Da Capa do livro:
O Comando Tributação caminha perigosamente ao
encontro dos quatro assassinos preditos na Bíblia.
A vida do chefe da Fé Mundial Enigma Babilônia está por um fio. As duas
testemunhas diante do Muro das Lamentações também têm suas vidas ameaçadas,
à medida que o "tempo determinado" se aproxima. O anticristo sofrerá um ferimento
mortal na cabeça, conforme indicam as profecias.
Enquanto um exército sobrenatural de 200 milhões de cavaleiros
demoníacos extermina um terço da população restante, os membros do Comando
Tributação se preparam para viver como fugitivos...
Rayford e o mais recente membro do Comando Tributação são agredidos
nos Estados Unidos pelos guardas de segurança da Comunidade Global... Mac e
seu novo co-piloto são atacados a bordo do Condor 216 na África... Hattie é presa
na Bélgica... Rayford cai em uma armadilha na França, escapa por um triz de um
fuzilamento e dos aviões de caça da Comunidade Global em Al Basrah e planeja
uma forma de liquidar o anticristo. Nesse meio-tempo, várias outras pessoas
esforçam-se para ter o mesmo "privilégio".
A história mundial e as profecias entram em conflito em Jerusalém, no meio
do período da Tributação, e provocam o mais explosivo dos episódios.
Tudo isso e muito mais num drama cheio de ação e suspense que tem
como palco o mundo dos últimos dias e como diretor o Deus que dirige a História.
Acompanhe os passos seguintes do eletrizante seriado daqueles que foram
deixados para trás.
Das abas do livro:
O período da Tributação completa 38 meses. O mundo continua a
sofrer os duros golpes do julgamento divino, tal a cegueira espiritual dos
homens, totalmente obstinados em seus descaminhos!
"E quando abriu os olhos, Tsion Ben-Judá pensou, a princípio, que estaria
sonhando. Tomando conta de seu campo de visão, do outro lado da vidraça,
um imenso exército de cavaleiros estava preparado para guerrear... Centenas e
centenas de milhares, cavalgando, cavalgando. As cabeças dos cavalos
assemelhavam-se a cabeças de leões, e eles expeliam fogo e fumaça pela boca... Em
pleno dia, com o sol da primavera a pino, esse fenomenal exército parecia irado e
determinado. Suas couraças coloridas brilhavam, e suas enormes cavalgaduras
movimentavam-se fazendo um ruído estrondoso, ganhando velocidade e passando
do trote para o galope e do galope para uma corrida desenfreada.
Parecia que o tempo deles havia chegado... A cavalaria demoníaca, que só
pouparia os escolhidos de Deus, disparou para atacar, deixando um rastro de terror
e morte sobre toda a Terra..."
"Os cristãos dependem cada vez mais da internet para
comunicar-se secretamente, e cresce entre eles a idéia de usar a
violência como meio de lutar contra as forças malignas que tomam
conta do mundo. Mas o mundo é atacado por gafanhotos
demoníacos, uma praga divina enviada para destruir aqueles que
não têm o selo de Deus na testa; essa praga dá aos cristãos um
pouco mais de tempo para resolver suas crises pessoais, tudo isso
descrito de maneira tão envolvente que prenderá a sua atenção,
leitor, da primeira até a última página." Comentário do site
Amazon.com sobre Apoliom.
Ao Dr. John F. Walvoord
que, por mais de 50 anos,
tem ajudado a manter acesa
a tocha da profecia
O PERÍODO DA TRIBULAÇÃO
COMPLETA 38 MESES
Os Crentes
Rayford Steele: cerca de 45 anos de idade; ex-capitão-aviador do 747 das
Linhas Aéreas Pan-Continental; perdeu esposa e filho no Arrebatamento; expiloto
do potentado da Comunidade Global, Nicolae Carpathia; membrofundador
do Comando Tribulação; tornou-se um fugitivo internacional e
agora vive exilado na casa secreta em Monte Prospect, Illinois
Cameron ("Buck") Williams: pouco mais de 30 anos; ex-articulista sênior
do Semanário Global; ex-editor do Semanário Comunidade Global, de
propriedade de Carpathia; membro-fundador do Comando Tribulação; editor
da revista virtual A Verdade; fugitivo exilado na casa secreta
Chloe Steele Williams: pouco mais de 20 anos; ex-aluna da Universidade
Stanford; perdeu a mãe e o irmão no Arrebatamento; filha de Rayford;
esposa de Buck; mãe de Kenny Bruce, um bebê de dez meses; presidente da
Cooperativa Internacional de Mercadorias, associação secreta composta de
crentes; membro-fundadora do Comando Tribulação; fugitiva exilada na
casa secreta
Tsion Ben-Judá: cerca de 50 anos; ex-estudioso das doutrinas dos rabinos e
estadista israelense; revelou sua conversão a Cristo pela TV em um
programa levado ao ar internacionalmente, o que provocou o assassinato de
sua esposa e de dois filhos adolescentes; fugiu para os Estados Unidos;
professor e líder espiritual do Comando Tribulação; suas pregações diárias,
via Internet, alcançam mais de um bilhão de pessoas; reside na casa secreta
Dr. Floyd Charles: cerca de 40 anos; ex-médico da Comunidade Global;
exilado na casa secreta
Mac McCullum: cerca de 60 anos; piloto de Nicolae Carpathia; reside no
palácio da Comunidade Global, na Nova Babilônia
David Hassid: cerca de 25 anos; diretor de compras/ embarque/recebimento
de mercadorias da Comunidade Global; reside no palácio da CG, na Nova
Babilônia
Leah Rose: cerca de 40 anos; enfermeira-chefe do Arthur Young Memorial
Hospital, Palatine, Illinois; mora sozinha
Tyrola ("T") Mark Delanty: beirando os 40 anos; proprietário/diretor do
Aeroporto de Palwaukee, Wheeling, Illinois
Sr. e Sra. Lukas (Laslos) Miklos: cerca de 45 anos; magnatas do ramo de
mineração de linhito; residem na Grécia
Abdullah Smith: 30 e poucos anos; ex-piloto de aviões de caça; reside na
Jordânia
Os Inimigos
Nicolae Carpathia: cerca de 35 anos; ex-presidente da Romênia; exsecretário-
geral da Organização das Nações Unidas; autodesignado
Potentado da Comunidade Global; reside no palácio da CG, na Nova
Babilônia
Leon Fortunato: cerca de 50 anos; braço direito de Carpathia; supremo
comandante; reside no palácio da Comunidade Global, na Nova Babilônia
Peter Mathews: beirando os 50 anos; ex-cardeal da arquidiocese de
Cincinnati; autodesignado Sumo Pontífice Peter II, chefe da Fé Mundial
Enigma Babilônia; reside no Palácio do Templo na Nova Babilônia
Os Indecisos
Hattie Durham: 30 anos; ex-comissária de bordo das Linhas Aéreas Pan-
Continental; ex-assistente pessoal de Nicolae Carpathia; reside na casa
secreta
Dr. Chaim Rosenzweig: beirando os 70 anos; botânico e estadista
israelense; descobridor da fórmula que fez florescer os desertos de Israel;
recebeu o título de Homem do Ano pelo Semanário Global; reside em
Jerusalém
PRÓLOGO
Trechos Extraídos de Apoliom
Um grande número de igrejas nos lares havia surgido da noite para o dia,
espontaneamente, organizadas por judeus convertidos, que faziam parte das
144.000 testemunhas e assumiram a posição de líderes cristãos. Eles
transmitiam ensinamentos diários, com base nos sermões e aulas virtuais do
talentoso Tsion Ben-Judá. Dezenas de milhares de igrejas clandestinas nos
lares, cuja existência era de conhecimento de todos, inclusive da Fé Mundial
Enigma Babilônia, viam, diariamente, corajosos convertidos sendo
admitidos em seu meio...
Já havia muito tempo que Buck Williams transmitia anonimamente uma
revista eletrônica, via Internet, intitulada A Verdade, que passaria a ser o
único meio de dar vazão a seu talento para escrever. Ironicamente, a revista
atraiu um número dez vezes maior de leitores do que ele possuía no
Semanário Comunidade Global. Buck preocupava-se com sua segurança,
evidentemente, porém mais com a de sua esposa Chloe...
Nicolae Carpathia passou a recitar sua ladainha de realizações,
discorrendo sobre a reconstrução das cidades, estradas e aeroportos, até
chegar à miraculosa reconstrução de Nova Babilônia, transformada agora na
cidade mais deslumbrante que já existiu na face da Terra.
Trata-se de uma obra-prima, e espero que vocês a visitem o mais
breve possível - disse Carpathia.
Ele mencionou o sistema de satélite celular-solar (Cel-Sol), que permitia
que as pessoas se comunicassem pelo telefone e pela Internet,
independentemente de horário ou local. Tudo isso fazia parte da infraestrutura
necessária para Nicolae governar o mundo...
Chegaria o dia em que a cruz na testa seria algo muito significativo entre
os santos da tribulação. Até mesmo o simples gesto de apontar para o céu
atrairia a atenção das forças inimigas.
O problema era que também chegaria o dia em que o povo do outro lado
teria, de igual modo, uma marca, visível a todos. De acordo com a Bíblia,
aqueles que não ostentassem a "marca da besta" ficariam impedidos de
comprar ou vender qualquer coisa. O grande número de santos da tribulação
teria de organizar um mercado clandestino para conseguir sobreviver...
O supremo comandante da Comunidade Global, Leon Fortunato,
apresentou Sua Excelência, o potentado Nicolae Carpathia, aos
telespectadores do mundo inteiro. Tsion Ben-Judá advertira Rayford de que,
em breve, os poderes sobrenaturais de Nicolae seriam evidenciados e até
mesmo com certo exagero, preparando o terreno para ele se autoproclamar
deus durante a segunda metade da Tribulação...
Gargalhadas ou brincadeiras haviam deixado de fazer parte da vida do
Comando Tribulação. O sofrimento era desgastante demais, pensava
Rayford. Ele aguardava com ansiedade o dia em que Deus enxugaria as
lágrimas dos olhos de seu povo, o dia em que não haveria mais guerras...
Sinto muita compaixão por você - disse Tsion a Hattie. -Eu gostaria
muito que você aceitasse Jesus. - O rabino não conseguiu prosseguir.
Hattie franziu a testa, olhando firme para ele.
Perdoe-me - ele conseguiu dizer em voz baixa, depois de beber um
pouco de água para tentar recompor-se. Lágrimas começaram a correr por
seu rosto. - Deus me concedeu a graça de poder enxergá-la do jeito como Ele
a vê... uma jovem assustada, com raiva e desiludida, que tem sido usada e
abandonada por muita gente. Deus a ama com um amor puro. Certa vez,
Jesus olhou para as pessoas que o cercavam e disse: "Jerusalém, Jerusalém,
que matas os profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes
quis eu reunir os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo
das asas, e vós não o quisestes!" Srta. Durham, você conhece a verdade. Eu a
ouvi dizer que conhece. E, mesmo assim, não está disposta a aceitá-la... Olho
para você, uma jovem de delicada e rara beleza, e vejo o que a vida lhe fez.
Gostaria muito que você tivesse paz. Penso no quanto você poderia fazer
pelo Reino de Deus nestes tempos perigosos que atravessamos e estou
ansioso para que faça parte de nossa família. Receio que você esteja
arriscando a vida por não entregá-la a Deus e não gostaria de vê-la sofrer
antes que Ele a alcance com sua misericórdia.
A vida de Rayford como piloto de vôos comerciais parecia ter-se perdido
no tempo. Era difícil acreditar que, pouco menos de três anos atrás, ele era
um marido comum e pai como outro qualquer, cuja única preocupação
girava em torno de saber quando seria seu próximo vôo e para onde. Rayford
não podia queixar-se de não ter nada importante para ocupar seu tempo. E
quanto lhe custou chegar a esse ponto! Ele entendia muito bem a posição de
Tsion. Se dirigir o Comando Tribulação era uma tarefa difícil para um
cidadão comum como Rayford, muito mais complexa era a missão de liderar
144.000 testemunhas e pregar a um bilhão de novos crentes...
Buck adorava conversar com Tsion. Eles haviam atravessado muitos
momentos difíceis juntos. De repente, Buck se deu conta de estar
reclamando das complicações da gravidez de Chloe a um homem cuja
esposa e filhos haviam sido assassinados. Tsion, contudo, possuía sabedoria
e uma visão clara dos problemas das outras pessoas, e sabia como acalmálas...
O próximo Julgamento das Trombetas será o sexto - disse Buck. - O
que você tem a dizer sobre ele?
Tsion deu um longo suspiro.
O ponto fundamental, Cameron, é um exército, composto de 200
milhões de cavaleiros, que exterminará a terça parte da população do mundo.
Buck não sabia o que dizer. Ele lera a profecia, mas nunca havia
assimilado sua essência.
Que palavra de ânimo você daria ao povo depois que todos souberem
o que terão pela frente? - perguntou Buck.
Direi apenas que todo o sofrimento pelo qual passamos e todo o
horror que presenciamos passarão a ser insignificantes diante do próximo
julgamento.
E os seguintes serão piores ainda?
É difícil imaginarmos, não? Apenas a quarta parte das pessoas que
foram deixadas para trás no Arrebatamento sobreviverá até o dia do Glorioso
Aparecimento, Cameron. Eu não tenho medo da morte, mas peço a Deus
todos os dias que me conceda o privilégio de vê-lo retornar para estabelecer
seu Reino na Terra. Se Ele me levar antes disso, estarei reunido com minha
família e meus amigos, mas, oh! como será grande a alegria de estar aqui
quando Jesus chegar!
"O primeiro ai passou. Eis que, depois destas coisas, vêm ainda dois ais.
O sexto anjo tocou a trombeta, e ouvi uma voz procedente dos quatro
ângulos do altar de ouro que se encontra na presença de Deus, dizendo ao
sexto anjo, o mesmo que tem a trombeta: Solta os quatro anjos que se
encontram atados junto ao grande rio Eufrates.
Foram, então, soltos os quatro anjos que se achavam preparados para a
hora, o dia, o mês e o ano..." Apocalipse 9.12-15
UM
Indignação.
Não havia outra palavra para descrever o sentimento de Rayford.
Ele sabia que tinha muitos motivos para ser agradecido. Nem Irene - sua
primeira esposa durante 21 anos - nem Amanda - sua segunda esposa
durante menos de três meses - teriam de passar por mais sofrimentos neste
mundo. Raymie também estava no céu. Chloe e o bebê Kenny gozavam de
boa saúde.
Isto deveria ser o suficiente. Mesmo assim, a palavra esgotamento, tão
usada atualmente, passara a fazer parte da vida de Rayford. Ele saiu
impulsivamente da casa secreta, em uma fria manhã de segunda-feira do mês
de maio, sem se importar em pegar um agasalho. Seu mau humor não tinha
nada a ver com as pessoas que moravam na casa secreta.
Hattie continuava a agir de maneira egoísta, choramingando por não
poder sair dali e, ao mesmo tempo, recuperando as forças.
Você acha que não vou conseguir - ela lhe dissera durante uma das
sessões de exercícios abdominais. - Você tem a mania de me subestimar.
Não tenho dúvida de que você pode cometer a loucura de tentar.
Mas você não me levaria até lá de avião por nada deste mundo.
De jeito nenhum.
Rayford caminhou com dificuldade pelo terreno acidentado até
aproximar-se de uma fileira de árvores que separava o que restara da casa
secreta dos escombros das casas vizinhas. Ele parou e esquadrinhou o
horizonte. Sentir raiva era uma coisa. Ser idiota era outra completamente
diferente. Não fazia nenhum sentido revelar o esconderijo deles só para
respirar um pouco de ar fresco.
Apesar de não avistar nada nem ninguém, procurou ficar mais perto das
árvores do que do terreno descampado. Que diferença de um ano e meio
atrás! Aquela área toda havia sido, um dia, um bairro que se estendia por
muitos quilômetros. Agora não passava de uma porção de montes de entulho
produzidos pelo terremoto, um local abandonado adequado a fugitivos e
necessitados. Rayford era um fugitivo havia meses. Em breve, entraria na
categoria dos necessitados.
Uma fúria sanguinária ameaçava devorá-lo. Seu raciocínio frio e
calculista conflitava com suas emoções. Ele conhecia outras pessoas - sim,
Hattie inclusive - que sentiam um impulso igual ao seu, ou até maior.
Mesmo assim, Rayford implorava a Deus que lhe concedesse aquela
oportunidade. Ele queria ser o autor daquele ato. Acreditava que esse era o
seu destino.
Rayford balançou a cabeça de um lado para o outro e encostou-se em
uma árvore, cocando as costas em sua grossa casca. Onde estavam o aroma
da grama recém-aparada e a algazarra das crianças brincando no quintal?
Nada era como antes. Ele fechou os olhos e repassou seu plano mais uma
vez. Entrar disfarçado no Oriente Médio. Posicionar-se no lugar certo, no
momento certo. Ser a arma de Deus, o instrumento da morte. Matar Nicolae
Carpathia.
David Hassid incumbiu-se de acompanhar o helicóptero da Comunidade
Global que pegaria uma carga enorme de computadores destinada ao palácio
do potentado. Metade do pessoal da CG que trabalhava no departamento de
Hassid estava encarregada de passar as próximas semanas realizando uma
minuciosa busca para encontrar o local de onde partiam os ensinamentos
diários de Tsion e a revista eletrônica de Buck transmitida via Internet.
O potentado tinha pressa e queria saber em quanto tempo os
computadores poderiam ser instalados.
Podemos calcular meio dia para desembarcarmos a carga, colocá-la
no helicóptero e trazê-la para cá diretamente do aeroporto - dissera David a
Carpathia. - Depois de desembarcá-la novamente, levaremos mais uns dois
dias para acomodação e instalação.
Carpathia começou a estalar os dedos assim que a palavra "meio dia" foi
proferida por David.
Quero que seja mais rápido - ele disse. - Existem condições de
reduzir esse tempo?
O custo seria bem mais alto, mas o senhor poderia...
Não estou preocupado com custos, Sr. Hassid. Quero rapidez.
Rapidez.
O helicóptero poderia pegar a carga toda e deixá-la do lado de fora do
setor de entrada de mercadorias.
Isso - disse Carpathia. - Sim, é isso.
Eu gostaria de supervisionar pessoalmente a retirada e a entrega.
Carpathia, que voltara a concentrar-se em outro assunto, dispensou
David com um aceno.
Claro - ele disse. - Faça como quiser.
David ligou para Mac McCullum pelo telefone sigiloso.
Funcionou - ele disse.
Quando vamos levantar vôo?
O mais tarde possível. Temos de deixar transparecer que houve um
erro.
Mac deu uma risadinha.
Você conseguiu um jeito de fazer o material ser entregue na pista
errada?
Claro. Eu disse a eles uma coisa, e nos documentos consta outra. Eles
vão fazer o que ouviram. Os documentos vão servir de prova a meu favor
perante os dois trapalhões: Abbott e Costello (Carpathia e Fortunato).
Fortunato continua controlando você?
Como sempre, mas nem ele nem Nicolae suspeitam de nada. Os dois
também adoram você, Mac.
E eu não sei? Precisamos fazer esta coisa voar até onde ela nos possa
levar.
Rayford não tinha coragem de discutir seus sentimentos com Tsion. O
rabino estava muito atarefado, e Rayford sabia o que ele diria: "Deus tem
seus planos. Deixe tudo nas mãos dele."
Porém, que mal haveria se Rayford desse uma ajuda? Ele estava
disposto. Tinha condições de fazê-lo. Poderia custar-lhe a vida, mas e daí?
Ele se reuniria à sua esposa e filho. Mais tarde, outros se reuniriam a ele.
Rayford sabia que seu plano era uma loucura. Ele nunca se deixara levar
por sentimentos. Talvez essa mudança tivesse ocorrido por ele estar fora de
circulação, isolado, sem poder agir. O medo e a tensão que sentiu durante os
meses em que trabalhou como piloto de Carpathia valeram a pena, porque a
aproximação que teve com aquele homem havia sido muito útil ao Comando
Tribulação.
O perigo que ele enfrentava agora não era o mesmo, como piloto
principal da Cooperativa Internacional de Mercadorias, única entidade capaz
de sustentar materialmente os crentes quando a liberdade de compra e venda
lhes fosse vetada. Por ora, Rayford estava apenas fazendo contatos,
programando roteiros, trabalhando para sua filha. Ele precisava permanecer
no anonimato e aprender em quem confiar. A situação não era mais como
antes. Ele não se sentia tão necessário à causa de Deus.
Mas poderia ser o autor do assassinato de Carpathia!
Que brincadeira era aquela? O assassino de Carpathia seria sentenciado à
morte sem julgamento. E se Carpathia fosse de fato o anticristo - como
muitas pessoas acreditavam, com exceção de seus seguidores -, ele não
permaneceria morto. O homicídio só serviria para prejudicar Rayford, não
Carpathia. Nicolae voltaria à cena mais heróico do que nunca. Porém, o fato
de Rayford saber que o assassinato deveria ocorrer de qualquer maneira e
que ele próprio tinha condições de cometê-lo, dava-lhe um motivo para
viver. E também para morrer.
Seu neto, Kenny Bruce, lhe roubara o coração, mas o nome da criança
fazia Rayford lembrar-se das perdas dolorosas que sofrerá. Ken Ritz lhe deu
provas de ter sido um amigo de verdade. Rayford aprendeu muito com Bruce
Barnes, seu primeiro mentor, após ter recebido das mãos dele o videoteipe
que o fez aceitar a Cristo.
Então era isso! Eram aquelas perdas que haviam produzido tanta ira,
tanta indignação dentro dele. Rayford sabia que Carpathia não passava de
um simples fantoche nas mãos de Satanás, fato este que fazia parte do plano
de Deus havia muitos séculos. Mas o homem tinha provocado tantas
tragédias, causado tantas destruições, fomentado tanto sofrimento, que
Rayford não podia deixar de odiá-lo.
Rayford não queria permanecer insensível às catástrofes, mortes e
devastações que passaram a ser fatos comuns. Ele queria continuar vivo,
sentindo-se agredido, ofendido. A condição de vida, que já era má, se
tornaria cada vez pior, e o caos se multiplicaria dia após dia. Tsion dissera
que a situação atingiria o ponto culminante na metade dos sete anos de
tribulação, dali a quatro meses. A seguir, viria a Grande Tribulação.
Rayford gostaria muito de sobreviver ao período inteiro dos sete anos
para testemunhar o glorioso aparecimento de Cristo, quando Ele
estabeleceria seu reino de mil anos na Terra, mas quais eram as
probabilidades? Tsion ensinara que, quando muito, apenas um quarto da
população deixada para trás no Arrebatamento sobreviveria até o fim, e que
aqueles que sobrevivessem desejariam não ter tido essa oportunidade.
Rayford tentou orar. Será que Deus responderia à sua oração, lhe daria
permissão, esboçaria o plano em sua mente? Mas ele sabia que sua estratégia
era apenas uma forma de sentir-se vivo. Mesmo assim, ela o consumia por
dentro, dando-lhe motivo até para respirar.
Ele não tinha outra razão para viver. Amava sua filha, seu genro e seu
neto, mas sentia-se responsável por Chloe não ter sido arrebatada. A única
família que lhe restara enfrentaria o mesmo mundo que ele. Que futuro os
aguardava? Ele não queria pensar nisso. Só queria pensar nas armas às quais
ele teria acesso e em como usá-las no momento certo.
Pouco antes do anoitecer na Nova Babilônia, David recebeu um
telefonema do gerente que controlava as rotas dos aviões.
O piloto quer saber se ele deve pousar na pista ou no...
Eu já lhe dei as instruções! Diga a ele para cumprir as ordens
recebidas!
Senhor, no aviso de embarque consta "pista do palácio". Mas ele acha
que o senhor lhe disse para pousar no Aeroporto da Nova Babilônia.
David fez uma pausa como se estivesse zangado.
Você entendeu o que eu disse?
O senhor disse aeroporto, mas...
Obrigado! Qual é o horário previsto da chegada?
Trinta minutos até o aeroporto. Quarenta e cinco até a pista. Só então
vou poder...
David bateu o telefone e ligou para Mac. Meia hora depois, eles estavam
sentados dentro do helicóptero na pista do palácio. Evidentemente, o avião
que transportava os computadores não se encontrava ali. David ligou para o
aeroporto.
Diga ao piloto onde estamos!
Cara - disse Mac -, você pôs todo mundo a correr de um lado para o
outro, sem saber o que fazer.
Você acha que eu ia colocar os computadores novos na frente dos
melhores técnicos de informática do mundo, vasculhando tudo para
encontrar a casa secreta?
Mac sintonizou o rádio na freqüência do aeroporto e ouviu a instrução
transmitida ao piloto do avião de carga para que ele pousasse na pista do
palácio. Ele olhou para David com ar de indagação.
Para o aeroporto, jóquei voador - disse David.
Vamos cruzar com ele no ar.
Espero que sim.
E eles cruzaram. Finalmente, David teve pena do piloto, garantindo-lhe
que ele e Mac não sairiam dali, e instruiu-o a voltar.
Um guindaste ajudou a descarregar os computadores, e Mac manobrou o
helicóptero na posição correta para erguer a carga. O encarregado da carga
engatou as caixas a um cabo de aço, disse a Mac que o helicóptero tinha
tamanho e força suficientes para transportar os computadores, e instruiu-o
sobre como descarregá-los.
O senhor tem autorização para livrar-se da carga em caso de
emergência - ele disse -, mas não deverá ter problemas.
Mac agradeceu e olhou de relance para David.
Você não teria coragem de... - ele disse, balançando a cabeça de um
lado para o outro.
Claro que tenho. Esta alavanca aqui? Pode deixar que eu tomo conta
dela.
DOIS
Pouco antes do meio-dia, Buck sentou-se diante de seu computador no
amplo abrigo localizado debaixo da casa secreta. Ele, seu sogro e o Dr.
Charles haviam feito a maior parte dos trabalhos de escavação. O Dr. Ben-
Judá se oferecera para ajudar, mas ele era comprovadamente um homem
talhado para obras intelectuais e para passar a maior parte dos dias com os
olhos grudados diante da tela do computador.
Buck e os outros o incentivaram a se concentrar em seu importante
trabalho via Internet, doutrinando grande número de novos crentes e fazendo
apelos para que outros se convertessem. Tsion deixara claro que estava se
sentindo um folgado por deixá-los fazer o trabalho pesado enquanto ele se
ocupava do trabalho suave em um dos cômodos do pavimento superior.
Durante dias, insistira para ajudar os outros a cavar, a ensacar a terra e a
transportar o entulho do porão para os terrenos vizinhos. Seus companheiros
disseram-lhe que poderiam prosseguir sem a ajuda dele, que o local estava
atravancado demais para comportar quatro
homens trabalhando, que o ministério de Tsion era muito importante
para ser retardado por causa de uma tarefa braçal.
Buck lembrou-se, com um sorriso, do que Rayford dissera a Tsion:
Você é o mais velho, nosso pastor, nosso mentor, nosso intelectual,
mas, com a autoridade que meu cargo me confere por ser o mais antigo desta
corporação, sou eu quem comanda a tropa.
Tsion endireitara o corpo no porão abafado, ficando em posição de
sentido e fingindo uma expressão de medo.
Sim, senhor - ele disse. - Qual é minha missão?
Permanecer longe daqui, meu caro. Você tem as mãos macias de um
homem culto. É claro que nós também temos, mas você está sobrando aqui.
Ora, Rayford - disse Tsion enxugando a testa com a manga da camisa
-, pare de caçoar de mim. Só estou querendo ajudar.
Buck e o médico pararam de trabalhar e continuaram a brincadeira que
Rayford iniciara com Tsion.
Dr. Ben-Judá - disse Floyd Charles -, todos nós achamos que o
senhor está perdendo tempo, ou melhor, nós estamos gastando seu tempo
permitindo que o senhor trabalhe aqui. Por favor, tranqüilize nossas
consciências e nos deixe terminar este trabalho sozinhos.
Foi a vez de Rayford fingir-se ofendido.
Onde fica minha autoridade? - ele disse. - Eu dei uma ordem, e o
doutor ainda tem de convencê-lo a obedecer!
Cavalheiros, percebi que vocês estão falando sério - disse Tsion,
acentuando mais ainda seu sotaque israelense.
Finalmente! - disse Rayford levantando as duas mãos. -Agora ele
entendeu.
Tsion subiu a escada, resmungando "continuo a achar que não está
certo", porém nunca mais tentara ajudar nas escavações.
Buck ficou impressionado ao ver o entrosamento que havia entre eles
três. Rayford era o mais astuto tecnicamente falando; Buck, às vezes, era
analítico demais e Floyd - apesar de ter diploma de médico - parecia
contentar-se em fazer o que lhe mandavam. Buck brincava com ele por isso,
dizendo que sempre imaginou que os médicos sabiam tudo. Floyd não
revidava, mas também não achava graça no que Buck dizia. Na verdade,
Floyd demonstrava ser aquele que se cansava primeiro, mas nunca fazia
corpo mole. Ele apenas parava um pouco para recuperar o fôlego, passava as
mãos pelos cabelos e cocava os olhos.
Rayford esquematizava o trabalho diário por meio do esboço de uma
planta baseada em informações colhidas de duas fontes. A primeira vinha
das anotações em cadernos espirais feitas pelo primeiro proprietário do local,
Donny Moore, que morrera esmagado sob os escombros da igreja durante o
grande terremoto da ira do Cordeiro ocorrido quase 18 meses antes. Buck e
Tsion encontraram o corpo da esposa de Donny na sala que desabara no
fundo da casa, onde o casal costumava tomar o café da manhã.
Aparentemente, Donny havia feito planos para o futuro, imaginando que,
um dia, ele e sua esposa teriam de viver isolados do mundo. Quer fosse por
temer uma precipitação radioativa provocada por explosão nuclear, quer
fosse por precisar esconder-se das forças da Comunidade Global, ele havia
elaborado um plano muito arrojado. A ampliação do pequeno e úmido porão
nos fundos da casa estendia-se até o outro lado da casa geminada, chegando
até parte do quintal.
A outra fonte que Rayford consultara foi o plano original de Ken Ritz,
morto há alguns meses, para dar um toque mais aperfeiçoado ao local. Ken
enganara a todos com sua imagem de piloto simplório e rústico. Na verdade,
ele era diplomado pela Escola de Economia de Londres, possuía autorização
para pilotar aviões a jato e - conforme mostravam os projetos que desenhou
sobre o porão - provou ser um arquiteto autodidata. Ken havia elaborado um
plano mais detalhado para o processo de escavação, deslocara as vigas de
sustentação projetadas por Donny e idealizara uma central de comunicações.
Quando tudo estivesse pronto, o abrigo não seria detectado por ninguém. Os
vários comunicadores via satélite, os transmissores e receptores celulares e
as conexões entre computadores seriam acessados com facilidade.
Enquanto Buck trabalhava com Rayford e o médico, e Tsion escrevia
suas magistrais missivas diárias para sua audiência global, Chloe e Hattie
ocupavam-se de seus afazeres. Hattie aproveitava cada momento livre,
esforçando-se furiosamente para recuperar a saúde e o peso que perdera.
Buck preocupava-se, imaginando que ela estivesse determinada a aprontar
alguma coisa. Normalmente, ela estava. Ninguém do grupo sabia ao certo se
ela já não havia divulgado o local da casa secreta, com suas tentativas para
viajar a qualquer custo para a Europa alguns meses atrás. Até aquele
momento, ninguém aparecera para bisbilhotar o local, mas por quanto tempo
aquele sossego duraria?
Chloe passava a maior parte do tempo cuidando do bebê Kenny. Quando
não estava tirando um cochilo para tentar recuperar as forças, ela usava seus
momentos livres para trabalhar via Internet com um número cada vez maior
de fornecedores e distribuidores da Cooperativa de Mercadorias. Os crentes
já estavam começando a usar esse tipo de comércio entre si, prevendo dias
tenebrosos em que seriam proibidos de comprar e vender.
A pressão de viver com outras pessoas, aliada ao trabalho pesado, sem
mencionar o medo do futuro, fazia parte constante da vida de Buck. Ele se
sentia grato por poder escrever seus artigos, ajudar Rayford e o médico no
abrigo e ter um pouco de tempo para passar com Chloe e Kenny, mas seus
dias lhe pareciam longos demais. Os únicos momentos que ele e Chloe
tinham para passar a sós era no final do dia, quando ambos mal conseguiam
ficar de olhos abertos para conversar. O bebê dormia no quarto deles. Apesar
de Kenny não perturbar os demais moradores da casa, Buck e Chloe
acordavam com freqüência à noite para cuidar dele.
Certa madrugada em que não conseguia pegar no sono, Buck deitou-se
de costas na cama, satisfeito por ouvir a respiração regular de Chloe, que
dormia profundamente a seu lado. Ele estava imaginando como melhorar a
eficiência do Comando Tribulação, desejando dedicar mais de si mesmo
como faziam os outros integrantes do grupo. Desde o início, quando o
Comando se compunha de apenas quatro membros - Bruce Barnes, Rayford,
Chloe e ele próprio -, Buck sentiu que fazia parte de um trabalho
fundamental, grandioso. Da mesma forma que os novos crentes que surgiram
após o Arrebatamento, o Comando Tribulação assumira o compromisso de
ganhar almas para Cristo, fazer oposição ao anticristo e sobreviver até a
volta de Jesus, que ocorreria dali a pouco mais de três anos e meio.
Tsion, o homem que Deus colocara no grupo para substituir Bruce, era
um bem precioso que necessitava ser protegido acima de tudo. Seu
conhecimento e paixão pelas coisas de Deus, aliados à sua habilidade de
comunicar-se com pessoas leigas no assunto, transformaram-no em inimigo
número um de Nicolae Carpathia, sem contar as duas testemunhas do Muro
das Lamentações, que continuavam a atormentar os incrédulos com pragas e
julgamentos.
Chloe o surpreendia com sua habilidade para dirigir uma empresa
internacional e, ao mesmo tempo, para tomar conta do bebê. O médico
provara ser uma dádiva de Deus por ter salvo a vida de Hattie e cuidar da
saúde do restante do pessoal. Hattie era a única incrédula. Seu egoísmo a
levava a passar a maior parte do tempo cuidando de si mesma.
Mas a maior preocupação de Buck era com Rayford. Ultimamente, seu
sogro estava muito mudado. Parecia revoltado, não tinha paciência com
Hattie e, geralmente, perdia-se em pensamentos, com o rosto marcado pelo
desespero. Rayford também começara a ausentar-se da casa, caminhando a
esmo no meio do dia. Buck sabia que seu sogro era um homem sensato, mas
gostaria que alguém pudesse ajudá-lo. Ele havia pedido a Tsion que
interferisse, mas o rabino lhe disse:
O capitão Steele costuma recorrer a mim quando deseja revelar
alguma coisa. Não me sinto à vontade para puxar assuntos de natureza
pessoal com ele.
Buck pedira a opinião de Floyd.
Ele é meu mentor, e não o contrário - dissera Floyd. -Converso com
ele quando tenho problemas; não vou forçá-lo a contar-me os seus.
Chloe também não quis se intrometer.
Buck, ele é um pai tradicional, à moda antiga. Costuma me dar todos
os tipos de conselho, mesmo quando não peço, mas eu não me atreveria a
tentar fazê-lo abrir-se comigo.
Mas você está vendo que ele está com problemas, não é?
Claro. O que a gente poderia esperar? Estamos todos confusos
demais. Isso é maneira de viver? Não podemos sair daqui à luz do dia, a não
ser para ir de vez em quando até Palwaukee. Mesmo assim, temos de usar
nomes falsos e estar sempre preocupados para que não descubram nosso
esconderijo.
Os companheiros de Buck tinham motivos suficientes para não inquirir
Rayford. Essa tarefa caberia a Buck. Ah! que alegria..., ele pensou.
Sentado no banco de passageiros do Helicóptero Um da CG, David
Hassid observava, ao lado de Mac McCullum, o que estava acontecendo. A
tripulação de terra do Aeroporto da Nova Babilônia havia engatado um
grosso cabo de aço que ia do helicóptero até as três caixas amarradas entre si
que continham 144 computadores. O chefe da tripulação fez um sinal para
que Mac começasse a subir devagar até que o cabo ficasse completamente
esticado. Em seguida, Mac levantou vôo para levar a carga ao palácio da
Comunidade Global.
Não vai acontecer nada com as caixas - disse Mac -, a não ser que
você toque naquela alavanca. Você não faria isso, certo?
Para atrasar meus funcionários de encontrar o local de transmissão de
Tsion, Buck e Chloe? Claro que sim, se esta fosse a única maneira.
Se?
Vamos, Mac. Já é tempo de você me conhecer melhor. Acha que eu
jogaria no lixo aqueles computadores? Posso ter um terço de sua idade,
mas... Ei! Nem tanto.
Tudo bem, um pouco menos da metade, mas acredite em mim. Você
acha que o número de computadores que encomendamos foi por acaso?
Mac levantou a mão e apertou o botão de seu rádio transmissor.
Helicóptero Um da CG para a torre do palácio, câmbio.
Torre falando, Um, prossiga.
Chegaremos em três minutos, câmbio.
Positivo, desligo.
Mac virou-se para David.
Já sei por que você fez um pedido tão grande. Um para cada mil
testemunhas.
Não pensei em reparti-los desta forma, mas não vou jogá-los no
deserto.
Mas também eu não vou descarregá-los no palácio, vou? David sorriu
e balançou a cabeça dizendo que não. Da
posição em que estavam, ele avistava o imenso palácio. Edifícios que se
espalhavam por quilômetros de extensão cercavam o exuberante castelo -
que outro nome poderia ser dado a ele? - construído por Carpathia em
homenagem a si mesmo. Ali havia todo tipo de conforto, com milhares de
empregados para atender a cada capricho de Carpathia. David tirou seu
telefone sigiloso do bolso e discou um número.
Cabo A. Christopher - ele disse ao telefone. - Diretor Hassid
chamando. - David cobriu o fone com a mão e dirigiu-se a Mac. - O novo
chefe de cargas no Condor.
Eu o conheço?
David encolheu os ombros, movimentou a cabeça negativamente e
voltou a falar ao telefone.
Sim, cabo Christopher. O compartimento do Condor está livre?...
Excelente. Prepare-se para nos receber... Bem, não posso fazer nada, cabo.
Você pode falar com o Departamento de Pessoal, mas entendo que não há
nada que você possa fazer.
David afastou o telefone do rosto e desligou-o, dizendo:
Bateram o telefone na minha cara.
Ninguém gosta de ser responsável pela carga do 216 -disse Mac. -
Quase não há nada para fazer. Você confia nesse sujeito?
Não tenho escolha - respondeu David.
Buck havia transferido temporariamente seu computador para a mesa da
cozinha e estava digitando um artigo para sua revista A Verdade quando
Rayford retornou de sua caminhada matinal.
Ei - disse Buck.
Rayford acenou com a cabeça e parou no topo da escada que dava acesso
ao porão. Buck quase desistiu de seu intento.
Qual é a programação para hoje, Ray?
A mesma de sempre - resmungou Rayford. - Temos de começar a
levantar as paredes do abrigo. E depois temos de deixá-lo invisível. Não
pode haver nenhuma pista. Onde está Floyd?
Eu não o vi. Hattie está no...
No outro lado da casa, claro. Sem dúvida treinando para uma
maratona. Ela vai levar todos nós à morte.
Ei, pai - disse Buck - tente ver as coisas pelo lado positivo.
Rayford não lhe deu atenção.
Onde está o resto do pessoal? - ele perguntou.
Tsion está lá em cima. Chloe está trabalhando no computador na sala
de visitas, e Kenny está dormindo. Eu já lhe disse onde Hattie está. Floyd
ausentou-se sem permissão. Talvez ele esteja no porão, mas eu não o vi
descer.
Não diga que ele se ausentou sem permissão, Buck. Não achei graça.
Rayford não tinha o costume de ser agressivo com ele, e Buck não sabia
como reagir.
Eu só quis dizer que ele não está por aqui, Ray. A verdade é que
ultimamente ele parece não estar bem, e ontem seu aspecto era horrível.
Talvez ele esteja dormindo.
Até o meio-dia? O que está havendo com ele?
Vi que seus olhos estão um pouco amarelados.
Eu não notei nada.
Lá embaixo é muito escuro.
E como você viu?
Só percebi isso ontem à noite. Cheguei a fazer um comentário com
ele.
E o que ele disse?
Fez uma brincadeira dizendo que os gansos selvagens sempre acham
seus irmãos estranhos. Eu não quis dizer mais nada.
O médico é ele - disse Rayford. - Deixe que ele cuide de si mesmo.
Aquele, pensou Buck, era o momento ideal. Ele poderia dizer a Rayford
que estava estranhando seu modo de ser. Mas o momento passou quando
Rayford partiu para a ofensiva.
Qual é a sua programação, Buck? Trabalhar na revista ou no abrigo?
Você é quem manda, Ray. O que eu devo fazer?
Eu diria que é melhor você trabalhar no abrigo, mas faça o que
quiser.
Buck levantou-se.
Mac pousou delicadamente as caixas no pavimento do lado leste do
hangar que abrigava o Condor 216. A porta do hangar estava aberta, de onde
se podia avistar o imenso compartimento de carga do Condor. David saltou
do helicóptero antes que as hélices parassem de funcionar e apressou-se para
desatrelar a carga do cabo de aço. Do lado de fora do hangar, apareceu uma
empilhadeira que puxou a carga, inclinando-a levemente em círculo até
colocá-la dentro do hangar. Quando Mac aproximou-se de David e ambos
fecharam a porta do hangar, o operador da empilhadeira já havia fechado o
compartimento de carga do Condor e estava conduzindo a empilhadeira para
o canto.
Cabo Christopher! - gritou David, e o cabo, que estava a uns 30
metros de distância, virou-se. - Para sua sala, já!
Ele não parecia nada satisfeito - disse Mac enquanto ambos
caminhavam em direção ao escritório de paredes de vidro dentro do hangar. -
Não cumprimentou, não reagiu. Demonstrou má vontade. Você vai ter
problemas pela frente?
O cabo é meu subordinado. Sou eu quem dá as cartas.
David, você precisa respeitar para ser respeitado. E não podemos
confiar em ninguém. Você não vai querer que um de seus principais
funcionários...
Confie em mim, Mac. Está tudo sob controle. Alguém havia mudado
o nome que constava na sala vizinha à de Mac: "CCCCC."
O que significa isto? - perguntou Mac.
Cabo Christopher, Chefe de Carga do Condor.
Ora essa! - disse Mac.
David fez um gesto para que Mac entrasse com ele na sala do cabo.
Depois de fechar a porta, ele se sentou atrás da mesa e apontou uma cadeira
para Mac. O piloto parecia relutante.
O que está havendo? - perguntou David.
E assim que você trata um subordinado?
David colocou os pés em cima da mesa, assentiu com a cabeça e disse:
Principalmente um novato. Ele precisa saber quem é o chefe.
Eu aprendi que, quando a gente usa a palavra chefe diante de um
subordinado, é sinal de que já perdeu a autoridade.
David encolheu os ombros.
Isso era no tempo da Idade Média - ele disse. - Em tempos de
desespero, medidas desesperadas...
O ruído de passos do lado de fora da sala cessou, e alguém girou a
maçaneta da porta. David gritou:
Espero que você bata na porta da sala onde se encontram seu chefe e
seu piloto, cabo.
A porta foi aberta alguns centímetros.
Feche a porta novamente e bata, cabo! - gritou David, com as mãos
atrás da cabeça, sem tirar os pés de cima da mesa.
A porta foi fechada com um pouco de forç. Depois de uma longa pausa,
eles ouviram três batidas secas na porta. Mac balançou negativamente a
cabeça.
Até as batidas desse sujeito são sarcásticas - ele sussurrou. - Mas
você merece isso...
Entre - disse David.
Mac arrastou a cadeira e levantou-se empertigando o corpo diante da
presença de uma jovem trajando uniforme de serviço. Seus cabelos escuros
cortados rentes, quase como os de um homem, apareciam por baixo do boné.
Ela era elegante, tinha olhos grandes e escuros, dentes perfeitos e pele
impecável.
Mac tirou rapidamente o quepe. - Madame.
Pare com isso, capitão - ela disse, dirigindo-se em seguida a David
com ar de reprovação. - Será que sou obrigada a bater para entrar em minha
sala?
David permaneceu na mesma posição.
Sente-se, Mac - ele disse.
Só depois que a dama se sentar - disse Mac.
Eu não estou dando permissão para que ela se sente -retrucou David,
e a cabo Christopher fez um gesto para que Mac se sentasse. - Capitão Mac
McCullum, esta é a cabo Annie Christopher. Annie, este é Mac.
Mac fez menção de levantar-se novamente, mas Annie o impediu,
estendendo-lhe a mão.
Não há necessidade, capitão. Sei quem você é, e seu machismo da
Idade da Pedra ficou evidente. Se vamos trabalhar juntos, pare de me tratar
como se eu fosse uma dondoca.
Mac olhou para ela e depois para David.
Talvez você a trate do jeito que ela merece - ele disse. David
empinou a cabeça.
Conforme você disse, Mac, a gente nunca sabe em quem pode
confiar. E quanto a esta sala, cabo, saiba que tudo o que é seu também é meu
enquanto você estiver sob o meu comando. Este espaço lhe foi destinado
para facilitar o que eu vou lhe ordenar. Entendido?
Com toda clareza.
Cabo, eu não sou militar, mas sei que um subordinado não pode ficar
com a cabeça coberta na presença de seu superior.
Annie Christopher deu um longo suspiro e curvou os ombros enquanto
tirava o boné. Ela passou a mão pelos cabelos curtos, caminhou até a parede
divisória de vidro entre a sala e o restante do hangar e fechou as persianas.
O que você está fazendo? - perguntou David. - Não há ninguém lá
fora e eu não lhe dei permissão para...
Ora, vamos, diretor Hassid. Desde quando eu preciso de sua
permissão para fazer alguma coisa?
David tirou os pés da mesa e sentou-se firme na cadeira assim que Annie
se aproximou dele. - Para dizer a verdade, precisa sim.
Ele abriu os braços, e ela sentou-se em seu colo.
Como vai, meu amor? - ela disse.
Eu estou ótimo, meu bem, mas acho que Mac está prestes a ter um
ataque cardíaco.
Mac sentou-se na beira da cadeira e inclinou-se para a frente, com os
cotovelos apoiados nos joelhos.
Seus engraçadinhos! - ele disse. - Com licença, Srta. Christopher,
mas preciso ver seu selo na testa.
Às ordens - ela disse, inclinando-se por cima da mesa para que ele
pudesse enxergar melhor. - David e eu também fizemos isso no dia em que
nos conhecemos.
Mac segurou a cabeça de Annie por trás com uma das mãos e passou o
polegar da outra mão no selo da testa dela. Em seguida, segurou o rosto da
moça com as duas mãos e beijou-a carinhosamente no topo da cabeça.
Irmã, você tem idade para ser minha filha - ele disse. Annie sentou-se
na outra cadeira.
Devo dizer-lhe, capitão McCullum, que eu não suportaria trabalhar
para nenhum de vocês. O Departamento de Pessoal tem um pedido meu,
solicitando que eu seja transferida para outro setor. O diretor de meu
departamento é insuportável e metido a importante, e o capitão do Condor é
um machista.
Mas - disse David -, eu informei ao Departamento de Pessoal que ela
não deve ser transferida. Annie criou problemas em todos os departamentos
nos quais trabalhou, e esta é a recompensa que ela recebeu. Eles adoraram.
Mac olhou de esguelha para ela, e depois para David.
Mal posso esperar para ouvir as histórias de vocês dois - ele disse.
Buck adiou a conversa franca que teria com o sogro quando Rayford
abriu as plantas sob a lâmpada do porão e perguntou qual era sua opinião
para impedir que alguém descobrisse a entrada.
Pensei que você nunca me perguntaria - disse Buck. - De fato, eu
tenho ruminado algumas idéias.
Sou todo ouvidos.
Você conhece aquele freezer da casa geminada a esta?
Aquele que tem um cheiro forte?
Buck assentiu com a cabeça. Eles haviam jogado fora toda a comida
estragada, mas o mau cheiro no interior persistia.
Minha idéia é trazer o freezer para cá e abastecê-lo com alguma coisa
que se pareça com comida estragada. O mau cheiro continuará. Vamos
colocar bandejas de alimento no fundo do freezer. Qualquer pessoa que abrilo
sentirá repulsa por causa do mau cheiro e não vai examinar aquela comida
estragada. Ninguém vai pensar em levantar as bandejas. Quem fizer isso,
encontrará um fundo falso que dará acesso à escada para o abrigo. Nesse
meio-tempo, podemos construir uma parede cobrindo a atual entrada para o
porão.
Rayford pôs a mão na testa como se buscasse, no fundo da mente,
alguma possível falha no plano. Em seguida, encolheu os ombros.
Gostei. Mas precisamos dar um jeito de esconder isso de Hattie.
Buck olhou ao redor.
Então, eu estava certo? Floyd não está por aqui?
O bip de Mac tocou.
É Fortunato - ele disse. - Ótimo! Posso usar seu telefone, cabo?
Esse telefone não é meu, senhor - respondeu Annie. - Ele só foi
destinado a mim para...
Mac ligou para o escritório de Fortunato.
Aqui é Mac McCullum retornando a ligação dele... Sim, madame...
Sexta-feira?... Quantos convidados?... Não, madame. Diga a ele que houve
uma confusão com aquele embarque. Ele terá de conversar com o diretor de
compras... Não, aqueles não estavam disponíveis para ser entregues no
palácio... Talvez depois que retornarmos de Botsuana, sim, madame.
A porta do quarto do Dr. Floyd Charles estava fechada. Buck avistou
Tsion no quarto ao lado, trabalhando no computador, apoiando a cabeça na
mão, com o cotovelo na mesa.
Você está bem, Tsion?
Cameron! Entre, por favor. Só estava descansando os olhos.
Orando?
O rabino sorriu com ar de cansaço.
Incessantemente. Não temos escolha, temos? Como vai, meu amigo?
Continua preocupado com seu sogro?
Sim, mas vou conversar com ele. Você viu o médico hoje?
Normalmente tomamos o café da manhã juntos, bem cedo, conforme
você sabe. Mas hoje tomei o café sozinho. Não ouvi a voz dele no porão, e
confesso que não pensei mais nisso. Estou escrevendo sem parar. Cameron,
não temos idéia do tempo que durará esta calmaria entre o quinto e o sexto
ais. Estou tentando descobrir se a visão que João teve foi real ou simbólica.
Como você sabe...
Desculpe-me, Dr. Ben-Judá. Eu preciso saber se...
Sim, claro. É melhor você tentar encontrar Floyd. Conversaremos
mais tarde.
Eu não tive a intenção de ser grosseiro.
Você não precisa se desculpar, Cameron. Vá. Conversaremos depois.
Se precisar de mim, me avise.
Buck ainda não se acostumara ao privilégio de morar na mesma casa
com o homem cujas mensagens diárias eram como o ar que milhões de
pessoas do mundo inteiro respiravam. Apesar de Tsion trabalhar no andar de
cima da casa, muito perto do restante do grupo, quando ele estava atarefado
ou cansado demais para conversar, os moradores da casa liam suas
mensagens pela Internet. A melhor parte de morar com o rabino era que ele
se empolgava com suas mensagens tanto quanto seus leitores. Trabalhava a
manhã inteira e muitas horas à tarde preparando-se para transmitir as
mensagens pouco antes do anoitecer. Tradutores do mundo inteiro
convertiam suas palavras para os idiomas de seus respectivos países. Os
crentes que conheciam informática mais a fundo trabalhavam duro para
catalogar as informações do Dr. Ben-Judá e torná-las acessíveis aos novatos
na fé.
Quando Tsion se deparava com alguma revelação estarrecedora em seus
estudos, Buck ouvia seu grito de júbilo e sabia que, em seguida, ele
apareceria no topo da escada.
Se alguém estiver me ouvindo - ele gritava -, preste atenção no que
vou dizer!
Seus conhecimentos da linguagem bíblica faziam os comentários sobre
determinada passagem parecerem novidade, mesmo perante os olhos dos
mais astutos estudiosos da Bíblia.
Buck mal podia esperar para saber o que Tsion estava escrevendo sobre a
profecia do sexto ai, mas por ora sua preocupação era com o médico. Ele
bateu levemente na porta do quarto. Depois com mais força. Girou a
maçaneta e entrou. Já estava no meio da tarde, e o sol da primavera brilhava
alto no céu. Mas o quarto estava às escuras, com as cortinas fechadas. E o
Dr. Charles continuava deitado, sem se movimentar.
Vou partir para a África sexta-feira - disse Mac. - Fortunato
concordou com o pedido de Mwangati Ngumo. Claro que Ngumo está
pensando que vai ter um encontro pessoal com Carpathia. Aposto que
Ngumo está querendo saber quando Carpathia vai cumprir suas promessas.
Annie Christopher semicerrou os olhos.
Imaginem o que o potentado deve ter prometido só para poder tomar
o lugar que ele ocupava como secretário-geral.
Vamos saber na sexta-feira - disse Mac. - Pelo menos eu vou saber.
Annie virou-se para Mac.
Eles permitem que você participe deste tipo de reunião?
ela perguntou.
Mac olhou de relance para David.
Você não contou a ela?
Pode contar - disse David.
Venha comigo, cabo - disse Mac. Ela e David o acompanharam.
Vou continuar a chamá-lo de Capitão ou Sr. McCullum, mesmo em
particular - disse Annie. - Deixei que você visse meu selo e me beijasse na
cabeça. Mas, de agora em diante, pode me chamar de Irmã.
Não sei - disse Mac. - É melhor manter as formalidades para que eu
não cometa um deslize na frente de alguém. Ela o acompanhou até a cabina
de comando.
Doutor? - disse Buck, aproximando-se da cama. Ele não notou
nenhum movimento. Não queria assustá-lo.
Imaginando que a lâmpada produziria menos claridade que a luz do Sol,
Buck apertou o interruptor e deu um suspiro de alívio. Pelo menos o médico
estava respirando. Talvez ele tivesse demorado a pegar no sono e estava
recuperando as horas perdidas. Floyd resmungou e virou-se na cama.
Você está bem, doutor? - perguntou Buck. Floyd sentou-se, com ar de
surpresa.
Eu receava isso - ele disse.
Sinto muito - disse Buck. - Eu só...
Floyd saiu de debaixo das cobertas. Sentou-se na beira da cama trajando
um roupão de veludo comprido que deixava à mostra suas roupas - camisa
de flanela, calça jeans e botas. Ele havia transpirado a noite toda.
A noite estava assim tão fria? - perguntou Buck.
Abra as cortinas, por favor.
Floyd cobriu os olhos quando a luz do sol penetrou no quarto.
Qual é o problema, Floyd?
O seu carro está em ordem?
Claro.
Leve-me ao Young Memorial. Meus olhos continuam amarelados?
Ele olhou para Buck, que se inclinou para ver melhor.
Oh! Floyd - disse Buck. - Eu preferia que estivessem amarelados.
Estão injetados?
Injetados é uma palavra suave.
Não há nenhuma parte branca? Buck balançou a cabeça
negativamente.
O problema é grave, Buck.
TRÊS
David, Mac e Annie Christopher sentaram-se na luxuosa sala de estar do
Condor, seis metros atrás da cabina de comando.
Então - disse Annie -, essa tal coisa reversível...
Dispositivo de intercomunicação reversível - corrigiu Mac.
... permite que você ouça tudo o que passa no avião? Mac assentiu
com a cabeça. - Sala de estar, poltronas, aposentos, sanitários, tudo.
Incrível.
Demais, você não acha? - disse Mac.
Incrível você ainda não ter sido pego.
Você está brincando? Se eles descobrirem, vou negar tudo. Não tenho
nada a ver com isso, Rayford não me contou que havia um dispositivo aqui e
nunca vi o tal botão. Eles o consideram um traidor. Nem eles nem nós
sabemos onde ele está, não é verdade?
Annie caminhou até um sofá atrás de uma mesa de madeira muito
brilhante.
É aqui que o chefão assiste à TV?
David acenou afirmativamente com a cabeça. Ela virou-se para Mac com
ar de quem acabara de pensar em alguma coisa.
Você não se importa em mentir?
Mac balançou a cabeça mostrando que não ligava para isso.
Para o anticristo, você quer dizer? Minha vida toda e uma mentira
para ele. Se ele desconfiasse de alguma coisa, eu seria torturado. Se ele
imaginasse que sei onde Rayford está, ou onde sua filha e genro estão, eu
seria morto.
O fim justifica os meios? - perguntou Annie.
Mac deu de ombros. - Só posso lhe dizer que durmo bem à noite.
E eu vou dormir melhor - ela disse - sabendo que você mantém
Carpathia sob vigilância.
Pelo menos quando ele está a bordo - disse Mac. - Na verdade, Leon
me diverte mais. Ele é uma peça rara.
Eu gostaria de viajar com você - disse Annie.
Eu também - disse David. - Mas não teríamos condições de ouvir
nada, a menos que viajássemos na cabina de comando. E por falar nisso,
Mac, você continua preocupado com aquele seu co-piloto que não larga do
seu pé?
Deixei de me preocupar com ele - respondeu Mac. - Eu o promovi.
Agora ele vai ser piloto do Pomposo Pontífice.
Annie riu. - Adorei o título! Já tive problema por ter esquecido parte do
título dele. É Sua Excelência Sumo Pontífice Peter Segundo, não?
Mac encolheu os ombros. - Para mim ele é Pete.
Você precisa conhecer o avião que ele encomendou -disse David. -
Nicolae e Leon estão loucos de raiva.
É melhor que este aqui? - perguntou Mac.
Muito melhor. Cinqüenta por cento maior e custou o dobro.
Pertenceu a um xeique. Estou aguardando a entrega para daqui a uma
semana.
Eles aprovaram a compra?
Eles estão dando corda para ele se enforcar - disse David.
Será que o tal piloto vai saber pilotar esse avião?
Ele é capaz de pilotar qualquer coisa - respondeu Mac.
Gostei dele. É muito habilidoso, mas totalmente leal a Carpathia. Por
mais que eu quisesse me aproximar dele para conversar sobre religião, não
tive coragem de me abrir. Mas ele já está sendo trabalhado por um crente do
setor C.
O setor de manutenção? - perguntou Annie. - Eu não sabia que havia
crentes lá.
Não há mais. Meu chefe o tirou de lá. Teria feito o mesmo comigo.
Deus vai alcançá-lo de outra maneira.
David levantou-se, apertou um botão no painel de um enorme aparelho
de TV e ligou-o. Tirou o som e ficou apenas observando as notícias
controladas por Carpathia.
A recepção é excelente, mesmo dentro desta estrutura de metal - ele
disse. Nada mais me surpreende - disse Mac. - Aumente o som.
O noticiário relatava histórias das grandes realizações de Carpathia. O
potentado apareceu na tela, sereno e charmoso como sempre, elogiando um
governo qualquer e fingindo humildade ao falar de seu projeto de
reconstrução.
"É para mim um privilégio ter a oportunidade de servir a cada membro
da Comunidade Global", ele disse.
Olhe ali, Mac - disse David, apontando para o piloto que se
encontrava em segundo plano enquanto Carpathia saudava outro ex-país do
Terceiro Mundo que se beneficiara de sua generosidade. - É o novo piloto do
Peter. Você vai dar um jeito de arrumar um crente para substituí-lo?
Se eu conseguir driblar o Departamento de Pessoal.
Alguém que eu conheço?
Um jordaniano. Ex-piloto de aviões de caça. Abdullah Smith.
O Land Rover de Buck sacolejava rumo a Palatine. Floyd Charles estava
deitado no banco traseiro.
O que houve, doutor? - perguntou Buck.
Sou um grande idiota - disse Floyd, sentando-se logo atrás de Buck. -
Faz meses que percebi o que estava acontecendo, mas disse a mim mesmo
que era pura imaginação. Quando a visão começou a piorar, eu deveria ter
entrado em contato com o Posto de Saúde. Agora é tarde demais.
Não estou entendendo.
Digamos que eu descobri o que quase matou Hattie. Foi ela que me
contaminou. Em termos leigos, é como se fosse cianeto que vai sendo
liberado com o tempo. Pode se desenvolver durante meses. Quando a gente
se dá conta, já foi. Se é isso que tenho, não há nada a fazer para interromper
o ciclo. Tratei dos sintomas, mas de nada valeu.
Não fale assim - disse Buck. - Se Hattie sobreviveu, por que você
também não vai sobreviver?
Porque ela recebeu cuidados diários durante meses.
Vamos orar. Leah Rose conseguirá o que você necessita.
Tarde demais - disse o médico. - Sou um tolo. O pior paciente de um
médico é ele próprio.
E quanto ao restante do grupo? Corremos perigo?
Não. Se vocês não apresentaram sintomas, estão livres. Acho que fui
contaminado quando cuidei dela durante o aborto.
E quanto a Leah?
Temos de esperar para ver.
O telefone de Buck tocou.
Onde você está? - perguntou Chloe.
Prestando um pequeno favor a Floyd. Não quis incomodar você.
O que me incomoda é saber que você saiu sem me dizer aonde estava
indo. Prestando um pequeno favor em plena luz do dia? Papai não está nada
feliz. Ele tinha a intenção de visitar T no aeroporto hoje.
Ele pode usar o carro de Ken.
O carro dele é muito manjado, mas o problema não é este. Ninguém
sabia me dizer aonde vocês foram. Tsion está preocupado.
Buck soltou um longo suspiro. - Floyd não está se sentindo bem e não há
tempo a perder. Estamos a caminho do Young Memorial. Mais tarde eu me
comunico com você.
O que houve...
Mais tarde, querida. Está bem?
Ela hesitou. - Tome cuidado, e diga a Floyd que estaremos orando por
ele.
Não devemos ser vistos juntos com freqüência - disse Mac. David e
Annie concordaram. - A não ser em situações normais. Alguém sabe que
você está aqui agora?
Annie meneou a cabeça negativamente. - Tenho uma reunião às dez da
noite. Eu estou livre - disse David. - Não há mais nenhum trabalho normal,
caso você ainda não tenha percebido.
Eu gostaria de ouvir as histórias de vocês, David - disse Mac. - Sei
que sua família mora em Israel. De onde você é, Annie?
Canadá. Eu estava voando de Montreal para cá quando aconteceu o
terremoto. Perdi toda a minha família.
Você ainda não era crente?
Não. Acho que só fui à igreja para assistir a casamentos e enterros.
Não nos importávamos que nos chamassem de ateus, mas era assim que
vivíamos. Prefiro dizer que éramos agnósticos. Parece mais tolerante, menos
dogmático. Éramos pessoas equilibradas. Boa gente. Melhores do que
muitos religiosos que eu conhecia.
E você não sentia curiosidade de conhecer a Deus?
Comecei a pensar nisso depois dos desaparecimentos, mas logo em
seguida nos tornamos admiradores de Carpathia. Ele parecia ser a voz da
razão, era um homem de bondade, amor e paz. Candidatei-me a trabalhar
para ele assim que fiquei sabendo que o nome da ONU fora mudado e que a
sede seria transferida para cá. O dia em que fui aceita foi o mais feliz de
minha vida e de minha família.
O que aconteceu?
A morte deles mudou tudo. Fiquei arrasada. Eu já tinha levado um
susto muito grande antes, é claro. Conhecia algumas pessoas que
desapareceram e outras que morreram em conseqüência dos
desaparecimentos. Mas nunca havia perdido uma pessoa da família. De
repente, perdi minha mãe, meu pai e dois irmãos menores no terremoto.
Metade de minha cidade foi destruída enquanto eu voava feliz naquele avião.
Aterrissamos nas areias do Aeroporto de Bagdá e vimos outros aviões
descerem ali. Fiquei sabendo que a sede da CG desabou. Finalmente fui
parar em um abrigo subterrâneo, onde vi as ruínas de meu pequeno bairro
pela CNN. Foram dias e dias de desespero. Eu chorava e orava para não sei
quem, implorava para que o serviço de comunicações me desse notícias de
minha família. Como a busca que eles faziam pela Internet era muito lenta,
resolvi procurar por conta própria. Encontrei uma dúzia de nomes de pessoas
conhecidas que constavam da lista de mortos. Eu não queria ver os
sobrenomes que começavam com a letra C, mas não pude resistir. Annie
mordeu o lábio.
Você não precisa falar deste assunto se...
Eu quero falar, McCullum. Parece que tudo aconteceu ontem. Tentei
voltar para reconhecer os corpos, cuidar dos funerais. Mas não foi possível.
Houve cremações em massa por motivos de saúde pública. Não sobrou
ninguém para chorar comigo. Eu queria me matar.
David colocou a mão no ombro de Annie.
Conte a ele o que você descobriu na Internet.
Você deve imaginar - disse Annie, fitando Mac com os olhos úmidos.
Ele assentiu. - Vi todas aquelas mensagens do Dr. Ben-Judá vindas do
abrigo. Isso foi antes de eu descobrir o site dele. Quando a CG começou a
fazer todo aquele barulho para proibir o acesso àquele site, achei que deveria
entrar nele. Eu ainda era uma militante fanática, mas Carpathia pregava a
liberdade individual e, ao mesmo tempo, a negava. Aquelas orações me
assustaram. Eu nunca havia parado para pensar em Deus. Naquele momento,
eu queria que Ele me acudisse. Eu não tinha ninguém mais na vida.
Foi aí que você encontrou Tsion.
Encontrei a página inicial do site dele. Eu não podia acreditar. O
número que aparecia no canto da tela, que você deve ter visto, mostrava
quantas pessoas estavam entrando naquele site a cada segundo. Pensei que
fosse um exagero, mas de repente comecei a entender por que a CG estava
contra ele. Alguém com capacidade para atrair um número tão grande de
pessoas era uma ameaça. Cliquei em alguns lugares do site e li a mensagem
do Dr. Ben-Judá para aquele dia. Eu me lembrei de quando ele declarou sua
conversão ao mundo inteiro pela TV. Mas não foi isso o que me
impressionou. Também não compreendi quase nada do que ele estava
comunicando aquele dia pela Internet. Eram coisas da Bíblia que não me
diziam respeito, mas o tom de voz dele era muito cordial. Parecia que ele
estava sentado a meu lado conversando comigo, contando o que acontecia e
o que viria depois. Eu sabia que, se lhe fizesse perguntas, ele as responderia.
Foi então que eu vi os arquivos. Já existem arquivos?, pensei. Há quanto
tempo existia aquele site?
Cliquei em algumas listas - prosseguiu Annie -, surpresa ao ver que
ele já havia incluído uma mensagem para cada dia das semanas seguintes.
Quando vi aquela mensagem intitulada "Para Aqueles Que Choram", quase
desmaiei. Senti uma onda de calor percorrer meu corpo, e depois um arrepio.
Tranquei a porta e torci para que a CG não tivesse começado a monitorar
nossos laptops. Tive uma enorme sensação de bem-estar. Eu sabia que
aquele homem tinha alguma coisa para mim. Imprimi a mensagem e
carreguei-a comigo durante meses até o dia em que David e eu nos
conhecemos. Ele me avisou que eu não deveria ser pega com aquela
mensagem. Resolvi memorizá-la antes de destruí-la.
Mac olhou para ela com ar de dúvida.
Você memorizou uma mensagem inteira de Ben-Judá?
Quase toda. Você quer ouvir o primeiro parágrafo?
Claro.
Ele escreveu: "Meu caro amigo enlutado, talvez você esteja chorando
a perda de um ente querido que desapareceu no Arrebatamento ou foi morto
no caos que resultou dos desaparecimentos. Estou orando para que a paz de
Deus o conforte. Sei o que você está sentindo porque perdi minha família de
uma maneira indescritível. Mas quero que estas palavras lhe transmitam esta
grande certeza: Se seus queridos estivessem vivos hoje, eles insistiriam para
que você tivesse certeza absoluta de que está preparado para morrer. Existe
uma única maneira de fazer isso." David percebeu que Mac estava
comovido.
O Dr. Ben-Judá explicou o que significavam Deus, Jesus, o
Arrebatamento e a Tribulação de maneira tão clara que senti um desejo
enorme de acreditar. Eu precisei ler os ensinamentos anteriores do Dr. Ben-
Judá para compreender que ele estava certo sobre as profecias bíblicas. Até
então, ele havia predito cada um dos julgamentos.
Mac assentiu, sorrindo.
É claro que você conhece tudo isso - ela disse. - Retornei a uma
mensagem arquivada e aprendi como orar, como dizer a Deus que eu era
uma pecadora e que necessitava dele. Ajoelhei-me com o rosto na cama e fiz
isso. Eu sabia que havia conhecido a verdade, mas não tinha idéia do que
fazer a seguir. Passei o resto do dia e toda a noite lendo tudo o que pude
sobre os ensinamentos do Dr. Ben-Judá. Logo ficou claro em minha mente
por que a CG fazia oposição àquele homem. Ele tomava o cuidado de não
mencionar o nome de Nicolae, mas era evidente que a nova ordem mundial
representava um inimigo de Deus. Eu não entendia muito a respeito do
anticristo, mas sabia que tinha de ser diferente dos demais funcionários da
CG. Lá estava eu, uma crente, no abrigo do inimigo de Deus.
Foi aí que eu apareci - disse David. - Annie achou que eu estava
flertando com ela.
Não pule uma parte da história - disse Annie. - Quando me misturei
com o restante dos funcionários da CG, fiquei com medo de parecer crente.
Eu imaginava que todas as pessoas com as quais conversava sabiam que eu
tinha um segredo. Eu queria contar a alguém, mas não conhecia ninguém em
quem confiar. Cheguei em meio ao caos e me indicaram onde seria meu
dormitório. Deram-me um uniforme e disseram-me que eu ia trabalhar no
setor de Comunicações. Meu cargo era bem inferior ao de David, mas
percebi que ele olhava para mim. A princípio, ele pareceu assustado, mas
depois sorriu.
Ele viu o selo em sua testa - disse Mac.
É verdade, mas veja, eu não tinha me aprofundado nos ensinamentos
de Tsion até esse ponto. David me mandou recados por intermédio de vários
supervisores dizendo que queria falar comigo. "Pessoalmente?", perguntei.
Assim que entrei naquela sala e a porta foi fechada, ele disse: "Você é
crente!" Quase morri de medo. Eu disse: "Não, eu... sou crente em quê?" Ele
disse: "Não negue! Posso ver em seu rosto!" Achei que ele estava tentando
descobrir alguma coisa, e neguei outra vez. Ele disse: "Se você negar a Jesus
mais uma vez, vai ser igual a Pedro. Cuidado com o galo."
Eu não tinha idéia do que ele estava falando - prosseguiu Annie. -
Não sabia que Pedro foi um discípulo e muito menos que ele negou a Cristo.
Achei que David devia ter adivinhado meu segredo, e mencionando alguém
chamado Pedro, falando em galos, só estava querendo me confundir. Mesmo
assim, eu não podia fazer nada, e disse: "Não estou negando a Jesus."
Ele perguntou: "O que você quer dizer com isto?"
Eu respondi: "Estou temendo por minha vida."
Ele disse: "Bem-vinda ao clube. Também sou crente."
Eu perguntei: "Como você ficou sabendo?"
Ele respondeu: "Está escrito em você."
Eu perguntei: "Como?"
E ele respondeu: "Deus escreveu isso literalmente em sua testa." Foi
aí que eu quase desmaiei de susto.
Assim que Buck e Floyd Charles entraram no Young Memorial, a
recepcionista adolescente chamou em voz alta:
Srta. Rose, seus amigos estão aqui.
Não precisa gritar! - disse Leah, saindo apressada de sua sala. -
Cavalheiros, acho que não há nada que eu possa fazer para ajudá-los hoje.
Qual é o problema?
Floyd sussurrou alguma coisa ao ouvido dela.
Que Deus nos ajude - ela disse. - Por aqui. Segure-se bem.
Você apresentou algum sintoma? - perguntou Floyd. Ela sacudiu a
cabeça negativamente. Buck apoderou-se de uma cadeira de rodas para
Floyd e empurrou-a atrás de Leah. Ela os conduziu por uma pequena rampa,
passou pelos elevadores principais e chegou ao elevador de serviço. Para
abri-lo, ela usou uma chave que fazia parte de um enorme chaveiro.
Se encontrarmos alguém, vire o rosto - ela disse. - Não deixe
ninguém perceber.
É claro que ninguém vai perceber - respondeu Buck. Leah olhou
firme para ele.
Sei que o senhor conhece a gravidade do caso, Sr. Williams, por isso
gostaria que não subestimasse minhas advertências.
Desculpe-me.
Eles entraram no elevador, e as portas se fecharam. Leah trancou-o
novamente e apertou o botão do sexto andar.
Não sei se vai dar certo - ela disse. - No outro elevador, a gente pode
passar pelos outros andares sem parar. Basta girar a chave e manter o botão
apertado.
Não deu certo. O elevador parou no segundo andar. Buck ajoelhou-se
diante do médico como se estivesse conversando com ele. Naquela posição,
ninguém teria condição de ver o rosto deles.
Sinto muito - disse Leah a quem aguardava o elevador. - Emergência.
Droga! - disse alguém.
Aconteceu a mesma coisa no quinto andar, e eles ouviram outras reações
semelhantes.
Isso não é bom - disse Leah quando as portas se fecharam novamente.
- Preparem-se para encontrar mais pessoas no saguão do sexto andar. Vamos
seguir à esquerda.
Felizmente, eles passaram despercebidos enquanto Leah conduzia os
dois até um quarto vazio. Ela fechou a porta e trancou-a. Em seguida, cerrou
as cortinas.
Coloque-o na cama - ela disse a Buck -, e tire as roupas molhadas
dele. Você dormiu deste jeito, doutor?
Floyd respondeu afirmativamente com a cabeça, com ar de cansaço.
Buck não gostou nada de ver a cor vermelha que tomava conta dos olhos
de Floyd ao redor das pupilas escuras.
O que há de errado com ele, Leah?
Sem dizer nada, ela pegou uma espécie de camisola de um armário e
atirou-a em sua direção.
Se ele precisar usar o banheiro, que seja agora. É provável que ele
não possa levantar-se da cama novamente.
Por quanto tempo? - perguntou Buck.
Para sempre - balbuciou o médico. - Ela sabe o que está acontecendo
comigo.
Leah apertou o botão do telefone instalado na parede e continuou a falar
enquanto trabalhava.
O Posto de Saúde fez uma entrega de antitoxina ontem. Traga dois
frascos para o 6204.
É urgente? - perguntou a recepcionista.
Leah fez uma careta. - Sim, é urgente! É para já.
Há uma ligação para você.
Você acha que tenho condições de atender a uma ligação? Urgente
foi palavra sua, menina. Por favor, rápido!
Está bem - disse a garota. - Não me culpe depois por eu não ter
avisado sobre a ligação.
Leah segurou Buck pela manga da camisa e puxou-o para perto do leito
do médico.
Eu preciso fazer algumas perguntas a ele. Quando a garota bater na
porta, pegue rapidamente o medicamento e feche a porta.
Buck assentiu com a cabeça.
Vamos lá, doutor - ela disse. - Quando surgiram os primeiros
sintomas?
Há pouco tempo - ele resmungou.
Pouco tempo não significa nada. Quando?
Sou um idiota.
Nós dois sabemos disso. Quanto tempo depois de você ter cuidado
daquele aborto aqui?
Talvez uns seis meses.
E você não tomou nenhuma providência?
Ele balançou a cabeça negativamente. - Fiquei esperando que nada
acontecesse.
O que tenho aqui não vai funcionar.
Foi por isso que não fiz nada.
Você sabe que o único antídoto que o Posto de Saúde tem disponível
é a antitoxina, e ninguém...
De qualquer forma, é tarde demais. Leah olhou para Buck com ar
desolado.
Ele tem razão - ela disse. - A antitoxina não vai servir nem para ele
ter uma morte mais tranqüila.
O que você está dizendo? - perguntou Buck. - Ele não tem nenhuma
chance?
O médico balançou a cabeça de um lado para o outro e fechou os olhos.
A dosagem máxima de antitoxina será como um pingo d'água no
oceano - disse Leah. - Você consegue enxergar, doutor?
Quase nada.
Leah mordeu os lábios.
Alguém bateu na porta. Buck abriu-a e estendeu a mão para pegar o
medicamento. A garota não quis entregar-lhe. Com um gesto brusco, ele o
tomou das mãos dela.
Srta. Rose - a garota gritou por cima dos ombros de Buck. - Aquela
ligação era da CG!
Buck fechou a porta, mas Leah passou por ele, abriu-a e chamou a moça.
CG de onde?
De Wisconsin, acho.
O que você disse a eles?
Que você estava ocupada com um paciente.
Você disse quem era o paciente?
Eu não sei quem ele é. Só sei que é um médico.
Mas você não disse nada, disse?
Eu deveria ter dito?
Fique esperando ali.
Sinto muito, não posso.
É só por alguns instantes.
Leah voltou a entrar no quarto, encheu rapidamente duas seringas com o
medicamento e injetou-as nas nádegas de Floyd. Ele não fez nenhum
movimento.
Peça a ela que entre - disse Leah a Buck.
Ele abriu a porta e fez um sinal para a garota. A princípio, ela hesitou,
mas depois aproximou-se lentamente.
Vamos! - ele disse. - Ninguém vai machucar você. Assim que a
garota pôs a cabeça no vão da porta, Leah disse:
Traga minha bolsa aqui o mais rápido que puder, por favor.
Claro, mas...
Urgente, meu bem. Urgente! A garota saiu correndo.
O que está acontecendo? - perguntou Buck.
Pegue seu carro e estacione-o nos fundos do hospital. Há uma saída
pelo porão. Vou me encontrar com você lá.
Mas, se ele está morrendo, como você...
Leah agarrou-o pelos braços. - Sr. Williams, o Dr. Charles e eu não
estamos brincando. Este homem pode morrer antes de conseguirmos levá-lo
até o carro. Se o senhor quiser enterrá-lo, cremá-lo ou fazer outra coisa
qualquer sem que ele seja visto aqui, me espere na porta dos fundos. A CG
de Wisconsin não lhe diz alguma coisa? Era lá que ele trabalhava, o senhor
se lembra? Foi de lá que ele saiu sem permissão. Eles estão atrás dele por
toda parte, observando tudo, imaginando que ele está nesta região, e poderá
aparecer aqui a qualquer momento. Eles não sabem, pelo menos de minha
boca, que ele já esteve uma vez aqui. Tenho mentido o tempo todo. Se eles o
encontrarem aqui, vivo ou morto, nós todos estaremos perdidos. Agora vá!
Existe alguma chance de salvar a vida dele?
Pegue o carro.
Só me diga se é melhor ele sair daqui ou... Leah sussurrou em tom de
desespero.
Ele vai morrer. É só uma questão de tempo. A palavra onde é
irrelevante neste momento. O melhor que eu podia fazer por ele foi feito. O
pior de tudo seria alguém encontrá-lo aqui.
Mac consultou seu relógio. - Tenho tempo para vocês me contarem
como começaram a namorar.
Acho que você já ouviu detalhes suficientes, capitão.
Vamos! Eu sou um velho romântico.
Não foi nada fácil - disse David. - Eu não queria que você e Rayford
soubessem.
Tudo bem, mas por quê?
Na época, achávamos que quanto menos pessoas soubessem, melhor.
Precisamos entrar em contato com todos os crentes que pudermos.
Eu sei - disse David. - Mas tudo era muito novo para nós, e não
sabíamos em quem confiar.
Se vocês querem saber, Ray e eu nunca desconfiamos de nada.
Foi um bom treinamento, se é que estou usando a palavra certa. O
que vai acontecer quando os manda-chuvas começarem a procurar uma
marca que não temos?
Ninguém mais poderá se esconder, crianças.
Depois de pegar o elevador principal e chegar ao primeiro andar, Buck
se deu conta de que, para sair, precisaria passar pela recepcionista. Ele não
queria, por nada deste mundo, que ela visse seu Rover. Buck pensou em
distraí-la fingindo um caso de emergência, mas, ao entrar no saguão para
dirigir-se à porta principal, ele avistou uma senhora robusta, de meia-idade,
ocupando o lugar da garota. Claro! A garota estava levando para Leah a
bolsa que ela pedira. Leah havia feito aquilo para afastá-la da recepção.
Buck caminhou apressado até o carro. Enquanto o dirigia, contornando a
lateral do edifício rumo à entrada dos fundos, ele avistou a substituta em pé
perto da janela, olhando para fora. Ele só esperava que a garota não tivesse
pedido à sua substituta que descobrisse aonde seu carro estava indo.
Buck pisou no freio com força, fazendo o carro derrapar na pista
asfaltada que dava acesso à saída dos fundos. Ele saltou do Rover e abriu a
porta enquanto Leah, com uma sacola sobre os ombros, empurrava uma
maça onde Floyd Charles estava deitado com um lençol cobrindo-lhe a
cabeça.
