos. Cortei uma boa quantidade
de cabelo. Nesta parte há somente couro cabeludo, ferimento e pontos. Imagine
se também houvesse cabelos.
- Nem quero pensar nisso.
- Pense em outra coisa. Vou tentar ser mais rápida.
- Você não pode arrancar de uma só vez?
- Não, por causa dos pontos. Há um jeito certo de retirá-los. Se eu puxar os
pontos com a atadura, você vai subir até o teto de dor. Tente pensar em outra
coisa.
- Por exemplo?
Ela parou e colocou as mãos na cintura, tomando cuidado para não tocar
em nada com as mãos enluvadas.
- David, eu mal o conheço. Como posso saber em que você deve pensar?
Ele encolheu os ombros.
- Pense em sua liberdade - ela disse. - Pense em ir embora daqui para
sempre.
- Você chama isso de liberdade? É uma outra forma de prisão.
- Tenho pensado muito nisso - ela disse. - Deve ser menos estressante,
você não acha?
- Diferente, talvez. Ai!
- Desculpe-me. Seja forte. Fale mais.
- Bem, não vamos ter de nos preocupar se alguém estará nos vigiando ou
ouvindo nossa conversa, ou se os e-mails e telefones sigilosos foram
grampeados. Não vamos ter de nos preocupar em sermos descobertos e que
nos obriguem a nos enforcarmos, nem de, antes de morrer, acabar pondo em

risco a vida de outras pessoas.
- É nisso que estou pensando - ela disse.
- Mas nunca mais seremos livres. Seremos fugitivos.
- Então, você já desistiu de minha idéia.
- Não, por quê? Eu passei a missão para Mac e Abdullah.
- Se der certo, ninguém vai desconfiar de nós. Conseguimos novas carteiras
de identidade, mudamos de cara e começamos tudo novamente.
- Mas sem a marca da lealdade.
Ela hesitou.
- Bem, sim, isso mesmo. Agüente firme. Vamos lá.
Ela segurou diante dos olhos dele a longa atadura presa na ponta de uma
tesoura cirúrgica. Além da solução anti-séptica, ela continha sangue, resíduos do
ferimento, dois grampos de metal e vários pontos.
- Vou lhe fazer uma pergunta - ele disse. - É meio fora de propósito.
- Você não deveria dizer posso lhe fazer uma pergunta?
- Ah, lá vem você com demonstrações de sua cultura e educação.
- Desculpe-me. É uma doença incurável.
- Acho que vamos precisar de um professor de gramática na casa secreta
quando Tsion e Buck estiverem ausentes. Mas, voltando à minha pergunta, por
que as enfermeiras querem que a gente veja a atadura? Estou falando dessa
coisa feia.
- Feia? - Ela passou a imitar voz de criança. - O menininho não gosta de ver
esta coisa feia?
- Os médicos e as enfermeiras sempre fazem o que você acabou de fazer.
Não seria melhor retirar a atadura e atirá-la no lixo? Vocês acham que, se não
mostrarem, a gente não vai pagar?
Ela encolheu os ombros.
- Vocês devem adorar essa coisa - ele disse. - É só o que eu posso pensar.
A propósito, você nunca me disse nada sobre os grampos de metal.
- Você acabou de responder à sua pergunta.
- Não entendi.

- Eu lhe mostrei a atadura para que você soubesse o que vai acontecer em
seguida. Os pontos são separados, só saem um por um. Não se trata de um
daqueles casos em que eu corto ou desamarro os fios e você sente uma espécie
de cócegas quando eles se soltam. Não vai doer, mas há vários pontos. E há
dois grampos de metal que precisam ficar no lugar até que os pontos se soltem
para que o ferimento não abra. Quando os pontos se soltarem, vou saber se a
cicatriz pode suportar o grande cérebro que você tem. Depois, vou ter de enfiar
um cortador de arame embaixo de cada um daqueles grampos de metal.
- Você está brincando.
- De jeito nenhum. Vou cortar o grampo...
- Que dor!
- Se você não se mexer, não vai doer.
- É você que não deve se mexer.
- Eu sou boa nisso. Prometo. Depois, vou segurar as extremidades de cada
grampo e entortá-lo lentamente para fora.
- Vai doer.
Ela hesitou.
- Eu preciso que você diga "Não vai doer" e pronto.
- Tenho de admitir que você vai sentir uma dorzinha. Se os grampos
penetraram fundo, a retirada vai ser mais difícil.
- A retirada vai ser mais difícil? Você deveria trabalhar na diretoria.
- O que eu deveria dizer? Um grampo grande e feio remove mais tecido do
que um simples pontinho. Se uma parte do tecido ficar grudada no metal, você
vai sentir quando ela for arrancada.
- Não gostei dessa última parte.
- Que choradeira! Não vai nem sangrar. E se eu achar que ainda é cedo
para retirar os grampos e que isso vai causar algum trauma, deixo para mais
tarde.
- Faça já o que tem de ser feito. Falo sério, Hannah. Quero me livrar disso
agora.
- Você não quer voltar aqui para conversar comigo?

- Não é nada disso.
- Está bem - ela disse, sentindo-se ofendida. - Eu entendo. Não conheço
nenhum outro crente por aqui, mas está tudo bem. Vou ficar sofrendo sozinha
aqui.
- Vamos logo com isso.
- Só se você ficar de boca fechada. Pense em outra coisa.
- Você pode falar enquanto trabalha?
- Claro. Eu já lhe disse que sou boa nisso.
- Então, me conte sua história enquanto trabalha.
- Minha história vai demorar muito mais que a retirada de tudo isso aqui,
David.
Então, faça o seu trabalho bem devagar.
- Agora, sim! Até que enfim você disse uma coisa boa.
TREZE

A história de Hannah Palemoon desviou a mente de David da tarefa que ela
executava naquele momento. E ela trabalhou sem pressa, fazendo uma pausa
entre a retirada de um ponto e outro. Mostrou-lhe o primeiro ponto retirado só
para enervá-lo, mas parou ao ver o olhar severo de David.
Ela foi criada em uma reserva indígena Cherokee, um local que agora fazia
parte dos Estados Unidos Norte-americanos.
- Você não imagina os enganos que foram cometidos a respeito dos índios
norte-americanos - ela disse.
- Nunca estive nos Estados Unidos, mesmo quando eram conhecidos como
Estados Unidos da América. Mas li a respeito. Vocês foram chamados de índios
por causa de um erro de Colombo.
- Exatamente. Ele pensou que estivesse na Índia Ocidental e que nós
devíamos ser índios. E o nome pegou. Agora é índio para cá, indígena para lá.

Tribos indígenas. Caubóis e índios. Nação indígena. Reserva indígena. Problema
Indígena. Índios norte-americanos. Gosto mais desse último. E quem nunca
visitou uma reserva indígena achava que morávamos em ocas.
- Era o que eu pensava - disse David. - Vi fotografias.
- São fotografias tiradas de locais turísticos. Os turistas queriam conhecer a
antiga cultura nativa dos Estados Unidos. E nós gostávamos de mostrar.
Vestíamos roupas típicas, dançávamos, vendíamos coisas que eles gostam,
feitas de pedras coloridas. Eles não queriam conhecer nossas casas verdadeiras.
- Que não eram ocas, acho.
- Eram iguais às casas de gente que vive na pobreza. Várias famílias
morando juntas, casas minúsculas, trailers. E os turistas não estavam
interessados em saber que meu pai era mecânico e que minha mãe trabalhava
no escritório de uma empresa de encanamentos. Preferiam acreditar que éramos
baderneiros, bêbados ou que trabalhávamos em cassinos.
- Seus pais não faziam isso, certo?
- Minha mãe gostava de apostar nessas máquinas caça-níqueis. Meu pai
perdeu o salário inteiro em uma só noite jogando carteado.
- E você era veterinária.
- Assistente de veterinário, só isso. Meu tio, irmão de minha mãe, aprendeu
a profissão sozinho. Lá, não era necessário ser licenciado ou ter diploma como
em outros lugares, a não ser que aparecesse algum animal de fora para ser
tratado, o que nunca acontecia. Ele também não fazia feitiçaria. Os turistas
perguntavam se ele sabia dançar e cantar para ressuscitar animais de
estimação. Meu tio gostava de ler, lia tudo o que encontrava sobre como tratar de
animais, porque ele amava os bichos e havia muitos por lá.
- Você não quis ser veterinária?
- Não. Li todos os livros sobre Clara Barton e Florence Nightingale. Fui boa
aluna, principalmente em ciências, e uma professora me incentivou a aproveitar
as oportunidades que eram oferecidas aos nativos norte-americanos nas
universidades do governo. Fui para o Arizona e lá fiquei. Enfrentei muitos
problemas por não ter nascido naquele estado, mas eu queria distância da

reserva.
- Por quê?
- Não era por vergonha ou coisa parecida. Eu achava que teria mais
oportunidades fora de lá. E tive.
- Onde você ouviu falar de Deus?
- Em todos os lugares. Havia cristãos na reserva. Não freqüentávamos
igreja, mas conhecíamos muita gente que freqüentava. Aquela professora
costumava conversar comigo sobre Jesus. Eu não estava interessada. Ela usava
muito a palavra "doutrinar", e aquilo parecia estranho demais para mim. Depois,
ouvi falar de Jesus na universidade, em toda parte. A gente era doutrinada até na
sala de aula.
- Você nunca ficou curiosa?
- Não a ponto de freqüentar as reuniões. Eu tinha medo de passar a fazer
parte de alguma seita ou algo do gênero. A coisa mais importante que aquela
gente dizia era que devíamos admitir que todos nós éramos pecadores e que
ninguém podia fazer nada quanto a isso. Para dizer a verdade, naquela época eu
não me sentia uma pecadora.
- Eles usaram o método errado com você.
- Não foi culpa deles. Eu era pecadora, claro. Só que não conseguia
enxergar isso.
- E quando você conseguiu enxergar?
- Quando eu soube quem havia desaparecido, fiquei maluca. Conhecidos
meus que freqüentavam igreja. Cristãos da universidade. Minha professora do
Segundo Grau.
- Você deve ter suspeitado de alguma coisa.
- Suspeitado? Eu sabia. O povo estava dizendo que havia sido obra de
Deus, e eu acreditei. E como o odiei por isso. Fiquei pensando na sinceridade e
dedicação daquelas pessoas que se preocupavam tanto comigo a ponto de me
dizer coisas que me faziam pensar que elas eram esquisitas demais. Eu não
queria nada com um Deus que as levou embora e me deixou sozinha aqui. Eu
queria um herói, alguém em quem acreditar, mas não Ele. Foi então que vi e ouvi

as notícias sobre Carpathia. A Bíblia diz que muitos são os enganados, não é
mesmo? Eu era a primeira da lista. Engoli tudo o que ele disse. Fiquei sabendo
que ele precisava de pessoas da área médica e peguei o primeiro vôo para Nova
York. Eu não sabia que ia morar neste lindo deserto abandonado por Deus, mas
continuava leal a Carpathia.
- Comecei a desconfiar daquele homem quando percebi que ele agia como
um político, tentando suavizar as coisas. Ele nunca demonstrou tristeza diante de
todo aquele caos e da perda de tantas vidas humanas. Não concordei quando
ele disse que Deus não poderia ser responsabilizado pelos desaparecimentos
porque um Deus amoroso não teria feito aquilo. Eu acreditava que Deus tinha
feito aquilo, o que provava que Ele não era tão amoroso assim.
Hannah terminou de retirar os pontos, livrou-se das luvas de borracha e as
atirou no lixo, lavou e enxugou as mãos e calçou outro par de luvas. Em seguida,
sentou-se em um banquinho perto de David.
- Ainda tenho de retirar os grampos de metal, mas vamos fazer uma pausa.
- Alguém a conduziu até Deus. Estou morrendo de curiosidade para saber
se você conheceu outro crente aqui.
- Eu só fiquei sabendo que havia outro crente aqui quando vi o selo em sua
testa, enquanto você estava desmaiado no chão. Esfreguei sua testa com força e
quase pulei de alegria quando vi que o selo era verdadeiro. Eu não podia ver o
meu e nunca tinha visto o de outra pessoa. Só sabia porque li a respeito.
- Onde?
- Você se lembra de quando nos disseram que era proibido visitar o site de
Tsion Ben-Judá?
- Claro.
- Foi o que bastou. Eu entrei naquele site. Tudo era grego para mim. Só
entendi depois que ele falou do terremoto. Primeiro, porque o terremoto
aconteceu. Segundo, porque nossa reserva inteira foi engolida. Perdi minha
família inteira. Mãe, pai, dois irmãos menores, parentes. Aposto que foi o único
lugar do mundo sem sobreviventes. Nenhum.
- Não diga!

- Você pode imaginar como me senti. Sofrendo demais. Sozinha. Zangada.
Espantada ao ver que aquele sujeito estranho da Internet sabia de tudo por
antecipação.
- Não posso imaginar que você tenha se convencido somente com as
palavras dele. Parece que você estava furiosa demais com Deus.
- De certa forma, sim. Mas comecei a entender as atitudes de Nicolae. Você
estava aqui naquela época, certo? Deve ter ouvido os mexericos.
David assentiu com a cabeça.
- O povo disse que Nicolae fugiu em um helicóptero que pousou no teto do
antigo escritório central. Até aí, tudo bem. Eu também teria feito o mesmo.
Instinto de preservação da vida, essas coisas. Mas ele não socorreu ninguém.
Não chamou equipes de resgate. Havia pessoas penduradas nas barras do
helicóptero, gritando, implorando por socorro. Ele ordenou ao piloto que
levantasse vôo. Talvez não desse tempo de salvar toda aquela gente, porque o
prédio inteiro desmoronou. Mas ele devia ter tentado, você não acha? O
verdadeiro líder não faz isso? E ele continuou a ser falso. A tristeza não parecia
sincera. Comecei a trabalhar e esqueci meu idealismo, mas continuei a entrar no
site de Ben-Judá. Milhões e milhões de pessoas fizeram o mesmo, e um grande
número se converteu. Li a respeito do selo na testa dos crentes e fiquei com
inveja. Eu ainda não tinha certeza de querer me converter, mas desejava fazer
parte da família. Você sabe o que mais me atraiu em Tsion? Veja só, chamar
assim um homem como ele. Mas é a minha maneira de ser. Ele é um dos seres
humanos mais inteligentes que já apareceu na face da terra. Mas tem um jeito
todo especial de se fazer entender até por pessoas simples como eu.
Compreendi tudo o que ele estava dizendo. Ele escreve de modo claro e
transparente. E perdeu a família inteira de maneira muito mais trágica do que eu.
Ele era uma pessoa tão amorosa! Eu sentia isso, mesmo pelo computador.
Orava pelas pessoas, parecia um médico cuidando da saúde espiritual delas.
- E foi isso que convenceu você?
- A bem da verdade, não. Eu acreditava que ele era sincero e que estava
certo. Mas, de repente, comecei a pensar nele pelo lado científico. Resolvi

assimilar aquelas coisas muito lentamente, sem pressa nenhuma, analisar tudo
com muito cuidado. Aí, ele começou a falar das pragas, e elas vieram logo a
seguir. O povo sofreu demais. Era tudo verdade. E ele soube por antecipação.
- Você se considerava uma pecadora?
Ela se levantou e pegou uma tesoura própria para cortar metais.
- Oh, não - disse David.
- Relaxe. Continue a ouvir a bela história.
Hannah apertou as extremidades do grampo com os dedos para poder
introduzir uma das pontas da tesoura por baixo. Apertou as alças da tesoura com
as duas mãos e cortou o grampo.
David deu um salto.
- Você continua vivo? - ela perguntou.
- Não senti nada. Foi só um susto.
- Vou continuar a contar a história de minha vida. - Ela cortou o outro
grampo enquanto falava. - Tsion nos avisou, e você sabe disso. Com certeza, é
um de seus leitores.
David assentiu com a cabeça. - Conversei com ele por telefone.
- Não acredito!
Ele movimentou a cabeça afirmativamente.
- Não se mexa com os grampos soltos na cabeça. E, se mentir para mim
outra vez vou voltar a apertá-los.
- Não estou mentindo.
- Eu sei que não. É que fiquei com inveja de você.
- Você sabe que um dia vai conhecer Tsion pessoalmente.
- É melhor trazer uma vassoura e um balde. Sou tão pequenina perto dele
que você pode passar o rodo em cima de mim e me jogar no ralo.
- Eu também sou.
- Mas você o conhece! São amigos.
- Só por telefone.
Ela começou a imitá-lo.
- Só por telefone. Blá, blá, blá. Nós costumamos conversar. Ele me liga de

vez em quando e diz: "Como vai, Dave? Terminei mais uma mensagem."
David foi forçado a rir e se deu conta de que era a primeira vez desde...
- E isso aí - ela prosseguiu, puxando as extremidades de um dos grampos. -
Viu? No tempo certo, usando a técnica certa. Ah, será que estou vendo o cérebro
sair por este buraco? Não. Acho que não há nada lá dentro.
David sacudiu a cabeça.
- A história, Hannah.
- Ah, sim. Tsion disse que, se começássemos a ler a Bíblia, ela seria como
um espelho para nós e que não gostaríamos de ver o que ele refletia. Você se
lembra?
- Se eu me lembro?
O outro grampo saiu com a mesma facilidade. Hannah fez uma encenação
para mostrá-lo a David, e ele encolheu os ombros.
- Eu não tinha Bíblia - ela disse -, e não é fácil encontrar uma por aqui. Mas
Tsion também tinha um site onde a gente podia ler a Bíblia inteira no próprio
idioma. Bem, não em Cherokee, claro. Estou lendo a Bíblia pela Internet durante
a madrugada.
- E já conseguiu aprender bastante coisa?
- Não. Eu comecei da maneira errada. Não li o guia de Tsion para saber por
onde começar e o que procurar. Comecei a ler a Bíblia a partir de Gênesis e
adorei todas aquelas histórias, mas quando cheguei a Êxodo e depois a... como
é mesmo o nome do livro seguinte?
- Levítico.
- Ah, sim. Fiquei pensando, cadê o espelho? Não gostava do que estava
vendo, tudo bem, mas não havia espelho. Entrei no site dele onde a gente pode
fazer perguntas. Só um milhão de pessoas por dia fazem isso. Eu não esperava
uma resposta pessoal, é claro, e ele não respondeu. Devia estar falando ao
telefone com seu amigo Dave. Mas alguém me deu as indicações. Comecei a ler
João, depois Romanos e depois Mateus. Eu queria ler cada vez mais! O pecado
que me atormentava da maneira como Tsion o descrevia era o orgulho. O meu
deus era eu. Eu era a dona de meu destino.

Cheguei àquela parte conhecida como o Caminho de Romanos, que diz que
nascemos em pecado, separados de Deus e que Ele nos dá a vida eterna...
rapaz, eu não conseguia parar de ler. Fiquei acordada a noite inteira e trabalhei
turno integral no dia seguinte, sem sentir sono. Eu queria contar a todo mundo,
mas queria também continuar viva.
Hannah borrifou uma solução anti-séptica na cabeça de David e enxugou-a
com uma toalha limpa.
- Vou cobrir o local com uma pomada escura, meu amigo, para que você
não fique parecido com um gambá com uma listra lateral branca... Sua aparência
vai continuar engraçada, mas não muito. E é melhor sairmos daqui antes que
eles mandem uma equipe de busca atrás de nós.
- Só mais um instante.
- Para quê? - Ela estava umedecendo outra vez a cabeça dele.
- Eu só queria agradecer. Eu precisava ouvir o que você me contou.
Histórias como a sua nunca envelhecem.
- Obrigada, David. Você imagina há quanto tempo eu queria contar essa
história a alguém? Ah, mais uma coisa.
- Sim?
- Mande recomendações minhas a Tsion.
- Eu não acredito - disse Buck.
- Pode acreditar! - disse Zeke. - Venha ver.
Buck acompanhou Zeke até o quarto do rapaz, virando-se com olhar de
incredulidade para Rayford e Chloe. De fato, conforme Zeke dissera, penduradas
no armário, lá estavam quatro fardas da CG amassadas e sujas de terra.
- Onde você conseguiu isso? - perguntou Buck.
- Depois do ataque dos cavaleiros - respondeu Zeke. - Você se lembra?
Buck assentiu com a cabeça.
- Havia gente morta da CG por toda parte. Meu pai me fez sair com ele no
meio da noite para chegar antes do pessoal de resgate. Eu não queria arrancar

roupas de gente morta, mas meu pai e eu achamos que eram um presente de
Deus. Peguei as identidades deles, mas você não pode usar o mesmo nome que
está escrito na farda.
- Não posso?
Zeke deu um suspiro.
- Aqueles caras sumiram. Se seus corpos sem roupa não foram
identificados, eles devem estar na lista dos desaparecidos ou foragidos. Se você
chegar lá usando o nome, a patente e o número de série de um deles, adivinhe
quem vai ser acusado de assassinato ou de ter passado a mão na farda.
- Entendi.
- Entendeu mesmo?
- Então, o que você vai fazer? Colar um novo nome na farda? Fazer uma
nova identidade?
- Mais ou menos. Vou misturar e combinar tudo. Veja se essa aqui serve
para você. É a maior delas.
- Pelo visto, vai ficar curta.
- Mas veja os punhos da camisa, a calça e o paletó. Tem pano suficiente por
dentro, porque eles não fazem fardas sob medida para todos.
- Você também faz serviço de alfaiate, Zeke?
- Não na frente dos outros, e não gosto de me gabar disso. Mas faço. Faço
de tudo um pouco.
Buck experimentou a farda e constatou que as pernas da calça eram uns
cinco centímetros mais curtas do que as suas e estava apertada na cintura. A
camisa vestiu melhor, mas as mangas precisavam ser um pouco mais
compridas. As do paletó também. O quepe era muito pequeno.
Buck sacudiu a cabeça quando Zeke começou a vasculhar suas coisas e
encontrou uma caixa com artigos de costura. Ele teve de se conter para não cair
na gargalhada ao ver o rapagão com meia dúzia de alfinetes na boca, ajoelhado
para marcar a barra da calça.
- Você disse que ia misturar e combinar tudo?
- Isso mesmo - respondeu Zeke, ainda com os alfinetes na boca. - Sua

carteira de identidade vai ser a de um civil morto. Você já fez uma cirurgia
plástica no rosto. Foi sem querer, mas fez. Você vai tingir o cabelo de escuro,
usar lentes de contato escuras e tirar uma fotografia para os novos documentos.
Quer escolher quem vai ser? Você já viu meus arquivos antes. Escolheu um tal
de Greg North. Pegue algumas fichas e escolha alguém de seu tamanho e mais
ou menos parecido com você. Quanto menos eu tiver de mudar, melhor.
- Você vai me dar uma patente mais alta que a de Albie?
- Não posso - disse Zeke. - Você está vendo os ombros e a gola do paletó?
Ele pertence a um soldado das Forças Pacificadoras. Se sua gola tivesse mais
uma ou duas listras e fosse engomada em vez de ficar pendurada, você poderia
ter a patente de comandante.
- E você não é um alfaiate tão bom assim.
- É um trabalho muito demorado. E eu ia cobrar o dobro de você.
Buck sorriu, mas Zeke caiu na gargalhada e disse:
- Você tentou pegar a carteira para ver se tinha tanto dinheiro para me
pagar?
- Quase.
- Meu pai diz que sou meio doido. - O semblante de Zeke se entristeceu.
- Você ainda não sabe onde seu pai está? Zeke balançou a cabeça
negativamente.
- Não gostei do que vi na TV. Disseram que vão começar a pôr aquela
marca nos caras que estão atrás das grades. Os presos vão servir de teste.
- Seu pai não vai aceitar essa marca.
- Eu sei que não. De jeito nenhum. Nunca. Mas acho que não vou ver meu
pai nunca mais.
- Não pense assim, Zeke. Sempre existe uma esperança.
- Quem sabe? Estou orando. Mas quando eles puserem os caras na fila da
marca, aí não vai mais existir esperança. Foi uma decisão deles, certo?
- É o que eu entendo.
- Meu pai não vai querer saber disso. Ele já tem o selo na testa. Eu vi o dele,
e ele viu o meu. É por isso que ele e eu sabemos. E ele não vai ficar pensando

se pode ter o selo e a marca e continuar vivo. Meu pai nunca vai querer nada que
diga que ele é do time de Carpathia. Ele vai dizer: "Não, de jeito nenhum", e vai
ser morto ali mesmo. Não sei se eles vão matar os presos dentro das cadeias, se
vão usar as guilhotinas ou dar um tiro neles. Eu sei como meu pai vai sair da
cadeia. Dentro de um caixão.
No caminho de volta a seu escritório, David sentiu-se estranhamente
animado e fortalecido. Ele adorava a personalidade e a forma de se expressar de
Hannah. Ela seria uma boa amiga. Era mais velha que ele, mas não agia como
tal. David gostaria de saber se havia um pouco de tranqüilidade em algum lugar.
Ele pôs sua mágica para funcionar no computador, entrando no dispositivo
de escuta do quarto 4054. Assim que colocou os fones de ouvido, escutou uma
discussão acalorada. No fundo, havia uma TV ligada, e ele ouviu um pedido
insistente da Sra. Wong:
- Silêncio! TV! Silêncio! TV!
O marido gritou com ela em chinês. Apesar de saber que havia muitos
dialetos chineses, David não conhecia nenhum. Logo ficou claro que o pai e o
filho estavam discutindo e que a mãe queria ver TV. As únicas palavras que
David conseguiu captar dos homens foram CG e Carpathia, que eles proferiam
de vez em quando. O filho começou a chorar, e o pai o repreendeu severamente.
David gravou a conversa imaginando que talvez conseguisse fazer um
download do programa ativador de voz que não apenas reconheceria o idioma e
o dialeto, mas também o traduziria para o inglês ou hebraico, as duas línguas
que ele conhecia.
De repente, ele ouviu o pai falando em tom muito agressivo, o filho
implorando e - aparentemente -irrompendo em lágrimas. A mãe pediu silêncio
outra vez, e o pai gritou com ela. David ouviu um som como se alguém estivesse
pegando o telefone e discando um número. Finalmente, a fala era em inglês!
- Sr. Akbar, senhor falar chinês?... Paquistanês? Eu não. Inglês OK, OK?...
Sim, aqui Wong! Pergunta para senhor. Novo funcionário recebe marca da

lealdade primeiro, não?... OK! Quando?... Tanto tempo assim?... Talvez antes,
OK! Sra. Wong e eu receber também? OK? Filho, Chang Wong, quer receber
marca primeiro lugar.
O rapaz choramingou em chinês e, aparentemente, o Sr. Wong cobriu o
fone antes de gritar com ele. Alguém saiu do quarto e bateu a porta. Para David,
foi Chang.
- Sr. Akbar, senhor marca garoto, mãe, pai?... Não? Quem?... Moon? Walter
Moon?... Não é ele?... Pessoal de Moon, OK! Filho primeiro! Foto! Tira foto de
filho!... Quando?... Sim. Eu conversar com pessoal de Moon. Até logo.
David ouviu o Sr. Wong gritar alguma coisa, desta vez um pouco mais
calmo. Chang resmungou algumas palavras de longe. O pai voltou a ficar
zangado e deu a palavra final. Em seguida, cochichou alguma coisa para a
esposa. Ela reagiu como se estivesse conformada.
David gostaria de saber se Chang contara ao pai por que não aceitava
receber a marca ou se simplesmente havia-se recusado. Quando eles pararam
de falar e só se ouvia o som da TV, David salvou o arquivo e o enviou a Ming Toy
acompanhado deste pedido:
"Se a tarefa não for muito trabalhosa ou penosa demais, eu gostaria que
você me esclarecesse o que foi dito aqui. Entendo que seu pai está pressionando
Chang para ser contratado e ser um dos primeiros a receber a marca. Vou tentar
outras fontes aqui dentro para saber quando eles vão começar a aplicar a marca,
mas, se você puder me ajudar a entender isso aqui, eu lhe ficaria muito grato.
Desculpe-me pela intromissão na conversa de sua família, mas tenho certeza de
que você gostaria de impedir esse desastre."
David discou 4054. O Sr. Wong atendeu.
- Quero falar com Chang, por favor.
- Chang Wong?
- Sim, por favor.
- Falar com ele sobre emprego CG?
- Sim, senhor.
- É Sr. Moon?

- Não. David Hassid. Conheci o senhor na semana passada.
- Sim! Sr. Hassid! Chang trabalhar para o senhor?
- Ainda não sei. É por isso que gostaria de conversar com ele.
- Ele aqui. Pode conversar. Senhor trabalha com computador, não?
- Meu departamento tem muitos computadores.
- Ele melhor de todos. Ajuda senhor! Trabalha para senhor. Senhor
conversa com ele. Momento... Chang!
O Sr. Wong começou a falar em chinês, e o rapaz respondeu de longe.
Finalmente, atendeu o telefone.
- Alô - disse o rapaz, com voz tão triste como se tivesse perdido o melhor
amigo.
- Chang, é David. Não diga nada, só ouça. Sua irmã me contou o que está
acontecendo. Estou tentando ajudar você. Se você for entrevistado por um
diretor, seu pai vai deixar de pegar no seu pé, certo?
- Sim.
- Isso vai nos dar um pouco mais de tempo. Você não vai ficar aflito, vai?
- Vou tentar não ficar.
- Não diga nada, mas vamos encontrar um meio de tirar você daqui.
- Antes da marca?
- Não diga essa palavra, Chang. Por enquanto, faça de conta que vai
concordar. Entendeu?
- Sim, David.
- É melhor você me chamar de Sr. Hassid, está bem? Não podemos deixar
ninguém perceber que somos amigos e também não queremos dar a entender
que somos crentes, irmãos, certo?
- Certo, Sr. Hassid.
- É assim que se fala, Chang. Vamos fazer tudo direitinho. Ligue para minha
assistente amanhã e peça para marcar uma entrevista comigo. Vou dizer a
Tiffany para aguardar sua ligação, e você vai dizer a ela que eu lhe pedi para
ligar. Tudo bem?
- Sim, senhor.