Ele está morto? - perguntou Buck, sem acreditar.
Não! Mas as pessoas estão longe daqui, e ninguém vai identificá-lo,
vai? Só a recepcionista.
Buck abaixou o encosto do banco traseiro, e Leah empurrou a maça para
dentro do carro.
Você está surrupiando esta maça? - ele perguntou.
Eu coloquei algumas coisas na bolsa que valem mais do que esta
maça - ela disse. - O senhor quer discutir ética ou prefere lutar com o pessoal
da CG?
Nem uma coisa nem outra - ele disse, enquanto ambos sentavam-se
nos bancos da frente. - Mas agora somos cúmplices, não?
Não sei quanto ao senhor, Sr. Williams, mas estou envolvida nisso
até o pescoço. Este hospital está sendo dirigido pela CG há anos. Por quanto
tempo eu ia conseguir trabalhar para Carpathia sem estampar a marca da
besta? Eu seria a primeira a morrer.
Sem dúvida - disse Buck.
Bem, eu só me apropriei de uma maça e de uma
boa quantidade de medicamentos do inimigo. Se o senhor vê problema
nisto, sinto muito. Eu não vejo. Estamos em guerra. Vale tudo, conforme se
diz.
Não tenho argumentos para contestar. Mas... para onde estou levando
você? Para onde o senhor acha? Vire à esquerda, e eu lhe indicarei o
caminho. Ninguém da recepção vai ver o senhor passar.
E depois, para onde vamos?
Meu apartamento.
E se o pessoal da CG estiver lá?
Continuaremos rodando.
Se eles não estiverem, você vai cuidar de Floyd no...
O senhor não está pensando...
Vamos parar com as formalidades, Leah. Já que você pôs um amigo
moribundo dentro de meu carro, é melhor contar-me o que tem em mente.
Ilido bem - ela disse. - Se conseguirmos chegar ao meu apartamento
antes da CG, vou pegar minhas coisas e volto em um minuto. Você sabe que
eles estão a caminho e virão atrás de mim assim que descobrirem que fugi do
Young.
E para onde vou levá-la depois?
Onde você mora?
Onde eu moro?
Acertou, Buck. Eu preciso me esconder. Você e seu pessoal são os
únicos que conheço que têm um lugar para se esconderem.
Mas não podemos contar a ninguém onde...
Ah! sim, você pode e vai me contar. Se não puder confiar em mim
depois de tudo o que aconteceu, não vai poder confiar em ninguém. Eu o
ajudei a tirar Ritz, aquele seu amigo piloto, do hospital. Ajudei o médico a
fazer o aborto do bebê não sei de quem. A propósito, como vai aquela moça?
Está melhorando.
Que ironia! O médico tratou do envenenamento dela, e esse mesmo
veneno vai matá-lo.
Nós perdemos Ritz.
Perderam?
Ele foi morto em Israel. É uma longa história.
De repente, Leah mergulhou em silêncio. Limitou-se a indicar o caminho
enquanto Buck segurava firme o volante do carro que rodava por cima de
barrancos, mudando de marcha o tempo todo até ficar com o braço quase
amortecido.
Eu gostei daquele sujeito - ela disse finalmente.
Todos nós gostávamos dele. Detestamos esta situação em que
estamos vivendo.
Mas você vai me levar até sua casa, cowboy. Você sabe disso, não?
Eu não posso decidir sozinho.
Leah olhou firme para ele. - O que você pretende fazer? Deixar-me na
esquina de olhos vendados enquanto você e seus companheiros fazem uma
votação? Você me deve este favor e sabe disso. Eu não costumo me convidar
para morar na casa dos outros. Arrisquei a vida por vocês e não tenho
ninguém mais a quem recorrer.
O médico começou a agonizar. Sua respiração rouca e crepitante
comoveu Buck.
É melhor parar o carro? - ele perguntou.
Não - ela respondeu. - Não há nada que eu possa fazer agora a não ser
aplicar-lhe uma dose de morfina.
Isso vai ajudar?
Só vai aliviar o sofrimento e talvez nocauteá-lo antes de morrer.
Faça alguma coisa! - gritou Floyd com um gemido. -Qualquer coisa!
Leah virou-se para trás, ajoelhou-se no banco e começou a vasculhar sua
sacola. Buck reduziu a marcha involuntariamente, tentando ver o que se
passava. A cena era terrível. Floyd ia morrer enquanto Buck estivesse
dirigindo o carro! Sem despedidas, sem oração, sem nenhuma palavra de
conforto. Buck mal conhecia aquele homem, apesar de estar morando na
mesma casa que ele por mais de um ano.
Olhe para a frente - ela disse a Buck. - Isto vai acalmá-lo, mas ele não
sairá vivo deste carro.
Soluços subiam à garganta de Buck. Ele queria ligar para Chloe, contar a
ela e aos outros o que estava acontecendo. Mas como contar tudo pelo
telefone? Que o médico estava morrendo e que ele levava uma enfermeira no
carro para morar com eles? Por outro lado, entrar na casa secreta sem que
ninguém visse, carregando o corpo de Floyd e levando uma nova moradora
também não seria fácil. Mas Buck não tinha alternativa.
As ruas próximas ao apartamento de Leah - e o que restara das casas
vizinhas - estavam apinhadas de veículos da CG. A morfina havia acalmado
Floyd. Leah escondeu-se debaixo do painel, e Buck desviou da rua em que
ela morava. Dirigiu o carro para Monte Prospect, na esperança de que Floyd
pudesse, ao menos, ter o privilégio de morrer na própria cama.
QUATRO
No final daquela noite, David Hassid acompanhou Mac McCullum até o
apartamento do piloto na ala residencial anexa ao palácio da CG.
Existem coisas que não contei nem mesmo a Annie -disse David.
Eu sabia que você tinha algo mais a me contar, garoto. Caso
contrário, teria acompanhado Annie, não?
Estamos tentando não ser vistos juntos. Nem sei se a reunião dela já
terminou.
O que está havendo? - perguntou Mac quando ambos chegaram à
porta de seu apartamento.
Você sabe que eu estive trabalhando no palácio ajudando o pessoal a
instalar um sistema para detectar escuta clandestina.
Sei, mas como você conseguiu ser designado para fazer esse tipo de
trabalho?
Conversei diversas vezes com Leon dizendo-lhe quanto eu achava
importante que eles tivessem total privacidade nas
comunicações. Eu me fiz passar por um idealista sonhador, e até hoje
eles me consideram assim. Você sabe alguma coisa sobre a instalação?
Mac assentiu com a cabeça. - Sei que é o melhor sistema que existe no
mundo, essas coisas.
É verdade, mas ele precisa ser constantemente monitorado.
Claro.
Eu me candidatei para essa função, e todos gostaram da idéia - disse
David.
Estou ouvindo.
É isso que eu sou.
É o quê?
Eu monitoro o sistema que detecta escuta clandestina nos escritórios
de Carpathia e Fortunato.
Continue.
Minha função é descobrir se alguém está na escuta. Eu sou o
responsável e posso ouvir qualquer coisa que quiser, quando eu quiser.
Mac balançou a cabeça, admirado.
Eu não fazia questão nenhuma de saber disso. David, você está
sentado em cima de uma bomba.
E eu não sei? Mas ninguém tem condições de saber que eu ouço as
conversas.
Garantido?
Por um lado, é simples. Por outro, trata-se de um milagre da
tecnologia. A conversa é gravada em um disco em miniatura embutido na
unidade de processamento central do computador que comanda todas as
atividades na Nova Babilônia.
Aquele computador que costumam chamar de Besta.
Sim, porque ele contém informações sobre todas as pessoas deste
mundo. Mas nós dois sabemos que a Besta não é uma máquina.
Mac cruzou os braços e encostou-se na parede.
Uma das coisas que aprendi a respeito desse tipo de monitorização é
que a gente nunca deve fazer cópias de nada. Elas podem cair em mãos
erradas.
Eu sei - disse David. - Vou-lhe contar como procedo para me
proteger.
Você acha que estamos seguros aqui? - perguntou Mac olhando ao
redor.
Ei! Sou o responsável pelo sistema. O que estamos conversando pode
estar sendo gravado em meu disco, mas ninguém vai ter condições de ouvir.
Eu mesmo não ouço nada, a não ser quando é necessário. E quando ouço,
tudo fica catalogado por data, hora e local. A fidelidade é impressionante,
não existe nada igual.
Mac deu um assobio. - Alguém deve ter fabricado esse aparelho para
você. Exatamente.
Alguém em quem você confia de corpo e alma.
Você está olhando para ele.
Então, como você tem tanta certeza de que ninguém vai descobrir?
Não estou garantindo nada. Estou dizendo que eles nunca vão ser
capazes de ter acesso a qualquer coisa que seja gravada. O disco tem mais ou
menos dois centímetros de diâmetro. E, por causa da tecnologia digital por
supercompressão, ele pode armazenar quase dez anos de conversas gravadas
24 horas por dia. É verdade que não vamos precisar de tanto tempo assim,
vamos?
Não. Mas eles devem ter um sistema que controla tudo o que se passa
por aqui.
Eles têm. Mas não vão encontrar nada.
E se encontrarem?
David encolheu os ombros. - Digamos que alguém desconfie de mim e
comece a examinar os dispositivos.
Eles vão localizá-los na Unidade Central de Processamento, esmiuçar
tudo e encontrar o disco. O disco é criptografado de uma maneira tão
complicada que, se eles tentarem fazer combinações ao acaso a uma média
de dez mil dígitos por segundo durante mil anos, mal chegarão ao começo.
Você sabe que um número de 15 dígitos tem trilhões de combinações, mas,
teoricamente, teria condições de ser decifrado. Como alguém poderia tentar
fazer uma combinação de números criptografados contendo 300 milhões de
dígitos?
Mac cocou os olhos. - Eu nasci em outra época. Como vocês, jovens,
conseguem chegar a esses números malucos? E como você pode ter acesso a
seu disco se ele está criptografado?
David falava sobre o assunto cada vez com mais entusiasmo.
É aí que está a maravilha de tudo. Eu conheço a fórmula. Sei o que o
pi da milionésima parte de um dígito tem a ver com ele e sei também que a
data e o tempo relacionados àquele exato instante são usados como fator de
multiplicação. Sei que esses números oscilam para a frente e para trás,
dependendo de vários fatores. O número que serve para decifrar agora é
diferente do número que vai ser decifrado no instante seguinte, e ele não
progride de maneira lógica. Digamos que alguém conseguisse esmiuçar meu
disco a ponto de chegar à última etapa para fazer a combinação de códigos, o
que já seria um milagre. Mesmo que ele descobrisse qual é o número,
somente um computador com a velocidade da luz, trabalhando durante mais
de um ano, conseguiria decifrar.
E o que você ouviu até agora compensou todo esse trabalho?
Ele será útil ao Comando Tribulação, você não acha?
Como você consegue transmitir as informações ao pessoal do
Comando sem prejudicar a sua segurança ou a deles?
David sentou-se no chão com as costas apoiadas na parede.
Tudo aquilo também está criptografado, mas não a ponto de eles
levarem a vida inteira para descobrir. Até agora, fomos capazes de nos
comunicar por telefone e pela tecnologia celular-solar idealizada por
Carpathia, usando faixas de rádio codificadas que ninguém consegue
detectar. É claro que ele está constantemente me inquirindo para descobrir
maneiras de monitorar todos os cidadãos.
Para o bem dele, é claro.
Oh! não. O potentado se preocupa muito com a moral de sua família
global.
Mas, David, uma transmissão qualquer não pode ser interceptada?
David encolheu os ombros. - Gosto de acreditar que sou capaz de
grampear tudo. Coloquei meu aparelho à prova e tentei rastreá-lo. Descobri
que não há condições, a não ser que eu deixe algumas pistas. A
decodificação aleatória e a mudança de canal combinadas com
miniaturização e velocidade fazem com que as fibras ópticas pareçam um
barco a remo... mas nada agora parece ser impossível.
Mac esticou o corpo.
Você já parou para pensar nestas coisas? Conforme o Dr. Ben-Judá
diz, Satanás vai tornar-se príncipe e dono de todo o espaço aéreo. As
transmissões por meio do espaço e todo aquele...
Eu morro de medo - disse David, ainda sentado. -Significa que estou
na linha de frente na batalha contra ele. Quando me converti, eu não sabia
qual a missão que me seria designada, mas acabei indo parar no lugar certo,
não? É tarde demais para mudar de opinião. Piso o mesmo chão que o
anticristo e brinco no espaço com o demônio. Tomo cuidado, mas a marca da
besta vai mudar tudo. Não poderá haver nenhum crente trabalhando aqui, a
menos que a gente descubra um modo de falsificar a marca. E quem gostaria
de fazer isto?
Eu não - disse Mac, girando a chave na fechadura da porta de seu
quarto. - Mais cedo ou mais tarde, vamos todos parar na casa secreta ou em
outro lugar parecido. Espero morar no mesmo lugar que você.
David ficou tão comovido com aquele elogio que não conseguiu dizer
mais nada.
Tenho um longo vôo na sexta-feira - complementou Mac. - Preciso
descobrir quem está andando com Leon e se posso trazer Abdullah até aqui a
tempo de ele nos ajudar.
A tensão do trabalho, por mais excitante que fosse a um jovem, pesava
sobre David. Mas ele dirigiu-se a seu quarto com passos ligeiros.
Floyd estava calmo. A morfina devia estar produzindo efeito. A uma
distância de pouco mais de um quilômetro da casa secreta, Buck reduziu a
velocidade e olhou pelo espelho retrovisor. Ninguém o seguia. Seu telefone
tocou, assustando-o.
Aqui é Buck - ele disse.
Você precisa me contar o que está acontecendo - disse Chloe.
Já estou chegando. Daqui a alguns minutos.
Floyd está com você?
Sim, mas ele não está bem.
Hattie e eu trocamos as roupas da cama dele e arejamos o quarto.
Ótimo. Ele vai precisar de ajuda.
Como ele está, Buck? E você?
Conversaremos quando eu chegar aí, querida.
Buck! Está tudo bem?
Por favor, Chloe. Já estamos chegando.
Está certo - ela disse em tom de desagrado.
Ele desligou o telefone e colocou-o no bolso. Em seguida, olhou para
Leah e perguntou:
Ele vai atravessar esta noite?
Sinto muito, Buck. Ele está morto.
Buck pisou com força no freio e ambos quase bateram a cabeça no vidro.
O Rover derrapou na terra.
O quê?
Sinto muito.
Buck virou-se para trás. Leah cobrira novamente o rosto de Floyd, mas a
freada brusca atirara o corpo dele contra o encosto do banco da frente.
Você sabe quem é este homem? - perguntou Buck, assustado com o
tom desesperado de sua voz.
Sei que ele era um bom médico e um homem corajoso.
Ele arriscou a vida para me dizer para onde a CG levou Chloe.
Ajudou-a a fugir. Cuidou de Hattie durante dias. Salvou a vida dela durante
o aborto, quando a criança nasceu morta. Nunca se achou importante demais
para fazer trabalhos pesados.
Sinto muitíssimo, Buck.
Buck afastou o lençol do rosto de Floyd. No escuro, ele quase não
conseguiu ver nada. Acendeu a luz interna do carro e teve um sobressalto ao
ver a máscara da morte. Os dentes de Floyd estavam à mostra, olhos abertos
ainda injetados ao redor das pupilas.
Oh! doutor! - ele disse.
Leah virou-se para trás e vasculhou sua sacola à procura de luvas de
látex. Ela fechou os olhos e a boca de Floyd e massageou suas bochechas,
deixando-o com aparência de estar apenas dormindo.
Ajude-me a colocá-lo em posição mais adequada - ela disse.
Buck puxou Floyd por um dos ombros, e Leah, pelo outro, e ambos
arrumaram seu corpo no banco para que ele ficasse em posição de repouso.
Buck continuou a dirigir em marcha lenta, desviando de buracos e lombadas.
Quando Buck chegou à casa secreta, a cortina foi entreaberta e ele
avistou Chloe espiando pela fresta. Ela estava amamentando Kenny. Buck
contornou a lateral da casa e parou no quintal.
Aguarde um pouco aqui - ele disse a Leah. - Você não se importa de
ficar com ele...?
Vá - disse Leah.
Chloe abriu a porta dos fundos com uma das mãos, segurando Kenny
com a outra, aconchegando-o ao ombro.
Quem está com você? - ela perguntou. - Eu não vi Floyd. Buck
sentia-se arrasado. Ele inclinou-se para a frente para beijar Chloe no rosto.
Em seguida, fez o mesmo com Kenny, no exato momento em que o bebê
arrotou.
Você pode colocá-lo no berço? - ele pediu.
Buck...
Por favor - ele disse. - Preciso conversar com todos da casa. Os
outros o aguardavam na cozinha. Chloe foi colocar o bebê no berço e
retornou rapidamente. Rayford estava sentado à mesa. Suas roupas
demonstravam que ele havia passado horas trabalhando no porão. Hattie
estava sentada na ponta da mesa. Tsion, com ar triste de quem já sabia de
tudo, estava encostado na geladeira.
Buck sentiu dificuldade para falar. Chloe aproximou-se dele e passou o
braço ao redor de sua cintura.
Temos um novo mártir - ele disse, e contou toda a história, inclusive
que Leah estava no carro aguardando ao lado do corpo de Floyd.
Tsion abaixou a cabeça.
Que Deus o abençoe - ele disse com voz rouca.
Hattie parecia abalada.
Ele morreu por minha causa? Eu o contaminei? Chloe abraçou Buck
e chorou com ele.
Alguém de nós pode estar contaminado?
Não - disse Buck. - Já teríamos apresentado algum sintoma. Floyd
apresentou os sintomas, mas não nos contou nada.
Buck olhou de relance para Rayford. Todos estavam acostumados a
recorrer a ele. Enquanto Tsion encarregava-se de orar, Rayford deveria
orientá-los a respeito de Leah, do sepultamento, de tudo enfim. Mas ele não
esboçou nenhuma reação. Continuou sentado, sem nenhuma expressão no
rosto, com os braços apoiados na mesa. Quando os olhos de Rayford se
cruzaram com os seus, Buck notou no semblante de seu sogro um ar de
indagação, como se quisesse dizer: "O que vocês esperam que eu faça?"
Onde estava Rayford, o líder, o comandante do grupo?
Nós... não devemos deixar Leah esperando muito tempo lá fora -
disse Buck. - E precisamos tomar providências em relação ao corpo.
Ao ver que Rayford continuava encarando-o, Buck desviou o olhar. Será
que ele havia feito alguma coisa errada? Que outra decisão ele poderia ter
tomado, a não ser levar Floyd às pressas para o hospital e trazê-lo de volta,
acompanhado de Leah?
Papai? - disse Chloe com delicadeza.
O que foi? - perguntou Rayford secamente, virando-se para a filha.
Eu só... Eu estou... querendo saber...
O quê? O quê? Você está querendo saber o que devemos fazer neste
momento? - Rayford levantou-se, empurrando a cadeira bruscamente contra
a parede, fazendo-a tombar de lado no chão. - Tudo eu! - Buck nunca o
ouvira levantar a voz daquela maneira. - Tudo eu! - berrou Rayford. - Como
vamos poder agüentar tudo isso? Até que ponto vamos suportar?
Rayford pegou a cadeira e endireitou-a com tanta força que ela tombou
novamente. Ele a chutou de encontro à parede, mas ela voou por cima da
mesa. Hattie desviou o corpo para proteger-se e caiu nos braços de Tsion.
Rayford - disse Tsion em voz baixa.
A cadeira não atingiu Hattie. Bateu na ponta da mesa e girou, indo parar
perto de Rayford. Ele sentou-se com raiva na cadeira e bateu com as duas
mãos fechadas na mesa.
Tsion soltou Hattie, que tremia de susto.
Acho que deveríamos... - ele começou a dizer, mas Rayford o
interrompeu.
Perdoem-me - ele disse, ainda furioso, sem conseguir olhar para
ninguém. - Traga Leah aqui. Depois vamos enterrar o corpo. Tsion, você
poderia dizer algumas...
Claro. É melhor trazermos Leah para cá a fim de deixá-la mais
confortável. Depois do sepultamento, conversaremos com ela.
Rayford concordou. - Perdoem-me - ele disse mais uma vez. Buck foi até
o Rover, conduziu Leah para dentro de casa e apresentou-a a todos.
Lamento muito a perda que vocês sofreram - ela disse. -Eu não
conhecia muito bem o Dr. Charles, mas...
Antes de tudo, vamos orar - disse Tsion. - Mais tarde, você nos conta
sua história.
Claro.
Quando Tsion ajoelhou-se no chão, os outros fizeram o mesmo, menos
Hattie, que permaneceu em pé.
Senhor Deus, nosso Pai, disse Tsion, com voz fraca e trêmula.
Confessamos que estamos no limite de nossas forças quando nos dirigimos a
ti em tempos terríveis como estes, quando perdemos mais um membro de
nossa família. É difícil de aceitar isso. Não sabemos até que ponto teremos
condições de suportar tanto sofrimento. Tudo o que podemos fazer é confiar
em tua promessa de que, um dia, veremos novamente o nosso querido irmão,
onde a tristeza se transformará em cânticos de alegria, onde não haverá
mais lágrimas.
Quando Tsion terminou a oração, Buck dirigiu-se para a escada do
porão.
Aonde você vai? - perguntou Rayford.
Pegar as pás.
Traga uma só.
É um trabalho pesado, Ray. Duas mãos a mais...
Traga uma só, Buck - ele disse. Em seguida, dirigiu-se a Leah. - Srta.
Rose, quero que você me esclareça uma coisa. Floyd morreu por causa do
veneno que Carpathia usou para tentar matar Hattie, estou certo?
É o que eu acho.
Quero uma resposta direta, madame.
Senhor, eu só sei o que o Dr. Charles me contou. Não fiquei sabendo
como Hattie foi envenenada, mas tudo me leva a crer que Floyd foi
contaminado por ela.
Então, Nicolae Carpathia é responsável por esta morte. Buck ficou
impressionado diante da atitude de Leah, que não se sentiu na obrigação de
responder.
Houve um assassinato, pessoal - complementou Rayford. - Puro e
simples.
Rayford - disse Tsion -, Carpathia nunca ouviu falar do Dr. Charles.
Embora possamos dizer com segurança que ele tentou matar a Srta.
Durham...
Eu não estou falando de um tribunal de culpa - disse Rayford, com o
rosto vermelho. - Estou falando que o veneno que Carpathia mandou
preparar para matar alguém matou Floyd.
Tsion encolheu os ombros de maneira resignada.
Buck - disse Rayford, dirigindo-se a seu genro -, onde está minha pá?
Por favor, deixe-me ajudar - disse Buck. Rayford levantou-se com o
corpo ereto.
Poupe-me de dizer alguma coisa da qual eu vá me arrepender
amanhã, por favor, Buck. Esta missão é minha. É uma coisa que eu preciso
fazer, está bem?
Mas a cova precisa ter uma profundidade de mais de dois metros, vai
ficar muito perto da casa e... - Buck levantou as duas mãos em sinal de
rendição ao ver o ar de impaciência no rosto de Rayford. Ele foi até o porão
e trouxe a maior pá que encontrou.
Enquanto Rayford trabalhava no quintal, Leah conversou com o pessoal
sobre a melhor maneira de preparar o corpo para ser enterrado. Sem ter
condições de encontrar cal para revestir o túmulo, ela inventou um substituto
feito de produtos usados na cozinha.
Buck - ela disse -, vamos envolver o corpo com plástico resistente e à
prova d'água.
Leah distribuiu luvas a todos os que teriam contato com o corpo e
prescreveu uma solução para desinfetar o Rover e a maça.
Buck ficou surpreso diante do que Rayford conseguira realizar, depois de
ter trabalhado o dia inteiro no abrigo. Abriu uma cova de dois metros de
comprimento, um metro de largura e dois metros e meio de profundidade.
Ele precisou de ajuda para sair, com o corpo coberto de lama. Os três
homens colocaram na cova o corpo de Floyd envolvido no plástico, e
Rayford permitiu que os dois o ajudassem a enchê-la novamente de terra.
O grupo todo, exceto o bebê que dormia, ficou em pé ao redor da
sepultura, onde havia apenas uma fraca claridade vinda da casa. Chloe,
Hattie e Leah se ajuntaram para proteger-se do ar frio da noite. Os homens,
que transpiravam por causa do trabalho pesado, também começaram a tremer
de frio.
Buck surpreendia-se cada vez mais com a eloqüência de Tsion.
Preciosa é aos olhos do Senhor a morte dos seus santos - ele disse. -
Floyd Charles era nosso irmão, um membro importante e querido de nossa
família. Se alguém desejar falar alguma coisa sobre ele, que o faça agora.
Em seguida, vamos orar.
Quero dizer que ele foi um médico vocacionado e um crente corajoso
- disse Leah.
Todas as vezes que eu pensar nele, vou pensar em nosso bebê e na
saúde de Chloe - disse Buck.
Eu também - complementou Chloe. - Ele nos deixou muitas
lembranças em tão pouco tempo.
Hattie tremia, e Buck notou que Rayford a estava fitando, como que
esperando que ela dissesse alguma coisa. Ela olhou para ele. Em seguida,
desviou o olhar, balançando negativamente a cabeça.
Nada? - perguntou Rayford. - Você não tem nada a dizer sobre o
homem que salvou sua vida?
Rayford! - disse Tsion.
Claro que tenho! - disse Hattie, com voz embargada. -Não consigo
acreditar que ele morreu por minha causa! Eu não sei o que dizer! Espero
que ele seja recompensado.
Deixe-me dizer-lhe mais uma coisa - prosseguiu Rayford, com raiva
na voz. - Floyd a amava, Hattie. Você o tratava como se ele fosse um objeto,
mas ele a amava.
Eu sei - ela disse, em tom de lamento. - Sei que todos vocês me
amam à sua manei...
Eu estou dizendo que ele a amava. Amava você. Preocupava-se com
você, queria que você soubesse.
Você quer dizer que...? Você não podia saber disto.
Ele me contou! Acho que ele queria que você soubesse.
Rayford - disse Tsion, colocando a mão no ombro dele -, você tem
alguma coisa a mais para dizer sobre Floyd?
Esta morte precisa ser vingada. Da mesma forma que a de Ken, a de
Amanda e a de Bruce.
A vingança pertence ao Senhor - disse Tsion.
Se ao menos Ele tivesse me incluído nessa lista - disse Rayford.
Tsion olhou firme para ele. - Tome cuidado ao desejar coisas que
realmente você não quer que aconteçam. Vamos encerrar esta cerimônia com
uma oração.
Buck não conseguiu ouvir as palavras de Tsion. Rayford havia começado
a chorar. Sua respiração foi ficando ofegante, e ele cobriu a boca com a mão.
De repente, não conseguindo conter os soluços, ele caiu de joelhos no chão,
e seus gemidos ecoaram na noite. Chloe aproximou-se dele e o abraçou.
Está tudo bem, papai - ela disse, ajudando-o a levantar-se e
conduzindo-o para dentro da casa. - Está tudo bem.
Rayford afastou-se dela e subiu correndo a escada. Buck segurou Chloe
nos braços, e a lama que havia sido transferida de seu pai para as roupas dela
também sujou as suas.
Em pé debaixo do chuveiro na casa secreta, Rayford sentia-se agradecido
pelo poço e pela água quente que o gerador lhe proporcionava. Seus
músculos começaram a relaxar. Que dia! A raiva inexplicável que o fizera
caminhar a passos firmes sob o ar fresco da manhã vinha sendo acumulada
havia meses. O trabalho no porão não servira para abrandá-la,
principalmente por ter trabalhado sozinho o dia todo. A notícia terrível sobre
Floyd havia sido a gota d'água para fazê-lo explodir de uma forma que não
lhe era comum desde 15 anos atrás, durante suas discussões acaloradas com
Irene. E aquelas discussões eram conseqüência de excesso de bebida
alcoólica. Embora ele se sentisse mal por ter sido grosseiro com os outros,
havia alguma coisa em sua raiva que parecia justa. Seria possível que Deus
plantara em seu coração essa intolerância por injustiça com o único
propósito de prepará-lo para matar Carpathia? Ou ele estaria enganando a si
próprio? Rayford não queria pensar que estava enlouquecendo. Ninguém
entenderia um homem como ele tentando justificar um assassinato, mesmo
que fosse o assassinato do anticristo.
Rayford girou o controle do chuveiro para esquentar a água até a
temperatura máxima suportável e deixou que ela caísse sobre sua cabeça.
Suas orações haviam se transformado em súplicas para que Deus lhe
permitisse executar um ato impensável. Por quanto tempo um homem teria
condições de suportar tanto sofrimento? Ele foi o culpado pela perda de sua
esposa e filho. Poderia ter ido para o céu com eles se tivesse sido um homem
de fé, e não orgulhoso. E quanto à perda de Bruce, de Amanda, de Ken e do
médico? Mas por que ele deveria estar surpreso? A vida agora não passava
de um jogo. Será que ele esperava estar entre aqueles que presenciariam o
Glorioso Aparecimento? Certamente que não, se acertasse um tiro em
Nicolae Carpathia. Mas, provavelmente, ele não sobreviveria até lá de jeito
nenhum. Talvez fosse fuzilado.
Rayford saiu do chuveiro, jogou uma toalha sobre os ombros e olhou sua
imagem no espelho embaçado. Assim que o vapor se dissipou e seu rosto
ficou mais nítido, ele mal se reconheceu. Um ano atrás, ele se sentia muito
bem, e Amanda se impressionara com sua boa aparência para um homem
maduro. Agora, a palavra maduro seria elogio. Ele parecia e sentia-se muito
mais velho do que sua idade. Acontecia o mesmo com todos, evidentemente,
mas Rayford acreditava que envelhecera mais depressa do que o resto do
pessoal.
Seu rosto estava magro e marcado por rugas, havia bolsas sob os olhos, e
sua boca demonstrava tristeza. Ele nunca se preocupara muito em ficar
deprimido ao atravessar períodos de tristeza ou abatimento, mas agora havia
chegado o momento de parar para pensar. Estaria ele deprimido?
Clinicamente deprimido? Este era o tipo de conversa que ele deveria ter tido
com Floyd. E, ao pensar no nome dele, sentiu uma punhalada no coração. As
pessoas a seu redor estavam morrendo e continuariam a morrer até que Jesus
retornasse. Isto seria maravilhoso, mas ele duraria até lá? Se estava reagindo
daquela maneira em relação a Floyd, que ele mal conhecera, como seria se...
se... Rayford não queria pensar neste assunto. Chloe? O bebê? Buck? Tsion?
E quanto àquela enfermeira do hospital chamada Leah? Valeria a pena
conversar com ela? Talvez com uma profissional, uma pessoa totalmente
estranha, ele se sentisse mais à vontade para falar de coisas que não diria a
ninguém da casa. Por mais esquisito que parecesse, Hattie o conhecia tão
bem quanto os outros, mas ela continuava a ser uma estranha, mais
desconhecida que a recém-chegada. Ele jamais revelaria seus pensamentos
íntimos a Hattie.
Evidentemente, Rayford também não contaria nada a ela sobre seus
planos para matar Carpathia, mas talvez pudesse conseguir alguma ajuda.
Talvez ela já tivesse lidado com pessoas deprimidas ou conhecesse médicos
especializados nesta área.
Enquanto enxugava os cabelos, Rayford admitiu que não reconhecera o
homem diante do espelho nem o homem que havia dentro dele. Os
pensamentos que rondavam sua mente não faziam parte do Rayford Steele
que ele pensava ser. Imagine só o que Chloe diria se soubesse. Mas ela só
conhecia metade de seus planos.
Sua agressividade não escapara aos olhos dos demais integrantes do
Comando Tribulação. Eles se perdoaram mutuamente um sem-número de
vezes por coisas insignificantes. Todos, menos Tsion. Ele nunca ofendia
ninguém, nunca precisava ser perdoado. Algumas pessoas tinham o dom de
viver em estado de graça, mesmo em condições adversas. Tsion era uma
delas.
Rayford, porém, havia exagerado em seu comportamento egoísta dentro
de um ambiente tão restrito. Havia ameaçado o status quo, o modo de vida
naqueles tempos tão difíceis. Ele devia ser o líder. Sabia que devia ocupar
esse posto da maneira como fazia o supervisor de um time de beisebol. Tsion
era aquele que vencia todos os jogos. Mas era Rayford quem deveria exercer
um papel vital, ter uma posição de autoridade, um espírito de liderança como
se fosse um presbítero dentro de uma igreja.
Será que ele ainda era digno dessa posição? Por um lado, ele tinha
certeza de que não, mas por outro, se ele realmente tinha sido escolhido por
Deus para fazer parte de um assassinato planejado havia muitos séculos, ele
era alguém muito especial.
Rayford saiu do banheiro vestido com um enorme roupão. Ou sou um
homem ungido pelo Senhor ou sou um megalomaníaco. Ótimo. Quem vai me
dizer o que sou? O velho Rayford Steele lutava consigo mesmo para ser
racional, enquanto o irado, indignado, sofredor, deprimido, frustrado e
enclausurado membro do Comando Tribulação continuava a nutrir
pensamentos de grandeza. Ou, pelo menos, de vingança. Sou um homem
doente, ele disse a si mesmo. Ele ouviu vozes no pavimento inferior. Eram
orações.
Mac McCullum fazia sua caminhada matinal com passos firmes
enquanto o sol surgia no horizonte, iluminando a radiante cidade da Nova
Babilônia! A beleza daquele local e o privilégio de poder contemplá-lo
seriam indescritíveis se ele estivesse ali em outras circunstâncias.
Supermoderna, majestosa, exuberante - eram adjetivos que vinham à mente
quando alguém falava dessa reluzente megalópole.
Porém, por ter a oportunidade de ouvir secretamente as conversas, Mac
tornara-se um espião, um subversivo, um rebelde. Os tempos de treinamento
militar, autodisciplina, voz de comando e filosofia do "um por todos e todos
por um" conflitavam com seus ideais do momento. Depois de ter alcançado
o posto mais alto em sua carreira de piloto de aeronaves de grande porte, ele
agora fazia uso dos estratagemas e artimanhas que aprendera para servir à
causa de Deus.
A satisfação de poder fazer isso era semelhante à que ele sentia por ainda
ter fôlego para caminhar dez quilômetros por dia, apesar de sua idade. Para
algumas pessoas, suas caminhadas eram impressionantes. Para ele, uma
necessidade. Ele estava lutando contra o tempo, contra a força da gravidade
e contra uma série de problemas físicos que surgem com o passar dos anos.
Era assim que ele se sentia em relação a seu trabalho. Devia sentir-se
realizado, mas tinha como patrão o inimigo de Deus. Por mais importante
que fosse essa sua posição, ele devia exultar pelo fato de saber, sem sombra
de dúvida, que estava do lado certo - do lado vencedor.
Mas o medo encobria qualquer sentimento de júbilo. No minuto em que
começava a relaxar e apreciar sua função de piloto, logo percebia o quanto
sua posição era vulnerável. O fato de viver na corda bamba, saber que um
único deslize poderia ser o último, roubava-lhe toda a alegria de trabalhar.
Havia um certo grau de satisfação por saber que ele era bom no que fazia,
tanto oficialmente como às escondidas. Mas a tensão constante pela qual
passava, imaginando ser descoberto a qualquer momento, não fazia parte do
ideal de vida de um ser humano.
Enquanto o sol clareava o horizonte e o suor começava a escorrer pela
cabeça e pelo rosto de Mac, imaginava que seu trabalho como espião seria
descoberto antes que pudesse perceber. Esse era o preço a ser pago. Ele não
sabia nem quando nem se seria descoberto, porém uma coisa era certa: ele
seria o último a saber. Por quanto tempo Carpathia, Fortunato ou qualquer
um deles lhe permitiria fazer o que bem entendesse e ainda continuasse a
ocupar uma função tão importante, depois de conhecerem toda a verdade?
Será que eles o forçariam a falar, comprometer os companheiros a quem ele
amava e servia, arruinar a precária segurança do grupo que ele tentava
proteger?
Talvez até já tivesse sido descoberto. Como saber? O fim de um traidor é
como o fim de uma estrela - o resultado só é visto após o evento ter ocorrido.
Ele deveria ficar atento aos sinais. Será que algo indicaria o momento certo
de correr, fugir para a casa secreta, enviar um SOS para o Comando
Tribulação nos Estados Unidos? Ou será que ele já estaria morto quando o
pessoal do Comando tomasse conhecimento da situação?
Quando faltava um quilômetro e meio para terminar a caminhada, ele fez
a última curva. Agora o sol batia-lhe nas costas. Sua última mensagem
criptografada a Abdullah Smith havia colocado o jordaniano no mesmo
barco que Mac: "O Departamento de Pessoal fará uma pergunta direta sobre
sua lealdade à causa, à Comunidade Global, ao potentado. Lembre-se, você é
um guerreiro da linha de frente. Diga o que eles desejam ouvir. Use os meios
que quiser para conseguir o emprego. Você estará em posição de ajudar a
impedir os esquemas do demônio e verá homens e mulheres aceitarem a
Cristo, apesar de tudo.
"Se você não souber o que dizer, como se expressar, finja como eu. Diga,
sem hesitar, que tem a mesma opinião de Mac McCullum a respeito da
Comunidade Global e que aceita tanto quanto ele as políticas e as
orientações do líder. Jamais conte a verdade.
"Não estou dizendo que será fácil. O salário é exorbitante, conforme já é
de seu conhecimento, mas você não vai usufruir de nenhum centavo dele. Os
valores das gratificações são altos demais, mas você vai sempre sentir que
está recebendo um dinheiro sujo, que necessita ser purificado. Você será
purificado por Deus porque estamos a serviço do Todo-Poderoso. O trabalho
vai ser por pouco tempo, porque Tsion Ben-Judá está certo: quando a marca
da besta for exigida para comprar e vender, será necessário ostentá-la para
continuar a fazer parte da folha de pagamento daqui. Passaremos de
funcionários de alto nível a fugitivos internacionais, do dia para a noite.
"Eu preciso de você, Abdullah, é tudo o que posso dizer. Você, Ray e eu
trabalhamos juntos no passado. Não vai ser tão divertido, mas não haverá um
só instante de sossego. Aguardo com ansiedade o momento de estar mais
uma vez na cabina de comando ao lado de um piloto respeitável e de um
irmão em quem confio. Tudo de bom para você. Mac."
Buck estava sentado ao lado de Chloe no sofá, perto de Tsion e Leah. Lá
estava ela, recém-chegada à casa e já participando de uma reunião de oração
pelo líder do grupo. Buck orava com uma certa hesitação, demonstrando
sentimento de culpa. Não teria sido melhor enfrentar Rayford? Seria justo
estar falando dele pelas costas, mesmo em um momento espiritual como
aquele? Certamente Tsion conversaria com Rayford no momento apropriado.
CINCO
Rayford detestava sentir-se isolado dos outros. Com seu sonho de
eliminar Carpathia (mesmo que temporariamente), ele passou, ironicamente,
a ter mais coisas em comum com Hattie do que com qualquer outra pessoa.
A culpa era dele por ter perdido o controle e assustá-los. Mas o que estaria se
passando no pavimento inferior à meia-noite? Rayford gostava muito quando
eles oravam juntos. Mas estaria havendo uma reunião do Comando
Tribulação sem sua presença? Ele deveria sentir-se ofendido?
Evidentemente, eles eram livres para reunir-se com os irmãos e irmãs
que desejassem. Comandar aquele grupo não era o mesmo que dirigir uma
empresa. O que estava acontecendo com ele? Desde quando ele passara a se
importar com coisas insignificantes? Rayford desceu a escada na ponta dos
pés para não desviar a atenção deles. Realmente, o grupo estava sentado no
sofá e nas cadeiras da sala de visitas, de cabeça baixa, orando. Todos
estavam lá, menos Hattie.
Rayford comoveu-se e, de repente, sentiu o desejo de reunir-se a eles.
Mas seus motivos não eram puros. Ele queria reconciliar-se com o grupo
sem ter de pedir desculpas mais uma vez. O fato de participar de uma
reunião de oração ao lado deles já seria uma grande coisa... Ele poderia até
orar e pedir perdão por seu acesso de raiva...
Assim que entrou na sala de visitas, Rayford sentiu doer a consciência.
Que tolice! Que mesquinharia! Ser tão abençoado por Deus mesmo diante de
todo aquele sofrimento e, de repente, querer usar a oração para manipular...
Ele quase retrocedeu, mas agora queria reunir-se ao grupo por motivos
certos. Não queria orar em voz alta. Só queria estar em comunhão com eles
diante de Deus, fazer parte daquele grupo, daquela igreja. Ele sabia que só se
sentiria digno de voltar a ser o líder quando compreendesse que não era
digno se vivesse afastado da graça de Deus.
O motivo da oração era ele. Primeiro um, depois outro, todos
mencionando seu nome. Eles oravam suplicando força, paz e conforto em
sua dor. Eles oravam suplicando para que tivesse um contentamento
sobrenatural, quando isso era humanamente impossível.
Rayford poderia sentir-se ofendido por estarem falando dele em oração.
Mas estava envergonhado. Ele havia sido pior do que imaginava. Rayford
ajoelhou-se em silêncio. De repente, a emoção e o fervor das orações o
deixaram tão quebrantado e humilhado que ele não teve forças para sufocar
os soluços. Ajoelhou-se e inclinou o corpo para a frente, apoiando os
cotovelos no chão, e chorou alto. Ele lamentava muito, muito mesmo, e
estava agradecido porque eles consideravam que valia a pena o esforço para
fazê-lo voltar ao normal.
Chloe foi a primeira a correr na direção de Rayford, mas, em vez de
levantá-lo, ela ajoelhou-se ao lado dele e o abraçou. Rayford percebeu que
Buck tentou colocar a mão em suas costas. Ele queria dizer a seu genro para
não se preocupar, que seu apoio moral significava muita coisa. Tsion
colocou afetuosamente a mão na cabeça de Rayford e invocou a presença de
Deus para que Ele "ajudasse Rayford a atravessar esse período de
sofrimento, o mais difícil que alguém já teve de suportar".
Rayford se deu conta de que estava chorando pela segunda vez naquela
noite, só que desta vez seu choro não era de desesperança. Ele sentiu-se
envolvido pelo amor de Deus e pelo apoio de sua família. Ainda não
desistira da idéia de que Deus poderia usá-lo no merecido castigo a Nicolae
Carpathia, mas aquilo não era - pelo menos naquele instante - tão importante
quanto a posição que ele ocupava dentro do grupo. Eles entenderiam que ele
não podia ser forte sempre. Ficariam a seu lado quando ele agisse como um
ser humano. Eles o apoiariam, mesmo quando ele errasse. Como seria
possível expressar esse sentimento?
Rayford percebera que Leah, apesar de não conhecê-lo o suficiente para
tocá-lo, também orou por ele. Ela não fingiu conhecer o problema. Limitouse
a dar a entender que ele se descontrolara e que necessitava de um toque de
Deus.
Quando, finalmente, as orações cessaram, Rayford só conseguiu
balbuciar:
Obrigado, Senhor.
Tsion começou a entoar um cântico conhecido. Primeiro Chloe, depois
os outros se juntaram a ele. Abençoados são os laços que unem nossos
corações no amor de Cristo. A comunhão com os irmãos que nele crêem é
semelhante a isto.
Os quatro levantaram-se e retornaram a seus lugares. Rayford puxou
uma cadeira.
Pensei que vocês estivessem votando para me excluir do clube - ele
disse.
Tsion deu uma risadinha.
Mesmo que você pedisse demissão, nós não a aceitaríamos - ele
disse. - Eu gostaria de saber, Leah, se você não se importaria de aguardar até
amanhã para nos contar sua história. Acho que todos nós tivemos um dia
muito cansativo, e gostaríamos de lhe dar toda a atenção que você merece.
Eu ia sugerir a mesma coisa - ela disse. - Obrigada.
Você teria alguma objeção em ocupar o quarto em que Floyd
costumava dormir? - perguntou Rayford.
Não, a menos que alguém se oponha - ela disse. -Sei que meu pedido
talvez pareça estranho, mas não vou conseguir dormir sem conhecer o
restante da casa. Será que eu poderia dar um rápido giro por aqui, só para
saber onde estão as coisas?
Chloe e eu ficaremos felizes em mostrar-lhe a casa - disse Rayford,
na esperança de iniciar um entrosamento entre eles que facilitasse a
conversa.
Vou ver como está o bebê - disse Buck. Tsion levantou-se, exausto. -
Boa noite a todos. Rayford ficou impressionado ao ver que Chloe foi esperta
o suficiente para não mostrar o porão a Leah. Ela começou pelos fundos
da casa, por onde Leah entrara.
Não há nada na casa geminada - ela disse. - Sua estrutura foi muito
atingida. Você passou por esta saleta aqui. Ela foi reconstruída. Uma árvore
tombou neste lugar quando houve o terremoto e esmagou a esposa do
proprietário. O marido dela estava em nossa igreja naquele momento e
morreu quando o templo desabou.
A seguir, vem a cozinha - prosseguiu Chloe. - A sala de visitas fica à
esquerda. Esta é a sala de jantar, onde nós nunca fizemos as refeições, só
trabalhamos. Depois da escada, há um banheiro e o quarto da frente, onde
Buck e eu dormimos com o bebê.
No pavimento superior, ela mostrou a Leah o outro banheiro e os quartos
de Rayford, Tsion e Floyd.
Obrigada - ela disse. - E Ritz? Onde ele dormia? Rayford e Chloe
entreolharam-se.
Ah! - ele disse. - Eu não sabia que lhe contaram que Ritz morou aqui.
Qual é o segredo?
A casa toda é um segredo.
Eu não deveria saber que ele morou aqui? Fiquei sabendo que o Dr.
Charles, o Sr. Williams e Hattie moravam aqui.
Eu imaginei que você não soubesse, só isso - disse Rayford. -
Desculpe-me se demonstrei alguma desconfiança.
Leah parou. - Desconfiança do quê? Você quer examinar meu selo na
testa? Você teve confiança em mim para me envolver em todos os tipos de
emergência possíveis. Se eu não fosse digna de confiança, teria arriscado a
vida por vocês todos?
Lamento muito, eu...
Francamente, Sr. Steele. Se eu estivesse trabalhando para a CG, teria
avisado o potentado quando Hattie abortou o filho dele enquanto eu a
atendia. Eu poderia ter denunciado o Dr. Charles quando ele incinerou o
feto, em vez de seguir os procedimentos legais. Eu poderia ter avisado as
autoridades quando seu genro me forçou a liberar Ritz com um ferimento
aberto na cabeça. Você acha que eu não sabia quem vocês eram e por que
ninguém podia saber onde vocês moravam?
Srta. Rose...
Sou Sra. Rose. Imaginei que Ritz morava aqui porque eu sabia que o
aeroporto havia desabado completamente. E, caso você não se lembre, vocês
e ele estavam juntos quando levaram Hattie ao hospital. Será que eu deveria
supor que você saiu de seu esconderijo e ele foi ao seu encontro, partindo de
outro lugar?
Você tem razão. Eu só...
Haverá gente que se infiltrará aqui, Sr. Steele. Não sei como eles vão
fazer, mas acho que a CG é capaz de tudo. Mas, enquanto eles não
inventarem uma réplica perfeita do selo que só nós podemos ver uns nos
outros, penso que ninguém vai ser tão tolo a ponto de Vir espionar aqui.
Pode me submeter ao interrogatório que quiser, mas agradeço se você nunca
mais admitir que desconfia de mim só porque conheci um homem que
morava aqui, cujo primeiro nome nem sequer me lembro.
Rayford olhou para ela com ar de desculpa.
Se eu lhe disser que tive um dia terrível, isso serviria de desculpa?
Eu também tive um dia terrível - ela disse. - Diga que não está com
receio de mim, senão irei embora.
Não estou. Sinto muito.
Eu também. Perdoe-me se fui grosseira.
Por hoje, chega de entrosamento, pensou Rayford.
Não vamos mais falar deste assunto - ele disse.
Quer dizer que você confia em mim?
Sim! Agora vá dormir. Nós também vamos fazer o mesmo. Sinta-se à
vontade para usar o banheiro antes de nós.
Você disse que confia em mim, não disse? Rayford percebeu que até
Chloe já estava perdendo a paciência com Leah.
Estou exausto, Sra. Rose. Já me desculpei. Já me convenci. OK?
Não.
Não? - estranhou Chloe. - Eu preciso dormir.
Você acha que sou cega, idiota ou coisa parecida? -perguntou Leah.
Como assim? - perguntou Chloe.
Onde fica o abrigo?
Rayford teve um sobressalto. - Você me pergunta sobre o abrigo e não
quer que eu desconfie de você?
Não existe um abrigo aqui?
Por que você está perguntando? Leah balançou a cabeça, aborrecida..
Isto é pior do que ser considerada subversiva. Vocês acham que sou
uma tola.
Eu não acho - disse Chloe. - Se você me disser como descobriu que
há mais um cômodo aqui, eu o mostrarei a você.
Obrigada. Se eu estivesse escondida em uma casa secreta, imaginaria
que, um dia, alguém iria descobri-la. Ou vocês têm um lugar para fugir em
caso de emergência, ou este lugar vai virar de cabeça para baixo. E mais: isto
é tão óbvio que eu nem deveria ter perguntado. Devo supor que Hattie dorme
fora da casa?
Hattie? - disse Rayford.
Sim. Você se esqueceu dela? Não vi o selo em sua testa, mas ela anda
por aqui enquanto vocês tratam de assuntos espirituais. Onde ela dorme?
Chloe deu um longo suspiro.
Vá dormir, papai. Vou mostrar o abrigo a ela.
Obrigada!
As duas caminharam em direção à escada. Rayford não pôde resistir e
fez um comentário.
Você tem o dom de ser irritante, Leah, sabia?
Papai! - disse Chloe, de costas para ele. - Merecemos tudo isso e você
sabe por quê.
Leah parou e encarou-o.
Eu respeito todos desta casa - ela disse. - Mas seu comentário foi
machista. Pode me chamar de feminista, mas você não teria dito a um
homem, que estivesse tão ofendido quanto eu, que a reação dele foi irritante.
Provavelmente teria. Eu disse o que pensava.
Obrigada por me fazer perceber que agi como uma pessoa estúpida -
disse Leah. - Hoje, falei com seu genro de um modo que não costumo falar
com ninguém. E agora fui grosseira mais uma vez. Não sei o que está
acontecendo comigo.
Rayford sentia-se exatamente da mesma maneira, mas não quis admitir.
Prometa que amanhã você me dará uma trégua - ele disse.
Prometido.
As mulheres desceram a escada, e Rayford, finalmente, foi para seu
quarto. Depois de pendurar o roupão, ele deitou-se de costas no lençol frio,
sentindo os músculos doloridos por causa do trabalho no porão e no quintal.
Ele cruzou as mãos atrás da cabeça e já estava começando a adormecer
quando ouviu passos na escada e, em seguida, uma batida na porta de seu
quarto.
Eu estava mostrando o porão a Leah - disse Chloe -, onde Hattie
dorme. Só que ela não está lá.
Hattie?
Onde ela poderia estar? Não está na casa. Nem lá fora, pelo menos
até onde eu pude enxergar. E tem mais, papai. As coisas dela não estão aqui.
Ela levou tudo.
Rayford levantou-se e vestiu o roupão, imaginando se teria forças para
enfrentar mais um problema sem desfalecer.
Dê uma olhada no abrigo e verifique se o carro de Ken está lá. Veja
se o de Buck ainda está no quintal. Ela não pode ter ido muito longe a pé.
Buck pegará o carro dele, e eu, o de Ken. Vamos atrás dela.
Papai, não sabemos quando Hattie saiu. Ela pode ter saído daqui logo
depois do enterro. Eu não a vi desde então. E você?
Ele sacudiu a cabeça.
Não podemos deixá-la ir longe daqui. Ela sabe demais.
Vamos pensar no pior. Se ela conseguiu alguém para levá-la a algum
lugar, você nunca vai encontrá-la.
Eles começaram a andar pelo local que um dia havia sido uma rua diante
da casa, à procura de marcas de passos. Agora, a rua não passava de um
caminho empoeirado, cheio de crateras enormes no asfalto. Hattie podia ter
ido para qualquer direção. Rayford pegou o carro de Ken Ritz e saiu em
disparada. Buck pisou fundo no acelerador de seu Land Rover, deixando
atrás de si uma nuvem de poeira. Buck seguiu para o norte, e Rayford, para o
sul.
Quando ficou evidente que Hattie não se encontrava na vizinhança,
Rayford ligou para Buck.
Ela não está por aqui - disse Buck. - Estou com um mau
pressentimento. Não podemos dizer à polícia que ela desapareceu.
Tive uma idéia - disse Rayford. - Vamos voltar para casa.
Rayford ligou para Palwaukee. Atendeu uma secretária eletrônica.
T, aqui é Ray. Se você estiver aí, atenda, por favor. -Ele aguardou
alguns instantes e, em seguida, ligou para o celular de Delanty.
Alô - ele atendeu com voz sonolenta.
Desculpe, T. Eu o acordei?
Claro que sim. O que houve, Ray? Espero que não seja uma
emergência, mas, se não for, por que você está me ligando a esta hora?
Rayford o pôs a par de tudo.
Eu só queria saber se aqueles dois folgados ainda estão zanzando por
aí.
Ernie e Bo? Faz quase um ano que não vejo Ernie. Sinto falta daquele
cara, apesar de ele ser um idiota. Ouvi dizer que ele foi para o oeste.
Beauregard Hanson, o Bo, ainda está por aqui tentando conseguir os 5%
deste lugar que ele acha que tem direito. Por quê?
Estou pensando que Hattie pode ter usado Bo para conseguir alguém
que a levasse embora daqui de avião.
Eu parei de trabalhar às seis da tarde. Deixei um funcionário na torre
até às nove. Depois disso, ele fechou tudo.
Existe a possibilidade de um avião de grande porte ter levantado vôo
daí esta noite?
Ray, eu não posso chamar um sujeito a esta hora da madrugada para
fazer esta pergunta a ele.
Por que não? Eu chamei você.
Ah! sim, mas você tinha certeza de que eu não ficaria com raiva de
você. Não mesmo?
É melhor eu não dizer nada. Somos irmãos, você se lembra?
Por falar nisto, você é o único irmão "irmão" que me restou, se é que
entende o que estou dizendo.
O que houve?
Rayford contou-lhe sobre Floyd.
Oh! homem! Sinto muito, Ray. Você não está desconfiando que
Hattie...?
Rayford contou-lhe como Floyd achava que havia sido contaminado pelo
veneno.
Tenho motivos muito graves para descobrir onde ela está - disse
Rayford.
Vou verificar o livro de registros.
Você não vai querer sair daí a esta hora.
Posso verificar daqui mesmo, irmão. Aguarde um minuto. Rayford
ouviu o rangido da cama de T e, em seguida, o som do computador sendo
ligado. T voltou ao telefone.
Estou verificando a listagem. Não houve muito tráfego esta noite.
Quase todos eram aviões pequenos, de empresas, dois da CG. Humm.
O quê?
Há um pouso estranho aqui. Um Quantum de tamanho exagerado,
parecido com um enorme Learjet, mas de outro fabricante, chegou às 22h30
só com o piloto. Partiu às 23h30 com o tanque cheio, sem carga, tendo a
bordo apenas um passageiro não identificado, destino ignorado.
É tudo?
Bem, há uma coluna aqui para indicar se o vôo foi pago, se será
cobrado depois ou se está tudo OK. Foi assinalado OK por BH, o Bo.
Eu não conheço as especificações do Quantum - disse Rayford. - Qual
é a velocidade e autonomia de vôo?
Ah! a velocidade é a mesma de um avião pesado, mas provavelmente
vai precisar reabastecer se for atravessar o oceano. Para onde você acha que
sua fugitiva está indo?
Eu não duvido de que ela pode ter pensado em entrar no escritório de
Carpathia e fazer o serviço. Mas não existe meio de alcançar ou interceptar
aquela aeronave, existe?
Não. Que horas são? Quase uma da madrugada? Aquela coisa está
voando há uma hora e meia, e, pelo que tudo indica, à velocidade máxima.
Mesmo que a gente desconte 20 minutos para o avião pousar na costa leste,
abastecer e levantar vôo novamente, a esta hora ele já deve estar bem longe.
Você conseguiu informações suficientes para que eu possa passar
uma mensagem via rádio para a aeronave?
Pense um pouco, Rayford. 0 piloto daquele avião só vai responder se
souber quem está chamando.
Talvez eu consiga inventar uma história, insistir para que ele pouse
na Espanha em razão de alguma anormalidade no combustível ou coisa
parecida que possa ter acontecido aqui ou em outro lugar onde ele
reabasteceu.
Você está sonhando, Ray. Eu também gostaria de estar sonhando...
De qualquer forma, obrigado, meu amigo.
Você vai ter de descobrir o paradeiro dela sozinho ou com a ajuda de
algum de seus contatos de lá.
Eu sei. Muito obrigado, T. Vou tentar ir até aí amanhã para tratar de
alguns assuntos da cooperativa.
Hoje, você quer dizer?
Isso mesmo - disse Rayford.
Talvez eu leve comigo duas pessoas daqui. Queremos cuidar desse
negócio da melhor maneira possível.
Pelo que Rayford sabia, Hattie também seria capaz de acabar de vez com
a cooperativa.
Mac McCullum teve uma manhã agitada. Depois de cumprimentar
Annie Christopher com um toque de mão na aba do quepe enquanto passava
pela sala dela no hangar, ele chegou à sua sala, onde encontrou três recados.
O primeiro era uma lista preparada pela secretária de Leon Fortunato,
mencionando o nome das pessoas autorizadas a voar para Botsuana dali a
três dias. O supremo comandante, seu criado particular, um assistente, um
cozinheiro e dois auxiliares comporiam o contingente da CG. Dois
assessores acompanhariam o presidente Ngumo, de Botsuana. No recado,
havia a seguinte observação: "O Supremo Comandante ordena que a
aeronave fique estacionada enquanto o pessoal de Botsuana estiver a bordo."
A lista também incluía o capitão e o co-piloto, com um asterisco logo
após o nome deste último. O asterisco no final da página mencionava o
seguinte: "O Supremo Comandante acredita que você ficará satisfeito com a
resolução tomada a respeito deste assunto."
Mac ficou contente. O segundo recado era do Departamento de Pessoal a
respeito da solicitação para que Abdullah Smith ocupasse o posto de copiloto
do Condor 216. Além de ser avaliado como um piloto altamente
capacitado em todos os aspectos técnicos, ele também foi considerado "um
cidadão digno, leal à Comunidade Global". A única ressalva era quanto à sua
habilidade para se expressar ("Um pouco lacônico", dizia a nota).
Fortunato escrevera por seu próprio punho na margem: "Parabéns pela
maravilhosa descoberta, Mac. Smith será um homem muito importante à
causa! S.C.L.F."
Ele não sabe de nada, pensou Mac.
O terceiro recado para Mac era de David Hassid. "Há uma mensagem
importante para o senhor, capitão. Só pode ser transmitida pessoalmente."
Mac e David tinham aprendido a manter uma conduta impessoal e
profissional diante dos demais funcionários. A diferença de idade entre eles
ajudava. O conjunto de edifícios da CG, embora fosse ostensivamente
antimilitar em razão do reconhecido pacifismo de Carpathia, era
pseudomilitar em sua estrutura organizacional. Mac sentia-se confortável no
posto de comando, pois passara grande parte de sua vida usando farda. E
David geralmente acatava os conselhos de Mac por ter trabalhado em
empresa particular antes de ser admitido na CG. Agora os dois estavam em
pé de igualdade, trabalhando em setores diferentes, e seus encontros
ocasionais não atraíam a atenção de ninguém. Mac foi conduzido à sala de
David por sua secretária.
Capitão - disse David, dando-lhe um aperto de mão.
Diretor - disse Mac, sentando-se. A secretária saiu da sala.
Veja isto - disse David, virando seu laptop de modo que Mac pudesse
ler o que estava escrito na tela.
O capitão semicerrou os olhos e leu o relato de Rayford sobre as
atividades do dia anterior na casa secreta em Illinois.
Oh! não - disse Mac - aquele médico! A moça foi embora, o médico
morreu. É o cúmulo!
A situação está piorando - disse David.
Mac leu os detalhes sobre o desaparecimento de Hattie. Em seguida,
recostou-se na cadeira.
Será que ele está realmente pensando...
David fez um gesto com a mão para interromper Mac.
Enquanto penso no assunto, vou me livrar disto aqui. - Ele apertou
algumas teclas para apagar o arquivo criptografado. - Que ela está vindo para
cá? Não acredito. Ela é um tanto idiota, mas até aonde pensa que vai chegar?
É um milagre essa moça ainda estar viva depois de tudo o que Carpathia fez
para livrar-se dela. Se ela aparecer aqui na Nova Babilônia, já era.
Mac concordou com a cabeça. - Ela deve estar escondida em algum
lugar, esperando pegar o homem de surpresa.
Não acredito que ela consiga chegar tão perto. Mac balançou a
cabeça concordando.
É o que eu também acho. Seu pessoal instalou dois conjuntos de
detectores de metal no 216 na semana passada.
O plano é usá-los até mesmo para dignitários. É claro que o principal
motivo é a suspeita que eles têm em relação ao Pete Dois.
Eu já sabia. Fortunato preparou os dez reis... ou melhor, os
subpotentados regionais... ou sei lá como o santo Nick vai chamá-los, nesta
semana... para fazer o serviço. Tenho a impressão de que Fortunato os está
forçando a tomar essa atitude.
Até parece que aqueles sujeitos concordam com qualquer coisa -
disse David. - Quantos deles você acha que são leais a Carpathia?
Mac encolheu os ombros. - Mais da metade. Talvez uns sete. Conheço
três que tomariam o lugar dele se tivessem alguma chance.
Você acha que eles o derrubariam?
Em questão de minutos. É claro que Pete também.
Verdade?
Mac inclinou o corpo para a frente e juntou as palmas das mãos.
Eu ouvi o próprio Pete dizer isto. Ele enfrenta Carpathia com sua
arrogância, mas finge ser prestativo. Carpathia se faz de bonzinho com ele o
tempo todo, e um faz mesura para o outro. Mas vou-lhe dizer uma coisa: se
Leon não se livrar logo de Mathews, vai ter problemas pela frente. Existe
uma ordem clara, como se tivesse sido escrita.
David levantou-se, pegou algumas pastas de uma gaveta atrás dele e
espalhou os papéis na mesa.
É só para disfarçar, caso alguém esteja nos observando - ele disse.
Mac esticou o pescoço para fingir que estava lendo.
Eles estão de cabeça para baixo, seu bobo - disse Mac, contendo um
sorriso.
Desculpe minha distração - disse David.
Você sabe o que Rayford andava planejando?
Não, me conte.
Provocar um acidente aéreo com Carpathia a bordo. David endireitou
o corpo e empinou a cabeça.
Isto não é bíblico, é? Quero dizer, se ele for quem nós imaginamos,
só vai morrer no 42° mês, certo? E, mesmo assim, não vai permanecer
morto.
Mas o que estou lhe contando é a verdade.
Não parece fazer parte do modo de ser do capitão Steele. Ele sempre
me pareceu muito equilibrado e sensível.
Eu não queria estragar a imagem que você tem dele.
Pode acreditar em mim, você não estragou. Não posso negar que
também já imaginei fazer isso.
Mac levantou-se e dirigiu-se para a porta.
Eu também.
SEIS
Os problemas emocionais desgastavam Buck tanto quanto o trabalho
físico. Geralmente, após ter trabalhado o dia inteiro com Rayford e Floyd no
abrigo subterrâneo, ele sentia dificuldade para dormir. Mas, agora, a
dificuldade aumentara: ele sofria a perda de Floyd, receava que Hattie
pudesse pôr em perigo o Comando Tribulação e estava assustado com o
estranho comportamento de seu sogro. A exaustão de Buck havia
ultrapassado os limites. Deitado ao lado de sua abatida mas sempre animada
esposa, ele lutava para permanecer acordado e ouvir o que ela precisava lhe
dizer.
Ele e Chloe quase não tinham mais tempo para conversar, apesar de
passarem a maior parte do tempo na mesma casa. Ela lamentava não poder
ser tão ativa como antes, em parte por ter de ficar presa em casa por causa do
bebê, em parte por causa dos ferimentos sofridos por ocasião do terremoto.
Ninguém mais seria capaz de fazer o que você está fazendo com a
cooperativa, meu bem - ele lhe disse. -Imagine os milhões de pessoas que
dependerão de você para viver.
Mas eu estou à margem de tudo - ela disse. - Passo a maior parte do
dia consolando você e papai e tomando conta do bebê.
Nós precisamos de você.
Eu também tenho minhas necessidades, Buck.
Ele passou o braço ao redor do corpo dela. - Quer que eu cuide de Kenny
para que você possa acompanhar seu pai na visita que ele vai fazer a T
amanhã? Eles vão tratar de assuntos da cooperativa.
Eu adoraria.
Buck imaginou ter resmungado alguma coisa. Mas quando Chloe afastou
o braço dele e virou-se para o outro lado, ele entendeu que havia cochilado.
Ela havia dito mais alguma coisa; ele sabia. Tentou reunir forças para abrir
os olhos '
e desculpar-se, terminar a conversa. Mas quanto mais ele tentava, mais
confusos seus pensamentos ficavam. Apesar de estar desesperado por ter
perdido uma magnífica oportunidade de dialogar com sua esposa, ele
mergulhou em sono profundo.
No final da tarde, na Nova Babilônia, David foi chamado às pressas para
comparecer ao escritório do supremo comandante da Comunidade Global,
Leon Fortunato. A luxuosa ala reservada a Leon compreendia o 17° andar
inteiro do novo palácio, apenas um andar abaixo do ocupado por Sua
Excelência, o potentado.
Embora David se reportasse diretamente a Fortunato, os encontros entre
eles haviam se tornado raros. O organograma da CG, conforme Mac
mencionara mais de uma vez, tinha de dar a idéia de uma tigela de
espaguete. Aparentemente, Carpathia tinha apenas um subordinado - além de
sua secretária e alguns lacaios tagarelas que o rodeavam o tempo todo -, e
esse subordinado era Fortunato. Porém, a ala administrativa inteira do
palácio estava sempre cheia de bajuladores que se vestiam como o potentado
e o supremo comandante, andavam como eles, conversavam como eles,
curvando-se e fazendo bajulações na presença dos dois.
David, o funcionário mais jovem do setor administrativo, parecia ter
conquistado a simpatia de seus superiores por manter uma conduta
respeitosa em relação à chefia, apropriada à sua posição. Mas, naquele
momento, ele estava em uma encrenca.
Assim que a porta da sala de Fortunato foi fechada e antes que David
pudesse sentar em uma das cadeiras luxuosas, Leon dirigiu-se rispidamente a
ele.
Quero saber onde estão aqueles computadores e por que não foram
instalados conforme combinamos.
O hã... hã... embarque...
O maior embarque de computadores que fizemos desde que
equipamos o castelo... isto é, o palácio - disse Leon, sentando-se em sua
cadeira de couro, que se assemelhava a um trono em razão de sua imensa
estrutura. - Você sabe do que estou falando. Quanto mais você pigarrear,
mais suspeitas...
É claro que eu sei, senhor. Recebemos a carga ontem e...
Onde ela está?
... os computadores não têm condições de ser levados diretamente
para...
O que há de errado com eles? - vociferou Leon, apontando-lhe
finalmente uma cadeira.
David sentou-se. - Trata-se de um problema técnico, senhor.
Defeito de fabricação?
E um... problema de localização. Eles não vão funcionar no palácio.
Leon fitou-o de maneira penetrante.
Eles precisam ser substituídos?
Sim, é a única solução, senhor.
Então, substitua-os. Você entendeu o que eu disse, não, diretor
Hassid?
Sim, senhor.
Entendeu o que eu quero dizer?
Como assim?
Quando eu me preocupo com alguma coisa, você entende que a
preocupação não é só minha, certo?
Certo, senhor.
Sua Excelência está ansioso para que eu... você... para que a gente
cuide deste assunto. Sua Excelência está confiante, porque eu lhe garanti que
ele podia ficar tranqüilo, que você ia tomar conta de tudo.
Aquele equipamento será instalado assim que for humanamente
possível.
Leon sacudiu a cabeça. - Não estou falando apenas dessa droga de
instalação! Estou falando de rastrear nossos opositores.
Claro.
Sua Excelência é um pacifista, conforme você sabe. Mas ele também
sabe que o poder de um homem de paz está baseado unicamente em
informações. É por isso que ele monitora aqueles dois pregadores malucos
de Jerusalém.
O dia deles vai chegar. Eles já apareceram demais. Por mais
condescendente que Sua Excelência seja em relação a pontos de vistas
diferentes dos dele, sabemos que uma facção pequena, porém influente, tem
a atenção atraída por aqueles rebeldes à nova ordem mundial. Você não
concorda?
Se eu concordo, senhor? Fortunato parecia frustrado.
Estou dizendo que Sua Excelência tem motivos para preocupar-se
com esse tal de Ben-Judá e com seu ex-editor, que está cuspindo propaganda
contra a CG!
Ah! sim, concordo plenamente. É um perigo. Quero dizer, se
houvesse pequenos grupos destes tipos por aí, que mal poderiam fazer? Mas
o número deles parece ter crescido sob a bandeira do...
Exatamente. E eles estão protegendo a mãe do filho de Sua
Excelência. Ela deve ser encontrada antes de tentar fazer um aborto, ou pior,
revelar informações que poderiam prejudicar... - Leon não completou a
frase. - De qualquer forma - ele disse -, substitua aquele pedido, tente
encontrar um lugar adequado para os computadores ou coisa parecida, e peça
ao pessoal que trabalhe nisso.
Buck ficou agradecido por ter despertado antes de Chloe. Ele beijou-a no
rosto, ajeitou as cobertas e deixou um bilhete na mesinha de cabeceira:
"Peço desculpas por ter dormido enquanto você falava. Acompanhe seu pai.
Ficarei aqui cuidando do bebê. Eu a amo."
Dirigiu-se para a cozinha, onde Tsion estava sentado sozinho, ombros
caídos, tomando o café da manhã.
Cameron! - ele murmurou. - Se eu soubesse que você estava
acordado, teria lhe preparado alguma coisa.
Não se preocupe. Vou adiantar meus artigos e, ao mesmo tempo,
tomar conta do bebê.
Buck serviu-se de um copo de suco e debruçou-se no balcão da cozinha.
Chloe vai visitar T com Ray para conversarem sobre a cooperativa.
Tsion movimentou a cabeça afirmativamente, com ar de tristeza.
Sinto muita falta de Floyd. Eu sabia que havia alguma coisa errada
quando ele não se levantou para tomar o café comigo ontem. - Após um
suspiro, prosseguiu. - O doutor tinha uma boa cabeça. Muitas perguntas em
mente.
Eu não tenho uma cabeça boa como a dele, mas tenho muitas
perguntas. Você me contou que estava trabalhando em seus comentários
sobre o segundo ai, o sexto Julgamento das Trombetas.
E estou atrasado - disse Tsion. - Com tudo o que aconteceu, não tive
meios de transmitir meus comentários ontem. Espero poder fazer isto hoje
cedo e que o lapso de um dia não tenha criado pânico entre meus leitores.
Todos estão orando para que você não seja impedido de transmitir
suas mensagens pela Internet.
David Hassid me garantiu que estamos adiante de Carpathia,
tecnologicamente falando. Mesmo assim, quando ele me explicou como faz
para devolver nosso sinal de satélite para satélite, de celular para celular, eu
não entendi nada. Só espero em Deus que ele saiba o que está fazendo.
Buck lavou o copo de suco. - Ontem, você estava se esforçando para
entender alguma coisa.
E ainda estou - disse Tsion. - Ao longo dos séculos, os estudiosos
acreditavam que a literatura profética era figurada, aberta a um sem-número
de interpretações. Talvez a intenção de Deus não fosse esta. Por que Ele
dificultaria tanto o nosso entendimento? Acredito que, quando a Bíblia diz
que o escritor teve uma visão, a linguagem é simbólica. Mas, quando o
escritor diz que viu certas coisas acontecerem, eu as aceito literalmente. Até
agora, tenho provado que estou certo.
A passagem em que estou trabalhando - prosseguiu Tsion -, na qual
João tem uma visão de 200 milhões de cavaleiros com o
poder de exterminar a terça parte da população restante, parece ser
figurada. Duvido que esses homens e animais aparecerão literalmente, mas
acredito que o resultado será uma verdade incontestável. Eles vão exterminar
a terça parte da população. Buck semicerrou os olhos, e Tsion desviou o
olhar. Isto é novidade para mim - disse Buck. - É verdade que você não
sabe?
Tsion meneou a cabeça. - Sinto uma grande responsabilidade perante os
leitores que Deus me confiou. Não quero me antecipar a Ele, mas também
não quero recuar de medo. Tudo o que posso fazer é ser honesto a respeito
do quanto estou me esforçando para compreender. Já é tempo de muitos
crentes começarem a interpretar a Bíblia sozinhos.
Quando esse julgamento está previsto para acontecer?
Só sabemos ao certo que será o próximo cronologicamente falando, e
deve ocorrer antes da metade do período da Tribulação. A menos que Deus
tenha planos para apressar esse julgamento, parece que ainda teremos
algumas semanas pela frente.
Na véspera, Tsion havia transmitido apenas a passagem bíblica que ele
comentaria no dia seguinte. O texto em si atraiu a atenção de um imenso
público virtual, o maior da História, aguardando os temíveis comentários do
Dr. Ben-Judá sobre Apocalipse 9.15-21.
Foram, então, soltos os quatro anjos que se achavam preparados para a
hora, o dia, o mês e o ano, para que matassem a terça parte dos homens.
O número dos exércitos da cavalaria era de vinte mil vezes dez milhares;
eu ouvi o seu número.
Assim, nesta visão contemplei que os cavalos e os seus cavaleiros
tinham couraças cor de fogo, de jacinto e de enxofre. As cabeças dos cavalos
eram como cabeças de leões e de suas bocas saía fogo, fumaça e enxofre.
Por meio destes três flagelos, a saber: pelo fogo, pela fumaça e pelo
enxofre que saíam das suas bocas, foi morta a terça parte dos homens; pois a
força dos cavalos estava nas suas bocas e nas suas caudas, porquanto as suas
caudas se pareciam com serpentes, e tinham cabeças, e com elas causavam
dano.
Os outros homens, aqueles que não foram mortos por esses flagelos, não
se arrependeram das obras das suas mãos, deixando de adorar os demônios e
os ídolos de ouro, de prata, de cobre, de pedra e de pau, que nem podem ver,
nem ouvir, nem andar, nem ainda se arrependeram dos seus assassínios, nem
das suas feitiçarias, nem da sua prostituição, nem dos seus furtos.
David retornou à sua sala com os pensamentos em conflito. Temia o que
Leon poderia estar engendrando e, ao mesmo tempo, estava emocionado por
ter conseguido ludibriar aquele homem mais uma vez. Ele pegou seu laptop
e, sem fazer caso do sinal avisando que havia uma mensagem, fez um outro
pedido de computadores, ordenando que deveriam ser entregues na pista de
pouso do palácio. Não fazia sentido atrair mais suspeitas. Ele poderia
despistar qualquer coisa que os técnicos em informática detectassem,
simplesmente implantando vírus no equipamento ou confundindo as
informações colhidas.
Buck sentou-se ao lado dos companheiros para participar de uma reunião
do Comando Tribulação às 11 horas de terça-feira. Ele contou ao grupo que
David acabara de informar que Abdullah Smith havia sido aceito como copiloto
de Mac.
Rayford levantou a mão fechada em sinal de comemoração e disse:
Tenho algumas observações a fazer. Estamos pedindo às pessoas em
quem confiamos que fiquem de olho em Hattie. Ela pode nos causar mais
problemas do que imaginamos. Vou interromper o trabalho no porão por um
dia. Chloe e eu vamos ter um encontro com T hoje à tarde. Agora, Sra. Rose,
a palavra é sua.
Leah levantou-se para falar, o que causou surpresa ao pessoal, tanto
quanto a notícia dada por Buck. Eles empurraram suas cadeiras para trás a
fim de ter um ângulo melhor para vê-la falar. Sua voz era macia, e ela
parecia mais confiante do que quando conheceu o pessoal na noite anterior.
As palavras fluíam em tom monótono, como se ela estivesse tentando ocultar
a emoção.
Entendo que vocês deviam ser pessoas razoavelmente normais antes
do Arrebatamento, porém não eram crentes. Eu estava confusa. Cresci em
um lar onde meu pai era um alcoólatra e minha mãe, maníaco-depressiva. As
brigas de meus pais eram do conhecimento de toda a vizinhança. Eles se
divorciaram quando eu tinha 12 anos. Dali a três anos, comecei a fumar,
beber, dormir por aí, consumir drogas e, por mais de uma vez, tentei me
matar. Fiz um aborto aos 17 anos e, em seguida, tentei afogar na bebida o
horror daquele momento. Abandonei a escola e fui morar no apartamento de
uma amiga. Eu consumia mais bebidas e drogas do que comida, e cheguei ao
fundo do poço quando me vi andando a esmo pelas ruas e evacuando sangue
no meio da noite.
Eu sabia que era uma criatura decaída - prosseguiu Leah. - Se eu não
fizesse alguma coisa por mim mesma, logo estaria morta. Eu não queria que
isso acontecesse porque não tinha idéia do que viria depois. Eu orava quando
estava em alguma encrenca séria, mas, na maior parte do tempo, nem sequer
pensava em Deus. Fui parar em um centro de reabilitação municipal e
duvidava que meu organismo resistiria sem droga e sem bebida. Quando
finalmente comecei a raciocinar com lógica, as pessoas de lá perceberam que
eu tinha cérebro e fizeram um teste comigo. Meu QI era alto, bem alto, com
inclinação... ou sei lá o que... para ciências.
Fiquei muito grata àquelas pessoas. Aquela gratidão despertou em
mim algum dom latente para cuidar dos necessitados. Voltei para a escola e
me diplomei um ano depois com nota dez em quase todas as matérias. Para
poder pagar a faculdade, comecei a trabalhar como auxiliar de enfermeira e
professora de linguagem de sinais para alunos surdos. Conheci meu marido
na faculdade. Ele me conseguiu uma vaga em uma escola do governo e me
inscreveu em um programa de enfermagem. Como eu não podia ter filhos,
adotamos dois meninos após seis anos de casados.
Assim que tentou dizer o nome das crianças, o rosto de Leah ficou
sombrio e ela mal conseguia falar.
Pedro e Paulo - ela murmurou. - Meu marido havia sido criado em lar
religioso. Apesar de não freqüentar igreja durante muitos anos, ele sempre
quis dar estes nomes a seus filhos. Queríamos que nossos filhos tivessem
uma educação religiosa, portanto começamos a ir à igreja. As pessoas de lá
eram bondosas, mas a igreja se assemelhava mais a um clube de campo.
Havia muitas atividades sociais, mas não nos sentíamos perto de Deus.
Um dos capelães do hospital onde eu trabalhava tentou me converter.
Embora ele parecesse sincero, eu me senti ofendida. A diretora da creche
onde meus filhos ficavam durante o dia me deu um folheto sobre Jesus. Eu
disse a ela que éramos freqüentadores assíduos da igreja. Fiquei furiosa
quando meus filhos trouxeram para casa livros de histórias da Bíblia. Eu
disse à mulher que as crianças freqüentavam a Escola Dominical e que ela
deveria limitar-se a cuidar deles. A voz de Leah estava rouca de emoção.
Encontrei as camas de meus filhos vazias na manhã seguinte ao
Arrebatamento. Foi o pior dia de minha vida. Achei que eles haviam sido
seqüestrados. A polícia não pôde fazer nada, é claro, porque todas as
crianças desapareceram. Eu não tinha ouvido falar do Arrebatamento, mas
logo em seguida os noticiários o consideraram como uma das possibilidades.
Liguei para o capelão do hospital. Ele havia desaparecido. Liguei para a
creche. A diretora também havia desaparecido. Corri até lá, mas ninguém
sabia me informar nada. Na sala de espera, encontrei mais folhetos
semelhantes aos que a diretora dera a meus filhos. Um deles, cujo título era
"Não Seja Deixado para Trás", dizia que, um dia, os crentes verdadeiros
desapareceriam para morar no céu com Jesus.
Aquele folheto estava em minha bolsa quando voltei para casa e
encontrei meu marido dentro da garagem com a porta fechada e o motor do
carro funcionando. - Leah fez uma pausa para recompor-se. - Ele me deixou
um bilhete, dizendo que lamentava muito por ter tomado uma atitude
tresloucada, que não conseguia viver sem os meninos e que não podia fazer
nada para aliviar meu sofrimento.