- Tudo vai dar certo, Chang.
- Espero que sim.
- Pode confiar era mim.
- Sim, Sr. Hassid.
QUATORZE

Rayford e seus companheiros foram convidados a ouvir Tsion contar a
história do povo escolhido de Deus a seu ex-professor e mentor. Chaim, agora
sem os fios que lhe prendiam a boca, exercitava a mandíbula e passava a mão
no rosto, visivelmente aliviado. No entanto, não demonstrava nenhum
entusiasmo. Por mais que Tsion tentasse, Chaim parecia atormentado pelas
mesmas coisas que discutira com Rayford alguns dias antes.
- Vamos, Chaim, vamos! - disse Tsion. - Esse assunto é empolgante,
dramático, milagroso. É a história mais bela que já foi contada! Sei onde fica o
lugar que Deus escolheu para acolher seus filhos, mas não vou contar enquanto
você não estiver preparado. Você precisa estar pronto, caso Deus o chame para
ser um guerreiro do Senhor e lutar por meio de palavras e perspicácia. Seu
conhecimento pode ajudá-lo a vencer essa guerra, mas sua força virá de Deus.
Acredito que, se Deus confirmar em seu coração que você será seu vaso
escolhido, Ele lhe concederá poderes sobrenaturais para lutar contra os milagres
satânicos do anticristo. Você é capaz de antever como será a vitória, meu
amigo? Como eu gostaria de ter sido o escolhido para ir!
- Eu também gostaria que o escolhido fosse você - disse Chaim.
- Não, não! Se você for o homem de Deus no tempo de Deus, jamais deverá
querer livrar-se dessa missão sagrada e desse desafio! A história desse país
encerra muitas discussões a respeito de um destino já definido. Bem, meu irmão,
se é que existe um povo com destino predefinido, esse povo é o nosso! O seu e
o meu! E agora incluímos nossos irmãos gentios que se uniram a nós porque

aceitaram o Messias e sua obra de misericórdia, sacrifício e perdão na cruz.
Jesus é o Messias! Jesus é o Cristo! Ele ressuscitou!
- Ele ressuscitou verdadeiramente - disse Chaim, sem a mesma empolgação
de Tsion.
- Que desânimo! - disse Tsion, passando a imitar Chaim. - Ele...
ressuscitou...verdadeiramente. Não é assim que se fala! Ele ressuscitou,
verdadeiramente! Amém! Louvado seja o Senhor! Aleluia! Você tem condições
de ir a Jerusalém, de ser um líder, um vencedor! Pode enfrentar as mentiras e as
blasfêmias do inimigo do Senhor Altíssimo. Pode expor o anticristo ao mundo
como o maligno possuído por Satanás e conclamar os crentes a repelirem a
marca da besta! Oh, Chaim, Chaim! Você está aprendendo tantas coisas. Esse
seu velho cérebro ainda é bom, ainda é ágil, ainda é receptivo. Você está
compreendendo, eu sei que sim! E, se não estiver, quem irá? Você é o único
qualificado. Por mais que eu tenha sonhado com essa oportunidade, não posso
assumir essa missão. Como eu gostaria de estar lá pessoalmente para
presenciar tudo! Se você for, vou querer saber de cada detalhe. Se as forças do
mal investirem contra você e for subjugado pelo poder do inimigo, Deus proverá
uma saída, um lugar de refúgio, e você, meu amigo, conduzirá o povo àquele
lugar. E o Senhor Deus o protegerá, o conduzirá e suprirá todas as suas
necessidades. Você já pensou, Chaim, que Deus prometeu que tudo será como
nos tempos antigos? Pense nisso! Por mais que os filhos de Israel fossem fracos,
infiéis, ignorantes, impacientes e com tendência à idolatria, o Deus do Universo
nunca os desamparou.
Compreende o que isso significa? Você pode conduzir o seu povo, o povo
de Deus, a um lugar onde será quase impossível entrar ou sair. Se você ficar lá
até o Glorioso Aparecimento de Cristo, o que comerá? Que roupas usará? A
Bíblia diz que Deus proverá, conforme fez nos tempos antigos! Ele enviará
comida, uma comida deliciosa, nutritiva e farta! O maná do céu! E você sabe o
que acontecerá com suas roupas?
- Não, Tsion - disse Chaim, com voz cansada e um leve tom de zombaria -,
seja lá o que for, não deixe de me falar sobre minhas roupas.

- Não vou deixar de falar! E você ficará agradecido, para não dizer
maravilhado. Se você ficar maravilhado, vai admitir?
-Vou.
- Prometa.
- Dou-lhe minha palavra, meu eufórico jovem amigo. Se eu ficar
maravilhado, vou admitir.
- Suas roupas não ficarão gastas com o uso! - disse Tsion, fazendo um
floreio com a mão.
- Não?
- Você está maravilhado?
- Mais ou menos. Quero ouvir mais coisas.
- Agora você quer ouvir?
- Eu sempre quero ouvir, Tsion. É que sou indigno. Estou morrendo de
medo, sou desqualificado, despreparado e indigno.
- Se Deus o chamar, Chaim, você não será nada disso! Você será Moisés! O
Senhor Deus de Abraão, Isaque e Jacó irá adiante de você, e a glória do Senhor
será a sua retaguarda.
- Para que eu precisaria de retaguarda? Quem iria me perseguir?
- Não seria o exército de faraó, posso lhe assegurar. Mas, se fosse, Deus
abriria um caminho para você fugir. O exército de Carpathia iria atrás de você. E,
embora ele fale de paz e de desarmamento, quem tem acesso ao que sobrou
das armas do mundo inteiro que foram entregues ao mentiroso provedor da paz?
Mas, se você precisar que o Mar Vermelho seja dividido ao meio novamente,
Deus fará isso! Para que estudamos tanto, meu aluno hebreu?
-Hum?
- Hum? Não diga hum para mim, Chaim! Diga ao rabino o que você
aprendeu sobre as grandes histórias, os milagres da Torá.
- Que não eram apenas histórias, exemplos ou mitos para nos servir de
incentivo.
- Excelente! E então? O que são? O que são, meu caro pupilo?
- A verdade.

- A verdade! Sim!
- As histórias aconteceram realmente.
- Sim, Chaim! Aconteceram porque Deus é poderoso. Ele disse que
aconteceriam, e aconteceram. E se Ele disser que fará isso acontecer
novamente?
- Ele fará.
- Ele fará! Oh, que privilégio, Chaim! Aprenda a lidar com seus temores.
Aprenda a lidar com suas dúvidas. Entregue tudo a Deus. Apresente-se diante
dele com toda a sua fraqueza, porque quando somos fracos é que somos fortes.
Moisés era fraco. Moisés era um desconhecido. Moisés tinha dificuldade em se
expressar! Chaim! Moisés, o herói da fé, tinha menos a oferecer que você!
- Ele não era um assassino.
- Era sim! Você se esqueceu! Ele não matou um homem? Pense, Chaim!
Sua mente, sua consciência, seu coração lhe dizem que Deus não o perdoou.
Sei que o sentimento de culpa é recente. Sei que ele é terrível. Mas no fundo
você sabe que a misericórdia de Deus é maior que nosso pecado. E ela tem de
ser! Caso contrário, nós viveríamos em vão! Existe alguma coisa difícil demais
para Deus? Alguma coisa grande demais? Algum pecado grande demais para
Ele perdoar? Seria uma blasfêmia afirmar isso. Chaim! Se você é um ser que
cometeu um pecado grande demais para ser perdoado por Deus, então você
está acima de Deus. É por isso que chafurdamos em nosso pecado e
continuamos a ser orgulhosos. Quem nós pensamos que somos, os únicos a
quem Deus não pode estender sua dádiva de amor? Ele o encontrou, Chaim! Ele
o tirou da lama! Humilhe-se diante do Senhor, e Ele o exaltará!
- Voltando ao assunto das roupas - disse Chaim -, eu posso usá-las desde
agora até Jesus voltar novamente sem que elas fiquem gastas?
Tsion recostou-se na cadeira e fez um gesto de desânimo.
- Chaim, se Ele pode salvar você e a mim, perdoar nossos pecados e nos
livrar da morte espiritual, esse assunto das roupas é apenas um de seus milagres
mais simples. Esqueça os botões, os remendos, a linha. Vá para lá com uma
roupa de que você goste, porque estará usando a mesma quando tudo terminar.

David lançou mão de todos os artifícios que conhecia para monitorar, de seu
computador, o edifício inteiro da CG. Ele murmurou uma oração de
agradecimento a Deus, suplicando forças para concentrar-se e trabalhar, mesmo
em meio ao sofrimento que sentia. Mac e Abdullah chegariam a seu escritório
dali a uma hora para finalizarem o plano de fuga que incluía David e Hannah. Os
quatro tinham combinado prestar atenção para ver se havia outros crentes no
palácio, cuja existência eles desconheciam. Talvez o brilhante jovem Chang
Wong também fosse incluído na fuga. David só precisava saber como levá-lo
sem levantar suspeitas.
Enquanto aguardava notícias de Ming Toy, David verificou os arquivos das
reuniões que ele gravara, mas nunca teve tempo de ouvir. No arquivo intitulado
Carpathia, havia uma reunião com Suhail Akbar, Walter Moon, Leon Fortunato e
Jim Hickman no dia em que David conversou com Hickman. Ele sentiu um
arrepio enquanto se preparava para ouvir a conversa, verificando antes se todos
já haviam ido embora após o expediente. Seria fácil encerrar o programa e
desligar o computador com um simples toque no teclado, mas ele não queria ser
pego de surpresa.
Uma pergunta feita por Hannah alguns dias antes o atormentava. Ela havia
perguntado:
- Como você sabe que não existe alguém aqui tão esperto quanto você,
fazendo exatamente o mesmo que você?
- Como assim? - ele dissera.
- Monitorando você, quem sabe.
David não levou o assunto a sério. Ele desenvolvera programas à prova de
hackers, dispositivos antivírus. Havia instalado microfones em toda parte e
acreditava poder ouvir até mesmo palavras cochichadas. Seria impossível
alguém ter feito o mesmo que ele, não? Certamente, os chefões não falariam
com tanta liberdade se soubessem que David estava escutando suas conversas.
E, se estivessem desconfiados dele, já o teriam despachado dali muito tempo

antes.
David acreditava que os chips de segurança instalados em seus telefones e
programas de e-mail eram impenetráveis e tentara explicar isso a Hannah.
- Eu não tenho nenhum indício, David. Talvez você seja o maior gênio de
informática do mundo, mas não deveria ser bastante cuidadoso?
- Eu sou.
- É?
- Pode acreditar.
- Mas você já me falou de telefonemas e e-mails entre você e seus
companheiros nos Estados Unidos.
- Não podem ser rastreados, nem invadidos por hackers.
- Mas você rastreia os dos outros. Invade os dos outros.
- Sou bom nisso.
- Você está vivendo no fio da navalha.
- Não há outra maneira de viver.
Hannah encolhera os ombros sem tocar mais no assunto. No entender de
David, ela apenas levantara o assunto por estar preocupada e ser
completamente leiga em informática. Mas ele gostaria que ela não tivesse
plantado a semente da dúvida em sua mente. A cada mensagem, a cada
transmissão, a cada telefonema, ele tinha a sensação de que alguém poderia
estar bisbilhotando por cima de seus ombros. Pelo que sabia, não haveria essa
possibilidade, mas quem pode lutar contra a intuição? David percorria
continuamente seus programas à procura de intrusos. Até aquele momento, nada
havia acontecido, mas Hannah o deixara assustado.
Mesmo que as suspeitas fossem infundadas, ele teria de estar mais atento
ainda.
David iniciara a gravação da reunião de Carpathia antes de ir à sala de
Hickman, portanto Carpathia devia estar a sós em seu escritório. Da última vez
que o ouvira falando sozinho, Nicolae estava orando a Lúcifer. Agora ele era
Lúcifer. Será que Satanás orava para si mesmo?
Não, mas ele falava sozinho. A princípio, David maravilhou-se com a

fidelidade do som. Ele havia desenvolvido um sistema de intercomunicação
baseado em seus comandos, tanto para transmitir como para receber. O sistema
estava funcionando melhor do que o esperado. Ele ouvia quando Nicolae
suspirava fundo, limpava a garganta e até mesmo falava em voz baixa.
Aquela era a parte mais estranha. Ali estava um homem que,
aparentemente, não dormiu. Contudo, parecia transpirar energia, mesmo estando
sozinho. David ouviu movimentos, som de passos, papéis sendo arrumados. No
fundo, havia o som dos operários trabalhando do lado de fora do escritório de
Carpathia.
- Hum - disse Carpathia mansamente, como se estivesse pensando. -
Espelhos. Preciso de espelhos. - Ele deu uma risadinha. - Por que privar-me de
ter a alegria de ver os outros se deleitarem com minha imagem? Eles precisam
olhar para mim sempre que quiserem.
Carpathia apertou o botão do interfone, e Sandra, sua assistente, atendeu
imediatamente.
- Pois não, Excelência.
- O chefe dos operários ainda está aí fora?
- Está, Excelência. O senhor gostaria de falar com ele?
- Não, só transmita um recado a ele. Ou melhor, venha até aqui.
- É uma honra - ela disse, como se essas palavras partissem do fundo de
seu coração.
Sandra sempre pareceu tão fria e distante que David gostaria de saber
como era o relacionamento dela com Carpathia. Ela tinha 20 anos a mais que
seu chefe.
David ouviu o ranger de uma cadeira, como se Carpathia tivesse se
sentado. Simultaneamente, após uma leve batida, a porta foi aberta e fechada.
- Sua Excelência - ela disse, seguindo-se o som de um farfalhar de roupas.
- Sandra - disse Carpathia -, você não precisa ajoelhar-se todas as vezes
que...
- Perdoe-me, senhor - ela disse -, mas peço que não me prive desse
privilégio.

- É claro que não, desde que você queira, mas...
- Sei que o senhor não exige isso, mas para mim é um privilégio adorá-lo.
Carpathia deu um suspiro sem denotar impaciência, assim pensou David.
- Que belo sentimento - ele disse, finalmente. - Sua devoção me deixa muito
satisfeito.
- O que eu posso fazer pelo senhor? Conceda-me a honra de pedir-me
qualquer coisa.
- Eu só queria ter alguns espelhos da altura de um homem em meu novo
escritório. Deixarei a cargo do pessoal especializado a posição em que os
espelhos vão ficar, mas creio que eles darão um toque especial a este lugar.
- Concordo plenamente com o senhor. Eu tremo de emoção só em pensar
nas múltiplas imagens que o senhor vai ter aqui.
- Ah, eu lhe agradeço. Agora vá e passe o recado adiante.
- Imediatamente, senhor.
- Depois, pode tirar o dia de folga.
- Mas sua reunião...
- Eu receberei o pessoal. Não se preocupe.
- Como o senhor quiser, mas saiba que seria um imenso prazer...
- Eu sei.
A porta foi aberta e fechada e, pelo som, Carpathia levantou-se novamente.
David o ouviu dizer:
- Eu também tremo de emoção só em pensar nas múltiplas imagens que vou
ter aqui, sua meretriz velha e horrorosa. Mas você sabe como fazer um homem
sentir-se adorado.
Agora, parecia que Nicolae estava arrumando a disposição das cadeiras.
- Akbar, Fortunato, Hickman, Moon. Não, Moon, Akbar, ah... devo deixar
Fortunato ruminar sobre sua proximidade e acesso a mim, mantê-lo aguçado.
Hickman precisa de auto-afirmação. Tudo bem. Ele voltou a falar no interfone.
- Sandra, você ainda está aí?
- Sim, senhor.
- Antes de sair, ligue para o Sr. McCullum, por favor. Quero falar com ele.

O sangue de David gelou nas veias. Em seguida, ele se repreendeu. Não se
preocuparia por Nicolae falar com Mac. Se não confiasse em Mac, não poderia
confiar em mais ninguém.
- Capitão McCullum - disse Carpathia alguns minutos depois. - Que bom
falar com você. Você sabia que 10% de todos os armamentos bélicos foram
cedidos à Comunidade Global nos tempos da antiga ONU, não?... O restante
deveria ser destruído, e alegro-me por ter notícias de que grande parte foi
realmente extinta. Se ainda houver munições, serão muito poucas e talvez
estejam nas mãos de facções pequenas demais para representarem ameaça
para nós. Minha pergunta é a seguinte: Você sabe onde estocamos os
armamentos recebidos?... Não faz parte de suas responsabilidades?... Bem, sim,
claro que eu sei, capitão! Minha pergunta é meramente especulativa. Você é ex-
militar, é piloto, anda por aí. Eu queria saber se alguém lhe disse,
inadvertidamente, onde estocamos nossas armas... Ótimo. Era só isso, capitão.
Por certo, Mac dissera a Nicolae que não tinha idéia de onde estavam as
armas. E, pelo que David sabia, era verdade, Mas será que a notícia do
transporte daquele armamento monstruoso não teria vazado? E o que Carpathia
estaria planejando agora?
- Cavalheiros! - disse Carpathia alguns minutos depois, cumprimentando os
quatro visitantes. - Entrem, por favor.
- Permita que eu seja o primeiro a ajoelhar-me diante do senhor - disse Leon
- e beijar suas mãos.
- Obrigado, reverendo, mas você não é o primeiro.
- Nesta reunião, acho que sim - disse Fortunato, em tom de queixa.
- E ele não vai ser o último! - intrometeu-se Hickman. David ouviu o som do
beijo estalado que ele deu na mão de Carpathia.
- Obrigado, supremo comandante. Obrigado. Chefe Akbar? Obrigado. Chefe
Moon? Obrigado. Oh, reverendo, não, por favor. Eu gostaria que você se
sentasse aqui.
- Aqui? - perguntou Leon, visivelmente surpreso.
- Algum problema?

- Eu me sento onde Sua Excelência desejar, claro. Posso até ficar em pé, se
o senhor me pedir.
- Eu poderia ficar ajoelhado durante toda a reunião - disse Hickman.
- Sente-se aqui, meu amigo - disse Carpathia, gastando tempo e energia
para colocar as pessoas onde ele queria.
- O senhor conseguiu dormir - perguntou Fortunato depois que todos se
sentaram -descansar um pouco?
- Você está preocupado comigo, reverendo?
- Claro, Excelência.
- Dormir é para os mortais, meu amigo.
- O senhor está certo.
- Eu sou mortal, rapazes, isso é, cavalheiros - disse Hickman. - Dormi como
uma pedra esta noite. Acho que estou fora de forma. Preciso dar um jeito nesta
barriga.
Um silêncio constrangedor.
- Podemos começar? - perguntou Carpathia. Hickman resmungou uma
desculpa, mas Nicolae já estava se dirigindo a Akbar, chefe do Serviço de
Inteligência. - Suhail, acho que o local onde guardamos nossos armamentos
permanece confidencial. Você concorda comigo?
- Concordo, senhor, mas confesso que isso me deixa confuso.
- Confuso é a palavra certa - disse Hickman. - Parece que temos centenas
de tropas envolvidas nessa tarefa e... xi, que fora! Sinto muito. Vou aguardar
minha vez de falar.
David imaginou o olhar que Carpathia lançou a Hickman. Ele devia saber
muito bem que o homem não estava à altura da posição que ocupava. O fato de
Carpathia forçar Hickman a dividir a mesma sala com Sandra e passar tarefas
corriqueiras a alguém com um título tão pomposo provava que ele sabia
exatamente o que estava fazendo.
- As Forças Pacificadoras estão preparadas para a ofensiva, chefe Moon?
- Sim, senhor. Prontas para atacar em todos os lugares. Podemos esmagar
qualquer resistência.

- Reverendo você tem alguma notícia atualizada para me dar?
- Sobre a marca da lealdade, Jerusalém, religião?
- Jerusalém, claro - disse Carpathia, com sarcasmo. Leon estava
visivelmente magoado.
- Jerusalém está no primeiro lugar da lista, Excelência. Programa preparado,
legalistas prontos. A entrada será triunfal no sentido literal da palavra.
- Comandante Hickman - disse Carpathia de modo condescendente -, pode
abaixar a mão. Aqui não há necessidade de pedir a palavra.
- Posso, então, interromper alguém que está falando?
- Não, não pode interromper. Vocês foram convidados a vir aqui porque
necessito de informações atualizadas sobre suas áreas.
- Bem, estou pronto. Eu tenho aqui. Eu...
- Você será chamado quando eu precisar de esclarecimentos sobre sua
área. Entendido?
- Sim, senhor. Sinto muito, senhor.
- Não é necessário desculpar-se.
- Sinto muito.
- Suhail ou Walter, que tipo de resistência podemos esperar em Jerusalém?
Houve uma pausa, durante a qual David imaginou que os dois estavam se
entreolhando para um não interromper o outro.
- Vamos, vamos, cavalheiros - disse Carpathia. - Tenho um planeta inteiro
para governar. - Ele deu uma risadinha como se estivesse brincando, mas David
não achou graça nenhuma.
Akbar começou a falar de maneira lenta e articulada. David achou que, se
estivesse em outro ambiente, Suhail seria um eficiente chefe do Serviço de
Inteligência.
- Francamente, potentado, não acredito que os judaístas aparecerão por lá.
Não estou menosprezando a eficiência do movimento deles. O número dessa
gente continua grande, mas eles lutam por uma causa clandestina, ligados
apenas por computadores. O senhor não vai ver uma concentração semelhante à
que houve no Estádio Kolleck quando Tsion Be...

- Eu me lembro muito bem, Akbar. Diga-me uma coisa. Não é verdade que
essa gente está querendo provocar um rebuliço em Jerusalém, porque muitos
deles se convenceram, depois de terem presenciado uma ressurreição real,
aquela que não exige uma fé cega?
Silêncio, a não ser pelo som de alguém limpando a garganta. David achou
que era Suhail.
- Não?
- Para minha surpresa, não, senhor. A ressurreição certamente me
convenceria de sua divindade, só que eu já havia me convencido.
- Eu também! - disse Hickman. - Desculpe-me.
- Claro - disse Fortunato -, eu tive uma experiência pessoal que comprovou
isso. E agora... bem, não é a minha vez de falar, certo?
- A verdade, Excelência - prosseguiu Akbar cautelosamente -, é que nossa
investigação constante no site dos judaístas revela que eles estão cada vez mais
fortalecidos. Acreditam... hã... que sua ressurreição prova o oposto daquilo que é
tão óbvio para as pessoas que sabem raciocinar.
David estremeceu ao ouvir um baque violento na mesa, uma cadeira sendo
empurrada para trás e uma série de imprecações proferidas por Carpathia. O
Nicolae de outrora sempre manteve a compostura.
- Perdoe-me, Santidade - disse Akbar. - O senhor deve compreender que
estou simplesmente relatando o que meus melhores analistas...
- Sim, eu sei! - esbravejou Carpathia, socando a mesa. - Eu só não
compreendo o que falta para provar a essa gente quem é digno de toda a
devoção! - Ele praguejou e os outros pareciam sentir-se obrigados a concordar,
por meio de resmungos altos, que os céticos não passavam de malucos. Tudo
bem! - prosseguiu Carpathia. - Você está achando que eles vão nos atacar do
conforto de seus esconderijos.
- Correto.
- Isso é lamentável. Eu tinha tanta esperança de rir na cara deles. Existe
alguma confirmação de que eles estão protegendo Rosenzweig?
David prendeu a respiração durante mais uma pausa.

- Admito que fomos enganados - disse Walter Moon. - Recebemos algumas
pistas de pessoas que pensaram ter visto Rosenzweig fugindo, pegando um táxi,
esse tipo de coisas. Sabemos com certeza que aquele derrame foi uma farsa.
- Repita isso - disse Nicolae.
- Uma farsa perfeita! - intrometeu-se Hickman. - Perdão.
- Ele me enganou - complementou Nicolae. - Tenho de dar esse crédito a
ele.
- Eu... hã... - prosseguiu Moon - não estou querendo saber mais que o
senhor, mas...
- Prossiga, Walter.
- Bem, o senhor perdoou seu agressor talvez antes de saber quem ele era.
Carpathia deu uma gostosa gargalhada.
- Você pensa que eu não sei quem me matou? Eu levantei aquele braço
flácido para pedir aplausos para ele. Segundos depois, fui atirado para longe pelo
disparo de uma arma. Ele esmagou meus pés com as rodas daquela cadeira
infernal, e a última coisa que sei foi que caí no colo de um maluco. Naquela hora,
eu sabia o que estava acontecendo, apesar de não ter entendido por quê. Mas
ele não era um velhinho frágil. Não havia nenhum braço flácido, nenhum idoso
esquelético. Ele enfiou aquela espada em mim e remexeu-a dentro de meu
crânio. O homem era rijo como pedra e forte.
- Acho que devíamos enviar um boletim ao mundo inteiro e usar todos os
nossos recursos para trazer esse homem para cá - disse Hickman. - Vamos
gravar a cara dele em videoteipe! Vamos mostrar essa cara ao mundo!
- No tempo oportuno - disse Carpathia, agora mais calmo. David imaginou
que ele tivesse voltado a sentar-se. - Eu o perdoei, sabendo que um número
incontável de cidadãos leais adorariam vingar-se em meu lugar, caso ele mostre
a para algum dia. É desnecessário dizer que não praticaremos nenhum crime.
- É desnecessário dizer - repetiu Hickman como papagaio.
- E como vão as investigações a respeito do cúmplice?
- O maluco com a arma? - disse Moon. - Achamos que ele não é do Oriente
Médio. Encontramos suas roupas e a arma. É do mesmo calibre que a bala.

Nenhuma impressão digital. Nenhuma pista. O senhor está convencido de que
eles trabalharam juntos?
Pelo tom de voz, Carpathia parecia perplexo.
- Convencido? Eu não sou especialista nesse assunto, mas os dois ataques
foram uma grande coincidência, você não concorda?
- Eu concordo - disse Hickman. - Trabalhei naquele caso e...
- Prossiga - disse Nicolae.
- Acho que eles fizeram um acordo. Se um não atingisse o senhor, o outro
atingiria. Para o cara da arma, pode ter sido um passatempo, mas ele teve sorte
de não matar ninguém.
Akbar pigarreou.
- O senhor sabe que existe uma ligação entre Ben-Judá e Rosenzweig?
- Prossiga - disse Nicolae.
- Ben-Judá foi aluno de Rosenzweig.
- Não diga! Hum. Se encontrarmos Ben-Judá, encontraremos Rosenzweig.
- É o que estou achando - disse Hickman.
- Estou pronto para ouvir seu relatório, James.
- Eu? Meu relatório? Ah, sim, senhor. Hum, está tudo em ordem. Injetores,
aparelhos de cortar cabeça, isto é, só um minuto. Viv, hã..., a Sra. Ivins me disse
o nome correto. Está aqui, tenha um pouco de paciência. Instrumentos de
imposição à lealdade. Eles estão vindo e indo, depende. Estão vindo para cá e
indo para todos os outros lugares. Por enquanto, nem todos. Alguns estão sendo
fabricados neste momento, mas estão dentro da programação. Descobri uma
enfermeira aqui que tem experiência em injetar biochips em... em... cães, acho.
Mas ela vai precisar de treinamento. E já tenho uma pista sobre o seu porco.
- Meu porco?
- Oh, não. Quero dizer, se o senhor não precisar de um porco, eles podem
matar o animal e usá-lo aqui. Mas, se o senhor precisar de um porco, já fizemos
o pedido para um bem grande.
- E para que eu precisaria de um porco, James?
- Não sei se ouvi falar... ou fiquei sabendo... que o senhor precisava de um

porco. Mas, se precisar de verdade, é só me dizer. O senhor precisa de um?
Para alguma coisa?
- Quem andou conversando com você, comandante?
- O quê?
- Você ouviu o que eu disse.
- Conversando comigo?
De repente, Carpathia começou a gritar novamente e a proferir palavrões.
- Sr. Hickman, tudo o que é dito nas reuniões deste meu escritório particular
é sagrado. Você está entendendo?
- Sim, senhor. Eu nunca...
- Sagrado! A segurança da Comunidade Global depende da maneira como
os assuntos confidenciais são tratados aqui. Você conhece o velho ditado "Bocas
frouxas afundam navios"?
- Conheço. Sei o que o senhor quer dizer.
- Alguém lhe contou que houve uma reunião aqui sobre um porco.
- Bem, eu preferia não...
- Ah, você vai preferir, sim, Sr. Hickman! Violar a sagrada confiança do
potentado da Comunidade Global é crime sujeito a pena de morte, não é mesmo,
Sr. Moon?
- Sim, senhor, é.
- Portanto, James, a próxima palavra que você proferir vai ser o nome do
culpado ou, então, você pagará o preço pela transgressão. Estou aguardando.
David ouviu Hickman choramingando.
- O nome, comandante. Se eu souber que ele é seu amigo ou se você não
disser o nome dele, será um homem morto.
Hickman lutava para conter-se.
- Eu lhe dou dez segundos. Hickman suspirou fundo e tossiu.
- Agora são cinco.
- Ele é... ele é... um...
- Sr. Moon, você está preparado para levar o Sr. Hickman preso para ser
exec...

- Ramon Santiago! - Hickman deixou escapar. - Mas eu lhe imploro, senhor,
não...
- Sr. Moon.
- Por favor! Não!
David ouviu Moon falando ao celular.
- Aqui é Moon. Preste atenção, prenda Santiago... Certo, aquele das Forças
Pacificadoras... imediatamente... sim. Até que eu chegue aí.
- Você permitiria que eu fizesse o serviço pessoalmente, Walter?
- Como o senhor desejar.
- Não! Por favor!
- James, quando eu anunciar amanhã que um subcomandante das Forças
Pacificadoras foi condenado à morte, você vai compreender a gravidade das
regras, não?
David ouviu um sim em meio aos soluços de Hickman. Aparentemente, isso
não foi suficiente para Carpathia.
- Vai compreender ou não, supremo comandante?
-Sim.
- Foi o que pensei. E sim, eu preciso de um porco. Um animal grande,
gordo, carnudo e com narinas enormes. Precisa receber uma alimentação
exagerada para ficar pesado demais e não me atirar no chão, caso eu decida
cavalgar nele pela Via Dolorosa na Cidade Santa. Conte-me, Hickman. Conte-me
alguma coisa sobre meu porco.
- Eu ainda não vi o tal porco - disse Hickman, desoladamente -, mas...
- Você entendeu minha ordem.
- Sim. - A voz de Hickman era trêmula.
- Grande, gordo e feio?
- Sim.
- Eu não ouvi o que você disse, James. Malcheiroso? Você pode me
arrumar um porco fedorento?
-Sim.
- Do jeito que eu quiser?

- Sim!
- Você está zangado comigo, meu servo leal?
- Mais ou menos.
- Obrigado por sua honestidade. Você entende que quero um animal tão
grande para que eu possa enfiar minhas mãos em suas narinas?
David deu um salto ao ouvir uma batida na porta. Mac e Abdullah haviam
chegado.
QUINZE

Buck sentiu o peso dos anos e estava constrangido quando desembarcou
em Kozani, Grécia, com um cansaço exagerado por causa da viagem, o que não
parecia ocorrer com Albie, um homem mais velho do que ele. E Albie,
evidentemente, havia pilotado o avião o tempo todo.
- Tire proveito desse cansaço - disse Albie.
- Como assim?
- O cansaço deixa a pessoa mal-humorada.
- Eu estou tranqüilo.
- Então, não demonstre estar tranqüilo. Seja apenas educado. Nosso instinto
natural, quando não dormimos bem, nos deixa impacientes, de pavio curto,
irritados. Aja assim. O pessoal da CG é mandão, autoritário. Gosta de dar
ordens.
- Já notei.
- Não faça perguntas, não peça desculpas. Você é um homem ocupado, tem
uma missão a cumprir, coisas para fazer.
- Entendi.
- Entendeu mesmo?
- Acho que sim.
- Não senti firmeza.

- Tenho de ser firme com você também?
- Pelo menos treine comigo, Buck. Vocês, norte-americanos, não são de
nada. Tive de dar uma dura em seu sogro para ele voltar a ser o líder que
sempre foi. Você, um jornalista internacional, não sabe fingir para conseguir o
que quer?
- Acho que sim.
- Então, mostre! Como conseguia aquelas grandes reportagens? Como
conseguia entrevistar gente importante?
- Eu usava o poder da posição que ocupava.
- Exatamente.
- Mas eu trabalhava para o Semanário Global.
- Mais que isso. Você era Buck Williams, o Buck Williams do Semanário
Global. Talvez o seu talento para escrever tenha feito de você o Buck Williams,
mas, quando você era ele, tinha confiança em si mesmo, não é verdade?
- Acho.
- Acho - arremedou Albie. - Vamos, Buck! Levante a cabeça!
- Você quer que eu ande de cabeça empinada?
- Quero que você consiga um carro para nos levar ao centro de detenção
onde o pastor Demeter, a Sra. Miklos e vários outros crentes da igreja deles
estão presos.
- Não seria mais fácil você conseguir esse carro?
- Por quê?
- Você tem patente mais alta que a minha, mais alta que a de todos que
encontrarmos por aí.
- Então, tire vantagem disso. Eu sou aquele que todos vêem, mas não se
dirigem a mim. Eles só me fazem continência. Você vai falar com eles em meu
nome. Está usando essa bela farda, feita sob medida no Chez Zeke.
- Vou tentar.
- Você está desanimado.
- Sou capaz de fazer o que você disse.
- Não estou sentindo confiança em sua voz.