Leah parou, com os lábios trêmulos.
Você quer fazer uma pausa, minha senhora? - perguntou Tsion.
Ela balançou a cabeça negativamente.
Tentei me matar. Tomei todos os comprimidos que havia no armário
e fiquei muito mal. Deus não queria que eu morresse, porque,
aparentemente, grande parte dos comprimidos que ingeri contra-atacou o
efeito dos outros. Acordei horas mais tarde com uma dor de cabeça muito
forte, dor de estômago e um gosto horrível na boca. Arrastei-me até onde
estava minha bolsa para pegar algumas balas de hortelã e vi aquele folheto
outra vez. Agora, o que estava escrito ali fazia sentido.
Ele predizia o que aconteceu e advertia o leitor a estar preparado. A
solução... bem, todos vocês sabem... era buscar a Deus, dizer a Ele que eu
era pecadora e que necessitava dele. Talvez fosse tarde demais para mim,
mas orei. Não sei como encontrei forças, mas assim que consegui sair de
casa, fui à procura de outras pessoas como eu. Encontrei-as em uma igreja
pequena. Apenas alguns crentes haviam sido deixados para trás, e todos
sabiam por quê. Agora, há cerca de 60 deles que se reúnem secretamente.
Vou sentir falta dessa gente, mas eles não vão se surpreender quando
souberem que desapareci. Eu lhes contei o que estava se passando, que
cuidei de uma fugitiva da CG.
Vamos avisá-los de que você está em lugar seguro - disse Rayford,
visivelmente emocionado.
Você disse que eu estou? - perguntou Leah, sentando-se, com um
sorriso triste no rosto. - Posso ficar?
Nós sempre votamos - disse Tsion. - Mas acho que você encontrou
um novo lar.
No início da noite na Nova Babilônia, David estava sentado em sua sala
após o expediente, sentindo a falta de Annie. Ficar a sós com ela seria muito
arriscado, portanto eles dialogavam por meio de telefones sigilosos e
computadores. David instalou um programa em seu computador que podia
apagar a conversa dos dois, caso Annie se esquecesse de apagar a dela.
Nenhum dos dois podia deixar evidências nos computadores sobre seu
relacionamento e, principalmente, sobre a fé que professavam.
"Talvez fosse melhor revelarmos nosso amor", ela digitou. "Pela política
da CG, eu seria forçada a trabalhar em outro departamento fora de sua
supervisão, mas pelo menos poderíamos nos ver sem levantar suspeitas."
David digitou em resposta: "Não é má idéia, e poderíamos usar mais um
par de olhos em outros departamentos. No entanto, a posição que você ocupa
é estratégica, porque ela nos dá condições de contrabandearmos coisas daqui
para os crentes de outros países. Vamos continuar pensando no assunto. Não
suporto mais ficar longe de você."
De repente, os aparelhos de TV do departamento de David - todos -
foram ligados. Isto acontecia apenas quando a chefia da CG achava que
havia uma notícia de que todos os empregados deviam tomar conhecimento.
Na maioria das vezes, a tela da TV exibia Carpathia ou Fortunato fazendo
um pronunciamento ao mundo, independentemente de haver ou não alguém
trabalhando naquele setor. Onde houvesse uma TV, ela seria ligada.
David girou sua cadeira e encostou a cabeça no espaldar para ver a
notícia. Um apresentador da CNN-CG estava noticiando um acidente aéreo.
"Nem o avião, que dizem ser uma aeronave particular de grande porte, nem
o piloto, nem o passageiro foram encontrados, mas há notícias de que o mar
levou alguns objetos pessoais para uma das praias de Portugal. Ouçam este
pedido de socorro, gravado por várias torres de controle daquela região."
Socorro! Socorro! Quantum zero-sete-zero-oito perdendo altitude!
Socorro!
"O avião desapareceu das telas do radar logo em seguida, e a equipe de
resgate vasculhou a área. Foram encontrados objetos pessoais e malas de
duas pessoas, um homem e uma mulher. As autoridades calculam que não
levará muito tempo para que a fuselagem e os corpos sejam encontrados. Os
nomes das vítimas estão sendo resguardados até que sejam notificados aos
parentes mais próximos."
David olhava para a tela, perguntando a si mesmo por que a chefia da
CG achou que valeria a pena transmitir essa notícia antes de informar o
nome das vítimas. Em seguida, apareceu a seguinte legenda na tela:
ATENÇÃO! PESSOAL DO PALÁCIO DA CG! AS PROVÁVEIS
VÍTIMAS DESTE ACIDENTE, DE ACORDO COM AS AUTORIDADES
QUE COMANDAM O RESGATE, SÃO AS SEGUINTES: PILOTO
SAMUEL HANSON, DE BATON ROUGE, LOUISIANA, ESTADOS
UNIDOS; E HATTIE DURHAM, NATURAL DE DES PLAINES,
ILLINOIS, ESTADOS UNIDOS. A SRTA. DURHAM TRABALHOU
PARA SUA EXCELÊNCIA, O POTENTADO, COMO SUA ASSISTENTE
PESSOAL. NOSSAS CONDOLÊNCIAS A TODOS QUE A
CONHECERAM.
David ligou para Mac.
Eu vi - disse Mac. - Está na cara que é uma farsa!
É verdade - disse David. - O piloto deve ter recebido uma imensa
bolada da companhia de seguros, e Hattie deve estar em algum lugar da
Europa.
Talvez estejam querendo encontrar outros trouxas - disse
Mac. - Devemos acreditar que Carpathia e Fortunato caíram nesta?
Claro que não - disse David. - Eles podem ter engendrado um
acidente. Talvez tenham encontrado Hattie e a mataram, e agora estão
encobrindo tudo. É melhor que apareçam logo com a fuselagem ou os
corpos.
David ouviu um sinal avisando que havia uma nova mensagem.
Falo com você mais tarde, Mac. - ele disse.
Rayford e Chloe estavam sentados no escritório de T localizado na base
da torre do Aeroporto de Palwaukee, acompanhados de T e dois homens da
igreja que funcionava na casa dele. Chloe descreveu como planejava
estabelecer uma ligação entre os principais associados da rede da
cooperativa e começar a fazer um teste antes de pôr em prática o sistema de
compra e venda.
Temos de manter tudo em segredo desde o início - ela disse. - Caso
contrário, passaremos a fazer parte de todos os outros corretores de
mercadorias e ficaremos sob a vigilância da CG.
Os outros concordaram. O telefone de Rayford tocou. Era Buck. Rayford
riu alto enquanto Buck lhe contava a estranha notícia que acabara de ouvir.
Ligue a televisão, T - ele disse.
Os comentaristas da CG falavam da tragédia em tom de tristeza, embora
os nomes não tivessem sido revelados fora da Nova Babilônia. Eles diziam
que até aquele momento não havia sido encontrado nenhum documento, só
objetos pessoais.
Um dia, Fortunato, ou quem está por trás disto tentando tirar
vantagem - disse Rayford -, vai se meter em uma enrascada para o resto da
vida. Chloe puxou o pai pela manga da camisa e cochichou:
Pelo menos, podemos ter certeza de que, por enquanto, Hattie está
bem. A questão - ele disse assim que a reunião terminou -, é onde ela está.
Ela não é tão esperta assim a ponto de fazer alguém acreditar que afundou
naquele avião. Será que ela teria capacidade de surpreender Carpathia?
Depois que os dois homens saíram, Rayford, Chloe e T subiram correndo
a escada para inquirir o funcionário da torre sobre o vôo das 23h30 da noite
anterior. Ele era gordo e calvo, e estava lendo um livro de ficção científica.
Eu não cheguei a vê-lo, mas, pelo rádio, ele parecia ter sotaque do sul
- disse o funcionário. - Bo assinou o formulário liberando a decolagem.
Ele estava aqui? - perguntou T.
Não, ele me ligou por volta das 8 horas da noite, aprovando
antecipadamente a decolagem.
Eu não vi o número do avião no computador.
Eu o anotei. Ainda está aqui. - O funcionário vasculhou uma pilha de
papéis. - Zero-sete-zero-oito - ele disse. - Você já deve saber que era um
Quantum.
Há meios de saber em nome de quem o avião está registrado? -
perguntou Rayford.
Claro que sim - respondeu o funcionário. Ele digitou rapidamente
alguma coisa no teclado de seu computador e ficou tamborilando com os
dedos no joelho enquanto aguardava a informação. - Samuel Hanson - ele
disse -, de Baton Rouge. Ele deve ser parente de Bo, não? Bo não é de
Louisiana?
SETE
O encontro com Abdullah Smith foi reconfortante para Mac. Ele
conheceu o jordaniano e ex-piloto de aviões de caça nos tempos em que
trabalhava como co-piloto do capitão Rayford Steele. Abdullah perdeu o
emprego quando Carpathia confiscou todo o armamento internacional e,
rapidamente, tornou-se um dos principais fornecedores do mercado negro de
Rayford.
A vida de Abdullah sofreu uma reviravolta quando sua esposa se
converteu quatro anos antes do Arrebatamento. Ele se divorciou dela e lutou
até conseguir a custódia dos dois filhos menores, um menino e uma menina.
Quando ele foi obrigado a passar meses viajando a serviço da força aérea
jordaniana, a custódia foi suspensa e ele passou a morar na base aérea.
Apesar de ser um homem de poucas palavras, certa ocasião Abdullah
revelou a Mac e Rayford que ficou tão deprimido a ponto de querer suicidarse.
Eu continuava a amar minha esposa - ele disse com um sotaque
acentuado. - Ela e as crianças eram o meu mundo. Imaginem só a esposa de
vocês converter-se a uma religião professada em um país misterioso e muito
distante. Trocávamos longas cartas, mas nenhum de nós convenceu o outro.
Para minha vergonha, eu não era muito dedicado à minha religião e passei a
ter uma vida desregrada. Minha esposa dizia que orava por mim todos os
dias para que eu aceitasse Jesus Cristo antes que fosse tarde demais. Eu a
amaldiçoava em minhas cartas. Em uma dessas cartas, eu implorei para que
ela renunciasse à religião e voltasse para o homem que a amava. Na
seguinte, eu a acusei de ser traidora e a chamei de nomes horríveis. Ela me
respondeu dizendo que ainda me amava e me fez lembrar que fui eu quem
deu início ao processo de divórcio. Irado, mais uma vez a agredi
moralmente.
Ainda guardo as cartas nas quais ela me advertia que eu poderia
morrer antes de encontrar o único e verdadeiro Deus, ou que Jesus retornaria
um dia para buscar aqueles que o amavam e que eu seria deixado para trás.
Fiquei furioso. Recusei muitas vezes visitar meus filhos, só para me vingar
dela, mas hoje compreendo o quanto magoei as crianças e a mim mesmo.
Sinto uma culpa enorme porque eles nunca vão saber quanto eu os amava.
Mac lembrou-se do que Rayford dissera a Abdullah:
Você poderá dizer isso a eles um dia.
Abdullah limitara-se a concordar com a cabeça, olhando para um ponto
distante com seus olhos escuros.
Abdullah converteu-se por ter guardado as cartas da esposa nas quais ela
explicava detalhadamente o plano da salvação, escrevia versículos bíblicos e
lhe dizia que estava sempre orando para que ele aceitasse a Cristo.
Por diversas vezes, amassei as cartas e atirei-as contra a parede do
quarto - disse Abdullah. - Mas alguma coisa me impedia de rasgá-las,
queimá-las ou jogá-las no lixo.
Quando soube que sua esposa e filhos haviam desaparecido, Abdullah
caiu prostrado no chão em seu quarto em Amã, com as cartas da esposa
espalhadas diante de si.
Aconteceu conforme ela dizia - ele explicou. - Clamei a Deus. Eu não
tinha escolha, a não ser acreditar.
Em razão de ter a aparência de um homem nascido no Oriente Médio e
de sua predileção por usar turbante, botas de aviador e um pano amarelado
cobrindo desalinhadamente a calça da farda camuflada, aquele jordaniano de
compleição miúda jamais poderia levantar suspeitas de que fosse um cristão.
Antes da conversão das 144.000 testemunhas judaicas do mundo inteiro e
dos milhões de convertidos de todas as nacionalidades, a maioria das pessoas
acreditava que poderia identificar um cristão. Agora, evidentemente, apenas
os crentes verdadeiros sabiam identificar um ao outro, por causa do selo que
era visível só entre eles.
Abdullah, um jordaniano magro, de pele morena, semblante bondoso e
expressivo, era homem de poucas palavras, conforme Mac se lembrava. Ele
agiu de maneira estritamente formal diante das outras pessoas, sem deixar
transparecer que ele e Mac eram irmãos na fé e velhos amigos. Não fingiu
que não se conheciam, porque Mac havia forjado um antigo relacionamento
militar entre eles. Os dois só se abraçaram quando ficaram sozinhos na sala
de Mac.
Há alguém que eu quero que você conheça - disse Mac, chamando
Annie à sua sala. Ela bateu na porta e entrou, com um sorriso no rosto.
Você deve ser o famoso Abdullah Smith - ela disse. - Tem um selo na
testa, típico dos jordanianos.
Abdullah olhou para Mac com ar de indagação. Em seguida, olhou para
a testa de Annie.
Eu não posso ver o meu - ele disse. - Não é igual ao seu?
Estou brincando com você - ela disse. - É que o seu fica mais visível
por causa da cor de sua pele.
Entendi - ele disse, como se realmente tivesse entendido.
Não leve a sério o senso de humor dos americanos -disse Mac.
Senso de humor canadense - corrigiu Annie, abrindo os braços para
abraçar Abdullah, o que o deixou constrangido. Ele estendeu a mão e
apertou a dela. - Bem-vindo à família - ela disse.
Novamente Abdullah olhou com ar de indagação para Mac.
Ela é o membro mais novo da família - disse Mac. -Está lhe dando as
boas-vindas a esta divisão do Comando Tribulação.
Abdullah deixou uma parte de seus pertences em sua sala atrás da de
Mac. Dois funcionários do Departamento de Operações o ajudaram a levar o
restante para seus novos aposentos. Enquanto os dois amigos
acompanhavam os funcionários, Mac disse:
Assim que você tiver arrumado suas coisas, arregace as mangas e
comece a fazer o roteiro de nossa viagem para Botsuana na sexta-feira.
Vamos sair daqui às 8 horas da manhã. Eles estão uma hora na nossa frente,
portanto...
Vamos seguir para Joanesburgo, suponho - disse Abdullah.
Não, para o norte de lá. Vamos nos encontrar com Mwangati Ngumo
em Gaborone, na antiga fronteira de Botsuana com a África do S...
Perdoe-me, capitão, mas acho que você não esteve lá recentemente.
Só helicópteros podem entrar e sair de Gaborone. O aeroporto foi destruído
no grande terremoto.
Mas com certeza a antiga base militar...
Destruída também - disse Abdullah.
O programa de reconstrução comandado por Carpathia não chegou a
Botsuana?
Não, mas depois que o... hã... potentado regional dos Estados Unidos
da África passou a morar em Joanesburgo, em um palácio quase tão grande
quanto este, o novo aeroporto de lá foi reconstruído e ficou espetacular.
Mac agradeceu aos funcionários e abriu a porta do apartamento de
Abdullah. O jordaniano arregalou os olhos ao ver os cômodos.
Tudo isto só para mim? - ele perguntou.
Você vai detestar estas coisas - disse Mac.
Depois de fechar a porta, Abdullah olhou para as paredes nuas e
cochichou:
Podemos conversar aqui?
David me garantiu que sim.
Espero conhecê-lo logo. Oh! capitão, eu quase chamei o potentado
africano de rei! Preciso ser muito mais cuidadoso.
Nós sabemos que ele é um dos reis, mas aqueles dois não sabem de
nada. Pensei que o potentado Rehoboth... qual é o primeiro nome dele...?
Bindura.
Correto. Pensei que ele ia mudar a capital para um local mais central,
mais perto de sua terra natal... Chade, é isto?
Sudão. Foi o que ele disse, mas parece que preferiu Joanesburgo. Ele
vive no meio de tanta riqueza que você nem pode acreditar.
Todos os reis vivem assim.
O que você acha disto, capitão? - perguntou Abdullah quase
cochichando. - Carpathia conseguiu a cooperação deles?
Mac encolheu os ombros e balançou negativamente a cabeça.
Não houve uma espécie de controvérsia entre Rehoboth e Ngumo?
Ah! sim, houve! Quando Ngumo era secretário-geral da ONU,
Rehoboth fez uma tremenda pressão sobre ele para conseguir favores para a
África, principalmente para o Sudão. E, quando Ngumo foi substituído por
Carpathia, Rehoboth elogiou publicamente a troca.
E agora um é vizinho do outro.
E Rehoboth é o rei dele - disse Abdullah.
No fim da noite de quinta-feira, em Illinois, Rayford ficou a sós com
Leah Rose na cozinha. Ela estava sentada à mesa diante de uma xícara de
café. Ele despejou café em sua xícara.
Você está se ajeitando aqui? - ele indagou.
Ela ergueu a cabeça. - Eu nunca sei o que você está querendo dizer. Ele
apontou para uma cadeira. - Posso?
Claro.
O que eu poderia estar querendo dizer? - ele perguntou depois de
sentar-se.
Que eu não deveria estar me sentindo à vontade.
Nós votamos a seu favor! Foi unânime. Até o presidente da mesa
votou, e ele nem precisaria ter votado.
Se tivesse havido empate, como será que o presidente votaria?
Rayford endireitou o corpo na cadeira, segurando a xícara com as duas
mãos.
Está havendo um mal-entendido entre nós desde o início - ele disse. -
Tenho certeza de que a culpa foi minha.
Você não respondeu à minha pergunta.
Pare com isso. A votação para aceitar uma nova irmã jamais
empataria. Hattie ficou aqui durante meses, e ela nem sequer é crente.
Esta é a conversa de trégua que teríamos ou você está apenas sendo
educado?
Você quer uma trégua? - ele perguntou.
Você quer?
Eu perguntei primeiro.
Ela sorriu. - A verdade é que eu quero mais do que uma trégua. Não
podemos morar na mesma casa sendo apenas cordiais. Temos de ser amigos.
Rayford não tinha tanta certeza, mas disse:
Estou disposto a correr o risco.
Então, tudo aquilo que você disse...
... mostrou quanto eu sou ranzinza, é isso? - ele disse levantando o
queixo.
Ela concordou com a cabeça. - Considero isto um pedido de perdão
implícito. Rayford não havia pedido perdão.
E quanto a mim? - ela perguntou.
O quê?
Eu também preciso ser perdoada.
Não, você não precisa - ele disse, dando a entender que estava sendo
mais generoso do que se sentia naquele momento. - Tudo o que você falou
foi porque eu...
Leah pousou a mão no braço dele. - Nem eu me reconheci. Não posso
jogar toda a culpa em você. Agora, se vamos começar tudo de novo, temos
de começar do zero. Esquecer o que aconteceu.
Da minha parte, tudo bem - ele disse. , - Tenho algum dinheiro - ela
disse. Você sempre muda de assunto assim tão rápido?
Em espécie. Precisamos ir buscá-lo. Está no cofre dentro de minha
garagem. Não vou emprestar dinheiro de graça. Quero fazer alguma coisa, e
quero pagar minha estada aqui.
Você é especialista em medicina. Que tal você cuidar de nossa saúde
em troca de casa e comida?
Posso cuidar de vocês, mas não sou especialista em medicina. Não
tenho condições de substituir Floyd.
Somos agradecidos por ter você aqui.
Mas vocês também precisam de dinheiro. Quando podemos buscá-lo?
Rayford apontou para a xícara de Leah. Ela balançou a cabeça
negativamente.
De quanto dinheiro estamos falando? - ele perguntou. Quando ela lhe
contou, ele levou um susto.
Em notas de quanto?
De vinte.
Tudo isso em um cofre?
Está completamente cheio - ela disse.
Você acha que o dinheiro ainda está lá? A CG deve ter revistado cada
centímetro à sua procura.
O cofre está tão escondido que até nós sempre tínhamos de nos
lembrar onde ele estava.
Rayford lavou as xícaras. - Você está com sono?
Não.
Quer ir buscar o dinheiro agora?
Mac e Abdullah encontraram-se com David na manhã de sexta-feira.
Deixando as apresentações de lado, David perguntou se algum deles tinha
idéia do local em que os 144 computadores guardados no compartimento de
carga do Condor poderiam ser usados em prol da causa.
Estou pensando em muitos lugares - disse Mac. - Mas nenhum está na
rota da África.
Eu conheço um - disse Abdullah. - Existe um grupo muito grande de
crentes clandestinos em Hawalli. Muitos são profissionais, e eles poderiam...
Hawalli? - perguntou David. - No Kuwait?
Sim. Tenho um contato no setor de cargas...
Esse local fica a leste. Vocês estão voando para sudoeste.
Só um pouco a leste - disse Abdullah. - Precisamos de um motivo
para descer lá.
O local fica relativamente perto do ponto de decolagem -disse Mac. -
Isso vai levantar suspeitas. - Depois de alguns instantes de silêncio, ele
voltou a falar: - A menos que...
David e Abdullah olharam para ele.
Qual a distância de nosso vôo? - perguntou Mac.
Daqui até o Kuwait? - perguntou Abdullah, pegando seu roteiro.
Não, até a África.
Mais ou menos 6.500 quilômetros.
Então vamos precisar de tanque completamente cheio para voar sem
escala. Como queremos economizar o dinheiro da CG, vamos fazer um
rápido desvio para reabastecer a um bom preço.
Excelente - disse David. - Vou negociar imediatamente. Se eu
conseguir alguns centavos de desconto por litro no preço do combustível, o
desvio valerá a pena.
O que o meu contato vai precisar para receber a carga? - perguntou
Abdullah.
Uma empilhadeira grande. Um caminhão grande.
Por que você precisou deixar um bilhete? - perguntou Leah a Rayford
quando eles partiram no Land Rover rumo a Palatine. - Com certeza
estaremos de volta antes que alguém acorde.
Eu não ficaria surpreso - ele disse -, se alguém já andou lendo o
bilhete. Ouvimos tudo naquela casa. Na calada da noite, ouvimos sons nas
paredes, sons vindos de fora. Tivemos sorte até agora. Esperamos que
alguém nos avise para podermos nos esconder antes que nos descubram.
Sempre dizemos a todos aonde vamos. Buck não fez isso no dia em que
levou Floyd para que você cuidasse dele, mas foi uma emergência. Todos
ficaram aborrecidos.
Rayford passou os 40 minutos seguintes desviando o carro dos
escombros e procurando um caminho mais suave. Ele gostaria de saber
quando o trabalho de reconstrução propagado por Carpathia começaria a ser
feito nas cidades menores.
Leah fez muitas perguntas a respeito de cada membro do Comando
Tribulação, como eles se conheceram, como se tornaram crentes, como se
reuniram.
Foram muitas perdas em tão pouco tempo - ela disse depois que
Rayford respondeu a todas as suas perguntas. -Depois de todo esse
sofrimento, não sei como vocês ainda têm forças para trabalhar.
Estamos tentando não pensar nisso. Sabemos que a situação vai
piorar. Parece uma frase muito batida, mas a gente precisa pensar no futuro,
e não no passado. Se deixarmos o sofrimento tomar conta de nós, não vamos
conseguir nada.
Leah passou a mão pelos cabelos.
As vezes não sei por que desejo viver até o Glorioso Aparecimento.
Aí, meu instinto de sobrevivência prevalece.
E por falar em... - disse Rayford.
No quê?
Nada, não estou acostumado a um trânsito como este. Ela encolheu os
ombros. - Esta região não foi tão atingida quanto a sua. Não há ninguém
escondido aqui. Todo mundo conhece todo mundo.
Eles concordaram que Rayford deveria estacionar a alguns quarteirões de
distância e que caminhariam por entre as sombras até a casa de Leah.
Rayford abriu o porta-malas do Rover e pegou uma sacola grande de lona e
uma lanterna.
Quando chegaram perto da casa, Leah parou.
Eles nem sequer tiveram o trabalho de fechar a porta -ela disse. - O
local deve ter sido saqueado.
Se a CG não levou tudo, os saqueadores levaram - disse Rayford. -
Assim que eles souberam que você fugiu, sua casa passou a ser de domínio
público. Você quer dar uma olhada?
Ela balançou a cabeça negativamente. - É melhor a gente entrar e sair
rápido da garagem. Meus vizinhos podem ouvir a porta abrindo.
Existe uma entrada lateral?
Sim.
Você tem a chave?
Não.
Eu posso arrombar a porta. Os vizinhos não vão ouvir, a não ser que
estejam à sua espera.
Quando Mac se encontrou com Abdullah no hangar para lhe falar sobre a
velocidade do Condor 216, Annie já estava lá, supervisionando o pessoal
encarregado de cuidar das cargas.
Mais, cabo? - perguntou Mac.
Sim, capitão. O diretor do Departamento de Compras pediu que
transportássemos esta grande quantidade de gêneros alimentícios excedentes
para o Kuwait. Ele conseguiu com o pessoal de lá um desconto excelente no
preço do combustível. Enquanto vocês estiverem reabastecendo, poderão
descarregar esta mercadoria.
Abdullah ficou em silêncio dentro do avião até o momento em que eles
entraram na cabina de comando e Mac lhe mostrou o botão secreto.
Imagine o que eles vão fazer conosco quando descobrirem - disse
Mac.
Quando faltavam dez minutos para as oito horas, Mac e Abdullah
terminaram a conferência preliminar de todos os itens do vôo e entraram em
contato com a torre do palácio. Três pessoas trajando aventais brancos
correram em direção ao avião.
É o pessoal da cozinha - disse Mac. - Eles podem entrar. Abdullah
abriu a porta e desceu a escada. O cozinheiro, um homem de meia-idade,
com dedos curtos e grossos e rosto molhado de suor, carregava uma panela
fumegante coberta com papel-alumínio.
Saia da frente, saia da frente - ele dizia com
sotaque escandinavo. - Ninguém me avisou que o supremo comandante
queria tomar o desjejum a bordo.
Abdullah afastou-se enquanto o cozinheiro e dois ajudantes passaram
apressados por ele.
Como você ficou sabendo? - perguntou Abdullah.
O cozinheiro entrou rapidamente na cozinha e começou a dar ordens aos
gritos. Ao perceber que Abdullah estava por perto, ele virou-se.
Sua pergunta foi retórica, sarcástica ou sincera?
Não sei o que significam as palavras retórica e sarcástica - disse
Abdullah.
O cozinheiro curvou-se sobre o balcão com ar de quem não podia
acreditar que estava perdendo tempo por ter de responder a uma pergunta do
co-piloto.
Eu quis dizer - explicou o cozinheiro, como se estivesse conversando
com uma criança -, que ninguém me avisou antes, que só fiquei sabendo
agora pela boca do próprio supremo comandante. Se ele está querendo
comer Ovos Benedict [ovos cozidos com bacon e molho holandês, servidos
sobre a metade de um bolinho] logo após o avião levantar vôo, é isto o que
vou lhe servir. Mais alguma pergunta?
Sim, senhor.
O cozinheiro olhou espantado para Abdullah.
Qual é?
Você não quer causar uma boa impressão ao supremo comandante?
Se eu não quisesse, não teria corrido até o avião carregando uma
panela quente, você não acha?
Conheço o comandante Fortunato e sei que, quando ele diz logo após
o avião levantar vôo, não é bem assim.
Sério?
Veja, vamos fazer uma breve escala no Kuwait pouco depois da
decolagem, e ali seria o momento ideal para você servir-lhe o desjejum. Um
lugar mais tranqüilo, mais descontraído, sem perigo de alguma coisa espirrar
na roupa dele.
No Kuwait?
Poucos minutos depois da decolagem.
Ei, pessoal! - gritou o cozinheiro para seus ajudantes.
Mantenham as vasilhas quentes. Vamos servir o desjejum no Kuwait.
Conforme Rayford esperava, a porta lateral que dava acesso à garagem
da casa de Leah pôde ser arrombada sem muito esforço. Porém, quando ele
entrou e pediu a ela que lhe apontasse o cofre, percebeu que estava sozinho.
Rayford, conteve-se antes de chamá-la, pois não queria complicar a situação
caso houvesse algum problema. Ele virou-se lentamente e caminhou na
ponta dos pés até a porta.
A princípio, Rayford não enxergou Leah, mas ouviu sua respiração
ofegante. Ela estava ajoelhada perto dele na grama úmida, arfando, com
dificuldade para respirar.
Eu... eu... eu... - ela murmurava.
Ele ajoelhou-se ao lado dela. - O que foi? Você está bem? Viu alguém?
Na escuridão, com medo de erguer a cabeça, Leah apontou para um local
atrás de Rayford. Ele acendeu a lanterna e iluminou o local para ver se havia
alguém se aproximando. Não havia ninguém.
O que você viu? - ele perguntou.
Leah chorava baixinho, sem conseguir falar.
Vou levá-la para dentro - ele disse, ajudando-a a > levantar-se e
arrastando-a até a garagem como se ela fosse uma criança sonolenta. - Leah!
Por favor, coopere comigo. Você está em lugar seguro.
Ela sentou-se no chão, abraçando os joelhos dobrados contra o peito. -
Eles ainda estão lá? Tranque a porta, por favor.
Eu arrombei a porta - ele disse. - Quem está lá fora?
Você tem certeza de que não os viu?
Quem? - ele perguntou em um sussurro. Ela estava tremendo. - Você
precisa levantar-se deste chão frio.
Rayford estendeu a mão para ajudá-la a levantar-se, mas ela o afastou.
Não tenho forças para sair daqui - ela disse, cobrindo o rosto com os
dedos trêmulos. - Você vai ter de trazer o carro até aqui. Ele não esperava
que ela oferecesse tanta resistência.
É arriscado demais.
Eu não posso, Rayford! Sinto muito.
Então, vamos pegar o dinheiro e ir embora.
Esqueça o dinheiro. Eu não tenho condições de abrir o cofre.
Por que não?
Ela apontou novamente para fora.
Leah - disse Rayford da maneira mais suave que podia -, não há
ninguém lá fora. Estamos seguros. Vamos pegar o dinheiro, correr para o
carro e voltar para casa, está bem?
Ela balançou a cabeça negativamente.
Nós vamos, sim! - ele disse, segurando-a pelo cotovelo para erguê-la
do chão. Leah tinha dificuldade para movimentar-se. Rayford a levou até a
parede e endireitou o corpo dela. - Conte-me o que você viu.
Cavalos - ela disse. - Enormes, escuros, logo atrás da casa,
bloqueando todo o horizonte. Não pude distinguir os cavaleiros, porque os
cavalos expeliam fogo e fumaça pela boca. Mas havia centenas de
cavaleiros, talvez mais, montados nos cavalos. Eram grandes demais,
horríveis. As cabeças dos cavalos, Rayford, eram iguais a cabeças de leões,
com dentes enormes!
Espere aqui - disse Rayford.
Não me deixe sozinha! - gritou Leah, agarrando-o pelos pulsos e
fincando-lhe as unhas.
Rayford livrou-se das mãos dela. - Você está protegida aqui.
Não se aproxime deles! Eles estão flutuando.
Flutuando?
Os pés deles não estão apoiados no chão!
De acordo com Tsion, eles não deviam ser reais - disse Rayford.
Tsion os viu?
Você não leu a mensagem dele sobre isto?
Eu não tenho mais computador.
Eles devem ser os cavaleiros descritos em Apocalipse 9, Leah! Não
vão nos atacar!
Você tem certeza?
O que mais poderia ser?
Leah começou a respirar com mais facilidade, mas, mesmo sob a
iluminação fraca da lanterna, Rayford viu que ela estava pálida.
Vou até lá para verificar - ele disse. - Tente lembrar qual é o segredo
do cofre.
Ela fez um movimento afirmativo com a cabeça, mas não saiu do lugar.
Rayford correu até a porta.
Olhe para o leste - ela murmurou. - No horizonte. Mesmo sabendo
que estava em segurança, ele olhou em direção ao horizonte pela fresta da
porta. A noite estava fria e silenciosa. Ele não avistou nada. Abriu a porta,
deu alguns passos e subiu em uma pequena elevação de terra para enxergar
melhor por entre as casas vizinhas. Seu coração batia com força, mas ele
ficou desapontado por não ter visto nada do que Leah lhe contou. Teria sido
uma visão? Por que só ela viu?
Rayford voltou para perto de Leah. Ela havia se afastado da parede, mas
continuava olhando para o chão.
Você os viu? - ela perguntou.
Não.
Eles estavam lá, Rayford! Eu não estava sonhando!
Eu acredito em você.
Acredita mesmo?
Claro! Mas, de acordo com Tsion, eles não seriam visíveis. Ele vai
ficar satisfeito quando souber.
Para onde eles podem ter ido? Eram muitos para terem se afastado
tão depressa.
Leah - disse Rayford, escolhendo as palavras com cuidado -, estamos
falando de um fato sobrenatural, da guerra entre o bem e o mal. Não existem
regras, pelo menos do ponto de vista humano. Se você viu os cavaleiros
profetizados no livro de Apocalipse, talvez eles tenham poderes para
aparecer e desaparecer.
Ela cruzou os braços e começou a balançar o corpo para a frente e para
trás. Sobrevivi ao terremoto. Vi os gafanhotos. Você viu? Rayford fez que
sim com a cabeça.
Você chegou bem perto dos gafanhotos, Rayford?
T e eu vimos um bem de perto.
Então você sabe.
Claro que sei.
Foi a coisa mais horrível que já vi. Eu não vi os cavalos tão de perto,
mas eles pareciam monstros. Posso dizer que eles estavam perto do
horizonte, mas eram tão grandes que consegui enxergar os detalhes. Eles não
têm permissão para nos atacar?
Tsion diz que eles têm poder para matar a terça parte da população.
Mas não os crentes?
Não. Eles vão matar aqueles que não se arrependeram de seus
pecados.
Se eu não me arrependi antes, estou me arrependendo agora! - ela
disse.
Com o cozinheiro, seus ajudantes, Fortunato e dois de seus assessores a
bordo, Mac taxiou para fora do hangar rumo à pista de decolagem sul do
palácio da Comunidade Global. Assim que o avião levantou vôo, ele
cumprimentou os passageiros pelo interfone, informando-lhes sobre a rápida
escala no Kuwait e que, em seguida, voariam quase 6.500 quilômetros até
Joanesburgo. Após alguns instantes, alguém bateu com força na porta da
cabina de comando.
Deve ser Leon - disse Mac, fazendo um gesto para que Abdullah
abrisse a porta. - Já era hora de você conhecê-lo.
Leon passou por Abdullah sem lhe dar atenção e dirigiu-se a Mac.
Que história é esta de fazer uma escala no Kuwait, capitão? Eu tenho
uma agenda a cumprir!
Bom-dia, Comandante - disse Mac. - Nosso novo co-piloto me
garantiu que, mesmo pousando lá, o senhor chegará a tempo para sua
reunião. Abdullah Smith, este é o Supremo Co...
Não quero atrasos - disse Fortunato. - Por que fazer escala no
Kuwait?
Vamos matar dois coelhos com uma só cajadada, senhor - disse Mac.
O diretor Hassid conseguiu um ótimo desconto no preço do combustível, e
nossa nova chefe de cargas combinou algumas entregas lá, uma vez que
íamos voar naquela direção. Com isso, economizamos um bom dinheiro do
setor administrativo.
Não diga!
É verdade, senhor.
Qual é mesmo o seu nome, jovem?
Abdullah Smith, senhor.
Eu estou faminto. Você aceitaria comer Ovos Benedict esta manhã,
co-piloto Smith?
Não, obrigado, senhor. Já me alimentei.
Capitão McCullum, eu gostaria de ser informado antecipadamente
sobre mudanças de rota.
Conforme eu lhe disse, senhor, não é bem uma mudança ' de rota.
Apenas um pequeno desvio...
A porta foi fechada com força. Abdullah olhou para Mac com a testa
franzida.
Charmoso ele, não? - disse Abdullah.
Mac apertou o botão secreto sob sua poltrona para ouvir o que se passava
na cabina de passageiros.
Karl, quando você vai me servir os ovos? Você preparou o suficiente
para todos nós, inclusive você?
Sim, senhor Supremo Comandante. Vou servi-los em terra... ou
melhor... vou servi-los quando estivermos parados temporariamente no
Kuwait.
Eu estou faminto agora, Karl.
Desculpe-me, senhor. Alguém me disse que o senhor preferia se
alimentar durante um momento tranqüilo, sem solavancos, enquanto
estivéssemos reabastecendo.
Quem lhe disse isto?
O co-piloto, senhor.
O novo co-piloto? Ele nem sequer me conhece!
Bem...
Conversaremos depois sobre este assunto.
Mac desligou o botão, apertou outro botão que lhe permitia conversar
com Abdullah por meio dos fones de ouvido e contou-lhe rapidamente o
diálogo entre Leon e o cozinheiro.
Obrigado - disse Abdullah enquanto alguém batia na porta outra vez.
Qual é o seu nome, co-piloto? - perguntou Leon.
Smith, senhor.
Foi você quem disse ao cozinheiro para servir o desjejum no Kuwait
e não enquanto estivéssemos voando?
Eu apenas o informei sobre o pequeno desvio de rota e mencionei que
o senhor talvez preferisse...
Então foi idéia sua. Você lhe disse o que eu preferia, apesar de não
me conhecer.
Eu assumo a responsabilidade, senhor. Se foi uma falha minha, eu...
Você acertou em cheio, Smith. Só não sei como você sabia que eu
detesto comer um prato como este com o avião balançando de um lado para
o outro. Eu não quis ofendê-lo, Mac... isto é, capitão.
Mac foi tentado a chamá-lo de Leon e dizer-lhe que não ficara ofendido,
mas limitou-se a fazer um gesto de positivo. O Condor voava praticamente
sozinho, mas Mac gostava de dar a impressão, conforme Rayford dizia, de
"manter os olhos na estrada e as mãos no volante".
Então, como você sabia disto, co-piloto Smith? - inquiriu Fortunato.
Eu só imaginei - ele respondeu. - Eu não gostaria de comparecer a
uma reunião tão importante com a camisa manchada de gema de ovo e
molho holandês.
Após alguns instantes de silêncio, Mac virou-se para ver se Fortunato
havia ido embora. Ainda não. Ele parecia atônito. Tombou o tronco para
trás, com a boca aberta e os olhos quase fechados. De repente, voltou à
posição normal, rindo e tossindo ao mesmo tempo, e deu um tapa tão forte
no ombro de Abdullah que o fez afundar no assento da poltrona.
Essa foi boa! - disse Fortunato em meio a uma gargalhada. - Gostei! -
Enquanto saía da cabina de comando, fechando a porta atrás de si, ele
repetiu: - Camisa manchada de gema de ovo e molho holandês!
Mac apertou o botão secreto novamente.
Eu não tive a intenção de complicar a vida do co-piloto - Karl disse.
Bobagem! Foi uma boa idéia! Sirva o desjejum no Kuwait. Quanto
tempo falta?
Apenas alguns minutos, senhor, pelo que entendi.
Ótimo. Assim, vou poder participar da reunião com a camisa limpa.
Você deveria ter pensado nisto, Karl.
OITO
O cofre de Leah estava escondido em cima de uma plataforma suspensa,
atrás de uma casinha de cachorros embolorada que pertenceu aos filhos dela.
Rayford a ajudou a subir em uma escada e aguardou até que ela afastasse a
casinha e outras bugigangas. Ele subiu na escada atrás de Leah e ficou
apontando a lanterna por cima do ombro dela para iluminar a fechadura do
cofre. Como você conseguiu trazer esta coisa até aqui? - ele cochichou. -
Deve pesar uma tonelada.
Não queríamos que os vizinhos soubessem - ela disse, com a voz
ainda trêmula. - Meu marido, Shannon, pediu que o cofre fosse entregue em
uma caixa simples, e ele alugou um andaime hidráulico. Um vizinho
perguntou para que serviria o andaime, e Shannon lhe disse que queria
substituir algumas telhas da garagem que estavam quebradas.
Aparentemente, o vizinho ficou satisfeito com a resposta.
E daí? Depois que vocês ergueram o cofre, foi difícil colocá-lo no
lugar?
Achamos que a plataforma não ia agüentar.
O cofre tinha cerca de 90 cm de altura por 60 cm de largura, e Leah não
estava brincando quando disse que havia muito dinheiro ali. Assim que a
porta foi aberta, ela disse:
Tivemos de guardar os outros objetos de valor no cofre do banco.
O cofre estava abarrotado de maços de notas de 20 dólares.
Podíamos usar isto na casa secreta - disse Rayford.
É por isto que estamos aqui.
Estou falando do cofre. Jamais poderíamos aceitar todo este dinheiro.
Não haverá tempo suficiente para gastá-lo.
Bobagem. Vocês vão precisar de mais veículos, e não sabem quantas
pessoas podem passar a morar lá.
Eles encheram rapidamente a sacola com o dinheiro.
A sacola vai ficar pesada demais para ser carregada - disse Rayford. -
Ajude-me a empurrá-la para que ela caia no chão.
Depois de muito esforço, eles conseguiram arrastar a sacola até a beira
da plataforma. Os maços de notas se misturaram dentro e ela caiu no chão,
com um baque surdo, levantando uma nuvem de poeira. Rayford apagou a
lanterna e prendeu a respiração.
Você está me vendo? - ele cochichou.
Mais ou menos.
Rayford fez um sinal para que Leah descesse da escada atrás dele. A
descida foi tão difícil quanto a subida. Quando ele chegou ao chão, ajudou-a
a descer os últimos degraus.
Você está se achando um cavalheiro por ter-me ajudado a descer - ela
cochichou.
Só se você for uma dama.
Eles viraram a sacola e passaram a mão nela no escuro para ver se tudo
estava em ordem. Um feixe de luz brilhou no rosto deles.
Você é Leah Rose? - inquiriu uma voz.
Leah deu um suspiro e olhou para Rayford. - Sim - ela disse em voz
baixa. - Sinto muito, R...
Não fale meu nome! - ele disse entre os dentes. - E não finja ser outra
pessoa.
Você é ou não é Leah Rose? - soou a voz novamente.
Eu respondi que era, certo? - ela disse, sem muita segurança, como se
estivesse mentindo. Rayford surpreendeu-se diante da rapidez com que ela se
recompôs.
E você, quem é? - perguntou o desconhecido.
Eu? - perguntou Rayford.
Seu nome.
Quem está querendo saber?
Forças Pacificadoras da CG.
Ah! que alívio! - disse Rayford. - Nós também somos. O comandante
Sullivan pediu-me que eu desse uma olhada aqui. A casa foi saqueada depois
que seu pessoal saiu. Ele queria que verificássemos a garagem.
Alguém apertou um interruptor, acendendo uma lâmpada de luz fraca
acima da cabeça de Rayford. Ele semicerrou os olhos e viu quatro policiais
da CG armados, três homens e uma moça.
O que você estava fazendo no escuro? - perguntou o líder. Na farda
dele, havia a insígnia de tenente.
Rayford olhou para cima. A lâmpada estava à distância de um braço.
Ouvimos um barulho lá fora e apagamos a luz.
Humm - disse a policial, aproximando-se. - Preciso ver suas carteiras
de identidade.
A policial olhou para Rayford com ar de dúvida. Um dos homens olhou
para a plataforma.
Eu sou Pafko - disse Rayford, tentando desesperadamente lembrar-se
em que bolso ele colocara sua carteira de identidade falsa. - Andrew. Aqui
está. E você, madame?
Ela se chama Fitzgerald.
Meus documentos estão no carro - ela disse.
Tenente! - chamou o outro policial. - Há um cofre aberto ali em cima.
O tenente devolveu a carteira de identidade a Rayford.
Você não estava planejando levar alguma coisa daqui, estava, Pafko?
Vou prestar contas de cada centavo.
Hum - disse o policial virando-se para a moça. - ' Verifique com a
Central. Andrew Pafko, da divisão de Des Plaines. E Fitzgerald. Qual é o seu
primeiro nome, madame, e a que divisão pertence?
Pauline - respondeu Leah. - Também de Des Plaines. A moça pegou
o telefone que estava preso a uma tira em seu ombro.
Rayford se assustou. O telefonema poria tudo a perder. Eles seriam
facilmente identificados, talvez torturados e mortos, se não revelassem os
nomes dos outros membros do Comando Tribulação. Ele merecia isso por
não ter sido mais cuidadoso, mas Leah não.
Não há necessidade, tenente - disse Rayford. - Antes que a sede do
quartel saiba onde estamos, não seria melhor a gente dar um tempo e
esquecer que nós seis estivemos aqui esta noite? Sou tão leal à causa quanto
o senhor, mas nós dois sabemos que a Sra. Rose era uma militante rebelde.
Se todo este dinheiro era dela, agora é nosso, não?
O tenente hesitou, e a policial afastou a mão do telefone. O tenente
ajoelhou-se perto da sacola.
O senhor está acreditando nisto? - perguntou a policial ao tenente. -
Acha mesmo que ele é da CG?
O tenente olhou para ela. - Como ele poderia saber o motivo de estarmos
atrás da Sra. Rose?
Ela encolheu os ombros e começou a examinar o cofre. Os outros dois
policiais caminharam até a porta, talvez para verificar se havia algum
curioso por perto. Rayford passou a mão pelos cabelos. Será que ele havia
conseguido quatro cúmplices?
Ele olhou firme para Leah como que pedindo para que ela deixasse o
assunto por conta dele. Leah estava tão petrificada quanto no momento em
que vira os cavalos. Rayford postou-se de maneira casual entre o tenente e a
porta. Leah o acompanhou.
O tenente viu o dinheiro e deu um assobio. Os outros dois policiais e a
moça aproximaram-se para ver. Enquanto eles concentravam o olhar na
sacola, Rayford e Leah dirigiram-se mais para perto da porta. Leah poderia
ter-se esgueirado sem ser vista, mas Rayford não podia fazer nada, portanto
ela não saiu do lugar.
Há uma boa quantia para todos nós - disse um dos policiais. O
tenente assentiu com a cabeça, mas Rayford percebeu que a moça olhava
firme para Leah. Ela pegou alguns papéis do bolso traseiro e folheou-os. Em
seguida, parou e voltou a olhar para Leah.
Tenente... - disse a moça.
Deixe-me mostrar-lhes uma coisa - interrompeu Rayford, enfiando a
mão dentro da sacola e retirando um maço de notas de 20 dólares. -
Calculem que cada maço tenha 50 notas de 20 dólares. - Ele segurou a sacola
por um dos lados e deixou que os maços de notas rolassem para o outro. A
moça fez um gesto para pegar a arma. Rayford levantou o maço de notas. -
Não seria ótimo dividirmos tudo e... sumir daqui? Agora? - Ele deu uma
pancada na lâmpada com o dinheiro e a garagem ficou às escuras.
Rayford virou-se rapidamente e correu atrás de Leah, que fugia pela
porta lateral. Ele ouviu um tiro e ruído de madeira estalando, e percebeu que
o tenente havia acendido uma lanterna possante atrás deles. Enquanto
Rayford e
Leah corriam pelo piso escorregadio, ele calculou que as possibilidades
de chegarem ao Land Rover antes dos policiais seriam mínimas. Mas
Rayford não queria ficar ali e ser preso. Alguém acionou o botão automático
da garagem, e Rayford ouviu a porta levantando-se. Ele olhou furtivamente
para trás e viu os quatro policiais correndo em sua direção, com as armas
engatilhadas.
Rápido! - Rayford gritou ao virar-se para ver onde Leah estava. Mas
ela havia parado. Ele correu na direção dela, e os dois se chocaram
violentamente, rolando sobre a grama.
Alguma coisa tinha acontecido. Será que sua perna estava quebrada, ou
ele havia esmagado a dela? Por que Leah parará de repente? Ela estava se
saindo tão bem! Eles ainda tinham uma chance. O Land Rover estava à vista.
Será que a CG atiraria neles? Ou os prenderia? Rayford preferia ir para o céu
a pôr em risco a vida de seus queridos.
Deixe que eles atirem - ele disse com a voz rouca, tentando levantarse.
Mas Leah estava de quatro na grama, olhando para o carro por entre os
fios de cabelo que caíam sobre seu rosto.
Rayford olhou para trás. Os policiais tinham desaparecido. Ele olhou
para o ponto em que Leah tinha os olhos cravados. Lá estavam os cavalos, a
menos de três metros dele -enormes, monstruosos, duas vezes maiores do
que qualquer outro que ele já vira. Leah tinha razão, os pés dos cavalos não
estavam apoiados no chão, mas, mesmo assim, eles se movimentavam para a
frente e para trás e giravam o corpo.
Chamas saíam de suas bocas e narinas, fazendo subir uma espessa
fumaça amarela. O fogo iluminava suas cabeças grotescas, iguais a cabeças
de leões com enormes dentes caninos, e caudas movimentando-se para cima
e para baixo. Rayford levantou-se lenta e penosamente. Agora ele
compreendia o comportamento de Leah quando ela os vira pela primeira vez.
Eles não vão nos atacar - ele disse esperançosamente, com voz fraca e
ofegante.
Rayford tremia, tentando gravar a cena na memória. Atrás da primeira
fileira de cavalos havia centenas de outros, agitados e movimentando-se sem
parar como se estivessem ansiosos para atacar e correr. Os cavaleiros eram
enormes, de tamanho proporcional ao dos cavalos. Eles pareciam seres
humanos, mas tinham cerca de três metros de altura e deviam pesar mais de
200 quilos.
Rayford engoliu seco, com o peito arfando. Ele queria ver como Leah
estava, mas não podia desviar o olhar. O cavalo diante dele, a menos de três
passos de distância, começou a rodar em círculos. Rayford viu que sua cauda
não tinha pêlos. Era uma serpente se contorcendo, cuja cabeça tinha o dobro
do tamanho do pulso dele. Ao virar-se, ela arreganhou as presas.
Os cavaleiros pareciam estar com o olhar fixo a quilômetros de distância,
bem acima da cabeça de Rayford. Cada cavaleiro possuía uma couraça que,
iluminada pelas chamas, reluzia em tons amarelos, azuis e vermelhos.
Apesar de serem fortes e terem braços e bíceps musculosos, os cavaleiros
tinham dificuldade para controlar os cavalos.
Rayford não ouvia nenhum ruído das patas dos cavalos, não sentia o
cheiro deles, nem do fogo e da fumaça. Ele só sabia que eles gemiam e
resfolegavam por causa do fogo e da fumaça. Não havia sons de rédeas, selas
e escudos. Mesmo assim, os cavalos-leões e seus cavaleiros eram mais
brilhantes do que qualquer outra coisa que ele já vira.
Finalmente, Rayford olhou para Leah. Ela parecia catatônica, olhos
arregalados, boca escancarada.
Respire fundo - ele lhe disse.
Será que Deus havia providenciado aquelas criaturas para protegê-los?
Certamente os policiais deviam ter corrido para se salvar. Rayford virou-se
novamente e, a princípio, não viu nada entre ele e a garagem. Mas, de
repente, ele avistou os quatro policiais estendidos no chão, imóveis.
Ele ouviu sirenes, viu helicópteros vasculhando a área com holofotes,
ouviu guardas correndo, gritando.
Precisamos ir embora, Leah - ele disse. - Podemos caminhar por entre
os cavalos. Eles não são cavalos verdadeiros.
Vocês dois aí!
Rayford virou-se. Dois guardas cutucaram os quatro policiais com suas
botas enquanto gritavam para Rayford e Leah.
Fiquem onde estão!
Eles aproximaram-se com cuidado. Finalmente, Leah desviou o olhar
dos cavalos, olhou para trás por cima dos ombros e murmurou:
Acho que quebrei uma costela. - Ela voltou-se na direção dos guardas
com os olhos semicerrados. - Será que eles não estão com medo dos
cavalos?
O que havia de errado com os guardas? Assim que se aproximaram -
dois homens com pouco mais de 20 anos -, eles apontaram as armas para
Rayford e Leah. Rayford sabia que os cavalos estavam atrás dele por causa
do reflexo das chamas que brilhavam no rosto dos guardas.
O que vocês sabem sobre aqueles policiais mortos? -perguntou um
deles. Nada - respondeu Leah, ainda de quatro sobre a grama. -O que você
acha de nosso exército?
Levante-se, madame.
Eles não podem vê-los - disse Rayford.
Não podemos ver quem? - inquiriu o guarda. - Venham conosco.
Você não está vendo nada - disse Rayford secamente.
Eu lhe disse para levantar-se, madame! - gritou o outro guarda. Assim
que ele caminhou na direção de Leah, Rayford o interceptou.
Filho, preciso adverti-lo. Se...
Advertir-me? Posso matar você com um tiro e não vou precisar
responder por isto.
Você está correndo perigo. Nós não matamos aqueles poli... O guarda
deu um grito enquanto seu corpo transformava-se em chamas, rodando e
iluminando a área como se fosse dia. Um dos cavalos passou por Rayford e
deu um giro rápido, atingindo o outro guarda na testa com sua cauda. O
guarda foi atirado longe como se fosse uma boneca de pano. Sua cabeça foi
esmagada contra uma árvore a três metros de distância.
Aos poucos, Leah conseguiu ficar em pé. O suor corria-lhe pelo rosto até
o queixo. Ela foi ao encontro de Rayford como se estivesse caminhando em
câmera lenta.
Nós... vamos... morrer - ela balbuciou.
Nós não - disse Rayford, recuperando o fôlego. - Onde está doendo?
Aperte a palma da mão sobre o local.
Ela segurou firme a caixa torácica do lado direito, e Rayford passou o
braço ao redor da cintura dela, ajudando-a a dirigir-se para o carro. Ele
semicerrou os olhos por causa das chamas e caminhou através dos corpos
dos cavalos como se estivesse atravessando um holograma. Leah enterrou o
rosto no ombro dele.
Eles estão em outra dimensão? O que é isto?
Uma visão - ele disse, sabendo pela primeira vez que eles não seriam
atingidos. - Tsion estava certo. Eles não têm corpos físicos.
Agora eles estavam no meio da tropa, e Rayford não conseguia enxergar
onde ela terminava, sentindo-se como uma criança cercada de uma multidão
de adultos. Finalmente, eles atravessaram a última fileira de cavalos e
avistaram o Rover a 30 metros de distância.
Você está bem? - ele perguntou.
Sim, mas parece que estou sonhando - ela respondeu.
Amanhã, não vou acreditar no que vi. Nem agora estou acreditando.
Rayford apontou para uma distância de quase um quilômetro a oeste
onde mais um grande número de cavalos ferozes se agrupava. Leah apontou
para o outro lado, onde havia outro grupo. Os de trás pareciam dirigir-se à
cidade onde Leah morava.
Eles entraram no carro, e Rayford seguiu pela rua da casa de Leah, coisa
que não havia ousado fazer antes. A fumaça preta e amarela que saía das
bocas dos cavalos afugentou os guardas da CG. Muitos estavam caídos no
chão como se tivessem sido mortos no ato. As pessoas saíam das casas no
meio da fumaça que se espalhava pela área, falando, tossindo, caindo ao
chão. Em vários lugares, os cavalos expeliam fogo suficiente para incinerar
as casas.
Rayford deu marcha a ré e parou diante da garagem de Leah.
Espere aqui - ele disse.
Rayford! Não! Vamos embora!
Ele saltou do carro. - Não vou deixar todo aquele dinheiro...
Por favor! - ela gritou.
Rayford passou por cima dos corpos e entrou na garagem. Fechou a
sacola com o zíper e colocou-a em cima do ombro. Mesmo caminhando
através da fumaça e das chamas, ele não sentiu nenhum cheiro. Depois de
colocar a sacola no porta-malas do Rover, ele sentou-se ao volante.
Enquanto saía dali, ele olhou para Leah.
Bem-vinda ao Comando Tribulação - ele disse. Ela balançou a
cabeça, segurando firme as costelas. Rayford acelerou rumo à casa secreta.
E melhor apertar o cinto de segurança - ele disse, virando-se para
Leah.
Mac passou despercebido por Fortunato e seus convidados enquanto eles
tomavam o café da manhã e desceu do avião para supervisionar o
reabastecimento de combustível. Do local onde se encontrava, podia
observar o desembarque da carga. Assim que Abdullah abriu a porta do
compartimento de carga, várias empilhadeiras começaram a rodar sobre a
pista e entraram no avião, subindo pela rampa de alumínio. Enquanto
Fortunato saboreava seu desjejum, 144 computadores e mais de uma
tonelada de gêneros alimentícios estavam saindo clandestinamente do
Condor 216 e cairiam nas mãos dos inimigos da CG antes do pôr-do-sol.
Brilhante, Abdullah, pensou Mac. Nada como uma refeição para distrair a
atenção do supremo comandante.
Buck despertou no momento em que Chloe atendeu ao telefone.
Que horas são? - ele perguntou.
Chloe apontou para o relógio que marcava meia-noite e meia.
Silêncio - ela disse. - É o papai.
O bilhete diz que ele e Leah... Novamente, Chloe pediu-lhe silêncio.
Lá fora? - ela estava dizendo. - Por quê?... Tudo bem! Vou fazer
isso... Tsion? Você está falando sério? Quer que eu vá acordá-lo?... Está
bem, chegue logo!
Ela desligou.
Levante-se, Buck.
O quê? Por quê?
Vamos. Papai quer que você acorde Tsion e olhe pela janela.
O que é...
Rápido! Ele e Leah estão voltando para casa.
O que ele quer que a gente veja?
Os 200 milhões de cavaleiros.
Já? Você conseguiu vê-los?
Vá acordar Tsion.
Depois da decolagem, Mac pediu a Abdullah que assumisse o comando
da aeronave.
Quero ver se Leon vai começar a falar sobre estratégia. Ele estendeu
a mão para trás para verificar se a porta da cabina de comando estava
fechada, desatou o cinto de segurança, recostou-se na poltrona, fechou os
olhos e apertou o botão secreto. Um dos assessores de Fortunato estava
tentando impressioná-lo.
Vai ser bom demais quando ele descobrir que Carpathia não veio e
que só você está aqui.
Eu nunca ouvi você referir-se ao potentado pelo sobrenome...
Desculpe-me, comandante. Eu quis dizer Sua Excelência, o
potentado. Será ótimo quando Ngumo descobrir que o potentado Rehoboth,
além de ter tomado conhecimento desta reunião, também foi convidado.
O outro assessor intrometeu-se na conversa.
Então, estamos fazendo esta viagem só para o senhor pôr Ngumo em
seu devido lugar?
A pergunta é válida - disse Leon. - Ingênua, porém válida. Esta vai
ser uma maneira muito inteligente de fazer as coisas. Não se trata de um
simples insulto; é um insulto para calar fundo. Apesar de nossos sorrisos e
atitudes subservientes, ele perceberá claramente que se trata de um tapa na
cara. Ele não vai reunir-se com Sua Excelência. Nem sequer vai ficar frente
a frente com o supremo comandante em particular. Ele não receberá nada do
que pediu e vai ficar sabendo por quê. Eu poderia ter feito isso por telefone,
mas a satisfação não seria a mesma. De qualquer forma, trata-se de uma
missão para estabelecermos uma coalizão.
Com Rehoboth?
Exatamente. É muito importante que Sua Excelência confie em seus
potentados regionais. Basta acertar mais alguns pontos com Bindura e
conquistaremos de vez sua lealdade. Existem boatos de insurreição, mas
temos certeza absoluta de que podemos contar com seis potentados e 90% de
certeza quanto a Rehoboth. Os três restantes passarão para o nosso lado
quando chegar o momento de resolver o problema de Jerusalém; caso
contrário, serão substituídos.
Problema de Jerusalém?
Não me decepcione. Você tem trabalhado tão próximo de mim
durante todo este tempo e não sabe o que estou querendo dizer quando me
refiro ao prob...
As duas testemunhas.
Bem, sim... não! É assim que aqueles rebeldes se autodenominam.
Eles também se referem a si mesmos como candeeiros, árvores ou coisas do
gênero, coisas bíblicas. Não se renda aos termos deles. São dois pregadores
malucos, dois turrões, dois...
Estas últimas palavras levaram os assessores a caírem na gargalhada, o
que serviu para Leon começar a fazer uma série de comentários que ele
considerava engraçados. Para ouvir seus bajuladores, ele tinha subestimado
seus dons de comediante. Mac estava balançando a cabeça de um lado para o
outro diante dos absurdos que ouvia quando Abdullah o assustou dando-lhe
um tapa no peito.
Mac endireitou-se na poltrona como se tivesse sido atingido por uma
toalha molhada.
Desculpe-me - gritou Abdullah - mas olhe! Olhe! Oh! Estava ali!
O quê? - perguntou Mac.
O sol estava se pondo no horizonte atrás deles, à esquerda, e o céu sem
nuvens que havia pela frente estava infinitamente azul. Mac não viu nada.
Naquele momento, Abdullah também não via nada.
Eu vi alguma coisa, capitão. Garanto que vi.
Não estou duvidando de você. O que foi?
Você vai duvidar de mim se eu lhe contar. - Os olhos
de Abdullah continuavam arregalados. Ele inclinou-se para a frente e
olhou em todas as direções.
Tente me contar.
Um exército.
Como assim?
Uma cavalaria, quero dizer.
Abdullah, você nem sequer estava olhando para o solo.
Eu não teria acordado você se tivesse visto alguma coisa no solo!
Eu não estava dormindo.
Seria melhor se eu tivesse visto cavalos no solo!
Você viu cavalos no céu?
Cavalos e cavaleiros.
Não vejo nada no céu, nem nuvens.
Eu disse que você não acreditaria em mim.
Eu acredito que você pensa que viu alguma coisa.
Acho que você também vai me chamar de mentiroso.
Jamais. Está na cara que você pensa ter visto alguma coisa. Você não
estava cochilando. Ou estava?
Além de ser um mentiroso, também durmo em serviço? Mac riu. - Se
você está dizendo que viu alguma coisa, eu acredito.
Não parecia haver 200 milhões, mas...
Ah! você anda lendo as mensagens de Tsion...
Claro. E quem não anda?
Mac empinou a cabeça. - Foi um devaneio, você devia estar meio
acordado, meio dormindo. Não me olhe deste jeito. Estou dizendo que foi
durante uma fração de segundo enquanto você pensava na mensagem do Dr.
Ben-Judá...
Você vai me ofender se continuar a falar assim, capitão.
Desculpe-me, irmão - disse Mac dando uma batida de leve no ombro
de Abdullah. - Você tem de admitir que existe esta possibilidade.
Abdullah empurrou a mão de Mac. - Você tem de admitir que existe a
possibilidade de eu ter visto cavalos e cavaleiros.
Mac sorriu. - O que eles estavam fazendo? Uma apresentação?
Preparando-se para o grande desfile?
Capitão! Você está me ofendendo!
Vamos, Abdullah! Tsion diz que os cavalos e os cavaleiros vêm do
abismo, da mesma forma que os gafanhotos. O que eles estariam fazendo
aqui no alto?
Abdullah parecia estar aborrecido e virou-se para o outro lado.
Você acha que eu tive a intenção de ofendê-lo? -perguntou Mac.
Nenhuma resposta.
Acha?
Abdullah continuou calado.
Agora você vai ficar de beiço...
Não sei o que significa ficar de beiço.
Apesar de não saber o que significa - disse Mac -, você é muito bom
nisto. Se isso significa que estou bravo com uma pessoa que eu imaginava
ser meu amigo e irmão, então estou de beiço.
Mac riu alto. - Verdade? Posso chamar você de beiço? Este aqui é o meu
irmão e amigo beiço!
Antes que Mac tivesse tempo de piscar, cavalos e cavaleiros escureceram
o céu. Abdullah puxou bruscamente os controles, e o avião quase empinou,
imobilizando Mac na poltrona. Ele ouviu ruídos de batidas e solavancos na
cozinha e na sala de descanso. Em seguida, Leon começou a gritar.
Assim que Mac se deu conta de que ia se arrepender por não ter apertado
o cinto de segurança, Abdullah fez uma outra manobra, e o avião baixou
rapidamente de altitude. Mac bateu a cabeça com força no teto. No exato
momento em que virou o rosto, foi ferido no lado esquerdo da cabeça. Os
botões do controle quebraram, abrindo um corte e furando sua orelha. O
sangue espirrou no pára-brisa e no painel de controle.
Finalmente, Abdullah conseguiu aprumar o avião e ficou olhando firme
para a frente.
Eu não fiz isto para me vingar de você - ele disse, com a voz trêmula.
- Sinto muitíssimo se você não viu por que eu precisei desviar o avião
daquela maneira tão brusca. Espero que seu ferimento não seja grave.
Eu vi nitidamente os cavalos e os cavaleiros - disse Mac, com o
coração aos pulos. - Nunca mais vou duvidar de você. Preciso fazer alguma
coisa para estancar o sangue. Se você os vir novamente, não tente desviar
deles. Mantenha a aeronave na posição. Eles estão flutuando no espaço.
Você não vai atingi-los.
Peço mil desculpas. Foi instintivo.
Eu entendo.
Você está bem, capitão?
Mais ou menos. O ferimento foi superficial, tenho certeza.
Ótimo - disse Abdullah. Em seguida, ele começou a imitar uma
comissária de bordo: - Mantenha sempre o cinto apertado quando estiver em
sua poltrona, mesmo que a luz de aviso tenha sido apagada.
Mac revirou os olhos.
Agora é você quem vai ficar de beiço? - perguntou Abdullah.
Mac levantou-se e dirigiu-se para a porta, no exato momento em que
alguém a esmurrava do lado de fora.
NOVE
Buck pediu milhões de desculpas a Tsion, explicando o motivo de tê-lo
acordado.
Rayford e Leah foram até a casa dela para pegar alguma coisa. Eles
acabaram de ligar pedindo que a gente olhe pela janela.
Tsion, com os cabelos desalinhados, pegou um roupão e desceu a escada
atrás de Buck. Chloe, com Kenny no colo, estava em pé diante da janela
olhando para o oeste.
Talvez seja necessário apagar as luzes - ela disse. - Não estou vendo
nada. O que vocês estão querendo ver? - perguntou Tsion.
Os 200 milhões de cavaleiros - ela respondeu.
Tsion caminhou apressado até a janela da frente da casa e afastou a
cortina.
Eu não ficaria desapontado se Deus antecipasse o Glorioso
Aparecimento em alguns anos - ele disse. - O céu deve estar nublado. Não há
estrelas. Onde está a lua?
Aqui atrás - disse Buck.
Acho que Rayford não estava falando sério - disse Tsion,
aproximando-se de Buck e Chloe.
Ele estava empolgado demais - disse Chloe. - Assustado. Buck
caminhou até a porta dos fundos e olhou para o leste.
No horizonte, havia um clarão vermelho.
Eu gostaria de saber o que é aquilo - ele disse, chamando o pessoal.
Deve haver alguma coisa queimando em algum lugar -disse Tsion,
com voz cansada. - Mas a casa da Sra. Rose não fica na direção oposta?
É melhor eu pegar o carro e seguir naquela direção para ver o que é -
disse Buck.
Chloe não gostou da idéia. - Vamos esperar para ver. Se for só um
incêndio, não vale a pena arriscar-se.
O telefone tocou. Chloe passou o irrequieto Kenny para os braços de
Buck e correu para atender.
Não, papai - ela disse. - Pode ser um incêndio no leste... Você tem
certeza de que já começou?... Fale com Tsion.
Assim que Mac destravou a porta da cabina de comando, Leon entrou
cambaleando, com os cabelos desgrenhados, praguejando.
Uma pequena turbulência - disse Mac.
Turbulência? E o que significa esta fumaça, este cheiro? Mandei
verificar, e Karl me disse que um dos funcionários dele está inconsciente!
Precisamos aterrissar, homem! Vamos morrer sufocados! E você está
sangrando!
Mac acompanhou-o até a sala de descanso, onde um dos assessores de
Leon massageava freneticamente o peito do outro. Karl gritou da cozinha:
Vamos todos morrer!
Leon cobriu a boca com um lenço, falando com dificuldade, tossindo.
Enxofre! De onde está vindo? É venenoso, não? Vai nos matar? Mac
não sentia nenhum cheiro. Ele foi verificar o painel de controle. O Condor
possuía alarmes supersensíveis contra fogo e fumaça. Nenhum dispositivo
havia sido acionado. Mac sabia que poderia levantar suspeitas se não
estivesse sentindo nada. Ele cobriu a boca com a mão.
Vou ligar o sistema de ventilação - ele disse, enquanto Karl arrastava
seu funcionário, retirando-o da cozinha. - Leve os dois que estão passando
mal para os aposentos de dormir. Temos oxigênio suficiente para todos.
Não há um lugar por perto para pousarmos? - perguntou Leon.
Vou verificar - respondeu Mac.
Rápido!
Mac entrou correndo na cabina de comando e trancou a porta.
O que está acontecendo? - perguntou Abdullah. - Você está perdendo
muito sangue.
Eu estou bem - disse Mac. - Aqueles cavalos têm poder para entrar
aqui, até mesmo dentro da cabina pressurizada. Todos estão sentindo cheiro
de enxofre, estão sufocados, usando oxigênio, desmaiando. Leon quer que a
gente aterrisse.
Precisamos seguir direto para Joanesburgo - disse Abdullah, ajudando
Mac a verificar cada dispositivo. - O que está acontecendo com eles não vem
deste avião. Vai ser pior se eles estiverem em terra.
Eles poderiam receber tratamento médico. Abdullah olhou para Mac.
- Você, sim, mas se eles estão sendo atacados pelos 200 milhões de
cavaleiros, não haverá médico que possa salvá-los.
Qual é o horário previsto de chegada?
Ainda temos algumas horas pela frente.
Mac sacudiu a cabeça. Seu ferimento o fez estremecer.
Vamos ter de pousar, senão Leon vai descobrir que somos
invulneráveis.
Abdullah fez um gesto para que Mac assumisse o controle do avião e
tirou alguns mapas de sua maleta de vôo.
Eles vão chegar dentro de poucos minutos - disse Tsion, desligando o
telefone após ter conversado com Rayford. -Os flagelos de fogo, fumaça e
enxofre já começaram. Eu não esperava que fosse agora, mas os cavaleiros
estão visíveis, pelo menos para algumas pessoas. Rayford e a Sra. Rose os
viram. Os incrédulos estão sendo exterminados. Buck ligou a TV.
Socorro! Socorro! - Mac ouviu pelo rádio.
Aqui é o Condor, prossiga.
Socorro! Meu piloto está morto! Estou sufocado! A cabina de
comando está repleta de fumaça. Que cheiro horrível! Não consigo ver nada!
A aeronave está descontrolada! Caindo!
Qual é a sua posição?
Mac, porém, só ouviu um gemido fraco. Parecia o dia do Arrebatamento,
só que agora eram gritos de pilotos não-crentes cujos aviões se perderiam,
talvez a terça parte deles.
Os pedidos de socorro congestionaram a freqüência. Mac não podia fazer
nada e estava atordoado. Ele mudou a freqüência do rádio para ouvir as
notícias.
"Até o momento, ninguém tem uma resposta para a série de incêndios,
fumaça e odor terrível de enxofre que está matando milhares de pessoas no
mundo inteiro", dizia o repórter. "As equipes médicas de emergência estão
completamente perdidas, tentando de todas as maneiras determinar a causa.
Vamos ouvir o que o chefe da Associação de Atendimento Médico de
Emergência da Comunidade Global, Dr. Jurgen Haase, tem a nos dizer."
"Se fossem eventos isolados, poderíamos atribuir a um fenômeno da
natureza, uma ruptura em alguma fonte de gás natural. Mas o acontecimento
parece ser aleatório, e a fumaça é letal. Solicitamos que os cidadãos usem
máscaras contra gás e trabalhem em conjunto para apagar os incêndios."
O repórter perguntou: "Qual é a mais perigosa, a fumaça preta ou a
amarela?"
Haase respondeu: "Acreditamos que a fumaça preta foi provocada pelo
fogo, mas parece não ter nada a ver com ele. Pode ser mortal, mas a fumaça
amarela tem odor de enxofre e tem o poder de matar instantaneamente."
O repórter disse que acabara de receber um boletim, e sua voz parecia a
de alguém aterrorizado. "Embora existam lugares nos quais não se tem
notícia de fogo, fumaça ou enxofre, em outros o número de mortes é
alarmante, até agora estimado em centenas de milhares. Nesta próxima meia
hora, Sua Excelência, o potentado da Comunidade Global, Nicolae
Carpathia, falará ao mundo via rádio, televisão e Internet."
Abdullah colocou um mapa bem na frente de Mac. -Estamos
eqüidistantes de dois aeroportos com pistas de pouso para aeronaves de
grande porte: Adis-Abeba e Cartum.
Leon é quem vai decidir - disse Mac. - É ele que deseja aterrissar.
Abdullah assumiu o controle novamente. Mac saiu da cabina de
comando e viu Leon falando ao telefone. Pegou um guardanapo de pano na
cozinha, molhou-o com água e segurou-o de encontro à orelha. Atirou outro
guardanapo umedecido na cabina de comando para que Abdullah limpasse o
pára-brisa e o painel.
Um momento, Excelência - Fortunato disse -, o capitão precisa de
mim... Sim, vou perguntar a ele. - Leon cobriu o fone. - Sua Excelência está
me perguntando onde estamos.
Sobrevoando o Mar Vermelho. Podemos seguir para... Leon fez um
gesto para que Mac silenciasse e voltou a falar com Carpathia. Em seguida,
passou o fone para Mac.
O potentado quer falar com você.
Qual é o seu plano, capitão? Mac lhe contou as opções.
Você tem condições de retornar a Meca ou a algum lugar no Iêmen?
Esses aeroportos não têm pistas de pouso para uma aeronave deste
porte, senhor.
Adis-Abeba está localizada onde era a Etiópia - disse Carpathia,
parecendo conversar consigo mesmo.
Correto - disse Mac. - Cartum fica no antigo Sudão.
Siga para lá. Vou entrar em contato com o potentado Rehoboth na
África do S..., em Joanesburgo, e pedir a ele que seu pessoal no Sudão faça o
melhor que puder por vocês. Se você tiver condições de completar esta
viagem, ela será de grande benefício para a causa.
O senhor poderia me informar como está a situação aí?
Aqui? Perdemos algumas dezenas de pessoas, e o mau cheiro está
insuportável. Estou convencido de que se trata de uma guerra química, mas
não me surpreenderei se o pessoal da oposição disser que é um fenômeno
sobrenatural.
Eu também... senhor.
A Dupla de Jerusalém já está defendendo este último argumento.
Como?
É o novo nome que dei a eles. Você gostou?
Mac não respondeu. Enquanto um grande número de pessoas morria no
mundo inteiro, Carpathia se divertia com jogo de palavras.
E claro - prosseguiu Carpathia - que eles estão se responsabilizando
pelos acontecimentos. Isto facilita meu trabalho. O dia deles vai chegar, e o
mundo me agradecerá.
Buck estava sentado diante da TV em companhia de Tsion e Chloe,
aguardando a chegada de Rayford e Leah. Dos países onde ainda era dia,
chegavam imagens de fogo e de rolos de fumaça subindo, pessoas sufocadas,
ofegando, tossindo, caindo ao chão. Pânico total.
O telefone tocou. Era Mac querendo falar com Rayford. Buck lhe contou
as novidades e ficou atônito ao ouvir os relatos de Mac e de Abdullah. Mac
lhe contou o apelido que Carpathia deu às duas testemunhas.
Daqui a pouco, ele vai aparecer na TV disse Buck. -Vou pedir a
Rayford que ligue para você.
Rayford e Leah chegaram no momento em que Carpathia estava sendo
apresentado. O Comando Tribulação sediado nos Estados Unidos ficou ali,
sentado diante da TV, ouvindo uma história cósmica. Tsion levantou-se e
começou a andar de um lado para o outro assim que Carpathia olhou
solenemente para a câmera. O potentado tinha o ar paternal de sempre,
garantindo ao povo aterrorizado que "a situação em breve estará sob
controle. Mobilizamos todos os recursos. Nesse ínterim, peço aos cidadãos
da Comunidade Global que nos comuniquem qualquer atividade suspeita,
em especial a fabricação ou transporte de agentes nocivos.
Lamentavelmente, temos motivos para acreditar que esse massacre de vidas
inocentes está sendo perpetrado por dissidentes religiosos a quem temos
tratado com cortesia. . Apesar de nos afrontar sempre que podem, temos
defendido seu direito de divergir de nossas opiniões. Mesmo assim,
continuam considerando a Comunidade Global como um inimigo. Acham
que têm o direito de manter um grupo de gente intolerante, de mentalidade
tacanha, que exclui qualquer pessoa que não concorde com eles.
"Vocês têm o direito a uma vida saudável, pacífica e livre. Embora eu
continue a ser um pacifista, apelo para que eliminemos do mundo essa gente,
começando com a Dupla de Jerusalém que, mesmo neste momento, não
manifesta nenhum remorso sobre a perda de um sem-número de vidas
resultante deste ataque."
Vocês sabem - disse Tsion, sentando-se no braço do sofá perto de
Chloe -, que vou ter de pedir perdão pela alegria que sentirei quando chegar
o tempo determinado deste homem.
Carpathia apertou um botão, fazendo aparecer na tela as figuras de Eli e
Moisés diante do Muro das Lamentações. Eles falavam em uníssono em voz
alta e ameaçadora, que ecoava muito além do Monte do Templo, sem ajuda
de alto-falantes.
As palavras apareciam na tela. "Ai dos inimigos do Deus Altíssimo!",
eles diziam. "Ai dos covardes que levantaram os punhos para ameaçar seu
Criador e agora estão sendo obrigados a fugir de sua ira! Suplicamos a vós,
serpentes e víboras, que considereis este flagelo mais que um julgamento!
Sim, ele é mais uma tentativa de um Deus amoroso que deseja alcançar
todos vós, e Ele já está perdendo a paciência. Não há mais tempo para serdes
persuadidos. Deveis ouvir atentamente o seu apelo, saber que Ele vos ama.
Voltai-vos para o Deus de vossos pais enquanto é tempo. Porque virá o dia
em que não haverá mais tempo!"
Carpathia voltou a aparecer na tela com um sorriso condescendente.
"Virá o dia, meus amigos, em que estes dois não mais espalharão seu
veneno. Eles não mais poderão transformar a água em sangue, nem impedir
que chova, nem enviar pragas para a Terra Santa e para o resto do mundo.
Eu mantenho minha palavra de barganha, negociada com eles meses atrás,
permitindo que determinados dissidentes não sejam punidos. Esta é a
recompensa que recebo. É assim que eles retribuem nossa generosidade.
"Mas a série de atos de bondade pára por aqui, leais cidadãos. Sua
paciência e perseverança serão recompensadas. Chegará o dia em que
viveremos em um mundo unificado, teremos uma só fé, seremos uma só
família. Viveremos em paz e harmonia, sem guerras, sem derramamento de
sangue, sem mortes. Por ora, peço que aceitem minhas mais sinceras
condolências pela perda de seus entes queridos. Eles não morreram em vão.
Continuem a confiar nos ideais da Comunidade Global, nos princípios da
paz e na força de uma fé universal que acolhe devotos de qualquer religião,
mesmo daquelas que se opõem a nós.
"Daqui a quatro meses, faremos uma comemoração na mesma cidade em
que esses pregadores estão nos advertindo, zombando de nós. Aplaudiremos
a morte deles e festejaremos um futuro sem pragas, sem enfermidades, sem
sofrimentos e sem mortes. Mantenham a fé enquanto aguardam a chegada
desse dia. Até lá, voltarei a fazer outro pronunciamento. Enquanto isso,
agradeço o apoio sincero que todos os senhores têm dado à Comunidade
Global".
Duas ambulâncias aguardavam na extremidade da pista principal de
pouso de Cartum, equipadas com aparelhos da mais alta tecnologia em
medicina. Apertando a orelha esquerda com o guardanapo molhado, Mac
ajudou Abdullah a abrir a porta e descer a escada. Leon e Karl desceram
atordoados, seguidos por um assessor e um funcionário da cozinha, deixando
a bordo duas pessoas agonizando. A equipe de emergência, usando luvas e
máscaras contra gás, subiu rapidamente a escada, carregando maletas de
primeiros -socorros. Mac e Abdullah ficaram em pé na pista, recusando ser
atendidos pelos médicos antes daqueles que estavam em estado mais grave.
Os outros quatro foram medicados nas ambulâncias. Logo a seguir, os
componentes da equipe de emergência desceram do avião e voltaram a subir
levando maças. Saíram de lá carregando duas vítimas cobertas da cabeça aos
pés com lençol.
Fortunato estava parado fora da ambulância, sem paletó, com a gravata
afrouxada e a camisa ensopada de suor. Ele passou a mão na testa,
respirando com dificuldade.
Medida de prevenção? - ele perguntou à equipe de emergência
enquanto as vítimas eram transportadas.
Eles balançaram a cabeça negativamente.
Eles não estão...?
Sim, estão - respondeu um deles. - Asfixiados. Leon virou-se para
Mac. - Vá cuidar de seu ferimento e
verifique minuciosamente a aeronave. Não podemos permitir que
aconteça outro episódio como este.
Mac tinha três ferimentos no couro cabeludo e um corte profundo no
pescoço, que precisou levar 20 pontos, além de outro corte mais grave na
orelha, que precisou levar 40 pontos.
Vai doer um bocado depois que passar o efeito da anestesia -
disseram-lhe.
Dois jovens estavam mortos, quatro, em estado gravíssimo, e o mundo se
transformara em um caos. Mac achou que poderia suportar a dor.
Nas primeiras horas da madrugada, Rayford sentou-se na sala de visitas
da casa secreta. Os outros moradores já haviam se recolhido aos seus
quartos. Seguido de Leah, ele tinha entrado na casa molhado, com frio e o
corpo todo dolorido. Podia imaginar a dor que ela sentia depois de ter-se
chocado violentamente com ele. A preocupação e a atenção demonstradas
pelo grupo - inclusive durante o pronunciamento de Carpathia - o
comoveram. De fato, eles eram irmãos e irmãs em Cristo e precisavam uns
dos outros para sobreviverem. Depois que todos ouviram o relato de Rayford
e Leah e oraram agradecendo a Deus o dinheiro recebido, Tsion falou um
pouco a respeito da mensagem que seria transmitida no dia seguinte. Ele
estava intrigado, querendo saber por que os crentes podiam ver os cavalos e
os cavaleiros, e as vítimas não. Até mesmo as imagens da TV mostraram
cenas de pessoas tentando escapar das mordidas das serpentes, envoltas em
nuvens de fumaça e sendo consumidas, aparentemente por um fogo
espontâneo proveniente do ar rarefeito.
Eu imaginei que haveria um exército monstruoso de cavaleiros
cavalgando juntos - disse Tsion. - Talvez eles ainda apareçam desta maneira.
Mas, até agora, eles estão surgindo em várias localidades. Não sei até
quando isso vai continuar a acontecer. Francamente, estou desapontado por
não ter visto os cavaleiros.
Aos poucos, todos foram se dirigindo para os quartos, restando apenas
Rayford e Chloe na sala.
Você não vai dormir, papai? - ela perguntou.
Daqui a pouco. Preciso dar um tempo para me desligar. Nunca passei
um dia como este. Nunca vi nada semelhante. E não faço questão de ver
novamente.
Chloe postou-se atrás dele e começou a massagear-lhe o pescoço e
ombros.
Você precisa descansar - ela disse.
Eu sei. Vou ficar bem - disse Rayford, dando um tapinha na mão da
filha. - Vá dormir. Você tem um filho para cuidar.
Agora, sentado sozinho na escuridão, Rayford relembrava os
acontecimentos dos últimos dias, querendo saber quanto mais poderia
suportar. Aquele era apenas o começo, e ele achava que não agüentaria o
sofrimento dos anos seguintes. Perderia outros companheiros, e em ritmo
acelerado.
Sua indignação não diminuíra, mas ele havia conseguido escondê-la em
um compartimento reservado de seu cérebro. Mesmo desejando ter o
privilégio de ser usado para matar Carpathia, ele tinha de admitir que se
sentia agradecido pelo que presenciara naquela noite. Não havia meios de
negar a presença poderosa de Deus durante aquele período. Mas ficar frente
a frente com os cavaleiros do Apocalipse, caminhar no meio deles sem ser
molestado...
Será que os cavaleiros também tinham sido impedidos de enxergar os
crentes? Da mesma forma que os gafanhotos demoníacos, eles também eram
agentes de Satanás, que talvez preferisse matar os crentes e não os inimigos
de Deus.
Rayford ainda não tinha uma opinião formada a respeito de Leah. Ela era
uma pessoa difícil de conviver, mas parecia jovem e ingênua para sua idade.
Ambos haviam passado momentos terríveis juntos, e, mesmo assim, a
imagem de homem exigente e teimoso que Leah tinha dele ainda não
desaparecera. Rayford se comovera ao ouvir a história da conversão dela e
não duvidava de sua sinceridade. Seria uma atitude machista repelir a
franqueza dela? Estaria ele simplesmente representando o papel de um
homem corajoso? Ele esperava que não.
Rayford avaliou seus ferimentos. Ele precisava de uma ducha longa e
quente. Um dos dedos do pé latejava. Talvez estivesse quebrado. O joelho
esquerdo doía como daquela vez em que precisou fazer uma cirurgia na
faculdade. O cotovelo esquerdo estava sensível. Um dos dedos da mão tinha
sofrido uma torção. Rayford sentiu um calombo na parte posterior da cabeça.
Também pudera! Ele já estava chegando aos 46 anos. Colidir violentamente
com alguém e rolar pelo chão fazia parte de um dia típico de um garoto de
nove anos.
Rayford emocionou-se ao pensar em seu filho. Raymie tinha 12 anos
quando desapareceu no Arrebatamento. Apesar de ter conseguido muitas
vezes conter-se para não repreender o filho, Raymie sempre o deixava
irritado. Rayford sentia-se culpado pelo tempo perdido, por não ter-se
esforçado para compreender o filho. As lembranças dos momentos em que
eles passaram juntos deram-lhe um nó na garganta.
Rayford levantou-se do sofá e ajoelhou-se, agradecendo a Deus a vida de
Irene e Raymie, grato por eles terem sido poupados destes tormentos. Ele
também agradeceu a Deus ter conhecido Amanda, com quem conviveu por
pouco tempo, mas que, sem dúvida, foi uma bênção em sua vida. Chloe,
Kenny, Buck, Tsion, Mac, David, Bruce, Ken... todos vieram-lhe à mente,
trazendo emoção, arrependimento, gratidão, preocupação, esperança.
Rayford orou para que pudesse ser o líder do Comando Tribulação que
Deus desejava. Ele também mantinha a esperança de que isso incluísse, de
uma forma ou de outra, a possibilidade de aproximar-se de Nicolae
Carpathia três anos e meio após o início da Tribulação, dali a quatro meses.
Carpathia acabara de comunicar onde estaria naquele momento.
Mac ficou agradecido por Abdullah ter supervisionado a desinfecção e a
inspeção da aeronave. Sua cabeça latejava. Ele tinha de prosseguir a viagem,
mas deixaria o comando nas mãos de Abdullah.
Todos, inclusive ele próprio, pareciam apreensivos, com os olhos abertos
para enfrentar o perigo. Mac estava atento a qualquer movimento a seu
redor, na expectativa de ver os cavalos gigantescos e seus cavaleiros.
Abdullah parecia inquieto.
Apesar do trauma sofrido, Fortunato demonstrava ansiedade para voar
novamente. Karl andava de um lado para o outro, às vezes chorando, às
vezes alvoroçado, cuidando para que tudo estivesse em ordem. Enquanto
Mac e Abdullah faziam o trabalho de rotina antes de levantar vôo, Fortunato
foi conduzido ao deslumbrante terminal do Aeroporto de Cartum. Saiu de lá
trajando outras roupas, com ar de quem havia tomado uma ducha. Sua
aparência havia melhorado sensivelmente. Porém, seu semblante ainda
demonstrava preocupação. Ele parou na porta da cabina de comando para
saber se Mac e o avião estavam em condições de seguir viagem.
Ao primeiro sinal de algum odor estranho, arrumem um jeito de
pousar este avião - ele disse.
Às 13 horas na Nova Babilônia, David Hassid finalmente conseguiu
fazer uma pausa para descansar depois de trabalhar na emergência. Ele
ajudara a transportar os corpos para o necrotério e conduzir os feridos para
os hospitais. Apesar de não ter visto o que provocara a catástrofe, começou a
juntar os fatos quando os noticiários informaram que as mortes haviam sido
provocadas por fogo, fumaça e enxofre. Perto de um décimo dos
funcionários da CG havia sido atingido, o que representava centenas de
pessoas mortas. Ele sabia que seus companheiros nos Estados Unidos, pelo
menos Rayford e um novo membro do Comando Tribulação, tinham visto os
cavaleiros. Sentiu-se melhor ao saber que não foi o único crente que não viu
os cavaleiros.
David estava muito preocupado com Annie. Ele não a via desde o
momento em que o primeiro alarme soara, mandando que todo o pessoal
assumisse funções de emergência predeterminadas. Ele não tinha condições
de conversar com Annie por telefone nem por computador, e ninguém sabia
notícias dela. O trabalho dela na emergência era digitar uma série de
números criptografados em uma unidade de controle remoto, que controlava
o sistema de segurança do hangar. Assim que o serviço estivesse terminado,
ela devia prestar contas ao pessoal do departamento de David. O hangar
estava em segurança, mas David precisava verificar tudo pessoalmente.
A missão dele foi terrível. Das 140 pessoas sob sua supervisão, dez
estavam mortas, duas sendo tratadas por terem inalado fumaça, e faltava
uma: Annie. Três das que morreram pareciam ter-se incendiado
espontaneamente. Durante o trabalho na emergência, David chegou a uma
conclusão. Se Annie tivesse sobrevivido, ele tornaria público o amor que um
sentia pelo outro. Tomaria a iniciativa de pedir a transferência dela, de
acordo com a política da CG, para que ambos não fossem repreendidos
quando a notícia se espalhasse.
Assim que arquivou seu relatório, David passou por dezenas de
funcionários que estavam agrupados, chorando, conversando, lamentandose.
Aquele era o momento certo para orar com eles, falar de Deus a eles. Mas
David ainda não se sentia preparado para sacrificar sua potencial vantagem
em favor da causa.
Em razão da posição que ocupava, David conseguiu a chave dos
aposentos de Annie. Ela não estava lá. Desesperado, ele correu até o enorme
hangar e digitou os códigos necessários para abrir todas as travas de
segurança. As gigantescas portas laterais foram abertas, deixando todo
imenso interior do hangar à mostra, que parecia maior ainda porque todas as
aeronaves principais estavam fora, a serviço. Os helicópteros e algumas
aeronaves de pequeno porte não eram suficientes para preencher o imenso
hangar.
David abriu as portas das salas de Annie, de Mac e de Abdullah e
acendeu as luzes. Nada. De repente, ouviu uma batida cadenciada abafada.
Vinha do depósito de materiais localizado no canto oposto do hangar. Ele
reconheceu as batidas do código Morse. Era um pedido de SOS. David
correu naquela direção.
O depósito tinha paredes de aço à prova de som para reforçar a
segurança. Annie manipulara pela primeira vez o sistema de segurança do
hangar. Talvez ela não soubesse que o depósito se trancava automaticamente
por fora e era o último lugar em que alguém gostaria de ficar enquanto
estivesse trancando o edifício inteiro. Depois de acionadas as travas de
segurança, a comunicação de dentro para fora tornava-se impossível. O
telefone e até mesmo a unidade de controle remoto não tinham condições de
ultrapassar o aço. A pessoa só sairia dali com a ajuda de alguém de fora.
David chegou à porta.
Quem está aí? - ele gritou.
David! - soou a voz nervosa de Annie. - Tire-me daqui!
Graças a Deus! - ele disse, destrancando a porta. Ela saltou em seus
braços, segurando-o com tanta força que ele mal podia respirar.
Hoje você aprendeu mais uma lição sobre o depósito? -ele perguntou.
Pensei que ficaria aqui para sempre! - ela disse.
Verifiquei os materiais e comecei a digitar os códigos enquanto saía,
sem saber que as portas se fecham por fora. Ainda tenho de prestar contas ao
seu pessoal.
Já foi feito.
Ótimo. Obrigada por me contar só agora sobre o depósito.
Peço que me desculpe. Senti um grande alívio quando encontrei você.
Você sentiu alívio? Eu estava morrendo de medo! Imaginei que
levaria dias para você pensar em me procurar aqui.
David percebeu que Annie estava realmente zangada com ele. - Mac é
quem tinha a responsabilidade de lhe contar sobre...
Ela olhou de esguelha para ele. - Não jogue a culpa nos outros! Tratavase
de uma coisa importante que você deveria ter-me avisado.
David não tinha como se defender.
Qual foi a grande emergência? - ela perguntou. - Outro alarme falso?
Você não está sabendo?
Como eu poderia saber, David? Quando ouvi o alarme, vi pessoas
correndo e tossindo. Vim direto para cá.
Acompanhe-me - ele disse.
Ambos se sentaram na sala de Annie, e ele lhe contou a história toda.
Eu poderia ter ajudado - ela disse. - Agi como uma covarde, graças a
você. Quase morri de preocupação por você - disse David. -Pensei que eu
soubesse o que você significa para mim.
Você pensou?
Eu estava enganado. O que mais posso dizer? Eu preciso de você. Eu
a amo. Quero que todos saibam.
Ela balançou a cabeça negativamente e desviou o olhar. -Você me amava
tanto a ponto de deixar que eu me trancasse no depósito...
Agora foi a vez de David ficar zangado. - Você não leu o manual de
instruções, conforme era sua obrigação? Está tudo bem claro.
Acho que vou receber uma advertência.
Provavelmente. Vai ser difícil esconder que eu fiz o seu trabalho.
Era o mínimo que você poderia ter feito - ela disse. David atribuiu a
grosseria de Annie à claustrofobia e frustração que ela sentira.
Eu a amo mesmo quando você está de mau humor - ele disse.
É uma grande cortesia de sua parte.
Ele encolheu os ombros e levantou as mãos em sinal de rendição. - É
melhor eu ir embora. Enquanto não tornarmos público o nosso amor, não
devemos ser vistos juntos. Além do mais, sou responsável por seu paradeiro.
Não era bem isso o que eu queria ouvir. Ele sacudiu a cabeça e
levantou-se.
Alguém devia ter-me contado - ela disse.
Eu já me expliquei - disse David, sem olhar para ela.
Só estou dizendo que eu podia me afastar desta função e pedir
transferência para outro departamento. E você sabe o que isso significaria.
Ele virou-se. - Eu teria adorado ouvir isso dez minutos atrás. Assim
poderíamos declarar nosso amor, e eu passaria mais tempo com você.
David percebeu que a ofendera.
E agora? - ela perguntou.
Eu já disse que a amo mesmo quando você...
Você sabe qual é o preço, David. Quero o mesmo que você, mas o
que seria melhor para o Comando Tribulação?
Eu não posso ser muito útil ao Comando, vivendo frustrado sem
você. Quem mais tem acesso à chefia da CG tanto quanto você?
Eu sei. Então, estamos apaixonados novamente? Annie aproximou-se
de David, e os dois se abraçaram.
Peço que me desculpe - ela disse.
Eu também.
DEZ
O último vôo de Mac a Joanesburgo tinha sido antes do grande terremoto
da ira do Cordeiro. Do alto, a cidade fazia lembrar a Nova Babilônia. O
aeroporto reconstruído era um centro importante para viagens internacionais.
No palácio do potentado regional Rehoboth, moravam suas mulheres, filhos
e netos, além dos criados e assessores.
Mac sentia que o lado esquerdo de sua cabeça estava duas vezes maior
do que o direito. A cada batida do coração, uma dor aguda nos ferimentos o
castigava. A dificuldade era grande até mesmo para colocar os fones de
ouvido, porque eles comprimiam a gaze que protegia os pontos.
Assim que o avião pousasse, Mac e Abdullah deviam abrir a porta e
descer a escada. Eles teriam liberdade para sair do avião, descansar em seus
aposentos ou ficar na cabina de comando, desde que não atrapalhassem a
reunião. Karl e seu ajudante permaneceriam a bordo para servir a refeição.
Mac disse a Leon que ele e Abdullah provavelmente ficariam descansando
em seus aposentos, dentro do avião. É claro que eles permaneceriam na
cabina, de onde Mac ouviu a conversa entre Fortunato e um de seus
assessores.
Clancy - disse Leon -, eu gostaria que você telefonasse para Ngumo
na sala VIP do aeroporto, que fica na extremidade do terminal. O número é
este. Provavelmente ele não vai atender, mas, por via das dúvidas, ligue o
viva-voz para eu poder ouvir.
Mac queria tomar nota do número do telefone, mas não podia correr o
risco de ser encontrado com ele. Teria de memorizá-lo, o que não seria fácil
por causa da dor que sentia. Ele ouviu Clancy digitar lentamente cada
número. A voz que atendeu era a de uma senhora de meia-idade.
Aqui fala a secretária de Mwangati Ngumo. Posso ajudá-lo?
Pode sim, senhora, obrigado. Sou Clancy Tiber, assistente pessoal do
supremo comandante da Comunidade Global, Leon Fortunato. Tenho a
satisfação de comunicar-lhe que o supremo comandante está pronto para
receber o Sr. Ngumo e dois assessores a bordo do Comunidade Global Um.
Obrigada, Sr. Tiber. Eles estarão aí em cinco minutos. O Sr. Ngumo
aguarda ansiosamente o encontro que terá com o potentado Carpathia.
Clancy desligou e disse:
Adorei esta história. Vai continuar assim tão divertida?
Você ainda não viu nada, meu filho.
A limusine com a bandeira de Botsuana parou a uns 15 metros do avião.
Mac ficou observando, sem muito interesse, a chegada dos três dignitários.
Abdullah desatou o cinto de segurança e encostou o nariz no pára-brisa.
Você acha que aquele ali é o Ngumo, Mac?
O quê?
Não é o Ngumo.
Eu não cheguei a conhecê-lo.
Nem eu, mas este não é o sujeito que vi na TV, a menos que ele tenha
emagrecido mais de 20 quilos. E desde quando um homem tão importante
como ele carrega uma maleta?
Mac retirou os fones de ouvido e inclinou-se para a frente, mas os
homens já haviam desaparecido de seu campo de visão. Ele deu um pulo
quando Fortunato esmurrou a porta da cabina com tanta força que ela se
escancarou indo bater na parede.
Rápido! Rápido! - gritou Fortunato. - Levante vôo imediatamente!
Os motores estão desligados, Leon.
Então, ligue-os! Já! Aqueles homens estão armados!
A porta está aberta, Leon! Não há mais tempo!
Faça alguma coisa!
Engate três e quatro - disse Mac, e Abdullah apertou diversos botões.
- Acelere o mais que puder! Já!
Os dois motores do lado direito do avião começaram a girar, fazendo um
ruído ensurdecedor. Quando Mac acionou os controles fazendo o avião
pender para a esquerda, ele viu os três supostos assassinos sendo atirados na
pista por causa do jato quente que foi expelido.
Você é um gênio! - disse Leon. - Vamos dar o fora daqui!
Com muito esforço, os homens se levantaram, pegaram seus rifles
poderosos e correram em direção à limusine. Abdullah correu para levantar a
escada e fechar a porta do avião.
Vamos! - gritou Leon. - Vamos embora!
Estamos com pouco combustível. Vamos ter de voltar para cá a fim
de abastecer.
Eles estão vindo em nossa direção! Vamos embora!
Mac iniciou a seqüência de manobras, sabendo que o avião não estava
preparado para fazer uma nova decolagem tão rápida. Os motores do lado
esquerdo foram ligados, mas, se os outros dispositivos não entrassem em
ação imediatamente, o computador de bordo abortaria a decolagem. Se Mac
acionasse o sistema de prevenção contra falhas, correria o risco de provocar
um acidente.
Ele virou a lateral traseira do jato na direção dos homens, mas eles
contornaram rapidamente o avião, apontando suas armas.
Não dê atenção a eles! - gritou Leon. - Vamos embora! Os homens
saíram do campo de visão de Mac e abriram fogo. Os pneus estouraram,
produzindo um ruído quase tão forte quanto o dos tiros. O Condor estava
avariado. Com mais da metade dos pneus em frangalhos, a imensa aeronave
balançava de um lado para o outro sobre a pista. Mac não tinha condições de
rodar, e muito menos de ganhar velocidade para levantar vôo.
Por mais estranho que pudesse parecer, não havia nenhum outro avião à
vista. Toda aquela confusão, que deveria ter sido presenciada pelo pessoal
responsável pelo tráfego aéreo e de terra, não havia atraído a atenção da
equipe de emergência. Mac se deu conta de que não haveria saída. Morreria
ali mesmo. Ele e Abdullah estavam nas mãos daquele bando de assassinos.
Quem quer que fossem, evidentemente contavam com a cooperação do
regime de Rehoboth.
Os projéteis atravessaram a fuselagem. Mac e Abdullah saltaram das
poltronas e acompanharam o desvairado Leon, passando pela cozinha e pela
sala de descanso, indo parar na cabina de passageiros.
Vão para o meio da aeronave e deitem-se no chão! -gritou Mac.
Aparentemente, os assassinos haviam decidido não deixar nenhum
sobrevivente. Os projéteis atravessavam as janelas e a estrutura do avião.
Mac percebeu que havia apenas cinco homens deitados no chão. Abdullah,
Leon, Clancy, o ajudante de Karl e ele estavam com o corpo encurvado sob
os bancos, protegendo a cabeça com as mãos.
Onde está Karl? - gritou Mac. Ninguém se mexeu.
Mac ouviu o som de passos. Ao levantar um pouco a cabeça, ele viu o
cozinheiro cambaleando pelo corredor, encharcado de sangue.
Karl! Abaixe-se!
O cozinheiro caiu no chão com os olhos arregalados. Um buraco na testa
evidenciava que ele havia sofrido um ferimento mortal.
Você tem uma arma? - gritou Leon.
Seu patrão proibiu o uso de armas, Leon! - disse Mac.
Mas, com certeza, você às vezes desacata as ordens dele! Se você
conseguir uma, não será punido! Não temos saída, Mac!
Havia duas pistolas no compartimento de cargas. Sim, pensou Mac, às
vezes eu desacato as ordens dele. Mas como ir buscá-las, e o que ele poderia
fazer diante de armamento tão pesado?
Faça alguma coisa! - implorou Leon. - Você tem um telefone?
Mac desatou o celular do cinto e atirou-o na direção de Leon. O supremo
comandante começou a digitar freneticamente um código especial,
estremecendo a cada rajada de balas que atravessava o avião.
Megalerta CG, aqui é LF 999, linha sigilosa! Informe Sua Excelência
que o CG Um está sendo metralhado no Aeroporto Internacional de
Joanesburgo. Ponha-me imediatamente em contato direto com o potentado
Rehoboth!
Mac ouviu o telefone da sala de descanso tocando. Será que ele deveria
atrever-se a ir atendê-lo? Se fosse um dos atiradores fazendo exigências,
talvez valesse a pena. Arrastando-se e passando por cima do corpo de Karl,
conseguiu chegar à sala de descanso. Ao agarrar o fone, a base do aparelho
caiu no chão.
Fale! - ele berrou.
Era a voz da mulher que ele ouvira pela escuta clandestina. Ela estava
histérica.
O Sr. Ngumo nada tem a ver com este ataque! Ele foi pego de
surpresa pelos... oh, não! Oh... - Uma rajada de tiros ensurdecedora obrigou
Mac a afastar o fone do ouvido. Quando ele voltou a ouvir, a mulher estava
gritando. - Eles o mataram! Não! Por favor! - Mais tiros, e Mac ouviu o som
do telefone dela cair no chão.
Ele arrastou-se de quatro até a cabina de comando e gritou pelo rádio:
Socorro! Pista de Joanesburgo! CG Um sendo metralhado! Mac ouviu
Leon falando aos gritos pelo telefone:
Foi você, Bindura? Por quê? Carpathia não está aqui neste avião!
Estou-lhe dizendo a verdade! Mande seu pessoal parar de atirar! Por favor!
Se Rehoboth estivesse por trás daquele atentado, todos eles morreriam.
O homem devia ter pensado em tudo. Mac gritou pelo rádio:
Socorro! Joanesburgo! Crentes a bordo!
Se, por acaso, houvesse um piloto cristão naquela área, talvez ele ou ela
pudesse fazer alguma coisa.
Mac foi atingido no rosto pelos estilhaços de uma bomba, e um cheiro de
fumaça tomou conta do avião.
Fogo! - gritaram Leon e Clancy.
Abdullah correu para a parte da frente do avião e gritou:
Pode ser que eles nos acertem, Mac, mas precisamos saltar daqui! O
avião está em chamas!
Mac e Abdullah abriram a porta da cabina de passageiros evitando ser
alvo dos atiradores. Leon arrastou Clancy, cujas pernas estavam rígidas de
medo. Ele chorava sem conseguir equilibrar-se. Assim que Abdullah abaixou
a escada, Leon colocou o corpo trêmulo de Clancy diante de si, como
escudo. O corpo de Clancy foi dilacerado pelas balas, e Leon ficou
paralisado no topo da escada. Ele só se deu conta do perigo a que estava
exposto quando uma bomba explodiu na sala de descanso. Mac e Abdullah
deram um salto e o agarraram, rolando com ele pelos degraus, enquanto
estrondos continuavam vindo do interior do avião.
Mac achou que não conseguiria chegar vivo à pista. Ele perdera toda a
esperança e só saltara do avião para fugir das chamas. As rajadas de bala ao
redor dele e do Condor zuniam de maneira ensurdecedora. Ele apertou os
olhos com tanta força que parecia que suas bochechas tocavam a testa. Com
uma das mãos agarrada ao pulso de Abdullah e um joelho apoiado nas costas
carnudas de Fortunato, Mac teve a certeza de que, quando abrisse os olhos,
estaria no céu.
Mas não foi isso o que aconteceu...
Leon caiu de quatro na pista, apoiado nas mãos e nos joelhos. Abdullah
foi atirado ao ar, passando por cima dele. Mac desabou sobre as costas de
Leon, forçando-o a esticar-se de bruços no asfalto. Um projétil atravessou o
ombro direito de Mac e outro atingiu sua mão direita. As rajadas de bala de
uma arma a uns cinco metros de distância dele passavam zunindo por sua
orelha esquerda.
Oh! Deus! - gritou Leon, com o corpo sob o de Mac. -Oh, Deus,
ajuda-me!
Mac achou que sua cabeça seria o próximo alvo e que seu sofrimento
seria misericordiosamente terminado.
Escuridão.
Silêncio.
Nada.
Apenas um cheiro e gosto ruim na boca e muita dor.
Mac não viu nada por ter ficado de olhos fechados. O único som que ele
escutava agora era o da respiração ofegante de Leon.
O cheiro que sentia era de pólvora e de material metálico; o gosto, de
sangue, e a dor, profunda, lancinante. O buraco aberto pelo tiro no ombro
doía muito mais que o ferimento na cabeça. Sua mão estava pior ainda. Ele
não queria abrir os olhos. Nada do que visse naqueles ferimentos o
surpreenderia. Sua mão devia estar despedaçada.
Leon tentou levantar-se para respirar melhor, mas não conseguiu por
causa do peso do corpo de Mac sobre ele. Mac rolou pelo pavimento caindo
à esquerda de Leon. Seus olhos continuavam fechados, sua mente girava.
Será que tudo havia terminado ou ele veria os assassinos em pé a seu lado
quando abrisse os olhos? Fortunato teria sido atingido? E Abdullah?
Decepcionado por não estar no céu, Mac forçou-se a abrir um olho. A
fumaça era tão densa e escura que ele não conseguia enxergar um palmo
adiante do nariz. Levou a mão machucada para perto do rosto para poder
enxergar o que acontecera e sentiu uma dor terrível no ombro. Sua mão
tremia tanto que chegava a balançar o corpo todo, e espirrava sangue em seu
rosto.
Mac segurou a mão machucada com a outra para fazê-la parar de tremer
e viu que não perdera nenhum dedo, mas eles apontavam para direções
diferentes. Uma bala havia atravessado a palma da mão. Seu corpo inteiro
tremia, e ele receava entrar em estado de choque.
Quando a fumaça começou a se dissipar, ele conseguiu sentar. Leon
ofegava a seu lado, com os olhos abertos, dentes à mostra. Um pouco mais
adiante, estava o corpo sem vida de Clancy Tiber.
Abdullah? - Mac chamou com voz fraca.
Estou aqui - respondeu Abdullah. - Fui atingido por uma bala na
coxa. E você?
Pelo menos duas me atingiram. O que aconteceu com...
Você viu os cavalos?
Eu mal estou conseguindo ver você.
Espero que eles fiquem mais um pouco para que você possa vê-los.
Eu também...
Na manhã de sábado, Rayford despertou na casa secreta pouco depois
das nove. Ele poderia ter dormido mais algumas horas, depois de tudo o que
acontecera na noite anterior, mas seu sono havia sido interrompido por um
ruído estranho. Continuou deitado, com os olhos abertos, na esperança de
que seu corpo tivesse tido tempo de recuperar as forças e de que suas dores
tivessem passado.
Um som ritmado, como se alguém estivesse esfregando as mãos
intermitentemente, o fez sentar-se na cama. Depois de ouvir com mais
atenção, ele imaginou que poderia ser alguém fungando ou chorando
baixinho. 0 som vinha do quarto ao lado, onde Tsion dormia e trabalhava.
O descanso havia sido bom para a mente e espírito de Rayford, mas
também servira para enrijecer suas juntas e músculos doloridos. Ele gemeu
alto, vestiu o roupão e espiou no quarto de Tsion pela fresta da porta.
A princípio, Rayford não enxergou Tsion. A cadeira diante da tela do
computador estava vazia. A cama também. O som, porém, vinha daquele
quarto. Rayford deu uma batida de leve na porta e empurrou-a um pouco
mais. Tsion estava estendido no chão, debaixo da janela que ficava perto da
cama, cobrindo o rosto com as mãos. Seus ombros arfavam enquanto ele
chorava amargamente.
Você está bem? - perguntou Rayford em voz baixa, mas Tsion não
respondeu.
Rayford aproximou-se dele e sentou-se na cama para que Tsion visse que
ele estava ali. O rabino orava em voz alta: Senhor, se for Hattie, tem piedade
de sua alma. Se for Chaim, quero muito levá-lo à tua presença. Se for
alguém desta casa, protege essa pessoa, defende-a, dá-lhe os instrumentos
de que ela necessita. Pai, se for um dos irmãos ou irmãs recém-convertidos,
alguém que eu ainda não conheço, peço-te que o protejas e tenhas
misericórdia dele. Agora, ele chorava mais ainda e gemia. Deus, ensina-me
como devo orar.
Rayford pousou a mão no ombro de Tsion, e ele virou-se.
Rayford, o Senhor incutiu repentinamente em meu coração um desejo
profundo de orar por alguém que corre perigo. Eu estava escrevendo a minha
mensagem, que também está pesando sobre mim. Provavelmente é a mais
difícil que já precisei escrever. Pensei que, como líder, minha missão fosse
orar por meus leitores, mas o que senti parecia ser mais específico, mais
urgente. Orei para que o Senhor me dissesse quem precisava de oração, mas,
de repente, fui dominado por um desejo de orar imediatamente. Quando me
ajoelhei, parece que o Espírito de Deus me puxou para o chão e minha alma
sentiu um desejo ardente de orar por alguém que estivesse necessitando de
minha oração. Eu ainda não sei quem é, mas, mesmo assim, não posso
afastar a sensação de que não se tratava apenas de imaginação. Você oraria
comigo?
Rayford ajoelhou-se desajeitadamente, com o corpo todo dolorido por
causa da noite anterior, sem ter idéia do que acrescentar à oração de Tsion.
Senhor, ele orou, concordo com as palavras que meu irmão dirigiu a ti. Nós,
seres finitos, não sabemos nos expressar nem pedir coisa alguma que venha
a exercer influência sobre aquilo que tu, que és um Deus infinito, desejas
fazer, mas confiamos em ti. Tu nos disseste que devemos orar, que devemos
nos aproximar de ti sem temor. Se alguém que conhecemos e amamos estiver
em perigo, oramos para que tu protejas essa pessoa com o teu admirável
poder.
Rayford ficou comovido com a emoção de Tsion e não conseguiu
prosseguir.
Muito obrigado - disse Tsion, apertando-lhe a mão. Eles se
levantaram. Tsion sentou-se diante de seu computador e enxugou os olhos.
Eu não sei do que se tratava - ele disse -, mas parei de questionar de
que forma Deus se comunica conosco.
Depois de se recompor, Tsion pediu a Rayford que lesse a sua mensagem
do dia.
Vou melhorá-la antes de enviá-la esta tarde, mas apreciaria ouvir seus
comentários.
Eu adoraria ler a sua mensagem - disse Rayford -, mas não sei o que
eu poderia acrescentar a ela.
Tsion levantou-se e ofereceu sua cadeira a Rayford. - Vou procurar
alguma coisa para beber. Volto em seguida para o meu posto.
Mac sabia que, se permanecesse na pista cheia de fumaça do aeroporto
de Joanesburgo, morreria. Os ferimentos na orelha e no couro cabeludo
sangravam por baixo dos curativos, e o efeito do anestésico já havia passado.
Seu ombro parecia ter sido esmagado por um martelo incandescente. Sua
mão jamais seria igual ao que era. O melhor que ele podia esperar era salvar
os dedos, que certamente jamais voltariam a movimentar-se como antes.
Depois que a fumaça se dissipou com o vento quente da tarde, Mac
avistou Abdullah a uns cinco metros de distância, à sua esquerda. O
jordaniano estava ajoelhado, com o turbante desenrolado e uma expressão de
medo e fadiga no rosto. Em sua coxa direita havia um corte profundo que
sangrava. Ele apontou para um ponto distante e disse:
Eles ainda estão aqui.
Mac havia tido apenas um vislumbre da cavalaria fantasmagórica de
homens e animais assustadores no momento em que Abdullah tentou desviar
deles no ar. Agora, havia uma legião reunida a uns 30 metros além da pista,
soltando fumaça, fogo e enxofre pela boca e açoitando com suas caudas -
verdadeiras serpentes - as vítimas que não podiam vê-los.
Por onde passavam, os cavalos-leões deixavam corpos estendidos no
chão. Algumas vítimas apresentavam sintomas de convulsão antes de caírem
estateladas no chão. Outras se debatiam em chamas até que a morte lhes
trouxesse alívio. Ou assim elas pensavam, disse Mac consigo mesmo. Um
dos falsos dignitários fugiu correndo pela pista. Outros dois estavam
estirados mortos, perto do avião. Dali, eles poderiam ter matado Mac, se
continuassem a atirar.
Apesar da distância em que se encontrava, Mac podia ver que os cavalos
e seus cavaleiros eram figuras medonhas.
Apesar de flutuarem alguns centímetros acima do chão, eles galopavam,
trotavam, marchavam e empinavam o corpo como se fossem cavalos
comuns. Seus cavaleiros os instigavam, espalhando pânico entre as pessoas e
destruindo edifícios e veículos.
Leon Fortunato, que parecia completamente atordoado, rolara na direção
de Mac, agarrando-lhe o rosto com ambas as mãos. Mac quase gritou de dor.
Você salvou minha vida, Mac! - gritou Leon.
Protegeu-me com seu corpo! Você foi atingido?
Duas vezes - disse Mac, afastando as mãos de Leon e apontando para
os cavalos. - O que o senhor está vendo naquela direção?
Corpos amontoados - disse Leon, com os olhos semicerrados. - Fogo,
fumaça. E um cheiro medonho, igual ao que senti no avião. Argh!
Precisamos nos afastar do avião - disse Mac. As chamas saíam pelas
janelas.
O lindo Condor... - disse Leon. - O orgulho e a alegria de Sua
Excelência.
O senhor gostaria de arrastar o corpo de Clancy para tirá-lo do
caminho? - perguntou Mac.
Leon levantou-se com muito esforço, cambaleando, tentando equilibrarse.
Não - ele disse, agora com voz mais forte. - Deve estar faltando
sepulturas no mundo inteiro. Teríamos de cremá-lo. Vamos deixar que o
corpo dele se queime aqui.
Leon virou-se lentamente.
Pensei que tivéssemos morrido - ele disse. - O que aconteceu?
O senhor orou.
Como assim?
O senhor pediu a Deus que o ajudasse - disse Mac.
Eu me considero um homem religioso.
Tenho certeza que sim. Deus deve ter respondido.
Por que os homens pararam de atirar?
Mac estremeceu, desejando que eles tivessem parado de atirar muito
antes. Como podemos saber? Um deles correu. Os outros dois estão imóveis
até agora.
Leon e Mac seguraram Abdullah, um de cada lado, e caminharam
lentamente em direção ao terminal.
Para Rayford, foi um privilégio ter a oportunidade de ler uma mensagem
antes dos milhões de leitores do mundo inteiro. Tsion havia escrito o
seguinte:
Meus queridos irmãos e irmãs em Cristo:
Dirijo-me a vocês hoje com o coração pesaroso, o que não é nenhuma
novidade durante este período da História que estamos atravessando.
Embora os 144.000 evangelistas escolhidos por Deus estejam vendo milhões
de pessoas aceitando a Cristo, a religião mundial unificada continua a tornarse
cada vez mais poderosa e - por que não dizer -mais abominável. Preguem
a seguinte mensagem no alto das montanhas e nos vales, meus queridos: Há
um só Deus e um só Mediador entre Deus e o homem, o Homem Cristo
Jesus.
Os implacáveis gafanhotos demoníacos profetizados em Apocalipse 9
desapareceram há mais de um ano e meio, depois de terem torturado milhões
de pessoas. Porém, muitas delas que foram picadas durante o último mês
desse flagelo só chegaram ao fim de sua agonia três meses atrás.
Embora grande número de pessoas tenha-se convertido depois daquele
terrível julgamento, a maioria tornou-se ainda mais arredia. O líder da Fé
Mundial Enigma Babilônia deve ter visto os devotos de sua religião sofrendo
no mundo inteiro. Mas nós, os crentes em Cristo, os "dissidentes" - os
inimigos da tolerância e da inclusão -fomos poupados.
Nossos amados pregadores em Jerusalém, apesar da ferrenha oposição e
da perseguição que enfrentam, continuam a profetizar e ganhar almas para
Cristo naquela ex-cidade santa, agora comparável ao Egito e a Sodoma. Em
razão disto, temos motivos para ser agradecidos nestes tempos de aflição
crescente.
Vocês já estão sabendo que o sexto Julgamento das Trombetas, o
segundo ai (Apocalipse 9), começou. Aparentemente, eu tinha razão quando
achei que os 200 milhões de cavaleiros eram seres espirituais e não
materiais, mas estava errado ao considerar que eles seriam invisíveis.
Pessoas que conheço e em quem confio viram esses seres matarem por meio
de fogo, fumaça e enxofre, conforme as profecias bíblicas. Mesmo assim, os
incrédulos nos acusam de estar mentindo, vendo coisas que eles não
conseguem ver.
É importante que vocês saibam que o atual flagelo se desencadeou
quando foram soltos os quatro anjos que se encontravam amarrados junto ao
Rio Eufrates. Sabemos que eles são anjos caídos, porque não há outro trecho
na Bíblia que mencione que os anjos bons foram amarrados. Aparentemente,
os quatro foram amarrados porque estavam ansiosos para provocar
destruição sobre a Terra. Agora que foram soltos, eles estão livres para fazer
o que desejam. Na verdade, a Bíblia nos diz que eles estavam preparados
para atacar em hora, dia, mês e ano específicos.
É significativo saber que os quatro anjos, provavelmente amarrados
durante séculos, estavam junto ao Rio Eufrates. É o rio de maior destaque na
Bíblia. Banhava o Jardim do Éden. Era um marco de delimitação para Israel,
Egito e Pérsia, muitas vezes citado na Bíblia como símbolo dos inimigos de
Israel. Perto desse rio, o primeiro homem pecou, o primeiro assassinato foi
cometido, a primeira guerra eclodiu, foi construída a primeira torre para
desafiar a Deus, e foi edificada Babilônia. Foi na Babilônia que se originou a
idolatria, que se espalhou pelo mundo inteiro. Os filhos de Israel foram
exilados lá como escravos, e é lá que o pecado final do homem culminará.
Apocalipse 18 prediz que Babilônia será o centro do comércio, da
religião e do governo mundial, mas que ela cairá em ruínas, porque forte é o
Senhor Deus que a julgará.
A Bíblia menciona que o flagelo atual resultará no extermínio da terça
parte da população que restou após o Arrebatamento. Um simples cálculo
matemático nos leva a um resultado terrível. A quarta parte da população
que restou após o Arrebatamento já morreu em razão de pragas, guerra e
acidentes naturais. Sobraram, evidentemente, 75%. A terça parte de 75% é
25%, portanto a mortandade atual deixará apenas 50% das pessoas que não
foram arrebatadas.
Devo esclarecer que o que vou dizer a seguir não passa de especulação.
Depois de estudar os idiomas originais e os inúmeros comentários sobre esta
profecia, cheguei à seguinte conclusão: Deus continua tentando persuadir a
humanidade a chegar-se a Ele, sim, mas esta destruição de mais uma terça
parte dos incrédulos remanescentes pode ter outro propósito. Em sua
preparação para a batalha final entre o bem e o mal, é provável que Deus
esteja desistindo de vez daqueles incorrigíveis, pertencentes às forças do
mal, e que Ele, em sua onisciência, sabe que jamais se converterão.
A Bíblia prediz que os incrédulos sobreviventes se recusarão a
abandonar a maldade. Eles insistirão em continuar a adorar ídolos e
demônios e a participar de assassinatos, feitiçarias, imoralidades sexuais e
roubos. Até mesmo os noticiários de emissoras de propriedade da
Comunidade Global mencionam que o número de assassinatos e roubos está
em ascensão. A nova sociedade, tolerante em excesso, aplaude a adoração a
ídolos e demônios, bruxaria e sexo ilícito.
Lamentavelmente, este último julgamento antes da segunda metade da
Tribulação durará mais quatro meses até que o acordo entre a Comunidade
Global e a nação de Israel complete três anos e meio, o que coincidirá com o
fim do ministério das duas testemunhas. A seguir, virá o período em que os
crentes serão martirizados em número muito maior do que aqueles que estão
morrendo agora.
Muitos de vocês têm escrito perguntando-me por que um Deus de amor e
misericórdia impõe esses terríveis julgamentos sobre a Terra. Deus é mais do
que um Deus de amor e misericórdia. A Bíblia diz que Deus é amor, sim,
mas também diz que Ele é santo, santo, santo. Diz ainda que Ele é justo e
que manifestou seu amor oferecendo seu Filho para a nossa redenção. Mas,
se rejeitarmos essa dádiva, seremos submetidos ao julgamento de Deus.
Sei que centenas de milhares de leitores de minhas mensagens diárias
visitam este site não como crentes, mas em busca da verdade. Portanto, peço
permissão para me dirigir a você, que não se considera meu irmão ou irmã
em Cristo. Faço um apelo, como nunca fiz antes, para que você receba Jesus
Cristo como o dom de Deus para a salvação. Os pecados dos quais os
incrédulos obstinados não se arrependerão (ver acima) se alastrarão de
maneira incontrolável durante a última metade da Tribulação, à qual a Bíblia
dá o nome de Grande Tribulação.
Imaginem como será este mundo depois que metade de sua população
desaparecer. Se vocês acham que a situação atual é triste por termos perdido
milhões de pessoas, inclusive as crianças, no Arrebatamento - o que gerou
sérios problemas nos serviços públicos -, tentem visualizar a vida depois que
metade dos profissionais civis for morta. Bombeiros, policiais, operários,
executivos, professores, médicos, enfermeiros, cientistas... a lista é enorme.
Estamos caminhando para um período no qual nos ocuparemos o tempo todo
lutando para sobreviver.
Eu não gostaria de estar aqui na Terra sem saber que Deus está comigo.
Quero estar do lado do bem e não do mal, sabendo que, no final, seremos
vencedores. Orem neste momento. Digam a Deus que reconhecem seus
pecados e que necessitam de perdão e de um Salvador. Aceitem a Cristo hoje
e passem a fazer parte da grande família de Deus.
Cordialmente, Tsion Ben-Judá
ONZE
Mac e Leon ajudaram Abdullah a caminhar até o caótico terminal do
Aeroporto de Joanesburgo.
Rehoboth estava por trás deste atentado - disse Leon. - Ele próprio
me contou. Imaginou que Sua Excelência estivesse a bordo. Precisamos
buscar ajuda e readquirir a autoridade aqui sem colocar nossas vidas em
risco. Não é um pouco tarde para isso? - perguntou Mac. - O senhor não
poderia ter dito antes a ele que Carpathia não estava no avião?
Tínhamos motivos para deixar que o Sr. Ngumo acreditasse que Sua
Excelência estava a bordo. É assim que você deve referir-se a ele, capitão. O
potentado regional Rehoboth foi convidado, mas não sabíamos que ele era
um subversivo.
Acho que o senhor vai encontrar Ngumo e sua secretária mortos -
disse Mac, contando a Leon sobre o telefonema que ele atendeu.
É melhor encontrarmos Rehoboth morto - disse
Abdullah. - Ele não permitiria que saíssemos vivos daqui. Leon parou,
com o rosto pálido.
Quando conversei com Rehoboth, imaginei que ele estivesse no
palácio. Ele não viria para cá, viria?
Precisamos nos apressar - disse Mac, prestes a desmaiar. - Se
Rehoboth quiser nos matar, basta dar uma ordem a um destes guardas.
Os guardas, porém, estavam tão assustados quanto qualquer outra
pessoa, falando com dificuldade, tossindo, cuidando dos companheiros
feridos. Ouviam-se gritos por todo o terminal, onde havia corpos estendidos
no chão, malas espalhadas por todos os lados. Os balcões estavam vazios, e
os terminais, apagados.
Assim que eles entraram no terminal, Mac ouviu o zumbido de um jato
Super J. O modelo aprimorado de um caça da Gulfstream era preto,
reluzente e tinha uma aerodinâmica incrível - com grande autonomia de vôo
e amplo espaço interno. Foi a primeira aeronave que pousou em Joanesburgo
depois do Condor. Acima de seu prefixo, havia o desenho da bandeira
australiana e o lema Trabalho Honesto. Assim que o avião pousou na pista,
desceram o piloto e uma mulher. Ambos dirigiram-se apressados para o
terminal.
Ei! - gritou o homem em tom agudo, fazendo com que muitas pessoas
se virassem. - Alguém pediu socorro com crentes a bordo!
Ele era alto, loiro e sardento. Falava com um sotaque australiano tão
acentuado que Mac imaginou que pudesse ser um truque. A mulher era
quase tão alta quanto ele. Tinha cabelos escuros, espessos.
Mac e Abdullah entreolharam-se, e Fortunato voltou-se lentamente.
Fui eu - disse Mac, ao ver os selos na testa de ambos.
O australiano também viu o dele. - Eu estava desesperado. Pensei que
meu pedido pudesse persuadir alguém a descer aqui. Valeu?
Claro que sim, cara - disse o piloto, olhando firme para a testa de
Abdullah. - Somos crentes e não nos envergonhamos disso, mesmo que você
tenha usado um artifício para nos enganar. Pode me chamar de Dart. O
primeiro nome não é importante. Esta é Olivia, minha esposa.
Liv - ela disse. - E vocês estão precisando de cuidados médicos.
Quem é você? - perguntou Dart, dirigindo-se a Fortunato.
Sou o Supremo Comandante Leon For...
Foi o que imaginei - disse Dart. - Ainda é cedo para seu patrão
morrer, portanto não vou perguntar se ele estava a bordo daquela bola de
fogo ali.
Felizmente não - disse Fortunato.
Então o que aconteceu? Os cavaleiros pegaram vocês?
Oh, você é um deles? - perguntou Fortunato. - Você também
conseguiu vê-los?
Claro que sim.
Dart - disse Liv carinhosamente -, precisamos ajudá-los.
Sim, acho que é melhor - ele disse. - Mas eu não me importo de dizer
que me sinto como se estivesse ajudando o inimigo. Por mim, eu deixaria
que vocês morressem, mas Deus ainda vai alcançar vocês. Leiam o Livro.
Nós vencemos.
Fortunato virou-se para ele.
Você poderia ser preso por dirigir-se desrespeitosamente a...
A propósito, Sr. F, sei que você não vai se importar que eu o chame
de Sr. F, porque é assim que vou chamá-lo. Qual é o seu problema? Você
parece estar andando bem.
A lei exige que você me chame de Supre...
Eu vou lhe dizer uma coisa, Sr. F. Eu não estou mais debaixo de suas
leis. Eu respondo a Deus. Você não pode me fazer nada sem a permissão
dele, por isso aproveite a oportunidade que está tendo. Este homem aqui
transmitiu um pedido de socorro fingindo que havia crentes em perigo.
Minha esposa e eu ficamos intrigados, querendo saber por que havia crentes
a bordo do avião de propriedade do anticristo...
Anticristo?! Como você pode chamar Sua Excelência, o potentado
Nic... Você ainda não entendeu, F? Acho que ele é o anticristo, e você sabe
o que isso representa para você.
Não estudo essas bobagens, mas aconselho você a...
Eu não preciso de seu conselho, cara, mas posso conseguir
atendimento médico para vocês. Parece que seu maior problema não passa
de alguns rasgos na calça e uns poucos arranhões nas mãos. Estes homens
aqui é que estão necessitando de atendimento médico.
Francamente, eu...
Há um posto médico naquela ala ali atrás, e, com seu prestígio, você
deveria dar ordens para que alguém retirasse os feridos do meio das outras
vítimas.
Uma voz soou, vinda do sistema de aviso ao público.
"Atenção! Atenção, por favor! Supremo comandante da Comunidade
Global, Leon Fortunato, dirija-se, por favor, aos escritórios das Forças
Pacificadoras da CG na Ala B."
Depois que o comunicado foi repetido, Dart disse:
A Ala B fica à direita, logo depois da enfermaria, Sr. F. Se o senhor
quiser ir, vá. Nós podemos levar seus companheiros até o posto médico.
Eu devia mandar prendê-lo, seu...
Se esta for sua prioridade neste momento, vá em frente. Mas, se eu
fosse você, correria para um lugar seguro e deixaria que eu cuidasse destes
dois. Haverá muito tempo para você mandar alguém atrás de nós.
O sangue subiu à cabeça de Fortunato que, vermelho, parecia prestes a
explodir de raiva. Ele virou-se para Mac e disse:
Não há dúvida de que Sua Excelência conseguiu atendimento para
nós. O senhor deve ir na frente, Supremo Comandante - disse Mac. -
Descubra o que houve com Rehoboth, verifique com Carp..., com o
potentado.
Eu não confio nesse homem.
Ora, vamos, Sr. F - disse Dart. - Sou tão inofensivo quanto uma
pomba. Por mais que eu tenha vontade de matar dois funcionários seus,
prometo não fazer nada disso. Vou levá-los a um lugar onde possam ser
atendidos e seguirei meu caminho.
Dart afastou Fortunato de Abdullah com cuidado e passou a cabeça por
baixo do braço do jordaniano. Liv segurou Mac pelo cinto com uma das
mãos e seu cotovelo esquerdo com a outra, deixando Fortunato livre para
sair dali.
Você - disse Fortunato, enquanto se afastava com relutância - é uma
vergonha para a Comunidade Global.
Isso para nós é uma honra, não é mesmo, Liv?
Ora, Dart - ela disse.
Obrigado por não nos denunciar - disse Mac depois que Leon se
afastou.
Santos infiltrados! - disse Dart, agora com sotaque do sul dos Estados
Unidos, parecido com o de Mac. - Eu mal pude acreditar! Quase estraguei
tudo. Quando vi o selo na sua testa e na de seu companheiro, pensei que o
outro homem também fosse dos nossos. Mas assim que fixei o olhar nele,
percebi quem era e tive de fingir.
Você foi brilhante! - disse Mac apresentando-se e, em seguida,
apresentando Abdullah.
Você gostou dos nomes Dart e Olivia? - perguntou Dart.
Quase coloquei tudo a perder - disse Liv.
Você foi perfeita, querida - disse Dart. - O apelido Liv foi genial.
Eles se apresentaram como Dwayne e Trudy Tuttle, de Oklahoma.
Eu troco a bandeira e o lema naquele avião quase todos os dias.
Somos alemães, noruegueses, britânicos, qualquer coisa. Fazemos parte da
Cooperativa Internacional de Mercadorias. Já ouviu falar?
Sua língua comprida ainda vai acabar conosco - disse Trudy.
Nunca pensei que teria a chance de dizer na cara do Falso Profeta o
que eu pensava dele.
O Falso Profeta? - disse Mac. - Leon?
Ele diz que Carpathia o ressuscitou, não é mesmo? Ele adora o
sujeito, chama-o de Sua Excelência. Espere para ver se ele não vai virar o
Falso Profeta. Mas qual é a história de vocês? Vocês se infiltraram na CG ou
encontraram Jesus depois que estavam trabalhando lá?
Buck olhou-se no espelho. Mesmo depois de um ano, as cicatrizes em
seu rosto ainda estavam vermelhas e vivas. O cirurgião que ele encontrou em
uma clínica improvisada em Jerusalém talvez tivesse sido melhor do que ele
esperava, mas modificou sua fisionomia. Chloe apareceu detrás dele e pôs
Kenny em seus braços.
Pare de pensar nisto - ela disse.
Pensar no quê?
Não se faça de bobo. Você está achando que pode tirar vantagem de
sua nova aparência.
Claro! - disse Buck.
Ele se perguntou se esta não seria a maneira que Chloe usava para
prendê-lo em casa: pôr Kenny em seus braços. Eles já haviam passado por
situações semelhantes. Chloe se conformara com a idéia de que suas viagens
extravagantes ao redor do mundo haviam terminado. Por mais que gostasse
de aventuras, ela não queria expor um bebê ao perigo. Sua função na
Cooperativa de Mercadorias era de suma importância não apenas para o
Comando Tribulação, mas também para os milhões de novos crentes que em
breve não teriam condições de comprar ou vender.
Chloe dissera a Buck que gostaria que ele se contentasse em trabalhar
nos bastidores, contra-atacando os artigos do Semanário Comunidade Global
com sua revista virtual, A Verdade. Porém, em razão da nova tecnologia
proporcionada por David Hassid, Buck poderia fazer seu trabalho em
qualquer lugar do mundo sem ser rastreado. A ampliação do porão estava
quase terminada, e Buck sentia que sua presença era necessária em muitos
outros lugares.
O casal já havia discutido a responsabilidade que ele tinha em relação ao
bebê. Evidentemente, Kenny seria educado de maneira diferente da normal,
porque, quando chegasse à fase adulta, Cristo já teria estabelecido seu reino
aqui na Terra. Mesmo assim, era importante que a criança contasse com a
presença do pai e da mãe a maior parte do tempo possível. Buck havia
argumentado que cada ausência sua de duas ou três semanas seria
contrabalançada pelas 24 horas que ele passaria em casa quando não
estivesse viajando.
Trata-se de uma compensação - ele dissera. - Eu passaria o mesmo
número de horas com Kenny se estivesse trabalhando fora diariamente.
Buck levou o bebê até a cozinha, e Chloe o seguiu.
Você está novamente com aquele brilho nos olhos - ela disse. - Daqui
a alguns dias, ninguém vai conseguir segurá-lo aqui. Para onde você vai?
Você me conhece muito bem - ele disse. - A verdade é que Tsion
quer que um de nós retorne a Israel para ver como Chaim está. Tsion está
animado com os e-mails que eles têm trocado, mas acha que alguém precisa
conversar pessoalmente com Chaim antes que ele tome uma decisão.
Chloe acenou afirmativamente com a cabeça.
Eu gostaria de discordar, mas não posso. Papai não pode arriscar-se a
fazer essa viagem. Ele pôs na cabeça que precisa descobrir o paradeiro de
Hattie antes que ela revele nosso esconderijo ou seja assassinada por alguém.
Tsion não pode sair daqui de jeito nenhum. Não sei o que seria do mundo
sem suas mensagens. Sei que Deus tem o controle de todas as coisas e acho
que Ele poderia escolher outra pessoa para substituí-lo, como fez no caso de
Bruce, mas...
Eu sei. Precisamos contratar seguranças armados para impedir que
ele seja visto por alguém.
Quando você vai partir, Buck?
Chloe tinha um jeito todo especial de provocar uma resposta direta.
Tsion quer conversar com você sobre isto - disse Buck. Ela sorriu. -
Você parece uma criança, querendo que um amigo convença seus pais a lhe
dar permissão para fazer alguma coisa. Tsion deve achar que eu não
recusaria um pedido dele.
E você recusaria?
Ela deu um longo suspiro.
Não consigo recusar nenhum pedido seu. Mas se, por acaso, você
morrer, vou odiá-lo pelo resto da vida.
Pensei em fazer uma visita a Zeke depois de escurecer. Chloe
estendeu os braços para pegar Kenny.
Eu estava pensando nisso. Precisamos fazer algumas compras para o
bebê. Vou preparar uma lista também de outras coisas que estão em falta.
Fale com Leah. Ela disse que estamos necessitando de alguns mantimentos.
Naquela noite, Buck parou em um posto de gasolina semidestruído,
localizado onde um dia havia sido o centro da cidade de Des Plaines. Nesse
posto, os crentes abasteciam seus carros e compravam mantimentos e outros
gêneros de primeira necessidade. Zeke administrava o local com a ajuda de
Zeke Jr. - conhecido como Z -, um rapaz de cerca de 25 anos, cabelos
compridos e várias tatuagens no corpo. Antes, ele ganhava a vida fazendo
tatuagens, desenhando figuras na lataria dos carros e na carroceria de
caminhões, e pintando caras de monstros em camisetas. Chegou a pintar uma
paisagem na lateral de um caminhão de 18 rodas! Aquela profissão, é claro,
deixara de existir havia muito tempo.
Zeke perdera a esposa e duas filhas adolescentes em um incêndio
resultante dos desaparecimentos. Zeke e seu filho foram levados a Cristo por
intermédio de um motorista de caminhão. Eles freqüentavam agora uma
igreja que se reunia secretamente em Arlington Heights, tomando extremo
cuidado para não divulgar sua fé aos incrédulos e, assim, poder fornecer
mercadorias e serviços aos irmãos crentes. Z havia sido um jovem drogado,
cujo trabalho esporádico de fazer tatuagens e desenhar servia apenas para
financiar seu vício. Agora, ele era um artista emotivo e de fala mansa, que
falsificava carteiras de identidade para cristãos da localidade, a fim de que
pudessem sobreviver.
Zeke estava enchendo o tanque do Rover de Buck e observando
atentamente se havia por ali alguma pessoa estranha ou cliente sem o selo de
Deus na testa.
Preciso comprar algumas coisas - disse Buck. - E também utilizar os
serviços de Z.
Tudo bem - disse Zeke. - Ele está ali vendo TV e fazendo os estudos
pedidos por Ben-Judá. Deixe sua lista comigo. Eu levo seu carro até a
garagem e coloco tudo lá.
Quando Buck desceu para entrar no escritório do posto, um carro parou
atrás do dele.
Dá para encher o tanque? - gritou o homem. - Ou o combustível está
racionado hoje?
Vou ver o que posso fazer - disse Zeke. - Estou terminando um
serviço e já vou atender o senhor.
Buck compreendia muito bem a tensão diária de viver uma mentira
somente para manter-se vivo. Ele entrou no escritório, que, aos olhos de uma
pessoa qualquer, parecia um típico posto de gasolina ensebado, com
calendários pendurados na parede, pôsteres de carros, uma lista telefônica
manchada de óleo e sujeira por toda parte. Porém, o quadro de força que
havia no minúsculo banheiro era, na verdade, uma saída secreta, onde estava
escrito: Perigo. Alta Voltagem. Não Toque. Se alguém duvidasse e
encostasse o dedo, receberia um leve choque.
O perigo, no entanto, acabava ali. Se a pessoa soubesse o local certo para
empurrar, o quadro se abria para uma escada de madeira que conduzia ao
abrigo de Zeke, escavado debaixo do posto. Na parte dos fundos do abrigo,
Zeke pegaria todas as mercadorias da lista de Buck e as transportaria por
uma escada estreita até a garagem. Dali, as mercadorias seriam transferidas
para o Rover. Em uma sala úmida e desprovida de janelas, onde havia uma
enorme abertura para ventilação, estava o corpulento Z, usando botas pretas
estilo cowboy, jeans preto e colete preto, deixando à mostra os braços e o
peito. Conforme Zeke dissera, Z estava assistindo ao noticiário enquanto
rabiscava alguma coisa em um caderno espiral cheio de "orelhas", com o
laptop aberto diante de si.
Ei, Buck - disse Z, sem entusiasmo. Ele afastou suas coisas e
levantou-se lentamente. - E aí? Está precisando de mim?
Preciso de uma nova identidade.
Z abaixou-se atrás de um sofá verde, velho e embolorado, e abriu com
força a porta de um arquivo barulhento de duas gavetas, que estavam fora de
alinhamento. Ele percorreu as pastas com os dedos e retirou dez. Ao ver que
a porta não fechava direito, Z deu um pontapé nela. Os papéis ficaram presos
na gaveta emperrada, e Z sorriu timidamente para Buck.
Escolha a identidade que quiser - ele disse, espalhando as pastas no
sofá.
Buck sentou-se e examinou pasta por pasta sob uma lâmpada. O sistema
de arquivo de Z talvez fosse desorganizado, mas ele sabia tudo o que havia
lá. Cada pasta continha estatísticas importantes sobre homens brancos, mais
ou menos do porte e idade de Buck.
A quantidade está aumentando - disse Buck.
Z assentiu com a cabeça e voltou a fixar os olhos na TV. - Estes cavalos
fumacentos estão deixando corpos por todo canto. Você viu o povo
saqueando?
Ainda não. Deve ser terrível.
E mesmo. Mas é fácil. Tudo o que eu preciso fazer é pegar a carteira
de documentos antes que a CG se mande levando o corpo. Tenho fotografias
pra todos os gostos.
Escolhi este cara aqui - disse Buck, colocando uma pasta aberta em
cima da pilha e mostrando-a a Z.
Z atirou as outras pastas para trás do sofá, examinou a que estava diante
dele e preparou sua câmara de fotos instantâneas. Buck sentou-se diante de
um fundo azul e posou de frente e de perfil.
Pensei em você quando vi este cara - disse Z. - Carteira de motorista,
passaporte, certidão de cidadania, mais alguma coisa?
Sim, me faça uma identidade de membro da Fé Mundial Enigma
Babilônia. E que seja doador de órgãos. Por que não?
Sem problema. Você tem pressa?
Pode ser daqui a dois dias?
Tudo bem.
Quando Buck avistou Zeke e saiu pela garagem, ele sabia que Z já estava
trabalhando sob uma luz forte no outro cômodo. Da próxima vez que
aparecesse em público, Buck estaria portando velhos documentos de
identidade que pareciam autênticos, com sua foto no lugar da do falecido
Greg North.
Mac nunca recebera um atendimento médico tão eficiente. Embora
Joanesburgo estivesse aparentemente destroçada, com milhares de cidadãos
mortos ou agonizando, o prestígio de Fortunato abria todas as portas. As
Forças Pacificadoras Regionais da CG invadiram e tomaram conta do
palácio de Rehoboth a mando de Carpathia. Rehoboth foi encontrado morto
em seu escritório ao lado de mais de uma dúzia de funcionários.
Mac e Abdullah foram examinados e cuidados na enfermaria do
aeroporto e depois transportados para o palácio, onde seriam operados. Leon
lhes disse:
Vocês também vão ouvir falar que a família de Rehoboth foi morta
pela praga da fumaça e fogo, mas o cheiro do tiroteio da CG ainda
permanece no ar.
Enquanto Mac e Abdullah eram conduzidos ao palácio em cadeiras de
rodas, os corpos das várias famílias de Rehoboth estavam sendo
transportados para fora.
Os noticiários vão dizer que a tentativa de assassinato engendrada por
Rehoboth falhou - disse Leon -, mas nós vamos afirmar que a família dele
morreu em conseqüência da praga. Nossos inimigos conhecerão a verdade.
E Ngumo? - perguntou Mac.
Ora, está morto, claro. E sua secretária também, conforme você me
contou. Rehoboth idealizou e pôs seu plano em prática diretamente de seu
palácio. Com Ngumo eliminado e os assassinos/impostores de Rehoboth
colocados em seus devidos lugares, Rehoboth estava pronto para assumir o
lugar de Sua Excelência tão logo ele fosse assassinado.
Mac passou por uma cirurgia que durou horas, feita por um médico
especialista em mãos. Seu ombro foi reconstituído, e os médicos também
prenderam o couro cabeludo no lugar e cuidaram dos ferimentos na orelha.
Depois de várias horas sob efeito de anestesia, ele despertou, deitado do lado
esquerdo, de frente para o leito de Abdullah. O co-piloto estava com a perna
enfaixada e elevada. Abdullah apontou para uma vasilha de vidro na
mesinha de cabeceira de Mac, onde havia uma bala estilhaçada retirada de
seu ombro.
Causou um estrago enorme - disse Abdullah. - Mas não chegou a
ameaçar sua vida.
O ombro de Mac, muito bem enfaixado, ainda estava anestesiado. Sua
mão direita, enfaixada com uma gaze grossa, parecia um revólver apontando
para algum lugar.
Um médico da CG, nascido na índia, entrou na sala de recuperação.
Disseram que você estava acordado - ele falou. - As cirurgias nos três
lugares foram um sucesso. Os ferimentos em sua cabeça foram cuidados por
último, mas vão sarar primeiro. O ombro vai ficar com uma cicatriz grande.
Sobraram alguns fragmentos da bala que ainda precisam ser retirados, mas
não houve danos na estrutura do ombro. Alguns nervos ficarão insensíveis, e
sua mobilidade talvez fique um pouco restrita. Sua mão foi salva, e os dedos
também. Mas você sentirá dores durante várias semanas, e talvez sejam
necessárias algumas sessões de fisioterapia para reaprender a usar a mão. Os
dedos anular e médio perderam os movimentos. Nós os curvamos e eles vão
ficar nessa posição definitivamente. O dedo mínimo não terá nenhuma
serventia. É provável que você só possa usar o indicador, mas ainda é cedo
para fazer alguma promessa. O polegar não poderá ser dobrado.
Se eu puder segurar os controles só com um dedo, apertar botões e
mudar as chaves, vou voar novamente - disse Mac.
Concordo - disse o médico. - Você teve muita sorte. Fortunato
chegou para visitá-los.
Vocês dois vão ficar satisfeitos em saber que receberão a mais alta
condecoração como heróis concedida pela Comunidade Global - ele disse. -
O Círculo Dourado, prêmio pelo qual o potentado tem muito apreço, será
concedido a vocês por Sua Excelência como agradecimento por terem salvo
a minha vida. Mac e Abdullah não disseram nada.
Bem, sei que vocês estão satisfeitos e que, por modéstia, não se
sentem dignos dessa condecoração. Agora descansem. Vocês ficarão aqui
para se recuperarem o tempo que for necessário. Depois serão transportados
para a Nova Babilônia pelo seu ex-co-piloto no novo Global Um.
Quanto tempo levará para que ele fique pronto? -perguntou Mac,
sabendo que Fortunato não tinha idéia do tempo necessário para construir
um avião.
Ele será pintado amanhã - respondeu Fortunato. -Peter Segundo
concordou em oferecê-lo a Sua Excelência. Os assuntos de interesse do
governo não serão interrompidos por este episódio lamentável. O novo
potentado regional dos Estados Unidos da África - um homem leal escolhido
a dedo por Sua Excelência - será empossado dentro de uma semana.
Buck seguiu de volta para casa com o carro lotado de mantimentos, o
tanque abastecido de combustível e preocupado com Mac e Abdullah. O
rádio não parava de dar notícias sobre a rebelião e morte de Bindura
Rehoboth. A lista da CG mencionava a morte de um cozinheiro e de dois
ajudantes, mas os relatos sobre a destruição do Comunidade Global Um
deixaram Buck apreensivo. Ele ligou para casa e ficou satisfeito quando
Rayford lhe contou que havia sido informado por David que seus
companheiros sofreram graves ferimentos, mas estavam vivos.
Uma semana depois, David e Annie estavam no Departamento de
Pessoal que funcionava no palácio da Comunidade Global. O diretor tinha
em mãos o memorando de David.
Pelo que estou entendendo, Sr. Hassid, o ponto principal é que a Srta.
Christopher transgrediu uma das regras da CG e o senhor assume a
responsabilidade, é isso?
David assentiu com a cabeça.
Eu devia ter mencionado a ela alguns procedimentos básicos.
Talvez sim. Talvez não. Por que o chefe do departamento precisa
assumir a responsabilidade se o subordinado recebeu um manual de
procedimentos?
David se mexeu na cadeira.
Annie... isto é, a Srta. Christopher teve a atenção desviada porque um
de seus colegas de trabalho se apaixonou por ela.
O diretor olhou para ele por cima dos óculos.
É verdade - ele disse, mais afirmando que perguntando. - Mas isso
não é desculpa para o descumprimento de uma regra. Você está interessada
em levar adiante esse relacionamento, Srta. Christopher?
Muito.
E esse colega trabalha em seu departamento?
O senhor está olhando para ele - disse David.
Brilhante. Bem, vejamos... Na ficha da Srta. Christopher, constam
alguns atos de desobediência insignificantes, insubordinação e coisas do
gênero. Mas não vou rebaixá-la de cargo por causa desse tipo de
transgressão, desde que ela concorde em ser transferida para outro setor onde
possa ser mais útil.
Annie hesitou.
Para onde eu iria?
Para o setor administrativo. Perdemos mais de uma dúzia de analistas
nesta catástrofe. Seu perfil mostra que você faria um excelente trabalho ali.
Quais seriam minhas responsabilidades?
O diretor virou uma página e leu rapidamente:
Organograma do setor administrativo: Potentado, Supremo
Comandante, Diretor do Serviço de Inteligência, Diretor do Departamento de
Análise, Funcionário. Principais deveres e responsabilidades: examinar e
interpretar dados provenientes de fontes contrárias à Comunidade Global,
blá, blá, blá. Analista do Serviço de Inteligência, aceita ou não?
Aceito.
E tome cuidado para não se trancar em sua sala.
Assim que eles saíram do Departamento de Pessoal, David segurou a
mão de Annie. A liberdade que ele sentia era enorme! Em seguida, ele
avistou Leon Fortunato caminhando em direção ao elevador. Peter Segundo
seguia atrás dele falando em voz alta.
Eu não quero ter uma reunião pessoal com você, Leon. Fortunato
apertou o botão e virou-se para ele.
Para você, eu sou Supremo Comandante, Peter.
Então faça-me o favor de usar o meu...
Só se você me chamar pelo meu título - disse Leon.
Está bem, Comandante! Mas não vou permitir que Carpathia se
aproprie de meu...
Sua Excel...
Está bem! Mas ele precisa me dar uma explicação antes de se
apropriar de meu avião e...
Quando eles estavam entrando no elevador, Leon disse:
Se você pensa que o potentado da Comunidade Global vai lhe dar
explicações...
Quero ouvir esta conversa - disse David. - Depois eu ligo para você,
Annie.
Tome cuidado - ela disse.
David dirigiu-se apressado para seus aposentos, trancou a porta, ligou
seu computador e acionou o sistema de escuta clandestina instalado no
escritório de Fortunato. Peter Segundo estava no meio da frase:
... e não vou me sentar, porque não é com você que eu quero falar.
É o máximo que você vai conseguir.
Por que Sua Excelência se esquiva de falar comigo, Comandante?
Você proclamou ao mundo inteiro que ofereci meu avião, o que eu gostaria
muito de ter feito. Mas não fui consultado, não tive a oportunidade de...
Tudo o que você tem veio das mãos do potentado. Você acha que a
Fé Mundial Enigma Babilônia é independente da Comunidade Global? Acha
que deve satisfações a alguém que não seja Sua Excelência?
Eu exijo vê-lo neste instante!
Você exige? Você está me fazendo uma exigência? Sou um cão de
guarda, Sumo Pontífice. Seu acesso está vetado, não pode ter uma audiência
com Sua Excelência. Entendeu?
Eu juro, Leon, que você vai se arrepender de ter-me insultado desta
maneira.
Eu já lhe disse para não me chamar de...
Vou chamar você do jeito que eu quiser. Você tem esta autoridade
artificial não por ter feito algum ato louvável, mas porque domina a arte de
bajular o patrão. Eu não bajulo ninguém, e quero que ele me ouça.
Houve um longo silêncio.
Talvez você consiga - disse Leon. - Mas não hoje. David ouviu sons
de passos e a porta sendo batida com força. Em seguida, a voz de Leon.
Margaret?
Sim, senhor - foi a resposta pelo interfone.
Veja se o potentado tem um minuto para conversar comigo. Você
pode dizer a ele o nome da pessoa que saiu intempestivamente daqui.
Pois não, senhor.
David acionou o sistema de escuta clandestina instalado no escritório de
Carpathia e ouviu a conversa. Sua secretária transmitiu o recado de
Fortunato.
O que ele deseja? - perguntou Carpathia.
A secretária dele disse que ele acaba de ter uma reunião com o sumo
pontífice.
Diga a ele que pode vir.
DOZE
Mac teve condições de levantar-se e caminhar muito antes de Abdullah e
estava ansioso para retornar a Nova Babilônia. Por mais esforço que tivesse
feito, a fisioterapia não servira para aliviar suas dores. Ele deveria sentir-se
satisfeito por estar sendo mimado no palácio de Joanesburgo, mas seus
ferimentos não lhe davam trégua. Entre um analgésico e outro, seu corpo
parecia estar em chamas. As doses ministradas serviam apenas para aliviar
um pouco a dor. Ele não queria, de jeito nenhum, ficar dependente de
drogas.
Mac ficou aborrecido consigo mesmo por causa de duas gafes que ele
cometera. Avisara pelo ar que havia crentes a bordo do Global Um.
Felizmente, Dwayne Tuttle, de codinome "Dart", havia conseguido consertar
a situação. Mas, no avião, Mac havia passado seu celular a Leon, a última
pessoa no mundo que poderia ficar com seu telefone sigiloso.
Ele era quase duas vezes mais pesado do que um celular comum por
incluir muitos dispositivos de avançada tecnologia de segurança.
Aparentemente, Leon não dera atenção a esse fato, mas, e se alguém ligasse
para Mac enquanto o celular estivesse nas mãos daquele homem? Se essa
pessoa não reconhecesse a voz de Leon ou se a conexão não estivesse
perfeita, ela poderia comprometer o Comando Tribulação inteiro.
O que mais preocupava Mac era que nenhuma das duas gafes havia sido
provocada por pânico ou desespero, e sim por falta de fé. Ele acreditou
sinceramente que ninguém do avião sobreviveria ao atentado, mas que
diferença isso fazia?
Felizmente, ele havia sido prudente ao escolher seu novo co-piloto.
Abdullah o livrara das preocupações a respeito do telefone. Na primeira
noite que passou na sala de recuperação, Mac despertou assustado e acordou
Abdullah.
Leon está com o meu telefone - ele disse. - Se um dos nossos ligar
para mim, estamos perdidos.
Durma em paz, meu amigo - disse Abdullah. - Este seu companheiro
é um batedor de carteiras.
Como assim?
Enquanto você e Leon estavam me ajudando a entrar no terminal,
enfiei a mão no bolso dele e peguei seu telefone.
O telefone é pesado. Como ele não percebeu?
Ele estava assustado demais. Aproveitei a oportunidade. O telefone
está comigo.
Que horas são?
Abdullah consultou seu relógio.
Duas horas da madrugada.
Que horas são nos Estados Unidos?
Na Nova Babilônia, a diferença é de nove horas a mais. Aqui a
diferença deve ser de oito horas.
Dê-me o telefone.
Mac ligou para Rayford e lhe contou sobre os Tuttles, que partiram logo
após terem levado Mac e Abdullah até a enfermaria.
Eu não tive a chance de falar a eles sobre a nossa ligação com a
cooperativa - disse Mac -, mas, com certeza, sua filha já ouviu falar deles.
Rayford descobriu que Chloe conhecia as atividades dos Tuttles.
Eles estão cuidando de uma área enorme nos Mares do Sul para nós -
ela disse. - Talvez tenha sido um milagre eles estarem tão perto para ouvir o
pedido de socorro de Mac.
Foi Deus quem os enviou - disse Rayford. - Se você puder abrir mão
do trabalho dos dois, eu gostaria que eles me levassem à Europa.
Por que você não quer viajar pilotando o avião, papai?
Eu não quero voar sozinho e depois ter de me virar para passar
incógnito. Quero dividir o comando do avião com Dwayne. Podemos voar
com o Super J dele ou com o Gulfstream.
Você já sabe para onde vai?
Beauregard Hanson vai me dar a dica da próxima vez que aparecer
em Palwaukee. T vai usar um pretexto para segurá-lo lá, e eu vou ter de
esfregar algum dinheiro no nariz de Bo para ele começar a falar. Mas ele
ainda não sabe de nada...
Sentado diante de seu computador e com o fone de ouvido ligado, David
escutava, petrificado, a conversa entre Carpathia e Fortunato. - Leon, você
não precisa sentir-se obrigado a fazer mesuras todas as vezes que estiver
diante de mim. Em público, tudo bem, mas...
Peço mil perdões, Excelência, mas...
E, quando estamos a sós, você também tem a liberdade de dirigir-se a
mim de maneira informal. Temos um relacionamento de longa data e...
Oh, mas eu não poderia. Não agora. Não depois de tudo o que
presenciei e senti. O senhor deve entender, potentado, que eu não faço estas
coisas a não ser por sincera devoção. Apesar de me sentir extremamente
honrado pelo senhor me considerar um amigo a ponto de me chamar pelo
nome, perdoe-me mas não posso fazer o mesmo.
Está bem, Leon. Agora me fale sobre seu encontro com o homem que
seria nomeado rei.
David ouviu Fortunato relatar os fatos. Após ter ficado alguns momentos
em silêncio, Carpathia disse:
O Peter não sabe de nada, certo? Ele não faz idéia de que eu sabia de
sua aliança com Rehoboth. Ele acredita que pode separar-me de meus
potentados regionais e me vencer.
Tenho certeza de que ele pensa desta maneira, Excelência.
Que idiota! - disse Carpathia.
Devemos permitir que ele nos faça cair nas mãos de mais um ou dois
subversivos ou a hora dele já chegou?
David ouviu um movimento, como se Carpathia tivesse se levantado.
Sua voz estava mais longe, e David imaginou que ele estivesse andando de
um lado para o outro.
Meses atrás, eu quase perdi a paciência com você por ele não ter sido
eliminado - disse Carpathia. - Mas, no final das contas, foi melhor assim.
Além de ter-nos levado até Rehoboth, ele emitiu um recente comunicado que
foi muito esclarecedor e talvez possa ter relação com aqueles nossos dois
amigos.
A Dupla de Jerusalém?
Exatamente. Você gostou do nome, não?
Foi genial, senhor. Só que...
Eu pedi a ele que ordenasse a seus teólogos que vasculhassem todos
aqueles misteriosos manuscritos do passado, desde Nostradamus até os
escritos sagrados antigos, para saber se existe alguma menção a respeito da
vulnerabilidade daqueles dois. Sei que os seguidores de Ben-Judá acreditam
que eles são as duas testemunhas profetizadas nas Escrituras cristãs. Se, por
acaso, eles forem, Mathews me disse que ficarão vulneráveis daqui a quatro
meses. Eles próprios já disseram várias vezes que estão protegidos do perigo
até o tempo determinado.
Mas, senhor - choramingou Fortunato -, as mesmas pessoas que
dizem que esses homens são as duas testemunhas dizem também que o
senhor é o anticristo.
Eu sei, Leon. Nós dois sabemos que eu estou simplesmente
cumprindo minha missão.
Mas se existe um tempo determinado para eles, deve também existir
para o inimigo deles!
Leon! Pare e pense. Eu ajo como um anticristo?
Claro que não, Excelência!
Então, quem você acha que eu sou?
O senhor sabe muito bem que acredito, no fundo do coração, que o
senhor deve ser o próprio Cristo.
Eu não faria tal afirmação, meu fiel amigo. Pelo menos por enquanto.
Só quando ficar evidenciado ao mundo que tenho poderes divinos é que
poderei fazer essa afirmação.
Já divulguei amplamente a história de que o senhor me ressuscitou...
Fiquei agradecido e tenho certeza de que muitas pessoas acreditaram.
Mas sua ressurreição não foi testemunhada por ninguém, portanto a dúvida
persiste. Não fui capaz de conter os dois pregadores, e isso afetou minha
credibilidade. Porém, eu adoro uma divindade que será o deus acima de
todos os deuses, que se sentará acima dos céus, que se transformará em um
ser perfeito e eterno. Como posso falhar, se estou comprometido com ele?
Da mesma forma que eu estou comprometido com o senhor,
Excelência.
Pelo som, David imaginou que Carpathia havia voltado a sentar-se a sua
mesa, onde a fidelidade do microfone era melhor.
Vamos dar um tempo a Peter - ele disse. - Você não acha que a
maioria dos potentados já está perdendo a paciência com ele?