- Apenas olhe o que vou fazer.
- É disso que estou com medo. Estou olhando para um sujeito com cara de
quem vai ser descoberto. Prove-me que estou errado, Buck.
- Saia da minha frente, seu velho!
- É isso aí.
- Você vai pedir a eles que reabasteçam o avião enquanto estivermos em
Ptolemaís?
- Não, Buck, é você que vai pedir.
- Vamos lá. Eu não entendo nada de aviões.
- Faça só isso. De agora em diante, sou um subcomandante zangado,
cansado da viagem, mal-humorado e não quero falar com ninguém.
- Vai ser tudo por minha conta?
- Não me pergunte nada. Sou mudo.
- Você está falando sério?
Albie não respondeu. Com o olhar firme, as mandíbulas cerradas e
carrancudo, ele caminhou ao lado de Buck até o terminal, que ficava a uns 40
quilômetros ao sul de Ptolemaís. Buck abordou o primeiro militar que viu.
- Fala inglês? - ele perguntou ao jovem.
- Claro. Por quê?
- Quero que você guarde aquela aeronave no hangar e a reabasteça
enquanto meu comandante e eu vamos pegar a estrada para cumprir uma
missão.
- Verdade? E quero que você lustre minhas botas enquanto eu durmo.
- Vou fingir que não ouvi, filho.
- Que bom. Eu também.
O rapaz começou a afastar-se, mas Buck o puxou pelo ombro.
- É uma ordem.
- Você acha que sei pilotar um avião? Eu trabalho em terra, meu chapa.
Arrume outro lacaio para fazer esse serviço.
- Já lhe disse que é uma ordem. Encontre alguém que saiba pilotar um
avião. Quero que tudo esteja pronto quando voltarmos ou você vai ter de arcar

com as conseqüências.
- Você está brincando comigo!
Albie mantinha-se afastado da conversa. Para Buck, ele estava tentando
conter-se para não dar uma gargalhada.
- Você entendeu, filho? - perguntou Buck.
- Estou fora dessa. Vou correr o risco. Você não sabe meu nome.
- Mas eu sei - disse Albie, virando-se e ficando de frente para o rapaz, que
subitamente empalideceu. - E você vai cumprir a ordem ou terá de retornar para
sua cidade em trajes civis.
- Sim, senhor - disse o rapaz, fazendo continência. -Imediatamente, senhor.
- Não me faça esperar, rapaz - disse Albie, assim que ele virou as costas.
Buck olhou para Albie.
- Pensei que você fosse mudo.
- Alguém tinha de tirar você dessa encrenca.
- Ele tem a mesma patente que eu!
- É por isso que você tem de falar em meu nome! Eu tenho a patente, e você
precisa saber fazer uso dela. Tente outra vez.
- O que você vai querer agora?
- Eu já disse. Precisamos de um carro.
- Droga!
Buck entrou com passos firmes no terminal apinhado de funcionários da CG.
Depois das restrições impostas às igrejas clandestinas, o local ficaria tumultuado
por uns tempos.
- Dê-me seus documentos - disse Buck a Albie.
- Para quê?
- Faça o que estou mandando!
- Agora sim, gostei de ver!
Buck furou uma fila de funcionários das Forças Pacificadoras da CG.
- Ei! - gritou o primeiro da fila.
- Ei o quê? - disse Buck. - Por acaso você é oficial ou está escoltando um?
Porque, se não for, é melhor conhecer qual é o seu lugar.

- Sim, senhor.
Buck olhou para Albie com uma das sobrancelhas erguidas e dirigiu-se ao
funcionário sentado a uma mesa atrás de um vidro.
- Cabo Jack Jensen apresentando-se a serviço do subcomandante Marcus
Elbaz, que veio dos Estados Unidos Norte-americanos em missão oficial.
Precisamos de um veículo para ir a Ptolemaís.
- Ah, sim, você e mais outros mil estão precisando de um veículo - disse o
funcionário, olhando indolentemente para as identidades dos dois. - Falando
sério, antes de vocês há mais ou menos 200 na fila.
- Desculpe-me, senhor, mas acho que estamos no primeiro lugar da fila.
- Você disse que seu superior veio dos Estados Unidos? Ele tem cara de
quem nasceu no Oriente Médio.
- Não sou eu quem dá as ordens, companheiro. E acho melhor não meter
meu superior nessa conversa. Mas, pensando bem, até que seria engraçado.
Diga ao meu superior que ele tem cara de quem nasceu no Oriente Médio e que
você está duvidando de sua base de operações. Vamos! Diga!
O funcionário cerrou os lábios e devolveu as identidades por baixo do vidro.
- Pode ser um veículo comum?
- Qualquer um. Eu poderia pedir um carro especial, mas só queremos ir até
lá e voltar. - Buck abaixou a voz. - Para lhe dizer a verdade, o Elbaz está tão
irritado hoje que não merece um carro tão especial assim. Pode ser qualquer um.
O funcionário passou por baixo do vidro um molho de chaves presas a uma
etiqueta de papelão.
- Mostre isso ao responsável pelos veículos. O posto dele fica atrás do
portão de saída.
Enquanto eles caminhavam naquela direção, Albie começou a arremedar
Buck.
- O Elbaz está tão irritado hoje que não merece um carro tão especial assim.
Eu devia rebaixar você à função de escoteiro.
- Se você fizer isso, vai ter de retornar para sua cidade em trajes civis.

- Carpathia está tramando alguma coisa - disse Mac, sentando-se ao lado
de Abdullah na sala de David.
- Vou ficar muito feliz quando der adeus a este lugar - disse Abdullah.
David remexeu-se na cadeira.
- Vamos conversar sobre isso.
- Você também não quer sair daqui? - perguntou Abdullah.
- Sinto muito, Smitty - disse David.
- Eu estava falando com Mac.
- Oh! Mil perdões.
- Veja só o jeito dele - disse Mac. - Já está de beiço caído.
- Eu não estou de beiço caído! Pare de me amolar!
Mac deu um tapinha no ombro de Abdullah. O jordaniano sorriu.
- Carpathia me ligou alguns minutos atrás - disse Mac a David - perguntando
se eu sei onde as armas estão. Claro que não sei, mas bem que gostaria de
saber. Vou dizer uma coisa a vocês, caras. O povo pode falar o que quiser sobre
a reconstrução milagrosa que Carpathia fez no mundo inteiro. Mas nada, repito,
nada, pode ser comparado ao que ele fez quando conseguiu que todos aqueles
países destruíssem 90 % de seus armamentos e doassem a ele os 10 %
restantes. Ele estocou esses 10% em algum lugar, e ninguém mais voltou a falar
do assunto.
- Bocas frouxas afundam navios - repetiu David.
- Você acha que o povo sabe mas não abre a boca?
- Claro.
- Como ele consegue manter um segredo tão grande que envolve tanta
gente?
- Acho que acabei de saber como - disse David, contando rapidamente a
Mac e Abdullah a conversa que ouvira.
Abdullah sacudiu a cabeça.
- Nicolae Carpathia é um homem mau.
Mac olhou para Abdullah e, em seguida, para David.

- Você disse uma grande verdade, mas, vamos lá, Smitty. Você acabou de
chegar a esta conclusão ou sempre soube e não quis nos contar?
- Você está fazendo gozação comigo - disse Abdullah. -Espere só até eu
aprender a falar bem a sua língua.
- Você vai ser um perigo.
O celular de David tocou. Ele o abriu e fez um gesto pedindo licença.
- É Ming Toy.
- Você quer que a gente saia um pouco? - perguntou Mac.
David negou com a cabeça.
- A discussão é a mesma de sempre - ela disse. - Meu pai quer que Chang
comece a trabalhar imediatamente para a CG e seja um dos primeiros a receber
a marca. Chang jura que não vai aceitar a marca de jeito nenhum.
- Ele contou o motivo a seu pai?
- Não, e jamais vai poder contar a não ser que meu pai se converta.
Continuo com fé e orando, mas, enquanto meu pai não se converter, Chang não
pode contar nada a ele. Se isso acontecer, ele vai pôr todos nós em perigo.
- Sua mãe sabe?
- Não! Ela acabaria contando a ele. Vai ficar tão intimidada que não será
capaz de agüentar a pressão dele. David, você tem de impedir que Chang
trabalhe aí, principalmente se os novos funcionários forem os primeiros a receber
a marca.
- Parece que os prisioneiros serão os primeiros, mas, sim, os novos
funcionários virão logo a seguir. Talvez à medida que forem contratados. E,
dentro de duas semanas, seremos nós.
- O que você vai fazer, David? Você e seus amigos?
- Estamos conversando sobre o assunto neste instante. Vamos ter de fugir
ou morrer.
- Você pode levar Chang com você?
- Seqüestrar seu irmão?
Ming ficou alguns instantes em silêncio. Em seguida, disse:
- Você não entende, David? Quer deixar Chang receber a marca ou ser

degolado só para você não correr o risco de seqüestrá-lo? Por favor. Seqüestre
meu irmão! Ele não vai oferecer nenhuma resistência.
- Devo entrevistá-lo para um cargo amanhã.
- Então, encontre um meio de não aprovar Chang. Afirme que ele não tem
capacidade para trabalhar aí. Ou diga a meu irmão para ir a seu encontro quando
você fugir.
- A última opção é a mais provável. O que poderia desqualificá-lo para o
cargo? Ele parece uma mina de ouro para qualquer departamento,
principalmente o meu.
- Invente alguma coisa. Diga que ele tem Aids.
- E deixar que o próprio pai o mate?
- Que tal um defeito genético?
- Ele tem algum?
- Não! Mas preciso de sua ajuda.
- Não sou médico, Ming. Isso só serviria para retardar as coisas.
- É melhor que nada.
- Eles podem desconfiar de mim. Estamos querendo sair daqui sem levantar
suspeitas de que somos subversivos.
- Grande idéia. Diga a eles que quer levar Chang com você para verificar as
habilidades dele antes de contratá-lo. Depois, o que acontecer com você, vai
acontecer com ele. Meu irmão vai ficar livre para poder ajudar você, seja lá onde
for.
- Talvez.
- Tem de dar certo, David. Não há alternativa.
- E se eles não aceitarem meus argumentos? E se eles contratarem Chang,
aplicarem a marca nele e só depois darem um cargo a ele?
- Você precisa tentar. Ele é muito inteligente, mas ainda é uma criança. Não
sabe defender-se de meu pai.
- Vou fazer o melhor possível, Ming.
- Parece uma desculpa para um possível fracasso. Sinto muito, mas só
posso prometer que vou fazer o melhor possível.

- David, ele é meu irmão! Sei que não é parente seu, mas você não pode
arrumar algum pretexto? Se fosse Annie, você não daria um jeito? Não faria o
impossível para salvá-la?
David não conseguiu falar mais.
- Oh, David! Perdoe-me! Eu não devia ter dito isso! Por favor! Fui cruel
demais!
- Tudo bem, eu...
- David, ponha a culpa em meu medo e em minha situação.
- Já disse que está tudo bem, Mi...
- Por favor, diga que me perdoa. Eu não quis ser tão grosseira.
- Ming, acalme-se. Você tem razão. Eu compreendo. Você me deu algumas
idéias. Conte comigo. Vou fazer o que tiver de ser feito para proteger Chang,
está bem?
- David, você aceita meu pedido de desculpas?
- Claro.
- Obrigada. Vou orar por você. Eu amo você como uma irmã em Cristo.
Assim que David desligou, Mac disse:
- O que tanto a moça tinha para falar, homem? Por alguns instantes, achei
que você se parecia mais comigo do que com um israelense.
David lhe contou tudo.
- Vou dizer-lhe uma coisa - disse Mac -, mesmo sem saber a opinião de
Smitty. Se aquele rapaz for crente e tiver o selo na testa para provar, ele é dos
nossos. O mesmo deve acontecer com qualquer outro crente que encontrarmos
por aqui. Certo, Smitty?
- Acho que sim, se é que eu entendi o que estão dizendo. Todos os outros
crentes daqui vão conosco.
- Claro.
- Certo?
- Foi o que eu disse.
- Mac, só uma pergunta. Que outra pessoa poderia falar por mim a não ser
você?

Na estrada rumo ao norte, Buck usou um telefone seguro para falar com
Lukas (Laslos) Miklos. O homem estava arrasado.
- Obrigado por ter vindo - ele disse -, mas não há nada que você possa
fazer. Você não deve ter trazido armas.
- Não.
- Você não tem condições de enfrentar um número tão grande de inimigos e
sair vivo daqui. Por que viajou até aqui? 0 que pode fazer?
- Eu queria tomar conhecimento das coisas, Laslos. Divulgá-las ao mundo
por meio de A Verdade.
- Perdoe-me, irmão Williams. Eu adoro sua revista e a leio religiosamente,
da mesma forma que leio as mensagens do Dr. Ben-Judá. Mas para que gastar
tanto tempo, tanto dinheiro, correr tanto risco para vir até aqui? Só por causa da
revista? Você sabia que as guilhotinas já chegaram?
- O quê?
- É verdade. Estou afirmando com segurança, porque foram nossos irmãos
e irmãs que me contaram. A CG está transportando as guilhotinas pela cidade
em caminhões abertos para que o povo possa ver as conseqüências de sua
desobediência. Fazemos parte dos Estados Unidos Carpathianos, um nome que
me faz cuspir todas as vezes que sou obrigado a usá-lo. Nicolae vai nos usar
como exemplos. E você está aqui para escrever um artigo!
- Irmão Miklos, preste atenção. Você sabe que não há nada que a gente
possa fazer. Se tentarmos libertar sua esposa, o pastor e nossos irmãos crentes,
só vamos piorar as coisas. Mas achei que você gostaria de saber que estamos
aqui para lhe contar, se conseguirmos entrar na prisão, em que condições e
estado de espírito eles estão, se têm algum recado para vocês.
Silêncio. Buck ouviu Laslos chorando.
- Você está bem, meu amigo?
- Sim, irmão. Eu compreendo. Perdoe-me. Estou confuso. A televisão não
pára de noticiar que as guilhotinas vão ser instaladas em primeiro lugar nas

prisões e depois nos centros de aplicação da marca. Para nós, é apenas uma
questão de dias. Para os prisioneiros, é uma questão de horas. Por favor, diga à
minha esposa que eu a amo e que estou orando por ela, querendo vê-la
novamente. E diga a ela que, se não nos encontrarmos novamente, nos veremos
no céu. Diga... - e ele começou a chorar alto - que ela foi a melhor esposa do
mundo, que eu a amo de todo o coração.
- Vou dizer, Laslos, e vou trazer os recados dela para você.
- Obrigado, meu irmão. Estou agradecido por você ter vindo.
- Você sabe para onde ela e os outros crentes foram levados?
- Tenho idéia, mas não podemos nos arriscar a chegar perto, porque eles
vão nos pegar. Você sabe que nossa igreja é composta de um número muito
grande de pequenos grupos, que agora não são tão pequenos assim. Quando
invadiu o grupo principal, a CG levou minha esposa, o pastor D e cerca de 70
crentes, mas ainda faltam mais de 90 grupos para serem encontrados.
- O quê!
- Esta é a boa notícia. O pior é que, aparentemente, alguns crentes do grupo
principal cederam às pressões. Posso dizer, sem hesitar, que minha esposa e
meu pastor não cederam, mas alguém foi torturado, ameaçado ou convencido a
delatar outros grupos. A CG invadiu outros locais, e agora os crentes não se
atrevem mais a reunir-se. Foi por um milagre que eu não estava naquela reunião
com minha esposa. Se ela se tornar mártir, eu gostaria de estar lá para
morrermos juntos.
- Além de uma sugestão, David, temos uma pergunta, e o Smitty me ajudou
muito - disse Mac. - Fazemos gozação com ele por causa da língua, mas a
mente desse nosso amigo é perspicaz. Estou lhe fazendo um elogio, Abdullah.
- Ei, caubói do Texas, é claro que eu entendi!
- Acho que, se eu fico caçoando da Jordânia, você pode caçoar do Texas...
Mas a pergunta é a seguinte: devemos fingir até o fim que não sabemos de nada,
achando que você vai descobrir quando os empregados vão receber a marca?

Ou vamos querer ganhar um pouco mais de tempo?
David pensou por alguns instantes.
- Não se trata de ganhar um pouco mais de tempo, Mac. Trata-se de uma
intuição. Se aguardarmos até o último momento para simular nossa morte num
acidente, poderemos levantar suspeitas.
- Foi o que eu disse! - exclamou Abdullah. - Não foi o que eu disse, Mac?
- Foi sim.
- Foi o que ele disse, David. Opinião interessante. Se resolvermos pôr nosso
plano em prática antes da data programada, teremos muitas opções. As Forças
Pacificadoras estão começando a despachar as primeiras cargas de... como
chamam aquelas geringonças? Alguma coisa parecida com lealdade.
- Chame-as pelo nome verdadeiro - disse David.
- Está bem. Eles despacharam as guilhotinas para a Grécia ontem à noite.
- O embarque não partiu daqui - disse David. - Eu teria tomado
conhecimento.
- Não, foram fabricados em Istambul e despachados de lá. Logo estarão
chegando aqui e em outros lugares, e vamos ter muito serviço a fazer. Você deve
escolher um lugar estratégico para acompanhar o embarque e encontrar um
motivo para trazer Hannah e esse Chang sei-lá-o-quê para perto de nós. Eu vou
requisitar um Quasi Two.
- Um Quasi Two? Como você vai justificar essa requisição? Não podemos
levantar suspeitas. Podemos acomodar dois pilotos e três passageiros em um
avião mais barato que 15 milhões de Nicks.
- É verdade, mas digamos que queremos levar uma carga enorme de
guilhotinas e caixas de biochips e injetores.
- Estou ouvindo. Mas ainda vamos precisar de muito mais carga para
justificar a requisição de um Quasi Two.
- Bem, digamos que a carga está em algum lugar que o próprio Santo Nick
vai visitar.
- Conte a ele de quem foi essa idéia - disse Abdullah.
- Foi sua, seu bocudo.

- Bocudo?
- É brincadeira, Smitty. Relaxe e deixe seu camelo descansar...
David ergueu a cabeça de repente.
- Vocês estão pensando o que eu estou pensando que vocês estão
pensando?
- Que jogo é esse? - perguntou Abdullah.
- Estamos - disse Mac. - Jerusalém.
David refletiu sobre as possibilidades.
- Vou espalhar a notícia de que queremos estar lá e de que vamos levar
uma especialista em injetores e meu mais novo assistente em informática.
Vamos levar a maior carga que pudermos em um avião tão grande quanto a
cabeça do potentado. Vamos brincar com o ego dele.
- Você acha que Nicolae é um egocêntrico? - perguntou Mac como se
estivesse mesmo falando sério.
David sorriu.
- Ele está brincando? - disse Abdullah. - Não há tecido suficiente na
Jordânia para fazer um turbante para a cabeça de Nicolae.
Mac atirou a cabeça para trás e caiu na gargalhada. David continuava
pensativo.
- O Quasi Two pode ser pilotado por controle remoto.
- Como qualquer outro avião moderno, e eu tenho muita experiência com
todos eles.
- Vamos pousar em um lugar qualquer a caminho de lá, sem que ninguém
nos veja. Quando estivermos em terra firme, você vai fazer aquele jato caríssimo
voar, com toda aquela carga preciosa dentro, menos nós, e atirá-lo na água, ao
lugar mais fundo que encontrarmos.
- E muita gente vai ver.
- Como assim?
- Precisamos que muita gente veja! Você pediu que bolássemos uma
explicação lógica para o acidente. Desculpe-me pelas lembranças tristes, mas
perdemos nossa chefe de cargas há pouco tempo. Ela proibiria uma carga tão

pesada naquele avião. Mas, como sou veterano no assunto, vou dizer que não
há problema nenhum. Vou pilotar pelo controle remoto e fazer as comunicações
também por controle remoto. De repente, vou começar a gritar que o peso está
exagerado, que a carga está rolando, difícil de controlar. Socorro! Mayday!
Adeus, mundo cruel!
- Vocês são brilhantes.
- Obrigado.
- Nós dois - disse Abdullah. - Certo?
- Claro - disse David.
- Pensei em mais uma coisa - disse Abdullah. - Espere aí, Smitty - disse
Mac. - É alguma novidade que eu não sei?
- Relaxe e descanse seu pônei. Você vai gostar. Você vai fazer essa
exibição diante do povo, em Tel-Aviv. Carpathia vai estar por lá. Faça um show
aéreo para ele e para a multidão. Jogue o avião no Mediterrâneo, em um lugar
tão fundo para que saibam que morremos e que não compensa resgatar a
fuselagem.
- E o que vamos fazer durante todo esse tempo? - Mac quis saber. - Vai ser
muito difícil ficarmos escondidos de Carpathia e daquele povo todo em Tel-Aviv.
- Não vamos decolar de Tel-Aviv. Partimos daqui para não levantar
suspeitas, só que eles não vão saber que descemos na Jordânia. Eu conheço
aquele lugar. Podemos pousar onde ninguém vai ver. Mande o avião para Tel-
Aviv, faça o show e provoque a queda.
- De que distância você acha que posso controlar aquele avião por controle
remoto, Smitty?
- O controle remoto não vai servir para tudo. Faça a decolagem por controle
remoto, mas deixe o roteiro de vôo, tudo, enfim, programado no computador.
Mac olhou para Abdullah e depois para David.
- Até que ele teve uma boa idéia.
- Sério? - disse David. - Você sabe programar o avião para essas coisas?
- Vai levar um pouco de tempo.
- Então, mãos à obra.

- Surpresa, surpresa! - disse Abdullah. - O jóquei de camelos teve uma boa
idéia.
O celular de David tocou.
- O visor mostra que há uma ligação urgente de Hannah.
- Atenda - disse Mac.
- Ei, o que houve, Hannah? - disse David.
- Você tem certeza de que esta ligação é segura?
- Certeza absoluta. Você está bem?
- Estou em um depósito de materiais. Você sabia que Carpathia mandou
executar um homem das Forças Pacificadoras hoje?
- Para dizer a verdade, sabia. Santiago?
- Obrigada por me contar só agora. Tive de ir pegar o corpo na cela do
Serviço de Segurança.
- Não houve tempo de lhe contar, Hannah. Quem poderia saber que você
seria encarregada dessa tarefa?
- Foi horrível. Lido com a morte o tempo todo, mas ele recebeu um tiro entre
os olhos, à queima-roupa. E o pessoal da CG está fazendo questão de mostrar
por que ele foi castigado. O homem foi executado pelo próprio Carpathia! Você
sabe por quê? É claro que sabe. Você sabe de tudo.
- Ouvi dizer que ele falou demais.
- Essa explicação não me pareceu muito lógica, David, mas foi também o
que eu ouvi dizer. Pelo que entendi, ele revelou a alguém uma coisa que
Carpathia disse numa reunião particular.
- Sinto muito por você estar metida nessa história, Hannah.
- Tudo bem. Acho que sei quem deu com a língua nos dentes.
- Sabe?
- Você também sabe? - ela perguntou.
- Sei.
- David, como podemos viver no meio disso tudo?
- Não é nada fácil.
- E daí? Quem foi o dedo-duro?

- Você disse que sabia, Hannah.
- Se eu estiver certa, você vai confirmar?
- Claro.
- Hickman.
- Como você ficou sabendo?
- Estou certa, David?
- Está.
- Ele acabou de ser levado ao necrotério. Alguém encontrou o homem morto
na sala, com um tiro na têmpora dado por ele mesmo.
DEZESSEIS

Buck e Albie juntaram-se várias vezes a uma caravana de veículos da CG e
separavam-se dela sempre que necessário, enquanto seguiam para o que
restara de Ptolemaís.
- Olhe bem para aquilo - disse Albie, apontando com o queixo para os
caminhões abertos que transportavam as guilhotinas. - São medonhas, mas bem
simples, não?
Buck balançou a cabeça de um lado para o outro.
- Isso é que me deixa espantado. Elas são montadas com muita facilidade.
Máquinas simples, com peças básicas cortadas em série. Consistem de madeira,
parafusos, lâmina, mola e corda. É por isso que foi fácil para a CG enviar as
especificações a qualquer um que quisesse fabricá-las, desde desejasse
trabalhar e tivesse os materiais. Agora estamos vendo fábricas enormes que
voltaram a abrir para produzir essas máquinas, tendo de competir com artesãos
de fundo de quintal.
- Tudo porque a CG diz que elas vão servir para... como é mesmo a palavra
correta?
- Intimidação visual. Eles vão colocar uma máquina em cada centro de

aplicação, e todos deverão entrar na fila.
Albie parou ao lado de uma policial das Forças Pacificadoras da CG que
dirigia o trânsito e a chamou com um gesto.
- Estou trabalhando - ela disse com raiva, então reconheceu a farda e fez
continência. - Às suas ordens, comandante.
- Fomos incumbidos de fazer uma visita ao principal centro de detenção,
mas deixei a autorização em minha mala. Estamos perto de lá?
- Do centro principal, senhor?
- Acho que já disse isso.
- Bem, os centros ficam todos juntos a oeste daqui. Pegue a esquerda no
próximo cruzamento e siga pela estrada de terra fazendo a curva até chegar à
estrada reconstruída. O centro fica à sua esquerda, dentro da cidade. Não há
como não ser visto. É enorme, cercado de arame farpado e cheio de policiais. Se
o senhor quiser divertir-se um pouco, é melhor se apressar. Eles vão fazer
algumas decapitações esta noite, se os rebeldes não recuarem de medo e
mudarem de idéia.
- Verdade?
- Ouvi dizer que eles estão pondo essa gente na fila e fazendo um sorteio.
Os que voltarem para a cela vivos vão receber uma nova tatuagem amanhã.
David estava exausto. O relógio marcava quase 23 horas, horário de
Carpathia, quando ele saiu do escritório e dirigiu-se ao seu quarto. Ao ouvir
passos firmes atrás de si, ele assustou-se e virou-se para trás. Era Viv Ivins,
parecendo revigorada e com o mesmo entusiasmo que demonstrava todas as
manhãs. Ela carregava uma pasta de couro e lançou um sorriso radiante para
David.
- Boa-noite, diretor Hassid - ela disse assim que o alcançou.
- Boa-noite, senhora.
- Tempos maravilhosos estes, não?
David não sabia por quanto tempo conseguiria manter as aparências.

- Tempos interessantes - ele disse. Ela parou.
- Eu adoro quando tudo cai no lugar certo.
Para David, Viv escolheu mal as palavras, uma vez que era ela quem
coordenava a produção e a distribuição das guilhotinas.
- As coisas estão indo de vento em popa - ele disse. Convenci a chefia a
não exibir o instrumento de imposição à lealdade aqui no palácio.
- Verdade?
- Prejudicaria nossa imagem.
- Ele está sendo mostrado ao mundo inteiro.
- Até aí, tudo bem. Posso até entender. Na verdade, não tenho nenhuma
restrição. Fora da capital e da sede existem certas pessoas que necessitam ver
para crer. Só assim elas se lembrarão da seriedade dessa prova de lealdade.
Quem não aceitar a marca é porque está patologicamente comprometido com
alguma outra causa. Se a pessoa estiver só protelando sua decisão e enxergar a
conseqüência de sua desobediência diante de si, vai se convencer
imediatamente.
- Mas não aqui.
- Não haverá necessidade. Se a alguém da equipe não fosse leal ao
potentado ressurreto, por que estaria trabalhando aqui? Quero mostrar ao mundo
imagens de gente feliz, bem-disposta, satisfeita. Todos os cidadãos da
Comunidade Global devem ver o brilho no rosto daqueles que são encarregados
de administrar a nova ordem mundial. Aqui não há necessidade de forçar
ninguém. Somos um exemplo para o mundo de gente dedicada e feliz, que vai
sentir-se realizada por ter assumido a posição certa. Você entende?
- Claro. E quero dizer que gostei de sua idéia. Aqueles instrumentos
horrorosos não devem prejudicar a linda paisagem daqui.
- Concordo plenamente. Começaremos a contratar novos funcionários
amanhã, e eles estão muito entusiasmados por serem os primeiros a receber a
marca do potentado. Todos estão optando por receber a imagem do potentado
na testa. Eu vou preferir uma marca mais sutil, mas tenho de confessar uma
coisa, Hassid. É divertido ver esses garotos de hoje com tanta ansiedade para

serem diferentes dos demais. Você vai entrevistar um deles amanhã.
- Certo.
- O asiático prodígio.
- Ele mesmo.
- Que família! O pai está pedindo insistentemente que seu filho seja o
primeiro a receber a marca. É tarde demais para isso, porque estamos
começando com os prisioneiros políticos, mas ele pode ser o primeiro da fila
entre os funcionários da CG.
David empalideceu e tentou disfarçar.
- Mas ele ainda não foi contratado.
- No entanto, já está aprovado, certo?
- Bem, preciso ter uma longa conversa com ele, saber se o rapaz tem
condições de fazer o último ano do curso secundário aqui, uma vez que vai ficar
longe de seus pais pela primeira vez, ver onde ele se encaixa melhor...
- Ele tem todas as probabilidades de ser contratado em algum lugar aqui. As
chances de fracasso são mínimas. Podemos contratá-lo antes. Ele seria
aprovado por antecipação para trabalhar em qualquer departamento. É como se
fosse uma hipoteca pré-aprovada. Primeiro você o qualifica, depois faz uma
oferta a ele dentro de seu orçamento.
- Eu não faria isso - disse David impensadamente.
- Por que não?
- Nem sempre tudo sai conforme gostaríamos. Vamos deixar que o processo
caminhe naturalmente e fazer a coisa certa.
- Oh, Hassid, francamente. O que poderia dar errado?
David encolheu os ombros.
- Fiquei sabendo que o rapaz tem pavor de agulhas e não quer ser espetado
de jeito nenhum.
- A ponto de abrir mão de uma oportunidade de ouro de trabalhar aqui? Ele
vai ter de receber a marca nos Estados Unidos Asiáticos ou perderá mais que um
emprego.
- Talvez até lá ele se acostume com a idéia.