Sim, acho, senhor. Embora o potentado Rehoboth tenha me
enganado, acredito que quase todos os outros estão sendo sinceros. Além de
me garantirem que apóiam a eliminação de Peter, eles também manifestaram
o desejo de participar pessoalmente do atentado.
Leon, já trabalhei muito tempo com governadores para saber que a
palavra deles não vale nada, a menos que sejam confirmadas por ação.
Devemos permitir que Peter acredite que existem mais potentados regionais
desleais a mim. É claro que o objetivo dele é tomar o meu lugar. Rehoboth
teria sido o Fortunato dele, caso a tentativa de assassinato tivesse logrado
êxito. Certamente, Peter deve acreditar que conta com a confiança dos
outros. Vamos usar isso a nosso favor.
Darei minha total atenção a esse assunto, senhor. E mais uma vez
obrigado por ter-me cercado de proteção em Joanesburgo.
Não pense mais nisto. Quando os pilotos vão retornar para que
possamos condecorá-los?
Brevemente, senhor.
O povo adora ostentação, não?
Leon concordou em voz alta, mas Carpathia prosseguiu:
Em razão das recentes tragédias, não tivemos muitas oportunidades
de homenagear os cidadãos exemplares, os heróis.
Nossa força-tarefa está exaurida, Excelência, mas com criatividade
podemos aproveitar a oportunidade e transformar o retorno deles a Nova
Babilônia em um evento inigualável. David imaginou Carpathia falando
como se estivesse visualizando a cena.
Sim, sim - ele disse. - Gostei da idéia. Gostei muito! E veja se alguém
consegue descobrir qual é o tempo determinado da Dupla de Jerusalém. Os
seguidores de Ben-Judá dizem que o tempo determinado ocorrerá na metade
do período de nosso acordo com Israel. Quero saber a data exata.
O coração de David deu um salto quando ele ouviu o tom empolgado de
Carpathia. O potentado levantou a voz e começou a falar com mais rapidez.
Vamos caprichar, meu amigo! Vamos promover um evento
inigualável! Engane os dois. Pegue-os de surpresa. Dê uma trégua a eles até
o dia do evento. Deixe que tenham o número de admiradores que eles acham
que merecem. Tire da frente todos os empecilhos, Leon. Quero cobertura
mundial pela TV. Planeje um grande acontecimento. Diga que estarei
presente.
Sim - prosseguiu Carpathia -, estarei em Jerusalém, o coração do país
com o qual assinei um pacto solene. Comemoraremos o fato de estarmos no
meio do tratado de paz que foi assinado lá. Apresente os dignitários. Peter
deve estar presente com todos os seus trajes ridículos. Meu velho amigo
Rosenzweig deve ser um convidado de honra. Agiremos da mesma forma
que esses tais santos e renovaremos nossos compromissos. Vou dedicar-me
mais uma vez a proteger Israel! Os olhos do mundo inteiro estarão cravados
lá, e eu me responsabilizarei pessoalmente pelo fim dos pregadores. Os
cidadãos de Jerusalém vão adorar o fim das pragas, dos discursos
bombásticos, da seca, da fome, da água transformada em sangue! Tome nota
do que estou falando, Leon. Instigue os potentados para estimular Peter em
seu esquema contra mim. Faça com que os potentados o levem a acreditar
que estão do lado dele, que são unânimes na antipatia que sentem por mim.
Que eles querem Peter como chefe. Ele deve ir a Jerusalém acreditando que
pode contar com a lealdade de cada um dos potentados.
Farei o melhor que puder, senhor.
Temos apenas alguns meses pela frente. Este assunto deve merecer
prioridade. Reuniões confidenciais, de alto nível, sempre e onde quer que
sejam necessárias. Use todos os recursos. Aquele momento deverá ser o
nosso maior orgulho, uma apresentação perfeita. Será o fim da insurreição, o
fim da oposição, o fim da Fé Mundial Enigma Babilônia tentando usurpar
minha autoridade, o fim dos seguidores de Ben-Judá, sem pregadores em
Jerusalém para adorar.
Mas Ben-Judá ainda conta com uma enorme audiência...
Até ele desanimará quando ficar claro que existe um só poder na
Terra e que esse poder reside na Nova Babilônia. Convide-o! Convide seus
seguidores! Eles ficaram muito entusiasmados quando me constrangeram e
tentaram me matar lá, no ano passado. Convide-os a voltar e observe a
reação deles!
O senhor é brilhante, Excelência.
Se você gostou do que falei, Leon, pense nisto. Vai exigir o melhor
que você tem a oferecer. Comece fazendo confidencias a Peter de que as
coisas não andam bem entre nós.
Mas, Excelência, eu gosto muito...
Eu sei, Leon.
O sumo pontífice sabe disto. Não sei como poderei convencê-lo de
que minha lealdade absoluta de repente...
Claro! Não pode ser assim tão de repente. Deixe que ele lhe dê a
idéia! Com certeza, ele sempre encontra coisas negativas a meu respeito para
meter em sua cabeça, não é mesmo? Ele já me criticou?
Certamente, mas eu sempre defendo o senhor e...
Da próxima vez, hesite, Leon. Deixe que ele faça você ficar pensativo
pelo menos uma vez. Eu conheço Peter. Ele vai agarrar essa oportunidade.
Acredita que é capaz de convencer alguém sobre qualquer coisa. Que
petulância acreditar que dez potentados o admiram, quando sabemos, sem
sombra de dúvida, que a maioria deles quer matá-lo com as próprias mãos!
Você faria isso por mim, Leon?
Vou tentar.
Tenho muita confiança em você. Dentro de quatro meses,
consolidaremos todo o poder e autoridade e deixaremos a oposição
completamente confusa. Sinto uma grande energia só em pensar nisto!
Agora vá, meu amigo. Não hesite em pedir o que for necessário. Todos os
meus... nossos... recursos estão à sua disposição.
Obrigado, Excelência. Obrigado pelo privilégio de poder servi-lo.
Que bom ouvir isso de você - disse Carpathia. David sentiu dor de
cabeça por ter ficado ouvindo atentamente a conversa por muito tempo. Ele
estava prestes a desligar o computador quando escutou alguém entrar no
escritório de Carpathia. A secretária conversou com ele por alguns instantes.
Em seguida, ele pediu a ela para segurar todas as ligações e não permitir a
entrada de ninguém até segunda ordem. David ouviu a porta sendo fechada
e, logo a seguir, um clique, como se Carpathia a estivesse trancando. Ele
aguardou para saber se Carpathia faria uma ligação telefônica importante.
David ouviu um rangido da cadeira de Nicolae e, depois, um ruído como
se ela estivesse rodando no chão. Finalmente, o potentado começou a falar
em voz baixa:
Ó Lúcifer, filho da manhã! Eu tenho te adorado desde a infância. -
David estremeceu, com o coração aos pulos. Carpathia prosseguiu: - Como
sou grato pela criatividade que me inspiras, ó leão de glória, anjo de luz. Eu
te louvo por tuas idéias criativas que não param de me causar espanto. Tu me
deste as nações! Prometeste que subirei ao céu contigo, que exaltaremos
nossos tronos acima das estrelas de Deus. Confio em tua promessa de que
subirei acima das nuvens. Serei igual ao Altíssimo. Farei tudo o que me
propuseste para que eu possa reivindicar tuas promessas de que reinarei
sobre o universo a teu lado. Tu me escolheste e permitiste que eu fizesse a
terra tremer e enfraquecesse os reinos. Tua glória será a minha glória, e,
como tu, jamais morrerei. Aguardo ansiosamente o dia em que poderei
manifestar o teu poder e a tua majestade.
Rayford recebeu um telefonema na noite de sexta-feira.
Ele está aqui - disse T. - Contei a ele que alguém estava vindo para cá
a fim de fazer uma proposta interessante e muito lucrativa. Ele mordeu a
isca, pelo menos por enquanto, mas eu não o via desde que sua amiga sumiu.
Tenho quase certeza de que ele está esperando que eu toque no assunto.
Vou até aí. Não deixe que ele perca o interesse. Rayford sentou-se ao
lado de Leah e perguntou se ele podia esfregar um pouco do dinheiro dela do
nariz de Bo Hanson para ver se o rapaz concordava em passar-lhe algumas
informações sobre o paradeiro de Hattie Durham.
Bem - ela disse, com certo ar de superioridade -, faz dias que você
mal me dirige a palavra, não pergunta como estou, nem mesmo quer saber se
a lesão em minhas costelas melhorou. Agora vem atrás de mim, só porque
está precisando de alguma coisa...
Rayford não sabia o que dizer. Ele não gostou nada do tom de voz nem
da atitude dela, mas sentia-se culpado.
Tenho sido omisso - ele disse.
Arrisquei minha vida com você e doei o dinheiro de meu marido e
minhas economias de uma vida inteira ao Comando Tributação, e você me
trata como se eu fosse uma intrusa. É isso o que você chama de omissão?
Parece que cometi um ato imperdoável - ele disse.
Parece? Você diz isso como se eu estivesse achando que você não
tem uma desculpa para dar.
Rayford levantou-se.
Por favor - disse Leah -, não seja tão grosseiro a ponto de me deixar
aqui falando sozinha.
Existem maneiras mais fáceis de dizer não. Você não teria outra?
Eu não me neguei a lhe dar o dinheiro.
Você está me fazendo de bobo.
Eu adoro deixar você nervoso.
Que bom saber que você gosta de fazer isto.
Por favor, Rayford. Eu fiquei magoada por você me evitar, mas
entendo seu sofrimento. Você perdeu muitas pessoas queridas, inclusive
duas esposas no período de três anos. Não espero que se sinta confortável a
meu lado. Mas pensei que já havíamos esquecido nossas desavenças iniciais.
E o que passamos juntos, não conta?
Rayford voltou a sentar-se.
Eu não sei muita coisa sobre sua vida, Leah, mas esse assunto que
você abordou mexe muito comigo, inclusive quando me lembro do momento
em que encontrei o corpo de minha esposa no fundo do rio Tigre. Não quero
pensar e muito menos continuar a falar dessas coisas. Isto não é desculpa,
mas talvez você tenha levantado o assunto para me fazer lembrar do meu
mau comportamento.
Exatamente. Mas você é o responsável por esta casa, e eu preciso
fazer alguma coisa. Passe uma tarefa para mim, chefe. Estou pronta a
oferecer meus serviços como enfermeira, mas não quero trabalhar apenas
quando alguém está machucado ou doente. Tenho tentado ajudar Chloe a
cuidar do bebê e da cooperativa, mas ela é escrupulosa demais para me
pedir. Sou forçada a insistir com ela. Se você me encarregar disso, ela vai se
sentir mais à vontade.
Está bem, vou pensar no assunto.
Converse com ela.
Vou conversar.
O pessoal desta casa é tão politicamente correto que ninguém sequer
insinua que eu devo fazer alguma tarefa doméstica. Sou boa cozinheira e
gosto de tudo o que se refere a culinária. Planejar o cardápio, cozinhar e até
mesmo lavar a louça. Será que eu poderia cuidar da cozinha para que vocês
se concentrem naquilo que estão empenhados em fazer?
Você faria isso? Ajudaria muito.
Eu me sentiria útil. Esqueça o assunto do dinheiro. Você não
precisava me pedir. Eu lhe disse, desde o início, que ele estava sendo doado
à causa, e falei sério. Se as circunstâncias mudarem e eu for embora daqui
amanhã, não vou reivindicar um só centavo. Podemos esquecer o assunto?
Isso está muito além e acima...
Não precisa me agradecer. Colocamos em cima da mesa o que
possuímos, e nenhum de nós é mais importante que o outro. Talvez Tsion
seja. Quer dizer que você tem sido ríspida comigo só porque...?
Você mereceu. Devia ter demonstrado mais interesse por meus
ferimentos. Eu não perguntei sobre o seu joelho?
Várias vezes.
Não foi por cortesia. Fui responsável pelo machucado em seu joelho.
Eu não sabia que você não estava me vendo, mas, de qualquer maneira, eu
não devia ter parado na sua frente. Você é um homem extraordinário. Estava
machucado. Eu me preocupei. Perguntei. Você me deu uma resposta
machista e encerrou a conversa. Eu também estava machucada, e você foi o
responsável. Estava me seguindo perto demais, correndo mais rápido do que
devia.
Rayford sacudiu a cabeça.
Suas costelas estão melhorando?
Para dizer a verdade, estão melhorando muito lentamente. Devo ter
quebrado mais de uma costela. Sinto dores o tempo todo e, quando faço um
movimento brusco, tenho vontade de gritar.
Sinto muito. Espero que você melhore logo. Ela limitou-se a olhar
para ele.
Estou falando sério - ele disse.
Eu sei. Com tantos problemas para resolver, você não tem tempo para
preocupar-se com meus problemas.
Você está sendo bem tratada aqui?
Muito. Não tenho do que me queixar.
Sou a única ovelha negra?
Agora que consegui atrair sua atenção, você pensaria em algo para eu
fazer quando me recuperar totalmente? Sou ágil. Sou esperta. Corro riscos,
como fiz com vocês mais de uma vez no hospital. Não tenho família, não
tenho nada a perder. Se você precisar que eu vá a algum lugar, faça entregas,
retire mercadorias, me comunique com alguém, conte comigo para essas
tarefas corriqueiras. Concordo que quase coloquei tudo a perder diante da
CG naquela noite...
Você estava desistindo cedo demais, foi tudo. Mas se recuperou a
tempo e disfarçou muito bem.
Não se esqueça de tudo o que eu disse. As mulheres têm mais
facilidade que os homens de não ser reconhecidas. Basta tingir os cabelos e
mudar a maquiagem. A CG não vai deixar minha fotografia circulando por
muito tempo. Providencie uma carteira de identidade falsa para mim e me
arrume um trabalho.
Tudo tem sua hora certa. Por enquanto, estou muito animado por
você se prontificar a tomar conta da cozinha.
Eu achei que ia me arrepender de ter feito aquela proposta.
Rayford levantou-se. O dedo do pé e o joelho ainda estavam doloridos.
Chloe aproximou-se deles, vindo do quarto da frente.
Más notícias, papai. Tenho tentado falar com Nancy, a irmã de
Hattie. Eu queria que ela soubesse que temos certeza de que Hattie está viva.
Pois bem, eu a encontrei. O nome de Hattie apareceu em uma lista de
pessoas mortas por inalação de fumaça.
Rayford olhou para o chão.
Bem - ele disse, com ar de tristeza -, mais um motivo para eu
descobrir o paradeiro de Hattie.
Mac e Abdullah estavam programados para retornar a Nova Babilônia na
manhã de sexta-feira a bordo do novo Comunidade Global Um, conduzido
pelo ex-co-piloto de Mac. O nome do avião tomado de Peter II foi mudado
de II Um para Fênix 216. Leon Fortunato viria de Nova Babilônia para levar
os heróis feridos. Mac mal podia esperar para falar com David e Annie. Seria
necessário instalar um aparelho de escuta clandestina no novo avião, e
David tinha um assunto a tratar com ele que não podia ser mencionado por
telefone. E, quando o técnico de segurança em comunicações do líder
mundial não podia mencionar alguma coisa por telefone, era sinal de que se
tratava de assunto muito sério.
Pouco depois das 16 horas, enquanto arrumava sua mala, Mac recebeu
um telefonema de Rayford.
Estou seguindo para Palwaukee. Quero pressionar aquele sujeito de
quem já lhe falei, o tal de Bo. Em seguida, vou para a Europa e preciso de
algumas coisas. Albie ainda pode cooperar conosco?
Claro que sim. Do que você está precisando?
Oh!... ah!... prefiro falar diretamente com ele. Você tem o número do
telefone dele?
Não aqui comigo. Espero estar em casa hoje à noite. Você pode
esperar até lá?
Talvez. Você não pode pedir a David que localize o número para
mim? Está em meu computador. Algumas horas a mais vão fazer muita
diferença?
Acho que não.
Com sua nova aparência e documentos que pareciam autênticos, Buck
pegou um vôo comercial para Tel-Aviv. Ele espantou-se com o número
reduzido de vôos que havia. O flagelo do fogo, fumaça e enxofre continuava
a devastar a Terra, e tudo o que se referia à vida tinha sido afetado. O
Arrebatamento mudara a face da sociedade, e a vida jamais voltara a ser a
mesma desde o grande terremoto, mas Buck sabia que a situação iria piorar.
Praticamente não havia ninguém que não tivesse perdido um ente querido.
Foi difícil partir sem Chloe e o bebê. Ele estava vivendo com a família
havia mais de dez meses, desde o momento do nascimento de Kenny. Buck
não podia imaginar que ficaria tão ligado a seu filho e que sentiria tanta
saudade de segurá-lo no colo. Ele sabia o que significava estar longe de
Chloe, e esse sofrimento quase chegava a enlouquecê-lo. Parecia que com
Kenny a saudade seria maior ainda.
No avião, havia uma mulher asiática sentada algumas fileiras atrás dele
carregando um bebê no colo, talvez poucos meses mais novo que Kenny.
Buck lutou para não sair do lugar quando o menino começou a chorar
durante a decolagem. Assim que foi possível, ele dirigiu-se à mulher e
perguntou se ela falava inglês.
Um pouco - ela disse.
Qual é o nome do bebê?
Li - ela respondeu.
Oi, Li - ele disse. O bebê cravou os olhos nele. - Tem quantos meses?
Sete.
É um belo garoto.
Muito obrigada, senhor.
Será que eu poderia carregá-lo um pouco?
Como assim?
Buck estendeu os braços para pegar o bebê. - Posso? A mulher hesitou. -
Eu carrego.
Tudo bem - ele disse. - Compreendo. Eu não permitiria que um
estranho carregasse meu filho.
Você tem um filho pequeno?
Buck mostrou-lhe uma fotografia de Kenny. Ela murmurou alguma coisa
e mostrou-a a seu filho, que tentou segurá-la.
E um belo menino. Sente saudade dele?
Muita.
Ela fez um gesto para que Buck pegasse Li. Buck estendeu os braços, e
Li inclinou o corpo para a frente. Mas, assim que Buck o segurou, Li fez
uma careta e manteve os olhos fixos na mãe.
Ela não vai fugir - disse Buck ao bebê. - Mamãe está aqui.
Li, porém, começou a chorar, e a mãe voltou a segurá-lo. Buck estendeu
a mão à mulher, e ela a apertou timidamente.
Meu nome é Greg North - ele disse.
Muito prazer, Sr. Greg - ela disse, sem mencionar seu nome.
Mais tarde, depois de ter terminado sua refeição, Buck ficou emocionado
quando a jovem mãe lhe pediu ajuda. Ele a vira caminhando pelo corredor,
com Li no colo, até o bebê adormecer.
O senhor poderia carregá-lo enquanto eu como? - ela perguntou.
O bebê continuou dormindo nos braços de Buck durante quase 20
minutos, até a mãe voltar. Ele detestou ter de devolvê-lo.
Depois de descer em Tel-Aviv, Buck tentou localizar alguém que tivesse
o selo na testa. A única pessoa que ele viu foi um homem que estava sendo
interrogado. Buck resolveu não abordá-lo para não se complicar.
O relógio marcava nove horas da manhã em Israel quando Buck jogou a
sacola por cima dos ombros e saiu do terminal do Aeroporto Ben-Gurion, a
fim de ligar para a casa de Chaim Rosenzweig. A voz de uma jovem atendeu
em hebraico. Buck refletiu por alguns instantes.
Inglês, por favor - ele disse.
Residência do Dr. Rosenzweig - ela disse. - Posso ajudar?
Hannelore?
Sim - ela respondeu. - Por favor, quem é?
Eu vou dizer quem sou, mas você não pode pronunciar meu nome em
voz alta, entendeu?
Quem é, por favor?
Quero fazer uma surpresa a Chaim, tudo bem?
Quem?
Hannelore, é Buck Williams.
Buck! - ela murmurou entusiasmada. - Não há ninguém por perto.
Onde você está?
No Ben-Gurion.
Você pode vir até aqui? O doutor e Jacov vão ficar muito contentes!
Quero rever todos vocês.
Espere aí. Vou mandar Jacov buscar você.
Ele não pode dizer o meu nome, Hannelore. Se ele precisar falar
comigo, estou usando o nome de Greg North.
Greg North. Ele vai chegar aí logo, Buck... isto é, Greg. Não vou
contar nada ao Dr. Rosenzweig. Ele vai ficar tão...
Como vai Jonas?
Oh! Buck, sinto muito. Ele faleceu. Esperamos em Deus que esteja
no céu. Vamos lhe contar tudo depois.
TREZE
Rayford pegou a sacola com o dinheiro e subiu apressado a escada da
torre do Aeroporto de Palwaukee. Ao ver dois carros no estacionamento, ele
teve a certeza de que T conseguira ganhar tempo para que Bo Hanson não
saísse dali. Quando faltavam alguns degraus para chegar ao fim da escada, o
joelho de Rayford protestou, e ele terminou a subida mancando até a porta.
Rayford já havia estado várias vezes naquela torre e sabia que qualquer
pessoa que estivesse ali teria ouvido o som de seus passos. T estava sentado
a sua mesa e acenou-lhe para que entrasse. Bo, sentado em uma cadeira ao
lado da mesa, ergueu os olhos ao perceber que alguém estava entrando na
sala. Rayford nunca considerara Bo um rapaz muito inteligente, apesar de ter
tido uma criação privilegiada. Seus cabelos eram descoloridos, cortados à
escovinha e penteados com gel, e ele deu um longo suspiro, prendendo um
pouco a respiração. Rayford imaginou que ele quisesse exibir seus músculos.
A pose, porém, não serviu para disfarçar seu medo.
Faz um bocado de tempo que não nos vemos, Bo.
É verdade, Sr. Steeles.
Steele - corrigiu Rayford.
Sinto muito.
O que você anda fazendo, Bo?
Nada de muito importante. E você?
Recentemente perdi um amigo de quem eu gostava muito. Aliás,
perdi dois.
Rayford sentou-se, colocando a sacola perto dos pés.
Dois? - perguntou Bo.
Um deles era meu médico. Você o conheceu.
Ah! sim. Do que ele morreu?
De alguma coisa que ele pegou de Hattie.
Oh! Eu soube o que aconteceu com ela. Que pena.
O que você ouviu falar?
Saiu em todos os noticiários - disse Bo. - Desastre de avião. Acho que
foi na Espanha. Eu também perdi um amigo. Ernie morreu queimado um dia
desses na Califórnia.
Sinto muito.
Obrigado. Eu também sinto muito a perda de... Hattie.
Quanto ela lhe pagou, Bo? - inquiriu Rayford.
Pagou?
Para você ajudá-la a fugir daqui de avião, inventar uma história,
simular a morte dela.
Eu não sei do que você está falando.
Você aprovou o vôo. Suas iniciais estão na ficha. Você não pensou
em mudar o prefixo do avião. Embora o piloto não se tenha identificado, o
avião levou as autoridades até irmão Sam, em Baton Rouge.
Ele... eu... eu continuo sem saber do que você está falando.
Você se julga um homem de negócios, Bo?
Bo olhou para T. - Eu tenho uma parte neste aeroporto. Faço tudo
direitinho.
Cinco por cento - esclareceu T.
Bo parecia aflito.
Tenho outros negócios, outros interesses, outras preocupações.
O quê! - disse Rayford. - Suas palavras me impressionaram. Algumas
dessas outras coisas têm nome?
Têm - disse Bo. - Uma delas chama-se Não É da Sua Conta. Rayford
olhou de relance para T e voltou a concentrar-se em Bo, cujo peito estava
arfante. A pulsação em seu pescoço era visível.
Vou fingir que acredito, Bo. Não É da Sua Conta?
É isso mesmo, meu negócio é esse. Chama-se Não É da Sua Conta.
Entendeu? Ah! Não É da Sua Conta!
Entendi, Bo. Boa escolha. Seria por causa disso que você precisa
receber dinheiro de uma jovem que deseja desaparecer?
Eu já disse que não sei do que você está falando.
Não sabe mas negou.
Neguei o quê?
Que você pôs Hattie Durham no Quantum de seu irmão para ela fugir
daqui.
Eu nego isso.
Você nega?
Claro que sim. Não tive nada a ver com esse assunto.
Aconteceu, mas você não participou de nada?
Correto.
Então, agora você sabe do que estou falando.
Não sei. Só imagino. Eu nem sequer estava aqui.
Por que suas iniciais estão na ficha?
O cara da torre ligou para mim. Disse que um sujeito queria
reabastecer um Quantum. Eu concordei. Se era meu irmão, eu não sabia. Se
a passageira era Hattie, eu também não sabia. Eu já lhe disse. Eu não estava
aqui. Não coloquei ninguém dentro de nenhum avião.
Mas você tem uma excelente memória. Lembra-se de todos os
detalhes do vôo que aprovou na noite em que não esteve aqui.
Então, prove.
Provar o quê?
Prove o que você acabou de dizer. Rayford sacudiu a cabeça.
Você quer que eu prove que você tem boa memória?
Não sei. Você está zombando de mim ou coisa parecida, e até agora
eu não entendi.
Rayford inclinou-se para a frente e deu um tapa de leve na perna de Bo.
Vou dizer-lhe uma coisa, Bo. Também sou um homem de negócios.
Que tal se eu lhe disser que não tenho nada contra Hattie fugir para a Europa
ou se fingir de morta?
Bo encolheu os ombros.
Tudo bem.
Ela é uma mulher adulta, tem dinheiro, não precisa da autorização de
ninguém. Ela não me deve satisfações. É que eu me preocupo com ela.
Hattie não está bem. Não anda tomando decisões certas ultimamente, mas a
vida é dela, não é mesmo?
Bo assentiu solenemente com a cabeça.
Mas, entenda, eu preciso encontrá-la.
Não posso ajudar você.
Não fale assim. Preciso conversar com ela, dar uma notícia que ela
precisa ouvir pessoalmente. O que posso fazer, Bo? Como posso encontrála?
Sei lá! Eu já lhe disse.
Você me contou que é um homem de negócios e que faz tudo
direitinho. Quanto custa para você ser um homem de negócios, Bo? Isto é
suficiente? - perguntou Rayford, curvando-se e abrindo o zíper da sacola.
Bo inclinou-se para a frente e olhou dentro da sacola. Em seguida, olhou
para Rayford e, depois, para T.
Vamos - disse Rayford. - Pegue um dos maços. É dinheiro
verdadeiro. Pode pegar.
Bo pegou uma pilha amarrada de cédulas de 20 dólares e folheou-as com
o polegar.
Gostou? - perguntou Rayford.
Claro que gostei. Quanto você tem aqui?
Veja você mesmo.
Bo pegou a sacola e a escancarou, sem nenhum constrangimento.
Eu gostaria de ter um pouco deste dinheiro.
Uma quantia suficiente para você me contar o que preciso saber?
Bo continuava mexendo a sacola.
Não há nada melhor do que cheiro de dinheiro. O que você precisa
saber?
Quero voar para a Europa amanhã. Uma hora depois de pisar no chão
de lá, quero constatar que Hattie Durham está viva e com saúde. Você
conhece alguém que possa me ajudar a fazer isso?
Talvez.
Rayford pegou alguns maços da sacola e começou a colocá-los na mesa,
um de cada vez. Depois de colocar o terceiro maço, ele disse:
Isto é suficiente para você me passar as informações de que preciso?
Algumas.
Por exemplo?
França.
Cidade?
Mais um.
Rayford colocou outro maço na mesa.
Litoral.
Você é difícil de ser convencido. Norte ou sul?
Sim.
A cada pergunta, Rayford colocava mais um maço de dinheiro na mesa.
Finalmente, Bo mencionou o nome de uma cidade no Canal da Mancha:
Le Havre.
Você conseguiu ganhar um monte de dinheiro sem sair daqui - disse
Rayford -, mas as notas vão voltar para a sacola se eu não ficar sabendo qual
é o endereço exato, com quem ela está e o que poderia me causar surpresa.
Anote tudo. Vou deixar o dinheiro com T...
Ei, você está me passando para trás!
... e, quando eu encontrar Hattie, vou dizer a ele, e você receberá a
bolada. Mas você precisa me informar por escrito.
Já está escrito - disse Bo, tirando um papel da carteira. Tudo o que
Rayford precisava estava escrito à mão com letras miúdas. - Você vai me
deixar fora disso, não vai me complicar, certo?
Prometo - disse Rayford. - Agora vamos tratar da questão do silêncio.
Silêncio?
Você provou que não é muito bom nisto, certo?
Acho que não.
Eu também não sou.
Você disse que me deixaria fora disso.
Suponho que você não queira dizer o nome de quem está com Hattie
ou falar dela.
Exatamente.
Mas meu silêncio completo pode ser comprado por alguém.
Comprado por quem?
Pela CG, claro. De acordo com as leis da Comunidade Global,
fraudar uma companhia de seguros por ter simulado uma morte ou forçar
uma equipe de salvamento a fazer buscas sob falsas alegações é um delito
internacional Classe
X, considerado muito grave, punível com prisão perpétua. Como
cidadão, tenho o dever de relatar qualquer tipo de delito de meu
conhecimento.
Eu vou negar.
Tenho uma testemunha. - Rayford olhou para T, que tinha os olhos
fixos na mesa.
Você está do lado dele, Delanty? Você é um canalha. T disse: - Este
assunto é entre você e...
Esqueça - disse Bo. - Vou tomar minhas providências. Isto é uma
ex... extor..., uma chantagem.
Bo - disse Rayford -, pegue aquele telefone. É melhor você relatar
esta extorsão. Deixe bem claro qual é a chantagem que estou fazendo. Você
cometeu um delito grave e sabe disto.
Bo bufou e cruzou os braços.
Ah, você já fez a ligação? - perguntou Rayford. - Eu preciso relatar
um crime.
Você não teria coragem. Vive escondido.
Eles aceitam denúncias anônimas, não aceitam, T? - T não respondeu.
- Vamos descobrir. - Rayford pegou o fone e começou a apertar os botões.
Tudo bem! Desligue!
Quer dizer que voltamos a ser homens de negócios, Bo? Prontos para
negociar?
Sim!
Que tal facilitar as coisas para você? Que tal eu não cobrar de você
um dinheiro que você ainda não tem? Que tal?
Bo encolheu os ombros.
Por exemplo, você ainda não tem este dinheiro - disse Rayford,
colocando todo o dinheiro de volta na sacola de uma só vez.
Ótimo! Vou contar essa história a quem acho que devo contar, e você
jamais vai encontrar Hattie Durham.
Veja, Bo, já pensei nisto. Você não está raciocinando bem. Agora
quem dá as cartas sou eu. Seja lá qual for o motivo que levou Hattie a ir
embora daqui, você é um fugitivo internacional. Pode acreditar em mim.
Tenho vivido nessa situação, e você não vai querer passar por isso. - Rayford
estendeu a mão para Bo. -Foi um prazer negociar com você, Bo.
E Beauregard Hanson, de inteligência tacanha, apertou a mão de
Rayford.
Ei - ele disse, recolhendo a mão. - Não foi prazer nenhum negociar
com você, seu... seu idiota!
Bo saiu batendo a porta com força, desceu a escada com passos firmes,
bateu a porta da torre, bateu a porta do carro e saiu do estacionamento
queimando os pneus, atirando poeira e cascalho por todos os lados. Assim
que ele passou pelo portão, o carro parou por falta de combustível. Rayford
viu, do alto da torre, Bo acenando para pedir uma carona.
Jacov estacionou no meio-fio do Aeroporto Ben-Gurion e saltou do
Mercedes.
Greg! - ele exclamou exultante, abraçando Buck. Assim que eles
entraram no carro, ele disse: - Como você está, meu irmão?
Preocupado com Chaim. E ansioso para saber de todos vocês.
Hannelore lhe contou sobre Jonas?
Sim. O que aconteceu?
Antes, me conte uma coisa. Você viu os cavaleiros?
Não.
Ainda bem que você não os viu, pode acreditar em mim. Criaturas
medonhas. Eles andaram provocando estragos em nossa vizinhança enquanto
Jonas estava de guarda na cabina de vigia. Você conhece o local.
Claro.
Uma casa do outro lado da rua foi queimada e um homem que
passava de carro por lá ficou sufocado pela fumaça. Ele morreu ao volante, e
o carro colidiu com a cabina. Foi um choque muito grande para Chaim. Ele
não queria acreditar que a gente podia ver as criaturas. Ainda acha que
estamos mentindo, mas lamenta a morte de Jonas. Meu patrão não pára de
dizer: "Pensei que ele fosse um de vocês. Pensei que ele estaria protegido."
Agora, ele passou a estudar as mensagens do Dr. Ben-Judá diariamente,
chora o tempo todo, de dia e de noite, dizendo: "Nada disso é verdade. É
tudo mentira, não é? Tudo mentira." E tem mais, Buck. Ele tem feito coisas
estranhas. Sabemos que ele é idoso e excêntrico, apesar de continuar a ser
um homem muito inteligente. Ele comprou uma cadeira de rodas.
Motorizada. Muito cara.
Ele está precisando de uma cadeira de rodas?
Não! Ele já se recuperou das ferroadas dos gafanhotos. Agora, sente
muito medo das pragas atuais e parece estar possuído por um espírito
maligno. Fica sentado perto da janela, olhando a fumaça. Não sai mais de
casa. Passa a maior parte do tempo em sua oficina. Você se lembra do local?
Sim. E a cadeira? Para que serve?
Ele anda pela casa toda de cadeira de rodas. Quando se cansa de ficar
no pavimento inferior, ele pede a minha ajuda e a de um criado, e temos de
transportá-lo para o pavimento superior, e vice-versa. É muito pesado.
Qual é o motivo de tudo isso?
Parece que ele está treinando a andar nela, Buck. A princípio, ele teve
um pouco de dificuldade, estava sempre dando trombada nos móveis. Não
sabia como rodar para trás, virar. Quando a cadeira enrascava em algum
lugar, ficava zangado e nos chamava para ajudá-lo a sair dali. Agora ele já
está craque em lidar com a cadeira. Sabe ir para a frente e para trás. Passa
por espaços estreitos, dá meia-volta em lugares apertados. Aprendeu a se
virar sozinho em qualquer pavimento da casa. Acho que ele se diverte com
isso. O que ele faz na oficina, Jacov?
Ninguém sabe. Ele se tranca lá durante horas, e nós ouvimos o som
de lima desbastando alguma coisa.
Metal?
Isso mesmo! Nós vemos minúsculas peças limadas, mas não
chegamos a ver o objeto inteiro. Ele nunca teve habilidade com as mãos. É
um homem inteligente, criativo, analítico, mas não costumava passar horas
fazendo trabalhos manuais. Ele ainda lê assuntos sobre botânica e escreve
para periódicos especializados. E está estudando a Bíblia.
Eles já estavam chegando à rua onde Chaim morava, e Buck olhou para
Jacov com ar de incredulidade.
Você está falando sério?
Claro! Ele compara os textos da Bíblia com os ensinamentos de
Tsion. Ele e Tsion têm trocado correspondência.
Eu sei. É por isso que estou aqui. Tsion está muito preocupado com
Chaim. Acredita que ele está perto de aceitar a verdade.
Eu também pensei, Buck. Nós ficamos ao lado dele depois que vocês
partiram. Sempre que ele vê os telejornais, fica muito desapontado com
Carpathia. Acha que foi traído, que Israel foi traído. Ele não consegue falar
com Nicolae, é sempre barrado pelo comandante.
Fortunato.
Sim. É um problema sério. Você vai se surpreender ao ver como ele
envelheceu, Buck, mas sua visita vai melhorar seu estado de ânimo.
Há mais alguma coisa que você queira me contar?
Que eu me lembre, não. Ah! sim. Não mencione a ele a palavra
derrame.
Derrame?
Você sabe, quando o corpo...
Eu sei o que é, Jacov. Por que não posso mencionar essa palavra
diante dele?
Parece que ele está obcecado por esse assunto.
Derrame... - Buck deixou a frase no ar. - E por quê?
Não sabemos, Buck. Nós desistimos de tentar compreendê-lo. Um
parente dele sofreu um derrame, e agora ele fica olhando para as fotografias
desse homem. Meu patrão mudou muito. É uma pena. Ele deve estar com
medo de sofrer um derrame também. Ele nunca foi assim. Você sabe.
Os edifícios que compunham o palácio da Comunidade Global passaram
a ser um local deprimente. Cerca de 15% dos funcionários tinham sido
mortos por fumaça, fogo ou enxofre. Carpathia lançou publicamente a culpa
em Tsion Ben-Judá. Os noticiários transmitiam as alfinetadas proferidas pelo
potentado:
"Aquele homem tentou me matar diante de milhares de testemunhas em
Jerusalém, no Estádio Teddy Kollek, há mais de um ano. Ele está
mancomunado com aqueles dois sujeitos radicais que vomitam seu ódio
diante do Muro das Lamentações e se vangloriam de ter envenenado a água
potável. Seria um despropósito acreditar que essa seita poderia provocar uma
guerra bacteriológica no restante do mundo? Certamente, essa gente já
desenvolveu algum antídoto, porque até agora ninguém ouviu falar que
algum deles tenha sido vítima. Ao contrário, inventaram uma história que
nenhum homem ou mulher com o mínimo de raciocínio pode engolir.
Querem nos fazer acreditar que nossos parentes e amigos estão sendo mortos
por um bando de cavaleiros gigantescos montados em cavalos flutuantes,
cuja metade do corpo é cavalo e a outra leão, que expelem fogo pela boca
como se fossem dragões. É claro que os crentes, os santos, os que se
consideram melhores do que todos nós, podem enxergar essas criaturas
monstruosas. Dizem que nós, os mal-informados - na verdade, os nãovacinados
-, é que somos cegos e vulneráveis. Os seguidores de Ben-Judá
não têm condições de nos persuadir com seu exclusivismo, intolerância,
críticas exacerbadas e odiosas. É por isso que optaram por nos matar!"
O número de funcionários do departamento de David estava sendo
lentamente reduzido. Os sobreviventes, assustados demais para sair à rua,
apesar de não terem segurança nem mesmo dentro de casa, trabalhavam em
turnos dobrados e andavam aterrorizados.
A alegria que David e Annie sentiam por viver essa nova fase de seu
relacionamento foi ofuscada pelo sofrimento de tantas pessoas. Aqueles que
os conheciam, que poderiam ter ficado felizes com a nova situação deles,
passaram a considerar o namoro como um fato trivial. Por maior que fosse o
amor entre David e Annie, eles não podiam contestar esse ponto. As pessoas
estavam morrendo e indo para o inferno. David sentia-se tão triste que
pensou seriamente na possibilidade de fugir do palácio com Annie para
evangelizar o povo antes que fosse tarde demais.
Annie ajudou-o a refletir mais uma vez sobre a posição privilegiada que
ele ocupava. Certa noite, eles se sentaram de mãos dadas diante do
computador na sala de David. Um simples toque na letra Y permitiu-lhes
ouvir a conversa entre Leon e Peter II no escritório do sumo pontífice
localizado no Palácio da Fé.
A era de Carpathia já terminou, Leon. Você deve parar de reagir
todas as vezes que deixo de usar um desses títulos ridículos que vocês dois
inventaram.
Mas você insiste em ser chamado de...
Eu conquistei meu título, Leon. Sou um homem de Deus. Dirijo a
maior igreja que já existiu na História. Milhões de pessoas ao redor do
mundo prestam homenagem à minha • liderança espiritual. Quanto tempo
ainda demorará para que eu também passe a liderá-los politicamente? Os
judeus religiosos e os fundamentalistas cristãos são apenas facções que não
aceitam a Fé Mundial Enigma Babilônia.
Facções? Pontífice, pelos nossos cálculos, um bilhão de pessoas está
acessando o site de Ben-Judá todos os dias.
Isso não significa nada. Sou uma delas. Quantas, porém, são
seguidoras dele? Eu não sou, mas preciso me manter atualizado a respeito
dessas bobagens. Tenho sido paciente com eles, aceitando suas
excentricidades e dissidências em nome da tolerância, mas esse período está
chegando ao fim. Pedi a Carpathia que torne ilegal a prática de qualquer
religião que não se enquadre na Fé Mundial Única. Em breve, vou conversar
com Carpathia a esse respeito e pedir que ele tome uma providência. Você
não acha que ele deseja passar para a História por ter-se oposto à figura
religiosa mais amada de todos os tempos? Meu pessoal espera que eu me
manifeste rapidamente, tome uma atitude definitiva contra esses apóstatas
intolerantes. Mas você acredita que Carpathia é um deus.
Sim, acredito.
Digno de ser adorado.
Claro, pontífice.
Por que, então, esse tal de homem-deus não pode fazer nada contra
esses dois pregadores? Eles o estão expondo ao ridículo.
Sua Excelência negociou com eles e...
E tudo ficou por isso mesmo. Ele disse que defendeu o fim da
barganha, recusando-se a perseguir os crentes se essas tais testemunhas
permitissem que os israelenses bebessem água em vez de sangue! Bem,
talvez eles estejam bebendo água pura, mas estão morrendo sufocados!
Quem passou por bobo, Leon? Nenhuma resposta.
Você não pode responder a esta pergunta, não, Leon? Não pode
admitir que seu patrão-deus é incapaz de fazer a coisa certa. Você mesmo
não toleraria uma insolência dessas partindo de um de seus subordinados.
Mas fique tranqüilo. Não sei quem são esses dois malucos, nem de onde vêm
ou se têm poderes mágicos. Mas eles não estão acima da lei. Estão sujeitos
às leis da Comunidade Global, e, se Leon Fortunato fosse potentado, esse
problema já teria sido resolvido há muito tempo. Estou certo? Hein, Leon?
Você faria o mesmo que eu, não faria? Já teria eliminado aqueles dois.
Nenhuma resposta.
Assim que eu fizer isso, Leon, você vai ficar do meu lado, vai me
ouvir? Se desde agora sou amado e reverenciado pelo povo, imagine só
como ficará minha imagem depois que eu acabar com esses traficantes de
pragas! Admita, Leon. Nicolae está perdendo tempo. Ele está esperando o
quê? É preciso ter coragem. É preciso agir com diplomacia. Ele não pode
fazer nada. Defenda-o, Leon! Você não pode, não é verdade? Não pode.
Tenho de me apressar para atender a um outro compromisso,
pontífice, mas devo dizer que, quando o ouço falar com tanta veemência,
chego a desejar o retorno daquele tipo de liderança.
Há potentados regionais que concordam com você, Leon.
Bem, para ser sincero, pontífice, um homem em minha posição teria
de ser cego e surdo para não ver quanto os potentados o veneram.
Eu também não sou cego, Leon. Gostei de saber que você reconhece
minhas qualidades. Chego até a pensar que eles apoiariam minha liderança
em outras áreas fora do âmbito espiritual.
QUATORZE
Os novos computadores foram instalados, e os funcionários de David
Hassid, agora em número reduzido, estavam trabalhando arduamente.
Cérebros jovens e inteligentes combinados com a mais moderna tecnologia,
gerada e analisada pelos computadores, tentavam descobrir a origem das
transmissões de Tsion Ben-Judá e Cameron Williams.
Ben-Judá tornara-se o nome mais conhecido do mundo, com exceção de
Carpathia. Ele transmitia ânimo, exortação, sermões, ensinamentos bíblicos
e até mesmo explicações sobre idiomas e palavras, baseado em seus estudos
de uma vida inteira.
Buck, por outro lado, transmitia uma revista virtual semanal chamada A
Verdade. Ele também tinha um grande número de admiradores que se
lembravam do tempo em que ele recebeu o prêmio de articulista mais jovem
do Semanário Global. Tornou-se editor da revista depois que Carpathia se
apoderou de todos os meios de comunicação - impressos e eletrônicos - e o
nome do Semanário Global foi mudado para Semanário Comunidade
Global. Quando os seus verdadeiros motivos passaram a ser conhecidos e
Buck se converteu a Cristo, ele tornou-se um fugitivo. Por ter uma ligação
com Hattie Durham, ex-amante de Carpathia, e com Ben-Judá, ele teve de
viver escondido e viajar incógnito.
Buck insistia com seus leitores: "Tenham sempre em mãos um exemplar
do Semanário Comunidade Global, o mais moderno periódico de notícias já
criado. No dia anterior de cada edição, visitem a página de A Verdade e
conheçam a verdadeira história que existe por trás da propaganda que o
governo nos tem impingido."
David Hassid adorava ouvir a reação do pessoal do palácio diante dos
ataques semanais de Buck ao Semanário Comunidade Global. A revista A
Verdade fazia jus a seu nome, e todos sabiam disso. David desenvolvera um
programa que lhe permitia monitorar todos os computadores do gigantesco
palácio. Suas estatísticas revelavam que mais de 90% dos funcionários da
CG visitavam semanalmente a revista virtual de Buck, a segunda mais
popular, perdendo apenas para os sites que abordavam assuntos
pornográficos e psíquicos.
O uso de enormes antenas parabólicas conectadas a satélites e de
tecnologia de microondas tornava teoricamente possível rastrear a origem de
qualquer transmissão cibernética. A maioria dos operadores clandestinos
mudava constantemente de lugar ou instalava programas de proteção contra
rastreamentos, o que dificultava muito a localização. Além de ter ajudado a
montar o protocolo de transmissão para o Comando Tribulação sediado nos
Estados Unidos, David tomou uma dupla precaução, instalando um
dispositivo para provocar falhas nos computadores de seu departamento.
O complicador era puramente matemático. O segredo para traçar
coordenadas é medir os ângulos e calcular as distâncias entre vários pontos.
No papel, esses cálculos levariam horas para ser feitos. Em uma calculadora,
menos tempo. Mas, em um computador, os resultados eram praticamente
instantâneos. David implantou aquilo que ele chamava de multiplicador
flutuante. Em termos leigos, todas as vezes que o computador fosse acionado
para fazer um cálculo, um componente escolhido ao acaso invertia os dígitos
na terceira, quarta ou quinta etapa. Nem mesmo David sabia que etapa seria
selecionada, e muito menos que dígitos. Quando o cálculo fosse repetido, o
erro seria duplicado três vezes seguidas; portanto, de nada adiantaria checar
o computador sem ter outra fonte de comparação.
Se alguém levantasse alguma suspeita e eles resolvessem checar o
computador usando uma calculadora não-contaminada, o computador
ocultaria a falha e forneceria uma leitura correta. Assim que o técnico se
convencesse de que poderia ter havido um erro humano ou um defeito
temporário na operação anterior, ele passaria para o cálculo seguinte e,
provavelmente, só perceberia horas, ou dias depois, que o computador havia
voltado a cometer o mesmo erro de antes.
David imaginava que na época em que as discrepâncias apresentadas nos
computadores fossem descobertas e se tornassem um problema sério, o
projeto estaria tão obsoleto que seria descartado como sucata. Enquanto esse
dia não chegasse, os computadores usados para transmitir os ensinamentos
de Tsion e a revista de Buck continuariam programados para mudar seus
sinais aleatoriamente, modificando, entre um segundo e outro, 9 trilhões de
combinações separadas de atalhos.
Sob o pretexto de localizar a origem das transmissões de Buck, os
técnicos do departamento de David passavam grande parte do tempo lendo
atentamente a revista virtual de Buck. Ficou claro para todos que Williams
obtinha informações de dentro do palácio, mas ninguém sabia de onde elas
partiam. David tinha conhecimento de que Buck usava dezenas de contatos,
inclusive o próprio David, mas Buck era muito esperto e sempre dava um
jeito para proteger seus informantes.
A última edição do Semanário Comunidade Global relatou a história do
fracassado atentado a Carpathia, promovida pelo potentado regional
Rehoboth. Os redatores da revista fingiram ser totalmente imparciais,
revelando que o atentado havia sido um choque ao regime de Carpathia.
"Homem de caráter, honesto e sincero tenta discutir diplomaticamente as
diferenças entre ele e seus comandados", iniciava o editorial.
Mwangati Ngumo, de Botsuana, demonstrou ser um homem honrado
quando insistiu há mais de três anos que Nicolae Carpathia o substituísse
como secretário-geral da Organização das Nações Unidas. Aquele gesto
altruísta e de grande visão resultou na enorme Comunidade Global que
desfrutamos hoje, um mundo dividido em dez regiões iguais, cada uma
governada por um subpotentado.
Sua Excelência pediu ao supremo comandante Leon Fortunato que
visitasse o ilustre Sr. Ngumo para tentar persuadi-lo a permitir que o
potentado reconstruísse Botsuana. Ngumo, o grande estadista africano, havia
insistido em que sua nação aguardasse até que todos os países mais pobres
recebessem ajuda. O Sr. Ngumo foi tão generoso a ponto de permitir que a
reunião, programada para realizar-se em Gaborone, fosse transferida para
Joanesburgo, porque o aeroporto da capital de Botsuana ainda não tinha
condições de acomodar a enorme aeronave da CG.
Quando tomou conhecimento dessa reunião, o potentado Rehoboth, dos
Estados Unidos da África, proporcionou todas as condições para a reunião,
oferecendo-se, inclusive, para participar dela em prol da diplomacia. A
Comunidade Global recusou polidamente essa oferta, uma vez que o assunto
a ser tratado era mais de natureza pessoal que política. O potentado
Rehoboth recebeu a promessa de que teria um encontro pessoal com Sua
Excelência.
Deve ter havido um mal-entendido da parte de Rehoboth, porque ele
supôs que o potentado Carpathia participaria da reunião com o Sr. Ngumo.
Embora a CG desconhecesse qualquer reação de inveja ou raiva pelo fato de
Rehoboth ter sido excluído da reunião, o potentado regional zangou-se a
ponto de responder de maneira sanguinária. Deu ordens para assassinar
Ngumo e seus assessores, substituiu-os por impostores e entrou no
Comunidade Global Um (o Condor 216) para assassinar Sua Excelência.
Apesar de seus capangas terem conseguido destruir a aeronave e matar
quatro funcionários nossos, os gestos heróicos do piloto e do co-piloto -
Capitão Montgomery (Mac) McCullum e Sr. Abdullah Smith - salvaram a
vida do supremo comandante. As Forças Pacificadoras da Comunidade
Global reagiram de imediato, o que resultou na morte dos assassinos.
Fotografias da imponente comemoração em honra ao piloto e co-piloto
ilustravam o artigo. Seis dias depois, A Verdade esmiuçou a história. Buck
descreveu os fatos dentro de seu estilo jovial:
A Comunidade Global não quer que os cidadãos tomem conhecimento
de que o relacionamento entre Carpathia e Ngumo tinha fracassado havia
muito tempo. Ngumo não foi assim tão magnânimo como eles nos levam a
crer. Ele deixou seu cargo na ONU sob forte pressão, acreditando que seria
nomeado um dos dez potentados regionais e que Botsuana receberia
autorização para usar a fórmula fertilizante descoberta em Israel, da qual
Carpathia tem se aproveitado para negociar com muitos outros países.
Ngumo, que quase chegou a ser endeusado, tornou-se um pária em seu
país por ter sido vergonhosamente passado para trás pela Comunidade
Global. A fórmula nunca lhe foi entregue. A reconstrução de Botsuana foi
esquecida. Ngumo viu sua tão sonhada posição de potentado ser concedida a
seu arqui-rival, o déspota Rehoboth - que saqueou a própria terra natal, o
Sudão, para favorecer suas inúmeras mulheres e descendentes,
transformando-os em multimilionários. Esse homem tornou-se tão impopular
no Sudão que desistiu de instalar o opulento palácio regional da CG em
Cartum, instalando-o em Joanesburgo, um local impróprio por ser tão
descentralizado quanto a Cidade do Cabo.
Sabendo que Rehoboth e Ngumo eram inimigos ferrenhos, a CG
programou deliberadamente uma reunião de alto nível no território de
Rehoboth, a bordo do CG Um. Rehoboth imaginou que Carpathia estivesse a
bordo e vulnerável ao ataque, porque Ngumo também achava que ele
estivesse a bordo. Essa armação para insultar Ngumo também enganou
Rehoboth, que havia sido convidado para a reunião, o que seria mais uma
surpreendente afronta a Ngumo.
O pessoal que escapou com vida foi mais afortunado que heróico. As
Forças Pacificadoras da CG, dominadas por Rehoboth, não reagiram durante
vários minutos após o avião ter-se incendiado. Os assassinos não foram
alvejados. Um deles fugiu, dois morreram por causa da praga da fumaça,
fogo e enxofre, conforme aconteceu com muitas outras pessoas naquele dia.
Rehoboth sabia de tudo e permaneceu em seu palácio durante os
momentos em que ele achava que Carpathia estava sendo executado. Depois
que as coisas desandaram e que Rehoboth foi eliminado, as forças
pacificadoras entraram novamente em ação e conseguiram dominar a área. A
morte da família inteira de Rehoboth, atribuída pela CG à praga, foi
visivelmente uma execução. Até agora, a praga matou cerca de 10% da
população da Terra. Qual a explicação que alguém daria para o fato de todos
os membros de uma família tão numerosa terem sido atacados em um só dia?
A revista virtual de Buck comentou todos os disparates do regime de
Carpathia, mencionando a "predileção por maquiar uma tragédia
internacional, imaginando que vocês se preocupam com os desfiles em
homenagem ao potentado enquanto a morte ronda o mundo".
David gostava de ouvir clandestinamente as conversas nos escritórios de
Carpathia e Fortunato sempre que a revista semanal de Buck era publicada
na Internet.
O que fizemos até agora para rastrear essa revista? -inquiriu
Carpathia a Leon naquela manhã.
Temos um departamento inteiro trabalhando em tempo integral,
senhor.
Quantos?
Escalamos 70, mas, em razão dos recentes problemas, eu diria que
temos uns 60.
Deveria ser um número suficiente, não?
Deveria, senhor.
Onde ele está conseguindo as informações? Parece que ele está
acampado do lado de fora de nossa porta.
O senhor mesmo disse que ele era o melhor jornalista do mundo.
Isso não tem nada a ver com habilidade para escrever, Leon! Eu
poderia acusar esse sujeito de estar inventando coisas, mas nós sabemos que
ele não está.
Naquela tarde, David recebeu um memorando de Leon, pedindo-lhe que
os detectores de metal destruídos no incêndio do avião fossem substituídos
"antes que Sua Excelência apareça em público novamente". Aquele pedido
deu uma idéia a David. Talvez ele pudesse ter uma participação na morte de
Carpathia. Que tal se ele conseguisse provocar um defeito nos detectores de
metal nos pontos estratégicos? Se ele podia montar computadores cheios de
truques, será que não seria capaz de provocar um defeito nos detectores de
metal?
David respondeu o seguinte a Leon: "Supremo comandante Fortunato,
providenciarei para que os novos detectores de metal sejam entregues e
instalados no Fênix 216 daqui a dez dias. Nesse meio-tempo, pedirei à
tripulação que examine cada detalhe do avião para que tudo esteja dentro dos
padrões exigidos pelo potentado. Supervisionarei tudo pessoalmente com a
ajuda da tripulação da cabina de comando."
David e Annie, em conjunto com Mac e Abdullah, que aos poucos iam
se recuperando, passaram suas horas de folga instalando no Fênix um
dispositivo de escuta clandestina de tecnologia tão avançada que o som
recebido nos fones de ouvido do piloto e do co-piloto tinham quase a mesma
qualidade do som produzido em estúdios de gravação.
Quando tudo estava terminado, David pediu a seus técnicos de primeira
linha que examinassem o avião à procura de "grampos". Uma equipe de
quatro especialistas vasculhou a fuselagem durante seis horas e não
encontrou nada.
Rayford divertiu-se ao ver Bo Hanson tentando conseguir uma carona,
do lado de fora dos portões do Aeroporto de Palwaukee.
Que bobalhão! - ele disse.
T, que continuava sentado diante de sua mesa na torre, perguntou:
O que ele está fazendo?
Pedindo carona. Falta de combustível. - Em seguida, Rayford virouse
para pegar o telefone. - Acho que preciso dizer a Dwayne Tuttle como
chegar até aqui. - T começou a levantar-se. - Fique aí. A ligação vai ser
rápida.
Tenho um assunto para resolver - disse T. - Podemos conversar
depois?
Rayford consultou seu relógio enquanto o telefone de Tuttle tocava. -
Posso ficar mais um pouco.
A Sra. Tuttle atendeu. Enquanto se apresentava e lhe falava sobre os emails
de sua filha e como conseguira o número, Rayford caminhou até a
janela. Trudy chamou Dwayne ao telefone, e Rayford ficou satisfeito por não
precisar falar durante esse pequeno intervalo de espera, por causa do susto
que levou. T dirigira-se até o carro de Bo e estava despejando gasolina no
tanque com uma lata. Será que os dois eram coniventes? Será que T o
enganara esse tempo todo?
Alguma coisa lhe dizia que, se ele tivesse mais alguns instantes para
refletir, encontraria uma outra explicação. T não havia sido mordido pelos
gafanhotos. Tinha o selo de Deus na testa. Conhecia as pessoas da igreja,
dizia coisas coerentes, parecia sincero. Mas estaria agora a serviço do
inimigo? Ajudando o homem responsável pela fuga de Hattie?
Sr. Steele! - disse Dwayne.
Sr. Tuttle, ou posso chamá-lo de Dart?
T retornou, subindo lentamente a escada enquanto Rayford terminava
seus acertos para a viagem à França. Depois de desligar, ele olhou para T
com ar de interrogação. Ambos estavam sentados frente a frente. O
semblante de T era tão sombrio quanto o de Rayford.
Você pensa que eu não vi? - perguntou Rayford.
Viu o quê?
O que você acabou de fazer. Aquele assunto que você precisava
resolver.
O que foi que eu fiz? Rayford revirou os olhos.
Eu vi você, T. Estava fornecendo gasolina a Bo. T lançou-lhe um
olhar como que dizendo: "E daí?"
O sujeito que...
Eu sei quem Bo é, Ray. Estou começando a querer saber quem você
é.
Eu? Eu não sou... T levantou-se.
Você quer ver novamente meu selo, não quer? Vamos, pode ver.
Rayford estava atônito. Como a situação poderia ter chegado a este
ponto? Eles eram amigos, irmãos.
Eu não preciso ver seu selo, T. Só quero saber o que você tinha em
mente quando fez aquilo.
Eu pedi para falar com você, Ray. Lembra-se?
Sim, e daí?
Eu queria saber o que você tinha em mente quando falou com Bo.
Qual é o mistério, T? Eu consegui dele a informação de que
precisava. Não o ajudei nem o acobertei.
Como eu fiz.
Como você fez.
É isso o que você acha que eu fiz?
Que outro nome eu poderia dar ao que você fez, T? Vocês dois estão
trabalhando contra mim, pelas minhas costas, é isso?
T sacudiu a cabeça tristemente.
É isso mesmo, Ray. Estou agindo de comum acordo com um rapaz
que não tem nada a perder, só para trair meu irmão cristão.
É o que parece. O que mais eu deveria pensar?
T levantou-se e caminhou até a janela. Rayford não encontrava
explicação para a atitude do amigo.
Você deveria pensar, Ray, que Bo Hanson não vai durar muito neste
mundo. Ele vai morrer e vai para o inferno como aconteceu outro dia com
seu amigo Ernie. Ele é nosso inimigo, claro, mas não é alguém que devemos
tratar como um canalha, só para que ele não descubra quem somos. Ele já
sabe quem somos, irmão. Somos seguidores de Ben-Judá e acreditamos em
Jesus. Não fazemos barganhas com sujeitos como Bo, Rayford. Não nos
divertimos com eles, não mentimos para eles, não roubamos deles nem
fazemos chantagem com eles. Nós amamos essa gente. Suplicamos por eles.
Bo é tão ingênuo - prosseguiu T -, que lhe passou todas as
informações de que você necessitava sem pensar nas conseqüências que ele
teria. Não estou dizendo que tenho todas as respostas, Ray. Não sei qual
seria a outra maneira de conseguirmos as informações, mas sua atitude não
me pareceu ser a de um cristão. Eu preferia que você tivesse comprado a
informação. Que ele fosse o vilão. Você foi tão vilão quanto ele. Bem, já
falei demais. Entenda como quiser, mas, de agora em diante, me deixe fora
desse assunto.
Buck imaginou que encontraria Chaim Rosenzweig na cadeira de rodas,
mas o israelense estava do mesmo jeito que ele o vira na última vez.
Pequeno, magro, um pouco mais velho, cabelos brancos esvoaçantes. E um
sorriso sincero no rosto. Ele abriu os braços para receber um abraço.
Cameron! Cameron, meu amigo! Como vai? Que bom ver você. É
uma felicidade para meus olhos cansados! O que o trouxe a Israel?
Você, meu amigo - disse Buck enquanto Chaim o conduzia pelo
braço até a sala de visitas. - Estamos todos preocupados com você.
Ora! - disse Chaim, fazendo um gesto de pouco caso. -Tsion está
preocupado pensando que não vai me converter antes que os cavalos me
pisoteiem.
Ele não deveria estar preocupado? Posso dar a ele a notícia de sua
conversão?
Talvez, Cameron. Mas você não precisaria perguntar, certo? Vocês,
que podem ver os cavalos, também podem ver os selos uns dos outros. E
então? O meu selo está visível?
A maneira como Chaim disse a palavra meu fez o coração de Buck dar
um salto. Ele inclinou-se para a frente, mas não viu nada.
Nós podemos ver o selo na testa de nossos companheiros - disse
Buck.
E podem ver também os homens poderosos montados em cavalosleões,
eu sei.
Você não acredita nisso.
Você acreditaria se estivesse em meu lugar, Cameron?
Ora, Dr. Rosenzweig, eu já estive em seu lugar. Lembra-se? Fui
jornalista, fui um homem pragmático, racional. Ninguém conseguia me
convencer enquanto eu não me convencesse.
Os olhos de Chaim brilhavam, e Buck se lembrou do quanto aquele
homem gostava de um bom debate.
Quer dizer que eu não desejo ser convencido, certo? -perguntou
Chaim.
Talvez.
E isso não faz sentido para você, faz? Por que eu não haveria de
querer? Eu quero que seja verdade! Que maravilha! Assim eu teria uma
resposta para essa loucura, um alívio para tanto sofrimento. Ah! Cameron,
estou perto de acreditar, mais do que você imagina.
Foi o que você me disse na última vez. Receio que você demore
muito tempo.
Todo o pessoal que trabalha para mim se converteu, você sabe. Jacov,
sua esposa, a mãe dela, Stefan. Jonas também, mas nós o perdemos. Você
ficou sabendo?
Fiquei. Foi uma pena.
De repente, Chaim perdeu o senso de humor.
Veja, Cameron, eu não entendo essas coisas. Se Deus é tão bom
quanto você diz, preocupa-se com seus filhos e é todo-poderoso, não haveria
uma maneira melhor? Por que enviar julgamentos, pragas, destruição,
morte? Tsion diz que já tivemos a nossa oportunidade. Então, agora não há
mais ninguém bonzinho? Existe uma crueldade tão grande em tudo isso que
obscurece o amor que eu deveria enxergar. Buck inclinou-se para a frente.
Tsion também diz que até mesmo este período de sete anos de
tribulação é mais do que merecemos de Deus. Nós não acreditávamos
porque não podíamos ver. Agora, não há mais dúvida. Estamos vendo, e,
mesmo assim, o povo continua resistente e rebelde.
Chaim mergulhou em silêncio. Em seguida, bateu com as mãos nos
joelhos.
Bem - ele disse finalmente -, não se preocupe comigo. Confesso que
estou sentindo minha idade. Estou com medo, assustado, preso em casa. Não
posso mais me aventurar a sair. Carpathia, em quem eu acreditava como
acreditaria em um filho, provou ser um enganador.
Buck queria aprofundar o assunto, mas não se atreveu. Qualquer decisão
tinha de partir do próprio Chaim, e não de uma idéia plantada por Buck ou
outra pessoa qualquer.
Estou estudando - disse Chaim. - Estou orando para que Tsion esteja
enganado, que as pragas e as tormentas não continuem a piorar. Procuro me
manter ocupado.
Com o quê?
Projetos.
Ciência e leitura?
E outras coisas.
Por exemplo?
Ora, Cameron, hoje você está agindo como um jornalista. Tudo bem,
eu vou lhe contar. Meus empregados acham que fiquei maluco. Talvez.
Comprei uma cadeira de rodas. Você quer vê-la?
Você precisa de uma cadeira de rodas?
Ainda não, mas logo vou precisar. O sofrimento causado pelos
gafanhotos me enfraqueceu. A contagem de glóbulos no sangue e outros
testes revelaram que estou ameaçado de sofrer um derrame.
Você está tão saudável quanto um cava... um touro. Rosenzweig
endireitou-se na cadeira e riu alto.
Gostei. Ninguém mais quer ser saudável como um cavalo. Mas não é
o meu caso. Corro um sério risco e quero estar preparado.
Parecem palavras de um homem derrotado, doutor. Com uma dieta
bem dosada, exercícios, ar puro...
Eu sabia que você diria isso. Quero estar preparado.
0 que mais você está preparando?
Como assim?
No que você está trabalhando? Em sua oficina?
Quem lhe contou?
Quem me contou não sabe de nada. Jacov simplesmente mencionou
que você passa muito tempo lá.
É verdade.
O que é? O que você está fazendo?
Projetos.
Eu nunca soube que você tivesse habilidade para isso.
Há muitas coisas que você não sabe sobre mim, Cameron.
Posso considerá-lo um amigo querido, Dr. Rosenzweig?
Eu gostaria muito. Mas será que um amigo querido deve se referir ao
outro de maneira tão formal?
É difícil para mim chamá-lo de Chaim.
Chame-me do que você quiser, mas você é um amigo querido e me
sinto muito feliz por ser seu amigo também.
Então, quero saber mais sobre você. Se houver muita coisa sobre
você que eu não saiba, não vou me sentir seu amigo.
Chaim afastou a cortina e olhou para fora. - Hoje não há fumaça. Mas ela
vai voltar. Tsion diz que os cavaleiros não nos deixarão em paz enquanto
não for exterminada a terça parte da humanidade. Você pode imaginar como
ficará o mundo, Cameron?
Sobrará apenas metade da população que restou dos
desaparecimentos.
Estamos presenciando o fim da civilização. Talvez não seja como
Tsion pensa, mas está acontecendo alguma coisa.
Buck não disse nada. Chaim não havia feito caso de seus argumentos,
mas talvez se ele não pressionasse tanto...
Rayford abaixou a cabeça. Sua voz estava trêmula e rouca.
T, eu não sei o que dizer.
Você soube o que dizer a Bo. Fez dele um...
Rayford levantou uma das mãos. - Por favor, T. Você tem razão. Eu não
sei o que estava pensando naquele momento.
Você parecia estar gostando.
Rayford queria sumir dali. - Que Deus me perdoe, mas eu gostei. O que
está acontecendo comigo? Parece que enlouqueci. Em casa, eu perco as
estribeiras. Leah, a pessoa de quem já lhe falei, conseguiu tirar o que havia
de pior em mim... Não posso culpá-la por isso. Tenho sido muito grosseiro
com ela. Eu não estou me entendendo.
Se você se entendesse, já estaria longe daqui. Não seja tão duro
consigo mesmo, irmão. Você está estressado.
Todos nós estamos, T. Até Bo. Você sabe que minha bronca não é de
hoje. Sempre achei que Bo não passa de um salafrário.
Ele é um salafrário, Ray. Mas é também...
Eu sei. É o que estou dizendo. No dia em que eu conheci aquele
rapaz, ele estava falando mal dos crentes, e, desde então, criei uma antipatia
por ele. Eu queria colocá-lo em seu devido lugar e fiquei feliz quando a
oportunidade chegou. Santinho eu, hein?
T não argumentou. Rayford entendeu a atitude dele.
O que eu devo fazer agora? Correr atrás de Bo e começar a agir como
um cristão com ele?
T sacudiu a cabeça e encolheu os ombros.
Sei lá. Acho que o melhor que você tem a fazer é sumir da vida dele.
Se você mudar seu comportamento radicalmente, ele vai desconfiar.
Eu deveria ao menos me desculpar.
Não, a menos que você esteja pronto para provar, pagando pela
informação que ele lhe deu.
Agora ele passou a ser o bom e eu o mau?
Jamais vou dizer que Bo é um bom sujeito, Ray. Eu também não
disse que você é mau. Foi você quem disse.
Rayford sentou-se com os ombros curvados durante alguns minutos
enquanto T mexia em sua papelada.
Você é um bom amigo - disse Rayford, finalmente. - Tenho de ser
sincero. Outras pessoas não teriam se preocupado comigo.
T contornou sua mesa e sentou-se em uma das pontas.
Acho que você faria o mesmo por mim.
Como se você estivesse precisando.
Por que não? Também achei que você não estivesse precisando.
Bem, de qualquer forma, obrigado. T cutucou-lhe no ombro.
E então? O que você acertou com os Tuttles? Vai pilotar um Super J?
Você acha que eu saberia?
Depois de todos os aviões que você pilotou? Dizem que quem sabe
pilotar um Gulfstream, que é grande, sabe também pilotar o Super J, um
modelo mais rápido. Talvez um Porsche em relação a um Chevy.
Vou pilotar esse avião como se fosse um adolescente.
Acho que você está ansioso por isso.
A princípio, David ficou entusiasmado, e, logo a seguir, alarmado
quando recebeu um e-mail pessoal de Tsion Ben-
Judá no início da noite do dia seguinte. Depois de afirmar a David que
gostaria de conhecê-lo antes do Glorioso Aparecimento, Tsion passou para o
assunto principal.
Eu não consigo entender tudo aquilo que você é capaz de fazer
milagrosamente por nós com essa sua tecnologia genial. Normalmente, não
me intrometo nos aspectos políticos de nosso trabalho e nem sequer
questiono o que está se passando. Fui chamado para transmitir ensinamentos
bíblicos, e quero permanecer concentrado nessa minha missão. O Dr.
Rosenzweig, de quem tenho certeza você já ouviu falar, ensinou-me muita
coisa quando eu lutava para entender botânica nos meus tempos de
faculdade. Minha especialidade está voltada para história, literatura e
línguas; ciência não faz meu gênero. Depois de esforços constantes, resolvi
recorrer ao Dr. Rosenzweig. Ele me disse: "A coisa principal é manter a
coisa principal como sendo principal." Em outras palavras, há necessidade
de concentração!
Portanto, eu estou aqui concentrando-me e deixando para o capitão
Steele e sua filha a tarefa de organizarem a cooperativa, deixando para Buck
a missão de transmitir furtivamente sua revista, e assim por diante. Mas, Sr.
Hassid, temos um problema. Permiti que o capitão Steele levasse adiante sua
idéia de encontrar Hattie (sei que você está a par deste assunto) sem
perguntar-lhe se ele já havia descoberto o que Carpathia sabe a respeito do
paradeiro daquela moça.
Ninguém, a não ser as pessoas menos avisadas, acredita que ela afundou
no mar dentro de um avião. Se a CG permitiu que aquele boato circulasse, é
sinal de que eles têm as cartas na mão. Meu receio, evidentemente, é que
eles agora se sintam livres para descobrir o paradeiro dela e matá-la, porque,
aos olhos do público, ela já está morta.
A única vantagem que ela leva em fingir que está morta é pôr Carpathia
em situação constrangedora ou até mesmo perigosa.
Só posso dizer o seguinte: tenho a impressão de que ninguém que
trabalha com você na escuta clandestina ouviu falar que Carpathia tem
conhecimento de onde ela se encontra. Acho que, para Rayford, teria sido
mais prudente esperar um pouco e procurá-la apenas depois de ter a certeza
de que não estaria caindo em uma armadilha da CG.
Posso ser um intelectual paranóico que deveria ater-se unicamente a seu
trabalho, mas, se você conhecesse a história de minha vida, saberia que já fui
vítima de violência por parte desse sistema mundial demoníaco. Eu gostaria
de saber, Sr. Hassid, se existe alguma possibilidade de descobrir uma pista,
por mais remota que seja, que pudesse ser transmitida rapidamente ao
capitão Steele antes que ele mergulhe cegamente em uma situação de perigo.
Se você pudesse ter a gentileza de me confirmar o recebimento deste e-mail
e me dizer se acredita que existe uma informação qualquer que nos possa ser
útil, eu lhe ficaria imensamente grato.
No nome imaculado de Cristo,
Tsion Ben-Judá.
David digitou rapidamente uma resposta:
Estou em dúvida sobre as probabilidades de sucesso (uma vez que tenho
monitorado todas as conversas telefônicas e transmissões por computador do
pessoal do alto escalão e até agora não ouvi nada a respeito de Hattie), mas
darei total e imediata atenção a este assunto. Compreendo sua preocupação e
transmitirei ao capitão Steele, por meio de seu telefone sigiloso, todas as
informações pertinentes. Eu poderia me estender mais, porém não posso
perder um minuto sequer.
David vasculhou freneticamente seu laptop, acessando o compacto disco
rígido, entrando no possante computador do palácio e decodificando cada
arquivo criptografado. Procurou referências a Hattie, Darham, HD,
assistente pessoal, amante, gravidez, filho, fugitiva, acidente aéreo, e outras
palavras que conseguiu lembrar. Evidentemente, tudo o que havia sido
falado nos escritórios administrativos durante semanas estava gravado em
seu minidisco de alta tecnologia, mas os únicos subtítulos que se
encontravam ali eram datas e locais. Não havia tempo para ouvir tudo o que
Fortunato e Carpathia disseram desde que Hattie foi dada como morta.
David ligou para Annie, que se dirigiu apressada ao escritório de seu
noivo. Ele fechou as persianas e trancou a porta para que ninguém do turno
da noite pudesse vê-lo andando de um lado para o outro, passando a mão nos
cabelos.
O que devo fazer, Annie? Tsion tem razão. Rayford está cometendo
um grave erro, mesmo que seja bem-sucedido. Você sabe que a CG está
mantendo Hattie confinada em algum lugar ou a matou. Com certeza, há
guardas vigiando o local onde ela deve estar escondida. Qualquer pessoa que
se atreva a ir atrás dela, vai ter de enfrentar a CG. Ela não passa de uma isca.
Rayford deveria saber disto.
Pense em alguma coisa - ela disse.
Quero que você me ajude.
Eu gostaria de ajudá-lo, David, mas concordo que você está
procurando uma agulha no...
O que o pessoal do Comando Tribulação dos Estados Unidos estava
pensando? Que a CG caiu no conto do acidente aéreo? Eles deviam ser mais
espertos! Só fiquei sabendo que Rayford estava atrás dela depois que ele já
havia partido. Por que ele não recorreu a mim, em última instância, para
vasculhar o serviço de inteligência da CG?
Annie sacudiu a cabeça.
Você acha que está muito seguro, David?
O quê?
Você tem acesso aos computadores deles, aos escritórios deles, ao
avião deles, aos telefones deles. Será que ninguém ainda desconfiou de
você? Não. A demora na instalação dos computadores poderia ter levantado
suspeitas, mas não percebi nenhuma reação em Leon. Se eu tivesse de
adivinhar, diria que ele confia muito em mim. Tenho muitos dedos no fogo
de uma só vez e posso me queimar, mas por enquanto estou na lista dos
homens de ouro.
Aí está a resposta, super-homem!
Não me venha com enigmas. Rayford já embarcou e está em pleno
vôo. Pergunte a eles.
Como assim?
Fale diretamente com Leon. Diga a ele que o assunto não é da sua
conta, mas que você tem pensado muito sobre estas notícias do acidente
aéreo, que você sempre admirou sua perspicácia, sua sabedoria, sua
esperteza... Você conhece as manhas. Insinue que talvez o acidente não
tenha acontecido conforme foi divulgado, e diga que gostaria de saber a
opinião dele.
Annie, você é um gênio!
QUINZE
Você gostaria de ver meus projetos, Cameron? - perguntou Chaim
Rosenzweig. - Será que, depois de vê-los, você ficaria mais satisfeito, se
sentiria mais meu amigo?
Com certeza!
Prometa que não vai me achar um maluco, um velho excêntrico,
como meus empregados pensam.
Buck o acompanhou. Apesar da opinião que os irmãos e irmãs que
trabalhavam na casa tinham a respeito de Chaim, ele estava muito lúcido.
Rayford conheceu os Tuttles, um casal de norte-americanos cujos quatro
filhos adultos foram arrebatados.
E nós perdemos a chance... - disse Dwayne no Super J. cruzando os
céus do leste dos Estados Unidos. - O mais velho foi para a faculdade, e
achamos que ali se envolveu com religião. Até aí tudo bem, só que ele
começou a pregar aos outros três irmãos. De repente, o mais novo passou a
freqüentar a igreja também. Foi bom, mas achamos que ele só estava
seguindo o exemplo do irmão maior, seu herói.
Em seguida - prosseguiu Dwayne -, os dois do meio foram
convidados para uma atividade da igreja. Acho que eles jamais teriam ido ali
se os irmãos não tivessem se convertido. Eles começaram a jogar no time de
basquete da igreja, passaram uma semana num acampamento e voltaram
salvos. Homem, eu detestava essa palavra, e eles a usavam o tempo todo.
"Eu fui salva, ele foi salva, ela foi salvo, você precisa ser salvo..." Eu amava
aqueles rapazes mais do que tudo na vida, mas...
Dwayne, que falava muito rápido, foi tomado subitamente pela emoção,
e Rayford demorou alguns instantes para perceber como ele estava
comovido. Agora aquele homenzarrão falava com voz embargada,
esforçando-se para não chorar. Trudy, sentada no banco atrás dele, pousou a
mão em seu ombro.
Eu amava aqueles garotos - ele disse, com voz entrecortada por
soluços -, e nunca tive nenhum problema com eles, mesmo depois que se
tornaram religiosos. Nunca tive mesmo, não é verdade, Tru?
Eles amavam você, Dwayne - ela disse, pronunciando lentamente as
palavras. - Você nunca precisou fazer marcação com eles.
Mas eles fizeram marcação comigo. Não era por mal, mas como
insistiam! Eu dizia que tudo estava bem, desde que eles não ficassem
pedindo que eu fosse à igreja com eles. Nunca gostei disso desde criança, me
trazia más recordações. Eles diziam que aquela igreja era melhor. Eu
também achava, mas pedia que eles me deixassem em paz. Eles me diziam
que eu era responsável pela salvação da alma da mãe
deles. Aquilo me deixava furioso, mas como a gente pode ficar furioso
com os próprios filhos quando, mesmo estando errados, eles se preocupam
com a alma de sua mãe e de seu pai? Rayford concordou, balançando a
cabeça.
A gente não pode mesmo...
Claro que não. Eles continuaram a insistir comigo. Queriam me
vencer pelo cansaço. Mas eu também era bom nisso. Eu nunca caí na lábia
deles. Tru quase caiu, não foi mesmo, meu bem?
Eu gostaria de ter caído.
Eu também, querida. Nós só íamos conhecer o Sr. Steele no céu, e eu
bem que gostaria de ir logo para lá, depois de tudo o que está acontecendo.
Você também, capitão?
Eu também, Dwayne.
Acho que você já adivinhou o resto da história. Antes de resolvermos
ir para a igreja, aconteceu a coisa que eles nos disseram que ia acontecer.
Eles sumiram. Nós sobramos. Para onde a gente foi logo em seguida?
Para a igreja.
Igreja! Deixamos de ser tão teimosos, não? Ser salvo não era mais
uma bobagem. Não sobrou quase ninguém daquela igreja, mas a gente só
queria encontrar alguém que soubesse o que era preciso fazer para ser salvo.
Sr. Steele, eu sou um artista. Bem, na verdade sou um vendedor e
demonstrador de aeronaves, mas sempre gostei de teatro, desde a faculdade.
Eu me especializei em imitar vozes.
Mac me contou que você imita bem o sotaque australiano.
Isso mesmo. Ele gostou, não?
Não sei se naquele momento Mac estava em condições de gostar, mas
ele tem certeza de que você conseguiu enganar Fortunato.
Até uma tartaruga surda poderia enganar aquele sujeito, Rafe. Você
não se importa de ser chamado de Rafe, não? Gosto de encurtar as palavras
para ter tempo de falar mais. É só uma brincadeira, mas você não se importa,
não é mesmo?
Era assim que minha primeira mulher me chamava. Ela foi
arrebatada.
Então, acho que você não gostaria que eu...
Não se preocupe, pode prosseguir.
Quero dizer, Rafe, que sou um sujeito comunicativo. Acho que você
já percebeu. Um vendedor tem de ser assim. Mas eu nunca deixo de
acrescentar um pouco de minha veia artística. Diziam que eu era sincero,
determinado, e todos gostavam muito de mim. Só os esnobes não gostavam.
Quando encontrava pessoas desse tipo, eu usava a palavra sou quando
deveria usar somos, só para provocá-las. Enfim, sou um cara amigo,
arrojado, um cara...
Espalhafatoso é a palavra que você está tentando se lembrar, querido
- disse Trudy.
Dwayne deu uma gargalhada como se tivesse ouvido uma piada pela
primeira vez.
Está bem, Tru, concordo, sou um cara espalhafatoso. Mas você tem
de admitir que eu era uma pessoa que fascinava todo mundo. Só que eu não
ia à igreja, é verdade. De repente, passei a ir. Estou salvo. Perdi muito tempo
e tenho pouco dinheiro, mas estou aprendendo, e é isso o que conta. Ainda
vamos sofrer, vamos nos arrepender de não ter sido salvos antes, mas, tudo
bem, agora estamos salvos. Continuo sendo este cara comuni...
Espalhafatoso.
... espalhafatoso, mas agora passei a ser também um cara insistente.
Não paro de falar sobre a salvação. Até o nosso pastor diz que não entende
como eu não afugento as pessoas de tanto paparicá-las... o termo é dele, não
meu... paparicá-las para aceitarem a Jesus. Aprendi essa lição quando era
vendedor, mas agora é diferente. Não se trata de atingir minha meta, de
ganhar uma bonificação ou de ver se posso comprar ou não um belo avião.
As pessoas precisam saber, irmão, que não estou vendendo nada. Agora
estou falando de salvação de almas. Bem, sempre me empolgo quando falo
disso. Gostaria de saber o que eu faria se encontrasse o anticristo. Vou lhe
dizer uma coisa, meu amigo, ou ele me mata ou ele se salva, uma coisa ou
outra. Sacou? Bem, fiquei animado por não ter deixado de ser um brave...
brava...
Bravateador - ajudou Trudy.
Certo, fui um bravateador quando vi o ajudante número um do
anticristo naquele dia. Meu coração parecia que ia explodir, não posso negar,
mas e daí? Sei que, mais cedo ou mais tarde, eu vou morrer. Gostaria de
estar aqui quando Jesus voltar, mas, se eu partir antes, tudo bem. No dia
em que aceitei a salvação, decidi que nunca mais ia me envergonhar de
falar de Jesus. Já perdi tempo demais. Vou ver meus meninos novamente,
e...
De repente, o intrépido Dwayne voltou a emocionar-se. Desta vez, ele
não conseguiu prosseguir. Trudy pousou novamente a mão no ombro do
marido. Ele olhou para Rayford como se estivesse se desculpando. Rayford
assumiu os controles, e o Super J disparou como um foguete na noite escura,
em direção ao leste.
Que coisa estranha é esta? - perguntou Buck, olhando para uma tira
de metal superpolida.
Chaim caminhou pé ante pé até a porta e fechou-a. Buck compreendeu
que estava tomando conhecimento de alguma coisa que Rosenzweig ainda
não revelara a ninguém.
Digamos que seja um passatempo que se tornou uma obsessão. Não
tem nada a ver com meu trabalho, e não me pergunte o motivo dessa
obsessão. Estou tentando afiar manualmente um objeto de metal de uma
forma que ninguém conseguiu até hoje. Sei que existem máquinas grandes
com micrômetros, computadores e raio laser que fazem este trabalho quase
com perfeição. Não estou interessado em mecanismos artificiais. Estou
interessado em fazer o melhor que posso. Minha habilidade manual
ultrapassou minha capacidade de enxergar. Com uma lâmina presa em uma
simples braçadeira instalada em ângulo, sou capaz de deixá-la tão afiada que
não consigo enxergar o fio a olho nu. Nem mesmo meus excelentes óculos
bifocais podem me ajudar. Preciso colocar a lâmina sob uma luz muito forte
e usar uma lupa. Acredite em mim, isto é muito mais interessante do que
aquelas criaturas que você e eu analisamos sob a lupa um ano e meio atrás.
Aqui está, veja. Chaim entregou a lupa a Buck e apontou para uma lâmina
brilhante, de cerca de um metro de comprimento, presa entre dois torninhos.
Tome muito cuidado, Cameron, para não tocar no fio da lâmina. Digo
isto porque é muito perigoso. Antes de sentir o fio da lâmina encostar em sua
pele e começar a doer, você já terá perdido um dedo.
Depois desta advertência, Buck olhou a lâmina através da lupa e ficou
atônito. O fio parecia muitas vezes mais fino do que o de qualquer lâmina de
barbear que ele já vira.
Puxa! - ele disse.
A parte mais interessante é esta aqui, Cameron. Afaste-se um pouco,
por favor. O material é aço-carbono super-resistente. Parece flexível como
uma lâmina de barbear porque é afiado microscopicamente, mas é rígido e
forte. Você sabe por que uma faca comum perde o fio com o uso? E por que
quanto mais ela é afiada mais rápida se deteriora? -Buck assentiu com a
cabeça. - Observe isso.
Rosenzweig tirou uma tâmara seca do bolso.
Um petisco para mais tarde - ele explicou. - Mas esta aqui ainda não
foi limpa e não quero lavá-la. Tenho outras, portanto esta vai servir para
você entender melhor o que estou dizendo. Observe.
Ele segurou a tâmara delicadamente pela pontinha, entre o polegar e o
dedo médio. Em seguida, levou-a lentamente e com extremo cuidado até o
fio da lâmina, colocando a palma da outra mão por baixo. A metade inferior
da tâmara caiu na mão dele, dando a impressão de que a fruta não havia
sequer encostado no fio da lâmina.
Agora vou lhe mostrar mais uma coisa. Rosenzweig olhou ao redor
do cômodo apinhado de bugigangas e avistou uma bola de pano, seca e dura,
esquecida por ali. Ele segurou a bola de cerca de sete centímetros de
diâmetro acima da lâmina e soltou-a. Buck levou um susto, não querendo
acreditar no que acabara de ver. A bola havia se partido ao meio sem
produzir nenhum som e, aparentemente, sem oferecer nenhuma resistência.
Você também viu o que aconteceu com a fruta - disse Rosenzweig,
com um brilho nos olhos.
É espantoso, doutor - disse Buck. - Mas, por quê? Chaim sacudiu a
cabeça.
Não me pergunte. Não se trata de um segredo de Estado. Nem eu
mesmo sei explicar o que se passa comigo.
No final daquela tarde, David apareceu na sala de espera do escritório de
Leon sem avisar.
Eu gostaria de falar um minuto com o comandante, se for possível -
ele disse a Margaret, que estava se aprontando para ir embora depois de um
longo dia de trabalho.
David Hassid? - disse Leon em voz alta pelo interfone. -Claro!
Mande-o entrar.
Quando David entrou na sala, Leon levantou-se.
Quero saber se você já conseguiu alguma coisa sobre a operação
rastreamento.
Infelizmente não - disse David. - Aquela gente deve estar usando
algum tipo de tecnologia da qual ninguém ainda ouviu falar. Voltamos ao
ponto de partida.
Sente-se - disse Fortunato.
Não, obrigado - disse David. - Serei rápido. O senhor sabe que não
tenho o hábito de aborrecê-lo com...
Por favor! Sou todo ouvidos!
... assuntos que não dizem respeito a meu departamento. A
receptividade de Fortunato terminou ali.
É claro que, em minha posição, tomo conhecimento de muitos
assuntos confidenciais que não posso...
Tenho uma sugestão a fazer, embora o assunto não me diga respeito.
Prossiga.
Bem... a morte recente da ex-assistente pessoal de Sua Excelência...
Fortunato semicerrou os olhos. -Sim?
Foi uma tragédia, é claro...
Sim...
Bem, senhor, não era segredo para ninguém que aquela mulher, a
Srta. Dunst...
Durham. Hattie Durham. Prossiga.
... estava grávida e não se sentia feliz com isso.
A verdade, Hassid, é que ela estava tentando extorquir dinheiro de
nós para manter segredo da gravidez. Sua Excelência achou que devia
recompensá-la pelo tempo que eles... que eles passaram juntos e pagou-lhe
uma quantia generosa. A Srta. Durham deve ter entendido que aquele
dinheiro lhe foi oferecido em troca de seu silêncio, mas não foi. Veja, ela
nunca se preocupou em guardar segredo de coisas que pudessem ameaçar a
segurança internacional, nunca ocultou histórias, verdadeiras é claro, que
pudessem constranger o potentado. Portanto, quando ela exigiu mais
dinheiro, nós recusamos. Sou forçado a dizer que ela não ficou nem um
pouco feliz.
Obrigado, senhor. O senhor me contou muitas coisas que eu não
precisava tomar conhecimento, mas fique descansado. Vou guardar segredo.
Eu só queria perguntar sobre o acidente com o avião, mas agora isso deixou
de ser relevante. Agradeço o tempo que o senhor gastou comigo.
Não, por favor. Posso lhe contar tudo o que você deseja saber.
Sinto-me um pouco constrangido, porque, conforme eu disse, sei que
o assunto não me diz respeito... não é da minha conta. Pensando melhor,
acho que não devo insistir.
Por favor, David. Quero conhecer seus pontos de vista.
Está bem. Sei que, tendo alguém aqui com sua competência e
perspicácia, não haveria necessidade de que eu me preocupasse com
segurança ou relações-públicas...
Todos nós devemos nos preocupar o tempo todo com essas coisas.
Tive a impressão de que o relatório sobre a morte dela foi meio
suspeito. Quero dizer, talvez eu tenha lido muitos romances de mistério, mas
a história não foi um pouco inconsistente? Alguém encontrou os destroços
do avião, os corpos? Alguns poucos objetos pertencentes a ela seriam
suficientes para provar que ela morreu?
Sente-se, David. Eu insisto. Seu raciocínio tem lógica. A verdade é
que o tal acidente com o avião em que a Srta. Durham viajava nunca
aconteceu. Assim que recebemos
a notícia, pedi ao chefe do serviço de inteligência que investigasse os
fatos. A Srta. Durham, seu piloto amador e o avião foram rapidamente
localizados. O piloto agiu de modo imprudente, fugindo quando nosso
pessoal pediu para interrogar a Srta. Durham. Infelizmente, ele foi morto em
uma troca de tiros. Você entende que, por motivos de segurança e princípios
morais, nem todos os incidentes são divulgados à imprensa.
Claro.
A Srta. Durham está sob custódia.
Custódia?
Ela se encontra em um local confortável e seguro em Bruxelas,
protegida pela falsa notícia de sua morte. Essa moça não representa uma
ameaça à Comunidade Global, mas estamos preparando uma armadilha que
nos leve até o local onde os companheiros dela a esconderam. Ela será solta
assim que conseguirmos pegá-los.
Companheiros dela?
Antigos funcionários da CG e simpatizantes de Ben-Judá
proporcionaram-lhe asilo quando a presença dela foi exigida em Nova
Babilônia. Eles representam uma ameaça muito maior do que ela.
Quer dizer que ela se tornou uma isca sem querer e é responsável
pelo que lhe aconteceu.
Exatamente.
E essa armadilha, foi idéia do senhor?
Aqui nós trabalhamos em equipe, David.
Mas a idéia foi sua, não? Parece coisa de uma pessoa inteligente
como o senhor.
Fortunato ergueu a cabeça.
Nós nos cercamos de gente muito boa, e, quando ninguém se importa
de receber o mérito, se consegue muita coisa.
Mas a idéia de preparar uma armadilha para os companheiros dela foi
sua. Acredito que pode ter sido.
E deu certo?
Ainda não. Ninguém sabe da morte do piloto. Mandamos avisar o
irmão dele, cúmplice nessa história, dizendo que ele estava escondido e que
não daria notícias por vários meses.
Brilhante!
Fortunato assentiu com a cabeça, dando a entender que não podia
contestar.
Não vou mais tomar seu tempo, comandante. De agora em diante,
vou tirar esse tipo de preocupação da cabeça, porque sei que o senhor e seu
pessoal estão tomando conta de tudo.
Não se sinta constrangido. Sempre que você tiver alguma dúvida, não
hesite em perguntar. Depositamos muita confiança em uma pessoa de seu
nível e com alto grau de responsabilidade. Poucas pessoas têm acesso a essas
informações, é claro, portanto...
Não precisa dizer nada, senhor - disse David, levantando-se. - Não
tenho palavras para expressar minha gratidão.
Rayford pilotou um grande trecho sobre o Atlântico, o que não serviu
para diminuir a verborragia de Dwayne. Embora gostasse de ouvi-lo
papaguear, Rayford queria conhecer Trudy um pouco mais. Quando chegou
o momento de devolver os controles a Dwayne, Rayford resolveu ligar para
Albie (abreviação de Al B., nome que, por sua vez, havia sido abreviado de
Al Basrah). Albie era o chefe do controle do tráfego aéreo de Al Basrah,
uma cidade localizada no extremo sul do rio Tigre, perto do Golfo Pérsico.
Ele era conhecido por muita gente como o melhor elemento no mercado
clandestino. Mac o apresentara a Rayford, e foi Albie quem forneceu o
equipamento de mergulho para Rayford explorar o fundo do rio Tigre à
procura dos destroços de um avião.
Albie, um muçulmano devoto, detestava o regime de Carpathia e era um
dos poucos gentios não-cristãos que resistiam bravamente à Fé Mundial
Enigma Babilônia. Seus negócios eram simples. Para as pessoas em quem
confiava, ele fornecia qualquer coisa, desde que recebesse dinheiro em troca.
O dinheiro servia para cobrir o preço da mercadoria e das despesas, e, se
alguém fosse pego com o contrabando, ele afirmava que nunca ouvira falar
dessa pessoa.
Naquele momento, Dwayne estava surpreendentemente quieto enquanto
Trudy cochilava. Rayford vasculhou sua sacola e pegou seu celular
fenomenal - termo que Mac usava para descrever o telefone montado por
David, porque o celular fazia de tudo e transmitia de qualquer lugar.
Dwayne só notou o celular quando ouviu o telefone de Albie tocando.
Isto é o que eu chamo de telefone! Que maravilha! Sim, é um
telefone e tanto! Aposto que ele é capaz de captar ruídos que nunca ouvi e...
Rayford levantou a mão pedindo silêncio e disse:
Daqui a pouco eu deixo você examiná-lo.
Não vejo a hora, parceiro. Com certeza, vou dar uma olhada nele.
Torre de Al Basrah, Albie falando.
Albie, é Rayford Steele. Podemos conversar?
A quatro nós do leste. Qual é sua posição?
Quero me encontrar com você para tratar de uma compra.
Positivo. Sinto pelo fracasso da missão anterior. E o co-piloto?
Mac está se recuperando. Tenho certeza de que você já ouviu falar
sobre...
Positivo. Aguarde um minuto, por favor. - Albie cobriu o fone com a
mão, e Rayford ouviu-o conversando em sua língua. Em seguida, ele
retornou. - Agora estou sozinho, Sr. Steele. Lamento muito o que aconteceu
com sua esposa.
Obrigado.
Tenho andado muito preocupado com Mac. Fiquei sem notícias dele
por uns tempos. Agora que ele passou a capitão, não está mais precisando
muito de meus serviços. O que posso fazer pelo senhor?
Preciso de uma arma, pequena para ser escondida, mas poderosa.
Em outras palavras, o senhor quer uma coisa que faça aquilo que ela
precisa fazer.
Você entendeu em alto e bom som, Albie.
Muito difícil. O potentado é um pacifista...
O que significa que você é o único fornecedor de confiança.
Muito difícil.
Mas não impossível para você, certo?
Muito difícil - disse Albie.
Caro demais, é o que você quer dizer?
Agora você está me entendendo em alto e bom som.
Se o dinheiro não for problema, você teria alguma coisa em mente?
Quando o senhor diz que ela precisa ser escondida, o que isso
significa? Que possa passar por detectores de metal sem ser notada?
É possível?
Só se for feita de madeira e plástico. Duas seqüências de disparos,
três violentos, aí ela se desintegra. Alcance limitado, é claro, até seis metros.
Preciso de uma que alcance mais ou menos 30 metros. Um só
disparo.
Sr. Steele, eu posso conseguir-lhe uma. É mais ou menos do tamanho
de sua mão. Pesada, mas certeira. O peso é por causa do mecanismo de
disparo, que normalmente é usado em rifles de tamanho grande.
Que tipo de ação?
Exclusiva. Usa injeção por combustível e vácuo hidráulico.
Parece mais um motor. Nunca ouvi falar de coisa semelhante.
E quem já ouviu? Ela dispara um projétil a duas mil milhas por hora.
Munição?
Calibre 48, alta velocidade... ponta macia, cônica.
Em uma pistola?
Sr. Steele, o deslocamento de ar causado pela rotação da bala é
suficiente para causar um grave ferimento no tecido do corpo humano de
mais ou menos cinco centímetros.
Não estou entendendo.
Um homem foi alvejado com uma dessas pistolas a uma distância
aproximada de dez metros. O tiro rasgou a pele dele e feriu o tecido
subcutâneo do braço. Os médicos não encontraram nenhum resíduo de metal
no tecido. O ferimento foi causado pelo deslocamento de ar provocado pela
rotação da bala.
Que coisa! Você falou o que eu queria ouvir. Vale quanto? Muito
mais de cem?
Milhares.
Mil?
Eu disse milhares, no plural, meu amigo.
Quanto?
Depende do local de entrega ou se você vem buscar o material... o
que eu prefiro.
David estava frustrado. Ele havia corrido até seu quarto para ligar para
Rayford, mas o telefone estava ocupado. Aquele telefone emitia um sinal
quando havia outra pessoa tentando completar uma ligação. David também
instalara um dispositivo que fazia o telefone tocar mesmo quando estivesse
desligado, desde que o usuário o deixasse na posição de "inativo". Rayford
sempre fazia isso. Ele fez nova ligação. Continuava ocupado.
Eu não tinha a intenção de escutar sua conversa, capitão, mas entendi
que você estava encomendando uma arma. Gostei de ver que você não se
importa, mesmo sabendo que isso é ilegal. Não estamos debaixo das leis do
anticristo.
É assim que eu penso. Você queria ver o telefone, não?
Ah, sim, obrigado. Quero dar uma olhada.
Dwayne examinou minuciosamente o telefone e colocou-o na palma da
mão. É bem pesado. Deve fazer de tudo, até preparar seu desjejum, estou
certo?
Até isso, só não faz ovos mexidos.
Ahá! Você ouviu o que ele disse, Tru? Oh! - Ele colocou a mão na
boca quando viu que sua esposa estava dormindo. Em seguida, cochichou. -
Este modelo aqui é daqueles que enviam e recebem ligações de qualquer
lugar, não é mesmo?
É isso aí. O melhor de tudo é que ele é sigiloso. Usa quatro canais
diferentes por segundo, por isso não pode ser rastreado nem grampeado. É a
maravilha das maravilhas.
Você costuma guardá-lo na sacola? - perguntou Dwayne.
Sim.
Dwayne fechou o aparelho e esticou o braço para trás a fim de colocá-lo
de volta na sacola de Rayford. Depois de refletir por alguns instantes, ele
resolveu desligar também o botão que desativava todas as funções do
telefone.
Daqui em diante, pode deixar por minha conta - disse Dwayne,
assumindo o controle do avião. - Sei que estou metendo o nariz onde não
devo, mas você poderia me dizer o que vai fazer com uma pistola tão
poderosa?
Rayford pensou por alguns momentos. Ele havia se acostumado a abrirse
com qualquer companheiro crente, até mesmo para falar de assuntos do
Comando Tribulação. Ele apenas tomava o cuidado de não revelar o local da
casa secreta ou contar o nome falso de um dos membros do Comando para
que o interlocutor não viesse a sofrer por causa de uma informação que não
necessitava saber. A arma, porém, era um assunto pessoal que causava muito
sofrimento a Rayford, porque ele sabia muito bem de onde ia tirar aquele
dinheiro todo para comprá-la. Naquele momento, ele não podia imaginar se
conseguiria levar seu plano até o fim.
A Comunidade Global talvez seja pacifista e esteja desarmada por
força de uma lei - ele disse. - Mas perdemos um piloto em um tiroteio, e
quase todos nós já estivemos na linha de fogo, pelo menos uma vez, e alguns
foram alvejados. Atiraram em Buck e Tsion quando eles estavam fugindo de
Israel pelo Egito. Buck foi atingido. Buck também foi perseguido quando
ajudava Hattie a fugir de um hospital da CG no Colorado. Nossa mais nova
companheira e eu escapamos de um tiroteio recentemente. E você sabe o que
aconteceu com Mac e Abdullah.
Estou entendendo, irmão. Não tenho argumentos para contestar. No
entanto, acho que ficaria muito caro equipar cada um de vocês com armas
desse tipo.
Eu vou testá-la em primeiro lugar - disse Rayford.
Boa idéia. É claro que os dois últimos que você mencionou nunca vão
poder portar armas em serviço. Seria bom se cada um deles tivesse uma
arma escondida no avião.
Fizemos isso quando eu era capitão do Comunidade Global Um.
Tínhamos duas pistolas guardadas no compartimento de cargas. O acesso a
elas era muito difícil, mas teríamos de usá-las como último recurso. Agora
elas não existem mais.
A propósito, Rafe - disse Dwayne, apontando para o horizonte -,
aquilo ali é o que chamamos de sol no ramo da aviação. Nossa chegada está
prevista para daqui a 40 minutos. A alfândega de Le Havre é muito exigente
quando alguém chega lá pela primeira vez. Você tem o carimbo de visto
britânico no passaporte?
Rayford assentiu com a cabeça.
Eu já perguntei quem você é hoje e por que o ajudei a atravessar o
Canal da Mancha?
Rayford pegou seu passaporte e abriu-o.
Thomas Agee. Importação/Exportação. E você, quem é? Dwayne
sorriu e mostrou dois passaportes da União das
Nações Britânicas, dizendo com um sotaque inglês arcaico. - As suas
ordens, senhor. Rayford leu em voz alta.
Ian Hill. O nome da esposa é... Eiva. Muito prazer em conhecê-los.
David não ouvia mais o sinal de ocupado. Ele discou novamente, desta
vez com muito cuidado, para ter a certeza de que não havia errado. O
número estava correto. Ou Rayford não podia ouvir o toque ou o telefone
tinha sido totalmente desativado. David ligou para Tsion e o despertou.
Alguém teria de entrar em contato com aquele avião em uma freqüência
livre. E rápido.
DEZESSEIS
Buck estava cansado por causa da longa viagem e por ter ficado
acordado até tarde conversando com o Dr. Rosenzweig. Ele havia passado
grande parte da noite tentando convencer Chaim a aceitar a Cristo.
É por este motivo que estou aqui - disse Buck a seu amigo. - Você
não deve adiar sua decisão. Já não é mais criança. Os julgamentos e os ais
vão piorar cada vez mais até o fim. Talvez você não sobreviva até lá.
Chaim, deitado no sofá em frente a Buck, quase adormecera por várias
vezes.
Estou em uma encruzilhada, Cameron. Só posso dizer-lhe uma coisa:
deixei de ser agnóstico. Qualquer pessoa que se considere agnóstica é
mentirosa. Reconheço a grande batalha sobrenatural entre o bem e o mal.
Buck inclinou-se para a frente.
E então, doutor? Você continua neutro? Neutralidade significa morte.
Neutralidade não leva a nada. Você finge deixar o assunto para os outros
resolverem, mas vai acabar perdendo.
Existem muitas coisas que eu não entendo.
Quem, além de Tsion, entende grande parte do que está acontecendo?
Somos todos novatos no assunto, tateando para descobrir o caminho. Você
não precisa ser um teólogo. Precisa apenas conhecer os elementos básicos, e
isso você conhece. A pergunta é a seguinte: o que você faz com tudo o que
sabe? O que você faz com Jesus? Ele é o dono de sua alma. Ele quer você, e
tem tentado de tudo para convencê-lo. O que mais é necessário, Chaim?
Você precisa ser pisoteado pelos cavalos? Precisa ser sufocado com enxofre,
ser queimado? Você quer viver aterrorizado pelo resto da vida? Chaim
sentou-se no sofá e sacudiu a cabeça tristemente.
Doutor, vou ser bem claro. A vida não vai ficar mais fácil. Nós
perdemos a primeira oportunidade. A situação vai piorar para todos nós. E os
crentes vão sofrer mais do que os incrédulos porque está chegando o dia...
Eu já conheço essa parte, Cameron. Sei o que Tsion diz a respeito da
marca necessária para comprar ou vender. E você ainda vem me dizer que
minha vida vai ser pior do que já está.
Estou lhe dizendo a verdade. Sua vida vai piorar, mas morrer será a
melhor coisa que lhe poderá acontecer! Não importa como será a sua morte,
você acordará no céu! E se sobreviver até o dia do Glorioso Aparecimento...
imagine só! Estas são as opções dos crentes, doutor. Morrer e estar com
Cristo, só retornando quando Ele retornar. Ou sobreviver até seu
aparecimento.
Chaim - prosseguiu Buck -, queremos que você passe para o nosso
lado. Queremos que seja nosso irmão, agora e para sempre. Não podemos
imaginar perdê-lo, sabendo que você estará separado para sempre do Deus
que o ama. - Buck não conseguiu conter as lágrimas. - Chaim, se eu pudesse,
trocaria de lugar com você! Você não sabe o que sentimos por você, o que
Deus sente por você? Jesus assumiu o seu lugar para que você não tivesse de
pagar o preço.
Chaim ergueu os-olhos e surpreendeu-se ao notar lágrimas nos olhos de
Buck. O aviso alarmante parecia ter aberto caminho para que Chaim
começasse a compreender. Talvez ele não conhecesse a profundidade do
amor que o Comando Tribulação lhe dedicava. Buck sentia como se
estivesse defendendo a causa de Deus sem a presença de Deus. Deus estava
ali, é claro, mas, aparentemente, muito distante de Chaim.
Vou garantir a você o mesmo que garanti certa vez a Tsion - disse
Chaim. - Não vou ter a marca de Nicolae Carpathia. Mesmo que eu tenha de
morrer de fome por assumir essa posição, ninguém me forçará a estampar
uma marca, só para viver como um homem livre nesta sociedade.
Buck achou que aquilo já era um bom começo, mas não o suficiente. Ele
chorou no quarto de hóspedes até adormecer, orando por Chaim. Às 9 horas,
ele continuava exausto. Esperava poder dar uma olhada nas duas
testemunhas, mas prometera a Chloe que, na viagem de volta, visitaria Lukas
Miklos na Grécia. O novo amigo, a quem eles chamavam de Laslos, seria o
contato principal que a cooperativa teria naquela parte do mundo.
O relógio marcava 7 horas em Le Havre quando Rayford e os Tuttles
passaram pela alfândega como Thomas Agee e lan e Eiva Hill. Trudy foi
encarregada de alugar um carro e apresentar-se no Le Petit Hotel, localizado
no sul da cidade, onde eles haviam reservado dois quartos. O hotel era caro,
mas sua localização não atraía olhares curiosos.
Dwayne usaria outro carro alugado para deixar Rayford a dois
quarteirões de distância da Rua Marguerite, onde Bo Hanson dissera que
Hattie e o irmão dele estavam escondidos sob nomes falsos. Rayford
planejava simplesmente bater no apartamento e dizer, pela fresta da porta,
que a CG estava atrás dos dois e que eles deveriam sair dali. Rayford
acreditava que Hattie deduziria que Bo lhe fornecera o endereço e, portanto,
a história sobre a CG devia ser verdadeira. Se eles estivessem preparados
para fugir imediatamente, Rayford lhes ofereceria uma carona para instalálos
em um hotel discreto.
Os três se encontrariam com Dwayne e improvisariam alguma coisa. No
momento em que entrassem no carro ou no meio do caminho, Rayford e
Dwayne se livrariam de Samuel Hanson, deixando-o à própria sorte. Ele
tinha um avião. Depois que retornassem aos Estados Unidos, eles se
explicariam.
Rayford queria surpreender Hattie e Samuel logo ao amanhecer, portanto
ele e Dwayne alugaram o primeiro carro que encontraram. Depois de um
rápido adeus a Trudy, que se encarregou de colocar todas as sacolas no carro
que ela alugara, eles partiram. Dwayne apresentava uma idéia atrás de outra
sobre como ludibriar Samuel.
Você tem certeza de que deseja ir fundo nesta operação do Comando
Tribulação? - perguntou Rayford.
Você está querendo brincar comigo? Estou sempre atrás de um pouco
de aventura desde que fui salvo. Preste atenção, podemos nos livrar desse
rapaz assim que entrarmos no carro. Você pede a ele que desça por alguns
minutos porque tem um assunto particular a tratar com ele. O assunto pode
ser o irmão dele. Você se afasta com ele do carro e, em seguida, diz que
esqueceu um papel lá dentro. Você entra correndo no carro, eu acelero e
vamos embora.
Talvez dê certo - disse Rayford.
Que tal esta outra idéia? - disse Dwayne, enquanto seguia as
instruções de Rayford sobre o trajeto a ser feito. - Assim que você conseguir
trazê-los até o carro, eu faço algumas mesuras e você me apresenta os dois.
Eu abro a porta para a moça e peço a ela que entre. Em seguida, dou um
safanão nesse tal de Hanson. Ele rola uns seis metros pelo chão, sem se
machucar. Assim que ele se der conta do que aconteceu, já estaremos longe.
Rayford analisou o mapa da cidade e o bilhete de Bo. - Eles estão usando
os nomes de James Dykes e Mae Willie. Às vezes agente...
Tenho uma outra idéia - disse Dwayne, mas Rayford o interrompeu.
Não quero ofendê-lo, Dwayne, mas a maneira como vamos agir não
me preocupa, desde que a gente consiga o que deseja.
Você deve ter um plano.
Tenho muitos. Se eu achar que não devo convidá-lo a sair do carro,
você saberá o que fazer.
É isso aí, parceiro.
O desespero tomara conta de David. Já se encontrava no meio da manhã
em Nova Babilônia. Ele e Mac estavam reunidos secretamente no escritório
do piloto. David programara seu telefone sigiloso para discar o número de
Rayford a cada 60 segundos e deixar uma mensagem digital que dizia
simplesmente ABORTE, acompanhada do número do celular de David.
Se eu soubesse que a coisa seria assim - disse Mac -, eu teria voado
até a França para impedir Rayford de levar seu plano adiante.
David, sem saber o que fazer, ligou seu computador para ouvir as
conversas telefônicas gravadas entre Leon e o chefe do serviço de
inteligência, Walter Moon, no dia anterior, no próprio dia e no dia seguinte
ao comunicado sobre a morte de Hattie. Quando ele conseguiu ouvir alguma
coisa útil que poderia ajudar Rayford, sua sensação de mal-estar aumentou.
Isto vai servir para piorar o seu dia, Mac - Preste atenção. É uma
conversa entre Leon e Moon.
O que você pretende fazer no caso Durham, Wally?
Já está feito, comandante. Ela facilitou as coisas. Faz tempo que
estamos tentando...
Faz muito tempo. O que está feito? O que você fez?
Conforme eu disse, já nos livramos do piloto. Ele estava usando o
nome falso de Dykes, mas rastreamos o avião e localizamos Sam Hanson,
em Louisiana.
Quando você diz que já se livraram do...
Você quer saber ou não? Digamos que Sam já virou picadinho. A
boneca está em cana em Bruxelas. Ela estava usando o nome de Mae Willie,
e decidimos manter esse nome na prisão para que ela possa ficar no
anonimato lá dentro, se quiser. Sei que o chefão... desculpe, Excel... Sua
Excelência não quer barulho a respeito disto.
Correto. Mas, quem acreditaria que ela é Hattie Durham? Ela foi dada
como morta.
E foi ela quem fez isso. A gente podia deixá-la na Bélgica para
sempre.
Que vantagem levamos nessa história?
Mandamos ao único parente vivo do piloto, o irmão dele, um bilhete
que parece ter sido escrito por Sam, dizendo que ficaria na França por uns
tempos e que o irmão não deveria se preocupar se não recebesse notícias
dele. Imaginamos que, com o passar do tempo, o irmão vai desconfiar de
alguma coisa ou perder a paciência e sair à procura dele. Só esperamos que
os amiguinhos da moça saibam do paradeiro dela pelo irmão, porque temos
uma surpresa para eles.
Estou ouvindo.
Pusemos um cara no apartamento que vai se identificar como Dykes.
No início, ele vai criar caso, mas depois
vai prometer informar qualquer coisa que souber sobre Hattie. Eles vão
cair como patinhos, se é que você está me entendendo.
Excelente, Wally.
Mac abanou a cabeça, aborrecido.
Você está mantendo Tsion informado? Rayford está se metendo em
um vespeiro, e aquela gente de lá, principalmente a filha dele, deve estar
preparada, caso ele nunca mais volte.
David assentiu e pegou o telefone, que começou a tocar. Ele apertou a
tecla de identificação de chamadas.
É ele!
Mac inclinou o corpo para ouvir, e David apertou a tecla para conversar
com Rayford.
Capitão Steele, onde o senhor está? Estou tentando ligar para o
senhor...
Sinto muito, senhor. Aqui fala a Sra. Dwayne Tuttle. Pode me chamar
de Trudy. Meu marido e o capitão Steele me incumbiram de dar entrada no
hotel e tomar conta da bagagem. Vi este telefone na sacola do capitão e
liguei-o apenas por curiosidade. Sinto muito. Há dezenas e dezenas de
mensagens para ele, todas vindas do mesmo número com o seguinte recado:
ABORTE. Achei que devia ligar.
Muito obrigado, madame. Onde está Rayf... o capitão Steele neste
momento?
Ele e meu marido estão a caminho para tentar encontrar a Srta.
Durham.
Seu marido tem celular?
Não, senhor, ele não...
Existe um meio de entrarmos em contato com eles?
Tenho o endereço do local para onde eles estão indo. Talvez vocês
queiram ligar para a moça.
Mac pegou o telefone.
Madame, meu nome é Mac McCullum. A senhora se lembra de mim
na África?
Sim, senhor, como vai...
Trudy, preste atenção e faça exatamente o que vou dizer. Trata-se de
um assunto de vida ou morte. Você conhece a cidade onde está?
Só do aeroporto até aqui.
Pegue um mapa na recepção e peça que alguém lhe informe qual o
caminho mais rápido até o endereço de Hattie. Dirija-se para lá
imediatamente. Não deixe que ninguém tente impedi-la, diga que explicará
mais tarde. Você precisa pedir ao capitão Steele que aborte. Ele vai entender.
Que aborte, sim, senhor.
Alguma pergunta?
Não, senhor.
Faça isto agora mesmo, Trudy! E ligue para nós informando o que
aconteceu.
Dwayne passou de carro diante do endereço da rua Marguerite e parou
um quarteirão e meio adiante.
Lugarzinho sujo este, não? - comentou Dwayne.
É perfeito para o que eles querem - disse Rayford. - Estou
impressionado. Talvez seja o que eles conseguiram de melhor nesta história
desastrosa. Vamos aguardar um pouco para ver se ela chega ou sai.
Após dez minutos, Rayford começou a ficar aflito ao ver que apenas
duas pessoas haviam saído do prédio, e nenhuma delas era Hattie.
Se eu não voltar em cinco minutos, vá atrás de mim -ele disse a
Dwayne.
E se eles estiverem armados?
Duvido. Se Sam for tão inteligente quanto o irmão, ele não sabe de
que lado deve apontar a arma. E Hattie ficaria preocupada em quebrar as
unhas.
Rayford, porém, gostaria de estar portando a arma que Albie descrevera.
Ele jamais atiraria em Hattie, e não se arriscaria a sofrer as conseqüências
por ter acertado um sujeito tão bobalhão como o irmão de Bo Hanson. A
missão não seria tão perigosa, ele imaginou. Hattie o deixaria entrar. Se não
deixasse, ele tinha forjado uma história sobre Sam Hanson para convencê-la.
No prédio de três andares, havia três conjuntos de dez caixas de correio
embutidas na parede do saguão, onde não havia nenhum porteiro ou vigia.
Rayford ficou surpreso por eles não terem escolhido um edifício com
sistema de interfones. Ele leu "J. Dykes" na caixa número 323 e subiu.
A escada entre um andar e outro era composta de quatro lances de
degraus. Quando chegou ao último andar, Rayford estava ofegante e com dor
no joelho. O apartamento 323 ficava na frente do prédio, à esquerda. Talvez
alguém o tivesse visto quando ele entrou no prédio. Sam e Hattie poderiam
ter visto o carro passando na rua.
Rayford se recompôs e avistou o botão da campainha em uma caixa de
metal no meio da porta do apartamento. Ao apertá-lo, ouviu um forte toque
de dois sons, que se poderia escutar também nos outros apartamentos do
andar. Rayford percebeu um movimento do outro lado da porta, mas ela não
foi aberta. Quando ele fez menção de apertar novamente o botão, teve a
certeza de que havia alguém lá dentro. Talvez a pessoa estivesse se vestindo.
Não se apresse - ele gritou. - Posso aguardar.
Ele imaginou que alguém tivesse andando pé ante pé até a porta para
ouvir. Não havia olho mágico. Quem quer que estivesse ali, deveria estar
prestando atenção para saber se ele havia desistido. Ele apertou o botão
rapidamente.
Quem é? - A voz era a de um homem.
Tom Agee.
Quem?
Thomas Agee.
Não sei quem é.
Sou amigo da mulher que mora aí.
Aqui não mora nenhuma mulher. Só eu.
Mae Willie não mora aí? Silêncio.
Por favor, posso falar com Mae? Diga a ela que é um amigo.
Rayford ouviu o som inconfundível de uma pistola semi-automática
sendo destravada. Ele virou-se. Talvez tivesse vindo da escada, mas a porta
abriu-se abruptamente e um jovem musculoso apareceu, colocando uma das
mãos em suas costas. Ele estava descalço e sem camisa, usando apenas calça
jeans.
Rayford decidiu enfrentá-lo.
Posso entrar?
Quem você disse que estava procurando?
Você ouviu, senão não teria aberto a porta. Onde ela está?
Eu já lhe disse, moro sozinho aqui. O que você quer com ela?
Com quem? Com a mulher que não mora aqui?
Desembuche logo ou suma daqui.
Você é Samuel Hanson?
O rapaz olhou firme para ele.
Meu nome é Jimmy Dykes.
Então você é Samuel Hanson. Onde está Hattie Durham? O rapaz
começou a fechar a porta.
Você bateu em porta errada, cara. Não há ninguém aqui com esse...
Rayford avançou e colocou um dos pés entre a porta e o batente.
Se eu bati em porta errada, como eu sabia o seu nome verdadeiro e o
de Hattie? Vamos, quero falar com ela.
"Dykes" parecia estar refletindo.
Você não é da CG, é?
Sou amigo de Hattie - disse Rayford bem alto para que ela pudesse
ouvi-lo.
Você também não se chama Tommy Agee, acertei?
Temos de ser muito cautelosos, Samuel. Sou Rayford Steele. Estou
trazendo notícias de seu irmão Bo.
Samuel continuava sem se mexer.
Hattie não está aqui, mas eu posso levá-lo até ela. Entre enquanto eu
troco de roupa.
Samuel escancarou a porta, e Rayford entrou. Enquanto a porta estava
sendo fechada, ele ouviu passos de alguém subindo as escadas correndo.
Samuel dirigiu-se para um outro cômodo, e Rayford o viu pegar uma arma
no bolso traseiro da calça e segurá-la.
Samuel colocou a arma em cima de uma mesa, bloqueando a visão de
Rayford com seu corpo. Ele pegou uma camisa e, quando começou a vestila,
alguém bateu com força na porta e apertou a campainha ao mesmo tempo,
fazendo com que os dois se assustassem.
Rayford esperava que fosse Hattie. Sem fazer caso de Samuel, ele abriu a
porta. Trudy?! Os pensamentos rodavam em sua cabeça em câmara lenta
enquanto ele tentava desesperadamente lembrar-se do nome fictício de
Trudy. Ao olhar para Samuel, ele viu o rapaz tirando a camisa com tanta
força a ponto de rasgá-la e esticando o braço para pegar a arma.
Aborte! - gritou Trudy, tentando tirar Rayford do apartamento, mas
ele percebeu que nenhum dos dois poderia fugir daquela arma. O fato de
Trudy aparecer ali com uma mensagem pedindo-lhe para abortar o fez
entender que aquele rapaz, fosse quem fosse, ia matá-los.
Trudy disparou escada abaixo, e Rayford imaginou que ele receberia
uma bala calibre 45 nas costas e outra no alto da cabeça. Trudy seria morta
antes de chegar ao primeiro andar. Rayford não poderia deixar aquele rapaz
sair do apartamento.
Ele virou-se enquanto a porta se fechava lentamente e correu na direção
do moço, que havia se livrado da camisa rasgada e segurava a arma. Em
seguida, Rayford viu que ele engatilhou a arma e colocou o dedo indicador
no gatilho.
Rayford não queria cometer a loucura de lutar com um homem que
portava uma arma. Ele conseguiria facilmente cobrir a mão do rapaz com as
suas, mas as probabilidades de levar vantagem não lhe pareciam favoráveis.
Resolveu, então, investir contra ele com as mãos fechadas, de encontro ao
peito, cotovelos para fora, como um jogador de futebol americano indo de
encontro ao adversário que acabou de agarrara a bola.
O rapaz não se intimidou, mas voou para longe. Rayford o atingiu no
pescoço com o cotovelo, atirando o corpo dele para trás com a cabeça para a
frente. Com o impulso da pancada, os pés descalços do rapaz escorregaram
no piso e ele tropeçou em uma mesinha, caindo com os pés para cima e
batendo a parte posterior da cabeça com força na janela. Ainda tonto, com a
arma na mão e o dedo no gatilho, o rapaz viu Rayford correr em direção à
porta, tão rápido que os pés dele mal tocavam o chão. Rayford tinha a
impressão de que estava tendo um pesadelo, sendo perseguido por um
monstro e correndo na lama.
Ele abriu a porta com força e olhou para trás enquanto corria. A cabeça
do rapaz continuava presa no vidro quebrado da janela. Ele estava na posição
horizontal, com o tronco abaixo do nível dos pés. Por mais que se esforçasse
e se contorcesse, não conseguia sair dali.
No entanto, isso não o impediu de atirar. Dois estrondos ensurdecedores,
quase simultâneos, fizeram desabar a parede divisória de madeira.
Rayford desceu as escadas, pulando três ou quatro degraus por vez,
quase passando por cima de Trudy, que tentava fugir o mais rápido que
podia, descendo um degrau por vez. Quando chegou ao segundo andar,
Rayford agarrou o corrimão e rodopiou no meio da escada, o que serviu para
piorar a dor no joelho. Ele só conseguiu equilibrar-se no momento em que
Trudy chegava ao último degrau.
Ela gemia enquanto corria como se estivesse certa de que receberia um
tiro. Rayford também tinha a sensação de que uma bala atravessaria suas
costas.
Trudy havia deixado o carro, com o motor ligado e a porta aberta, bem
em frente ao prédio. Dwayne a vira chegar e encostara o carro atrás do dela,
sem saber que outra atitude tomar. Quando avistou Rayford e Trudy
correndo em sua direção, ele gritou:
O que...?
Acelere! - disse Rayford, fazendo um gesto para que ele
desaparecesse dali. - Vamos dar um jeito de alcançar você!
Rayford sentou-se rapidamente ao volante, e Trudy abriu a porta do lado
do passageiro sob uma saraivada de balas, vindas do terceiro andar. Assim
que ouviu a porta ser fechada, Rayford pisou fundo no acelerador, deixando
atrás de si um rasto de poeira e cascalho.
Seus instintos o salvaram, ele sabia disso, mas, enquanto seu coração
bombeava sangue para todo o corpo, Rayford não conseguia sentir-se
agradecido por aquela presença de espírito. Ele sabia que Deus estivera a seu
lado, protegendo-o, poupando sua vida. Mas, naquele momento, Rayford
sentia ficar mais forte a raiva que o atormentava havia meses.
Aquele sentimento iniciava e terminava em Nicolae Carpathia. Rayford
queria assassinar o homem e decidiu que levaria seu plano adiante, mesmo
que fosse a última coisa que ele fizesse neste mundo. E ele pouco se
importava com isso. Faria o possível para comprar a arma de Albie e estaria
no lugar certo e no momento certo, custasse o que custasse.
Trudy, ofegante, esforçava-se para atar o cinto de segurança. Enquanto
Rayford seguia Dwayne pelas ruas estreitas da cidade, ela pegou o telefone
dele no chão do carro e perguntou:
Qual... é.... o número... de discagem rápida para Mac...?
Dois.
Ela apertou o botão, e Rayford ouviu a voz de Mac atendendo.
Sra. Tuttle?
Mi... mi... missão cumprida! - exclamou Trudy, passando o telefone a
Rayford e irrompendo num choro convulsivo.
DEZESSETE
David estava exausto.
Ele e Mac tinham ouvido o relato de Rayford enquanto os dois carros
atravessavam, em alta velocidade, as ruas de Le Havre em direção ao hotel.
Todos concordavam que, se eles não estivessem sendo seguidos, chegariam
rapidamente ao hotel onde estavam registrados sob nomes falsos. Porém,
teriam de sair do país o mais rápido possível. Rayford dissera seu nome falso
e o verdadeiro a "Samuel", que, evidentemente, era um espião da CG. Se ele
não estivesse gravemente ferido, já teria informado o pessoal de lá que
Rayford estava na França.
Aquilo poderia ter dificultado a passagem de Rayford pela alfândega.
Felizmente, ele separou-se dos "Hills", que passaram antes pela alfândega. O
nome falso de Rayford não foi relacionado com o deles.
Não podemos ajudá-lo daqui - disse David.
Manterei contato - disse Rayford. - Só que não vou voltar direto para
casa.
Buck partiu de Israel sem visitar o Muro das Lamentações e sem relatar a
Tsion os detalhes de seu encontro com Chaim Rosenzweig. Queria fazer isso
pessoalmente, porque sabia que Tsion se sentiria tão pesaroso quanto ele.
Todos eles haviam aprendido a amar Chaim. Não bastava dizer que não foi
possível fazer o israelense tomar uma decisão. Os crentes que amavam
Chaim queriam que ele se convertesse.
Buck ficou satisfeito com o caloroso encontro que teve com Lukas
Miklos e sua esposa. Em seu inglês arrastado, a Sra. Miklos contou a Buck
com orgulho:
Laslos adora uma conspiração. Ele me lembra dia e noite que o nome
do amigo é Greg North, e não o outro que eu sei.
Laslos cumprira sua parte no acordo. O comércio de linhito prosperou
tanto que ele obteve grandes lucros. Seu plano era vender a empresa à
Comunidade Global pouco antes do início das restrições de compra e venda,
que estavam prestes a ser postas em prática.
Laslos mostrou a Buck uma área enorme, instalada em um novo local,
onde ele abrigaria os caminhões e empilhadeiras para poder embarcar
mercadorias aos diversos pontos onde funcionava a cooperativa. Esse novo
empreendimento seria semelhante a um negócio aprovado pela CG, só que
dez vezes maior do que aparentava. Seria o centro das atividades da
cooperativa naquela parte do mundo.
Buck também visitou a igreja secreta de Laslos, composta de um grande
número de crentes liderados por um judeu convertido, cuja preocupação
principal era conseguir acomodar tanta gente no local. Buck retornou aos
Estados Unidos animado pelo que viu na Grécia, mas triste pela indecisão
espiritual de Chaim Rosenzweig.
Ao chegar à casa secreta, ele encontrou Tsion e Chloe nervosos por
causa de uma atitude que tiveram de tomar com relação a Leah. Buck
aprovou, mas Tsion e Chloe estavam preocupados, sem saber se deviam ir
adiante sem consultar Rayford. Em razão da quase tragédia com Rayford e
da dificuldade de comunicação entre os membros do Comando Tribulação
com o resto do mundo, Tsion sugerira designar uma pessoa para centralizar
todas as informações. Leah se prontificou imediatamente, dizendo que tinha
tempo disponível entre o preparo de uma refeição e outra. Chloe passara
horas com ela, ensinando-a a lidar com o computador, e Leah disse que
nunca se sentira tão realizada.
Os quatro reuniram-se ao redor do computador, e Leah contou que havia
encontrado um programa que a ajudava a incorporar todas as mensagens
recebidas e transmitidas. Com um pouco de atenção e a ajuda de algumas
teclas, ela transmitia a todos da casa as mensagens que saíam e chegavam.
Assim, nunca vamos ter dúvidas se alguém está ou não por dentro do
assunto, se já tomou conhecimento ou não. Se Mac ou David relatarem um
incidente que todos necessitem saber, vou providenciar para que todos
tomem conhecimento.
A medida que a metade do período da Tribulação se aproximava, Buck
tinha a sensação de que eles estavam convenientemente preparados.
Rayford tinha de ser justo com Dwayne. Talvez ele fosse um homem
espalhafatoso, mas havia engendrado o melhor plano para tirar Rayford de
Le Havre.
Não precisamos usar minhas idéias para nos livrar do amiguinho de
Hattie - disse Dwayne -, portanto estamos quites.
Evidentemente, Trudy ficou orgulhosa de sua façanha aquela manhã,
mas continuava abalada e não queria assumir responsabilidade por outra
aventura no momento em que estivessem saindo do país.
Trudy e Dwayne chegaram ao aeroporto 15 minutos antes de Rayford
para entregar o carro alugado e preparar o avião para a decolagem. Rayford
deveria chegar logo depois e entregar o outro carro. Em seguida, ele se
dirigiria normalmente para os fundos do terreno do estacionamento, onde
havia uma cerca que separava os carros do terminal. Dwayne notara que o
local atrás da cerca dava acesso à extremidade do terminal do aeroporto e à
pista. Você pode pular a cerca e correr até o avião - dissera Dwayne -,
assim que ouvir os motores funcionando, ou eu conduzo o avião até perto da
cerca para facilitar as coisas para você.
Quais são os prós e os contras?
Você vai ter de correr um bocado até o avião com esse joelho
dolorido. Por outro lado, se eu conduzir o Super J até a cerca, vou atrair a
atenção de muita gente e pode ser que alguma autoridade não permita que eu
me aproxime daquela área.
Ficou decidido que Dwayne deixaria o Super J na posição de decolagem
e, em seguida, pediria permissão para taxiar até perto do terminal a fim de
verificar um problema na parte inferior do avião. Com isso, ele ficaria perto
do local onde Rayford pularia a cerca.
Vou dizer que ouvi um rangido em uma das rodas e tentar levá-los
comigo para examinarmos a roda juntos. Enquanto isso, você entra no avião.
Deu tudo certo até o momento em que Rayford parou o carro no
estacionamento. O Super J estava na pista, com os motores funcionando. O
funcionário da locadora de carros perguntou-lhe alguma coisa em francês e,
em seguida, traduziu para o inglês.
O senhor vai pagar com cartão de crédito?
Rayford assentiu com a cabeça. O funcionário começou a imprimir o
recibo, olhando ora para Rayford ora para a impressora.
Com licença - ele disse, dando as costas a Rayford e falando em seu
walkie-talkie. Rayford entendia pouco de francês, mas teve a certeza de que
o funcionário estava fazendo algumas perguntas a um colega sobre "Thomas
Agee".
Enquanto isso, o recibo foi impresso, mas o funcionário não o entregou a
Rayford.
Não deu certo - ele disse.
O que você está dizendo? - perguntou Rayford. - O cartão está aí.
Por favor, aguarde. Vou tentar novamente.
Estou atrasado - disse Rayford, recuando ao perceber movimento
perto do terminal. - Mande a conta para mim.
Não, o senhor precisa aguardar. Precisamos de um novo cartão.
Mande a conta para mim - insistiu Rayford.
Ele olhou por cima dos ombros e viu o Super J taxiando lentamente em
sua direção. Três homens saíram apressados do terminal rumo ao
estacionamento. Rayford correu para a cerca, e um dos homens gritou
pedindo ajuda. Pelos cálculos de Rayford, a cerca devia ter mais ou menos
1,40m de altura. O Super J estava a uns 100 metros de distância, rodando
lentamente. Os três homens que corriam atrás de Rayford estavam a
aproximadamente 30 metros dele. Todos pareciam jovens e de porte atlético.
Rayford tentou dar um impulso e saltar por cima da cerca, mas o salto do
sapato do pé dianteiro enroscou-se nela. Com a parada brusca, ele perdeu o
equilíbrio e ficou com o corpo tombado para o outro lado da cerca. Ele
agarrou-se na parte superior da cerca para não se estatelar no chão, mas,
enquanto tentava se soltar, ficou de cabeça para baixo por alguns instantes.
Finalmente, ao conseguir se desenroscar, caiu, batendo o ombro com força
no chão, levantou-se rapidamente e correu em direção ao avião.
Ao olhar de relance para trás, ele viu que seus perseguidores tinham
conseguido pular a cerca com facilidade. Se Dwayne não aumentasse a
velocidade, eles alcançariam Rayford. Ele ouviu o ronco dos motores e viu
um homem com uma prancheta na mão acenando para que Dwayne
reduzisse a velocidade. Felizmente, ele não obedeceu. Trudy abaixou a
escada, e Rayford tentou subir.
Os homens gritavam para que ele parasse. Enquanto Trudy inclinava o
corpo para fora tentando segurar a mão dele, Rayford ouviu passos atrás de
si. No momento em que ele deu um impulso para agarrar-se à escada, um
dos homens, o mais rápido deles, mergulhou no chão e segurou-o pelo
calcanhar. Rayford desequilibrou-se e quase caiu da escada pela lateral, mas
Trudy provou ser mais forte do que aparentava. Rayford agarrou o pulso dela
e receou arrastá-la para fora, mas o peso dele a fez cair no piso do avião. Ela
ficou atravessada na porta, com os ombros presos em um dos lados e os
joelhos no outro. Ele saltou sobre ela. Dwayne acelerou, e Rayford ajudou
Trudy a fechar a porta.
É a segunda vez que você salva minha vida hoje - ele disse. Trudy
sorriu, desabando trêmula no banco.
E também foi a última. Estou muito cansada. Dwayne gritava como
se estivesse em um rodeio enquanto o Super J disparava rumo ao céu.
Que maravilha! Ela não é fenomenal? Segura, peão!
É uma bela máquina - disse Rayford, imaginando a dor que sentiria
no corpo na manhã seguinte.
Dwayne lançou-lhe um olhar desconcertado.
Eu não estava falando da aeronave, parceiro. Estava falando desta
mulherzinha.
Trudy inclinou-se para a frente e passou os dois braços ao redor do
pescoço do marido.
É melhor você parar de me chamar assim - ela protestou.
Querida, vou chamar você da maneira como este meu velho coração
mandar. Segura, peão!
Você está indo para o oeste? - perguntou Rayford repentinamente.
Vou na direção que você quiser, Rafe. É só dizer.
Leste.
Entendido, e vou ficar abaixo da linha do radar por uns tempos até
que eles se esqueçam de tentar nos localizar. Apertem os cintos e se
segurem!
Dwayne não estava brincando. Ele fez uma manobra tão rápida para
mudar a rota do Super J que a cabeça de Rayford ficou grudada no encosto
do banco.
Igual a uma montanha-russa, não? Você vai adorar esta viagem!
Rayford resmungou alguma coisa para si mesmo.
Que tal esta outra manobra, capitão? - perguntou Dwayne.
Eu disse que você precisa ser um pouco mais entusiasmado. Dwayne
riu tanto que chegou a chorar.
No final do dia, David recebeu um e-mail pessoal de Annie,
comunicando que o chefe do departamento dela e dois outros funcionários
do alto escalão haviam-se reunido rapidamente no escritório de Fortunato.
David respondeu o seguinte: "Eu adoraria de todo o coração estar a seu lado
mesmo que você não fosse o dedo-duro mais importante da organização."
Enquanto ele vasculhava o disco rígido do computador tentando localizar o
áudio da referida reunião, a tela exibiu outro sinal de mensagem recebida.
Era outra de Annie. "Nunca imaginei receber um elogio tão lisonjeiro do
amor de minha vida. O dedo-duro lhe agradece do fundo do coração. Beijos,
AC."
Quando encontrou o que procurava, David reconheceu a voz de seu
colega, o chefe do departamento de Annie. Depois de fazer os rapapés
obrigatórios, ele passou a palavra ao chefe de análise do serviço de
inteligência. Jim Hickman era muito inteligente, senhor de si e parecia gostar
do som de sua voz.
Esses beatos - Hickman começou a dizer - são aquilo que eu chamo
de fundamentalistas. Eles acreditam em escritos antigos, principalmente na
Tora judaica e no Novo Testamento cristão, e não fazem distinção entre
registros históricos, muitos deles corretos, e registros figurativos, com
linguagem simbólica, das tais passagens proféticas. Por exemplo, qualquer
pessoa, inclusive eu, que tenha estudado superficialmente a história das
antigas civilizações sabe que muitos dos chamados livros proféticos da
Bíblia não são nada proféticos. Depois da ocorrência de alguns fenômenos
sobrenaturais, alguém poderia fazer essa descrição cheia de imaginação
encaixar-se ao evento. Por exemplo, essa onda atual de morte por fogo,
fumaça e enxofre, talvez provocada por essa gente, passou a ser o
cumprimento daquilo que eles acreditam ser uma profecia, que inclui cavalos
monstruosos com cabeça de leão, montados por 200 milhões de cavaleiros.
Aonde você quer chegar, Jim? - perguntou Fortunato. -Sua
Excelência está à procura de fatos específicos.
Ah! sim, comandante. Só posso dizer o seguinte: como esses beatos
levam as palavras ao pé da letra, eles atribuem a esses dois pregadores
malucos...
O potentado os chama de Dupla de Jerusalém! - disse Fortunato.
Sim! - exclamou Hickman. - Adorei o termo! Os seguidores de Ben-
Judá acreditam que esses velhos caducos são as tais testemunhas
mencionadas no capítulo 11 do livro de Apocalipse. Um dos versículos deste
capítulo diz: "Darei às minhas duas testemunhas que profetizem por mil
duzentos e sessenta dias, vestidas de pano de saco."
Então, é por isso que aqueles dois se vestem com roupas de aniagem -
disse Fortunato. - Eles estão tentando nos fazer acreditar que são essas tais
testemunhas.
Hickman aquiesceu.
Exatamente, comandante. E Ben-Judá sempre garantiu que esse
período começou no dia em que o governo mundial assinou um tratado de
paz com Israel. Se contarmos 1.260 dias a partir daquela data, chegaremos
ao que os pregadores chamam de "tempo determinado".
Fortunato pediu licença aos outros para ficar a sós com Hickman por
alguns instantes. David ouviu o som de cadeiras sendo arrastadas e de
pessoas saindo. Em seguida, Fortunato disse:
Jim, preciso confidenciar-lhe uma coisa que está me incomodando.
Você é um sujeito esperto...
Obrigado, senhor.
Nós dois sabemos que existem coisas nesses escritos antigos que são
difíceis de ser falsificados.
Não sei, não. A transformação da água em sangue está sendo feita
pelas mesmas pessoas que estão nos matando com a guerra biológica. Tratase
de um truque, alguma coisa que eles puseram nas estações de tratamento
de água.
Mas no Estádio Teddy Kollek a água transformou-se em sangue
depois de engarrafada.
Tenho visto mágicos fazerem a mesma coisa. Eles colocam alguma
substância que reage de acordo com a temperatura, talvez quando ela cai em
determinado período da noite. Se soubéssemos quando isso ocorre,
poderíamos fazer o mesmo e provocar o fenômeno.
E por que está demorando tanto tempo para chover?
Coincidência! Já vi Israel passar meses sem chuva. Qual é a
novidade? É fácil alguém afirmar que está impedindo que chova quando não
há chuva. O que eles vão dizer quando a chuva começar a cair? Que nos
deram uma trégua?
As pessoas que tentaram matá-los foram incineradas...
Alguém disse que os dois têm um lança-chamas escondido, que usam
quando a multidão se distrai. Francamente, comandante, o senhor não está
querendo dizer que aqueles dois expelem fogo pela boca!
Fortunato permaneceu em silêncio por alguns instantes. Em seguida,
disse: Bem, se eles não são quem dizem ser, como poderemos saber que
ficarão vulneráveis no momento determinado?
Não vamos saber. Mas ou eles são vulneráveis, ou não são quem
dizem ser. De qualquer maneira, nós venceremos. Eles sairão perdendo.
David deveria transmitir a informação a Tsion, mas precisava antes ouvir
o relato de Fortunato a Carpathia. Ele verificou os telefones de Fortunato e
Margaret. Nada. O escritório de Fortunato estava silencioso. Ele resolveu dar
uma vasculhada no escritório de Carpathia. Fortunato tinha acabado de
relatar sua conversa com Hickman.
Mil duzentos e sessenta dias desde o tratado -repetiu Carpathia. - Já
decidimos fazer uma grande festa. Agora sabemos exatamente quando
devemos encená-la. Você precisa elaborar um plano de trabalho, Leon.
Precisa fazer com que os potentados regionais fiquem contra Peter Segundo.
É verdade que já estão contra ele, mas o tal homem precisa ser eliminado.
Vou deixar o assunto sob sua responsabilidade. Eu tomarei conta das tais
testemunhas. O mundo, principalmente Israel, aguarda ansiosamente o fim
daqueles dois. Durante meses, acreditei que não caberia a mim a tarefa de
livrar o mundo dos dois. Pensei em dar uma ordem para que as tropas da CG
os matassem. Mas eles serão tão malvistos até mesmo por seus seguidores
que resolvi eliminá-los pessoalmente, transformando esse ato na façanha
mais importante de minha vida até agora.
O senhor está certo disso?
Você não concorda?
Seria fácil demais, Excelência. Melhor fazer isso sem comprometê-lo.
O senhor poderia até deplorar o ato publicamente, reafirmando que incentiva
a liberdade de expressão e de idéias.
Mas não a liberdade para atormentar o mundo com pragas e
julgamentos, Leon!
Essas pragas e julgamentos não sugerem que eles são quem dizem
ser? Isso não faz nenhuma diferença, você não entende? Quero
responsabilidade e votos de confiança, ganhar pontos por me levantar contra
esses impostores.
Claro. Como sempre, Excelência, o senhor é insuperável.
O Super J pousou no final da pista em Al Basrah. Assim que eles
chegaram, vários funcionários do aeroporto correram descalços até o avião,
olhando curiosos para suas linhas arrojadas e a bandeira britânica. No local
em que "Dart", o alter ego australiano de Dwayne colocara o emblema
"Trabalho Honesto", havia agora um decalque que dizia "Angus Negro".
Rayford ficou impressionado com o sotaque britânico carregado de
Dwayne e até mesmo com o volume de sua voz.
Muito bem, cavalheiros - ele disse. - Sou Ian Hill, proprietário da
aeronave, e esta é minha esposa, Eiva. Obrigado por cuidarem do
reabastecimento.
Rayford apresentou-se como Jesse Gonder, e um dos funcionários
entregou-lhe um envelope contendo chaves e um bilhete que dizia: "Você se
lembra do caminhão. Vá com ele até este endereço. Sigo atrás de você. Al
B."
Rayford encontrou o velho caminhão de Albie, e eles se dirigiram até um
local de comércio muito movimentado no centro da cidade. Ele, Dwayne e
Trudy aguardaram Albie sentados sob o toldo de um agitado café encravado
numa construção de pedra.
Aparentemente, Dwayne sabia manter um tom de voz baixo em público,
principalmente quando precisava acentuar seu sotaque britânico. Os três
bebericavam refrigerantes enquanto Rayford e Dwayne conversavam
reservadamente sobre o Comando Tribulação. Trudy cochilava entre um
gole e outro.
Sinto muito - ela disse. - Foi aventura demais para um dia só.
Ela é um verdadeiro soldado - cochichou Dwayne, olhando para os
fregueses sentados por perto, que, provavelmente, não entendiam o que ele
dizia. - Mas acho que ela nunca ficou tão assustada na vida.
Trudy concordou com a cabeça e em seguida continuou a cochilar.
Sua filha é um azougue, e não me importo de dizer isso a você, Rafe.
Sei que vocês todos têm muitas idéias, mas ela conseguiu organizar essa
cooperativa como ninguém. Você sabe que tenho sido exageradamente
arrojado a respeito de minhas crenças.
Ouvi dizer.
Vou ter de pôr um fim nisso assim que exigirem que a gente tenha
uma marca para comprar e vender. A posição que defendo vai ficar clara, e,
pelo que entendo, posso perder a cabeça. Todos nós podemos perder a
cabeça. Pelo menos é isso o que dizem as mensagens do pastor Ben-Judá.
Rayford deu um sorriso cansado. Ele estava pensando em Hattie e na
tolice que ela cometera para ser presa. Mas ele nunca vira ninguém referir-se
a Tsion como pastor Ben-Judá, e gostou disso. Era um título perfeito. Ele era
mais que um pastor do Comando Tribulação. Era o pastor de qualquer
pessoa que desejasse ouvir suas pregações cibernéticas diárias.
Enquanto Dwayne falava sobre a honra que ele e Trudy sentiam por ser
os elementos principais da região sudoeste na condução dos negócios da
cooperativa de mercadorias, Rayford pensava na sugestão de Leah. Ela
estava certa; não tinha mais obrigações familiares. Talvez pudesse deslocarse
de um lugar para outro. Era uma fugitiva recente em comparação aos
outros que moravam na casa secreta. Sua fisionomia só seria reconhecida
pelo pessoal da CG de sua cidade. Com um pouco de maquiagem, lentes de
contato, tintura no cabelo, ela poderia viajar para qualquer lugar.
Até mesmo para Bruxelas.
Ela poderia passar por parente de Hattie. Alguém teria de dar a ela a
triste notícia sobre sua irmã. Rayford esperava que a CG mantivesse Hattie
viva até que ela se convertesse, mas não se importaria se ela ficasse presa até
que eles ultrapassassem a metade do período da Tribulação. Se ela fosse
libertada, tentaria assassinar Nicolae. Rayford tinha de admitir que aquela
façanha lhe pertencia. Embora soubesse que agiria de modo ridículo, ele
teria mais condições que Hattie de perpetrar o ato. Fosse quem fosse o autor
do crime, não sairia ileso. Ele orou silenciosamente: Senhor, peço-te que
entendas meus motivos. Eu desejo o que tu desejas. Desejo que Hattie seja
salva antes que cometa um ato que possa pôr um fim à vida dela.
Eu gostaria de conhecer aquele grego do qual você me falou -
Dwayne estava dizendo. - Explorar o oceano a partir do Estreito de Bering,
despachar grãos do sudoeste e comercializar produtos da Grécia são coisas
que fazem parte daquilo que a Sra. Williams já pôs em prática. Tudo vai dar
certo, Rafe.
Uma charanga mais velha que o caminhão emprestado por Albie freou
com grande estardalhaço na rua estreita. Albie saltou, deu um tapa na lataria
da charanga e ela continuou a rodar, sacolejando. Rayford levantou-se para
cumprimentá-lo, mas Albie, carregando um saco de papel pardo, fez um
gesto para que ele se sentasse. Albie curvou-se para cumprimentar Trudy,
mas ela ainda cochilava, apoiando o queixo com a mão.
Um de meus funcionários me disse que viu pessoas estranhas - ele
cochichou, puxando uma cadeira.
Pode confiar em nós, Albie - disse Dwayne.
Eu confio porque alguém já me falou do senhor - disse Albie. - O
senhor está com ele. Eu confio nele, confio no senhor.
Pessoas estranhas onde? - perguntou Rayford, não querendo se
envolver novamente com a CG. - Elas estão aqui?
Você nunca vai vê-las aqui - disse Albie. - Isso não significa que não
estejam aqui. Elas aprenderam a se misturar no meio do povo.
Então, onde elas estão?
No aeroporto.
Precisamos voltar para aquele avião, Albie.
Não se preocupe. Pedi a alguém que colasse um aviso de quarentena
na porta, igual ao da CG, alertando que há vapores de enxofre a bordo.
Ninguém vai ousar aproximar-se. E, até onde sei, não há ninguém da CG na
pista. Se vocês conseguirem levantar vôo e permanecer abaixo da linha do
radar por alguns instantes, poderão fugir.
Mas eles estão à nossa procura? Albie encolheu os ombros.
Sou um empresário, e não um espião. Vocês conhecem essas coisas
melhor do que eu. Vamos, deixe-me mostrar a sua mercadoria. Você não se
importa que seus amigos a vejam?
De jeito nenhum.
Vamos nos afastar daqui para testá-la.
Prefiro ficar aqui com Trudy - disse Dwayne. Ela parecia estar
dormindo profundamente, com a cabeça sobre os braços apoiados na mesa. -
Não se esqueça de nós aqui, ouviu?
Fique atento - cochichou Rayford, levantando-se.
Não se preocupe comigo, parceiro. Não vou cochilar. Não me divirto
tanto desde que minha irmã foi devorada pelos porcos.
Rayford lançou um olhar perplexo para Dwayne.
Estou brincando, Rafe. É uma expressão que usamos no interior.
É verdade? - Leon perguntou.
Não entendi, senhor - disse David, sentando-se no escritório de
Fortunato.
É verdade que você não viu o relatório de auditoria interna sobre seu
departamento?
David lutou para manter a calma.
Eu sabia que eles estavam fazendo uma auditoria, mas achei que não
ficaram lá o tempo suficiente para fazer um relatório.
Eles chegaram a algumas conclusões, e eu não gostei nem um pouco.
Ninguém conversou comigo.
Desde quando o pessoal da auditoria interna conversa com alguém?
Eles fazem o que precisa ser feito, mas nunca trocam idéias com ninguém.
Você também não vai gostar do que eles encontraram, mas continuo
insistindo para que você responda à minha pergunta.
David sabia que sua pulsação estava rápida demais e tentou controlar a
respiração.
Eu gostaria muito de analisar o que eles encontraram e me explicar da
melhor maneira que puder.
Eles lhe deram notas altas. Disseram que a culpa não é sua.
Culpa?
Pelo fiasco, pelo fracasso, mas que isso não tem nada a ver com sua
liderança, que eles consideram excelente.
O que eles estão chamando de fracasso?
É claro que o fracasso não tem relação com o estado de espírito de
seus funcionários. Nem com sua ética de trabalho, David. Com exceção do
potentado e de mim, você trabalha muito mais do que qualquer outra pessoa.
Bem, eu não sabia disso...
O ponto principal, Hassid, é que eles estão recomendando cancelar o
projeto para detectar as transmissões via Internet.
Oh! não! Eu gostaria de continuar tentando.
Sei que esse trabalho é a menina de seus olhos e que você pôs a alma
e o coração nele. O fato é que o custo do projeto não é compensador.
Mas não valeria a pena investir um pouco mais de tempo para ver se
conseguimos descobrir alguma coisa?
Você não está nem perto de descobrir alguma coisa, está, David? Seja
honesto. A auditoria interna diz que você não obteve nenhum sucesso desde
o dia em que o equipamento foi instalado e que, em razão do número de
horas trabalhadas e do dinheiro que foi gasto, não faz sentido dar
prosseguimento ao projeto. David simulou uma expressão de grande
desapontamento.
Vou voltar à minha pergunta inicial - disse Leon. - É verdade? É
verdade que esse projeto está nos trazendo mais dores de cabeça do que
esperávamos? Devemos cancelá-lo?
O que o potentado vai dizer?
Esta é a minha preocupação. Vou usar o argumento de que não temos
tanta necessidade de saber de onde partem aqueles e-mails e que os
seguidores de Ben-Judá estão nos fazendo de tolos. Ele vai concordar. E
você? Quem sou eu para discordar do potentado e do supremo comandante?
É assim que se fala, garoto.
Sem mencionar a auditoria interna.
Você entendeu o espírito da coisa. Tenho uma idéia para aproveitar
aquelas horas de trabalho e os computadores.
Que bom! Detesto desperdiçar tempo e dinheiro.
Agora que a tripulação da cabina de comando voltou ao trabalho e
que o Fênix 216 está totalmente equipado, Sua Excelência incumbiu-me de
fazer uma viagem para visitar as dez regiões nas próximas semanas. Como
preparativo para a celebração de gala por termos chegado ao ponto
intermediário do acordo de paz de sete anos, assinado entre a Comunidade
Global e Israel, ele gostaria que eu me reunisse com cada um dos potentados
regionais, inclusive com o novo líder africano. Eu gostaria de poder contar
com seus funcionários, aqueles que estarão com o tempo ocioso em razão do
cancelamento do outro projeto...
Com licença, comandante, tenho uma pergunta tola...
A única pergunta tola é aquela que não é feita.
Nunca ouvi essa pérola antes!, pensou David. - Bem, quero dizer que
não diz respeito à minha área de atuação.
Desembuche.
Em termos de custos, não seria melhor que os dez... hã... potentados
viessem até aqui ou se encontrassem com o senhor em algum lugar
qualquer?
Seu raciocínio tem lógica, mas existem motivos para agir da maneira
como lhe falei. - Leon falava agora de maneira condescendente. Com as
mãos abertas e juntando as pontas dos dedos, ele prosseguiu. - Além de
muitas outras excelentes qualidades de liderança que possui, Sua Excelência
Nicolae Carpathia é um diplomata incomparável. Ele lidera por meio de
exemplos. Lidera sendo útil aos outros. Lidera ouvindo. Lidera delegando
poderes, e esta é a razão de minha viagem. O potentado sabe que cada um de
seus dez subpotentados necessita ter a sensação de que está sempre contando
com a presença dele. Para mantê-los leais, fortalecidos e inspirados, ele
prefere delegar-lhes autoridade e autonomia dentro de seus territórios. O fato
de Sua Excelência me enviar como seu emissário para visitá-los, digamos,
em seus campos de atuação, é uma honra para eles.
Isto lhes dará a oportunidade de estender seus tapetes vermelhos -
prosseguiu Fortunato -, provar a seus súditos que estão sendo honrados com
a presença de um visitante do palácio. Em cada capital internacional, farei
um convite oficial em público ao potentado regional para que compareça à
Festa de Gala Global em setembro. Seus súditos também serão convidados, e
insistiremos que estendam a viagem a Jerusalém, fazendo uma peregrinação
a Nova Babilônia.
Interessante - disse David.
Eu esperava este seu comentário. E é aí que você, seus funcionários e
todos os computadores disponíveis entram na história. Para mim, Sua
Excelência sempre foi um exemplo impecável de orador público. Você sabe
que ele fala vários idiomas fluentemente. Minha fluência não chega a tanto,
mas eu gostaria de compreender uma frase ou duas do idioma falado em
cada grupo principal ao qual deverei dirigir a palavra. Não sei se você já
notou, mas o potentado nunca, nunca mesmo, usa gírias, nem mesmo durante
uma conversa informal.
Tenho tido pouco contato com ele...
Claro. Mas deixe-me falar sobre o magnífico dom de oratória que ele
possui e de sua habilidade inigualável para memorizar páginas e páginas de
um discurso, fazendo com que jamais pareça longo ou inoportuno. A
verdade é a seguinte: o potentado Carpathia conhece a história de cada país
que visita com detalhes, tanto quanto o próprio povo a quem ele dirige a
palavra. Você já teve a oportunidade de ver os videoteipes de seu primeiro
discurso na Organização das Nações Unidas três anos atrás?
Tenho certeza de que todos nós tivemos.
Aquele discurso em si, David, praticamente selou sua nomeação
como secretário-geral e, depois, líder da nova ordem mundial. Ele subiu à
tribuna como um simples orador convidado, presidente de um pequenino
país do leste europeu. A posição que o potentado ocupou como secretáriogeral
nem sequer estava vaga quando ele iniciou seu discurso. No entanto,
com sua inteligência, poder de sedução, perspicácia, conhecimento do
idioma de cada país filiado à ONU e uma extraordinária narrativa da história
daquela importante instituição, ele granjeou a simpatia do mundo inteiro. Se
não tivéssemos acabado de perder entes queridos em conseqüência dos
desaparecimentos em
todo o planeta, que nos fizeram mergulhar no mais profundo sofrimento,
eu garanto que a platéia que assistiu àquele maravilhoso discurso teria sido
muito maior. Mas, aparentemente, tudo transcorreu conforme Deus ordenou,
e Sua Excelência foi perfeito naquele momento. Fortunato tinha um olhar
perdido.
Ah! foi um momento mágico - ele disse. - Eu sabia, dentro do
coração, que se um dia tivesse o privilégio de contribuir, nem que fosse de
maneira ínfima, para os ideais e objetivos daquele homem, eu confiaria
minha vida a ele. Você já sentiu a mesma coisa a respeito de alguém, David?
Posso dizer que sim. Sinto essa mesma devoção dentro de mim.
Aquela frase pareceu tirar Leon de seus devaneios. - Sério? Posso saber
quem é?
Quem é? O senhor quer saber quem eu... idolatro a ponto de confiar
minha vida a ele? Ah! sim. Meu Pai.
Que coisa bonita, David. Ele deve ser um homem maravilhoso.
Oh! Ele é. Ele é como Deus para mim.
Verdade? O que ele faz?
Ele é criativo, trabalha com as mãos.
Mas, pelo que entendi, é o caráter dele que o fascina.
Mais do que o senhor pode imaginar. Mais do que eu posso dizer.
Deve ser alguém muito especial. Eu adoraria ter a oportunidade de
conhecê-lo.
Ah! o senhor terá - disse David. - Tenho certeza de que o senhor se
encontrará um dia com Ele, face a face.
Espero que esse dia chegue logo. Mas fugi da minha linha de
raciocínio. Vou voltar ao ponto em que parei e, em seguida, liberarei você.
Desculpe-me, mas gosto de incentivar um jovem leal que tem uma carreira
promissora.
Não há o que desculpar.
Eu gostaria que seus funcionários usassem aqueles computadores
para vasculhar fatos importantes a respeito de cada homem que vou visitar,
sua região, sua história. Se souber informações detalhadas sobre eles,
poderei homenageá-los. Você poderia conseguir isso para mim, David?
Preciso de informações que me façam parecer admirável, que façam Sua
Excelência parecer admirável, o que será muito bom para a Comunidade
Global.
Aceitarei seu pedido como um desafio pessoal, senhor.
DEZOITO
Estrelas cintilavam no céu escuro quando, finalmente, Albie parou o
velho caminhão em um local poeirento de uma planície deserta. Ele deixou
os faróis do veículo acesos iluminando uma pedra grande próxima a uma
árvore, cerca de cem metros de distância. Albie saltou para a carroceria do
caminhão, subiu na cabina e olhou para trás.
Meus olhos precisam acostumar-se à escuridão - ele disse -, para eu
ter certeza de que estamos sozinhos. - Satisfeito, ele pulou para a carroceria
e, em seguida, para o chão.
Eu costumava descer daqui com um salto só. Mas meu tornozelo...
você se lembra?
Foi ferido no terremoto - disse Rayford.
Não foi tão grave, considerando tudo o que aconteceu. Albie fez um
gesto para que Rayford o seguisse até a frente do caminhão, onde ele se
agachou diante dos faróis e pegou uma sacola de papel, tirando dela uma
peça retangular de metal preto, semelhante a uma caixa de mais ou menos 25
centímetros de comprimento por 12 de largura e 4 de altura.
Capitão Steele, isto aqui é sensacional. Custa caro, mas encontrei o
que o senhor queria. Observe atentamente e veja como a peça é feita. Se o
senhor não conhecer o truque, não vai saber como funciona. Segure para ter
uma idéia do que isto representa.
Rayford pegou a peça e ficou impressionado com seu peso e solidez.
Não havia emendas visíveis, e a peça parecia resistente.
Abra - disse Albie.
Rayford revirou a peça sob a luz, procurando uma trava, um dispositivo
para abrir, uma mola para apertar, qualquer coisa. Não viu nada.
Tente - disse Albie.
Rayford segurou a peça pelas pontas e puxou com força. Em seguida,
procurou por todos os lados para ver se havia alguma abertura. Virou-a,
sacudiu-a e apertou as beiradas.
Estou convencido - ele disse, devolvendo-a a Albie.
O que esta peça faz lembrar?
Uma pedra de lastro. Talvez algum tipo de peso. Quem sabe uma
antiga bateria de computador?
O que o senhor diria ao agente da alfândega se este objeto aparecesse
na tela do radar?
Uma das coisas que eu citei. Eu diria que deve pertencer ao
computador que deixei em algum lugar durante minha última viagem.
Vai funcionar, porque ele não será capaz de abrir. Só se ele fizer isto,
mas não acredito.
Albie segurou a peça diante de si, na posição horizontal, e colocou o
polegar esquerdo no canto superior esquerdo, firmando o dedo médio
esquerdo na parte de trás do canto inferior esquerdo. Depois, fez o contrário
com a mão direita, colocando o polegar no canto inferior direito, o dedo
médio na parte de trás do canto superior direito.
Estou empurrando delicadamente com os polegares e firmando os
dedos. Quando eu sentir um leve movimento indicando que a peça está
sendo destravada, passo os polegares pela borda inferior, coloco os dedos
indicadores na borda superior, seguro com força e puxo. Veja como ela se
abre facilmente.
Rayford tinha a impressão de que estava presenciando um truque de
mágica a um passo de distância, sem ter nenhuma pista de como funcionava.
A peça abriu-se pouco mais de dois centímetros, e Albie a fechou
rapidamente.