- Ora, ora, diretor Hassid. Se ele é tão inteligente assim, é tempo de agir
como adulto. Até entendo o medo do rapaz, mas a aplicação não dura mais que
alguns segundos, e ele vai ver que fez um estardalhaço por nada.
- Bem, marquei com ele às nove horas. Podemos aguardar até lá, não? Eu
não gostaria de entrevistá-lo logo após ele ter sofrido um trauma.
- Um trauma? Eu acabei de dizer...
- Mas ele vai continuar preocupado.
- De qualquer forma, acho que a aplicação da marca não vai começar antes
das nove horas.
Já em seu quarto, alguns minutos depois, David usou seu subnotebook para
verificar a agenda de sua secretária. Ela não o havia informado a respeito da
hora da entrevista com Chang. Após uma rápida verificação na agenda dela,
David entendeu o motivo. A entrevista foi confirmada depois que ele saiu do
escritório e estava marcada para as 14 horas do dia seguinte. Ela o informaria
amanhã.
David alterou o horário na agenda dela para as nove horas. Em seguida,
entrou no computador do Departamento de Pessoal e fez o mesmo. Ligou para o
número 4054 e deixou o seguinte recado no correio de voz: "Chang, a entrevista
de amanhã foi antecipada para as nove horas. Por favor, não compareça ao
Departamento de Pessoal antes da entrevista. Até amanhã."
Quando ele terminava de deixar o recado, seu telefone avisou que havia
uma chamada à espera. Ele apertou o botão. Era Ming, com a voz assustada.
- Já começou aqui - ela disse. - E aí? Também já começou?
- Calma, Ming. Começou o quê?
- A aplicação da marca! O equipamento chegou ao presídio hoje cedo e está
sendo usado esta noite.
- As prisioneiras estão recebendo o chip?
- Estão! Logo serão as funcionárias, e eu estou incluída. Preciso sair rápido
daqui, mas antes quero confirmar uma coisa.
- Há crentes aí? Alguém se recusando a receber a marca?
- Ninguém. Elas estão se apresentando como se fossem leais escoteiras.

Acho que esperam conseguir pontos por bom comportamento. A verdade é que
vão continuar apodrecendo aqui, mas com a marca na cabeça ou na mão.
David contou a Ming sobre sua conversa com Viv e as providências que ele
havia tomado.
- Oh, não, não - ela disse. - Às nove horas você deve fazei Chang
desaparecer. Tire meu irmão daí.
- Ainda não estamos preparados para partir, Ming.
- O que você vai fazer?
- Vou ter de bolar alguma coisa, algum motivo para explicar que ele ainda
não está pronto. Talvez eu diga que ele é imaturo, jovem demais para o serviço.
- Você é um diretor, David. Faça isso de maneira convincente. Precisa dar
certo.
- Tenho a noite inteira para pensar no assunto.
- E eu tenho a noite inteira para orar.
- Vou fazer o que for possível, Ming. E quero fazer alguma coisa por você.
Posso transferi-la para os EUNA.
- Pode?
- Claro. Posso fazer essa transferência pelo computador, e ninguém vai
perguntar nada. Se eles souberem que foi aprovada por alguém de um nível mais
alto, não vão questionar. Para onde você quer ir?
- Existem prisões em muitos lugares dos Estados Unidos Norte-americanos -
ela disse. - Mas eu não vou trabalhar em nenhuma delas, certo?
- Certo. Arrumamos um lugar para você e a colocamos dentro de um avião,
mas a perdemos de vista. Você foge, e nós não conseguimos encontrá-la. Daí
em diante, fica por sua conta. Só precisa chegar à casa secreta em Chicago.
- Eles vão me aceitar?
- Ming! Leah já falou de você a todos de lá. Eles não vêem a hora de acolher
você. Sabem que você e seu irmão vão ter de ir para lá. Podemos usar os dois.
Para que lugar dos EUNA devo transferir você? Talvez para perto de Chicago,
assim ficará mais fácil para chegar à casa secreta, mas não tão perto a ponto de
levantar suspeitas.

- Eu não conheço os Estados Unidos - ela disse. - Há uma prisão enorme
em Baltimore que está sempre precisando de funcionários.
- Fica muito longe de Chicago. Ei, espere um pouco! Você pode ir até a
Grécia?
- Quando?
- O mais rápido possível, talvez esta noite.
- Vou deixar a seu critério. Dê um jeito para que minha transferência seja um
assunto de máxima prioridade. Se você pedir que alguém da CG venha até aqui
para me levar para a Grécia, eles vão ter de concordar. Mas, David, a Grécia
está em polvorosa, apinhada de gente da CG aplicando a marca em presos
políticos. Eu não quero trabalhar nem me esconder lá.
David lhe disse como chegar aos Estados Unidos, vindo da Grécia, sendo
escoltada por dois homens da CG.
- Deus existe! - ela disse. - Onde posso encontrar esses homens?
- Vá ao aeroporto de Kozani. Eles a encontrarão.
- Você pode mandar Chang para lá também? Por favor, David, por favor!
Tire meu irmão de perto de meus pais, arrume uma função para ele em qualquer
lugar e peça que um de seus pilotos o leve para a Grécia. Poderemos ir para a
casa secreta juntos.
- Ming, por favor. Precisamos agir com sensatez. Se eu der um golpe
desses, seus pais vão perder Chang de vista e tudo recairá em cima de mim... e
de você! Pense bem! Vocês dois são enviados a um lugar qualquer e
desaparecem. Sei que você está desesperada e preocupada demais, mas deixe
a logística por minha conta. A última coisa que quero é ver um holofote da CG
focalizado em nós.
- Eu sei, David. Eu compreendo. Estou pensando com o coração.
- Não há nada de errado nisso - ele disse. - Só não podemos deixar de
raciocinar para não piorar as coisas.
- Algum problema? - perguntou o chefe das Forças Pacificadoras da CG da

Grécia a Buck ao ver que ele estava acompanhado de um subcomandante. -
Fazemos tudo de acordo com o manual.
- Francamente, isso aqui está parecendo um manicômio - disse Buck,
olhando para o conjunto de cinco edifícios que antes deviam ter sido ocupados
por fábricas. As janelas tinham grades, e os prédios eram rodeados por uma
cerca de fio cortante. Já era noite, e o local estava apinhado de guardas da CG
enfileirados, consultando formulários impressos por computador, usando
lanternas para tentar localizar os vários prisioneiros.
- Fazemos o possível com o material que temos em mãos para trabalhar -
disse o chefe, olhando para Albie com nervosismo.
Buck continuou a falar.
- Quantos prisioneiros há neste centro de detenção?
- Cerca de 900.
- Há também uns 900 guardas da CG aqui fora.
- Nem tanto, senhor.
- O que todos eles estão fazendo? Foram incumbidos de quê?
- A maioria está dirigindo o centro de aplicação da marca no edifício do
meio.
- O que há nos outros edifícios?
- Jovens de vinte e poucos anos no primeiro edifício, rapazes na ala oeste,
moças na ala leste.
- Celas individuais?
- Poucas. Os prisioneiros ficam em áreas grandes e comuns, usadas para
linha de produção.
- E nos outros edifícios?
- Mulheres no seguinte. Nenhum preso no do centro. Homens nos dois
últimos.
- E quais são as acusações principais?
- Delitos graves, pequenos furtos, roubos.
- Crimes violentos?
O chefe movimentou a cabeça afirmativamente, olhando por cima dos

ombros.
- Os assassinos, ladrões à mão armada ou coisa parecida ficam ali.
- E os prisioneiros políticos?
- A maioria fica no segundo edifício, mas os dissidentes religiosos, pelo
menos os homens, também ficam ali -respondeu o chefe, voltando a apontar
para o último edifício.
- Vocês colocam dissidentes misturados com criminosos violentos? -
perguntou Buck, inclinando-se para a frente a fim de poder ler o nome do chefe
no crachá.
- Isso não é assunto meu, senhor. Estou coordenando a aplicação da marca
da lealdade. E preciso estar naquele edifício do centro em cinco minutos. Se o
senhor quiser ajudar, tenho uma equipe de seis homens caminhando de um
edifício a outro, a começar do lado oeste, fazendo a classificação preliminar.
- Como assim?
- Verificando se existe alguém recusando-se a receber a marca.
- E daí?
- Eles precisam nos avisar imediatamente. Não podemos perder tempo
deixando que os presos entrem na fila para decidir se querem viver ou
morrer.
- E se alguém da fila mudar de idéia?
- Decidir no último minuto que não quer receber a marca? Não acredito que
alguém faça isso.
- E se fizer?
- Tomamos providências rápidas. Mas a maioria vai nos dizer antes para
não emperrar a fila. Agora, cavalheiros, tenho ordens a cumprir. Os senhores vão
ajudar na seleção ou não?
- Essa verificação vai ser feita simultaneamente em todos os edifícios? -
perguntou Buck, pensando no pastor e na Sra. Miklos.
- Não. Estamos começando pelo edifício do lado oeste. Os prisioneiros
serão escoltados ao edifício do centro para serem classificados e depois voltarão
para a cela antes que cheguem os do próximo edifício. E assim por diante.
- Nós vamos ajudar - disse Buck.

O chefe gritou:
- Athenas! - Um guarda robusto e de meia-idade das Forças Pacificadoras
apresentou-se. Três homens e duas mulheres fardados postaram-se atrás dele.
- Pronto, Alex?
- Pronto, senhor - disse Alex, com uma voz aguda que não combinava com
seu porte físico.
- Leve Jensen e Elbaz com você.
- Tenho contingente suficiente, senhor.
O chefe abaixou a cabeça e olhou para Athenas.
- Eles vieram dos EUNA e, se você ainda não notou, A.A., o Sr. Elbaz é
subcomandante.
- Notei sim, senhor. O Sr. Elbaz aceitaria ser o líder? Albie esticou o lábio
inferior para a frente e sacudiu a cabeça.
Eram 14 horas em Chicago, e os membros do Comando Tribulação estavam
aglomerados diante do aparelho de TV. O noticiário da CG local informava que
as aplicações da marca haviam começado nas cadeias e centros de detenção.
Zeke, sentado em silêncio diante da TV, cobria a boca com as mãos.
Rayford perguntou a ele se o disfarce que Chaim usaria em Jerusalém estava
pronto. Sem desgrudar os olhos da tela, Zeke tirou as mãos da boca apenas para
dizer:
- Só falta o manto. Vai ficar pronto esta noite.
Tsion concordara com a idéia engendrada por Zeke de mudar a aparência
de Chaim, mas achou que ele também deveria usar sandálias e um manto
marrom, de tecido grosso e com um capuz folgado caindo no rosto, para encobrir
seus traços fisionômicos. O traje deveria cobri-lo da cabeça aos pés, sem que a
barra arrastasse pelo chão, e seria preso ao redor da cintura por uma corda
trançada. Todos concordaram que essa roupa daria um aspecto de humildade e
discrição a Chaim, mas também de intimidação quando ele fosse visto pelo povo
e tivesse de dizer alguma coisa.

Chaim foi assimilando aos poucos a idéia, desde que tivesse condições de
agir sob o disfarce de seus trajes.
- Continuo achando que Tsion é quem deveria ir - ele insistia.
- Vou lhe prometer uma coisa, meu amigo - disse Tsion. - Se você permitir
que Deus o use poderosamente para conduzir seu povo a um lugar seguro,
prometo que irei até lá e dirigirei uma palavra pessoalmente a eles.
O âncora da TV informou que, apesar de a CG local não ter previsto a
necessidade de usar os instrumentos de imposição à lealdade, um prisioneiro
recusou-se a receber a marca e foi executado. "A execução ocorreu há menos de
uma hora e meia na antiga Cadeia do Condado de DuPage. O dissidente, preso
por tráfico de óleo combustível, foi identificado como Gustav Zuckermandel, 54
anos, ex-habitante de Des Plaines."
Zeke cobriu o rosto com as mãos e tombou o corpo de lado, onde
permaneceu chorando em silêncio. Os membros do Comando Tribulação
aproximaram-se dele, colocaram a mão em seu ombro e todos choraram. Tsion,
Chaim, Rayford, Leah e Chloe rodearam Zeke, e Tsion orou.
"Nosso Pai, mais uma vez estamos enfrentando a perda dolorosa de uma
pessoa muito querida. Derrama sobre o nosso jovem irmão tua esperança eterna
e não nos deixe esquecer que um dia voltaremos a ver esse corajoso mártir."
Quando Tsion terminou a oração, Zeke enxugou o rosto com a manga da
camisa e levantou-se desajeitadamente.
- Você está bem, filho? - perguntou Rayford.
- Eu preciso trabalhar - disse Zeke, desviando o olhar e correndo de volta
para seu quarto.
Buck sentia um gosto amargo na boca. Já havia estado em situação
semelhante e vira perversidade e destruição suficientes, das quais jamais se
esqueceria. Mas, em sua opinião, seria melhor se ele e Albie tivessem trazido
armas automáticas poderosas para, ao menos, tentarem resgatar os crentes. No
fundo, gostaria de disparar uma saraivada de balas naquele bando de guardas

da CG. Como adoraria entrar à força nas celas, procurar pessoas com o selo de
Cristo na testa e levá-las para um lugar seguro.
Mas não seria possível. A profecia cumpria-se mais uma vez diante de seus
olhos, e ele não seria capaz de modificá-la. No edifício do lado oeste, a equipe
de seleção, composta por oito pessoas, foi revistada na cerca oeste e na entrada
principal.
Buck sentiu um odor fétido assim que foram autorizados a entrar no corredor
central. Dentro de uma cela enorme, havia mais de cem jovens, do sexo
masculino, alguns com olhar frio e destemido, outros petrificados. A cela era
cercada por quatro ou cinco guardas armados de cada lado, fumando, lendo
revistas com ar de tédio no rosto.
Os jovens pularam e bateram palmas quando o grupo entrou.
- Liberdade! - gritou um deles, enquanto os outros riam. -Eles vieram nos
libertar!
Os companheiros de cela riam com ar de zombaria.
Athenas afastou-se um pouco do pessoal e levantou as duas mãos pedindo
silêncio. Buck aproximou-se de um guarda, que deixou a revista cair e perfilou-
se.
- Pois não, senhor! - disse o guarda.
- Que mau cheiro é esse, soldado?
- Vem das latas, senhor. Nos cantos, está vendo? Buck olhou para os quatro
cantos da cela e avistou tambores de 200 litros. Ao lado de cada tambor, havia
uma escadinha de madeira improvisada e eles eram cobertos por uma espécie
de assento sanitário.
- Este edifício não possui banheiros? - perguntou Buck.
- Só para nós - respondeu o guarda. - Fica no fim daquele corredor.
Buck sacudiu a cabeça.
- Os presos não podem ser levados para lá de vez em quando?
- Não podemos correr o risco.
Alex Athenas havia conseguido, finalmente, atrair a atenção dos
prisioneiros.

- Vocês são os primeiros a ter o privilégio de demonstrar lealdade e devoção
à Sua Excelência, o potentado ressurreto da Comunidade Global, Nicolae
Carpathia!
Para espanto de Buck, essas palavras foram seguidas de aplausos
entusiasmados que duraram quase um minuto. Alguns jovens começaram a
cantar em homenagem a Carpathia.
Athenas voltou a pedir silêncio.
- Dentro de alguns instantes, vocês serão conduzidos ao edifício central,
onde vão dizer aos funcionários se desejam a marca da lealdade na testa ou na
mão direita. O local escolhido será desinfetado com uma solução de álcool. Cada
um de vocês vai entrar em um cubículo, sentar-se e receber o biochip por meio
de uma injeção. Simultaneamente, vocês
serão tatuados com o prefixo 216, que os identificará como cidadãos dos
Estados Unidos Carpathianos. A aplicação dura apenas alguns segundos. O
desinfetante também contém um anestésico local para que ninguém sinta dor.
Qualquer comportamento rebelde será tratado com justiça imediata. Para os
analfabetos, significa que a pessoa morrerá antes de cair no chão.
Mais gritos e aplausos. Buck fixou o olhar em um jovem no meio dos
prisioneiros, de cabelos pretos e ondulados. Ele era magro e pálido, e seus
óculos mal encaixados no rosto pareciam estar sem uma das lentes.
Aparentemente, o rapaz não tinha idade para fazer parte daquele grupo, mas o
que chamou a atenção de Buck foi a sombra em sua testa. Seria uma mancha?
Ou seria o selo de Deus?
- Com licença, oficial! - disse Buck passando por Athenas e esquadrinhando
a cela. O vozerio parou, e os prisioneiros o fitaram. - Você aí! Sim, você! Dê um
passo à frente!
O jovem abriu caminho por entre os presos e chegou à frente da cela, onde
permaneceu trêmulo.
- Alguém abra esta porta! - gritou Buck.
Ninguém se moveu. Ele olhou para o guarda a quem havia se dirigido. O
guarda olhou com nervosismo para Athenas.

- Os outros para trás! - disse Athenas, fazendo um movimento afirmativo
com a cabeça para o guarda, que abriu a cela.
Buck entrou com passos firmes e agarrou o rapaz pela manga do suéter cinza e
puído. Ele o arrastou para fora da cela, passou por Athenas e os outros guardas,
gritando com o jovem o tempo todo.
- Você debochou das Forças Pacificadoras da Comunidade Global, rapaz?
Agora vai aprender a respeitá-las.
- Não, senhor, por favor. Eu, eu...
- Cale a boca e continue andando!
Quando Buck passou com o rapaz pelos guardas da entrada, eles gritaram:
- Espere! O que é isso? Ele vai passar pela seleção!
- Depois! - disse Buck.
- Para onde estamos indo? - perguntou o rapaz, com sotaque grego.
- Para casa - cochichou Buck.
- Mas meus pais estão aqui.
- Como eles se chamam? - perguntou Buck, anotando os nomes. - Não
posso garantir que eles vão sair. Mas você não vai morrer esta noite.
- Você é crente?
Buck assentiu com a cabeça e pediu silêncio.
Os dois passaram pelos guardas do portão externo, e Buck conduziu o
jovem a um jipe da CG do outro lado da estrada. Ali não havia iluminação, e
ninguém mais se deu ao trabalho de olhar para trás.
- Sente-se no banco da frente, do lado direito - disse Buck. - Há outros
crentes na cela?
O rapaz sacudiu a cabeça.
- Não vi nenhum.
- Quero que você me dê o nome de um dos prisioneiros de sua cela, só um.
- De quem?
- De qualquer um. Só preciso de um nome.
- Ah, Paulo Ganter.
- Certo. Agora, preste atenção. Você vai ficar sentado aqui neste jipe até eu

voltar. O que você não pode fazer, preste bem atenção, é ficar olhando para ver
se há alguém vigiando. Porque, se você souber que há alguém vigiando, pode
sentir-se tentado a correr e só parar quando chegar a um lugar seguro. E aí,
quando eu voltar para cá mais tarde, vou ficar me perguntando o que aconteceu
com meu prisioneiro. Entendeu?
- Acho que sim. Você não quer que eu faça isso?
- Claro que não. Eu não saberia o que fazer com um fugitivo. Você saberia?
O rapaz deu um sorriso amarelo.
- Sabe de uma coisa? - disse Buck. - Acho que ninguém está olhando para
cá. - Sentindo-se como Anis, o misterioso guarda da fronteira que descobriu
Tsion debaixo do banco do ônibus tempos atrás, Buck pôs uma das mãos no
ombro e a outra em cima da cabeça do rapaz. - Que Deus o abençoe. Que o
Senhor faça o seu rosto resplandecer sobre você e lhe dê a paz. Boa sorte, filho.
Buck retornou apressado ao portão. Quando olhou de relance para trás, o rapaz
havia sumido.
Os guardas do portão permitiram que Buck entrasse novamente. Os
guardas na entrada do edifício perguntaram:
- Quem era aquele sujeito?
- Paulo Ganter - disse Buck. - Custódia transferida para os Estados Unidos
Norte-americanos. - Enquanto o pessoal verificava os impressos do computador,
ele entrou correndo.
Alex Athenas estava terminando sua tarefa.
- Há alguém aqui que vai recusar-se a receber a marca da lealdade?
O grupo riu e fez um gesto de zombaria para ele.
- Ninguém? Ninguém mesmo?
Os prisioneiros entreolharam-se em silêncio. Buck aguardou para ver se
havia outros crentes que assumiriam uma posição. Talvez o rapaz estivesse
enganado.
- E se a gente disser que não quer? - perguntou um moço forte, com ar
malicioso.
- Você sabe quais são as conseqüências - respondeu Alex.

O moço passou o dedo no pescoço no sentido horizontal. - É isso aí.
Alguma pergunta?
- Não há nenhum rebelde aqui! - gritou alguém. - Somos todos cidadãos
leais e honestos!
- É assim que se fala. Alguma pergunta?
- A gente pode escolher a imagem que quiser?
- Não. A situação de vocês não permite. Vocês só têm autorização para
receber o chip comum e a tatuagem com o número.
Os prisioneiros resmungaram alto. Athenas fez um gesto pedindo que o
grupo e os outros guardas armados se perfilassem.
- A aplicação será feita de forma ordeira - ele disse -, ou, então, vocês vão
sofrer as conseqüências como se tivessem decidido recusar a marca.
DEZESSETE

Rayford dirigiu-se ao quarto de Zeke para ver como ele estava e o encontrou
trabalhando ativamente no manto de Chaim.
- Tenho bastante material - disse Zeke. - Acho que vou fazer dois mantos
para ele.
- Você ouviu o que Tsion disse a Chaim sobre as roupas não ficarem
gastas?
Zeke assentiu com a cabeça.
- Mesmo assim, acho que ele vai precisar ter mais de um. E eu não ouvi
Tsion dizer se as roupas ficam sujas.
Rayford encolheu os ombros.
- Eu admirava seu pai, Zeke. Você sabia?
Zeke limitou-se a fazer um movimento afirmativo com a cabeça, continuando
a trabalhar.
- Ele foi corajoso até o fim - disse Rayford.

- Não foi surpresa para mim. Eu disse que ele ia fazer isso, não?
- Você sempre teve essa certeza. Peço a Deus que todos nós
demonstremos a mesma coragem.
Zeke ergueu os olhos e sacudiu a cabeça, fitando um ponto distante.
- Meu pai foi pego no momento errado. Ele tinha condições de fazer muita
coisa pelos crentes. Como eu vou fazer.
- Eu admiro você também, Zeke. Todos nós o admiramos. Mais uma vez,
Zeke limitou-se a fazer um movimento afirmativo com a cabeça.
- Não deixe de chorar e lamentar a morte de seu pai. Não há nada de errado
nisso.
- É difícil não chorar. Sinto muita saudade dele.
- Eu só quero dizer que você não precisa fingir para nós que é forte. Todos
nós sofremos perdas terríveis. Embora o Senhor nos ajude a suportá-las, não
gostamos de sofrer. A Bíblia não nos proíbe de chorar. Ela diz que não devemos
chorar como fazem as pessoas que não têm esperança. Chore quanto quiser,
Zeke, porque nós temos esperança. Sabemos que vamos ver nossos queridos
novamente.
Zeke levantou-se de repente e estendeu a mão. Rayford a segurou.
- Acho que não devo tentar encontrar o corpo dele - disse
Zeke. Rayford sacudiu a cabeça.
- A primeira coisa que a CG vai querer saber é o seu grau de afinidade com
ele. A segunda, você já sabe.
- Se eu quero receber a marca.
- Estamos desolados com a perda de seu pai, Zeke. Não sei o que faríamos
se perdêssemos você também.
- Eu não quero pensar no que a CG vai fazer com a corpo dele. Estou
tentando não pensar... você sabe... a cabeça dele sendo... você sabe...
- Eu sei. Seja lá o que for que eles fizerem com o corpo de seu pai, Deus vai
saber. Seu pai está sob os cuidados de Deus. Sua alma está no céu, e seu corpo
também estará lá um dia. Ele terá um corpo novo e aperfeiçoado. Se Deus pode
ressuscitar um corpo cremado... você sabe o que significa cremado?

- Sei, queimado.
- Ele pode ressuscitar qualquer pessoa. Lembre-se, Ele nos criou do pó da
terra.
- Obrigado, capitão Steele. Por maior que seja a minha tristeza, este foi o
melhor lugar para eu ter recebido a notícia da morte de meu pai. Eu amo todos
vocês.
- Nós também amamos você, Zeke.
Rayford saiu do quarto de Zeke e fechou a porta. Tsion estava perto do
batente, encostado na parede e com os braços cruzados.
- Desculpe-me - disse o Dr. Ben-Judá. - Eu não tive a intenção de ouvir às
escondidas. Não sabia que você estava aí. Você deve ter tido a mesma idéia que
eu.
- Está tudo bem.
- Gostei de ouvir suas palavras, Rayford. Deus o reconduziu à liderança.
Você acabou de fazer o que o Senhor desejava que fizesse, e se saiu muito bem.
- Obrigado, Tsion. Deus tem sido paciente comigo, muito mais do que
mereço.
- Ele tem sido paciente com todos nós.
Os dois caminharam juntos em direção ao refeitório.
- Conversei com Chloe alguns minutos atrás - disse Tsion. - Espero não ter
quebrado a hierarquia.
- Você pode quebrar a hierarquia à vontade, doutor. Sabe disso. Qual foi o
assunto?
- Eu só queria saber como está indo a nova incumbência que você deu a
ela. Tenho um interesse pessoal nisso, você sabe.
- Sobre o pedido de aeronaves e de pilotos? Claro que sei! Poupe as
explicações. Como vão indo as coisas?
- Chloe estava feliz e ansiosa para me contar. Ela enviou um pedido aos
corajosos membros da cooperativa para que cedessem aeronaves, carros,
combustível e tempo para a causa do Messias em Jerusalém... e disse que era
urgente. A resposta foi surpreendente. O clima de perigo deve estar unindo

esses homens e mulheres. Chloe diz que eles estão dispostos a atirar as
precauções pela janela e voar para qualquer lugar para manter a cooperativa
funcionando.
Kenny Bruce apareceu de repente perseguido por Leah. Ele parecia
seriamente envolvido naquele faz-de-conta de estar fugindo dela, apesar de
adorar seus beijos e abraços.
- Vovô! - ele gritou, correndo em direção a Rayford, mas, ao ver Tsion,
mudou o rumo e atirou-se nos braços do rabino. - Tio Zuca!
Leah riu e estendeu os braços para pegá-lo.
- Esse velhinho não vai salvar você! Kenny escondeu a cabeça no peito de
Tsion.
- Velhinho? - disse Tsion. - Srta. Leah, você me ofendeu! Tsion levou Kenny
de volta a Chloe, e Leah dirigiu-se a Rayford:
- Eu me sinto útil aqui ajudando Chloe, que é uma mulher incrível, diga-se
de passagem. Aquela moça tem condições de dirigir uma empresa de grande
porte. E eu adoro ajudar a cuidar desta criança maravilhosa.
-Mas...?
- Você sabe o que teremos de enfrentar. Rayford assentiu com a cabeça.
- Eu estou finalizando as atribuições de cada membro do grupo. Você vai ter
de trabalhar fora daqui por uns tempos.
- Oh, obrigada, Ray. Só não quero parecer egoísta. Sei que Chloe está tão
aflita quanto eu para respirar um pouco de ar puro.
- Ela tem responsabilidades aqui. Mais que você.
- Não parece justo para ela.
- Chloe leva seu trabalho a sério, e acho que já se conformou em ficar aqui.
- Não posso falar por ela - disse Leah -, mas eu me sentiria amarrada.
- Amarrada por ter de cuidar de um filho? Leah sorriu.
- Falei igual aos homens. Eu já estive na mesma situação que ela e posso
garantir que, às vezes, necessitamos de uma pequena pausa. Se for longa, não
vemos a hora de voltar. Mas isso não é da minha conta. Se você encontrar
alguma atividade para ela fora daqui, mesmo que seja por pouco tempo, vou

gostar muito de substituí-la.
- Você é capaz de fazer o que ela faz? Dirigir a cooperativa e cuidar do
bebê?
- Claro. Só os homens daqui não são capazes de fazer as duas coisas. -
Rayford olhou para ela com ar de quem não gostou do comentário. - É
brincadeira, Ray. Mas diga-me uma coisa. Vou ter de ir a Israel?
- Você quer ir até lá?
- Na última vez, só consegui ir até a Bélgica. Todas as coisas boas
acontecem em Jerusalém.
- As coisas perigosas.
- E daí?
Ele ergueu a cabeça.
- Ah, sim. Você gosta de viver perigosamente.
- Eu vivo para servir, Ray. Não estou me vangloriando disso. Meu trabalho é
esse. Sempre foi, antes mesmo de minha conversão. Quero ser útil à causa.
Ninguém desconfia de mim. Ninguém está tentando me caçar. Se eu usar aquele
aparelho dental e Zeke der um jeito de mudar a cor de meus cabelos, vou passar
despercebida.
- Mas você vai precisar de outras coisas para ficar parecida com uma mulher
do Oriente Médio.
- Talvez esse tal David possa me incluir na CG. Arrume um motivo para eu ir
para lá.
Rayford ergueu uma das sobrancelhas.
- Talvez. Nunca se sabe.
Buck e Albie acompanharam a equipe da seleção até a cela das
adolescentes. Para Buck, era difícil acreditar que as condições delas fossem
idênticas às dos rapazes. Havia apenas duas carcereiras. O restante era
composto por homens. As moças não faziam tanto estardalhaço quanto os
rapazes, mas pareciam estar ali pelo mesmo motivo que eles. Algumas eram

grosseiras, outras tinham expressão de vítimas, mas todas estavam curiosas.
Buck esquadrinhou o grupo e cruzou com o olhar de uma moça alta e
morena. Ele teve a certeza de que um viu o selo na testa do outro ao mesmo
tempo. Os olhos da moça arregalaram-se, e ele fez um gesto sutil para que ela
não o entregasse. Enquanto Alex Athenas fazia sua explanação, Buck
aproximou-se disfarçadamente de Albie.
- Acho melhor eu não abusar da minha sorte - disse Buck. - Você acha que
tem condições de tirar uma pessoa daqui?
- Talvez - disse Albie. - Você não está pensando em fazer isso em cada
edifício, está?
- Detesto ficar de mãos atadas.
- Eu também, mas corremos o risco de ser mortos. E o que vamos fazer
quando encontrarmos um grupo grande de crentes?
- Eu só posso cuidar de um por vez. Albie deu um suspiro.
- Onde ela está? - Buck apontou na direção da moça. -Olhe e aprenda como
se faz, meu camarada.
Albie aproximou-se rápido da grade, gritando. Alex parou de falar, e todos
ficaram olhando enquanto Albie andava de um lado para o outro diante da grade,
com os olhos fixos em sua presa.
- Você aí! Você é dos Estados Unidos Norte-americanos? A moça gelou,
olhando firme para Buck, que fez um leve movimento afirmativo com a cabeça, e
depois para Albie.
- Não - ela respondeu, com voz esganiçada. - Eu...
- Não minta para mim, sua nojenta. Conheço você de algum lugar. - Albie
estava tão irado que quase convenceu Buck. - Alex, mande alguém abrir esta
cela. - Em seguida, virou-se para trás e apontou para a moça. - Vá para perto da
porta! Já! Com as mãos atrás da cabeça!
Ela avançou tremendo, com as pernas rijas, e o portão foi destrancado.
Albie agarrou-a e arrastou-a para fora.
- Algemas - ele pediu, e um guarda atirou-lhe um par. - As chaves também. -
Depois eu devolvo tudo.

Ele encostou a moça na grade da cela e a algemou. Guardou a chave no
bolso e a arrastou para fora.
- Bom divertimento - cochichou um dos guardas.
Albie virou-se para ele, segurou-o pelo paletó da farda e o atirou contra a
parede.
- Repita o que você disse, soldado!
- Sinto muito, senhor. Foi uma grosseria de minha parte. Albie deu-lhe outro
safanão e virou-se para a moça, tirando-a dali à força. Após alguns minutos, ele
retornou e devolveu as algemas e as chaves.
Buck ficou chocado quando uma moça respondeu afirmativamente, com
acentuado sotaque grego, à pergunta do oficial Athenas. As outras viraram-se
para ver quem era, e Buck esticou o pescoço tentando enxergar o selo na testa
dela.. Não havia selo algum.
- Você está se recusando a receber a marca da lealdade da Comunidade
Global? - perguntou Alex.
- Eu preciso pensar no assunto - ela disse. - Parece uma mudança drástica
demais para que eu aceite sem pensar.
- Você sabe quais são as conseqüências?
- Eu só gostaria de pensar um pouco mais.
- Está bem. Alguém mais? - Ninguém se apresentou. -Escute aqui, minha
jovem. Como você é a única daqui que está em dúvida, em vez de ir direto para o
instrumento de imposição à lealdade, vai poder pensar um pouco mais enquanto
estiver na fila. Os rapazes já estão terminando de receber a marca. Dependendo
do lugar que você ficar na fila, vai ter mais tempo ou menos tempo para pensar.
Quando chegar o momento de ter de responder onde deseja receber a marca,
essa vai ser sua última chance de recusar.
- E daí?
- Você será enviada para o instrumento de imposi...
- Você sabe o que é isso, garota? - gritou uma adolescente.
- Vou morrer!
- Na guilhotina! Vão cortar sua cabeça.

As garotas silenciaram, e Athenas olhou para a moça.
- Ainda quer pensar mais um pouco? - ele perguntou.
- O assunto é tão sério assim? Vocês vão cortar minha cabeça só porque
quero pensar mais um pouco?
- Não é por isso, senhorita. Sua cabeça vai ser cortada só se você não
aceitar a marca. Se decidir que quer, basta dizer em que local prefere.
- Então, eu não tenho escolha.
- Por onde você tem andado? - perguntou uma das garotas seguida em coro
por suas companheiras.
- Claro que você tem escolha - disse Alex. - Creio que deixei bem claro.
Aceitar a marca ou aceitar a alternativa.
- A marca ou a morte, é isso?
- Você ainda quer pensar?
Ela sacudiu a cabeça negativamente.
Uma das garotas disse:
- Você complicou a coisa mais do que precisava.
- Não sabia que não havia escolha.
Antes de seguirem para a cela das mulheres adultas, Buck e Albie
acompanharam as jovens que se dirigiam em fila para o edifício central. As filas
haviam-se transformado em exemplos de eficiência. Os prisioneiros e
prisioneiras caminhavam com passos firmes, tendo decidido antecipadamente se
a aplicação da marca seria na testa ou na mão. O desinfetante anestésico era
aplicado rapidamente. Os injetores faziam um ruído semelhante ao de um
grampeador elétrico. Embora algumas pessoas estremecessem de medo,
ninguém parecia sentir dor.
Quase todos os adolescentes do sexo masculino receberam a marca na
testa. Um dos últimos marcados, ao retornar para a fila, levantou os dois braços
e gritou:
- Vida longa para Carpathia!
Essa saudação passou a ser usada com freqüência. As moças preferiram
receber a marca na mão.

Buck permaneceu olhando em silêncio, desejando ter condições de fazer
uma pregação. Os jovens haviam feito uma escolha, mas saberiam eles
realmente o que estavam escolhendo? A escolha não era entre a lealdade e a
morte; era entre o céu e o inferno, entre a vida eterna e a maldição eterna.
O coração de Buck bateu acelerado quando a fila das adolescentes chegou
ao fim e elas foram conduzidas de volta à cela. Ele esperava ver a Sra. Miklos no
edifício seguinte. Quantas amigas estariam com ela?
O local reservado às mulheres diferenciava dos demais por não ter cela. Os
guardas, na maioria homens, aparentemente não esperavam ter problemas. As
mulheres conversavam em voz baixa, sentadas, mas acompanharam com olhar
curioso a equipe comandada por Athenas.
Buck contornou o grupo de mulheres à procura da esposa de Laslos. Após
alguns instantes, ele avistou cerca de 20 mulheres ajoelhadas em um dos
cantos, atrás das outras prisioneiras. No meio do grupo, estava a Sra. Miklos
orando.
- Calem a boca e prestem atenção! - gritou um guarda, chamando a atenção
das mulheres. - Este aqui é o oficial Athenas e ele vai dar alguns avisos e
instruções.
Alex começou a falar, mas as mulheres que Buck imaginava serem as
amigas crentes da Sra. Miklos continuaram a orar, sem dar atenção ao oficial.
Algumas olhavam em direção ao céu, e Buck viu o selo na testa delas. Outras
ergueram os olhos e viraram-se para Alex. Algumas delas não tinham o selo.
Buck concluiu que a esposa de Laslos devia estar tentando evangelizá-las.
Athenas demonstrou impaciência com as mulheres ajoelhadas no fundo.
- Senhoras, por favor! - ele disse, mas elas continuaram na mesma posição.
Athenas fez um sinal para uma das policiais. Ela entregou seu rifle e o
revólver a uma companheira, pegou um cassetete e atravessou o grupo de
prisioneiras, caminhando em direção às mulheres que estavam atrás. A policial,
uma jovem de aspecto grosseiro, não se intimidou com os olhares ameaçadores
das prisioneiras, sabendo que suas companheiras e companheiros lhe dariam
cobertura.

- Conforme eu estava dizendo - prosseguiu Alex, tendo de parar novamente
porque a atenção das detentas foi desviada para a policial.
- Senhoras! - o guarda voltou a gritar. - Olhem para frente e prestem muita
atenção ao que o oficial Athenas vai falar.
A maioria obedeceu. Algumas levantaram-se do chão e afastaram-se do
grupo. Outras continuaram ajoelhadas olhando para cima. Um grupo menor
continuou de cabeça baixa e olhos fechados, movimentando os lábios em
oração. A Sra. Miklos, ajoelhada de costas para a policial, orava silenciosamente,
com as mãos cruzadas, cabeça baixa e olhos fechados.
A policial cutucou a Sra. Miklos com o cassetete, e ela quase perdeu o
equilíbrio. Quando a Sra. Miklos virou-se, a policial curvou o corpo e gritou:
- Entendeu, senhora?
A Sra. Miklos sorriu timidamente e continuou a orar. A policial, visivelmente
indignada, segurou o cassetete pelas pontas, aprumou-se e avançou em direção
a ela.
Buck quase deu um grito, sendo contido por Albie que o agarrou com força
enquanto o cassetete estalava violentamente na nuca da Sra. Miklos.
O sangue espirrou atingindo várias mulheres. A esposa de Laslos caiu de
bruços no chão, contorcendo os braços e as pernas. Algumas prisioneiras
gritaram. A maioria das que estavam ajoelhadas, mesmo as que possuíam o selo
na testa, levantaram-se e correram em direção ao grupo principal. Uma mulher
ajoelhou-se para cuidar da amiga ferida, mas a policial a atingiu com um golpe de
cassetete logo abaixo do nariz.
Buck ouviu o estalo de dentes quebrados, e ela gritou quando caiu de costas
e bateu a cabeça no chão, cobrindo o rosto com as mãos.
A policial abriu caminho entre as presas para retornar a seu lugar. Como
que por um milagre, a Sra. Miklos começou a levantar-se lentamente do chão,
apoiando-se nas mãos e nos joelhos. Retornou com toda dignidade à posição de
joelhos, com as mãos cruzadas diante de si.
Ela deu as costas ao restante das prisioneiras, deixando à mostra uma
ferida aberta, de onde saíam golfadas de sangue que empapava seus cabelos e

o suéter. A maioria desviou o olhar, mas Buck continuou com os olhos fixos na
parte branca do crânio dela, um pouco acima do ferimento. Fragmentos de ossos
quebrados deviam ter penetrado em seu cérebro. Apesar disso, ela continuava
ajoelhada, orando em silêncio.
A outra mulher conseguiu virar-se de bruços e começou a levantar-se
lentamente, cuspindo cacos de dente. Com sangue esguichando pelo queixo, ela
voltou a orar. Buck sentiu um arrepio na espinha, imaginando a dor lancinante.
A policial pegou suas armas, com ar de satisfação e divertimento. As presas
comportavam-se como se estivessem aguardando a próxima vítima. Alex disse:
- Vamos ver quem tem coragem suficiente para entrar na fila do instrumento
de imposição à lealdade.
Buck, com o pulso acelerado e a respiração ofegante, permaneceu imóvel,
enquanto Alex fazia a pergunta crucial:
- Quantas vão recusar a marca da lealdade e optar pela outra coisa?
A Sra. Miklos levantou-se e o encarou. Seu rosto estava lívido, e as
pálpebras tremiam. O peito arfava pelo simples esforço de respirar. A ferida
aberta deixou uma poça de sangue atrás dela. Tremendo como se fosse uma
vítima do mal de Parkinson em estágio avançado, ela levantou as duas mãos.
Um leve sorriso de beatificação suavizava a expressão macabra de seu rosto.
- Você preferiu ser executada na guilhotina a receber a marca da lealdade -
esclareceu Alex.
A mulher ao lado da esposa de Laslos, com o rosto inchado, o nariz
vermelho e sem os dentes da arcada superior, levantou-se e ergueu as duas
mãos, esboçando um sorriso cadavérico.
- Agora são duas?
Porém, havia mais. O restante das mulheres virou-se para ver quem se
apresentaria. Do grupo das mulheres ajoelhadas, seis levantaram-se erguendo
as mãos e sorrindo.
- Vocês querem morrer esta noite? - gritou Alex, como se esta fosse a coisa
mais ridícula que ele já vira. - Estou contando oito. Vocês... agora são nove...
dirijam-se para o lado direito... tudo bem, agora são dez... para serem

conduzidas ao centro de processamento. Podem abaixar as mãos. Mais duas.
Está bem, doze. Não precisam ficar com as mãos levantadas.
Duas mulheres da frente entreolharam-se e começaram a recuar. Assim que
elas levantaram as mãos, Buck viu os selos aparecendo em suas testas.
- Muito bem - disse Alex. - As que vão receber a marca fiquem do lado
esquerdo. As suicidas vão para a direita.
Enquanto ele dizia isso, mais três mulheres postaram-se atrás das duas que
sangravam.
Buck lutava para conter as lágrimas. Se ele cedesse às emoções, poderia
tornar-se mártir naquela mesma noite. No calor do momento, aquela
possibilidade não lhe parecia tão má assim. Mas havia uma esposa, um filho e
companheiros que dependiam dele. Buck permaneceu firme, piscando,
ofegando, lutando para manter o controle. Aquelas mulheres eram heroínas da
fé. Elas se juntariam aos lavados com sangue que transformaram seus corpos
em sacrifícios vivos. Em breve seriam martirizadas e apareceriam sob o altar de
Deus no céu, trajando as vestiduras da justiça, alvas como a neve. Buck sentia
uma ponta de inveja delas.
Enquanto as mulheres eram conduzidas para fora, Alex gritou:
- Vocês ainda podem mudar de idéia! Caso se arrependeram dessa ridícula
opção, saiam dessa fila e entrem na outra!
Mas, quando as corajosas mulheres passaram por Buck, ele viu o selo na
testa de cada uma delas e sabia que não haveria arrependimento de nem uma
sequer. Ele acertou o passo com a policial que conduzia as condenadas à fila da
guilhotina. Esse comportamento não causou nenhuma admiração às outras
prisioneiras, que continuaram na fila da lealdade, decidindo em que local do
corpo receberiam a marca de Nicolae.
Quando a policial apressou o passo para falar com os dois homens que
cuidavam da máquina mortífera, Buck aproximou-se da Sra. Miklos e fingiu que a
estava interrogando.
- Laslos pediu que eu lhe dissesse que ele a ama de todo o coração e que a
verá no céu.

A Sra. Miklos virou-se assustada para Buck. O sangue ainda escorria-lhe
pelas costas. Ela olhou para a farda e, em seguida, para a testa de Buck. Depois,
para o rosto dele.
- Eu conheço o senhor - ela disse.
Buck assentiu com a cabeça.
- Acho que o senhor não conhece a Sra. Demeter - ela disse.
Buck ficou perplexo. A esposa do pastor, que havia levado o golpe no rosto,
cochichou por entre os dentes quebrados:
- Eu gostaria de apertar sua mão, mas, se isso acontecesse, o senhor teria
de entrar em nossa fila.
A Sra. Miklos curvou o corpo e aproximou-se de Buck.
- Agradeça a Laslos por ter-me conduzido a Jesus. Eu estou vendo Jesus.
Eu estou vendo. Estou vendo meu Salvador e mal posso esperar para estar com
Ele!
Após ela ter dito essas palavras, seus joelhos dobraram-se e Buck a
amparou. A policial retornou e agarrou-a.
- Não faça isso, dona! - ela disse.
- Você escolheu e vai ter de ficar em pé.
Buck conteve-se para não dar um soco no rosto da policial. Ela virou-se para
ele e disse:
- O que vamos fazer com todos estes corpos? Não estávamos preparados
para uma coisa dessas.
Buck dirigiu-se para os fundos, onde os guardas estavam enfileirados ao
longo da parede. Era a primeira vez que eles presenciariam execuções como
aquelas. Aparentemente, ninguém queria perder um só lance. Albie aproximou-
se de Buck, visivelmente emocionado.
- Aquela senhora que está com a Sra. Miklos é a esposa do pastor D - disse
Buck.
Albie sacudiu a cabeça.
- Elas são heroínas, Buck. Não sei se quero ver isso.
- Vamos sair daqui.

- Talvez a gente devesse ficar aqui com elas.
- Vamos começar as execuções - avisou Alex Athenas. -Se alguém quiser
mudar de fila, ainda é tempo. Depois que as senhoras tiverem sido colocadas em
posição no aparelho, não poderão mais mudar de idéia. Informem alguém antes
ou sofrerão as conseqüências.
Buck ficou paralisado no lugar, enquanto a Sra. Miklos era conduzida àquela
máquina medonha.
- Já foi testada? - gritou Athenas. - Não quero problemas de mau
funcionamento.
- Positivo! - respondeu o ajudante, que se revezaria com o carrasco a cada
execução.
- Prossiga!
Mesmo estando a uns dez metros do carrasco, Buck conseguiu ler os lábios
dele.
- Última chance, minha senhora.
A esposa de Laslos ajoelhou-se, e o ajudante a posicionou na máquina.
- Vire a mulher para cá! - gritou alguém. - Queremos ver o que vai
acontecer!
Albie virou-se para o homem.
- Cale a boca! Você não está aqui para se divertir!
O silêncio era mortal. Buck ouviu a voz delicada da Sra. Miklos:
- Meu Jesus, eu te amo, sei que tu és meu.
Um soluço subiu à garganta de Buck. Agindo com muita habilidade, o
ajudante apertou o torniquete e levantou-se rapidamente, com as duas mãos
erguidas, para indicar que ele estava fora do alcance da lâmina. Seu
companheiro puxou a corda curta. A pesada lâmina despencou com toda a força.
Buck passou apressado pelos guardas em busca do ar fresco da noite, enojado
diante dos aplausos que se seguiram ao baque violento.
Buck ficou aliviado pelo vômito que saiu em golfadas por sua boca,
permitindo que ele chorasse abertamente. Lágrimas corriam-lhe pelo rosto
enquanto ele pensava nos operários que teriam de retirar as cabeças e os corpos

para dar lugar à vítima seguinte.
Em pé na grama fria, sentindo uma convulsão atrás de outra no estômago,
ele tentou em vão tapar os ouvidos para abafar os sons dos baques e aplausos
que se seguiam. Albie aproximou-se e pousou a mão em suas costas. Sua voz
estava embargada, quando ele afastou gentilmente as mãos de Buck do ouvido e
disse:
- Quando eu chegar ao céu - ele murmurou -, essas duas mulheres são as
primeiras pessoas que desejo ver, depois de Jesus.
DEZOITO

Chaim andava de um lado para o outro no Edifício Strong, decorando
trechos e mais trechos. Rayford notou que ele costumava carregar uma Bíblia,
mas, às vezes, levava um comentário ou anotações próprias.
Para Rayford, Chaim não demonstrava nenhuma eloqüência, impetuosidade
ou confiança. Era como se ele estivesse tentando entender os assuntos básicos
e ter uma idéia do que estava falando. Ele também parecia desolado, e Rayford
gostaria de aconselhá-lo novamente sobre sua posição em relação a Deus, mas
não se sentia qualificado para melhorar nem sequer o próprio ânimo.
Aparentemente, Chaim não considerava Tsion como seu mentor pessoal, mas
apenas como um mestre e motivador incansável.
Causava espanto a Rayford o fato de todos eles terem de enfrentar as
mesmas dúvidas e temores que surgiram logo depois de se converterem. Eles
foram deixados para trás e na ocasião, receavam ter-se aproximado de Deus
como última tentativa para não ir para o inferno. Seria válido esse pensamento?
A Bíblia dizia que eles eram novas criaturas, que as coisas antigas se passaram
e que tudo se fez novo. Rayford teve dificuldade em aceitar que Deus agora o
via, em essência, por intermédio de seu Filho sem pecados, Jesus Cristo.
Aquilo parecia quase impossível. Sim, ele era uma nova pessoa

interiormente. Sabia que isso era verdade do ponto de vista espiritual. Mas
continuava a lutar com seu antigo "eu". Embora a verdade de Deus sobre ele
tivesse sido mais consistente do que suas emoções finitas, elas martelavam sua
consciência todos os dias. Quem era ele para aconselhar Chaim Rozenzweig a
ter fé e a confiar que Deus o conhecia e o compreendia melhor que ele próprio?
Mas se havia alguém que parecia mais saudável que nunca era Hattie. A
ironia disso não passara despercebida a Rayford. Menos de 24 horas antes de
converter-se, ela pensara em suicidar-se. Meses antes, quando algum membro
do Comando Tribulação se dispunha a lhe falar sobre Deus, ela admitia que
entendia e aceitava a verdade sobre a salvação por meio de Cristo. Mas
simplesmente decidira rejeitar essa verdade, porque, apesar de Deus considerá-
la merecedora da salvação, ela própria não se considerava. Na época, Hattie
achava que Deus podia perdoar seus pecados sem restrições, mas que ela não
era obrigada a aceitar esse perdão.
Porém, assim que ela recebeu a dádiva da salvação, sua teimosia sofreu um
desgaste. Em certos aspectos, ela continuava a ser a mesma mulher de sempre,
sem papas na língua, quase tão irritante quanto antes de converter-se. Mas,
evidentemente, todos estavam felizes por ela ter passado a fazer parte do grupo.
Pela expressão no rosto de Chaim, Rayford poderia afirmar que ele se sentia
confuso diante dela. Ele também era um crente novato e talvez se identificasse
com ela. Contudo,
Chaim não demonstrava tanta animação quanto Hattie. Teria sido ele
acometido de uma inveja saudável, que o deixava intrigado com a tagarelice
dela? Será que ele se perguntava por que Deus não lhe concedera um
sentimento de renúncia a todas as outras coisas depois de ter-se comprometido
com a verdade?
Rayford não queria precipitar-se, não queria aceitar ao pé da letra os elogios
de Tsion sobre seu retorno à liderança do grupo. Mas talvez um elemento
surpresa, uma mudança de comportamento, pudesse surtir bons resultados. Será
que ele deveria atrever-se a conspirar com Hattie para ver se ela seria capaz de
tirar o Dr. Rosenzweig daquela apatia? Tsion se convencera de que Chaim era o

homem escolhido por Deus, e Rayford aprendera a confiar na intuição do rabino.
Mas Chaim teria de fazer um grande progresso em curto espaço de tempo se
quisesse tornar-se o vaso escolhido que Tsion previra.
Hattie havia alimentado Kenny e estava trocando as roupas do bebê quando
Rayford aproximou-se dela. Como Kenny era abençoado por ter tantos pais e
mães! Os homens demonstravam grande afeição por ele. Até Zeke, embora um
pouco desajeitado, era extremamente carinhoso e gentil com ele. As mulheres
pareciam saber, por intuição, quando revezar-se para cuidar dele, mas a
responsabilidade final recaía sobre Chloe.
- Você tem um minuto? - perguntou Rayford a Hattie, enquanto ela segurava
o bebê com cheirinho de talco e roupas trocadas de encontro ao ombro.
- Se este rapazinho adormecer, vou ter todo o tempo do mundo, o que, de
acordo com nosso rabino favorito, vai durar menos de três anos e meio.
Hattie não é tão engraçada quanto imagina, pensou Rayford, mas até que
disse uma coisa sensata.
- Você me faria um favor? - perguntou Rayford.
- Claro.
- Não responda assim tão rápido, Hattie.
- Eu falei sério. Pode pedir qualquer coisa. Se for para o seu bem, vou fazer.
- Se você tiver êxito, vai ajudar a causa.
- Não precisa dizer mais nada. Eu topo.
- Tem a ver com Chaim.
- Ele não é demais?
- Ele é ótimo, Hattie. Mas precisa de uma coisa que Tsion e eu não
podemos lhe dar.
- Rayford! Ele tem o dobro de minha idade!
Para não levantar suspeitas, Buck sugeriu que ele e Albie se dirigissem
antes do grupo seguinte para o edifício a leste do centro de processamento, o
local que abrigava os criminosos menos violentos, de acordo com o chefe

encarregado da organização. Ele também havia dito que os religiosos dissidentes
estavam misturados com os piores elementos no último edifício do lado leste. Os
dois aproximaram-se dos guardas no Edifício 4.
- Chegou a nossa vez? - perguntou um dos guardas em um dialeto cantado,
igual ao dos habitantes dos bairros pobres de Londres.
- Logo - disse Buck. - Os próximos são vocês.
- Ouvi uma gritaria. Alguém escolheu a guilhotina? Buck assentiu com a
cabeça, mas deixou claro que não queria falar desse assunto.
- Mais de uma? - insistiu o guarda. Buck assentiu novamente.
- Não foi nada bonito.
- Verdade? Eu gostaria de estar lá. Nunca vi uma coisa destas. Você viu
tudo?
- Já disse que não foi nada bonito. Como eu poderia saber se não tivesse
assistido?
- Sinto muito! Só estou querendo saber. Quantas você viu?
- Só uma.
- Não havia mais de uma? E o senhor, comandante? Viu tudo?
- Pare com isso, cabo - vociferou Albie. - Várias mulheres preferiram morrer
e foram mais corajosas do que muitos homens que já conheci.
- Até aí, tudo bem. Mas elas não eram leais ao potentado, eram?
- Elas não abriram mão de suas convicções - disse Albie.
- Convicções e sentenças, para mim, são a mesma coisa, companheiro.
- Você não faria o mesmo se tivesse uma convicção profunda?
- Eu tenho uma convicção profunda, cavalheiros. Só que estou do outro
lado. Escolhi aquilo que faz sentido. O homem ressuscitou. Vou ficar do lado
dele.
Os guardas armados conduziram as tristes sobreviventes de volta ao edifício
das mulheres. A equipe de Athenas chegou ao edifício onde Buck e Albie
estavam. Buck notou que o grupo dos prisioneiros conduzidos por Alex parecia
tão subjugado quanto o das mulheres, mas os guardas pareciam revigorados.
- Vamos terminar logo com isso - disse Athenas, abrindo caminho.

Ali estavam criminosos de colarinho branco ou que cometeram pequenos
delitos. Não havia gritos nem ameaças. Apenas um pouco de barulho. Eles
ouviram com atenção, e ninguém optou pela guilhotina. Todos saíram
silenciosamente em fila para o centro de processamento. Buck sentiu-se mal com
o cheiro de sangue que tomava conta do centro. Alguém espalhou a notícia entre
os homens de que várias mulheres foram decapitadas naquele local. Os
funcionários encarregados de acionar a guilhotina estavam aliviados por terem
um pouco de descanso.
Buck observava o processo, desesperado ao ver a quantidade de pessoas
que selavam seus destinos por completa ignorância. Os funcionários já haviam
adquirido prática e trabalhavam com rapidez. O processo consistia em entrar na
fila, decidir, desinfetar o local, sentar-se, injetar o chip, voltar para a fila e sair.
Ironicamente, a vida real e verdadeira florescia no momento da morte sangrenta.
A marca, aparentemente inócua, que os homens recebiam e que, segundo eles,
lhes dava garantia de vida era o selo de uma sentença de morte. Da morte, vida.
Da vida, morte.
Buck estava ansioso por conhecer o pastor Demeter, de quem Rayford
havia falado muito. Contudo, ele temia confrontar-se com os piores criminosos do
Edifício 5, por saber que havia ali muitos crentes que optariam pela decisão
certa, porém terrível.
Seu telefone vibrou. No visor, apareceu a seguinte mensagem: "Assunto de
máxima prioridade. Encontrem-se em Kozani à 1 hora da madrugada com agente
penitenciária da CG transferida do PRFB para EUNA. Urgente. Documentos dela
especificam destino. Perto de 30 anos, cabelos escuros, Ming Toy. Tem o selo."
- Vamos ter companhia esta noite - disse Buck a Albie. - Será muito bom ter
uma irmã a bordo que não me faça lembrar deste lugar todas as vezes que eu
olhar para ela.
- Entendo - disse Albie. - Jamais imaginei que pudesse ver coisa semelhante
em minha vida.

A tarde ia chegando ao fim na casa secreta, e todos estavam trabalhando
ativamente, com exceção de Rayford. Zeke costurava. Tsion escrevia. Chloe
trabalhava no computador. Leah tirava cópias. Chaim estudava. Kenny dormia.
Hattie piscou para Rayford e aproximou-se de Chaim.
O ancião, sentado no sofá, ergueu a cabeça, com ar intrigado ao vê-la.
Rayford parecia absorto na leitura de um livro.
- Posso interromper? - ela perguntou. - E estou avisando que não vou
aceitar um não como resposta.
Hattie sentou-se no chão, aos pés de Chaim.
- Já que não tenho escolha, Srta. Durham, vou aproveitar esta pausa para
distrair-me um pouco. Algum problema?
- O senhor é um crente recém-convertido como eu -ela disse -, mas notei
que não costuma falar muito nesse assunto.
- Tenho uma missão a cumprir. Estou estudando muito. Você se lembra dos
tempos de faculdade?
- Não terminei o curso. Eu queria conhecer o mundo. Mas, espere um
pouco, o senhor não vai deixar que o estudo supere a emoção que está sentindo,
vai? Se o senhor concentrar-se só nos estudos, não vai ter tempo de alegrar-se
com sua conversão.
- Não associo a alegria com este estudo. Eu me converti, ou melhor, nós
dois nos convertemos na pior época possível da história. Agora é tempo de
pensarmos em sobreviver. A alegria virá depois. Se tivéssemos nos convertido
antes do Arrebatamento, talvez eu tivesse motivos para ser mais alegre agora.
Ela fez ar de zangada.
- Eu não disse alegria no sentido de dar gargalhadas.
- Mas podemos sentir um pouco de alegria, não? Uma alegria interior, o
senhor não acha?
Chaim balançou a cabeça concordando.
- Acho que sim.
- O senhor acha? Seus olhos e seu jeito me dizem que o senhor ainda não
se convenceu plenamente.

- Ora, você está errada. Estou convencido. Eu creio. Tenho fé.
- Mas não demonstra nenhuma alegria.
- Eu já lhe falei o que penso sobre a alegria.
- Eu não sou capaz de discutir com um gênio como o senhor, mas não vou
desistir. O senhor pode ser dez vezes mais culto do que eu, mas quero que
entenda o que estou lhe dizendo.
- Vou tentar - ele disse. - Com o que você acha que devo concordar?
- Que temos motivos demais para ser agradecidos.
- Ah, eu concordo com isso.
- Mas não fica emocionado!
- De certa maneira, sim. Ou, melhor dizendo, à minha maneira.
Hattie curvou os ombros e suspirou.
- Cheguei ao meu limite. Não consigo convencer o senhor. Mas estou
emocionada demais por saber que o senhor é meu irmão e entusiasmada demais
com a missão que Deus lhe deu.
- Veja só, Srta. Durham, é aqui que diferimos ou divergimos. Entendo que
Tsion tem razão, que estou em posição privilegiada nessa missão estratégica. Já
me conformei com o fato de que isso é inevitável e de que devo ir até o fim. Mas
não me sinto entusiasmado, ansioso, cheio de expectativas.
- Eu me sinto!
- Ouça o que tenho a dizer, Srta. Durham.
- Desculpe-me.
- Aceito essa missão com muita seriedade e sinceridade. Não quero ser um
covarde nem mesmo relutante ou resistente. Trata-se de uma missão que
devemos aceitar como uma espécie de honra ou conquista. Você me entende?
Ela assentiu com a cabeça.
- O senhor está certo. Tenho certeza de que se sente honrado. Mas não se
sente agradecido por ter sido escolhido por Deus para essa tarefa?
- Oh, eu estou muito agradecido. Mas existem ocasiões em que me
identifico com o Senhor Messias, quando Ele orou e pediu ao Pai que, se
possível, o livrasse daquele cálice.

- Mas Ele complementou: "Que seja feita a tua vontade e não a minha."
- Ele fez isso - disse Chaim. - Ore por mim para que eu tenha a mesma
submissão e força de vontade.
- Bem - ela disse, levantando-se -, eu só queria lhe dizer que Deus vai fazer
grandes coisas por seu intermédio. Vou orar pelo senhor durante toda a sua
jornada.
Chaim parecia impossibilitado de falar. Finalmente, com os olhos rasos
d'água, ele conseguiu dizer com voz rouca:
- Muito obrigado, minha jovem irmã. Não tenho palavras para lhe agradecer.
Enquanto entrava no último edifício, Buck notou que Alex estava a seu lado
examinando suas anotações.
- Que trabalho horrível! - disse Buck. Alex resmungou.
- Pior do que imaginei. Quem teria adivinhado que aquelas mulheres seriam
tão decididas? Agora estamos indo encontrar os maridos delas. Vamos ver quem
é mais corajoso.
- Custa-me acreditar que puseram religiosos dissidentes misturados com
criminosos violentos.
- Eu não tenho nada a ver com isso. Tenho um trabalho a cumprir aqui.
- Eu não gostaria de fazer o seu trabalho.
- Eu não pedi.
- Você não acha estranha essa mistura?
Alex parou, enquanto os outros guardas passavam, e olhou firme para Buck,
deixando-o em situação desconfortável.
- Vou fazer-lhe uma pergunta, Jensen. Você já conversou com Nicolae
Carpathia?
O sangue de Buck gelou nas veias. Qual o motivo da pergunta?
- Já faz muito tempo - disse Buck.
- Eu já conversei com ele. E ele considera os dissidentes tão perigosos
quanto os criminosos. Bem, ambos são criminosos.