As emendas parecem sumir, porque esta é uma peça inteiriça feita de
um bloco de aço. Tente mais uma vez, capitão.
Rayford colocou os polegares e os dedos médios nos lugares indicados
por Albie. Quando ele apertou suavemente os polegares e sentiu a pressão
nos dedos, percebeu um leve movimento de que a peça estava sendo
destravada. Ele se lembrou de um brinquedo dos tempos de infância, que
consistia em tentar fazer uma moedinha cair dentro de um buraco raso feito
em um pedaço de cartolina. A moeda só caía quando se inclinava num ponto
determinado, nem mais nem menos.
Ele segurou as extremidades da peça conforme Albie fizera, e ela se
abriu suavemente. Em sua mão esquerda, estava um bloco de aço compacto,
no formato de um grande quebra-cabeça, que se ajustava perfeitamente com
a arma pesada em sua mão direita. Impressionante.
Está carregada?
Alguém me ensinou que sempre devemos ter muita certeza, ao
segurar uma arma, de que está descarregada. Muitas pessoas já morreram em
acidentes com armas que acreditavam estar sem balas.
Concordo. Mas, e se eu apontar e atirar...
A bala vai ser disparada? Sim.
Você tem algo que eu possa colocar em cima daquela pedra e usar
como alvo?
Por enquanto, é melhor só mirar na pedra. Você precisa acostumar-se
com a arma.
Eu era um bom atirador nos tempos da academia militar, anos atrás.
Só anos? Não décadas?
Que beleza! Fui ofendido por meu fornecedor.
Conheça primeiro a sua arma.
Rayford colocou o bloco no chão, segurou a arma e examinou-a
detalhadamente. Embora fosse muito pesada, era bem-feita e adaptava-se
perfeitamente à palma de sua mão. Ele imaginou se não seria difícil segurála
com firmeza em razão do peso.
Nenhuma outra arma - disse Albie - possui esse mecanismo. Só os
rifles de alta potência. Não é necessário engatilhar. Ela é semi-automática.
Você precisa puxar o gatilho para cada novo tiro, mas ela dispara uma
seqüência de tiros rapidamente enquanto você solta o gatilho e o puxa de
novo. Acho que é a arma mais barulhenta que existe, e eu recomendo que
você use alguma coisa para tapar o ouvido que fica próximo à arma. Por
enquanto, basta cobrir o ouvido com a outra mão.
Não estou vendo trava de segurança.
Não existe. Você simplesmente aponta e dispara. A lógica por trás
desta peça é que você não precisa abrir o bloco de aço e deixar a arma à
vista, a não ser que pretenda atirar.
E você não vai querer atirar, a não ser que pretenda destruir aquilo que
você está mirando. Se você atirar naquela pedra, vai destruí-la. Se você der
um tiro e atingir uma das partes vitais do corpo de uma pessoa, a 60 metros
de distância, vai matá-la. Se você atingi-la em uma parte neutra, atirando da
mesma distância, a munição vai rasgar pele, carne, gordura, tendões,
ligamentos, músculos e ossos e atravessar o corpo deixando duas
perfurações. Se você estiver a três metros de distância, a cápsula oca terá
tempo de se abrir por causa do calor da explosão do tiro e da força centrífuga
provocada pela rotação da bala. As estrias sulcadas dentro do tambor
produzem a rotação. O projétil fica, então, com quase quatro centímetros de
diâmetro.
A bala se abre e se transforma em um disco giratório?
Exatamente. Conforme eu lhe disse por telefone, uma bala que errou
o alvo e passou a cinco centímetros de um homem a uma distância de quase
dez metros do atirador causou-lhe um ferimento profundo só por causa do
deslocamento de ar. Se você acertar alguém que esteja a uma distância entre
3 e 60 metros, o buraco da bala vai ser de mais ou menos 15 centímetros de
diâmetro, dependendo da parte do corpo que ela atingir. A bala, afiada e
girando rapidamente, perfura qualquer coisa que esteja no caminho por causa
de sua altíssima rotação. O sangue coagulado fica grudado nela como grama
na lâmina de um cortador, e ela se transforma em um grande objeto de
destruição. Durante o teste desta arma, um técnico, a uma distância
aproximada de seis metros, recebeu um tiro acidental acima do joelho. A
perna dele foi praticamente decepada. A parte debaixo ficou presa só por
uma fina tira de pele de cada lado do joelho.
Rayford sacudiu a cabeça e olhou firme para aquele objeto medonho que
tinha nas mãos. O que ele estava fazendo? Será que se atreveria a carregar
aquela monstruosidade? Teria coragem de usá-la? Seria muito difícil
justificar-se dizendo que aquilo era uma arma de defesa.
Você está tentando me convencer a ficar com a arma ou a desistir
dela? - Rayford perguntou.
Albie encolheu os ombros.
Quero que você fique satisfeito com a compra. Não aceito
reclamações. Eu disse que poderia encontrar uma mais barata. Você disse
que queria eficiência. Não me interessa o que você vai fazer com esta arma e
não quero ficar com ela. Mas eu lhe garanto, capitão, que, se um dia você
tiver de usá-la para acertar alguém, não vai precisar usá-la duas vezes.
Não sei - disse Rayford, com o corpo dolorido por ter ficado
agachado. Ele mudou de posição, pegou a outra metade da peça e segurou-a
olhando de frente para a arma a fim de ver como elas se ajustavam.
Pelo menos, faça uma tentativa - disse Albie. - Vai ser só uma
experiência.
Espero.
Rayford pôs o bloco no chão novamente, ficou em pé entre os faróis do
veículo, afastou as pernas e apontou a arma para a pedra, firmando a mão
que apertaria o gatilho com a outra.
Albie tapou os ouvidos. Em seguida, disse:
Você precisa tapar o ouvido direito.
Rayford enfiou a mão no bolso e pegou o bilhete que Albie havia escrito.
Rasgou um pedaço, umedeceu-o na língua e amassou-o fazendo uma
bolinha. Colocou-a no ouvido e voltou à posição de atirar.
É estranho não poder engatilhar esta arma - ele disse. -Tenho a
sensação de que ela está pronta e eu não.
Não estou ouvindo nada - gritou Albie. - Estou com medo de que
você atire quando eu tirar as mãos dos ouvidos.
A arma estava relativamente perto do ouvido que Rayford protegeu com
a bolinha de papel. Quando ele apertou o gatilho, recebeu um tranco que o
atirou de costas contra o capo do caminhão, fazendo-o cair sentado no párachoque
e, em seguida, no chão. A explosão soou como uma bomba e o
deixou surdo por alguns instantes, impedindo-o de ouvir o eco. Rayford
ficou satisfeito por não ter apertado novamente o gatilho no momento em
que caiu no chão. Albie olhava para ele com ar de expectativa.
Você tinha razão - disse Rayford, com o ouvido zumbindo. - Foi uma
experiência!
Veja - disse Albie, apontando para um local distante. Rayford
semicerrou os olhos para ver melhor. A pedra parecia intacta.
Eu a atingi? - ele perguntou.
Você acertou na árvore!
Rayford mal podia acreditar. A bala tinha atingido o tronco a uma altura
de quase três metros do chão, um pouco abaixo dos galhos.
Eu preciso ver isso - ele disse, levantando-se do chão com esforço.
Albie o seguiu e, ao chegar perto, viu que mais da metade do tronco
havia sido decepada. A outra parte que ficou intacta não agüentou o peso dos
galhos e a copa da árvore desabou no chão, caindo ao lado da pedra.
Ouvi falar que existem cirurgiões de árvores - disse Albie. - Mas...
Quantas balas ela comporta?
Nove. Quer tentar novamente para ver se consegue acertar o que você
está mirando?
Vou ter de contrabalançar o peso. Ela puxa para cima e para a direita.
Não, não puxa.
Você viu o que eu acertei. Eu estava mirando o meio da pedra.
Perdoe-me, capitão, mas o problema não estava na arma. Estava no
atirador.
O quê?
Em sua profissão, diriam que foi um erro do piloto.
O que foi que eu fiz?
Você hesitou.
Não hesitei.
Hesitou. Você esperou ouvir o som forte e a ação e, sem querer,
apontou o tambor para cima e para a direita. Desta vez, além de concentrarse
no que você está fazendo, firme bem o pé atrás para poder suportar o
tranco com as duas pernas.
É muita coisa para a gente pensar.
Tente. Caso contrário, você vai cair no chão outra vez e dar um tiro
de misericórdia na árvore.
Rayford tapou os dois ouvidos, firmou a perna direita no chão e dobrou
levemente o outro joelho. Ele não poderia hesitar de jeito nenhum no
momento de apertar o gatilho. Com os ouvidos bem tapados e atento para
não bater com as costas no caminhão, ele mirou a pedra e atirou. Uma parte
enorme do topo explodiu! Rayford recolheu do chão um pedaço de pedra de
cerca de 25 centímetros de diâmetro por 8 centímetros de espessura.
A propósito, quem fabrica esta coisa?
Só sabe quem precisa saber.
Ela não tem marca - disse Rayford. - Como é o nome dela?
As pessoas que conhecem a arma a chamam de Sabre.
Por quê?
Albie encolheu os ombros.
Talvez para que a outra parte da peça possa ser chamada de bainha.
Quando o bloco e a arma se encaixam, a peça fica parecida com uma espada
dentro da bainha.
Albie mostrou novamente a Rayford como montar a peça e a colocou
numa sacola de papel. Em seguida, levou Rayford de volta ao centro da
cidade no velho caminhão.
Você deve saber que eu não carrego tanto dinheiro assim - disse
Rayford.
Eu a recebi em consignação. Você pode me mandar o dinheiro daqui
a duas semanas?
Mac vai cuidar disso. -Muito bom... In!... Oh!...
Rayford levantou a cabeça. A estrada que dava acesso à área comercial
estava bloqueada por carros das Forças Pacificadoras da CG com luzes
pisca-pisca. Albie desviou pelas ruas secundárias. Quando eles avistaram o
café, Albie parou bruscamente e deu um longo suspiro. Rayford foi atirado
para a frente, batendo a cabeça no pára-brisa. Uma multidão estava na rua.
Não havia ninguém no café, a não ser os Tuttles.
Trudy continuava sentada na mesma posição em que Rayford a deixara,
com a cabeça apoiada nos braços sobre a mesa. Mas havia um enorme
buraco na parte detrás de sua cabeça, e ela estava coberta de sangue, que
pingava no chão.
Ao lado dela, de frente para Rayford, estava o grandalhão, loiro e
sardento Dwayne. Sua cabeça tinha sido atirada para trás, e seus braços
pendiam ao longo do corpo, mãos abertas e polegares apontando para fora.
Em sua testa, havia uma perfuração redonda, de onde jorrava sangue
formando uma poça debaixo da cadeira em que ele estava sentado.
Rayford fez menção de abrir a porta do caminhão, mas sentiu os dedos
de Albie agarrando-lhe o braço com força.
Você não pode fazer nada por eles, amigo. Não mostre a cara na
frente de seus inimigos. Dê-me seu celular.
Atordoado, Rayford entregou-lhe o celular. Em seguida, começou a
esmurrar o painel do caminhão, enquanto Albie afastava-se em marcha a ré
do local, atravessando um terreno arenoso. Ele falou rapidamente em sua
língua nativa. Em seguida, desligou o celular e o colocou ao lado de
Rayford.
Rayford não conseguia parar de esmurrar o painel. Sua cabeça latejava, e
os punhos doíam por causa dos murros. Seus dentes estavam cerrados, e seu
cérebro zunia. Parecia que sua cabeça ia explodir. O instinto lhe dizia para
orar, mas ele não conseguia. Suas forças se esvaíam como se ele tivesse
deixado uma torneira aberta. Afundou-se no banco do caminhão.
Preste muita atenção - disse Albie. - Você sabe que quem fez aquilo
está atrás de você. Eles vão ficar de tocaia no aeroporto e talvez já tenham
colocado um caça ou dois no ar. Você sabe pilotar aquele avião?
Sei.
Eu pedi a um funcionário da torre que avisasse que o aeroporto ia
ficar fechado por causa de ventos na redondeza. Ele vai dar dez minutos para
o pessoal sair antes de apagar as luzes da pista. Ele me disse que não há
ninguém perto de seu avião, mas que há muito mais gente no aeroporto do
que o normal. O local vai estar escuro e vazio, assim espero, quando
chegarmos lá. Mas, para maior segurança, vou pedir que você desça antes
que eu entre na torre. Caminhe no escuro até seu avião. Quando eu ouvir o
barulho dos motores, acendo as luzes da pista para você.
Rayford não conseguia falar e muito menos agradecer a Albie. Ali estava
um homem que nem sequer era crente, mas era inimigo de Carpathia e
estava disposto a fazer qualquer coisa para contrariá-lo. Albie não conhecia a
situação de Rayford e pedira-lhe, insistentemente, que não lhe contasse. Ele
não queria saber. Porém, ao tentar ajudar Rayford, estava arriscando a
própria vida. Rayford jamais se esqueceria disso.
Eles estavam chegando ao aeroporto quando as luzes se apagaram e uma
pequena fila de carros saiu do estacionamento. Albie parou e fez sinal a
Rayford para que descesse, apontando para a área ao redor do aeroporto,
agora completamente às escuras. Rayford pegou a sacola e começou a
descer, mas Albie o segurou e abriu a peça de aço. Em seguida, entregou as
duas partes a Rayford. Colocou um pouco mais de munição na palma da mão
e a despejou no bolso de Rayford.
Para uma eventualidade - ele disse, guardando a sacola de papel vazia
debaixo do banco.
A raiva deixou Rayford com a garganta apertada, impedindo-o de falar.
Ele guardou a arma em um dos bolsos e o bloco no outro, pegou seu celular
e estendeu a mão para Albie. Eles trocaram um forte aperto de mão.
Eu sei, eu sei... - disse Albie. - Agora vá.
Rayford caminhou apressado no escuro pelo terreno arenoso, livrando-se
do mato rasteiro e ouvindo sua própria respiração ofegante. Quando
finalmente suas cordas vocais destravaram, ele começou a gemer a cada
respiração. De repente, deu um urro abafado, tão forte e agudo que chegou a
ficar zonzo e quase caiu no chão. Quando estava a uns 30 metros do avião,
ele ouviu o som de passos atrás dele e um grito.
Rayford Steele! Pare em nome das Forças Pacificadoras da
Comunidade Global!
Não! - resmungou Rayford. Ele continuou a caminhar e enfiou a mão
no bolso para pegar a arma.
Você está preso!
Ele continuou a caminhar.
Pare ou eu atiro!
Rayford sentiu um comichão nas costas. Parecia um acontecimento
distante e irreal ele ter ludibriado um outro homem da CG naquele mesmo
dia... Ele sacou a arma e virou-se.
Com a fraca luz que vinha da estrada, ele avistou o vulto do homem da
CG aproximando-se, de arma em punho.
Rayford parou.
Não me obrigue a atirar em você! - ele gritou, mas o homem
continuou a caminhar em sua direção.
Rayford apontou a arma para baixo e atirou no chão, a cerca de um
metro do homem, levantando uma nuvem de areia. O homem voou para trás
e caiu de bruços com um grito, soltando a arma. Rayford correu na direção
do avião. Ao olhar por cima do ombro, ele viu o homem estendido imóvel no
chão.
Deus, não permitas que ele morra! ele orou, abrindo a porta com força e
mergulhando dentro do avião. Quando fechou a porta, ele viu que estava
banhado de suor. Eu não queria matar aquele homem!
Rayford pulou por cima do encosto da poltrona do piloto e ligou os
motores. O ponteiro do mostrador do tanque de combustível subiu, os outros
dispositivos brilharam no painel e as luzes da pista foram acesas.
Tudo certo? - ele perguntou pelo rádio, tomando o cuidado de não
mencionar o nome de Albie.
Dois fantasmas a seis milhas ao norte - soou a resposta. Eles
poderiam alcançá-lo em segundos, mas esperariam que ele seguisse para
oeste e decolasse rapidamente.
Rayford olhou para a sua esquerda antes de alcançar a velocidade para
decolagem. O homem da CG conseguira levantar-se do chão e cambaleava
como se estivesse recuperando a respiração e procurando sua arma. O Super
J subiu suavemente e Rayford rumou para o sul, permanecendo abaixo da
linha do radar até ter a certeza de que não estava sendo seguido. Pouco
depois, ele acelerou o mais que pôde. O impulso fez seu corpo grudar no
encosto da poltrona. Ele embicou o avião na direção das estrelas e rumou
para o oeste. Tudo o que ele queria era cruzar o céu, alcançar a velocidade
máxima na altitude mais favorável e voltar para casa a fim de rever seus
companheiros.
Passava um pouco do meio-dia em Illinois. Tsion Ben-Judá estava em pé
olhando para fora através da janela do andar superior da casa secreta. O
verão se aproximava. Ele acabara de fazer uma refeição leve com Buck,
Chloe, o bebê e Leah. Leah havia revelado ser uma mulher extraordinária e
fervorosa. Ele não entendia por que Rayford se aborrecia com ela. Para
Tsion, ela era muito simpática.
Ele havia quase terminado sua mensagem aos fiéis e ia começar a revisão
que seria transmitida dali a poucos minutos. Na mensagem, ele advertia que
quanto mais o calendário se aproximasse de setembro - o 42° mês do período
da Tribulação - o número de mortes provocadas pelos 200 milhões de
cavaleiros chegaria cada vez mais perto de atingir a terça parte da população.
A gravidade da mensagem entristeceu Tsion, e ele sentiu um súbito desejo
de orar por seu velho mentor e compatriota, Chaim Rosenzweig.
Pai, ele orou, já não sei mais como orar por meu amigo. Prosseguindo
em sua intercessão, ele citou um versículo bíblico: "Também o Espírito,
semelhantemente, nos assiste em nossa fraqueza; porque não sabemos orar
como convém, mas o mesmo Espírito intercede por nós sobremaneira com
gemidos inexprimíveis. E aquele que sonda os corações sabe qual é a mente
do Espírito, porque segundo a vontade de Deus é que ele intercede pelos
santos." E, concluiu dizendo: Obrigado, Senhor.
E, quando abriu os olhos, Tsion Ben-Judá pensou, a princípio, que
estivesse sonhando. Tomando conta de todo o seu campo de visão, do outro
lado da vidraça, havia um exército de cavaleiros montados em cavalos
preparados para a guerra. Centenas e centenas de milhares, cavalgando,
cavalgando. A cabeça do cavalo era semelhante à cabeça de um leão, e ele
expelia fogo e fumaça pela boca.
Tsion já havia escrito a esse respeito, tinha ouvido relatos de outras
pessoas, desejando no íntimo ter um vislumbre dessa cena. Mas agora,
enquanto os fitava com os olhos arregalados, sem piscar, querendo chamar
os companheiros, principalmente Buck, que também não os havia visto, ele
não conseguia proferir uma só palavra.
No meio do dia, com o sol da primavera a pino banhando a cena, o
imenso exército de cavaleiros parecia irado e determinado. Suas couraças
coloridas brilhavam, e os enormes animais nos quais eles estavam montados
lado a lado movimentavam-se fazendo um ruído estrondoso, ganhando
velocidade e passando do trote para o galope e do galope para uma corrida
desenfreada. Parecia que o tempo deles havia chegado. As incursões
ocasionais tinham sido um simples ensaio. A cavalaria demoníaca, que só
pouparia os escolhidos de Deus, disparou enraivecida para atacar toda a
Terra. Aquele certamente seria seu ataque final.
Tsion! - chamou Buck, do pé da escada. - Olhe pela janela! Rápido!
Rayford ajustou os controles do Super J no rendimento máximo do piloto
automático. O cansaço havia tomado conta de seu corpo, mas ele não queria
cochilar, mesmo tendo uma tecnologia tão avançada à sua disposição.
Quando pegou o celular para ligar para casa, seus olhos captaram uma cena
estranha a algumas milhas abaixo. Fogo e rolos de fumaça preta e amarela
subiam partindo de uma infinita extensão de milhões de cavaleiros e cavalos
agitados, que cruzavam rapidamente o oceano em direção à terra.
DEZENOVE
Três Meses Depois
O mês de agosto começou quente e úmido em Monte Prospect, sem
vento, e o ar estava quase tão parado quanto Rayford. A casa secreta não
possuía ar-condicionado e, com a morte da metade da população mundial
desde o Arrebatamento, nada voltara a ser como antes.
Um terrível pressentimento tomava conta de todos da casa. Os ânimos
estavam exaltados, e os nervos, à flor da pele. O bebê já dava seus primeiros
passos e falava algumas palavras, passando a ser o único a trazer um pouco
de alegria à casa. Mas Kenny também andava irritado com o calor, e até
mesmo Tsion saía da sala quando a criança começava a ficar irrequieta e
Chloe não conseguia acalmá-la.
Se o Arrebatamento havia imposto um sofrimento coletivo ao mundo por
causa da perda de familiares e de todas as crianças, e o terremoto da grande
ira do Cordeiro modificara o modo de vida e a forma de locomoção do povo,
os julgamentos que se seguiram haviam sido piores ainda. A escuridão
temporária do Sol, da Lua e das estrelas, a destruição de um terço da
população da Terra por meio de fogo, o envenenamento de um terço da água
e agora a matança de mais de um bilhão de pessoas... bem, pensava Rayford,
seria difícil haver alguém com as idéias no lugar.
Talvez não houvesse. Talvez todos tivessem enlouquecido. Rayford
alimentava pensamentos que ele próprio considerava absurdos. Haveria a
possibilidade de acordar ao lado de sua querida esposa Irene - tão
negligenciada e desprezada -, de ver Raymie, de apenas 12 anos, dormindo
no quarto, no fim do corredor, de ainda ter tempo de ser o marido e o pai que
deveria ter sido? Teria isso tudo sido apenas um aviso em forma de sonho,
como o daquele personagem do famoso conto de Natal de Charles Dickens,
que viu como seria terrível sua vida futura se não mudasse seu modo de ser?
Será que ele despertaria um novo homem, pronto para entregar sua vida
a Deus, exercendo influência positiva sobre sua filha, sua esposa e seu filho?
Talvez fosse possível, não? Ou tudo continuaria a ser o pior dos
pesadelos? Rayford sabia que seu cérebro limitado não havia sido
programado para assimilar todo o sofrimento que lhe fora imposto. Ele não
queria mais nem pensar em tudo o que vira, tudo o que perdera. A dor havia
sido maior do que um mortal poderia suportar e, mesmo assim, ele
continuava vivo.
O mundo inteiro tinha sido convidado para a Festa de Gala Global a
realizar-se dali a um mês em Jerusalém. Como Carpathia ousava fazer tal
festa? Como poderia concordar com essa grande comemoração, sabendo que
o número de pessoas mortas na última praga havia sido maior do que o de
desaparecidos no Arrebatamento, três anos e meio antes?
Tsion alertou seus leitores a não comparecerem, a não se deixarem
induzir pelas profecias que indicavam aquela data como a derrocada da fé
mundial, o tempo determinado para as duas testemunhas e para a morte de
Carpathia. Apesar de morar na mesma casa, Rayford também lia as
mensagens diárias de Tsion, assim como todos os que residiam ali. Tsion
escrevera o seguinte a respeito da malfadada Festa de Gala Global:
Estranhei ter sido convidado como um "estadista internacional". Tudo foi
perdoado, eles declararam anistia aos dissidentes e nos garantiram proteção.
Bem, meus queridos amigos, irmãos e irmãs em Cristo, eu não comparecerei.
Há uma profecia que diz que um terremoto exterminará a décima parte
daquela cidade. Não temo por minha vida, porque meu futuro está
assegurado - da mesma forma que o de todos os que se entregaram a Cristo
para receber perdão e vida eterna.
Porém, não optei por testemunhar pessoalmente o mais singular e o mais
histórico dos eventos, porque está evidente que Satanás marcará presença ali.
Minha família foi trucidada em retaliação ao "pecado" que cometi por
manifestar em público minha crença de que Jesus é o Messias aguardado há
tanto tempo. Durante a fuga de minha terra natal até o local onde me
encontro exilado, fui oprimido pela terrível presença do autor da morte.
A morte estará pairando no ar em Jerusalém no próximo mês, meus
amigos, apesar da maneira vistosa como este evento vem sendo embrulhado
e vendido ao mundo. É uma afronta transformar uma festa em desculpa para
reunir essa gente. Por um lado, o tal potentado mundial decreta o fim dos
sacrifícios e oferendas no templo, porque violam os princípios da tolerância
defendidos pela Fé Mundial Enigma Babilônia. Por outro, ele tem em mente
comemorar o acordo entre a Comunidade Global e Israel. Como podemos
juntar estas duas coisas? Embora o potentado tenha intimidado o mundo e
impedido que inimigos em potencial atacassem Israel, ele passa por cima das
tradições milenares desse povo e trai sua herança e autonomia religiosa.
Da mesma forma que o restante do mundo, acompanharei os festejos
pela Internet ou pela televisão. Porém, meus queridos, não aceitarei o
convite para comparecer. Esse evento antecede a segunda metade da
Tribulação, chamada a Grande Tribulação, que fará com que estes dias
terríveis que estamos vivendo pareçam apenas cansativos.
Nem mesmo os meios de comunicação controlados pela CG poderão
dourar a pílula daquilo que sabemos ser a verdade. O crime e o pecado estão
descontrolados. Os gêneros de primeira necessidade começam a faltar por
escassez de mão-de-obra e de condições para fabricá-los e distribuí-los.
Apesar disso, por todos os cantos da Terra continuam a existir bordéis,
sessões espíritas e casas de quiromancia ou templos pagãos para adoração de
ídolos. A vida passou a ser insignificante, e nossos concidadãos morrem
diariamente deixando casas e negócios nas mãos de saqueadores. Não
existem Forças Pacificadoras suficientes para fazer o policiamento, porque
grande parte de seu contingente morreu, e aqueles que continuam
trabalhando estão sendo subjugados ou são corruptos.
Mesmo com um número tão reduzido de pessoas em todos os ramos de
atividade, é impressionante observar que muita coisa ainda continua a
prosperar. Praticamente, não existem mais filmes e programas novos na TV,
mas a pornografia e a perversão proliferam nas centenas de canais que ainda
funcionam, sendo livremente assistidos por qualquer um que tenha um
televisor em casa.
Estes tempos sombrios não nos causam surpresa, meus queridos irmãos e
irmãs. Oro para que vocês se mantenham firmes e continuem a divulgar a
verdade até a volta de Jesus. Daqui em diante, vocês passarão a maior parte
do tempo lutando para sobreviver. Exorto a todos que se preparem, que
tracem planos para enfrentar o inevitável dia em que a proibição de entrar
neste site ou de declarar-se cristão passará a ser mais abrangente. Estejam
preparados para o dia em que será exigida a traiçoeira marca da besta na
testa ou na mão para poder comprar ou vender legalmente.
É muito importante que vocês não cometam o erro fatal de pensar que
podem estampar aquela marca por conveniência e, ao mesmo tempo, ser um
crente em Cristo. Ele deixou bem claro: "Aquele que me negar diante dos
homens, eu também o negarei diante de meu Pai." Nas próximas mensagens,
explicarei por que a marca do demônio não pode ser invalidada.
Se vocês já aceitaram a Cristo e estão salvos, por certo possuem o selo
de Deus na testa, visível apenas aos crentes. Felizmente, o selo na testa e a
decisão que vocês tomaram também não podem ser invalidados, portanto
não há motivos para ter medo de perder a posição que ocupam perante Ele.
Porque está escrito: "Quem nos separará do amor de Cristo? Será tribulação,
ou angústia, ou perseguição, ou fome, ou nudez, ou perigo, ou espada? Em
todas estas coisas, porém, somos mais que vencedores, por meio daquele que
nos amou." Assim como o apóstolo Paulo, "estou bem certo de que nem
morte, nem vida, nem anjos, nem principados, nem coisas do presente, nem
do porvir, nem poderes, nem altura, nem profundidade, nem qualquer outra
criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso
Senhor".
Mesmo em meio a provações e tribulações, devemos continuar a
agradecer a Deus, que nos dá a vitória por meio de nosso Senhor Jesus
Cristo. A Bíblia também diz: "Portanto, meus amados irmãos, sede firmes,
inabaláveis, e sempre abundantes na obra do Senhor, sabendo que, no
Senhor, o vosso trabalho não é em vão."
Permaneçam firmes no amor. Seu amigo,
Tsion Ben-Judá
Hattie estava presa, sem saber da morte de sua irmã, e Rayford sentia-se
responsável por ela.
Os assassinatos de Dwayne e Trudy Tuttle foram um golpe duro para o
coração dele.
A reação de Bo Hanson diante da morte do irmão serviu apenas para
aumentar o desespero de Rayford. T foi incumbido de dar a notícia a Bo,
porque demonstrara ser amigo dele, apesar das diferenças de idéias entre
ambos. Rayford havia tido uma discussão acalorada com Bo, e agora
esperava que T conseguisse dar um testemunho cristão ao rapaz quando lhe
transmitisse a triste notícia. Depois disso, talvez Rayford pudesse desculparse
por seu mau comportamento e tivesse a oportunidade de ver o rapaz
aceitar a Cristo.
T retornara animado de seu encontro com Bo. Depois de um telefonema,
ele se dirigiu ao apartamento do rapaz e contou-lhe o que havia acontecido.
Entre lágrimas, Bo lhe perguntou sobre o bilhete que recebera de Sam.
Eu disse a ele que o bilhete foi forjado pela CG, Ray - explicou T. -
Aparentemente, ele aceitou. Chorou muito, sentindo-se culpado. Disse que
entregou seu irmão por dinheiro. Mas ele não fez isso. Simplesmente
cometeu o erro de envolver Sam em um plano malfeito. Bo estava abatido
quando o deixei, mas permitiu que eu orasse com ele. Achei que foi um
grande passo.
Tenho certeza disso - disse Rayford -, mas você não quis encontrar-se
comigo só para dar esta boa notícia. O que aconteceu?
T recostou-se na cadeira e deu um longo suspiro.
Bo se matou ontem à noite, Ray. Bebeu demais em um bar, sacou
uma arma, amaldiçoou Carpathia e o mundo e deu um tiro em si mesmo.
Rayford passara dias e dias inconsolável.
Parece que fui eu que puxei o gatilho - ele dizia.
O pessoal do Comando Tribulação o consolou dizendo que ele não era
culpado. Finalmente, Rayford concordou com seus companheiros e jogou a
culpa naquele que era o responsável por tudo: Nicolae Carpathia.
Rayford passou a concentrar-se nas passagens proféticas a respeito da
morte do anticristo, deixando de buscar os conselhos ou as interpretações de
Tsion. Em sua obsessão, ele interpretava a Bíblia da maneira que lhe
convinha, arvorando-se no agente escolhido por Deus para perpetrar o ato.
Quando lia "se alguém matar à espada, necessário é que seja morto à
espada", Rayford estremecia porque tinha certeza de que até mesmo Tsion
acreditava que o versículo referia-se ao anticristo. Será que a mensagem era
dirigida a ele? Um versículo mais adiante dizia: "[...] que façam uma
imagem à besta, àquela que, ferida à espada, sobreviveu." Esta devia ser uma
referência a uma das cabeças da besta que foi "golpeada de morte, mas essa
ferida mortal foi curada".
Ele não conseguia compreender. Quem conseguiria? Sem a ajuda de
Tsion, Rayford acreditava que encontrara uma explicação para aqueles
versículos. Carpathia ia ser mortalmente ferido na cabeça por uma espada e,
em seguida, voltaria a viver. Uma espada? Como era mesmo o nome que
Albie deu àquela máquina mortífera fenomenal que Rayford escondera no
porão, atrás de alguns tijolos soltos? Sabre.
Seria ele o autor? Teria condições? Seria dele a incumbência? Rayford
sacudiu a cabeça, atordoado. Que pensamentos mais estranhos!
Mac sentia a falta de Rayford. Para ele, Rayford tinha sido a voz da
razão, um mentor, um exemplo de espiritualidade. Mac também gostava de
David e Annie, dois jovens excelentes. Mas não tinha muita afinidade com
eles. Abdullah era um ótimo co-piloto e companheiro de vôo, porém passava
dias sem dizer quase nada, limitando-se apenas a responder às perguntas de
Mac.
A vida era interessante, mas, certamente, nunca mais voltaria a ser
divertida. Voar para as principais capitais e ouvir a incessante bajulação de
Fortunato aos dez reis eram situações que se tornaram cansativas e, ao
mesmo tempo, fascinantes. Ocupando uma tribuna na pista do aeroporto de
Nairóbi, Leon discursou com grande pompa:
Saúdo um dos principais potentados regionais de Sua Excelência
Nicolae Carpathia, o ilustre Sr. Enoch Litwala.
O esquecimento do nome deste grande líder e renomado pacifista
durante a fase inicial da escolha de um potentado regional para os Estados
Unidos da África ficará registrado na história da Comunidade Global como
um fato constrangedor. Talvez tenhamos nos lembrado dele um pouco tarde,
mas nós o descobrimos, não? A multidão aplaudia seu filho favorito. Leon
prosseguiu:
Sua Excelência envia suas mais sinceras saudações à África e os mais
altos elogios pelos objetivos internacionais alcançados. Em nome de Sua
Excelência, tenho o prazer de convidar o novo potentado para a Festa de
Gala Global a realizar-se no mês de setembro em Jerusalém!
Após aguardar alguns instantes até que a multidão se aquietasse, Leon
deu um tom de seriedade à voz.
Temos atravessado tempos difíceis e enfrentado perdas de muitas
vidas. Mas Sua Excelência não está poupando esforços nem dinheiro para a
realização de uma festa como nunca se viu antes. Além de comemorar a
metade do período de vigência do tratado de paz com Israel, também tenho a
satisfação de afirmar-lhes que recebi permissão para comunicar
publicamente que Sua Excelência está garantindo - sim, os senhores ouviram
bem -, garantindo um fim aos dois assassinos. Os senhores querem saber
como ele fará isso? O potentado afirma que, se as tais testemunhas diante do
Muro das Lamentações não desistirem de atormentar o povo de Israel e o
restante do mundo, ele próprio se incumbirá de lidar com os dois.
Esta mensagem foi repetida em todas as capitais, sendo recebida com
entusiasmo pelo povo. Mac achava que as pessoas estavam tão cansadas de
morte e devastação e tão prisioneiras de seus pecados que queriam desfrutar
a vida antes que os dois profetas que pregavam a condenação soltassem o
anjo do céu. Será que Carpathia assassinaria os dois? Ele já não havia feito
esta ameaça antes? E acabou ridicularizado pelos profetas. Mas agora ele
estava garantindo. E estava também empenhando sua palavra de que ajudaria
o povo a comparecer à Festa de Gala Global, apesar da escassez de serviços
públicos em razão do número reduzido da população.
Estamos prestes a presenciar uma reviravolta dramática em direção
aos nossos objetivos e ideais que visam a uma sociedade utópica - disse
Fortunato, citando as palavras de Carpathia. A Festa de Gala Global
marcaria o primeiro passo.
Mac achava estranho ver o anticristo envolvido pessoalmente em um
assunto de relações públicas, tentando salvar sua imagem.
Nas capitais, Leon prosseguiu em seus elogios aos potentados regionais
incluindo promessas da Comunidade Global para melhorar o serviço
público.
Vamos trabalhar com mais vigor e mais afinco - ele dizia -, para
atender às necessidades dos senhores. Dentro de uma década, a única
lembrança amarga será a tristeza por causa daqueles que perdemos. A
palavra inconveniência fará parte do passado, porque trabalharemos juntos
até conseguir uma tecnologia de ponta que nos proporcione serviços de alto
nível como jamais imaginamos.
Havia sempre uma sessão de fotografias reservada para a imprensa
controlada por Carpathia, nas quais Fortunato observava, com ar solene, as
áreas subdesenvolvidas em conseqüência do alto índice de mortalidade. Em
seguida, ele beijava os bebês e os levantava nos braços, proclamando "o
futuro da Comunidade Global". Depois de atrair o entusiasmo dos habitantes
do local, ele convidava o potentado regional para entrar no majestoso Fênix
216 para "uma reunião confidencial de alto nível, na qual o líder dos
senhores poderá melhor representar as necessidades desta região".
Fortunato ouvia o que os potentados tinham a lhe dizer e fazia promessas
que nem mesmo um milhão de Carpathias poderiam cumprir. E, em cada
reunião particular, o assunto principal passava a girar em torno da "situação
da Fé Mundial Enigma Babilônia". Enquanto ouvia a conversa pelo sistema
de escuta clandestina, Mac notou que a maioria dos potentados sabia
exatamente o que Leon queria dizer, assim que o assunto era levantado.
Alguns perguntavam: "De que situação o senhor está falando?", mas, no
momento em que Leon partia para visitar uma nova região, ele já sabia com
quais potentados poderia contar. O fato mais surpreendente para Mac era que
todos afirmavam estar fazendo oposição ao arrogante Peter Segundo.
Mac ficou tão intrigado que resolveu ter uma conversa telefônica
particular com Tsion, apesar da diferença de fusos horários. O telefonema foi
atendido por Leah, que passara a coordenar todas as ligações. Mac lhe
garantiu que, se Tsion não tivesse tempo para atendê-lo, ele compreenderia.
No dia seguinte, os dois conversaram pela linha sigilosa.
Capitão McCullum, meu amigo, estou muito agradecido por toda a
informação que você nos tem enviado. Isso tem facilitado muito o meu
trabalho e me fornecido dados que eu jamais conseguiria sem sua ajuda. Em
que lhe posso ser útil?
Bem, senhor, tenho uma pergunta rápida a lhe fazer, assim espero.
Sei que David tem mantido todo o pessoal informado, por intermédio de
Leah, sobre a conspiração para instigar os dez reis contra Peter Segundo.
Sabemos que nem todos os reis são leais a Carpathia, mas eles têm subido a
bordo, um de cada vez, para ouvir coisas contra Peter. Minha pergunta é se
eles estão apenas enrolando Fortunato ou estou sendo ingênuo demais a
ponto de acreditar que a raiva deles contra Peter é verdadeira e todos estão
de acordo?
Excelente pergunta, capitão. Eu só não tratei ainda deste assunto pela
Internet porque achei que estaria me expondo em demasia e me
intrometendo no curso da História, o que seria um precedente perigoso.
Devemos nos abster de tentar ajudar Deus a cumprir suas promessas. Se Ele
disse que vai acontecer, vai acontecer.
Mas nós sabemos - prosseguiu Tsion -, que os dez reis estão dispostos
a conspirar contra Peter Segundo. É bíblico. Deus está elaborando seu plano
eterno. Ele está usando esses reis da mesma forma que usou exércitos pagãos
nos tempos do Antigo Testamento para punir seu povo e hoje usa exércitos
demoníacos para chamar a atenção dos incrédulos. Em Apocalipse 17 lemos
o seguinte: "Os dez chifres que viste" (estes são os reis, Mac) "e a besta,
esses odiarão a meretriz" (que é a falsa religião, representada agora por Peter
Segundo), "e a farão devastada e despojada, e lhe comerão as carnes, e a
consumirão no fogo."
Agora, preste atenção, capitão. O versículo seguinte responde à sua
pergunta. Eles estão concordando com essa conspiração, mas, na verdade,
não passam de egomaníacos que não concordam com nada, nem mesmo com
Carpathia. E o motivo é este. Ouça atentamente o que vou ler. "Porque em
seus corações incutiu Deus que realizem o seu pensamento, o executem à
uma e dêem à besta o reino que possuem, até que se cumpram as palavras de
Deus."
Que coisa!
Não é demais? É maravilhoso testemunhar o cumprimento da
profecia.
Obrigado, senhor.
Você vai descobrir que, se esses reis pensam da mesma maneira, foi
porque Deus quis assim. E você sabe que isso redundará na morte de Peter,
não sabe?
Imagino que sim.
A pergunta é como e onde esse fato ocorrerá.
Eu tenho uma idéia - disse Mac.
Verdade? - perguntou Tsion.
Mac contou-lhe acerca da conversa particular entre Leon e o rei
recentemente nomeado, o queniano Enoch Litwala. Fortunato ouviu a lista
de sugestões e pedidos de Litwala e anotou tudo, dizendo o que pensava a
respeito. Em seguida, mudou o assunto para Peter Segundo:
Sua Excelência pediu-me que tratasse pessoalmente com você de uma
situação muito delicada. Ele tem grande admiração por sua sabedoria e
habilidade em compreender as circunstâncias, mas este é um assunto com o
qual talvez você não esteja familiarizado. Você tem conhecimento de
qualquer, digamos, hesitação por parte dos outros potentados regionais
quanto ao... exibicionismo de Peter Segundo?
Litwala respondeu tão rapidamente que Mac precisou aprumar o corpo
na cabina de comando e ajustar melhor o fone de ouvido.
Não sei e não me interessa o que meus colegas pensam - disse
Litwala -, mas vou ser franco com o senhor. Para mim, aquele homem é um
sujeito desprezível. Ele é egoísta, apegado demais às leis, tem sangue-frio.
Apropriou-se de enormes quantias de dinheiro para sua Enigma Babilônia
que deveriam ter sido usadas em meu país para ajudar meu povo. Eu não o
considero leal a Sua Excelência, o potentado e...
Sério?
Assim que ouviu falar que meu nome estava sendo cogitado para
ocupar este posto, ele veio me ver. Voou até aqui, creio eu, neste mesmo
avião. Este avião era dele, certo?
Era.
Ele tentou conquistar meu apoio para conseguir uma função mais
abrangente no governo mundial, além da que já ocupa como religioso. Eu
não disse nada. Acho que ele já tem prestígio demais. Por que eu haveria de
querer que ele tivesse mais ainda? Eu disse que ia estudar suas propostas e,
caso tivesse a honra de ser escolhido para ocupar esta posição, conversaria
com os potentados regionais mais experientes para conhecer a opinião deles.
Aparentemente, aquilo o deixou satisfeito. Ele tentou extrair de mim uma
opinião negativa sobre o que eu penso a respeito de Sua Excelência, mas me
limitei a ouvir. Não o provoquei nem contestei, mas também não revelei
minha posição. Aquela conversa provou ser valiosa posteriormente.
Muito bem, potentado Litwala. Ele acredita que conta com o apoio
dos outros e supõe que você também vai ceder. Você concorda que ele
representa um perigo em potencial para a harmonia da liderança da
Comunidade Global?
Não só um perigo em potencial. Ele é um perigo iminente.
O que você proporia em relação a ele? Esta é a pergunta que Sua
Excelência tem para você.
Ele não gostaria de conhecer os meus sentimentos mais profundos.
Talvez você tenha uma surpresa.
Se o potentado gostar de saber que eu acho que Peter deve ser
eliminado, isso me causaria uma grande surpresa.
Para você, eliminado significa ser retirado diplomaticamente do...
Para mim, supremo comandante, eliminado significa eliminado.
Houve um silêncio por alguns instantes. Litwala voltou a falar:
Meu problema é que há poucas pessoas em quem confio.
Depois de tudo o que tive de suportar com Rehoboth e outros...
Eu estou lhe dizendo que os outros potentados estão de acordo com
esta idéia - disse Leon.
Que ele deve ser eliminado?
Exatamente. Outra pausa.
Mas quem faria isso?
Você precisa conversar com eles a esse respeito.
Deve haver uma maneira de ter certeza de que estamos unidos, de que
não existe nenhuma possibilidade de traição. Todos seremos igualmente
responsáveis.
Quer dizer todos contribuindo para o pagamento do responsável pela
eliminação...
Não! - disse Litwala. - Todos nós devemos ser igualmente
responsáveis e culpados pela ação.
Depois que Litwala saiu da aeronave, Mac ouviu Fortunato conversando
com Carpathia pelo telefone.
O senhor conseguiu dobrar o novo potentado da África!... Verdade?...
O senhor não está falando sério... É verdade?... Impressionante. O senhor já
fez isso comigo?... Chegou a me hipnotizar... O que ele vai sugerir?... Todos
os dez? Ao mesmo tempo? Assim, um não vai poder delatar o outro.
Brilhante! Mac ligou para David.
Você tem gravado as conversas telefônicas de Carpathia?
O tempo todo.
Ligue o gravador para ouvir. Você se lembra daquela história que
Buck Williams contou sobre Nicolae, quando ele convenceu as pessoas de
que elas tinham visto uma coisa que não aconteceu e que, dali em diante, só
se lembrariam da história que ele próprio inventou? Acho que Nicolae
acabou de contar a Leon que fez algo parecido outra vez.
Eles ainda estão conversando?
Estão.
Vou ouvir a conversa ao vivo, Mac. Boa viagem.
Quando David acessou o telefone de Carpathia, a conversa entre Nicolae
e Leon estava terminando.
Eu vou ficar totalmente fora dessa história - Carpathia estava
dizendo. - Ninguém vai querer falar, não haverá arma, não haverá corpo.
Apenas DNA suficiente nas cinzas para identificar o corpo, caso alguém
desconfie, mas, como Peter não vai aparecer nunca mais, tenho certeza de
que não haverá dúvida nenhuma.
E quem confirmaria a enfermidade? Eles se atreveriam a envolver
mais pessoas?
Leon! Pense! Od Gustav.
Ah, sim! O doutor Gustav. Por que precisaríamos usar alguém de fora
se um dos dez pode assinar o atestado de óbito? Eu já disse que o senhor é
brilhante, Excelência?
Talvez, mas até mesmo um homem confiante como eu gosta de ouvir
um elogio destes mais de uma vez.
A idéia do gelo é estupenda. Estou falando sério. Não há outra
palavra para descrevê-la.
Obrigado, comandante. Boa viagem.
David sorriu ao ouvir as mesmas palavras que ele usara para despedir-se
de Mac. Dois companheiros dizendo adeus. Dave e Mac; Nick e Leo. Duas
duplas de parceiros traçando planos, tentando derrotar os concorrentes. Ele
deu um longo suspiro. Só que a diferença entre as duplas era infinita.
David resolveu ouvir a gravação da conversa desde o início, quando
Fortunato disse:
O senhor conseguiu dobrar o novo potentado da África!
E como! - disse Carpathia. - Eu tenho esse homem nas mãos desde o
dia em que visitei a ONU pela primeira vez. Eu sabia que teria de esperar
enquanto não resolvêssemos a situação com Ngumo ou Rehoboth. Percebi
que esse sujeito era muito sugestionável!
Verdade?
Desde o início. Eu o hipnotizei por telefone uma vez. Disse que ele
seria totalmente leal a mim, que meus inimigos seriam seus inimigos e que
meus amigos seriam seus amigos.
O senhor não está falando sério.
Quer que eu prove? Ele está disposto a eliminar Peter, no sentido
literal da palavra.
É verdade?
Ele quer todos metidos nisso, todos os dez. Que tal?
Impressionante. O senhor já fez isso comigo?
Fiz o quê?
Chegou a me hipnotizar?
Eu não preciso fazer isso, Leon. Você é o amigo e o conselheiro em
quem mais confio. Com Enoch, consegui até a incutir um plano inteiro na
cabeça dele. Ele vai pensar no assunto e, quando voltar a falar comigo, vai
sugerir o que já está incutido na cabeça dele.
O que ele vai sugerir? - perguntou Leon.
Uma reunião em Jerusalém na manhã anterior à Festa de Gala Global.
Ele vai convidar Peter para discutir a minha sucessão, vai dizer que Peter
ocupará meu lugar se um determinado plano der certo. Será uma reunião
entre Peter e os potentados.
Todos os dez?
Sim. A reunião será realizada no elegante Grande Hotel da
Comunidade Global, onde as esculturas de gelo se tornaram muito
populares. Eles vão encomendar uma grande escultura de Peter, em tamanho
natural, retratando-o como um anjo poderoso com asas enormes e penas
pontudas e afiadas. Enquanto os dez reis estiverem admirando a escultura,
cada um deles pegará uma das afiadas penas de gelo. Peter vai estranhar o
que está acontecendo. Nesse meio-tempo, cada um dos reis o atacará de
diferentes ângulos, no pescoço, nos olhos, nas têmporas, no coração.
Ao mesmo tempo? - quis saber Leon. - Assim, um não vai poder
delatar o outro. Brilhante!
As armas derreterão, o corpo será transportado para o crematório
dentro de um saco que o potentado Gustav, da Escandinávia, trará na maleta.
O corpo será queimado para evitar que se espalhe uma doença mortal, que
provoca sangramento até a morte por secreções das membranas mucosas.
Isso explicará os vestígios de sangue na sala de reuniões.
Exatamente. Eu vou ficar totalmente fora dessa história. Ninguém vai
querer falar, não haverá arma, não haverá corpo. Apenas DNA suficiente nas
cinzas...
VINTE
Buck estava se sentindo desprezado.
Fazia muito tempo que ele e Chloe haviam começado a se desentender.
Sei que temos apenas três anos e meio pela frente -ela disse -, mas
você acha que eu quero criar esta criança sozinha?
Nada de ruim vai acontecer - ele disse, tentando abraçá-la. Ela se
esquivou.
Você vai partir - ela disse. - Está escrito em seu rosto. Eu adoro
Chaim, mas não é justo o que ele está pedindo.
Se eu não for, Tsion irá, e não queremos isso. Chaim Rosenzweig
havia recebido um convite para
comparecer à Festa de Gala Global como convidado de honra de Sua
Excelência, o potentado. Chaim pedira a Jacov que avisasse o pessoal do
Comando Tribulação por meio de uma mensagem criptografada no site de
Tsion. Leah encontrou a mensagem, quase por acaso.
Você sabe o que é isto? - ela perguntou a Rayford quando os dois
estavam trabalhando, tarde da noite, em seus computadores na cozinha da
casa secreta. - Estas iniciais não são coincidência, são?
Ela virou o laptop para que ele visse o que estava escrito na tela. A
mensagem era uma entre as milhares enviadas ao site do Dr. Ben-Judá.
Algumas o incentivavam, outras faziam perguntas, outras continham críticas
ou ameaças. Parte do serviço de Leah era fazer uma triagem e separar as que
precisavam de uma resposta pessoal. A maioria não necessitava. A
mensagem que ela estranhara tinha-lhe chamado a atenção por ser muito
curta e conter iniciais estranhas. Dizia o seguinte: "C (B) W ligue J ref
patrão. Assinado, H."
Não sei quem é J nem o que esse H significa - ela disse -, mas
quantas pessoas sabem que podem enviar mensagens para Cameron (Buck)
Williams neste site? Ou estou imaginando coisas?
Rayford analisou a mensagem e chamou Buck. Os três se sentaram
diante da tela do computador de Leah. De repente, Buck pulou da cadeira.
É Jacov! - ele disse. - Que esperto! Ele é marido de Hannelore e quer
falar sobre Chaim.
Buck consultou seu relógio e fez a ligação. Eram sete horas em Israel.
Jacov costumava levantar cedo.
Ele foi convidado para a Festa de Gala Global - disse Jacov
rapidamente. - Todos nós achamos que não deve ir. Ele não tem passado
bem, fica acordado até tarde da noite. Sua aparência está horrível. Converse
com ele, quem sabe ele desiste.
Pela voz, Chaim demonstrou que não estava bem. Ele tentou dar um tom
jovial à conversa, mas seu acentuado sotaque israelense deixava transparecer
cansaço e, às vezes, uma certa dificuldade para pronunciar as palavras.
Eu não vou desistir, Cameron, mas insisti em levar meu criado e dois
convidados. Disseram-me que posso ir acompanhado de quem eu quiser.
Stefan tem aversão a Carpathia e diz que prefere pedir demissão a
comparecer à festa. Jacov concordou em fazer as funções de motorista e
criado.
Dr. Rosenzweig, você não deve ir. Já leu as advertências de Tsion e...
A advertência de Tsion é para aqueles que a Comunidade Global
chama de seguidores de Ben-Judá. Eu gosto muito de Tsion e o considero
como uma pessoa da família, mas não soa seguidor de Judá. Estou decidido
a ir, mas quero que você e Tsion me acompanhem.
Buck revirou os olhos.
Perdoe-me, doutor, mas você está sendo ingênuo. Nós dois somos
considerados persona non grata perante a CG, e não confiamos nem um
pouco na proteção garantida por Carpathia.
Eles disseram que posso levar quantos convidados eu quiser.
Eles não sabem quem você pretende convidar.
Cameron, você e eu nos tornamos amigos, não?
Claro.
Nossa amizade não é profissional, certo?
Certo, mas...
Você é um cosmopolita. Devia saber que, em minha cultura,
consideramos altamente ofensiva a recusa a um convite formal. Eu estou
convidando formalmente você e Tsion para comparecerem à Festa de Gala
comigo, e me sentirei insultado se vocês não aceitarem.
Doutor, eu tenho família. O Dr. Ben-Judá é responsável por milhões
de pessoas que contam com seus...
Vocês estarão em minha companhia! O regime de Carpathia tem
cometido atos abomináveis, mas ameaçar a segurança de alguém tão
importante quanto Tsion na presença de um convidado de honra...
Eu posso dizer-lhe de antemão, doutor, que Tsion não comparecerá.
Nem sei se vou transmitir-lhe o convite. Talvez ele se sinta na obrigação de
atender ao seu pedido, porque gosta muito de você, mas seria uma
irresponsabilidade de minha parte...
Você também gosta muito de mim, não, Cameron?
Sim, gosto o suficiente para lhe dizer que isso é...
Eu retiro o convite a Tsion se você vier. Buck hesitou.
Eu não poderia usar meu nome verdadeiro. E, embora eu esteja com a
fisionomia bastante diferente para passar pela alfândega, não vou poder
aparecer a seu lado se você estiver perto da chefia da CG. Eles me
reconheceriam imediatamente.
Chaim calou-se por alguns instantes. Em seguida, disse:
Estou muito triste porque dois de meus amigos a quem prezo tanto,
amigos que dizem que se preocupam muito comigo...
Doutor, não fale assim. Não é verdade. Você quer que eu vá só
porque está me fazendo sentir culpado? É justo? Você não está pensando em
minha mulher e meu filho?
Rosenzweig, demonstrando total insensibilidade, ignorou completamente
a última observação de Buck e perguntou:
O que Tsion diria se você lhe contasse que eu talvez esteja pronto
para ser um seguidor de Judá?
Buck suspirou.
Antes de mais nada, ele detesta esse termo. Você, mais do que
ninguém, deveria conhecer muito bem Tsion a ponto de saber que não faz
parte do caráter dele ter seguidores. E tomar uma decisão a respeito de sua
alma como se estivesse fazendo uma barganha...
Cameron, eu já lhe pedi alguma coisa antes? Faz muitos anos que o
considero um jovem cuja admiração por mim é gratuita, mas muito sincera.
Acho que nunca tirei vantagem disso. Tirei?
Não, e é por isso que...
Você é um jornalista! Como pode querer não estar presente?
Buck ficou sem resposta. Na verdade, ele ficou com vontade de
comparecer à Festa de Gala desde o momento em que ouviu falar dela. Ele
mal podia acreditar que o próprio Carpathia estivesse patrocinando um
evento no qual muitas profecias seriam cumpridas. Mas nunca pensara
seriamente em ir, apesar de sentir um certo orgulho pela facilidade com que
entrou e saiu de Israel usando um nome falso, pouco tempo atrás. Mas e
Chloe? E Kenny? E os avisos de Tsion para que nenhum crente
comparecesse? Buck considerava essa viagem fora de cogitação.
Finalmente, Chaim conseguira tocar no ponto vulnerável de Buck.
Incrédulo ou crente, solteiro ou casado, com ou sem filhos, ele era jornalista
desde que se conhecia por gente. Quando criança, sempre fora curioso -
xereta, conforme diziam os amigos e a família -, mesmo antes de ter uma
oportunidade de publicar suas histórias. Sua marca registrada era realizar
uma reportagem incisiva e testemunhada pessoalmente. Ele só se sentia feliz
de verdade quando estava trabalhando em alguma matéria, não ali escondido
na casa secreta, onde o máximo que podia fazer era comentar material já
publicado.
Sua hesitação pareceu animar Rosenzweig, como se ele soubesse que
Buck mordera a isca e que dali em diante bastava puxar a linha e tirá-lo do
anzol.
Não estou dizendo que não quero estar aí - disse Buck vacilante,
detestando dar um tom de lamento à voz.
Então você virá? Isso significaria muito para...
Não se trata de uma decisão que eu possa tomar sozinho - disse Buck,
dando-se conta de que havia conseguido lavrar um tento. Depois de uma
recusa taxativa, ele descobrira um meio de protelar sua decisão.
Esta é uma das diferenças entre nossas culturas - disse Chaim. - O
homem do Oriente Médio é dono do próprio nariz, de seus caminhos, não
deve satisfações a...
Eu não posso ser visto com você - disse Buck.
Fico feliz só em saber que você estará lá, Cameron. Com certeza,
encontraremos um momento para uma conversa particular. Vou retirar meu
convite formal a Tsion, e não vou me alongar sobre nossas discussões de
natureza espiritual.
Você não precisa esperar por mim para tomar uma decisão, doutor.
Na verdade, eu insisto que, antes de pensar em participar da festa, você
deveria...
Eu preciso discutir essas coisas pessoalmente, Cameron. Você
compreende.
Buck não compreendia, porém, se permanecesse mais tempo ao telefone,
receava fazer outras concessões. Mesmo tendo a certeza de que suscitaria a
ira do Comando Tribulação, ele negociou uma condição.
Eu insisto em uma coisa - ele disse.
Ora, Cameron, você não vai voltar atrás, vai?
Eu não quero que você esteja presente no segundo dia da festa.
Chaim não argumentou, mas Buck ouviu o som de papéis sendo
revirados.
O evento vai durar cinco dias - disse Rosenzweig -, de segunda a
sexta-feira da próxima semana. O aniversário do tratado é na segunda.
Nicolae quer que eu esteja presente na tribuna para essa comemoração. Na
terça-feira, haverá uma festividade no Monte do Templo, onde eu receio que
se inicie um confronto entre ele e os dois pregadores. É isto que você quer
que eu evite?
Exatamente.
Concordo.
Obrigado, doutor.
As informações de que disponho exigem a honra de minha presença
nas cerimônias de abertura e de encerramento. A abertura será na segundafeira
à noite, e o encerramento, na sexta-feira à noite.
Por mim, você não compareceria a nenhuma delas.
Ouvi você dizer que estaria lá.
Annie e David desenvolviam cada vez mais seu relacionamento. Ele não
gostou quando Annie lhe disse que, às vezes, ela achava que o namorado
gostava mais dela como uma companheira subversiva do que como alguém
que o amava. Olhando ao redor para ter certeza de que estavam sozinhos no
final de um corredor, ele segurou o rosto de Annie e encostou a ponta do
nariz no dela.
Eu amo você - ele disse. - Em outras circunstâncias, eu me casaria
com você.
Você está me pedindo em casamento?
Bem que eu gostaria. Você pode imaginar a pressão, o desgaste que
estou sofrendo. Você também sente isso. As únicas duas pessoas crentes que
vimos por aqui, além de Mac e Abdullah, foram aquelas duas mulheres que
trabalham no inventário. Elas foram descobertas ontem à noite.
Oh! não! Nem tivemos tempo de conversar com elas. Provavelmente
pensaram que eram as únicas crentes.
Elas foram enviadas para Bruxelas hoje cedo.
Oh, David.
Acho que nós também não vamos permanecer aqui por muito mais
tempo. Não sei exatamente quando eles vão começar a exigir a tal marca,
mas vamos ter de fugir antes.
Eu quero ser sua esposa, nem que seja por poucos anos.
Eu também quero me casar com você, mas não podemos fazer nada
enquanto não soubermos se vamos conseguir sair juntos daqui. Se um de nós
for embora e o outro não, a vida não terá mais sentido.
Eu sei - ela disse. - Vamos ser os primeiros da lista quando Carpathia
começar a exigir a marca da lealdade. E você sabe que ele vai começar aqui
no palácio.
É bem provável.
Enquanto isso, David, seria melhor você dizer ao pessoal do
Comando Tribulação nos Estados Unidos que, se eles precisarem viajar,
agora é a melhor ocasião. Vi um documento que vai ser enviado às Forças
Pacificadoras do mundo inteiro, dizendo que haverá um período de trégua no
qual ninguém poderá ser preso nem detido até o término da Festa de Gala,
nem mesmo os inimigos da Comunidade Global.
Evidentemente, Buck não guardou segredo a Tsion sobre o convite feito
por Rosenzweig. A partir daquele momento, Tsion começou a demonstrar
uma melancolia inusitada. - Eu não vou dizer o que você deve fazer, Buck -
ele disse na frente de Rayford -, mas gostaria que seu sogro o fizesse desistir.
Para ser franco - disse Rayford na reunião seguinte -, eu gostaria de
acompanhar Buck.
Você está permitindo que ele vá - disse Chloe, carregando o filho de
14 meses no colo. Kenny virou-se para ela e cobriu-lhe os olhos com as
mãos enquanto a mãe falava. Chloe precisou virar o rosto para enxergar. - Eu
não posso acreditar. Então, por que você não vai com ele, papai? Por que não
vamos todos nós? Se, ao que tudo indica, não vamos conseguir chegar até o
final da Tribulação, que tal atirarmos todas as precauções pela janela? Que
tal deixarmos Kenny órfão sem ter nem mesmo um avô?
Kenny! - repetiu o bebê. - Vovô!
Rayford deu um tapa na perna e abriu os braços. Kenny escorregou do
colo de Chloe e correu na direção do avô. Rayford o levantou acima da
cabeça, fazendo-o gritar de alegria. Em seguida, sentou-o no colo.
A verdade é que estou pensando em fazer uma viagem, mas não para
Israel.
Que ótimo! - exclamou Chloe. - Quer dizer que não temos mais
direito a voto, que podemos fazer como Hattie, fugir para onde a gente
quiser?
Não estamos praticando uma democracia verdadeira -disse Rayford.
Quando viu o olhar que Tsion lhe lançou, ele percebeu que estava pisando
em terreno perigoso. O bebê desceu de seu colo e engatinhou até o outro
cômodo. - Leah e eu temos conversado, e...
Leah também vai viajar? - perguntou Chloe. - Não posso abrir mão
do trabalho dela.
Não será por muito tempo - disse Leah.
Vocês já decidiram antecipadamente?
Não estamos discutindo. Estamos simplesmente comunicando - disse
Rayford.
É claro. Vamos ouvir o que você tem a nos dizer. Rayford começou a
falar com cautela, temendo demonstrar seus verdadeiros planos. No fundo do
coração, ele queria ir a Jerusalém com seu Sabre. Mas ele disse:
Precisamos fazer contato com Hattie. Sinto-me responsável por ela,
quero saber se ela está bem, quero que ela saiba que continuamos a seu lado,
quero ver o que podemos fazer por ela. E, acima de tudo, quero ter a certeza
de que ela ainda não nos delatou.
Até Chloe não soube contra-argumentar.
Hattie precisa saber o que aconteceu com a irmã dela, mas a CG está
atrás de você, papai.
Eles não vão suspeitar muito de uma mulher. Estamos pensando em
fazer Leah se passar por tia materna de Hattie. Para isso, ela vai precisar
mudar a fisionomia, ter uma nova cédula de identidade. Ela vai dizer que
ouviu um boato ou que alguém fez vazar a informação de que Hattie está lá.
Se eles não associarem Leah conosco, por que não permitiriam que ela
entrasse em contato com Hattie?
Mas justo agora, papai? Bem agora que Buck vai viajar?
David nos disse que esta é a melhor ocasião para viajarmos. Em
breve, será quase impossível ir a qualquer lugar.
É verdade - disse Tsion.
Rayford olhou surpreso para ele, e percebeu que os outros também
tiveram a mesma reação.
Não estou apoiando essa viagem - disse Tsion. - Mas, se aquela pobre
garota morrer na prisão separada de Deus, depois de ter morado debaixo de
nosso teto por tanto tempo... - A voz de Tsion ficou trêmula e ele fez uma
pausa. - Não sei por que Deus me fez sentir tanta ternura por aquela moça.
Chloe sentou sacudindo a cabeça, desanimada. Rayford sabia que ela não
estava feliz, mas não tinha mais argumentos.
T acha que seria muito arriscado eu voltar a voar no Super J e está
preparando o Gulfstream - disse Rayford.
Eu não ficaria surpresa se você dissesse que a viagem já está acertada
- disse Chloe.
Rayford notou um ar de admiração resignada no rosto da filha, como se
ela já aceitasse o fato de que ele nunca voltava atrás depois de ter metido um
plano na cabeça.
Buck pode voar conosco até Bruxelas. De lá, ele pode pegar um vôo
comercial até Tel-Aviv. Com isso, economizaremos alguns dólares. Vou
ficar escondido na Bélgica e me encontrarei com Leah quando ela terminar
sua missão.
Talvez Buck possa voltar com vocês - disse Chloe. - Isso vai
depender de quanto tempo vocês vão querer esperar por ele em Bruxelas.
Talvez - disse Rayford. - Você prefere assim, Chloe?
É melhor que ele volte para casa com meu pai do que arriscar a vida
voando por aí com uma tripulação desfalcada. Sim, prefiro. É claro que
prefiro que ele não vá, mas, já que isso é impossível, que seja assim.
O clima era de festa no Fênix 216 quando Mac e Abdullah partiram, na
manhã de sábado, num vôo rumo a Israel com a aeronave lotada. Parecia que
todo o setor administrativo de Carpathia estava a bordo, o que para ele era
uma glória. Mac ligou o botão secreto enquanto Leon pedia que os
passageiros se reunissem.
Sejam todos bem-vindos - ele disse. - E, para o nosso convidado
muito especial, que generosamente cedeu esta aeronave à Sua Excelência em
tempos difíceis, enviamos uma saudação também muito especial.
Seguiu-se um aplauso discreto, e Mac gostaria de ter visto o rosto de
Peter Mathews.
O senhor teria alguma coisa a dizer antes que Sua Excelência tome a
palavra, pontífice? - perguntou Fortunato.
Oh! sim, obrigado, comandante. Eu... nós, da Fé Mundial Enigma
Babilônia, aguardamos com ansiedade a realização da Festa de Gala. Como
os senhores sabem, Israel é uma das últimas regiões a concordar com nossos
ideais. Creio que teremos a oportunidade de dar um novo aspecto à fé
mundial e que, a partir desta semana, conquistaremos muitos novos
membros. Eu, francamente, gosto de ter oportunidades para desafiar
dissidentes, e, sabendo que os dois pregadores e os seguidores de Judá
estarão presentes, não poderá haver local melhor para fazer isso. É muito
bom estar com vocês!
Obrigado, sumo pontífice - disse Leon. - Agora, Sua Excelência...
Carpathia parecia extasiado, aguardando os acontecimentos.
Minhas saudações pessoais a todos vocês - ele disse. -Creio que, um
dia, vocês vão se recordar da próxima semana como o início do melhor
momento de suas vidas. Temos sofrido da mesma maneira que o mundo
inteiro em razão das pragas e mortes. Mas o futuro está claro. Sabemos o que
temos de fazer e estamos felizes por isso. Divirtam-se!
É tempo de alegria, de festa. Jamais a liberdade pessoal foi tão
comemorada. E posso dizer que há mais lugares em Jerusalém do que em
qualquer outra cidade para vocês se divertirem. Regalem-se nos prazeres
físicos e gastronômicos que mais lhes apetecerem. Mostrem ao restante da
Comunidade Global que eles têm permissão para se entregarem aos prazeres
epicuristas da carne mesmo nesses tempos difíceis e de caos que
atravessamos. Vamos saudar o novo mundo com um festival que ninguém
jamais viu. Muitos de vocês foram responsáveis pela organização desses
momentos de lazer e diversão, e eu lhes sou muito grato. Mal posso esperar
para assistir ao espetáculo!
Mac e Abdullah desfrutaram a regalia de ficar hospedados em quartos
privativos adjacentes no exuberante Hotel Rei Davi, onde Carpathia
reservara dois andares inteiros. O restante da comitiva foi acomodado em
locais próximos, igualmente luxuosos. Os dez potentados regionais ficariam
hospedados no Grande Hotel da CG, distante cerca de meio quilômetro do
Hotel Rei Davi.
Durante os dois dias que precederam a abertura oficial da Festa de Gala,
a tripulação da cabina foi incumbida de fazer viagens de ida e volta no 216 a
Tel-Aviv. Na manhã de segunda-feira, eles ajudaram a conseguir transporte
do Aeroporto Ben Gurion até Jerusalém para os potentados e suas enormes
comitivas. Mac trabalhou com o serviço de segurança da CG para
descarregar os detectores de metal que David colocara no compartimento de
cargas, os quais foram instalados nos dois lados do gigantesco palanque
construído a pouco menos de um quilômetro do Monte do Templo e do
Muro das Lamentações. Todos os que estariam no palanque, desde artistas
até convidados de honra, passariam pelos detectores de metal.
O piso do palanque estava a uma altura de quase quatro metros do chão e
tinha uma área de cerca de 90 metros quadrados. Uma enorme cobertura de
lona impermeabilizada protegia o lugar do Sol forte. Nas imponentes
armações em formato de torre, foi instalado o sistema de alto-falantes, que
transmitiria músicas e discursos à multidão estimada em dois milhões de
pessoas. Estendendo-se ao fundo do palanque, uma cortina combinando com
a cobertura de lona ostentava mensagens variadas, escritas nos principais
idiomas ali representados. Elas saudavam os delegados e anunciavam a
programação dos cinco dias da Festa de Gala Global, em meio ao reluzente
logotipo da Comunidade Global.
Mac notou que a frase mais extensa impressa na cortina dizia o seguinte:
Um Só Mundo, Uma Só Verdade: Liberdade Individual para Todos. Por toda
parte, em todos os postes, muros e paredes, lia-se o slogan: Hoje É o
Primeiro Dia do Restante da Utopia.
Enquanto Mac e Abdullah ajudavam na instalação dos detectores de
metal, vários grupos musicais e de dançarinos ensaiavam, e os técnicos de
som aglomeravam-se no local. Mac puxou Abdullah para perto de si e
cochichou:
Eu devo estar vendo coisas. Com quem se parece aquela moça, a
segunda da esquerda para a direita?
Eu estava tentando não olhar - disse Abdullah -, mas já que você
insiste... Que coisa! Ela é muito parecida. Mas não é possível, é?
Mac sacudiu a cabeça, concordando que não era ela. Eles sabiam que
Hattie estava em Bruxelas. Aquela moça se destacava das outras dançarinas
por parecer um pouco mais velha. O restante não passava de um bando de
adolescentes.
O chefe da segurança recordou aos músicos e dançarinos que ninguém
poderia permanecer no palanque, a partir da cerimônia de abertura na noite
de segunda-feira, sem portar um crachá e sem passar pelo detector de metais.
Se vocês estiverem usando bijuterias ou jóias, devem retirá-las para
que sejam examinadas antes de subirem ao palanque - ele disse.
Em uma reunião com os funcionários do setor de segurança, Mac ouviu
o chefe instruir os policiais fardados dizendo que eles se revezariam na
frente do palanque.
Principalmente quando o potentado estiver diante do microfone - ele
disse -, mantenham suas posições. Deixem que o público mude de lugar se
vocês estiverem impedindo a visão. Vocês devem ficar em semicírculo, de
oito em oito, com os pés afastados, mãos nos cintos, olhando para a frente.
Não conversem, não sorriam, não façam nenhum gesto. Se forem chamados
pelos fones de ouvido, não digam nada. Limitem-se a obedecer às instruções.
Mac sentiu uma grande tristeza enquanto caminhava até a van que
levaria Abdullah e ele de volta ao Hotel Rei Davi. Olhou para trás e
observou o palanque a distância, do outro lado do enorme terreno asfaltado.
A música ensurdecedora voltou a tocar, e o grupo de dançarinos terminou
uma seqüência de danças sensuais.
Este é um novo mundo, Abdullah. Agora existe uma liberdade
individual, sancionada pelo governo internacional.
E até mesmo comemorada - disse Abdullah. De repente, ele parou e
debruçou-se em uma cerca. - Capitão, nestas ocasiões eu sinto um desejo
enorme de ir para o céu. Não quero morrer, principalmente da maneira como
tenho visto acontecer com outras pessoas. Mas não será nada fácil viver até o
dia do Glorioso Aparecimento.
Mac assentiu com a cabeça.
Foi terrível o que aconteceu com os Tuttles. Provavelmente eles nem
viram o que os atingiu. Acordaram no céu.
Abdullah olhou para o céu sem nuvens.
Que Deus me perdoe, mas eu quero ter uma morte rápida e sem dor.
Mac ouviu Eli e Moisés pregando a uma distância de uns 800 metros,
mas não conseguia entender o que eles diziam.
Tenho ouvido falar muito sobre eles - disse Mac. - Acho que não
seria muito arriscado se alguém nos visse lá.
Eu adoraria ver os dois - disse Abdullah. - Que tal passarmos por lá a
pé, no caminho de volta ao hotel? Não precisamos ficar no meio da
multidão. Só vamos ver o que for possível e ouvir o que conseguirmos.
Concordo plenamente, Smitty - disse Mac.
Ao longo do caminho, Mac e Abdullah passaram por bares, clubes de
strip-tease, casas de massagem, prostíbulos, templos pagãos e
estabelecimentos de cartomantes. Em uma cidade com uma história milenar
de religiosidade e onde - da mesma forma que no restante do mundo -
metade da população havia sido exterminada a partir do Arrebatamento,
essas atividades não eram proibidas. Não funcionavam clandestinamente
nem eram relegadas a uma determinada parte da cidade. Também não
funcionavam no escuro por trás de portas negras ou entradas em formato de
labirinto poupando ameaças "reais" àqueles que estavam ali de propósito.
Ao contrário, enquanto o resto da Cidade Santa parecia estar sucumbindo
por negligência ou falta de mão-de-obra, ali se viam fachadas bem
iluminadas e expostas, exibindo com orgulho todo o tipo de perversão e
pecado carnal que o homem conhecia.
Mac apressou o passo, apesar da dificuldade que Abdullah tinha para
andar, e os dois seguiram rapidamente em direção ao Monte do Templo e às
duas testemunhas, como se elas fossem uma fonte em que lavariam toda a
sujeira que haviam visto.
VINTE E UM
Da mesma forma que os demais moradores da casa secreta, Buck não
conseguia entender o relacionamento entre seu sogro e Leah Rose. Ela
parecia uma pedra no sapato de Rayford, mas ele tinha de reconhecer a
grande contribuição que ela dera ao Comando Tribulação, além de sua
fortuna.
Rayford discutia com Leah por causa de coisas insignificantes, e ela
mantinha-se inflexível. Mesmo assim, eles passavam cada vez mais tempo
juntos, à medida que a metade do período da Tribulação se aproximava.
Após Rayford ter comunicado seus planos de levá-la a Bruxelas, a
proximidade entre os dois ficou menos misteriosa para Buck.
Aparentemente, Rayford necessitava que Leah lhe prestasse um serviço, e
ela estava ansiosa por executá-lo. Talvez fosse esse o motivo da
aproximação entre os dois.
Zeke Jr., o rapaz com o corpo tatuado e conhecido por Z, conseguiu
ótimos resultados com os documentos que forjou para Leah. Sua fisionomia
ficou totalmente modificada depois que ela tingiu os cabelos de loiro,
colocou lentes de contato escuras e adaptou um imperceptível aparelho nos
dentes que a deixou não muito bonita, com a arcada superior projetada para a
frente. Leah passou a ser Donna Clendenon, da Califórnia, ex-esposa de um
dos irmãos da mãe de Hattie Durham. Ela seria a portadora da notícia da
morte de Nancy, a irmã de Hattie (o que, infelizmente, era um fato verídico).
Rayford imaginava que essa notícia facilitaria sua entrada na prisão da
Comunidade Global em Bruxelas, cujo nome havia sido mudado para
Presídio de Reabilitação Feminina da Bélgica, conhecido popularmente
como PRFB. Tratava-se de um presídio de segurança máxima. As mulheres
que ali entravam dificilmente saíam. E, quando saíam, não estavam nem um
pouco reabilitadas.
A esperança de Buck - e a de Rayford, assim ele imaginava - era que a
CG considerasse Hattie uma pessoa valiosa demais para ser simplesmente
eliminada. Carpathia devia considerá-la, no mínimo, uma isca para ajudá-lo
a capturar Rayford, Buck ou até mesmo Tsion Ben-Judá. Os outros
moradores da casa secreta esperavam que a CG não tivesse perdido a
paciência com Hattie pela frustração de não ter conseguido, por duas vezes,
agarrar Rayford.
Para Buck, a despedida foi relativamente suave, porque Chloe não quis
manifestar o que sentia naquele momento. Ela lhe dissera em particular, e
também durante a reunião, que considerava seu interesse pela Festa de Gala
uma obsessão perigosa.
Não estou querendo impedi-lo de fazer a cobertura de um dos eventos
mais importantes da História, mas você está disposto a sofrer as
conseqüências de um terremoto e, agora, os riscos são muito maiores. Você
está mais preocupado em manter a palavra dada a Chaim do que em proteger
sua família.
Mas no dia em que Chloe, Tsion e o bebê viram os três partindo, ela
parecia ter decidido a não tocar mais no assunto. Buck entendeu que sua
esposa se conformara. Ela permitira que ele ficasse bastante tempo com
Kenny. Na hora da despedida, abraçou o marido e prometeu orar por ele,
dizendo que seu amor jamais morreria.
Espero que seu amor por mim também não morra - ela
complementou.
Meu amor por você jamais morrerá, mesmo que eu morra.
Não foi exatamente o que eu gostaria de ter ouvido. Buck agradeceu a
Chloe por ela ter permitido que ele viajasse. Ela deu-lhe um leve tapa no
braço, dizendo:
Como se eu tivesse escolha. Será que tornei sua vida tão infeliz
assim? Acho que é por isso que você está indo embora.
Chloe conseguiu manter o bom-humor, apesar das lágrimas que
teimaram em rolar por seu rosto quando Buck, Rayford e Leah saíram da
casa secreta depois da oração de Tsion, que os abençoou e desejou-lhes boa
viagem.
Você acredita nisso? - perguntou Mac a Abdullah enquanto eles
olhavam com curiosidade para os refletores, cabos de TV e satélites
montados perto do Muro das Lamentações. Parecia que o local havia sido
tomado só por câmeras.
Abdullah, com seu costumeiro estilo lacônico, limitou-se a sacudir a
cabeça.
Mac emocionou-se ao ver Eli e Moisés, mesmo a uma distância razoável.
Eles estavam pregando as doutrinas do Evangelho aos gritos, e a multidão
parecia alvoroçada. Alguém havia dito a Mac que, normalmente, o público
ouvia os pregadores em silêncio, por respeito ou por medo. O povo mantinha
distância daqueles dois homens estranhos, que, segundo diziam, lançavam
fogo em direção a seus agressores deixando-os carbonizados. Ninguém
queria correr tal risco.
Aquela multidão - maior do que o normal e mais turbulenta
parecia composta de pessoas que chegaram antecipadamente para a
Festa de Gala. Algumas saudavam, aplaudiam, assobiavam e diziam amém
após cada frase proferida pelas duas testemunhas. Outras gritavam, vaiavam.
Mac olhou espantado para algumas pessoas que dançavam e corriam em
direção à cerca, como que querendo demonstrar valentia. Ficou claro que os
pregadores sabiam distinguir entre assassinos em potencial e recémchegados
à cidade, que consideravam essa pregação parte da diversão da
Festa de Gala.
O mais estranho, contudo, era um grupo de cerca de uma dúzia de
pessoas que pareciam comovidas pela pregação. Elas se ajoelharam a uns
três metros da cerca e estavam chorando. Eli e Moisés falavam, um por vez,
suplicando ao povo que aceitasse a Cristo antes que fosse tarde demais.
Aquele grupo estava atendendo ao apelo dos dois.
Um motivo para sermos agradecidos - disse Mac -, no meio de toda
esta confusão.
As duas testemunhas pareciam sentir urgência. Mac conhecia as razões.
Também era aluno de Tsion e sabia que o "tempo determinado" mencionado
por Eli e Moisés com tanta freqüência coincidia com o início da Festa de
Gala Global, que ocorreria a pouco menos de um quilômetro dali.
No caminho até Palwaukee, Buck conheceu um pouco mais do
relacionamento - ou falta dele - entre Rayford e Leah. A conversa dela
girava em torno de Tsion.
Tsion?
Ele parece tão solitário - ela disse.
É verdade - concordou Rayford. - Com exceção de Chloe e de Buck,
todos nós somos solitários, vivendo em aposentos isolados.
Como se eu não soubesse... - ela disse, perguntando, em seguida,
detalhes sobre a vida de Tsion antes de ele integrar-se ao Comando
Tribulação. Buck lhe contou a história toda.
Em Palwaukee, T entregou o Gulfstream abastecido, inclusive com uma
geladeira, e com o mapa de vôo a bordo.
É muito mais do que merecemos, T - disse Rayford.