- Os assassinos e os homens de fé?
- Gente que professa a fé errada, a fé divisória, a fé intolerante.
Buck aproximou-se do oficial.
- Alex, preste atenção no que está fazendo. Você acabou de enviar mais de
uma dúzia de mulheres para a morte porque elas não comungam da fé de
Carpathia. E você chama essas mulheres de intolerantes?
Alex voltou a olhar firme para Buck.
- Eu poderia entregar você. Estou começando a duvidar de sua lealdade.
- Talvez eu também esteja duvidando. O que aconteceu com a liberdade?
- Ainda temos liberdade, Jack - resmungou Alex. - Essa gente pode decidir
sozinha se quer viver ou morrer.
Buck entrou com ele no edifício. Aquele era, sem dúvida, o lugar com maior
número de presos. Homens de todas as idades andavam de um lado para o
outro, conversando. Buck notou pelo menos duas dúzias de homens com o selo
de Deus na testa. Todos pareciam ansiosos por falar de Deus aos outros.
Curiosamente, os outros estavam prestando atenção. Buck cruzou o olhar com o
de Albie.
- Você viu aqueles homens? - ele perguntou baixinho. Albie assentiu com a
cabeça, tristemente. Era maravilhoso ver tantos crentes, mas isso significava que
haveria mais carnificina pela frente. Buck não sabia como identificar o pastor
Demeter sem mencionar seu nome. Ele perguntou a um guarda:
- Quem é o líder dos dissidentes?
- Dos judaístas gregos? Buck encolheu os ombros.
- É assim que eles são chamados aqui?
O guarda apontou com a cabeça para um homem alto, de cabelos pretos,
cercado por uma dúzia ou mais de presos. Ele estava falando de maneira rápida
e sincera, gesticulando muito. Rayford dissera que o homem tinha o dom de
evangelizar e ele devia estar praticando esse dom desesperadamente agora.
Buck aproximou-se até conseguir ouvir o que ele dizia.
- "Mas Deus prova o seu próprio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo
morrido por nós, sendo nós ainda pecadores." Cristo morreu por vocês e por

mim, cavalheiros. Estou suplicando que vocês não aceitem essa marca. Aceitem
a Cristo, recebam perdão por seus pecados, permaneçam ao lado do Deus do
universo.
- Isso vai custar nossa vida - disse um deles.
- É o preço que você tem de pagar por sua vida, meu amigo. Você acha que
eu não sei quanto é difícil? Pergunte a si mesmo: Desejo estar com Deus no céu
hoje mesmo ou empenhar minha lealdade a Satanás e nunca mais poder mudar
de idéia? Esta noite você será morto, mas estará na presença de Deus. Ou você
quer viver mais alguns anos e passar a eternidade no inferno? A escolha é sua.
- Eu quero estar com Deus - disse um homem.
- Você sabe quais são as conseqüências?
- Sei.
- Ore comigo. Eles se ajoelharam.
- Em pé, todos! - gritou Alex.
Deus, sei que sou um pecador, disse o Pastor D, e o homem repetiu cada
palavra.
- Eu disse em pé!
Perdoa os meus pecados, entra em minha vida e salva-me.
- Não me façam mandar um guarda até aí para quebrar a cabeça de vocês!
Obrigado por enviares teu Filho para morrer na cruz por mim.
- Muito bem! Guarda, vá até lá!
Eu aceito a dádiva da salvação e te recebo neste instante.
- Não digam que não avisei!
Buck notou que os outros homens também estavam repetindo a oração em
pé, com os olhos abertos, de frente para Alex.
Amém.
Assim que o guarda se aproximou do pastor D, ele se levantou e ergueu o
outro homem.
- Vocês dois! Parem e prestem atenção! Enquanto o guarda se afastava,
Buck ouviu o homem murmurar:
- Ore mais uma vez.

O pastor D começou a orar novamente, em voz baixa, parecendo prestar
atenção no que Alex dizia. De repente, outros homens começaram a orar e pedir
aos companheiros que fizessem o mesmo. O burburinho chegava até os
guardas, mas nenhum deles conseguia identificar de quem partia.
- Eu preciso saber se alguém aqui vai recusar a marca da lealdade para
acertarmos as filas!
- Eu quero ficar na outra fila! - gritou o pastor D.
- Você se recusa a receber a marca?
- Sim, senhor!
- Sabe quais são as conseqüências?
- Sei. Eu rejeito a autoridade do governador deste mundo e desejo...
- Não me interessa ouvir sua filosofia. Comece a formar a fila à minha direita
enquanto...
- Eu desejo dedicar minha lealdade ao Deus vivo e verdadeiro e a seu Filho,
Jesus Cristo!
- Eu disse para você ficar quieto!
- Ele é o único que oferece o dom gratuito da salvação a todo aquele que
crê!
- Façam aquele homem calar a boca!
- O que você vai fazer? Matar-me duas vezes? Oh, eu posso morrer duas
vezes por meu Deus!
- Alguém mais?
- Eu!
- Eu também!
- Eu!
- Eu também!
Um após outro, os homens começaram a gritar os motivos de sua decisão,
optando por morrer.
- Eu me converti esta noite, aqui mesmo! Convertam-se, homens! É
verdade! Deus ama a todos vocês!
- Silêncio!

- Fui preso porque estava adorando a Deus com meus irmãos crentes! Deus
nunca nos deixará nem nos abandonará!
- Guardas!
Os guardas entraram na cela, atirando os homens ao chão, golpeando suas
cabeças e rostos.
- Não resistam! - gritou o pastor D. - Logo estaremos livres deste sofrimento!
Que os homens que nos espancam possam ouvir o que estamos dizendo antes
que seja tarde demais!
Ele foi golpeado na cabeça com um cassetete e tombou ao chão. Buck viu
um criminoso que não tinha o selo na testa agarrar o guarda pela nuca e atirá-lo
no chão. Outros prisioneiros foram jogados em cima dele, formando uma pilha de
homens.
- Não resistam, irmãos! - gritou um dos crentes. - Falem a verdade!
Os presos não-crentes começaram a revoltar-se.
- Eu vou receber a marca de Carpathia! - gritou um deles. - Mas parem de
bater nesses homens! Sou um covarde, eles são corajosos! Não sei se concordo
com eles, mas eles são mais corajosos que qualquer um de nós!
Um guarda avançou sobre ele e agarrou-o pelos braços dando-lhe uma
gravata. Ele gritou até seu pescoço estalar e caiu morto no chão.
Alex, que permanecia fora da cela tomando conta das armas de seus
homens, pegou uma delas e atirou para o ar silenciando a gritaria.
- Vou autorizar meu pessoal a atirar para matar! - ele disse. - Os que
aceitam a marca da lealdade à Comunidade Global e ao potentado ressurreto
devem ficar à minha esquerda. Os que não aceitam devem ir para a direita...
- Há um único Deus e um único Mediador entre Deus e os homens, o
Senhor Jesus Cristo!
- Façam aquele homem calar a boca!
Os crentes ajudaram o pastor D a levantar-se, mas ele não conseguia ficar
em pé sozinho. Eles o carregaram até o início da fila, à direita de Alex. Algumas
dezenas de homens postaram-se atrás dele. De repente, começaram a cantar:
"O que pode lavar meus pecados? Somente o sangue de Jesus! O que pode me

purificar? Somente o sangue de Jesus!"
- Tirem esses homens daqui! Mandem que eles calem a boca! Eles devem ir
para a fila da guilhotina! Rápido! Rápido!
"Ó que precioso sangue, que me torna alvo como a neve! Outra fonte não
conheço! Somente o sangue de Jesus!"
Quando a fila passou por Buck, ele segurou o pastor D pela camisa e o
empurrou, fingindo forçá-lo a caminhar. Em seguida, cochichou ao ouvido do
pastor:
- Jesus ressuscitou!
Demetrius Demeter, o grande evangelizador, revirou os olhos e continuou a
caminhar cambaleando. Com voz enrolada, ele murmurou:
- Cristo ressuscitou verdadeiramente.
Buck viu o grupo caminhar com passos vacilantes, todos com o selo de
Deus na testa, rumo à câmara da morte, cantando hinos e sendo espancados.
Ele não os acompanhou, porque não teria condições de presenciar a morte
daqueles santos, alguns recém-convertidos. Com os olhos lacrimejantes, ele
avistou Albie e fez um gesto para que ele o acompanhasse. Ambos caminharam
rapidamente até o jipe, mas não conseguiram deixar de ouvir o primeiro baque e
os aplausos que partiam da multidão sedenta de sangue.
Buck deu partida no jipe e acelerou para abafar os sons dos gritos agudos
na escuridão da noite. Calados, ele e Albie rodaram cerca de 40 quilômetros em
direção ao sul, rumo ao aeroporto de Kozani. Buck freou o jipe perto do portão.
Ele e Albie desceram rapidamente e passaram pelos mecânicos.
- A chave está no avião? - perguntou alguém. Buck assentiu com a cabeça,
sem forças para falar. Enquanto ambos caminhavam com passos firmes em
direção à pista e ao hangar onde o jato reabastecido os aguardava, Buck avistou
uma pequenina moça asiática sentada em um banco sob um poste de luz, tendo
ao lado uma mala enorme e uma bagagem de mão. A lâmpada que iluminava
seu uniforme vermelho de agente penitenciária da CG conferia-lhe um ar
angelical.
Ao avistá-los, ela se levantou, tirando os documentos do bolso. Sua

presença ali era um raio de esperança, uma ligação com a vida, com a
segurança, um copo de água fresca em um deserto de desespero.
- Você deve ser Ming Toy - disse Buck bruscamente, mal acreditando que
ainda tinha forças para falar.
- Sou. Sr. Williams?
Buck assentiu com a cabeça.
- Sr. Albie?
- Por favor, somos Jensen e Elbaz enquanto não subirmos a bordo - disse
Albie.
Buck notou que Albie estava tão atormentado quanto ele.
- Deixe-me ver seus documentos - disse Buck, pegando a mala de Ming
Toy. Albie carregou a bagagem de mão.
- Por favor, eu posso carregar alguma coisa, cavalheiros. Vocês não fazem
idéia do quanto estou feliz.
- Enquanto não subirmos naquele avião, Srta. Toy - disse Albie - estamos
apenas cumprindo ordens e transportando uma funcionária de um lugar para
outro.
- Entendo.
- Assim que estivermos a bordo, vamos poder conversar à vontade.
Buck colocou a mala atrás do banco traseiro e ajudou-a a subir, apontando
para uma poltrona. Assim que ela atou o cinto de segurança, Albie sentou-se no
banco do piloto. Buck sentou-se no banco ao lado, sem atar o cinto, virou-se de
lado e pegou uma prancheta.
Em seguida, ele olhou para a moça atrás de si.
- Srta. Toy - ele disse, sentindo um nó na garganta. - Temos de fazer uma
verificação preliminar e obter autorização para decolar.
Ela olhou-o de esguelha, da mesma maneira que costumava fazer com as
prisioneiras do PRFB. A moça devia estar se perguntando o que havia de errado
com aquele homem.
- Assim que levantarmos vôo - prosseguiu Buck, com a respiração
entrecortada -, vamos lhe contar por que sua presença aqui representa um

milagre para nós e por que precisávamos tanto de você neste avião. - Ele
respirou fundo e continuou. - E vamos lhe contar uma história na qual você não
vai acreditar.
DEZENOVE

David despertou várias vezes durante a noite, olhando sempre para o
relógio. Finalmente, às 6 horas, ele pulou da cama, correu oito quilômetros com
um pouco de dificuldade, alimentou-se, tomou uma ducha e vestiu-se. Às 7h30 já
estava em seu escritório.
- Você mudou o horário da entrevista? - perguntou sua assistente.
- Ah, sim, peço-lhe desculpas, Tiff. Algum problema?
- Não, só curiosidade.
David ligou para o ramal 4054 a fim de saber se Chang ainda estava lá e se
compareceria à entrevista marcada para as 9 horas. Assim que ele se identificou,
a Sra. Wong disse:
- Senhor Wong não estar aqui. Ele ligar para senhor depois.
- Chang está aí?
- Não. Chang com pai.
- A senhora sabe onde eles estão?
- Com o Sr. Moon.
- Eles estão com o Sr. Moon?
- Ele ligar para senhor depois.
- Sra. Wong, seu marido e seu filho estão com o Sr. Moon agora?
- Não entender. O senhor ligar para Sr. Moon.
David ligou para o escritório de Moon e informaram-lhe que ele estava no
Departamento de Pessoal. Ele ligou para o DP e informaram-lhe que os
executivos estavam em reunião.
- Você sabe me dizer se eles já começaram a aplicar a marca nos

funcionários recém-admitidos?
- Parece que ainda não, mas vai ser hoje. É sobre isso que eles estão
discutindo na reunião.
- Você sabe me dizer se um de meus candidatos está aí? O nome dele é
Chang Wong.
- Acho que o vi acompanhado do pai hoje de manhã. Eles estavam com o
Sr. Moon.
- Onde eles estão agora?
- Não tenho idéia. Você quer o número do ramal deles? Estão hospedados
aqui...
- Não, obrigado. Eu quero falar com Moon.
- Eu já lhe disse. Ele está em reunião com os executivos do DP
- Meu assunto é urgente.
- Não posso fazer nada.
- Minha senhora, sou um diretor. Por favor, interrompa a reunião e diga ao
Sr. Moon que preciso falar com ele imediatamente.
- Não.
-Não?
- Já tive problemas por fazer esse tipo de coisa antes. Se o assunto é tão
importante assim, acho melhor o senhor mesmo interromper a reunião.
David desligou o telefone com força e correu até o DP. A sala de reuniões
estava vazia. A recepcionista levantou a mão para detê-lo enquanto falava ao
telefone.
- Interrompa a conversa só por um minuto - disse David. - É muito
importante.
- Um momento, por favor.
- Obrígado! Eu...
- Eu não interrompi minha ligação para ajudar você. Eu interrompi para pedir
que você aguarde a sua vez.
- Mas eu...
Ela levantou a mão novamente e voltou a falar ao telefone. Quando estava

terminando, outro telefone tocou, e ela atendeu. David debruçou-se sobre a
mesa e apertou o botão de desligar.
- Diretor Hassid! Vou dar parte de você!
- É melhor mesmo você dar um jeito de me mandarem embora antes que eu
despeça você - ele disse. - Onde é a tal reunião?
- Não sei.
- Não é aqui; onde é?
- Fora daqui, claro.
- Onde?
- Sinceramente, não sei, mas tenho um palpite de que é no porão do Edifício
D.
- Fica a uns 400 metros daqui! Por que você não me contou antes que a
reunião era lá? Por que não me contou quando sugeriu que eu interrompesse a
reunião?
- Eu não sabia que o senhor ia fazer isso.
O telefone tocou novamente.
- Não atenda.
- Faz parte do meu trabalho.
- Se você atender, vai perder o emprego. Por que a reunião está sendo
realizada no Edifício D?
- Eu não sei. Eu disse que era só um palpite.
- Por que lá?
- Porque é lá que estão instalando o centro de aplicação da marca da
lealdade - ela disse atendendo o telefone.
David bateu na mesa, com as duas mãos abertas, fazendo a recepcionista
pular de susto e desculpar-se com a pessoa do outro lado da linha. Enquanto ele
se dirigia à porta, ela o chamou com voz melosa.
- Oh, diretor Hassid! Acho melhor o senhor atender esta ligação. É sua
assistente.
Ele voltou apressado, e ela o olhou com ar de zombaria.
- Imagine só se eu vou deixar o senhor usar meu telefone -ela disse,

apontando para um aparelho na sala de espera.
- Aqui é David.
- Acabei de receber uma ligação de Walter Moon.
- Onde ele está?
- Sinto muito, não sei. Ele não disse, e eu não perguntei. Quer que eu
descubra?
- O que ele queria?
- Ele disse que vai levar pessoalmente seu candidato para a entrevista das 9
horas. Disse que ele e o pai do candidato estavam muito felizes com seu
interesse. Você conhece essas coisas.
- O que o rapaz estava fazendo com Moon?
- Não tenho idéia, mas posso tentar descobrir.
- Encontre Moon e me ligue de volta no meu celular.
David caminhou apressado até o Edifício D. O porão estava cercado por
cordões de isolamento. Ele precisou lançar mão de todos os artifícios para
passar pela segurança. Finalmente, quando conseguiu olhar pela fresta da porta
dupla que dava acesso a uma enorme sala de reuniões, viu pela primeira vez as
instalações para aplicar a marca da lealdade. Barricadas haviam sido montadas
para afunilar a multidão até os locais de seleção e, depois, aos cubículos onde os
últimos lotes de injetores estavam sendo ligados e testados.xx
- Para que serve tudo isto? - David perguntou a uma mulher que colocava as
cadeiras no lugar.
- Ora, vamos, você deve saber.
- Mas por que um lugar tão grande assim? Pensei que eles iam começar a
aplicar a marca só nos novos funcionários.
Ela encolheu os ombros.
- Depois seremos nós. Tudo precisa estar no lugar e testado, não? Eu mal
posso esperar. Sempre sonhei com isso.
- Você viu o Sr. Moon esta manhã?
- Ele estava aqui até alguns minutos atrás.
- Acompanhado de alguém?

- Não sei quem eram. Havia alguns do Departamento de Pessoal.
- Mais alguém?
- Eu não prestei atenção.
- Sabe onde ele está agora?
- Não, mas acho que o senhor já ouviu os boatos.
- Que boatos? Ela sorriu.
- Os diretores nunca sabem dos boatos, não é mesmo?
- É verdade.
- Acho que vocês provocam boatos ou pelo menos as reuniões de diretoria
fazem isso.
- Com certeza. Qual é a novidade?
- Moon está cotado para ser o Supremo Comandante.
- Não diga!
- Eu gosto dele. Acho que tem condições.
O celular de David vibrou, e ele pediu licença à mulher.
- O pessoal de Moon me contou que ele está com Carpathia - disse Tiffany.
- Sozinho?
- Sinto muito, David. Eu não perguntei. Posso descobrir tudo o que você
quiser, mas antes preciso saber o que estou procurando.
- A falha foi minha. Eles perguntaram se Walter vai levar Chang para a
entrevista das 9 horas?
- Ah, sim! Pelo menos consegui lhe dar uma resposta! Sim.
- Você tem certeza?
- Tenho.
- Chang está com ele e Carpathia agora?
- Sinto muito. Não tenho idéia.
- Estou indo para aí.
Enquanto caminhava, David pegou seu celular e ligou novamente para o
apartamento de Chang. Dessa vez, o Sr. Wong atendeu. Um pouco mais
animado, David perguntou por Chang.
- No momento, ele não poder atender. Ele encontrar o senhor às 9, certo?

- Certo. Ele está bem?
- Muito bem! Muito feliz! Sr. Moon buscar nós para ver senhor.
- O senhor também vem?
- Posso?
David suspirou.
- Por que não?
- Não?
- Claro que pode.
De volta a seu escritório, faltando 15 minutos para a entrevista, David
resolveu bisbilhotar o que se passava no escritório de Carpathia. A primeira coisa
que ele ouviu foi a voz de Nicolae.
- Hickman era um bufão! Estou bem melhor sem ele. Não sei onde Leon
estava com a cabeça.
- Provavelmente Leon imaginava que ia substituir o senhor e que poderia
manipular Jim com facilidade. Carpathia riu.
- Você sabe julgar bem as pessoas, Walter. Sobraram você e Suhail. Ele
tem um bom currículo, mas ainda é muito inexperiente na atual função.
- O senhor confia em um paquistanês? Eu não entendo essa gente.
- Em quem podemos confiar nestes dias, Walter? Agora, preste atenção.
Não sei se você gosta de pompas e circunstâncias, mas não quero fazer um
grande alarde disso. Você terá um belo escritório sem precisar dividi-lo com
ninguém. Eu quero anunciar sua promoção sem muita cerimônia.
- Perfeito - disse Walter. - Eu não quero que o senhor perca tempo comigo.
David achou que Walter não parecia sincero e que se sentia desapontado. No
entanto, ele estava certo em agradar ao ego de Carpathia. De qualquer forma,
ninguém iria roubar-lhe a posição.
- Walter - disse Carpathia -, como estão indo os MMCG?
Moon demonstrou surpresa.
- Senhor, os Monitores de Moral da CG estão trabalhando firme há muito
tempo. Eu recebo informações deles todos os dias e sei que Suhail confia em
seus relatórios sigilosos.

Ficou claro que Carpathia estava impaciente.
- Walter, com certeza você entendeu meu recado recente quando falei de
mobilizarmos um grande contingente de todas as tribos e nações que...
- Claro, potentado. Estou trabalhando com o chefe Akbar para...
- Não acredito! Você se esqueceu! Walter, estou determinado a cercar-me
de pessoas que me entendam intuitivamente!
- Sinto muito, Excelência. Eu...
- Apesar de todos os defeitos e idiossincrasias de Leon, ele é um homem
que me entende, que prevê minhas necessidades, desejos e estratégias. Você
sabe...
- Esse é o tipo de subordinado que eu gostaria de...
- Não me interrompa, por favor!
- Peço-lhe desculpas.
- Você sabe onde Leon está agora?
- Ouvi dizer que ele voou para os Estados Unidos Euro...
- Ele está no Vaticano, Walter! Convocou os dez potentados regionais e
pediu a cada um que levasse seu líder espiritual mais confiável e leal para se
reunirem com ele no antigo grande bastião do cristianismo.
- Eu não enten...
- Claro que não! Pense, homem! Neste exato momento, o Reverendo
Fortunato deve estar ajoelhado na Capela Sistina, com os subpotentados e os
líderes espirituais de cada região, que representarão o Carpathianismo ao redor
do mundo, impondo as mãos sobre a cabeça deles e encarregando-os da grande
missão que terão pela frente.
- Eu gostaria de estar lá, Excelência.
- Você é meu chefe de segurança e não sabia disso! Vou promovê-lo a
Supremo Comandante, mas você precisa entrar no esquema!
- Farei o melhor que puder.
- Leon me ligou de madrugada e contou-me, com grande alegria, que
ordenou a destruição de todas as relíquias do Vaticano, todos os ícones, todas
as peças de arte que digam respeito a esse Deus da Bíblia. Alguns potentados e

até mesmo alguns carpathianistas sugeriram que esses supostos tesouros de
valor incalculável fossem transferidos para cá e guardados no palácio para
preservar seu valor e ficar para a História. História! Nunca tive tanto orgulho de
Leon. Antes da volta dele, não restará no Vaticano nenhum vestígio de tributos a
qualquer deus a não ser àquele que meu povo pode ver, tocar e ouvir.
- Amém, Sua Santidade. O senhor ressuscitou verdadeiramente.
- Claro, e o mundo inteiro viu! E, quando falei alguns dias atrás de um
exército de homens implacáveis, eu queria que você entendesse que eu estava
me referindo à elite de minhas tropas mais leais, os MMCG. Eles já estão
armados. Quero que recebam todo o apoio! Quero que estejam totalmente
equipados! Quero que você os abasteça com nossas munições para que a
presença deles seja notada. Eles devem ser respeitados e reverenciados a ponto
de causar medo nas pessoas.
- O senhor quer impor medo aos cidadãos?
- Walter! Nenhum homem que me ama e me adora precisa ter medo de
mim. Você sabe disso.
- Eu sei, senhor.
- Se houver algum homem, mulher, jovem ou criança com motivos para se
sentirem culpados quando confrontados por um membro dos Monitores de Moral
da Comunidade Global, aí sim, quero ver essa pessoa tremer de medo!
- Eu entendo, Excelência.
- Entende mesmo, Walter? Eu preciso ter certeza.
- Entendo perfeitamente, senhor.
- Como chefe da segurança, você tem a liberdade de substituir quem quiser.
Só quero que saiba que estou transferindo a você a responsabilidade de levar
adiante esse meu desejo.
- De fortalecer os músculos dos MMCG.
- Esse é o eufemismo do século.
- Existe verba para isso?
- Walter, você se reporta diretamente a mim. Eu controlo o mundo no âmbito
político, militar, espiritual e econômico. Tenho recursos infinitos. Não poupe

nenhum centavo para tornar os MMCG a força mais poderosa que o mundo já
viu.
- Sim, senhor!
- Divirta-se com esse trabalho! Extraia dele o melhor que puder! Mas não
perca tempo! Quero um contingente de pelo menos cem mil homens equipados
em Israel quando eu chegar lá em triunfo.
- Senhor, temos poucos dias pela frente.
- Temos pessoal?
- Temos.
- Temos armamentos?
- Temos. O senhor está abrindo mão da idéia anterior de não exibir sua
força militar em forma de tanques, caças a jato, bombardeiros e coisas do
gênero?
- Você está começando a entender, Walter. Quero esmagar qualquer
resistência em Israel antes mesmo que ela se levante. De quem eu poderia
esperar oposição?
- Dos judaístas e...
- Você já me disse que eles não devem aparecer por lá. O quartel-general
deles fica escondido nas sombras da Internet. De quem eu poderia esperar
oposição em carne e osso dentro de, digamos, Jerusalém? Você conhece meus
planos.
- Não totalmente, senhor.
- Mas sabe quem se sentirá insultado.
- Os ortodoxos, senhor. Os judeus religiosos e consagrados.
David ouviu o som do ranger de cadeiras, e ficou claro que Carpathia e
Moon haviam-se levantado.
- Vou fazer-lhe uma pergunta, Walter. Que perigo podem representar para
mim aqueles homens esquisitos, com suas barbas, cabelos trançados e barretes,
quando eles virem cem mil homens armados até os dentes, que estarão lá para
me proteger e a todos os que me adoram?
- Nenhum, Excelência.

- Nenhum mesmo, Walter. Tenha um bom dia.
David calculou que Walter ainda tinha tempo para chegar à entrevista. O
objetivo de David era ludibriar Walter, bajular o Sr. Wong e conseguir livrar-se
deles para planejar com Chang a melhor maneira de saírem dali com os outros
crentes. Ainda com os fones no ouvido, ele se preparava para desligar o
computador quando ouviu Carpathia cantarolando como se estivesse escrevendo
uma canção, tentando compor versos, melhorando a rima, começando de novo.
David ouviu completamente pasmo.
Depois de aperfeiçoar a canção em forma de melodia militar, Carpathia
cantou suavemente:
Salve Carpathia, nosso rei ressurreto e senhor;
Salve Carpathia, dono do mundo e nosso governador.
Todos nós o adoraremos eternamente;
Ele é o nosso Nicolae, nosso amado dirigente.
Salve Carpathia, nosso rei ressurreto e senhor.
Faltavam alguns minutos para a meia-noite em Chicago.
Apenas Rayford e Tsion estavam acordados. Todos aguardavam
ansiosamente o retorno de Buck e Albie e da nova integrante do grupo, Ming
Toy. Chloe e Leah pediram que fossem acordadas assim que o helicóptero
chegasse.
Tsion havia trabalhado o dia inteiro em uma nova mensagem.
- Estou pronto para transmiti-la - ele disse a Rayford -, mas gostaria que
você a lesse antes. É um estudo interessante, mas de difícil compreensão para
os recém-convertidos. Temos centenas de milhares de novos crentes unindo-se
a nós a cada dia, porém tenho também de pensar em mudar a alimentação dos
mais antigos, passando do leite para comida sólida, como fazemos com os
bebês. Talvez chegue o dia em que alguém como Chaim possa encarregar-se de
doutrinar os iniciantes.
Rayford pegou uma cópia impressa das mãos de Tsion, sentindo-se

privilegiado por ser um dos primeiros a ler uma mensagem da qual bilhões de
pessoas se beneficiariam.
Meus caros irmãos em Cristo:
Ao ler suas cartas enviadas à central de mensagens, notei que
existem algumas dúvidas sobre determinadas passagens e doutrinas.
Hoje abordarei uma delas. Sinto-me grandemente estimulado ao saber
que vocês estão curiosos, lendo, estudando e demonstrando claramente
que desejam aprender e crescer como crentes no Messias. Se vocês já
depositaram sua confiança em Cristo para serem salvos pela graça
mediante a fé, podem considerar-se verdadeiros santos da tribulação.
Apesar de nos regozijarmos nesta nova posição que ocupamos
perante Deus - passando das coisas velhas para as novas, da morte
para a vida, da escuridão para a luz -, sem dúvida temos consciência da
realidade de que estamos vivendo uma prorrogação de tempo aqui na
terra. E essa realidade está sendo sentida mais do que nunca.
Entendo que um de seus objetivos mais sublimes é sobreviver até o
dia do Glorioso Aparecimento. Eu também tenho esse objetivo, mas
quero lembrá-los de que ele não deve ser o mais importante de todos. O
apóstolo Paulo disse: "Para mim o viver é Cristo, e o morrer é lucro."
Embora possa ser emocionante demais ver o Senhor Jesus Cristo
retornar em triunfo à terra e estabelecer o seu reino de mil anos, creio
que, se eu for chamado aos céus antes, será muito bom assistir de lá ao
retorno de Cristo.
Meus amados, nossa prioridade máxima agora é não nos opormos
às maldades do anticristo, embora eu me esforce para isso diariamente.
Quero envergonhá-lo, insultá-lo, enfurecê-lo, frustrá-lo e atrapalhar seus
planos de todas as maneiras possíveis. Seu objetivo principal é dominar,
ser adorado e causar a morte e destruição das pessoas que venham a
tornar-se santos da tribulação.
Portanto, por mais digno e nobre que seja o objetivo de lutarmos

contra o maligno, creio que podemos trabalhar com mais eficiência se
concentrarmos nossos esforços nos indecisos, para que eles se
convertam. Sabendo que cada dia pode ser o último - podemos ser
descobertos e levados a um centro de aplicação da marca, onde teremos
de tomar a decisão de morrer por amor a Cristo -, devemos nos
empenhar nessa tarefa com urgência.
Muitos que me escrevem estão temerosos e confessam que não
sabem se terão coragem ou firmeza para optar pela morte quando
estiverem diante da guilhotina. Como companheiro de vocês nesta
jornada de fé, quero que saibam que também sinto o mesmo. Sou fraco
na carne. Quero viver. Tenho medo da morte, de morrer. O simples
pensamento de ter minha cabeça separada do corpo causa-me um
arrepio como causa a qualquer pessoa. Em meus mais terríveis
pesadelos, eu me vejo em pé diante dos carrascos da CG como um
homem fraco e trêmulo implorando por viver. Eu me vejo partindo o
coração de Deus ao negar o meu Senhor. Oh, que cena terrível!
Em meus pensamentos mais odiosos, eu falho na hora do teste e aceito
a marca da lealdade que, conforme todos nós sabemos, é a marca
amaldiçoada da besta, tudo porque tenho grande apreço por minha vida.
Vocês também sentem esse medo hoje, meus amigos? Vocês se sentem
bem por estarem escondidos e com possibilidades de sobreviver? Mas
sentem um mau pressentimento a respeito do dia em que serão forçados
a declarar publicamente sua fé ou negar seu Salvador?
Posso dizer a vocês que é difícil entender essas coisas, até para mim
que fui chamado para ser seu pastor e lhes expor a Palavra de Deus. A
Bíblia nos diz que o selo de Deus ou a marca da lealdade do anticristo
são escolhas definitivas. Em outras palavras, aquele que se decidiu por
Cristo e tem o selo de Deus na testa não pode mudar de idéia!
Isso me faz entender que, quando tivermos de enfrentar o teste
derradeiro, Deus subjugará nossa mente humana egoísta e maligna e
nos concederá a graça e a coragem para tomarmos a decisão certa.

Minha interpretação a respeito disso é que seremos incapazes de negar
a Jesus, incapazes de escolher a marca que salvará nossa vida apenas
temporariamente.
Esse entendimento não é uma bênção? Humanamente falando,
para mim a escolha seria tão difícil quanto atravessar o Pacífico a nado.
Tenho ouvido histórias de crentes do passado que foram colocados na
mira de uma arma para negar sua fé, mas eles permaneceram firmes e
morreram por ela. Nunca imaginei ser tão forte assim.
Entre minha última mensagem e esta, ouvi falar da história de uma
pessoa que foi uma das primeiras a enfrentar esse teste. Não temos o
relato de testemunhas oculares; ninguém nos contou como se
desenrolou a cena. Sabemos apenas que, dentre todas as pessoas
levadas a um determinado centro de aplicação da marca (e eu me
reservo o direito de não dizer qual é), só um homem recusou-se a
recebê-la. Ele preferiu morrer a negar a Cristo.
Meu coração sofre pelos familiares daquele homem. Que cena
terrível para recordar depois de ver um parente morrer daquela maneira!
Mas como é emocionante saber que Deus foi fiel! Ele estava lá naquela
hora de angústia. E esse amado irmão é um dos mártires que se
encontram sob o altar de Deus, trajando vestiduras brancas como a
neve. Enquanto o anticristo e o falso profeta espalham suas mensagens
de mentira, ódio e falsas doutrinas ao redor do mundo, forçando milhões
de pessoas a adorarem Satanás depois de ameaçarem decapitar as que
se recusarem, seria aconselhável memorizarmos um versículo do livro
de Apocalipse. No capítulo 20, versículo 4, João escreve esta parte da
revelação que Deus lhe deu:
"Vi ainda as almas dos decapitados por causa do testemunho de
Jesus, bem como por causa da palavra de Deus, tantos quantos não
adoraram a besta, nem tampouco a sua imagem, e não receberam a
marca na fronte e na mão; e viveram e reinaram com Cristo durante mil
anos."

Seus queridos chamados para um fim ignóbil e sangrento, conforme
o mundo diz, retornarão com Cristo em seu Glorioso Aparecimento! Eles
viverão e reinarão com Cristo durante mil anos! Glória seja dada ao Deus
Pai e a seu Filho, Jesus Cristo!
E quanto a você e a mim, meu amigo? Estaremos entre eles? Oh,
que privilégio!
Em Apocalipse 14.12-13 está escrito: "Aqui está a perseverança dos
santos, os que guardam os mandamentos de Deus e a fé em Jesus.
Então ouvi uma voz do céu, dizendo: Escreve: Bem-aventurados os
mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que
descansem das suas fadigas, pois as suas obras os acompanham."
E o que será daqueles que desfrutam por uns tempos o favor do
governador deste mundo? O que será daqueles que escapam da
guilhotina e parecem prosperar? Assim como a Bíblia exalta aqueles que
são lavados no sangue do Cordeiro, vejam que terrível destino têm os
que optam pelo outro caminho. Em Apocalipse 14.9-11, João cita um
anjo "dizendo, em grande voz: Se alguém adora a besta e a sua imagem,
e recebe a sua marca na fronte, ou sobre a mão, também esse beberá
do vinho da cólera de Deus, preparado, sem mistura, do cálice da sua
ira, e será atormentado com fogo e enxofre, diante dos santos anjos e na
presença do Cordeiro. A fumaça do seu tormento sobe pelos séculos dos
séculos, e não têm descanso algum, nem de dia nem de noite, os
adoradores da besta e da sua imagem, e quem quer que receba a marca
do seu nome."
Vocês não precisam ser estudiosos da Bíblia para compreender
isso.
Agora, amados irmãos e irmãs, vou esclarecer algumas passagens
que provocaram perguntas de muitos de vocês. No Salmo 69.28, o
salmista faz a seguinte súplica ao Senhor a respeito de seus inimigos:
"Sejam riscados do livro dos vivos, e não tenham registro com os justos."
Êxodo 32.33 diz: "Então disse o Senhor a Moisés: Riscarei do meu livro

todo aquele que pecar contra mim."
Essas referências fizeram com que algumas pessoas temessem
perder a salvação. Mas minha argumentação é a de que o livro ali
referido é o livro do Deus Pai, no qual estão escritos os nomes de cada
pessoa criada por Ele.
O Novo Testamento menciona o Livro da Vida do Cordeiro.
Sabemos que o Cordeiro é Jesus, porque Ele foi assim chamado por
João Batista, que disse: "Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do
mundo!" (João 1.29).
Jesus Cristo veio ao mundo para salvar os pecadores, portanto o
Livro da Vida do Cordeiro é aquele que registra os nomes dos que
receberam a dádiva da vida eterna. A diferença mais importante entre
esses dois livros é que a pessoa pode ter seu nome riscado do Livro da
Vida. Mas em Apocalipse 3.5 Jesus promete: "O vencedor será assim
vestido de vestiduras brancas, e de modo nenhum apagarei o seu nome
do livro da vida; pelo contrário, confessarei o seu nome diante de meu
Pai e diante dos seus anjos."
Os vencedores a que Ele se refere são aqueles vestidos com as
vestiduras brancas do próprio Cristo, garantindo que seus nomes não
serão apagados do Livro da Vida do Cordeiro.
Para mim, o Livro da Vida é uma mostra da misericórdia de Deus.
Entendo que, antecipando a nossa salvação, Ele escreve o nome de
cada pessoa naquele livro. Se alguém morre sem aceitar a Cristo como
seu Salvador, seu nome é apagado, porque ele não está mais entre os
viventes. Mas aqueles que aceitaram a Cristo têm seus nomes escritos
no Livro da Vida do Cordeiro. Quando eles morrem fisicamente,
permanecem vivos espiritualmente e jamais são riscados.
Rayford teve de admitir a si mesmo que também estava preocupado com
sua reação, caso tivesse de enfrentar a guilhotina. Desejava ser verdadeiro e fiel
àquele que morreu por ele e desejava ver sua família novamente. Mas, se

fracassasse e provasse ser um covarde, ele gostaria de saber se perderia sua
posição perante Deus.
- Tsion - ele disse -, eu não mudaria uma palavra sequer. Essa mensagem
animará e confortará milhões de pessoas. Com certeza, ela me ajudou muito.
VINTE

David não conseguia ficar parado. Como ele faria para ter sucesso nessa
empreitada? Talvez devesse demonstrar desinteresse por Chang como
funcionário. Será que alguém acreditaria nisso? Ele começou a andar de um lado
para o outro, arrumando o nó da gravata e abotoando o paletó do uniforme.
Quando Moon, o Sr. Wong e Chang finalmente chegaram, David ficou
desconcertado com a aparência de Chang. Aquele rapaz de 17 anos, pele lisa,
usava calça cáqui, uma jaqueta fechada com zíper até o pescoço e um boné
vermelho de beisebol enterrado na cabeça, quase cobrindo os olhos. Ele estava
visivelmente zangado, e seus olhos moviam-se com rapidez de um lado para o
outro, sem encarar David.
Moon e o Sr. Wong pareciam despreocupados, rindo e conversando em voz
alta.
- Senhor já ver rapaz tão medroso? - perguntou o Sr. Wong.
- Acho que sim!
Tiffany os conduziu para dentro da sala, e David apertou as mãos de Walter
e depois do Sr. Wong, que disse:
- Tira boné para entrevista, Chang.
Pela primeira vez desde o funeral de Carpathia, David viu Chang não dar
atenção ao pai. Vermelho de raiva, o Sr. Wong ficou sério. Em seguida, esboçou
um sorriso, apertando e sacudindo a mão de David.
- Ele tirar boné para fotografia!
Moon riu, parecendo lembrar-se de algum evento engraçado.

David estendeu a mão para Chang, mas o rapaz continuou imóvel olhando
para baixo. O pai gritou com ele:
- Aperta mão de chefe, Chang!
O rapaz estendeu a mão com má vontade, segurando frouxamente a de
David. Foi um cumprimento frio. David imaginou ter visto uma lágrima correr
perto da boca de Chang. Talvez esse tipo de comportamento fosse bom. Já que
David estava tentando tirá-lo dali dentro de alguns dias, seria melhor que eles
não agissem civilizadamente um com o outro.
Walter Moon disse:
- Ele ressuscitou.
O Sr. Wong e David responderam:
- Ele ressuscitou verdadeiramente.
David assustou-se ao ouvir Chang murmurar:
- Cristo ressuscitou verdadeiramente.
Para Chang, aquela devia ser uma atitude de coragem piedosa, mas David
a considerou um ato temerário de um adolescente. Aparentemente, os outros
dois não ouviram.
- Sentem-se, por favor, cavalheiros - disse David. - Eu gostaria de conversar
a sós com o candidato, mas acho que foi bom os senhores estarem aqui, chefe
Moon e Sr. Wong. Li o manual sobre contratação de funcionários e há um
problema com referência à questão de idade.
- Questão de idade? - disse o Sr. Wong, parecendo chocado. - O que é
isso?
- Que bom - disse Chang, levantando-se para sair.
- Fica sentado! Lembra boas maneiras! Você convidado aqui para entrevista!
Chang voltou a sentar-se de maneira relaxada, com os pés cruzados.
Moon fez um gesto para pôr um fim na preocupação de David.
- Sua Excelência já abriu mão disso e...
- A política não permite nenhuma exceção - pressionou David.
- David - disse Walter lentamente, fazendo-o lembrar-se da maneira como
Carpathia conversara com Moon minutos antes -, o potentado é a política. Se ele

determinar que este jovem com uma inteligência fora de série e gênio em
informática é útil para a Comunidade Global, não há o que discutir.
David respirou fundo, decidido a partir para a ofensiva. Moon, porém, não
havia terminado.
- Você sabe que o potentado Carpathia já autorizou Chang a completar o
último ano do Segundo Grau aqui e, depois, a faculdade.
- Eu sempre achei que o colégio daqui fosse para beneficiar apenas os filhos
dos funcionários - disse David.
- Os professores não têm interesse em saber quem são os pais de seus
alunos. Diga ao Sr. Wong que planos você tem para Chang, David.
O Sr. Wong sorriu e inclinou-se para a frente, ávido por ouvir o que David
tinha a dizer.
Isto aqui não vai dar em nada, pensou David.
- Meus planos são que ele termine o Segundo Grau na China e inicie sua
carreira em qualquer lugar, menos aqui. O sorriso do Sr. Wong desapareceu.
- O quê? - ele disse, virando-se para Moon.
- David! - exclamou Walter. - O que...
- Olhem para ele - disse David.
Os dois homens viraram-se para Chang, que olhava para o chão, com as
mãos nos bolsos.
- Levanta, garoto. Você não ser assim. Eu estar envergonhado.
Chang mexeu-se no lugar com indiferença e levantou um pouco o queixo,
mantendo uma postura insolente. Seu pai cutucou-lhe no ombro, e Chang o
repeliu. O Sr. Wong lançou um olhar furioso ao filho.
- Ele não quer trabalhar aqui - disse David. - É jovem demais, imaturo,
despreparado para a função. Não duvido de sua eficiência ou potencial, mas é
melhor que ele cure suas esquisitices com o dinheiro de outra pessoa.
- Não vamos nos precipitar, David - disse Moon. - O rapaz acabou de sofrer
um trauma. Estava morrendo de medo, mas foi até o fim e continua um pouco
abalado.
David empinou a cabeça como se estivesse disposto a pensar na desculpa.

- Verdade?
- Sim - disse o Sr. Wong. - Ele estar aborrecido. Ficar com medo da agulha,
da injeção. Gritar. Chorar. Quase fugir, mas nós segurar ele. Ele me agradecer
um dia. Talvez amanhã.
- E por que ele precisou tomar injeção?
- Biochip ! - exclamou o Sr. Wong com orgulho. - Um dos primeiros! Você
vê?
Ele tentou tirar o boné do rapaz, mas Chang levantou-se novamente e deu
as costas para o pai. David esforçou-se para manter a compostura. E agora?
Como aquilo pôde acontecer?
- Quando? - ele perguntou, sem pensar. - Como?
- Hoje de manhã - disse Walter. - Eu esperava que eles já estivessem
prontos. Levei câmara fotográfica e filme. Mas eles não estavam. Resolvemos
esperar mais um pouco, mas eles viram que eu já tinha tido problemas demais.
Assim que a primeira máquina foi ligada e pronta para funcionar, eles a testaram,
e o rapaz aqui foi o primeiro a usá-la. Não tenho certeza se a foto ficou boa. O
rapaz estava com a mesma cara amarrada que está agora.
- Bem - disse David -, é que... ah... é que...
- Foi muito importante - disse Walter. - Acho que o rapaz está satisfeito e, se
for honesto, vai admitir que não doeu nada.
- Eu estar orgulhoso! Filho também vai ficar. Mas ele estar pronto para
trabalhar. Sem problema de idade. Sem problema de escola. Lugar dele ser aqui.
- Na Comunidade Global, talvez - disse David, sem expressão na voz. Como
ele explicaria isso a Ming? - Mas não em meu departamento.
- Não seja ridículo, David. Acabamos de explicar o comportamento do rapaz.
Nós dois sabemos que não existe lugar melhor para ele.
- Então, fique com ele. Eu não quero esse rapaz. Não tenho interesse em
tentar conquistar a simpatia dele e treiná-lo ao mesmo tempo.
- Eu tenho intenção de ficar com ele, David. Ele vai fazer seu chefe parecer
um gênio. E talvez esse gênio seja eu.
David levantou-se e esticou os braços, com as palmas das mãos para cima.

- Foi muito bom ver vocês novamente.
Chang fez menção de levantar-se, mas seu pai o deteve com a mão e olhou
para Walter.
- Sente-se, David - disse Moon. - Vamos deixar você alguns minutos a sós
com Chang para que ele conquiste sua simpatia.
- Não há flores ou caixas de bombons no mundo que consigam isso!
- Descubra o que está atormentando o rapaz. Se for apenas o trauma da
injeção, ele merece uma nova chance. O que você acha?
- Acho que, se eu não concordar, você vai contar correndo ao potentado.
Moon levantou-se e pediu, com um gesto, que David fizesse o mesmo.
Debruçando-se sobre a mesa, ele disse ao ouvido de David:
- Não devemos nos comportar assim diante de estranhos, principalmente de
um defensor da CG como o Sr. Wong. Você estava absolutamente certo quando
disse que eu ia contar à chefia. Agora você sabe que Carp... Sua Excelência
quer esse garoto no quadro de funcionários, portanto vá em frente.
- Ele afastou-se de David e virou-se para o Sr. Wong. -Vamos deixá-los a
sós por alguns minutos para que eles se entendam.
Enquanto saía, o Sr. Wong disse ao filho:
- Eu estar orgulhoso de você, de verdade. Mas Chang desviou o olhar.
Assim que a porta foi fechada, Chang levantou-se e dirigiu-se à cadeira do
centro, de frente para David, reassumindo sua postura insolente. David sentou-se
e pousou o cotovelo na mesa, com a mão no queixo, olhando para Chang, que
não conseguia encará-lo.
- As persianas atrás de mim estão abertas? - murmurou o rapaz, ainda sem
olhar para David.
- Estão.
- Feche-as.
- Isso seria uma atitude errada, Chang. Se eles estiverem olhando para cá,
quero que vejam que não estou gostando de você, o que neste momento é uma
verdade.
- Eles ainda estão lá fora?

- Estão.
- Feche as persianas ou me avise quando eles forem embora.
- Eles estão indo embora.
- Está bem. Espere até que eles desapareçam de vista e feche as persianas
sem demonstrar uma atitude errada, mas eu não quero me preocupar se outra
pessoa vier espiar aqui dentro, como sua secretária.
- Assistente.
- Sei lá. Tiffany, certo?
- Você é um bom observador.
- Eu não perco nada. Sei até que ela não é crente.
- Estou tentando encontrar um jeito de convertê-la. Chang continuava
sentado, com os ombros caídos, olhando para baixo.
- Se ela souber alguma coisa sobre você, vai contar aos chefes.
- Claro.
- Você poderia fechar as persianas, por favor?
- Só depois que você me disser o que pretende fazer.
- Então, vou ficar aqui esperando - disse Chang.
David levantou-se e fechou as persianas.
- O que eu poderia fazer, filho? Eu não sabia... Assim que David voltou a
sentar-se, Chang endireitou o corpo.
- Não me chame de filho. Detesto isso. - Ele tirou o boné. - Olhe para mim!
Veja o que fizeram comigo!
David debruçou-se na mesa para enxergar melhor a marca da lealdade em
Chang. Era a primeira vez que ele via essa marca sem ser no desenho.
- Estou vendo uma coisa estranha - ele disse.
- Isso não é novidade para mim.
- Estou dizendo que ela parece diferente para mim e vai parecer diferente
para nossos companheiros crentes. Posso ver as duas coisas. O selo de Deus
ainda está aí, Chang.
- David não conseguia desgrudar os olhos da pequena tatuagem preta onde
se lia o número 30, seguido de uma cicatriz rosada de pouco mais de dois

centímetros que se transformaria em uma linha mais escura dentro de alguns
dias. - Eu ainda não entendi o significado dos prefixos.
- Você está falando sério?
- Claro.
- Não me diga que você não sabe por que Carpathia tem tanta obsessão
pelo número 216.
- Claro que sei - disse David. - Isso já ficou bastante claro. Fácil de entender.
- A lógica é a mesma. Dez diferentes regiões ou subpotentadorias, conforme
Carpathia costuma dizer. Nós as chamamos de reinos. Dez diferentes prefixos,
todos relacionados a Carpathia. O fato de um deles ser 216 deveria ter sido a
primeira pista para você.
- Não me diga, Chang. Vou pensar nisso.
- Já devia ter pensado.
- Você pode me esclarecer. Não sei como eu poderia ter evitado essa marca
em sua testa. Sua charada não ajudou em nada. Sua irmã vai ficar furiosa
comigo. E, supondo que você esteja tão ansioso para dar o fora daqui quanto os
outros quatro crentes e Ming, de que adiantaria eu decifrar a charada?
- Você acredita que meu pai e Moon acharam que fiz uma cena porque
estava com medo das agulhas?
- Gostei de saber que você não gritou com toda a força que era crente.
- Bem, o que eu sou agora, Hassid?
- Você não gosta de ser chamado de filho. Não me chame de Hassid.
- Desculpe-me. Como você quer ser chamado?
- Sr. Hassid ou diretor Hassid enquanto estivermos aqui. Depois que
partirmos, pode me chamar de Sr. ou Irmão.
- Você fala como se fosse um velho.
- É porque você é muito jovem. E agora, com o selo e a marca, você passou
para uma categoria especial.
- Pelas mensagens do Dr. Ben-Judá, temos de escolher entre o selo de
Deus e a marca da besta. Eu escolhi e fiquei com os dois. E agora?
David balançou a cabeça de um lado para o outro. Chang ergueu a cabeça

e mordeu os lábios.
- Eu sei a resposta, Sr. Hassid. Estou testando você. Será que você não é
tão inteligente quanto eles pensam ou tem dormido pouco? Você não sabe o que
significam os prefixos, não sabe...
- Eu não sou tão inteligente quanto eles pensam, mas posso surpreender
você.
- Não quero desrespeitar você. Não quero mesmo. Mas você já me
surpreendeu por demorar tanto tempo para compreender as coisas.
- Venho sofrendo pressões há meses, e a situação piorou nas últimas duas
semanas.
- Eu sei. Sinto muito sobre sua... Ela era sua noiva?
- Secretamente. Obrigado.
- Uma coisa dessas deixa qualquer pessoa desarvorada. Eu posso
compreender.
- Quer dizer que você ficou furioso com a marca, mas já encontrou uma
explicação?
Chang endireitou o corpo e cruzou as pernas.
- Você conhece o Dr. Ben-Judá pessoalmente?
- Pessoalmente não, mas trabalhamos juntos.
- Tem o número do telefone dele?
- Claro.
- Você poderia ligar para ele para confirmar ou me dar o número para eu
conversar com ele...
- É melhor não.
- Tudo bem. Então, ligue para ele e veja se estou certo. Sou um crente.
Nada mudou. A Bíblia diz que nada pode nos separar do amor de Cristo, e isso
deve incluir a nossa própria pessoa. E Deus diz que estamos protegidos na
palma da mão dele e que ninguém pode nos tirar dali. Eu não escolhi a marca.
Eles me forçaram. Só estou enxergando vantagens.
- Então, qual o motivo de toda aquela encenação?
- Eu não entendi tudo imediatamente. É claro que não queria a marca.

Estava tentando encontrar um jeito de fugir de lá quando eles me pegaram à
força. Eu não gostei, mas o que está feito está feito, e um cara esperto como
você deve ser capaz de enxergar o outro lado disso.
- Conte-me qual é, ó grande intelecto.
- Você está zombando de mim. Esqueça. Eu não ia lhe contar mesmo.
David levantou-se, caminhou até a frente da mesa e sentou-se nela, com os
joelhos bem perto dos de Chang.
- Muito bem, preste atenção - ele disse. - É claro que você é um garoto
prodígio, tem uma cabeça acima da média, essas coisas. Ouvi dizer que você
decorou a Bíblia para não arriscar-se a ser pego com uma. Conseguiu tudo isso
lendo a Bíblia pela Internet?
Chang assentiu com a cabeça.
David prosseguiu.
- Não estou preocupado em ser mais esperto do que você. Bem, isso
acontece agora, porque eu também era como você quando tinha sua idade.
Gostava de humilhar as pessoas mais velhas por ter um cérebro privilegiado,
mas tanto eu como elas sabíamos quem era o crânio. Você quer que eu me
ajoelhe e beije seus pés? Ótimo. Você é o melhor. É mais esperto do que eu.
Comparado a você, sou um simples funcionário assalariado, um trabalhador
braçal. Era isso o que você queria ouvir? Não me importo se você estiver alguns
passos na minha frente, não me importo mesmo. O que me aborrece é você
achar que está me aborrecendo, porque você ficaria aborrecido se estivesse em
meu lugar. Aí, eu fico na defensiva, tentando provar que não estou aborrecido,
mas o efeito é contrário. Você está entendendo?
Chang sorriu.
- Sim, estou.
- Então, me explique e pare de tentar piorar a situação. O que você vai fazer
com essa tal "vantagem", conforme você disse? Ser bileall Não encontrei uma
palavra melhor. E por que você acha que ficando zangado comigo vai melhorar
as coisas?
- Boa pergunta. Posso explicar desde o começo?

David assentiu com a cabeça.
- Antes de tudo, gostei da palavra. Bileal. É assim que a coisa parece ser. A
minha testa vai chamar a atenção de nossos irmãos crentes. Eles vão imaginar
que o selo é falso, porque ninguém é capaz de falsificar a marca da besta. Eles
vão ficar um pouco confusos. Se eu estivesse no lugar deles, não confiaria em
mim.
- Mas as pessoas leais a Carpathia - prosseguiu Chang -, não podem ver o
selo de Deus e vão acreditar em mim. Estou livre para viver no meio delas...
comprar e vender, ir e vir, e até trabalhar aqui sem levantar suspeitas e sem
nenhum risco, se eu for cuidadoso.
- Você é esperto, Chang. Mas a última coisa que você disse é uma tolice de
adolescente.
Chang refletiu por alguns instantes e concordou com um movimento de
cabeça.
- Talvez. Ainda bem que tenho um sujeito mais velho perto de mim para
impedir que eu seja impetuoso ou impulsivo demais.
- Estou começando a me sentir um ancião.
- Você é, diretor. Pense que vai ter apenas mais alguns anos para viver aqui
na terra.
- É uma coisa curiosa.
- A pergunta é a seguinte: como você e seus três amigos vão fazer para sair
daqui e como vou conseguir ficar com o seu lugar?
- Você não vai ficar com o meu lugar.
- Eu poderia.
- Talvez, mas Carpathia não é tão tolo a ponto de correr esse risco. Você
precisa abrir caminho por conta própria, e eu tenho uma idéia de quem vai ficar
em meu lugar. Um dia, você vai trabalhar para ele.
- Isso não vai ser nada bom, se você estiver certo.
- Eu estou certo. Você é muito inteligente, tem um pouco de bom senso.
Eles não vão pôr um adolescente sentado na cadeira de um diretor. Não vão
mesmo. Pense nisso. Sou o diretor mais jovem daqui. O seguinte a mim em

idade é oito anos mais velho do que eu.
- Parabéns.
- Não se trata disso. Se você trabalhar aqui e for um espião melhor do que
eu, porque a marca vai-lhe dar uma credibilidade inquestionável, terá de ser
estratégico. Aproveite suas chances. Faça o que puder.
- Fazer o que, em sua opinião?
- Eu posso lhe ensinar tudo antes de partir.
Um sorriso brotou nos lábios de Chang.
- O que é? - disse David. - Sei que você está morrendo de vontade de dizer
alguma coisa.
- Só ia dizer que não vai levar muito tempo para você me ensinar tudo o que
sabe. É brincadeira. Continue.
- Você é um verdadeiro comediante. Bem, por mais limitado que eu seja,
você vai ficar surpreso quando souber tudo o que fiz e instalei aqui. Minha maior
preocupação é que meu acesso por controle remoto só vai funcionar enquanto
eles não mudarem o sistema atual.
- Você não precisa mais se preocupar com isso - disse Chang.
- Por quê?
- Eu estarei aqui.
- Mas você não vai ser diretor. Eles não vão lhe contar se o sistema vai
continuar o mesmo ou mudar.
- Eu posso adaptar ao novo sistema o que você já instalou no antigo e vice-
versa.
- Talvez você possa.
- Eu sei que posso.
David pôs a mão na boca e pensou. Por que ele próprio não enxergou essas
possibilidades?
- Parte de sua confiança é interessante. A outra é intrigante.
- A maior parte é encenação.
- Sério?
- Claro. Tudo o que fiz aqui não passou de uma encenação. Irritar você até

que foi divertido. Só estou mostrando como devo fazer para me adaptar aqui. Ser
um pouco sarcástico, um pouco amigável. Provocar as pessoas. Você acha que
alguém vai desconfiar de que sou judaísta?
- Eu gostaria de saber o que se passa dentro de você, Chang.
- Como assim?
- Espiritualmente. Sua irmã é uma agente penitenciária muito rigorosa.
- Ela é capaz de me dar uns tapas no traseiro.
- Mas ela tem um brilho de espiritualidade, de humildade. Tem as qualidades
de uma cristã.
- Não com as prisioneiras.
- Acho que não. E quanto a você, Chang? Você sabe quem é e quem não
é? Entende a profundidade de suas más ações e entende que Deus o salvou
quando você estava morto por causa do pecado?
Chang assentiu com a cabeça, sem tirar os olhos de David.
- Eu poderia fazer uma análise mais profunda a meu respeito, mas minha
resposta é sim. E agradeço por você ter-me lembrado.
- Tudo bem. Eu tenho um plano, Chang.
- Isso é muito bom. Eu também tenho. Mas tive mais tempo para pensar no
meu, por isso diga antes qual é o seu.
- Vou dizer antes porque sou mais velho, ocupo o cargo de diretor e estou
entrevistando você. E você ainda não foi contratado.
- Vou contar o meu depois. Ele é bem melhor, mas vá em frente... É
brincadeira!
- Acho que você deve manter uma postura firme diante das pessoas daqui e
de seu pai, mas seja mais flexível com seu pai enquanto ele estiver aqui. Ele
precisa acreditar que você está querendo ficar. Finja que não gosta de mim.
- Isso não vai ser difícil.
- Tudo bem!
- Estou ouvindo.
- Eu sei que está. Chegue à conclusão, com relutância, de que quer
trabalhar aqui e de que este é o departamento mais lógico para você trabalhar,

embora não goste muito. Não demonstre muita ansiedade. Todos estão
entusiasmados com você, por isso deixe que eles continuem assim. Dificulte um
pouco as coisas. Quanto a mim, vou manter a mesma postura que tive diante de
Moon e vou indicar você para o sujeito que vai me substituir. Depois do
expediente, você e eu vamos conversar, por telefone ou e-mail, e eu vou lhe
contar em que pé as coisas estão. Durante o dia, você trabalha para ele. Não
faça cara feia, senão ele vai passar você para trás. Você também vai ter de se
controlar para não virar uma estrela de primeira grandeza. Embora ele confie em
você, não precisa ficar sempre se lembrando de você. Dessa maneira, você vai
ser muito mais útil à nossa causa. Faz sentido o que eu disse?
- Você pensou nisso tudo agora?
- Não comece.
- Estou falando sério. Meus planos eram exatamente esses. E tudo o que
desejo é usar todos os dons que Deus me deu, conforme você disse, em favor da
causa. Posso ser membro do Comando Tribulação? Ou preciso morar na casa
secreta para isso?
- Eles me consideram membro. Claro, este lugar é o centro nervoso, e eles
dependem do que fazemos aqui para abrir caminho para que seu pessoal possa
ir de um lado para o outro e infiltrar-se nos meandros da CG.
- Acho que logo eles vão me adotar.
- Eu também.
- Posso apertar sua mão enquanto não há ninguém olhando? - perguntou
Chang. David aproximou-se, e ele apertou-lhe a mão com força. - Não me leve
muito a sério. Eu gosto de mexer com a cabeça das pessoas.
- Acho que poucos podem competir com você - disse David.
- Você pode.
- Vou liberar você e não vou fazer nem dizer nada. Eles que perguntem o
que decidi. Caso insistam, vou dizer, com relutância, que tenho um lugar para
você. E nós dois vamos manter distância um do outro.
- Assim, quando você fugir, eles não vão desconfiar de mim.
- Mais ou menos. Mas...

- Desculpe-me, Sr. Hassid, mas você pensou em desaparecer sem que eles
imaginem que está fugindo da marca?
David balançou a cabeça negativamente.
- Podemos conversar por mais alguns minutos, Chang?
VINTE E UM

Uma semana antes de Nicolae Carpathia, o ressurreto, anunciar aos quatro
cantos do mundo seu retorno triunfal a Jerusalém, Rayford Steele convocou uma
reunião do Comando Tribulação para as oito horas no salão perto dos elevadores
do Edifício Strong.
Sofrendo por causa da perda do pastor grego, que conhecera brevemente, e
da querida esposa de Laslos, Rayford estava nervoso e lutava para não
demonstrar seus sentimentos. Deus lhe devolvera a liderança do grupo, e ele
estava determinado a cumprir seu dever.xx Enquanto cada um tomava seu lugar,
Rayford releu suas anotações escritas no seu bloco amarelado e gasto e limpou
a garganta. Ele não queria deixar transparecer nenhuma emoção, temendo
prejudicar sua posição de líder perante o grupo. Mas não conseguiu controlar a
voz trêmula ao proferir as primeiras palavras.
Havia 11 pessoas na casa secreta, incluindo Rayford, Buck e Chloe - os três
membros fundadores do Comando Tribulação - e Kenny Bruce. Os outros, pela
ordem de chegada, eram Tsion, Leah, Albie, Chaim, Zeke, Hattie e Ming.
- É importante - disse Rayford - que sempre nos lembremos dos demais
membros de nossa família. Na Grécia, sobrou apenas Laslos. Em Nova
Babilônia, temos David, Mac, Abdullah, Hannah Palemoon e Chang Wong.
Talvez, mais cedo do que imaginamos, estaremos todos juntos. Enquanto esse
dia não chegar, sou grato a Deus por cada pessoa deste grupo.
Rayford pediu a Tsion que orasse, e todos no recinto levantaram-se
espontaneamente ou ajoelharam-se.