Não diga isso. Os membros de nossa pequena igreja estão orando por
todos vocês, embora, por motivos óbvios, eu não tenha fornecido detalhes da
viagem.
Mac ligou de Israel para David, na Nova Babilônia, no final da noite de
domingo.
Este lugar aqui parece uma cidade fantasma - disse David. - Temos
toda liberdade, sem ninguém para nos espionar. Annie e eu estamos
passando bastante tempo juntos, planejando como fugir daqui e decidindo
para onde ir.
Não vá embora antes da hora - disse Mac. - Precisamos de você aí.
O relógio marcava duas horas mais cedo, horário da Bélgica, quando
Rayford aterrissou em Bruxelas. Ele estava tão nervoso quanto no dia em
que batera na porta do apartamento de Hattie em Le Havre, mas não podia
deixar transparecer isso. Buck e Leah imaginavam que sua função ali seria a
de simples motorista. Como eles interpretariam um nervosismo sem nenhum
motivo?
"Donna" se hospedaria em um hotel mais ou menos próximo do PRFB,
planejando uma visita para o dia seguinte. Buck, sob o novo pseudônimo de
Russell Staub, pegaria um vôo comercial para Tel-Aviv.
Você memorizou o número de meu telefone sigiloso? -perguntou
Rayford a Leah enquanto taxiava a aeronave para perto do terminal.
O seu e o de Buck.
Não vou poder fazer muita coisa se você não conseguir falar com
Rayford - disse Buck.
Se eu não conseguir contatar Rayford - ela disse pegando sua sacola -
, vou precisar mesmo me despedir de alguém. Deseje-me boa sorte.
Não costumamos desejar boa sorte - disse Buck. - Você se lembra?
Ah! sim - ela disse. - Então, ore por mim.
Rayford sabia que devia ter dito alguma coisa, mas estava preocupado. E
Leah já havia partido.
Onde você vai se hospedar, Ray? - perguntou Buck. Rayford lançoulhe
um olhar de censura.
Quanto menos você souber, menor será a sua responsabilidade.
Buck levantou as mãos.
Ray! Fiz uma pergunta genérica. Você tem onde ficar, coisas para
fazer, meios de passar despercebido?
Já tomei minhas providências - disse Rayford.
E Leah sabe tudo o que queremos dizer a Hattie?
Eu não teria trazido Leah até aqui se soubesse que ela não estava
preparada.
Rayford sabia que estava irritando Buck. O que se passava com ele?
Só estou querendo saber se está tudo em ordem para eu poder seguir a
viagem tranqüilo, Ray. Vou enfrentar uma situação estressante e quero ter
poucas coisas com que me preocupar.
É melhor você ir - disse Rayford, olhando para o relógio. - Se você
descobrir um jeito de se preocupar com poucas coisas, me informe. Estamos
enviando uma espiã novinha em folha para a prisão e, esperta como é, quem
sabe o que ela vai fazer ou dizer se for pressionada?
Isso me deixa mais tranqüilo.
É tempo de crescer, Buck.
É tempo de pegar um pouco mais leve, papai.
Tome cuidado, ouviu? - disse Rayford.
Rayford sentiu-se solitário quando Buck desceu do avião. Ainda não
havia decidido por onde começar e sabia o que os outros do Comando
Tribulação pensariam a respeito do que ia fazer. Se Deus o usasse para
assassinar Carpathia, ele não teria como fugir. Rayford receava ter visto seus
queridos pela última vez. E esperava não ter sobrecarregado Buck com seus
problemas, uma vez que seria seu genro quem cuidaria do retorno de Leah
aos Estados Unidos.
Dez minutos depois que Buck entrou no terminal, Rayford reabasteceu a
aeronave e pediu autorização à torre para decolar. Ele havia pensado em
descobrir uma pista de pouso que não fizesse parte do Ben Gurion ou do
aeroporto de Jerusalém, mas decidiu que, com seu novo pseudônimo -Marv
Berry -, seria melhor descer onde houvesse maior movimento. Ben Gurion.
David estava com dificuldade, mesmo com a ajuda de Annie, de
memorizar os pseudônimos que os três membros do Comando Tribulação
estavam usando no exterior. Ele escreveu em um cartão as iniciais invertidas
de cada um deles, ao lado do pseudônimo, desta forma: "RL Donna
Clendenon; SR. Marvin Berry; WC Russell Staub." Para maior segurança,
acrescentou o pseudônimo de Hattie: "DH Mae Willie."
Buck foi diretamente para Jerusalém em um vôo noturno e registrou-se
em uma hospedaria usando o nome falso. A meia-noite, pegou um táxi e
dirigiu-se para o Muro das Lamentações. A multidão era tão grande que ele
não conseguia enxergar Moisés e Eli. Aproveitando a ocasião, ligou para
David, depois para Chloe, e, em seguida, para Mac. Por último, ligou para
Chaim. Jacov atendeu.
Oh! Buck! - ele disse. - Esperei tanto por seu telefonema! Foi
medonho, terrível!
O que aconteceu?
O Dr. Rosenzweig não conseguiu levantar-se hoje de manhã nem
conversar conosco. Ele parecia paralisado e muito assustado. Balbuciou
alguma coisa, e sua mão esquerda estava crispada, o braço esticado. Não
conseguia pronunciar direito as palavras. Chamamos uma ambulância, mas
ela demorou muito. Ficamos com medo de que ele morresse.
Foi um derrame?
Disseram que sim. Eles o transportaram para o hospital e estão
fazendo os exames necessários. Só vamos saber o resultado amanhã, mas
parece que foi grave.
Onde ele está?
Eu posso lhe dizer, Buck, mas você não vai conseguir entrar.
Nenhum de nós tem autorização para visitá-lo. Ele está na UTI, e disseram
que os sinais vitais ainda estão em ordem, depois de tudo o que aconteceu.
Mas estamos preocupados. Enquanto a ambulância não chegava, nós oramos
por ele, suplicando que ele se convertesse. Como o Dr. Rosenzweig não
podia falar, ficamos observando se ele também orava. Mas não vimos nada.
Ele parecia zangado e assustado, acenando o tempo todo com a outra mão
para que eu me afastasse dali.
Sinto muito, Jacov. Quero que você me avise assim que receber
notícias dele.
Não podemos ligar para você daqui. Seu telefone é sigiloso, mas o
nosso, não.
Você tem razão. Vou ligar sempre que puder. E vou orar por ele.
Rayford, ou melhor, Marv Berry, foi barrado por pouco tempo no
movimentado setor da alfândega. O agente aceitou sua história de que a
pesada caixa de metal em sua maleta era uma bateria de computador.
Rayford alugou um carro e hospedou-se em um hotel simples na região oeste
de Tel-Aviv. Ele ligou para o hotel de Leah em Bruxelas, onde já passava
um pouco da meia-noite. Ela ainda devia estar acordada por causa da
mudança de fuso horário e do cansaço da viagem. A telefonista do hotel
relutou em ligar para o quarto da Sra. Clendenon, mas o "Sr. Berry" insistiu
que se tratava de uma emergência. Após o sexto toque, Leah atendeu com
voz sonolenta, e Rayford ficou impressionado com o autocontrole dela.
Aqui fala Donna - ela disse.
É Marv. Acordei você?
Sim. O que houve?
Está tudo bem. Preste atenção, não vou poder buscar você antes de
sexta-feira.
O quê?
Não posso entrar em detalhes. Esteja pronta na sexta-feira.
Bem... Marv... é que eu devo estar pronta na terça-feira.
Não ligue para mim antes de sexta-feira, está bem? -Esta bem, mas...
•Está bem, Donna?
Está bem! Você não poderia ser mais específico?
Eu bem que gostaria.
Buck despertou cedo na segunda-feira e dirigiu-se apressado 30 Muro
das Lamentações. Na noite anterior, não conseguira aproximar-se de Eli e
Moisés, mas ficou emocionado ao ver algumas pessoas saindo do meio da
multidão e ajoelhando-se perto da cerca para aceitar a Cristo.
As testemunhas sempre falavam com energia e insistência, mas Buck
percebeu que elas sabiam, como as demais pessoas, que seu tempo estava se
esgotando. A população do mundo havia diminuído em razão das mortes
causadas pelos 200 milhões de cavaleiros. Aqueles que sobreviveram
estavam determinados a continuar no pecado. Agora, parecia que as
testemunhas estavam usando seus últimos recursos para livrar as almas do
Maligno.
Na segunda-feira, a multidão no Monte do Templo aumentou, enquanto
as pessoas aguardavam a Festa de Gala, que só começaria no início da noite.
Centenas de milhares de delegados estavam curiosos para ver os pregadores,
que ainda não conheciam pessoalmente. O centro de Jerusalém, onde as
atividades lascivas proliferavam, também estava lotado, mas a maioria dos
turistas preferiu dar uma olhada naqueles homens estranhos que pregavam
detrás da cerca.
Aquele era o 1.260° e último dia para que pregassem e profetizassem
antes do "tempo determinado". Buck sentia ser um privilégio indescritível
poder estar ali. Ele abriu caminho com os ombros em meio à multidão até
conseguir ficar um passo à frente dos novos convertidos, ajoelhados diante
da cerca. Aproximou-se de Eli e Moisés o mais que pôde, quase tocando a
cerca. Algumas pessoas o advertiram, dizendo que muita gente havia
morrido por ter se aproximado mais do que devia. Ele ajoelhou-se, com os
olhos fixos nos dois, e preparou-se para ouvir.
Eli estava em pé, e Moisés, sentado um pouco atrás, encostado na parede
de uma pequena construção de pedra.
Observe aquele ali! - gritou alguém. - Ele tem um lança-chamas
escondido!
Muitas pessoas riram, mas a maioria pediu silêncio. Buck surpreendeu-se
ao perceber a emoção na voz de Eli, que gritava, quase em lágrimas, alto o
suficiente para ser ouvido a quarteirões de distância, apesar de suas
mensagens estarem sendo transmitidas com freqüência pela CNN da CG. Os
repórteres de TV espalhados por toda Jerusalém noticiavam o entusiasmo
crescente do povo pela Festa de Gala naquela noite. Parecia que todos
haviam resolvido estar ali diante do Muro. Eli gritava:
Como o Messias se desesperou ao contemplar do alto esta cidade!
Deus, o Pai, prometeu abençoar Jerusalém se seu povo obedecesse a seus
mandamentos e não adorasse a outros deuses. Viemos em nome do Pai, e
não nos recebestes. Jesus disse: "Jerusalém, Jerusalém! que matas os
profetas e apedrejas os que te foram enviados! Quantas vezes quis eu reunir
os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintinhos debaixo das asas, e
vós não o quisestes! Eis que a vossa casa vos ficará deserta. Declaro-vos,
pois, que desde agora já não me vereis, até que venhais a dizer: Bendito o
que vem em nome do Senhor!"
A multidão silenciou. Eli prosseguiu:
Deus enviou seu Filho, o Messias prometido, que cumpriu as
profecias de mais de cem dos antigos profetas, sendo, inclusive, crucificado
nesta cidade. O amor de Cristo nos leva a dizer-vos que Ele morreu por
todos, que aqueles que vivem não mais viverão para si mesmos, mas para
Ele, que morreu por todos os pecadores e ressuscitou.
Somos embaixadores de Cristo, pois Deus nos pediu que
clamássemos por vós. Oramos por vós em nome de Cristo, para que vos
reconcilieis com Deus. Porque aquele que não conheceu pecado, Ele o fez
pecado por nós; para que nele fôssemos feitos justiça de Deus. Eis que este é
o tempo certo; eis que este é o dia da salvação.
E não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe
nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos
salvos. Embora este mundo e seus falsos profetas prometam que todas as
religiões levam a Deus, isso é mentira. Jesus é o único caminho que leva a
Deus, conforme Ele próprio declarou: "Eu sou o caminho, e a verdade, e a
vida; ninguém vem ao Pai senão por mim."
Eli parecia exausto e afastou-se da cerca. Moisés levantou-se e
proclamou:
Este mundo pode estar presenciando o nosso fim, mas vós não
presenciareis o fim de Jesus, o Cristo! De acordo com os profetas, Ele virá
novamente em poder e grande glória para estabelecer seu reino aqui na
Terra. O Senhor virá, com milhares e milhares de seus santos, para julgar a
todos e para tornar todos os ímpios convictos de todas as obras ímpias que
impiamente praticaram, e de todas as palavras insolentes que proferiram
contra Ele.
O seu domínio é domínio eterno, que não passará, e o seu reino
jamais será destruído. Achegai-vos a Ele hoje, agora! O Senhor não deseja
que nenhuma alma pereça, mas que todos se arrependam. Assim diz o
Senhor.
Eli levantou-se e aproximou-se de Moisés, e ambos disseram em
uníssono:
Temos servido ao Senhor Deus Todo-Poderoso, criador do céu e da
Terra, e a Jesus Cristo, seu unigênito Filho. Vede, temos cumprido o nosso
dever e encerrado a nossa missão até o tempo determinado. Ó Jerusalém,
Jerusalém...
Os dois permaneceram em pé diante da cerca, imóveis, sem piscar; seus
cabelos, barbas e mantos oscilavam ao sabor da brisa. A multidão começou a
agitar-se. Alguns pediam mais pregações; outros escarneciam deles. Buck
levantou-se lentamente e se afastou, sabendo que os dois haviam terminado
suas pregações. Para muitos, a impressão era a de que Carpathia vencera. Ele
havia decidido realizar sua Festa de Gala Global em Jerusalém e silenciado
os pregadores.
Rayford receava encontrar inesperadamente Buck ou alguém da CG. Ele
havia deixado de barbear-se de propósito desde o dia do vôo. Na segundafeira,
dirigiu-se de carro a Jerusalém, estacionou na periferia e caminhou até
o centro da cidade, usando um turbante verde de tecido grosso por cima de
uma longa peruca grisalha. Os óculos escuros com pequeninos orifícios
permitiam-lhe enxergar bem, sem que seus olhos ficassem visíveis.
Ele também usava um manto que ia até a altura do tornozelo, comum
naquela região. Dentro do bolso interno, carregava o Sabre. O manto era
largo o suficiente para que ele caminhasse só com as mãos para fora e a arma
escondida. Embora tivesse visto detectores de metal de ambos os lados do
enorme palanque, os milhares de espectadores tinham permissão para
caminhar pela área sem ser revistados.
Rayford sentia um comichão que percorria a coluna vertebral inteira por
saber que portava uma arma poderosíssima, que podia matar alguém a mais
de 30 metros de distância. Depois de tanta ansiedade para realizar seus
planos, ele agora implorava a Deus que o poupasse dessa missão. Estaria ele
disposto a ir até o fim e assassinar Carpathia se Deus tornasse isso claro?
A multidão havia se reunido ali bem antes do início da festa, e uma
banda latina, que precedia a cerimônia de abertura, tocava alto para os que
apreciavam esse tipo de música. Metade da multidão dançava e cantava, e, à
medida que a tarde avançava, o número de pessoas aumentava cada vez
mais. Música, cantorias e danças, intercaladas com avisos eufóricos sobre a
breve chegada do potentado, levavam a multidão ao delírio.
Enquanto o céu escurecia aos poucos, Rayford continuava a caminhar,
sempre atento para passar despercebido. Em um determinado momento, ele
quase parou e tirou os óculos. Poderia jurar que Hattie passara rente a ele.
Com o coração batendo acelerado, ele virou-se e viu uma moça caminhando.
A mesma altura, o mesmo porte, o mesmo modo de andar. Não podia ser.
Simplesmente não podia ser.
Mac e Abdullah caminhavam a esmo pelo local da Festa de Gala, em
meio a uma multidão de delegados.
Você prefere que a gente ande junto ou separado nesta semana? -
perguntou Mac.
Abdullah encolheu os ombros.
Se você quiser andar sozinho, não há problema.
Não é bem isso - disse Mac. - Eu só quero que você se sinta livre para
fazer o que bem entender.
Abdullah encolheu os ombros novamente. A verdade era que Mac não se
importaria de ficar sozinho. Sozinho no meio de uma multidão. Sozinho,
pensando como o mundo e sua vida haviam mudado. Ele tinha tomado uma
decisão. Se Carpathia conseguisse sobreviver a esse evento, se, por um
motivo qualquer, Tsion Ben-Judá estivesse enganado a respeito das
profecias, Mac tinha um plano. Rayford tinha lhe falado sobre o que achava
sobre o assunto. Tempos atrás, um deles devia ter embicado o avião de
Carpathia em direção a uma montanha, sacrificando a própria vida pelo bem
de todos. Mac não queria ser tão egoísta a ponto de envolver Abdullah. Ele
precisava encontrar um meio de voar sozinho com o potentado. Na verdade,
não haveria necessidade de uma montanha. Bastava cortar a energia e deixar
que a gravidade tomasse conta do resto.
Será que ele poderia? Deveria? Mac olhou para Abdullah e esquadrinhou
a multidão. Isso não era vida para ninguém.
Finalmente, os helicópteros apareceram no céu. Rayford olhou para cima
enquanto o povo gritava de alegria. Os helicópteros pousaram, dos dois lados
do palanque, e os dignitários desceram sob intensa ovação. Os dez
potentados regionais, o supremo comandante e uma mulher, trajando uma
vestimenta pomposa da Fé Mundial Enigma Babilônia, subiram rapidamente
a escada que dava ao palanque. Um contingente reforçado da segurança
formava um semicírculo ao redor da tribuna.
Depois que todos já estavam acomodados em seus lugares, Carpathia
chegou sozinho em outro helicóptero. Sob aplausos ensurdecedores, ele
subiu ao palanque, sendo saudado pelos convidados de honra, todos
parecendo ansiosos por apertar-lhe a mão. Fortunato foi o último a
cumprimentá-lo e, em seguida, conduziu o potentado até uma enorme
poltrona, enfeitada como um trono.
O restante dos presentes só sentou depois dele, mas os aplausos
intermináveis obrigaram Carpathia a levantar-se várias vezes e acenar de
modo tímido e humilde para a multidão. Sempre que ele se levantava, o
pessoal do palanque fazia o mesmo. Rayford estava a cerca de 60 metros de
distância do potentado e por duas vezes havia enfiado as mãos no bolso e
tateado o Sabre, abrindo a caixa apenas alguns centímetros para, em seguida,
voltar a fechá-la. Ele não tinha uma visão clara de Carpathia por causa da
multidão. Se a missão fosse dele, Deus teria de comandar. Rayford
aguardaria o momento certo para ver se Deus providenciaria uma abertura ou
abriria um caminho até a frente. Se alguém no meio daquela multidão
atirasse em Carpathia, ninguém perceberia de imediato, em razão do fascínio
com que todos olhavam para o potentado.
Buck, depois de deixar com relutância o Muro das Lamentações, chegou
após o início da solenidade e permaneceu atrás da multidão de quase dois
milhões de pessoas. Ele observava a festança sem conseguir aplaudir. Estava
preocupado com Chaim. Tentou ligar para Jacov, mas percebeu que não
conseguiria ouvir nada.
Finalmente o povo se aquietou o suficiente para permitir que Leon
tomasse a palavra. Ele se virou para verificar se Carpathia estava bem
acomodado e, em seguida, aproximou-se da tribuna.
Sejam bem-vindos todos os cidadãos do novo mundo -ele começou a
dizer, sendo interrompido mais de uma dezena de vezes pelos aplausos.
Cada frase provocava entusiasmo no povo, fazendo Buck se perguntar de
que planeta surgira essa multidão. Será que ninguém considerava aquele
líder responsável por tantas mortes e sofrimentos? Em três anos e meio, a
população tinha sido reduzida à metade e, mesmo assim, esse povo
comemorava?
Meu nome é Leon Fortunato. Tenho o privilégio de servir aos
senhores e a Sua Excelência como supremo comandante da Comunidade
Global. Quero apresentar os potentados regionais, e peço que os senhores os
recebam com o entusiasmo que eles merecem. Antes, porém, devemos
receber a bênção do grande deus da natureza e, para tanto, passo a palavra à
assistente do supremo pontífice da Fé Mundial Enigma Babilônia, que tem
um comunicado a fazer. Por favor, uma salva de palmas para a vice-pontífice
Francesca D'Angelo.
Buck admirou-se ao ver que, aparentemente, a vice-pontífice não fez
caso das vaias e assobios. De repente, ele sentiu um arrepio que tomou conta
de todo o seu corpo. Quando a Sra. D'Angelo aproximou-se da tribuna,
Carpathia levantou-se e a multidão, em vez de aplaudir, mergulhou em
profundo silêncio. Buck sentiu que era o único capaz de não olhar para o
rosto de Carpathia. Os potentados encaravam fixamente seu líder, e
Fortunato também virou-se para olhar para ele.
Carpathia começou a falar com aquela mesma voz soturna e hipnótica
que Buck já ouvira apenas uma vez. Três anos e meio antes, Nicolae
cometera um duplo assassinato depois de ter dito a todos os presentes na sala
do que eles deviam lembrar-se e do que não deviam. Buck, na época um
crente recém-convertido, foi o único que não passou pela lavagem cerebral.
Posteriormente, ninguém se lembrou de que Buck estava presente na sala.
Agora o potentado falava, mas sua voz não era transmitida pelos altofalantes.
Buck, em pé a uma grande distância do palanque, ouvia claramente
as palavras dele, como se Carpathia estivesse a seu lado.
Vocês não se lembrarão de que eu me antecipei à vice-pontífice -
disse Nicolae.
Oh! Deus, orou Buck silenciosamente, protege-me! Não permitas que eu
seja dominado por ele.
Vocês vão ouvir falar de uma morte que lhes causará surpresa - disse
Carpathia. Ninguém se mexeu no lugar. -Esta notícia vai chegar até vocês
como se já tivesse sido comunicada tempos atrás. Vocês não vão fazer caso
dela.
Carpathia sentou-se, e o burburinho recomeçou do ponto em que havia
parado. A Sra. D'Angelo tomou a palavra:
Antes de rezar para o grande deus em quem todos nós confiamos e
que confia em todos nós, tenho um comunicado a fazer. O sumo pontífice
Peter Segundo morreu subitamente nesta manhã. O vírus que o acometeu era
altamente contagioso, tornando-se necessário que seu corpo fosse cremado.
Nossas condolências a seus familiares. Uma cerimônia religiosa em sua
memória será realizada amanhã cedo neste mesmo local. Agora, vamos
rezar.
Amanhã cedo?, pensou Buck. O programa da Festa de Gala mencionava
um "debate" entre Carpathia e a "Dupla de Jerusalém" às 10 horas de terçafeira,
seguido de uma "comemoração do meio-dia até a meia-noite" no
distrito hedonista. Buck olhou para o rosto dos delegados. Eles estavam
impassíveis. Buck ficou abalado. Nicolae foi capaz de controlar a mente de
dois milhões de pessoas ao mesmo tempo!
A multidão aplaudiu a reza, que parecia prestar homenagem a todas as
células vivas. Em seguida, aplaudiu a apresentação de cada potentado
regional, principalmente o mais recente, o Sr. Litwala, da África. Os
delegados pareciam igualmente impressionados com os discursos
enfadonhos de cada potentado, elogiando Carpathia em cada frase proferida.
Finalmente, chegou o grande momento.
E agora - Fortunato começou a dizer, mas os aplausos frenéticos da
multidão abafaram o início de seu discurso, que Buck só conseguia ouvir
porque estava debaixo de um alto-falante -, o homem que Deus escolheu
para liderar o mundo e livrá-lo da guerra e do derramamento de sangue,
transformando-o em uma sociedade utópica de perene harmonia, o supremo
potentado dos senhores e meu, Sua Excelência Nicolae Carpathia!
O restante dos convidados de honra - com exceção de Fortunato - deixou
humildemente o palanque. Carpathia acenava com as duas mãos e sorria,
andando de um lado para o outro no palanque, sempre protegido pelo
impassível contingente de segurança. Leon, que comandava os aplausos,
permaneceu em pé atrás de Nicolae e na frente de uma cadeira colocada ao
lado direito do trono.
VINTE E DOIS
Buck tinha de admitir que o dom de oratória demonstrado por Nicolae
Carpathia na Organização das Nações Unidas, três anos e meio atrás, havia
melhorado ainda mais com o passar do tempo. Naquele época, Nicolae usou
sua prodigiosa memória para relembrar fatos históricos e dominar com
maestria vários idiomas, surpreendendo a todos, inclusive a imprensa. Quem
já viu os meios de comunicação se levantarem para aplaudir, de forma
unânime, um orador veemente?
Aquele primeiro discurso transmitido ao mundo inteiro havia sido
proferido dias após o desaparecimento de milhões de pessoas, inclusive de
todos os bebês e crianças. Carpathia parecia o homem perfeito para o
momento, e o mundo aterrorizado - inclusive Buck - o aceitou de braços
abertos. Povos de todas as raças consideravam Carpathia a voz da paz, da
harmonia e da razão. Ele era jovem, bonito, dinâmico, carismático,
eloqüente, brilhante, decidido e, paradoxalmente, humilde. Parecia relutante
em aceitar a liderança que a população fascinada lhe impunha.
Nicolae modificara completamente o mundo dividindo-o em dez regiões,
cada uma com um potentado. Em meio ao antagonismo crescente que
oprimia a Terra, ainda pior que a perda de milhões de pessoas no
Arrebatamento, ele se destacou como uma voz paternal de conforto e
encorajamento. Durante todas as catástrofes -Terceira Guerra Mundial,
fome, terremoto da grande ira do Cordeiro, queda de meteoros, desastres
marítimos, contaminação da água, escuridão e resfriamento da temperatura
do mundo, invasões de gafanhotos e, mais recentemente, pragas de fogo,
fumaça e enxofre que exterminaram outra terça parte da população -
Carpathia permaneceu firme no controle.
Havia rumores de insubordinação por parte de pelo menos três
potentados, mas nada de concreto acontecera ainda. De vez em quando, o
povo sofrido e dominado pelo desespero rebelava-se contra o novo mundo,
querendo saber por que a situação piorava a cada dia, mas Carpathia
acalmava a todos, por meio dos sistemas de comunicação, demonstrando
solidariedade e prometendo trabalhar incansavelmente em prol do bem-estar
da humanidade.
O povo acreditava nele, principalmente aqueles que lutavam pela
liberdade pessoal a qualquer custo. Enquanto a Comunidade Global
reconstruía cidades, aeroportos, estradas e sistemas de comunicações, o
índice de assassinatos, roubos, bruxarias, orgias e adorações a ídolos
continuava em ascensão. Estes três últimos eram aplaudidos por Carpathia e
por todos aqueles que não sabiam distinguir o bem do mal.
O único ponto vulnerável de Carpathia eram duas testemunhas em
Jerusalém, contra as quais ele parecia impotente. Foi por isso que ele
programou a Festa Global de Gala: para apressar a chegada do "primeiro dia
do resto da utopia" na cidade onde os dois profetas atingiram o auge do
atrevimento. Se Nicolae fosse novamente humilhado por sua inabilidade de
dominá-los, se eles não parassem de transformar a água em sangue e de
impedir que chovesse, a estrutura de sua liderança poderia finalmente
começar a enfraquecer.
Apesar disso, ali estava ele, de frente para as câmeras que transmitiam
sua imagem ao mundo inteiro pela TV e pela Internet. Aos 36 anos de idade,
confiante e charmoso como nunca, ele caminhava pelo palanque, protegido
pelo contingente de segurança. Sem se contentar em permanecer diante da
tribuna, ele se movimentava o tempo todo para ter a certeza de que seus
acenos e sorrisos alcançavam cada segmento da multidão, que parecia jamais
cansar-se de olhar para ele.
Finalmente, ele levantou as mãos para acalmar o povo. Sem anotações,
sem pausas, sem tropeçar nas palavras, Carpathia falou durante 45 minutos,
sendo interrompido por aplausos entusiasmados entre uma frase e outra. A
animação demonstrada por ele no início do discurso aumentava cada vez
mais.
Ele reconheceu as dificuldades, o sofrimento e a tristeza que se abateram
sobre todos e o trabalho que ainda necessitava ser feito. Dando à voz um tom
embargado, ele dirigiu-se a seus queridos compatriotas que haviam sofrido
grandes perdas.
Quando o discurso dramático e eloqüente começou a chegar ao fim,
Carpathia passou a falar mais alto, mais direto, com mais segurança ainda.
Para Buck, parecia que a multidão estava pronta para explodir de tanto amor.
Todos o adoravam, confiavam nele, acreditavam nele, contavam com ele
para sobreviver.
Nicolae fez uma pausa comovente, afastou-se um pouco até a beira do
palanque, pousou uma das mãos no anteparo, cruzou as pernas na altura dos
tornozelos e colocou a outra mão fechada no quadril. A imagem, mostrada
nas gigantescas telas instaladas por toda a praça, era a de um homem
imponente e arrogante fazendo promessas ao público. Exibindo um sorriso
maroto que provocou murmúrios de empolgação, gargalhadas, assobios e
aplausos, demonstrava claramente que estava pronto para fazer um
pronunciamento ousado.
Carpathia aguardou até a tensão aumentar. Em seguida, caminhou
decididamente em direção à tribuna e apoiou-se nela com as duas mãos.
Amanhã cedo - ele disse -, conforme vocês podem ver na
programação, voltaremos a nos reunir perto do Monte do Templo, onde eu
estabelecerei a autoridade da Comunidade Global sobre todas as localidades
geográficas. -Mais aplausos e gritos de alegria. - Não importa que estejam
proclamando isto ou aquilo, advertindo isto ou aquilo ou sendo responsáveis
por todo tipo de ataques insidiosos contra esta cidade, esta área, esta nação...
eu mesmo cuidarei de pôr um fim ao terrorismo religioso perpetrado por dois
impostores assassinos. De minha parte, estou cansado de opressões
supersticiosas, cansado da seca, cansado de ver a água transformar-se em
sangue. Estou cansado dessas tais profecias bombásticas, de escuridão e
julgamentos, de promessas que nunca se cumprem!
Se a Dupla de Jerusalém não parar com isso até amanhã, não
descansarei enquanto não cuidar pessoalmente deles. E, assim que minha
missão for cumprida, dançaremos nas ruas!
O povo ameaçava aproximar-se do palanque, aclamando e gritando sem
parar: "Nicolae, Nicolae, Nicolae!" Carpathia falou mais alto, abafando os
gritos da multidão:
Divirtam-se esta noite! Aproveitem! Mas durmam bem para que
amanhã possamos participar da festa que não terá fim!
Os helicópteros reapareceram no céu, e o povo foi afastado do local de
pouso. Carpathia acenava e sorria enquanto caminhava em direção à escada
do palanque. Leon, logo atrás dele, ajoelhou-se com os braços abertos e
começou a gesticular espalhafatosamente. Para espanto de Buck, a maioria
do povo fez o mesmo. Dezenas de milhares de pessoas dobraram os joelhos
e adoraram Carpathia como se ele fosse um atleta, um artista... ou um deus.
Rayford estava nervoso demais. Ele caminhava para não evidenciar que
se recusava a ajoelhar-se. Cada passo o levava para mais perto do palanque.
Enfiou a mão no bolso e retirou o Sabre da caixa. A arma pesada, sólida e
mortal o animou e, ao mesmo tempo, o assustou. Rayford parecia estar
sonhando, vendo seu corpo de longe. Como havia chegado a este ponto?
Tinha se transformado num maluco, deixando de ser um homem
pragmático? Ele não queria atrever-se a fazer parte da história, a menos que
tivesse plena certeza de que esse era o plano de Deus. O assassino, fosse
quem fosse, jamais voltaria a ser livre. Seria identificado no videoteipe e não
teria condições de ir muito longe.
Ele estava a cerca de 15 metros do palanque quando Carpathia fez o
último aceno, agradeceu à multidão e desapareceu a bordo do helicóptero.
Rayford encontrava-se bem abaixo do helicóptero e podia ter atirado para o
alto. Ele cerrou os dentes e fechou o Sabre dentro da caixa, recolocando-a no
bolso interno e deixando as mãos à mostra.
Os dentes cerrados provocaram-lhe dor nos maxilares.
Enquanto a multidão saía do local para festejar, Rayford caminhou com
passos firmes até seu carro, ainda cerrando os dentes, as mãos escondidas
dentro das mangas imensas. Ele não agiria precipitadamente, a menos que
recebesse um aviso de Deus.
Buck estava sentindo saudade de sua família. O espetáculo da Festa de
Gala o deixara triste. Ele caminhou pelas ruas como um sonâmbulo,
acompanhando displicentemente a multidão, mas tendo certeza de que estava
se dirigindo para a hospedaria. Ligou para casa, conversou com Chloe,
Kenny e Tsion. Ligou para Nova Babilônia, conversou com David,
"conheceu" Annie. Ele não gostou de ter de interromper o telefonema,
principalmente porque era a primeira vez que conversava com ela, mas um
bip o avisou de que havia uma nova ligação, e a tela exibia o nome de Leah.
Lamento incomodá-lo, Buck - ela disse -, mas tive um dia frustrante
no PRFB e queria conversar com alguém.
Não há problema, mas não seria melhor você ligar para Rayford?
Não posso ligar para ele até sexta-feira.
O quê?
Ela lhe contou as instruções recebidas de Rayford.
E em caso de acontecer algum problema?
Imaginei que eu deveria ligar para você.
O que posso fazer? Alugar um carro e ir até a França?
Não, eu sei que você não pode fazer nada.
Você viu Hattie?
Eles estão estudando meu pedido e vão me informar depois.
Essa história não está cheirando bem.
Parece que eles estão desconfiando de alguma coisa, Buck. Não sei se
vou em frente ou desisto.
Vou ligar para Rayford e saber qual é a opinião dele.
Você faria isso por mim?
Buck parou sob um poste iluminado a alguns quarteirões de distância do
Muro das Lamentações e ligou para o número de Rayford. Ele saberia quem
estava chamando, porque veria o nome de Buck na tela. Rayford atendeu.
Espero que o assunto seja importante, Buck.
Achei que deixar alguém do nosso grupo à própria sorte é importante.
Como você pôde fazer isso com ela?
Rayford parecia aborrecido.
Qual é o problema? Ela se meteu em alguma encrenca? Buck contoulhe
o que sabia.
Diga a ela para seguir o plano e não ligar para você nem para mim até
sexta-feira.
O que você tem em mente, Ray?
Ouça, Buck. Quando eu disse a Leah que não queria que ela ligasse
para mim até sexta-feira, eu não esperava que ela ligasse para você. Preciso
que você confie em mim.
Buck deu um suspiro e concordou com relutância. Decidiu não contar a
Chloe que ele e o pai dela poderiam vir a se desentender. Ele não sabia qual
era o problema.
Buck subiu em uma árvore para enxergar o Muro das Lamentações e
avistou Eli e Moisés. Eles continuavam em pé, lado a lado, com os olhos
fixos em um ponto, imóveis, na mesma posição em que os vira da última
vez. O povo escarnecia dos dois.
Buck ligou para Jacov para saber notícias de Chaim.
Tenho uma boa e uma má notícia - disse Jacov. - Os exames ficaram
prontos.
E o que poderia ser a má notícia?
O médico não sabe determinar a causa da paralisia e da perda da fala.
Tudo indica que foi um derrame, mas ele não tem certeza.
No dia seguinte, Rayford partiu logo cedo em direção ao Muro das
Lamentações. As ruas estavam molhadas pelo sereno, um pouco mais que o
normal. Ele ficou espantado ao ver uma aglomeração tão grande duas horas
antes do proclamado confronto. Havia rumores de que a cerimônia religiosa
em memória do sumo pontífice Peter Segundo fora cancelada por falta de
interesse e porque a Sra. D'Angelo já tinha sido destituída do cargo.
Aparentemente, a Fé Mundial Enigma Babilônia desapareceria após a morte
de seu fundador. No governo de Carpathia, não havia espaço nem mesmo
para religiões pagas.
Com o Sabre escondido sob o manto, Rayford abriu caminho até o meio
da multidão alvoroçada. Ele não havia dormido bem. Orou grande parte da
noite e agora gostaria de ter um lugar para se sentar. Mas agüentou firme. As
testemunhas pareciam duas estátuas, e o povo dizia que elas estavam em pé
nessa mesma posição havia horas. Certamente, elas se movimentariam
quando Carpathia chegasse para confrontá-las.
A um quarteirão de distância, ouvia-se o som estridente de bandas de
música ensaiando para a festa que duraria um dia e uma noite inteira.
[Fazer fio aqui]
Buck tentou subir na mesma árvore da noite anterior, mas os guardas de
segurança da CG o afugentaram dali. Ele descobriu um lugar em uma
saliência de rocha, de onde teria uma visão clara da multidão. O silêncio das
testemunhas o entristecia, e ele gostaria que, quando Carpathia chegasse, os
dois pelo menos se movimentassem. Mas o tempo determinado chegara;
aquele era o 1.261° dia. A Bíblia dizia que eles seriam dominados.
Quando faltava um minuto para as dez horas, o ronco dos motores dos
helicópteros tomou conta do local. Da mesma forma que no dia anterior, três
helicópteros desceram trazendo os potentados, Fortunato e Carpathia. Agora,
não havia nenhum representante da Enigma Babilônia. Era a primeira vez
que Buck via Carpathia sem gravata. Ele estava usando sapatos luxuosos,
calça e camisa com o colarinho aberto e paletó esporte de casimira, deixando
à mostra em um dos bolsos alguma coisa parecida com uma Bíblia.
Os potentados e Fortunato postaram-se atrás de uma barreira que os
separava da multidão. O refletores foram acesos, as câmeras entraram em
ação e Carpathia caminhou apressadamente em direção à cerca. Em sua
camisa, estava preso um microfone sem fio, e ele parou diante de um
maquiador para empoar o rosto. Em seguida, sorriu para a multidão
barulhenta e aproximou-se das testemunhas, que continuavam em pé,
movimentando apenas o peito por causa da respiração.
Carpathia, como um mágico pronto a encenar seu número, tirou o paletó
esporte e pendurou-o em um dos ferros pontudos da cerca. O paletó pendeu
para o lado do bolso onde havia um objeto. Quando Nicolae arregaçou as
mangas como se fosse partir para a luta, a multidão foi à loucura.
O que vocês, cavalheiros, têm a dizer em seu favor esta manhã? - ele
perguntou, olhando primeiro para as testemunhas e depois para a multidão.
Buck orou para que os dois reagissem com eloqüência, com provocação,
com energia.
Era madrugada em Illinois. Tsion sentou-se em uma poltrona diante da
TV vestindo pijama, roupão e chinelos. Chloe acomodou-se em uma cadeira.
O bebê está dormindo? - perguntou Tsion.
Está - respondeu Chloe. - Espero que ele não acorde para ver isto.
Quando Carpathia começou a fazer aquela pergunta desafiadora, Chloe
disse baixinho:
Acabe com ele, Eli. Vamos, Moisés. Mas os dois não reagiram.
Oh, Deus, orou Tsion. Oh, Deus, oh, Deus. Eles estão oprimidos e
humilhados e, mesmo assim, não abrem a boca; como cordeiros, estão
sendo levados ao matadouro e, como ovelhas, se calam perante os seus
tosquiadores, por isso não abrem a boca.
Buck desejava estar portando uma arma naquele instante. Ele tinha uma
visão clara de Carpathia. Que arrogância! Que presunção! Como ele gostaria
de acertar a testa de Carpathia entre os olhos, mesmo que fosse com um
estilingue. Buck sacudiu a cabeça. Ele era apenas um jornalista, um
observador. Não era esse o seu objetivo. Seu coração estava do lado das
testemunhas. Mas ele não podia fazer nada.
Rayford não conseguia ficar imóvel. Ele precisou morder a língua para
não gritar com Carpathia. Escondeu os braços sob o manto e segurou a caixa
com as duas mãos. Se Carpathia estivesse pretendendo fazer Eli e Moisés de
tolos, talvez o tolo acabaria sendo ele, caindo em cima do próprio sangue.
Carpathia se deliciava com sua glória.
Vocês perderam a língua? - ele disse, andando de um lado para o
outro diante das testemunhas silenciosas, olhando para a multidão em busca
de apoio. - A água de Jerusalém está fria e refrescante hoje! O veneno
acabou? Os comparsas dos conspiradores fugiram? Deixaram de ter acesso
ao sistema de abastecimento de água?
O povo gritava e zombava dos dois.
Expulse estes dois daqui! - gritou alguém.
Que sejam presos!
Que mofem na cadeia!
Que sejam mortos!
Rayford sentia vontade de gritar: "Calem a boca!", mas certamente não
seria ouvido por causa dos protestos da multidão ensandecida. E Carpathia
continuava a provocar os dois.
Era chuva aquilo que bateu em minha janela esta manhã? O que
aconteceu com a seca? Ei, alguém está vendo gafanhotos por aqui? Homens
montados em cavalos? Fumaça? Cavalheiros! Vocês não podem fazer nada!
A multidão mordeu a isca. Rayford estava exaltado.
Faz dois anos que proibi vocês dois de permanecerem nesta área! -
disse Carpathia, de costas para a multidão, mas certo de que poderia ser
ouvido pelo povo e pela TV por causa do microfone preso em sua camisa. -
Por que vocês ainda estão aqui? Saiam já ou serão presos! Vocês não me
ouviram dizer que seriam executados se fossem vistos em público em
qualquer lugar depois da reunião daqueles fanáticos? Carpathia virou-se para
a multidão.
Eu disse isso, não disse?
Sim! Sim! Mate os dois!
Eu tenho sido negligente! Não tenho cumprido meus deveres! Como
posso estar aqui diante dos cidadãos que me acusaram de ser um ditador
depois de eu ter afirmado que esse crime não passaria impune? Eu não quero
ser envergonhado perante meu povo! Não quero sentir-me constrangido na
festa de hoje! Vamos! Saiam de trás dessa cerca e me enfrentem!
Provoquem-me! Respondam! Passem por cima da cerca, pulando ou voando,
venham até aqui se tiverem coragem! Não me obriguem a abrir o portão!
Carpathia virou-se novamente para a multidão.
Será que eu devo temer o fogo que eles expelem pela boca? Será que
esses dragões vão me incinerar, me trucidar?
A multidão já não gritava tanto. Os risos eram nervosos. As testemunhas
não saíram do lugar.
Já estou perdendo a paciência! - disse Nicolae.
O chefe das Forças Pacificadoras da CG tirou uma chave do bolso e
entregou-a a Nicolae. Ele abriu o portão, e a multidão se afastou. Algumas
pessoas tinham a respiração ofegante. Um grande silêncio se abateu sobre o
local.
Carpathia abriu o portão com um gesto estudado e caminhou apressado
em direção às testemunhas.
Fora! - ele gritou, mas os dois continuaram na mesma posição.
Carpathia aproximou-se de Eli pela direita e atirou-o de encontro a
Moisés, fazendo com que ambos cambaleassem em direção ao portão. Ele os
afugentava dali com empurrões, socos e safanões.
A multidão afastou-se um pouco mais. Carpathia agarrou Eli e Moisés
pelas roupas e atirou-os contra a cerca. Em seguida, virou as costas para eles
e sorriu para a multidão.
Aqui estão os seus algozes! - disse Carpathia. - Seus juizes! Seus
profetas! - Ele cuspiu após dizer esta última palavra. - E o que eles têm a
dizer para se defender? Nada! Eles já foram julgados, condenados e
sentenciados. Agora só falta serem justiçados, e, conforme eu decretei, vou
fazer isso!
Ele virou-se para os dois, puxando-os pelas roupas novamente até que
eles ficassem a pouco menos de dois metros da cerca.
Vocês têm alguma coisa a dizer pela última vez?
Eli e Moisés entreolharam-se e, em seguida, olharam para o céu.
Carpathia caminhou até o local onde colocara o paletó e tirou um objeto
preto do bolso. Rayford levou um susto ao reconhecer o objeto. Nicolae
estava de costas para a multidão, retirando um Sabre da caixa. Ele se afastou
uns três metros das testemunhas e apontou a arma para o lado direito de Eli.
A súbita explosão fez com que todos recuassem e tapassem os ouvidos. A
bala penetrou no pescoço de Eli; ele cambaleou e, em seguida, bateu com a
cabeça na cerca antes que seu corpo tombasse ao chão. O sangue que saía do
enorme rombo em seu pescoço esguichou na cerca e na construção de pedra
atrás dele.
Moisés ajoelhou-se e cobriu os olhos como se estivesse orando.
Carpathia acertou um tiro no alto da cabeça dele. Seu corpo voou na direção
da cerca, caindo de bruços, com os braços e as pernas abertos.
A boca de Rayford estava seca, a respiração era curta e seu pulso parecia
bater nas pontas dos dedos das mãos e dos pés. Ao redor dele, as pessoas
continuavam com os ouvidos tapados, olhando estarrecidas para os corpos.
Carpathia encaixou novamente a arma na caixa, colocou-a no bolso do
paletó, vestiu-o e, com um sorriso, fez uma reverência à multidão.
O desejo de atirar em Carpathia era tanto que Rayford abaixou o ombro e
correu na direção dele. Ao fazer esse movimento, ele deu uma cabeçada no
homem que estava à sua frente, o qual deu um berro no momento em que a
multidão aplaudia Carpathia. O povo pulava, gritava, assobiava e dançava.
Rayford abriu caminho à força, tentando aproximar-se de Carpathia,
tomando cuidado para não largar seu Sabre.
A multidão estava agitada demais. Havia gente caindo, brigando, se
divertindo. Rayford levou um tombo no meio do povo e não conseguiu
levantar-se por estar com os braços escondidos dentro do manto. Com muito
custo, ele passou uma das mãos pela abertura da manga para poder apoiá-la
no chão e ficar em pé, mas alguém lhe deu um esbarrão com força e ele caiu
novamente. Enquanto tentava abrir espaço com os cotovelos, a caixa do
Sabre rolou pelo chão. Ele começou a procurá-la, mas a multidão
enlouquecida o empurrava de um lado para o outro. Quando ele conseguiu
passar a outra mão pela abertura da manga, sentiu uma pancada nas costas e
caiu, batendo a cabeça no concreto. Depois de muito esforço, e com um
enorme galo na cabeça, ele virou o corpo de lado e conseguiu levantar-se,
mas onde estava o Sabre? Teria se saído da caixa? Ele estava carregado e
pronto para ser usado.
Buck continuou em pé na saliência da rocha, completamente abatido,
vendo o povo dançando e se divertindo, os helicópteros pegando Carpathia e
os convidados de honra para levá-los ao local da festa. Buck detestava estar
presenciando aquela cena terrível, contemplando os corpos dos pregadores a
quem ele tanto amava. Com o tempo, ele passara a gostar de tudo o que se
referia aos dois: a pele escura e curtida pelo sol, os pés grosseiros e sujos, os
trajes de aniagem cheirando a fumaça. Para Buck, eles eram reis, patriarcas
majestosos. Suas mãos e ombros ossudos, o pescoço e o rosto enrugados, os
cabelos e a barba longos e grisalhos acrescentavam um ar de mistério
sobrenatural àquelas figuras maravilhosas.
Seus corpos haviam sido destruídos. Eles, que eram invencíveis, agora
estavam atirados contra a cerca de ferro, amontoados um ao lado do outro
numa cena grotesca. Buck sentiu-se constrangido ao vê-los expostos daquela
maneira. As roupas de aniagem mal cobriam suas pernas. As mãos estavam
encolhidas sob o corpo, os olhos abertos, a boca escancarada. O sangue
vermelho-escuro, quase preto, corria sob seus corpos trucidados por uma
arma tecnologicamente tão avançada que jamais poderia ser chamada de
pistola.
Buck sabia o que aconteceria a seguir. Ele não queria presenciar a
comemoração programada para ser realizada do meio-dia até a meia-noite,
mas que, na verdade, duraria mais de três dias. Do lugar onde estava,
contemplava com profunda tristeza a ascensão do pecado, a maldade
tomando conta de pessoas que haviam sido alertadas e que tiveram todas as
oportunidades possíveis de se converter.
Tsion abaixou a cabeça.
Não imaginei que pudesse ser tão horrível... Chloe não conseguia
desgrudar os olhos da tela.
Buck deve estar lá.
Chloe - disse Tsion, levantando-se -, estamos presenciando coisas
terríveis. Isto é apenas o começo. Em breve, Carpathia deixará as
formalidades de lado. A maioria das pessoas não terá condições de opor-se a
ele.
Rayford virou o corpo e agachou-se, desesperado, à procura do Sabre.
De repente, pisou nele e conseguiu pegá-lo, mas foi jogado ao chão
novamente pela turba enlouquecida. Ajoelhou-se e agarrou-o com as duas
mãos, apertando-o de encontro ao peito, enquanto o povo pulava por cima
dele. Finalmente, escondeu-o dentro do manto e, depois de muito esforço,
livrou-se da multidão. Àquela altura, Carpathia já estava muito longe dali.
Buck retornou à hospedaria, passando pelo meio do povo que
comemorava em todas as esquinas e aglomerava-se em torno de aparelhos de
TV. Ele ligou para Leah. Não obteve resposta.
Nos três dias que se seguiram, a Festa de Gala concentrou-se no local do
assassinato das testemunhas. A música estridente e os discursos censuravam
a Dupla de Jerusalém e elogiavam Nicolae. Fortunato conclamava o povo a
considerar Carpathia uma divindade, "talvez a divindade, o Deus criador e
salvador da humanidade". E o povo aplaudia sem parar.
A única menção à morte de Peter Segundo partiu do próprio Carpathia,
que disse o seguinte:
Além de cansado dos pregadores pseudo-religiosos e de sua
arrogância, eu também não suportava mais a intromissão da Fé Mundial
Enigma Babilônia, que não será restabelecida. Cada pessoa deve encontrar
dentro de si a divindade necessária para conduzir sua vida da maneira que
desejar. Para mim, a liberdade individual está acima da religião instituída.
Rayford começou a passar mais tempo perto do palanque da Festa de
Gala, onde seria realizada a cerimônia de encerramento na noite de sextafeira.
Ele calculou os ângulos, a distância, a hora de chegar, onde ficar, onde
movimentar-se e como se posicionar, caso Deus o escolhesse como seu
instrumento. A cerimônia se encerraria com um discurso de Carpathia.
Talvez aquele fosse o momento certo.
O povo comemorava por toda Jerusalém. Buck sentia-se enojado ao ver
os noticiários mostrando os corpos intumescidos e fétidos de Eli e Moisés,
que se decompunham sob o calor do sol. A multidão dançava dia e noite ao
redor deles, tapando o nariz e, às vezes, atrevendo-se a aproximar-se para
chutar os corpos. Sangue e secreções formavam um líquido viscoso ao redor
deles.
De todas as partes do mundo, chegavam notícias de comemorações, de
pessoas trocando presentes como se fosse Natal. Um ou outro comentarista
sugeria que era "tempo de acabar com aquilo, de dar a esses homens um
enterro digno e de sair dali". Porém o povo em festa se recusava a atender a
esses pedidos, e pesquisas realizadas no mundo inteiro mostravam que a
maioria desejava que os corpos dos dois continuassem ali e não fossem
enterrados.
Na noite de quarta-feira, Buck finalmente recebeu permissão para visitar
Chaim no hospital. A cor havia voltado ao seu rosto, e ele já conseguia
pronunciar algumas palavras, mas ainda estava abatido demais; o lado
esquerdo continuava paralisado, e a mão direita, crispada. O médico,
atordoado diante dos resultados dos exames, relutava em atender ao pedido
de Chaim de "voltar para casa e morrer em paz".
Chaim implorou a Buck, balbuciando.
Pegue uma cadeira de rodas e me tire daqui! Por favor! Quero ir
embora para casa.
Até a madrugada de sexta-feira, Buck ainda não havia conseguido falar
com Leah nem com Rayford, mas recebeu um agradável telefonema de
Jacov.
Não sei como ele conseguiu - disse Jacov -, mas o Dr. Rosenzweig
deu um jeito de sair do hospital e vir para casa. Ele melhorou bastante, e o
médico acredita que foi um pequeno derrame com sintomas de um derrame
mais sério. Para mim, ele não parece melhor, mas já dá para entender o que
ele diz... E está me obrigando a levá-lo à cerimônia de encerramento hoje à
noite.
VINTE E TRÊS
Enquanto tomava uma ducha na manhã de sexta-feira, Buck se deu conta
de que deveria estar no Muro das Lamentações naquele dia, mesmo correndo
o risco de ser identificado. Ele acreditava em Tsion, acreditava na Bíblia,
acreditava nas profecias. Não haveria nada mais gratificante do que ver os
escarnecedores de Eli e Moisés receberem o troco.
Buck prometera a Jacov que o ajudaria a convencer Chaim a não
comparecer ao encerramento da Festa de Gala naquela noite, para garantir
que seu amigo tivesse a felicidade de estar incluído nos 90% que seriam
poupados do terremoto, profetizado para acontecer em Jerusalém.
Rayford dormiu quase a manhã inteira, sem fazer caso dos toques
insistentes de seu celular, a não ser para olhar no visor e ver quem estava
chamando. Todas as ligações eram de Leah. O que ele poderia lhe dizer?
Sinto muito, mas não vou buscar você hoje à noite nem levá-la de volta aos
Estados Unidos, porque devo estar preso ou morto?
Ele queria estar bem descansado e alimentado. Queria estar preparado e
atento, mesmo sem saber como seria o seu dia. Rayford também orou para
que Deus o alertasse, caso ele estivesse agindo por conta própria. Estava
disposto a chegar à festa pelo menos três horas antes do pôr-do-sol, misturarse
à multidão e permanecer no local que ele já escolhera. Feito isso, Deus
teria de puxar o gatilho.
Rayford pegou seu celular e leu o último recado de Leah no visor:
"Nosso passarinho fugiu da gaiola. E agora?"
Hattie não estava na penitenciária? Sua pergunta era a mesma de Leah. E
agora? Ele ligou para ela. Não obteve resposta.
Buck estava zangado consigo mesmo por não ter chegado mais cedo ao
Muro das Lamentações. Seu lugar na saliência da rocha já estava ocupado.
Os guardas da CG não permitiam que ninguém subisse nas árvores. A área
estava repleta de gente bêbada. Buck podia jurar que algumas delas não
saíam dali havia dias. Quanto tempo essa festa ainda ia durar? Danças, atos
lascivos praticados em público, gritarias, cantorias, bebedeiras, gente
cambaleando...
Milhares de pessoas gritavam palavras de ordem em vários idiomas, e
agora só as mais corajosas se aproximavam dos cadáveres das testemunhas,
escurecidos e curtidos pela exposição ao Sol. Buck sentiu um cheiro rançoso
de morte a centenas de metros de distância. Mesmo assim, ele estava
disposto a aproximar-se. Depois de contornar o lado esquerdo do muro, ele
avistou um pequeno bosque composto de arbustos altos. Buck não queria
arriscar-se a ser reconhecido, mas achou que valeria a pena enfrentar o
perigo. Se aquele pequeno bosque desse acesso à mesma vegetação rasteira
que, um dia, lhe permitira aproximar-se de Eli e Moisés sem atrair a atenção
dos guardas, ele seria testemunha ocular de um dos maiores milagres da
História.
Tsion e Chloe levantaram-se antes do amanhecer para assistir novamente
aos noticiários exibidos pela TV. Eles se revezavam para distrair Kenny,
quando as câmeras mostravam a cena horripilante dos corpos de Eli e
Moisés.
Por mais terríveis que tenham sido essas mortes - disse Tsion -, o que
virá a seguir será extraordinário.
Sentado no sofá, Tsion balançava o corpo de um lado para o outro, sem
conseguir ficar parado. Todas as vezes que seus olhos cruzavam com os de
Chloe, ele se lembrava de sua filha, quando ela ainda era menina, na manhã
do dia de seu aniversário.
Buck esgueirou-se por entre os arbustos, passando despercebido por dois
postos de segurança, e chegou ao outro lado, onde poderia ficar perto da
cerca sem ser visto. Ele mal podia acreditar em sua sorte. Jamais seria
descoberto, a menos que acontecesse alguma coisa errada. Na mesma hora,
ele se lembrou de sua própria advertência a Leah. Nós não desejamos sorte.
Obrigado, Senhor - ele murmurou.
Era muito triste ver o que restara dos dois homens poderosos a quem ele
aprendera a amar. Com exceção dos chutes ocasionais dados por algumas
pessoas mais irreverentes, os corpos estavam imóveis ali havia três dias e
meio, servindo de alimento a animais, sendo bicados por aves e comidos por
vermes. Buck disse a si mesmo que jamais deixaria um corpo apodrecendo
ao sol, mesmo que fosse o de seu pior inimigo.
Uma banda barulhenta invadiu o local levando o povo ao delírio. Os
mais corajosos fizeram um círculo ao redor dos corpos, dançando com os
braços sobre os ombros do companheiro do lado. Buck temia não conseguir
enxergar o milagre se ficasse atrás desse grupo de bêbados malucos. O
malfadado círculo transformou-se em uma fila, quando o grupo começou a
dançar entre os corpos e a cerca.
A dança foi ficando cada vez mais rápida até que alguém inverteu a
direção. A fila parou e seguiu o líder, mas alguns do grupo decidiram ir para
o outro lado. Formou-se uma confusão total. Os dançarinos colidiam uns
com os outros, gargalhando, gritando, chorando de tanto rir. Uma senhora de
meia-idade, sem um dos sapatos, curvou-se para vomitar e foi atropelada por
aqueles que continuavam dançando.
De vez em quando, o grupo se abaixava, deixando Buck com uma visão
clara de Eli e Moisés, que agora não passavam de meras partes retorcidas,
desconjuntadas e fétidas de corpos em decomposição. Um sentimento de
piedade fez Buck soluçar, sentindo um nó na garganta.
De repente, os mortos começaram a se movimentar. Buck prendeu a
respiração. Os participantes da dança começaram a gritar e afastaram-se,
chamando a atenção do restante do povo. A notícia de que os corpos estavam
se movimentando se espalhou. Os que estavam mais próximos dali saíram
correndo, ao passo que os que estavam mais longe começaram a dirigir-se ao
local.
A música parou, a cantoria transformou-se em gritos de terror. Muitas
pessoas cobriram os olhos ou viraram o rosto. Milhares fugiram. Outros
milhares começaram a aproximar-se.
Eli e Moisés, com muito esforço, ficaram de joelhos. Seus corpos
imundos começaram a movimentar-se em câmera lenta, o peito arfante. Com
dificuldade, colocaram as mãos nas pernas, piscaram os olhos e viraram-se
para ver o que se passava. Ambos, um após o outro, apoiaram a mão no
pavimento e, em seguida, endireitaram o corpo, levantando-se lentamente e
provocando gritos terríveis do povo, paralisado de medo.
Quando ambos finalmente ficaram em pé, a sujeira seca ao redor deles
transformou-se em água. As feridas cicatrizaram, a pele - esticada e rompida
pelo inchaço - contraiu-se, os hematomas roxos e pretos foram
desaparecendo aos poucos. Os cabelos e partes do tecido que estavam na
cerca e na parede mais adiante sumiram e se integraram ao corpo deles.
Buck ouvia os gritos agudos da multidão, mas não conseguia tirar os
olhos de Eli e Moisés. Eles ajeitaram a parte de cima do manto junto ao
peito, enquanto o restante da roupa de aniagem, muito limpa, oscilava ao
sabor da brisa. Ambos voltaram a ser altos e fortes, figuras dignas, vitoriosas
e imponentes.
Eli e Moisés olharam para a multidão com ar de tristeza e nostalgia. Em
seguida, ergueram o rosto em direção ao céu. Eles pareciam tão
esperançosos que muitas pessoas na multidão também olharam para o céu.
Nuvens brancas como a neve flutuavam no céu azul-escuro e arroxeado.
O Sol, que estava escondido, reapareceu em todo o seu esplendor tornando o
céu multicolorido, envolto em uma neblina branca.
Uma voz ecoou do céu, tão alta que fez o povo tapar os ouvidos e se
abaixar: "SUBAM!"
Ainda com os olhos voltados para o céu, Eli e Moisés subiram. Um
suspiro coletivo foi ouvido por todo o Monte do Templo, enquanto pessoas
se ajoelhavam, algumas com o rosto em terra, chorando, gritando, orando,
gemendo. As testemunhas desapareceram no meio de uma nuvem, que subiu
tão rapidamente que, logo em seguida, transformou-se em um ponto branco,
antes de sumir de vez.
Os joelhos de Buck tremiam tanto que ele caiu no chão chorando e
soluçando.
Louvado seja Deus - ele murmurou. - Obrigado, Senhor! Por toda
parte, milhares de pessoas se prostraram, chorando, lamentando, implorando
a Deus.
Buck começou a levantar-se, mas, antes que suas pernas se
endireitassem, sentiu o chão se retirar de debaixo dele, como se o tivessem
puxado. Ele correu para uma árvore, mas tropeçou e caiu, arranhando o
pescoço e as costas. Quando se levantou, viu centenas de pessoas caírem
depois de terem sido atiradas a uma grande altura.
O céu ficou negro, e uma chuva fria tomou conta da área. A quarteirões
de distância, ouviam-se terríveis sons de edifícios desabando, árvores
caindo, metais e vidros estilhaçando, carros sendo atirados de um lado para o
outro.
Terremoto! - o povo gritava, correndo.
Buck saiu cambaleando de seu abrigo, surpreso diante da devastação
provocada por um terremoto tão rápido. O Sol surgiu por entre as nuvens,
criando uma atmosfera sinistra. Buck caminhou atordoado rumo à casa de
Chaim.
No momento do terremoto, Rayford estava no quarto do hotel com a TV
ligada. A energia elétrica foi cortada, e tudo o que havia no quarto acabou
sendo atirado ao chão, inclusive ele. Quase que imediatamente, os
caminhões da CG com alto-falantes começaram a percorrer as ruas.
Atenção, cidadãos! Necessitamos de voluntários na região leste da
cidade. A cerimônia de encerramento será realizada esta noite, conforme
planejado. Alguns fanáticos fugiram levando os corpos dos pregadores. Não
acreditem em histórias da carochinha de que eles desapareceram, ou que
foram responsáveis por este fenômeno da natureza. Repetindo: A cerimônia
de encerramento será realizada esta noite, conforme planejado.
Mac havia-se deitado tarde na noite anterior. Quando acordou, ligou a
TV para ver as notícias do dia. Ele chorou quando as câmeras mostraram Eli
e Moisés ressuscitando e subindo ao céu no meio das nuvens. Como a CG
poderia contestar um fato mostrado ao mundo inteiro? David Hassid lhe
contara que vira a sinistra aparição de Carpathia na TV na noite de segundafeira,
mas aquele incidente não apareceu em nenhum dos teipes do evento. E
agora, os noticiários também não mostravam nenhuma imagem das
ressurreições.
Que poder, pensou Mac. Que controle total da mídia e até da moderna
tecnologia!
Se, por um motivo qualquer, Carpathia saísse vivo de Israel, Mac não
permitiria que ele aterrissasse vivo. Não em um avião que ele estivesse
pilotando. Será que deveria esperar tanto tempo? Ele vasculhou o fundo de
sua sacola de vôo e tateou a pistola contrabandeada, igual à que Abdullah
carregava. Se tivesse de levar a arma consigo naquela noite, Mac teria de
permanecer longe dos detectores de metais.
O bairro de Chaim havia sido seriamente atingido. Ao contrário das
casas vizinhas, que desabaram, a de Chaim escapara quase ilesa. Apenas os
tijolos da garagem ficaram abalados e uma parte dela desmoronou.
A energia elétrica foi restabelecida rapidamente naquela área, e Buck
pôde assistir aos noticiários da TV ao lado de Chaim e dos empregados da
casa. O número de mortes anunciado chegava a centenas, mas logo subiu a
milhares.
A maior devastação ocorreu na região leste de Jerusalém, onde casas e
edifícios desabaram, avenidas transformaram-se em tiras retorcidas de
asfalto e lama, e milhares de pessoas morreram. No início da noite, ficou
evidente que a décima parte da Cidade Santa havia sido destruída e que o
número de mortos na manhã seguinte chegaria a, no mínimo, sete mil.
Todos os noticiários repetiam a insistência da CG para que os delegados
assistissem ao encerramento da Festa de Gala.
A cerimônia será abreviada - dizia Leon Fortunato, dando à voz um
tom solene adequado à ocasião. - O potentado está envolvido nas operações
de busca e salvamento, mas pediu-me que eu estendesse suas mais sinceras
condolências a todos os que perderam familiares. Estas são as palavras dele:
"A reconstrução inicia-se imediatamente. Não seremos derrotados. O caráter
de um povo é revelado por sua reação diante de uma tragédia. Vamos nos
erguer, porque somos a Comunidade Global. É tremendamente importante
estarmos reunidos conforme planejado. Música e dança não serão
apropriadas, mas estaremos juntos, animando uns aos outros e dedicando-nos
mais uma vez aos ideais que tanto prezamos."
Permitam-me incluir uma palavra pessoal - disse
Fortunato. - O potentado Carpathia ficará extremamente encorajado se
um número expressivo comparecer. Vamos homenagear os mortos e o valor
daqueles que participaram dos resgates, além de cuidar dos feridos.
Buck não tinha nenhum interesse em assistir à mesma baboseira da
cerimônia de abertura - os potentados regionais elogiando seu líder
destemido e ele, com expressão de santo, fascinando a multidão.
Você prometeu comparecer - ralhou Chaim.
Ora, doutor, as estradas continuam intransitáveis, a rampa para
cadeira de rodas talvez tenha sido danificada. Seria melhor assistirmos pela...
Jacov pode dirigir em qualquer estrada e me levar a qualquer lugar.
Jacov encolheu os ombros. Buck fez uma careta como que indagando
por que ele não o apoiava.
Ele tem razão - disse Jacov. - Vamos colocar a cadeira de rodas no
carro e levá-lo até lá.
Eu não posso correr o risco de ser reconhecido - disse Buck a Chaim.
Eu só quero que você fique no meio da multidão me dando apoio.
O Sol surgiu por trás das nuvens e aqueceu Jerusalém. O tom alaranjado
no céu da velha cidade deixou Rayford extasiado diante de tanta beleza. A
devastação havia produzido o mesmo efeito nele. Rayford não podia
imaginar por que Carpathia estava tão determinado a cumprir a
programação. Mas o potentado agia de modo que os planos de Deus fossem
cumpridos. Depois de andar escondido atrás dos grupos de pessoas,
Rayford parou no meio de uma aglomeração perto da torre de altofalantes,
à esquerda de Carpathia. Calculou que estava a cerca de 20 metros
da tribuna.
Eu não vou - avisou Abdullah. - Prefiro ver pela TV.
Como quiser - disse Mac. - Talvez eu ainda vá me arrepender de ter
ido.
A van que levaria Mac estava estacionada, e ele aguardou mais de 20
minutos até ela sair. Quando finalmente partiram, ele olhou para trás e viu
Abdullah saindo apressado do hotel, com as mãos nos bolsos da jaqueta.
Buck chegou ao local da festa antes de Jacov e Chaim e aguardou perto
da entrada, animado por não estar sendo reconhecido por ninguém. Seu novo
rosto ajudava muito. Naquele momento, os funcionários da CG tinham a
preocupação voltada para um convidado de honra que acabara de chegar.
Alguém estacionou o carro de Chaim, enquanto Jacov o conduzia na
cadeira de rodas para passar pelo detector de metais do lado direito do
palanque.
Seu nome, por favor - disse o guarda dirigindo-se a Jacov.
Jac...
Ele está comigo, jovem - ralhou Chaim. - Deixe-o em paz.
Lamento muito, senhor - disse o guarda. - Estamos intensificando
nossa segurança, conforme o senhor pode imaginar.
Eu já disse que ele está comigo!
Tudo bem, senhor, mas assim que ele o ajudar a subir até o palanque,
deverá sair de lá.
Que absurdo! - disse Chaim. - Agora...
Ora, patrão - disse Jacov rapidamente. - Eu não quero ficar lá no
palanque. Por favor.
Buck viu Chaim fechar os olhos como se estivesse exausto e fazer um
gesto de resignação.
Só me leve até lá - ele disse.
O senhor também terá de passar pelo detector de metais -disse o
guarda. - Não há exceções.
Ótimo! Vamos lá!
Você primeiro, moço.
As chaves no bolso de Jacov fizeram acionar o alarme. Na segunda
tentativa, ele passou sem problemas.
O senhor vai precisar levantar-se da cadeira por alguns instantes, Dr.
Rosenzweig - disse o guarda. - Meus companheiros poderão ajudá-lo.
Não! - gritou Chaim.
Senhor - disse Jacov ao guarda -, ele sofreu um derrame na seg...
Estou sabendo de tudo.
O senhor está querendo insultar um israelense, ou, mais ainda, um
estadista conhecido no mundo inteiro?
O guarda parecia confuso. - Preciso, pelo menos, revistá-lo.
Está bem - resmungou Chaim. - Seja rápido!
O guarda fez uma revista completa em Chaim, tentando localizar
qualquer objeto estranho preso nos braços, pernas, frente e costas.
Mesmo que o senhor estivesse portando alguma arma, não poderia
fugir tão rápido - disse o guarda.
Jacov e mais três homens carregaram Chaim na cadeira de rodas até o
palanque, deixando-o na extremidade esquerda de uma fileira de cadeiras. O
guarda fez um sinal para que Jacov voltasse.
Devo deixá-lo ali sozinho?
Sinto muito - disse o guarda. Jacov encolheu os ombros.
Vá! - disse Chaim. - Eu vou ficar bem.
Jacov desceu do palanque e postou-se ao lado de Buck, de onde eles
viram Chaim se divertindo com a cadeira de rodas motorizada, indo de um
lado ao outro do palanque vazio, para alegria da multidão que aumentava
cada vez mais.
O céu estava escuro, mas um extenso sistema de iluminação clareava
toda a praça. Rayford calculou que o número de presentes era maior do que o
do dia da cerimônia de abertura, mas sem o mesmo alvoroço.
Os convidados de honra foram transportados em carros, porque os
helicópteros estavam a serviço da equipe de resgate às vítimas do terremoto.
Não houve ostentação, danças, nem oração. Os potentados subiram a escada,
cumprimentaram Chaim e aguardaram em pé diante de suas cadeiras. Leon
subiu atrás de Nicolae, os dois cercados por um imenso aparato de
segurança. O povo aplaudiu com entusiasmo, mas sem gritos ou assobios.
Após fazer a apresentação dos potentados, Leon disse:
Contamos também com a presença de mais um convidado muito
especial, a quem gostaríamos de saudar neste momento, mas Sua Excelência
insistiu para ter esse privilégio. Agradeço a colaboração de todos durante
estas comemorações e passo a palavra a Sua Excelência, Nicolae Carpathia.
Rayford enfiou as duas mãos dentro do manto e retirou o Sabre da caixa.
Orando silenciosamente, ele disse a Deus que estava preparado para exibir a
arma no momento certo.
Carpathia, desta vez um pouco mais contido, fez cessar os aplausos.
Quero reforçar os agradecimentos do supremo comandante e enviar
minhas condolências a todos os que perderam entes queridos. Não vou me
delongar, porque sei que muitos aqui presentes precisam retornar a seus
países e estão preocupados com os meios de transporte. Os vôos estão
decolando de ambos os aeroportos, evidentemente com um certo atraso.
Antes de fazer outras observações, quero apresentar meu convidado
de honra. Ele deveria ter estado aqui na segunda-feira, mas foi acometido de
um derrame. Tenho a enorme satisfação de anunciar o milagroso
restabelecimento deste grande homem, o que possibilitou sua presença aqui
conosco nesta noite, mesmo em cadeira de rodas, mas com ótimas
perspectivas de completa recuperação de sua saúde. Senhoras e senhores da
Comunidade Global, tenho a honra de apresentar-lhes o estadista, o cientista,
o cidadão leal e meu dileto amigo, o ilustre Dr. Chaim Rosenzweig!
O povo aplaudiu com alegria no momento em que Carpathia apontou na
direção de Chaim, e Rayford vislumbrou uma oportunidade. As pessoas à
sua frente levantaram os braços para aplaudir e acenar, e ele empunhou a
arma e mirou. Porém, Chaim estendeu a mão sadia para cumprimentar
Carpathia, o qual, por sua vez, se curvou sobre a cadeira de rodas para
abraçar o ancião.
Rayford não podia atirar, pois atingiria Chaim. Ele abaixou a arma e
escondeu-a nas dobras da manga, observando o abraço desajeitado. Nicolae
ergueu o braço de Chaim, e a multidão aplaudiu novamente. Carpathia
retornou à tribuna, e a oportunidade foi perdida.
Mac McCullum sabia que Buck Williams devia estar no meio da
multidão. Talvez fosse melhor tentar procurá-lo depois que tudo estivesse
terminado. Abdullah também estaria ali? E por que ele disse que não iria?
Tremendo por ter quase atingido seu intento, Rayford sentiu um gosto
amargo na boca. Carpathia o enojava.
Cidadãos e companheiros - Nicolae estava dizendo solenemente -,
nos primeiros anos da história deste nosso governo mundial, temos lutado
ombro a ombro contra fortes oposições como as que enfrentamos agora. Eu
havia preparado um discurso de despedida para voltarmos para nossos lares
com vigor renovado e maior dedicação aos ideais da Comunidade Global. A
tragédia tornou esse discurso desnecessário. Provamos mais uma vez que
somos um povo com determinação e ideais, com espírito de servir e fazer
boas ações.
Três potentados sentados atrás de Carpathia ficaram em pé, o que
obrigou os outros sete a fazerem o mesmo, embora com relutância. Carpathia
percebeu que a atenção do povo fora desviada e virou-se para trás. Os três
potentados que se levantaram primeiro começaram a bater palmas, seguidos
por seus colegas e pela multidão. Rayford pensou ter visto uma troca de
olhares entre Carpathia e Fortunato.
Estaria havendo uma conspiração? Mac lhe contara que três potentados
não eram tão leais quanto Nicolae pensava. Seriam aqueles três que se
levantaram primeiro?
Os potentados sentaram-se e, pela primeira vez desde as reuniões no
Estádio Teddy Kollek, Carpathia demonstrou estar confuso. Ele tentou
reiniciar o discurso, parou e repetiu as palavras que já havia dito. Em
seguida, virou-se para os potentados e disse em tom de brincadeira:
Não façam isso comigo.
A multidão voltou a aplaudir, e Nicolae aproveitou a situação para
provocar uma grande gargalhada. Sem deixar transparecer sua preocupação,
ele recomeçou a falar, olhou para trás rapidamente e retomou o discurso,
conseguindo atrair risos silenciosos da platéia.
De repente, os três potentados levantaram-se novamente e aplaudiram
como se estivessem tentando somar pontos com Nicolae. Rayford notou que
um deles enfiou a mão no bolso ao levantar-se. A multidão achou que os três
potentados estavam fazendo uma espécie de encenação improvisada. Quando
Chaim virou sua cadeira e rodou na direção de Fortunato, o povo riu e vibrou
de alegria.
Rayford teve a atenção desviada para a esquerda. Hattie? Não era
possível. Ele tentou não perdê-la de vista, mas as pessoas à sua frente
levantaram as mãos novamente, gritando, aplaudindo, pulando. Ele nivelou a
arma, mirando-a num ponto entre os dois guardas de segurança que estavam
um de cada lado de Nicolae, e tentou apertar o gatilho. Mas não conseguiu!
Seu braço estava paralisado, sua mão trêmula e a visão embaralhada. Será
que Deus não queria que ele atirasse? Será que ele se precipitara? Ele se
sentia um tolo, um covarde, um fraco, apesar de ter uma arma na mão.
Rayford tremia, sem tirar os olhos de Carpathia. Enquanto a multidão
comemorava, Rayford recebeu um tranco nas costas e no lado do corpo e a
arma disparou. No momento da explosão, o povo afastou-se em pânico,
formando um círculo ao redor dele. Rayford correu, tendo várias pessoas em
seu encalço. Ele jogou a arma no chão, deixando que a outra metade da caixa
também caísse. O povo gritava e pisoteava os que se atiraram ao chão.
Enquanto tentava abrir caminho em meio a uma massa compacta de
gente, Rayford olhou para trás em direção ao palanque. Não conseguiu ver
Carpathia. Os potentados abaixaram-se para se proteger e um deles deixou
cair alguma coisa, enquanto saía correndo do palanque. A princípio, Rayford
também não conseguiu ver Fortunato. A tribuna tinha sido destruída, e a
enorme cortina de fundo de 30 metros de extensão soltou-se da armação e
voou pelos ares. Rayford imaginou que a bala tivesse atravessado Carpathia
e a cortina.
Será que ele havia sido usado por Deus mesmo tendo sido tão covarde?
Será que ele havia cumprido a profecia? O disparo fora acidental. Ele não
pretendia atirar!
Assim que ouviu o tiro, Buck escondeu-se debaixo de uma armação de
ferro. Uma multidão desvairada passou por ele dos dois lados, e algumas
pessoas tinham uma expressão de alegria. Seriam alguns convertidos que
viram Carpathia assassinar seus heróis diante do Muro das Lamentações?
Quando Buck olhou para o palanque, viu os potentados tentando
levantar-se, a cortina voando a distância e Chaim em estado catatônico, com
a cabeça rígida.
Carpathia estava estendido no chão, com os olhos, o nariz, a boca e -
conforme parecia a Buck - também o alto da cabeça sangrando. O microfone
em sua lapela continuava ligado. Por estar bem abaixo da torre dos altofalantes,
Buck ouviu o murmúrio gutural de Nicolae:
Mas eu pensei... eu pensei... que havia feito tudo o que vocês
pediram.
Fortunato debruçou seu corpanzil sobre o peito de Carpathia, passou a
mão por baixo da cabeça dele e levantou-a. Sentado no chão do palanque, ele
embalava seu potentado, gemendo o tempo todo.
Não morra, Excelência! - gritava Fortunato. - Nós precisamos do
senhor! O mundo precisa do senhor! Eu preciso do senhor!
Os guardas de segurança cercaram os dois, empunhando metralhadoras.
Buck já havia presenciado tragédias suficientes para um só dia, mas ele não
conseguia tirar os olhos da cena, observando fixamente o crânio
ensangüentado e esfacelado de Carpathia.
Com certeza, o ferimento havia sido fatal. E, do local em que Buck
estava, não havia dúvida sobre a arma que o provocara.
Eu não esperava um disparo - disse Tsion olhando firme para a TV,
enquanto a segurança da CG afastava o pessoal e retirava Carpathia do
palanque.
Duas horas depois, a CNN CG confirmou a morte e reproduziu infinitas
vezes o pronunciamento agoniado do supremo comandante Leon Fortunato.
Devemos suportar essa tragédia dentro do espírito corajoso de nosso
fundador e defensor da moral, o potentado Nicolae Carpathia. A causa da
morte só será divulgada depois de concluídas as investigações. Mas os
senhores podem estar seguros de que o culpado será levado à Justiça.
Os noticiários comunicaram que o corpo do potentado ficaria exposto no
palácio da Nova Babilônia até o sepultamento, que se daria no domingo.
Não saia de perto da TV, Chloe - disse Tsion. - É provável que a
ressurreição seja captada pelas câmeras.
Mas a sexta-feira acabou e o sábado amanheceu em Monte Prospect.
Quando a noite de sábado começou a se aproximar, até mesmo Tsion passou
a se questionar. A Bíblia não mencionava nada sobre a morte por projétil. O
anticristo morreria de uma ferida na cabeça e, em seguida, ressuscitaria. O
corpo de Carpathia continuava sendo velado.
Na madrugada de domingo, enquanto via o povo passando pelo esquife
de vidro no pátio do palácio da CG banhado de sol, Tsion começou a duvidar
de si mesmo.
Será que ele estava enganado?
Duas horas antes do sepultamento, David Hassid foi chamado ao
escritório de Leon Fortunato. Leon e os diretores do Serviço de Inteligência
e Segurança estavam aglomerados diante de um aparelho de TV. O rosto de
Leon demonstrava um sofrimento terrível e a promessa de vingança.
Assim que Sua Excelência for sepultado - ele disse, com voz rouca -,
o mundo chegará a uma conclusão. Quem o matou será executado. Observe
conosco, David. Os ângulos principais estão bloqueados, mas veja esta
imagem secundária. Diga-me se você está vendo o mesmo que nós.
David olhou atentamente.
Oh, não!, ele pensou. Não pode ser!
E então? - perguntou Leon, olhando firme para ele. -Existe alguma
dúvida?
David estava sem fala, mas seu silêncio fez com que os outros dois
homens olhassem para ele.
A câmera não mente - disse Leon. - Já sabemos quem o matou, não?
Por mais que quisesse inventar outra explicação para uma cena tão
evidente, David sabia que perderia sua posição se desse uma resposta sem
lógica. Ele assentiu com a cabeça.
Claro que sabemos.
EPÍLOGO
"Passou o segundo ai. Eis que, sem demora, vem o terceiro ai."
Apocalipse 11.14
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