"Senhor Deus, nosso Pai, vimos à tua presença sentindo-nos fracos,
fragilizados e profundamente tristes. Muitos aqui sofreram grandes perdas, mas
somos gratos a ti por tua graça e misericórdia. Tu és um Deus de amor e de
bondade. Oramos em favor de cada membro de nossa família e principalmente
pelos planos que tens para nós nos próximos sete dias.
"Estamos confortados por saber que tu zelas por nossos queridos muito
mais do que nós. Aguardamos ansiosamente o dia em que te veremos face a
face e suplicamos que nos concedas a alegria de levar mais almas a ti. Em nome
de Jesus Cristo. Amém."
Assim que todos voltaram a sentar-se, Rayford retomou a palavra:
- Cada um de nós tem uma tarefa a cumprir. As seguintes pessoas
permanecerão aqui durante a missão à qual demos o nome de Operação Águia:
Chloe e Kenny, Ming, Zeke e Tsion. Tenho planos para Ming, mas no momento
ela se encontra vulnerável por ter-se ausentado sem permissão do sistema penal
da CG. Podemos mudar as feições dela, tarefa que será um verdadeiro teste
para Zeke. Por ora, ele já forjou novas identidades, aparências, nomes e
documentos para todos os que necessitarem. Albie e eu voaremos amanhã com
o caça e o Gulfstream para Mizpe Ramon, no Neguev, para supervisionar o
término de uma pista de decolagem por controle remoto e um centro de
reabastecimento para aeronaves. Buck e Chaim partirão, disfarçados e sob
nomes falsos, em um vôo comercial para Jerusalém. Chaim ficará hospedado no
reconstruído Hotel Rei David, aguardando o confronto que terá com Carpathia
quando ele chegar a Jerusalém. Buck seguirá para Tel-Aviv e chegará a
Jerusalém antes de Carpathia. Hattie e Leah seguirão em vôo comercial para
Tel-Aviv, onde coordenarão os veículos e motoristas voluntários que ajudarão os
crentes a fugirem de Jerusalém para os aviões no Neguev quando isso se tornar
necessário. Elas também acompanharão a chegada de Carpathia, e, da mesma
forma que Buck, Hattie se misturará à multidão para observar o show aéreo que
nossos irmãos e irmã de Nova Babilônia planejam realizar para o potentado,
além de acompanhar a comitiva de Carpathia a Jerusalém. Leah usará um
veículo alugado para pegar os quatro de Nova Babilônia no antigo Aeroporto

Internacional Rainha Alia, na Jordânia, hoje conhecido como Aeroporto
Internacional da Ressurreição. Ela levará o grupo de Nova Babilônia para o local
de decolagem, e eles voarão para os Estados Unidos com Albie e comigo.
Alguma pergunta?
Chaim levantou a mão.
- Tenho milhares de perguntas, mas não seria o momento de meu professor
revelar o nome da cidade de refúgio, em respeito a seu aluno mais velho?
Tsion sorriu e olhou para Rayford.
- Em breve, todos saberão para onde os santos voarão depois de terem
chegado à pista no Neguev. Sim, Chaim, você se empenhou nos estudos e
merece saber para onde levará o povo. É uma cidade que você conheceu a vida
toda. Sem dúvida, você já ouviu muitas histórias a respeito dela, e eu não ficaria
surpreso se soubesse que você já a visitou como turista. É uma das cidades
antigas mais famosas do Oriente Médio, conhecida por alguns como Cidade da
Rosa Vermelha. Os olhos de Chaim brilharam.
- Petra! Na antiga terra de Edom.
- Exatamente - disse Tsion.
- Você devia ter-me contado antes. Será difícil entrar lá, muito mais ainda
tendo um exército atrás de nós.
- Chaim, Deus tornará impossível a entrada deles lá. Ele planejou
obstáculos especiais, semelhantes aos que foram usados na época da saída do
povo do Egito. Diga-me uma coisa, você já esteve em Petra?
- Duas vezes, quando era jovem. Nunca vou me esquecer. Oh, Tsion, foi
uma tacada de gênio.
- Tinha de ser. Concordo com numerosos estudiosos quando eles afirmam
que Deus planejou esse propósito para Petra desde o início.
A tarefa mais difícil para David era planejar a fuga dos quatro crentes sem
poder conversar pessoalmente com Hannah. Uma reunião com Mac e Abdullah
não atrairia a atenção de ninguém, uma vez que os dois sempre se reportavam a

ele.
Apesar de ser forçado a manter uma atitude circunspecta e discreta, David
conseguiu passar alguns instantes com Chang sem levantar suspeitas. O que ele
realmente desejava era reunir-se com os quatro para planejarem
cuidadosamente todo o esquema, o que só foi possível por meio de telefonemas
e e-mails sigilosos.
Chang provou ser mais competente do que David esperava. Embora fosse
jovem e impetuoso, ele era mais do que um gênio em informática. Também era
um bom ator. Empregou toda a sua habilidade no departamento e impressionou
o superior imediato com sua diligência.
Quando seus pais retornaram à China, ele foi aquinhoado com um
apartamento permanente no palácio. Chang e David projetaram e instalaram um
computador no qual incluíram um firewall (programa que recusa mensagens
indesejáveis) imbatível, com capacidade para fazer o mesmo que o computador
de David fazia.
O Comando Tribulação teria acesso, de qualquer parte do mundo, a todos
os recursos que David instalara no sistema do palácio. Porém, o mais importante
de tudo era que Chang acompanharia a fuga e ficaria em contato permanente
com os computadores da casa secreta em Chicago. Todos saberiam onde cada
membro do grupo estava e qual era o andamento da missão.
As sugestões práticas de Hannah foram valiosas. Ela aconselhou que
nenhum dos quatro deveria levar uma bagagem muito grande.
- Resistam à tentação - ela disse - de levar tudo o que necessitam para o
resto da vida.
Não deveria haver nenhum vestígio de que eles jamais retornariam a seus
aposentos ou escritórios. Apesar de ter muitos computadores, David teria
justificativa para levar apenas seu laptop.
Os quatro planejaram deixar um pouco de dinheiro em seus respectivos
armários, coisas por fazer, quadros nas paredes, objetos pessoais espalhados.
Eles estavam determinados a não levar nada que deveriam deixar caso fossem
retornar após alguns dias. Talvez a lâmpada da cozinha acesa, o rádio ligado,

roupas e sapatos à mostra, listas de compras, sobras de comida na geladeira,
cartas não abertas.
Mac marcou uma consulta médica para dois dias depois de sua suposta
volta. Abdullah levou dois uniformes à lavanderia do palácio para serem
apanhados na tarde em que ele supostamente retornaria. David agendou
reuniões rotineiras e encontros com seus principais assessores para a semana
inteira após sua volta. Enviou memorandos aos colegas mencionando assuntos
que gostaria de discutir "logo após conseguirmos encaixar uma reunião em
nossa agenda maluca".
O comunicado da promoção de Walter Moon a Supremo Comandante foi
feito sem nenhuma pompa e quase passou despercebido. David, que se
reportava oficialmente a Moon pela primeira vez, perguntou casualmente se os
planos dele relacionados a Israel seriam alterados em razão da mudança de
cargos ocorrida na alta cúpula.
- E que planos são esses, diretor Hassid?
- Mac e Abdullah estão escalados para pilotar o Fênix 216 a Tel-Aviv, onde o
potentado Carpathia e seus convidados VIPs vão inaugurar o primeiro centro de
aplicação da marca da lealdade aberto ao público. Entendemos que ele vai
passar os dois primeiros dias em reunião lá.
- Correto. Ele e o Reverendo Fortunato terão outras reuniões com os
subpotentados e seus representantes religiosos.
- Mac e Abdullah voltam a Nova Babilônia e retornam a Tel-Aviv em um dos
Quasi Two, levando com eles a jovem dos Serviços Médicos que tem experiência
com o sistema de injetores de biochips.
- Posso dizer desde já, David, que eu não gostaria de ver esses planos
mudados. Sua Excelência sente orgulho daquele avião e adoraria exibi-lo ao
povo.
- Achamos que Mac poderia fazer um pequeno show aéreo para que o povo
saiba o que aquela lindeza tem condições de fazer.
- O potentado vai adorar essa idéia - disse Walter. - Eu também, desde que
o senhor ache que não seria muita extravagância eu ir junto.

- Absolutamente. Você pode ir.
- Mac é capaz de fazer de tudo com aquele avião. Ele e seu co-piloto podem
testar o avião com a jovem e eu a bordo, mais o equipamento para a aplicação
da marca. Depois de aterrissar, Mac pode apresentar a enfermeira e arrumar o
equipamento, enquanto o povo se organiza em fila.
- Perfeito. Sua Excelência vai fazer aquele local funcionar, e nós seguimos
para Israel, onde ele tem planos de fazer alguma coisa.
No dia seguinte, Mac e Abdullah levantaram-se antes do amanhecer. David
supervisionou o carregamento do Fênix 216, no qual o potentado e sua comitiva
voariam para Tel-Aviv. A tarefa mais difícil para o pessoal responsável pela
carga, que recentemente havia perdido sua chefe, foi colocar no avião aquele
porco gigantesco trazido de Bagdá na noite anterior.
- Não existem porcos na Terra Santa? - o supremo comandante Moon quis
saber.
Um jovem russo designado chefe interino do serviço de carga, com a
anuência de David, respondeu:
- O falecido Sr. Hickman, que sua alma descanse em paz, insistiu que queria
o porco maior e mais gordo, e o senhor está olhando para ele. Ou para ela.
David gostou do russo porque ele obedecia as ordens à risca, e essa
obediência foi posta em prática mais tarde naquele mesmo dia quando Hannah
foi enviada ao hangar para autorizar o carregamento no Quasi Two. Pelo fato de
ter sido designada para trabalhar com David em Israel, ela podia conversar com
ele em seu escritório sem levantar suspeitas.
- Funcionou como um passe de mágica - ela disse. - Veja isto.
Hannah entregou a David, por cima da mesa, uma cópia do registro de
carga emitido pelo departamento de expedição. No final, havia uma Nota
Especial manuscrita:
Tendo acompanhado os esforços infrutíferos do chefe interino de cargas,
que tentou convencer a Srta. Palemoon de que a aprovação deveria vir
diretamente do diretor Hassid, comunicamos que este avião está, na opinião do
referido chefe, com uma carga de no mínimo 20% a mais de sua capacidade. Se

este conhecimento de embarque não incluir a assinatura do diretor Hassid, o
pessoal encarregado da carga não poderá ser responsabilizado pela segurança
desta aeronave.
- Gostei - disse David, rabiscando sua assinatura. - Depois que
despencarmos, a investigação vai começar e terminar em nosso amigo russo.
Ele vai ser o triste herói que nos avisou, e nós não lhe demos atenção.
Provavelmente, será promovido à posição que deseja ocupar, e o
desaparecimento de todos nós, mais os milhões de Nicks provenientes do avião
e da carga, será explicado como erro humano. Meu.
- Estou muito orgulhosa de você - disse Hannah, apertando a mão de David
para cumprimentá-lo. - Quase morri de emoção neste meu primeiro trabalho para
você. -Ela pareceu assustar-se pela má escolha da palavra, em razão da perda
recente sofrida por David.
- Não se preocupe, Hannah - ele disse. - Eu também falo o tempo todo de
morte, como se eu precisasse me lembrar disso.
Ela deu um longo suspiro.
- Foi um plano muito engenhoso. Posso dizer isso porque minha
participação foi mínima.
- A minha também - disse David. - Se tudo der certo, o mérito vai ser de Mac
e Abdullah. Mac admitiu para mim, e talvez até para o próprio Smitty, que as
melhores idéias partiram de Abdullah.
Na manhã do terceiro dia, Mac e Abdullah estavam fazendo a verificação
preliminar do vôo, enquanto David e Hannah subiam a bordo do Quasi. O russo
andava de um lado para o outro e balançava a cabeça negativamente, tentando
convencer os pilotos. Mac lhe disse:
- O chefe é ele. A gente faz o que pode, mas sempre lembrando que o chefe
é quem manda.
- Diga isso a si mesmo quando o avião estiver despencando.
- Se eu soubesse que se tratava de uma questão de vida ou morte, teria
enfrentado o chefe.
- Estou com a consciência limpa - disse o russo. - Quem vai morrer é você.

Hannah havia exagerado ao informar o peso de cada peça do equipamento
colocado no avião. A carga era grande e volumosa e mantinha as cordas
esticadas ao máximo, mas o centro de gravidade estava perfeito e permitiria a
Mac pilotar a aeronave sem prejudicá-la.
A única carga mais pesada do que parecia eram os pilotos e os passageiros.
Hannah os advertira de que as coisas que porventura subissem à superfície
depois do acidente deveriam ser apenas malas com roupas, sapatos, objetos
pessoais e artigos de higiene. Cada um deles levou uma mala extra para deixar
evidências na água. A outra continha artigos de primeira necessidade.
- Observem isso - disse Mac ao manobrar o elegante jato, saindo do hangar
em direção à pista. Quando fez a primeira curva, ele aumentou a velocidade para
forçar o avião a inclinar-se para um dos lados. - Deve ser o suficiente para fazer
o russo sacudir a cabeça.
Enquanto Mac aguardava autorização para decolar, alguém do setor de
operações perguntou-lhe se ele estava ciente do excesso de peso informado
pelo chefe interino de cargas.
- Não é novidade para mim, torre - disse Mac. - Vamos correr o risco.
- Você sabe como abortar a decolagem se não conseguir acelerar a
aeronave?
- Positivo.
Mac forçou o avião a balançar a cauda enquanto ganhava velocidade na
pista e ouviu mais uma advertência da torre.
- Advertência anotada - disse Mac.
Mac pegou a rota de Tel-Aviv, mas quando estava no meio do caminho
entre Nova Babilônia e o Aeroporto Internacional da Ressurreição, na Jordânia,
ele informou a ambas as torres que faria um pouso na Jordânia como medida de
precaução.
- Para maior segurança, conseguimos que parte da carga seja levada de
carro a Tel-Aviv - disse Mac.
Leah, tendo em mãos uma ordem impressa emitida por David, chegou sem
problemas à pista dirigindo uma van discreta. Ela a estacionou ao lado do

depósito de carga, onde os pilotos e os passageiros ajudaram a carregar duas
guilhotinas e metade das caixas de injetores na van. Mac ajustou os freios e os
pilotos automáticos, e os quatro entraram agachados na van deitando-se no
chão. Leah dirigiu lentamente a van entre os hangares para que Mac pudesse
enxergar o avião pela janela.
Ele comunicou-se com a torre por meio de um rádio portátil com controle
remoto para taxiar a aeronave e decolar. Quando o Quasi já estava
desaparecendo de vista, Mac comunicou-se com a torre por meio de uma
transmissão intencionalmente distorcida, dizendo que acreditava estar perdendo
a potência do rádio. Perguntou se poderia informar à torre do Aeroporto Ben
Gurion que estava no horário, que realizaria o show aéreo e que agradeceria se
eles pudessem autorizar o pouso imediatamente após o espetáculo. Ele também
deu a entender que gostaria de ter reduzido um pouco mais a carga, mas estava
confiante de que o resto da viagem transcorreria normalmente.
- Aconselhamos desistir do show - respondeu a torre do Aeroporto
Internacional da Ressurreição.
- Por favor, repita.
- Aconselhamos desistir do show aéreo e fazer o pouso convencional.
- Não estou ouvindo, torre.
Eles repetiram o conselho, mas Mac desligou o rádio. Leah saiu do
aeroporto e dirigiu-se para Mizpe Ramon conduzindo as quatro falsas vítimas.
- Devemos cruzar os dedos - disse Mac. - Já vi aqueles Quasis fazerem
coisas impressionantes comandados apenas pelo sistema de computador de
bordo. Mas este vôo é muito longo e pedi que o avião fizesse coisas
interessantes para evitar turbulência.
- Cruzar os dedos? - disse Hannah. - Só Deus pode fazer tudo dar certo.
Você é o especialista no assunto, capitão McCullum, mas, se aquele avião cair
em algum outro lugar que não seja no fundo do Mediterrâneo, não vai demorar
muito para que alguém descubra que não havia ninguém a bordo.

Buck e Chaim chegaram a Israel sem incidentes no dia anterior e
hospedaram-se no Hotel Rei David. Chaim, com o ar aborrecido de sempre,
escondeu dois comentários em sua maleta. Buck achou que, vestido com
aqueles trajes, Chaim estava parecido com um monge idoso, mas se perguntava,
no íntimo, se o israelense teria condições de dirigir e prender a atenção de uma
platéia.
Na primeira vez que se encontrou com o Dr. Rosenzweig para entrevistá-lo
como o Homem do Ano eleito pelo Semanário Global, Buck ficou impressionado
com a fala mansa daquele homem. Apesar de ter grande domínio da língua
inglesa, ele falava com um acentuado sotaque israelense. Mas sua capacidade
científica, seu amor pela vida e seu entusiasmo originavam-se de um modo de
falar firme e característico. Será que isso bastaria para lhe dar a autoridade, o
comando e o respeito de que ele necessitava para atuar como um Moisés da
atualidade? Será que aquele homem pequenino, com seu jeito tranqüilo, seria
capaz de conduzir o que restou do povo de Israel e os santos da tribulação para
a Terra Prometida?
Ele teria de desafiar o dirigente do mundo, afrontar os exércitos do anticristo,
expor-se na linha de frente diante do próprio Satanás. Sim, Chaim tivera a
coragem de levar a efeito o plano de assassinar Carpathia, mas havia admitido
que, na época, não sabia com quem estava lidando.
Buck guardou para si seus temores e continuou a orar. Já se havia metido
em tantas encrencas naquela cidade que a simples idéia de assistir de camarote
a essa pequena parte da profecia parecia-lhe a coisa mais natural do mundo.
A impressão era a de que a nação inteira dirigira-se ao Aeroporto Ben
Gurion para dar as boas-vindas ao potentado e aguardava com grande
expectativa seu discurso para o dia seguinte. A inauguração do primeiro centro
de aplicação da marca aberto ao público era um grande acontecimento, mas ver
o dirigente ressurreto de todas as nações retornar à cidade onde foi morto... bem,
era com isso que o país estava entusiasmado.
Boatos espalhavam-se de que Sua Excelência faria sua suprema e
derradeira provocação aos obstinados judaístas usando um dos locais

tradicionais mais sagrados da cidade, a Via Dolorosa. Ninguém podia imaginar a
cena. Haveria oposição? Protestos? A maioria do povo receberia de braços
abertos o seu ídolo e admiraria sua coragem. Poderia Carpathia tomar o lugar do
objeto de adoração de tantos crentes, prestando homenagem a Jesus com
humildade e categoria, àquele que muitos agora consideravam seu antecessor?
E quanto a seu plano de fazer um pronunciamento ao mundo no interior do
templo reconstruído de Jerusalém... correndo o risco de ofender dois grupos
principais no mesmo dia? Não era segredo que os cristãos, os judeus
messiânicos e os judeus ortodoxos eram os últimos entraves ao Carpathianismo.
Mas o próprio Carpathia e o Reverendo Fortunato não haviam provado a
supremacia de Nicolae por meio de sua ressurreição e milagres? Uma coisa era
ler a respeito de mitos e lendas e talvez relatos de pessoas que testemunharam
uma ressurreição séculos atrás. Mas ter visto com os próprios olhos uma pessoa
voltar a viver após sua morte ter sido comprovada e ver seu homem de confiança
imbuído de poderes sobrenaturais... bem, essa era a religião da atualidade.
A cobertura feita por Buck para A Verdade de alguns incidentes mais
dramáticos do dia foi lida por um grande número de judaístas e carpathianistas.
Ele havia conseguido provocar uma reação no mundo inteiro ao relatar os
primeiros casos de pessoas submetidas aos instrumentos de imposição à
lealdade. Atribuiu o relato a testemunhas oculares sem identificar-se como uma
delas, portanto ninguém tinha pistas de onde partira a informação. Ele esperava
que até mesmo os simpatizantes de Carpathia ficassem chocados com aquela
falta de humanidade.
Parecia que o mundo inteiro dirigia-se à Terra Santa. Tsion insistira com os
crentes para que estivessem presentes. Chloe, por meio da Cooperativa
Internacional de Mercadorias, havia recrutado pilotos, aviões, motoristas e
veículos. Nesse ínterim, Fortunato reuniu carpathianistas de todo o planeta para
comemorar o corajoso retorno de seu ídolo ao local em que foi assassinado.
Os líderes cívicos de Jerusalém haviam conseguido dinheiro e pessoal para
dar um novo brilho à cidade. Faixas, cartazes e jardins surgiram praticamente do
dia para a noite. Embora 10% da cidade destruída pelo recente terremoto

continuassem em ruínas, os olhos dos visitantes eram direcionados para a parte
nova. Se a pessoa não prestasse muita atenção, diria que o lugar voltara a ser o
mesmo que abrigara a Festa de Gala.
Vendedores ambulantes e quiosques ofereciam, por uma bagatela, ramos
de palmeira, perfeitos para serem agitados ou colocados no caminho por onde o
potentado passaria. Podia-se comprar chapéus, sandálias, óculos de sol,
broches estampando a imagem de Nicolae e outras coisas do gênero.
O trânsito de Tel-Aviv estava congestionado, com inúmeros veículos e
pessoas dirigindo-se à praia e ao grande anfiteatro improvisado que abrigaria o
equipamento de aplicação da marca. Tudo estava pronto, inclusive as áreas
cobertas para proteger o povo do Sol causticante. Só faltavam chegar os
injetores, os instrumentos de imposição e o pessoal para trabalhar no local. O
povo já estava em fila, ansioso por prometer lealdade a Nicolae. Se pudesse,
Buck gostaria de ser Moisés ou Eli, ou até mesmo Chaim. Quando estacionou
seu carro alugado a uma distância de vários quarteirões do centro, Buck teve
vontade de deixar a razão de lado e gritar ao povo desinformado:
- Não façam isso! Vocês estão vendendo a alma ao diabo! Ele olhou para
seu relógio e apressou o passo. Queria ter uma boa visão do show aéreo, porque
sabia como seria o tal show. Enquanto se dirigia à praia, ele ligou para Rayford.
- Quatro minutos para chegar ao lugar ideal para assistir - ele disse. -
Calculei o tempo necessário e devo estar na posição perfeita.
- Lembre-se de ver todos os detalhes.
- Não me ofenda, pai. Como eu poderia me esquecer disso? Eles estão no
horário?
- A caminho. A operação no aeroporto foi um sucesso. Estão preocupados
com o sistema de gerenciamento do vôo, porque não há possibilidade de
monitorá-lo pessoalmente. Um erro pode matar pessoas inocentes.
- Eu seria uma delas.
- Também acho. Mac comunicou-se por telefone com o pessoal de Moon
informando quando deverá chegar e que está com problemas no rádio.
- Como vão as coisas na central Águia?

- Impressionantes. Esses anônimos virtuais continuam se apresentando
para trabalhar, sem nenhuma supervisão. Eles querem simplesmente cooperar, ir
em frente, manter o trabalho em andamento. Eles conseguiram mais coisas do
que Albie e eu imaginávamos, e estamos adiantados na programação. Dezenas
de helicópteros já chegaram aqui para levar a Petra os enfermos e inválidos que
não conseguirem atravessar o desfiladeiro. Até agora, nossa presença não foi
detectada, mas isso não vai durar muito.
Zeke havia feito um disfarce excelente para Buck, que se admirava todas as
vezes que ele conseguia ver sua imagem em um espelho ou vidro transparente.
Quando parou ao lado de uma barraca, ele se sentia tão invisível quanto no dia
em que ficou debaixo do arbusto perto do local onde Moisés e Eli ressuscitaram.
O povo parecia afluir de todos os lugares, aguardando com ansiedade a aparição
ao vivo de Nicolae Carpathia. E ele não desapontou seus seguidores.
Meia dúzia de carros oficiais abertos chegou ao local com grande
estardalhaço. A elite mais poderosa do mundo desceu e caminhou rapidamente à
plataforma para receber aplausos calorosos. Carpathia estava com ar triunfante,
agradecendo humildemente a cada pessoa por ter comparecido e por ter
acolhido a todos - ele, o Reverendo Fortunato, os dez subpotentados e seus
respectivos representantes do Carpathianismo - com tanto carinho. Falava sem
parar de seus esforços para melhorar as condições do mundo, de sua energia
renovada "depois de dormir, por três dias, o melhor sono que tive na vida" e de
suas expectativas sobre o tempo que passaria em Tel-Aviv e Jerusalém.
- E agora - ele disse com sincera satisfação -, antes da maravilhosa
surpresa que tenho para vocês, apresento-lhes o novo chefe de nossa religião
perfeita, o Reverendíssimo Leon Fortunato.
Leon ajoelhou-se imediatamente, segurou a mão direita de Nicolae entre as
suas e a beijou. Quando chegou ao púlpito, ele disse:
- Permitam-me ensinar-lhes um novo hino que homenageia o único que
morreu por nós e agora vive para nós.
Com uma surpreendente voz de barítono bem afinada, Leon cantou uma
versão comovente e sincera de "Salve Carpathia, Nosso Rei e Senhor

Ressurreto".
Buck estremeceu. Sentiu o conhecido comichão de expectativa quando
avistou o Quasi a distância e ouviu o zumbido de seus motores. A multidão
aprendeu rapidamente a melodia simples e vibrante, e, depois que todos a
cantaram pela segunda vez, Carpathia elogiou a tecnologia evidente do novo
Quasi Two.
- Ele está trazendo o equipamento necessário para este centro e fará uma
rápida exibição de sua capacidade, habilmente demonstrada pelo piloto de meu
Fênix 216, o capitão Mac McCullum. Divirtam-se.
O povo vibrou de alegria quando o majestoso jato apareceu e sobrevoou a
cidade zunindo em direção à praia. Buck ficou surpreso ao ver como ele voava
baixo, mas os gritos de emoção do povo deixavam claro que achavam que isso
fazia parte do show. Buck preocupou-se imaginando o que aconteceria se o
programa do computador falhasse e causasse um grave acidente.
O avião subia e descia sobrevoando a praia e o Mediterrâneo, cujas águas
brilhavam sob o reflexo da luz do Sol. De repente, ele ganhou velocidade,
inclinou-se para um dos lados, equilibrou-se e inclinou-se para o outro lado,
antes de voar extremamente baixo novamente. Para Buck, o jato estava a uns
três metros acima da água e ele nem podia acreditar que Mac tivesse feito uma
programação com uma margem de erro tão pequena.
Depois de uma manobra rápida e baixa, o jato brincalhão sobrevoou as
cabeças dos dignitários, que tentaram manter a serenidade, olhando de esguelha
para o céu, com as gravatas voando ao vento, sem deixar transparecer que
estavam apreensivos. O Quasi fez outra manobra em direção ao Mediterrâneo
voando paralelo à água por uns 400 metros e, depois, embicando para cima.
O povo murmurou quando o avião subiu como um míssil. Todos deviam
estar imaginando qual seria a sensação das pessoas a bordo. Buck também teria
pensado isso, mas sabia que o Quasi Two estava vazio. Qualquer espectador
esperto perceberia que o avião apresentava problemas. Ao chegar ao ponto mais
alto, a aeronave reduziu a velocidade e embicou em direção à água com a
barriga de frente para a praia.

Eufóricas, as pessoas conversavam e riam imaginando a arrancada que
nivelaria o avião no último minuto. Quando aparentemente não havia mais
tempo, todos acharam que ele subiria na vertical e retornaria ao Aeroporto Ben
Gurion para receber mais aplausos.
Só que o Quasi Two não deu a arrancada. O avião não estava fazendo uma
acrobacia em cima do Mediterrâneo. Não, aquela maravilha da moderna
tecnologia, que valia milhões e milhões de Nicks, estava acelerando, com as
turbinas quentes e soltando vapor, deixando para trás uma trilha de fumaça. O
avião foi arremessado em direção à praia a pouco mais de um quilômetro ao sul
do local onde a multidão se encontrava.
O Quasi, com seus supostos piloto, co-piloto e dois passageiros, bateu com
força na praia, na posição perpendicular, quase na velocidade do som. Buck teve
a mesma sensação que tomou conta do povo: susto seguido de silêncio. O
zunido dos motores ainda se fazia ouvir mesmo depois que o avião se
desintegrou e desapareceu atrás de uma negra coluna de fumaça e de labaredas
de cor alaranjada. Um silêncio sepulcral tomou conta do lugar. Um Instante
depois do som do impacto ouviu-se uma explosão ensurdecedora acompanhada
do ronco e do assobio da fúria do fogo.
Um grito, depois outro. Ninguém se mexeu no lugar. Não havia necessidade
de correr, nem para fugir do acidente nem para dirigir-se até ele. O avião havia
estado ali, com toda a sua glória, provocando expectativas, e agora não passava
de um monte de peças incandescentes. A fuselagem estava afundada em uma
cratera na areia.
Outra tragédia em um mundo de sofrimento.
Atordoadas, as pessoas viraram-se ao ouvir o som do sistema de alto-
falantes. Carpathia estava falando de maneira tão emocionada e baixa que o
povo teve de prestar muita atenção para ouvir cada palavra.
- Paz seja com todos vocês. Eu lhes dou a minha paz. Não a dou como o
mundo a dá. Peço-lhes por favor que saiam deste local devagar, homenageando-
o como local sagrado onde desapareceram quatro valentes funcionários. Vou
solicitar que o local de aplicação da marca da lealdade seja transferido e

agradeço a atitude de respeito que todos vocês tiveram durante essa tragédia.
Ele virou-se e cochichou algumas palavras ao ouvido de Leon, que
aproximou-se do microfone e abriu os braços. As amplas mangas de seu manto
esvoaçavam ao vento como se fossem asas enormes.
- Meus amados, este triste acontecimento encerra as atividades de hoje em
Tel-Aviv, mas a agenda de amanhã será mantida. Aguardamos a presença de
todos vocês em Jerusalém.
Buck caminhou apressado até seu carro e ligou para Rayford.
- O avião está debaixo da areia da praia. Ninguém poderia ter sobrevivido.
Estou voltando para ouvir a voz que clamará no deserto.
Ao entrar no trânsito das ruas que davam acesso à cidade antiga, Buck foi
tomado por uma emoção estranha. Parecia que seus companheiros haviam
afundado na areia dentro daquele avião. Ele sabia que o Quasi Two estava
vazio, mas o final simulado havia sido dramático demais. Ele gostaria de saber
se aquilo representava o fim ou o começo de alguma coisa. Haveria esperança
de a CG estar atarefada demais para fazer uma investigação minuciosa no local?
As possibilidades eram remotas.
Buck sabia que tudo o que ele sofrera em três anos e meio foi um refresco
comparado ao que viria. Durante todo o caminho de volta, ele permaneceu em
silêncio, orando por seus queridos e pelos membros do Comando Tribulação. Ele
tinha quase certeza de que o anticristo possuído por Satanás não hesitaria em
usar todos os recursos disponíveis para esmagar a rebelião programada para
levantar-se contra ele no dia seguinte.
Buck nunca sentira medo, nunca recuara diante de um perigo mortal.
Porém, Nicolae Carpathia era a personificação do diabo, e no dia seguinte Buck
estaria na linha de fogo, quando a batalha dos séculos entre o bem e o mal para
ganhar almas de homens e mulheres irromperia dos céus, e o inferno tomaria
conta da terra.

EPÍLOGO

Ouvi, vinda do santuário, uma grande voz, dizendo aos sete anjos: Ide, e
derramai pela terra as sete taças da cólera de Deus.
Saiu, pois, o primeiro anjo e derramou a sua taça pela terra, e, aos homens
portadores da marca da besta e adoradores da sua imagem, sobrevieram úlceras
malignas e perniciosas.
Apocalipse 16.1-2